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haroldo de campos A ReOPERACAO DO TEXTO SN or 7 3 PERSPECTIVA “Ns Copyright © Ivan P. de Arruda Campos e Carmem de P. Arruda Campos, 201 crr-Brasil. Catalogacao na Publicacio Sindicato Nacional dos Editores de Livros, zy c2ar zed. Campos, Haroldo de, 1929-2003 ReoperagSo do texto : obra revista e ampliada / Harolde de Campos. - 2. ed. - Sao Paulo : Perspectiva, 2013. 208 ps {Debates ; 134) Inclui bibliografia ISBN 978-85-273-0978-3 1. Literatura - Hist6ria e critica. 1. Titulo. 11. Série. 13-01209 cpp:809 CDU: 82.09 20/05/2013 20/05/2013 Direitos reservados & EDITORA PERSPECTIVA S.A. Av. Brigadeiro Luis Antonio, 3025 01401-000 Sao Paulo SP Brasil ‘Telefax: (11) 3885-8388 www.editoraperspectiva.com.br 2013 5. DIABOLOS NO TEXTO (SAUSSURE E OS ANAGRAMAS) A fungiio estética da linguagem dificilmente se presta a ana- lise, tao estreitamente entrelagada esta as fungées de comu- nicago e de expressao. Esta, pelo menos, é a opiniao de A. Martinet, em seus Fléments de linguistique générale. Tem cabido, sobretudo a um linguista, Roman Jakob- son, desafiar essa dificuldade e levantar esse interdito. Em seu ensaio “Linguistics and Poetics’, oriundo de uma con- feréncia interdisciplinar sobre problemas de estilo promo- vida pela Universidade de Indiana, podemos ler, 4 guisa de conclusao: A presente conferéncia demonstrou claramente que o tempo em que os linguistas, tanto quanto os historiadores da literatura, eludiam as questées referentes a estrutura poética ficou, felizmente, para tras [...] Se existem alguns criticos que ainda duvidam da com- peténcia da Linguistica para abarcar o campo da Poética, tenho para mim que a incompeténcia poética de alguns linguistas intolerantes 109 tenha sido tomada poruma incapacidade da prépria ciéncia linguis- tica, Todos nds que tamos, todavia, compreendemos defini- tivamente ¢ que um linguista surdo a fungao poética da linguagem e e um especialista de literatura indiferente aos problemas linguisticos _ e ignorante dos métodos da Linguistica séo, um e outro, flagrantes anacronismos, / Emsua andlise de um poema de Bertolt Brecht (“Der ‘ grammatische Bau des Gedichts von B. Brecht Wir sind sie” 1965), Jakobson insiste na mesma tecla: “Entre os estudio- sos de literatura dos varios paises, linguas, orientacées e gera¢des, ha sempre aqueles que veem na anilise estrutu- ral da poesia uma criminosa incursao da linguistica numa zona proibida; por outro lado, existem linguistas de varias tendéncias que, de antemao, excluem a linguagem poética | do circulo de temas de interesse de sua ciéncia. 6 problema dos trogloditas permanecerem trogloditas.”* J ‘ Dir-se-4 que Jakobson nao é bem um linguista, ou antes, é mais do que um linguista: é um génio. O argumento, se faz justica a Jakobson, nao o faz a ciéncia da linguagem, que fica assim reduzida a condigao daquelas universidades americanas, de que fala o mesmo Jakobson, que se mos- traram pequenas demais para conter a genialidade de um homem como Charles Sanders Peirce. Giulio C. Lepschy, no seu excelente La Linguistica strutturale, reporta, nesta conformidade, uma curiosa critica que se tem feito a Jako- bson: a de “excesso de inteligéncia’ Por forca dessa “inteli- géncia excessiva’, o mestre russo-americano projetaria sua personalidade sobre certos problemas ainda em formacao, antecipando e por vezes predeterminando seu desenvolvi- mento normal, gracas 4 antevisao intuitiva de conclusées i i } } 1 Roman Jakobson, Linguistics and Poetics, em T.A. Sebeok (org.), Style in Language, , Cambridge: MIT Press, 1960. Tradugao brasileira em Linguis- tica e Comunicagao, Sao Paulo: Cultrix, 1968. Idem, “A Construgéo Grama- tical do Poema ‘Nés Somos Ele’ de B. Brecht” Berlim, 1965; em portugués na coletanea Linguistica. Poética. Cinema, Sao Paulo: Perspectiva, 1970. 2 Roman Jakobson, A la recherche de l'essence du langage, em Problémes du langage, obra coletiva, Paris: Gallimard, 1966. Em portugués na coletanea de R. fakobson, Linguistica e Comunicagao, Sao Paulo: Cultrix, 1969. 110 que, a falta de dados adequados e de pesquisas sistematicas e aprofundadas, nao poderiam ser de todo satisfatdrias...* _ A publicacao relativamente recente de certos inéditos de Ferdinand de Saussure veio mostrar que, muito ao con-- trario do que se poderia crer, Jakobson, com seus rasgos heuristicos e sua imaginac4o fonolégica pronta a devassar os arcanos da estrutura poemiatica, nao esta isolado nem. representa um caso extravagante no campo da linguistica. Antes, o mestre genebrino, o pai reconhecido da linguistica estrutural, lhe faz premonitéria e iluminadora companhia. Quem leu o estudo ja famoso de Jacques Lacan “L’Instance de la lettre dans l'inconscient’, sabe que 0 reno- vador da psicandlise em ambito estruturalista critica 0 prin- cipio da linearidade da linguistica saussuriana em termos que pressupdem um desconhecimento ou um desinteresse por parte de Saussure em relaco a poesia. Escreve Lacan: A linearidade que F. de Saussure considera constitutiva da cadeia do discurso, de conformidade com sua emissdo por uma tinica voz e com sua disposi¢do horizontal em nossa escrita, - se ela é necessaria de fato, nao é suficiente [...] Bastaria escutar a poe- sia, o que talvez Saus: ao ti habito de fazer, para ouvir “tomo emerge uma verdadeira polifonia, para saber que de fato todo discurso alinha-se nas varias pautas de uma partitura. Nao ha, com efeito, nenhuma cadeia significante que nao sustenha, suspensa a pontuagao de cada uma de suas unidades, na vertical, todo um arti- culado de contextos relevantes. FE que em 1957, quando Lacan publicou seu estudo, ndo haviam sido ainda revelados os inéditos de Saussure sobre * o problema dos “anagramas’, que s6 vieram a luz em 1964, no Mercure de ’ France, gracas a Jean Starobinski*. 3 Giulio C. Lepschy, La linguistica strutturale, Turim: Einaudi, 1966. (Trad. bras.: A Linguistica Estrutural, Sio Paulo: Perspectiva, 1971.) 4 Na edigdo em livro de seus Ecrits, Paris: Seuil, 1966, Lacan notifi- cou 0 texto original, para refazer 0 juizo sobre Saussure ¢ a poesia, 4 luz do trabalho de Starobinski. lil Jakobson, em 1966, em entrevista que concedeu a Jean Pierre Faye (publicada em Le Récit hunique, deste ultimo), indagado sobre a unidade da linguistica e da poética, pode j4 tomar em consideracao esses e outros inéditos, para responder: Uma tal unidade pode ja ser extraida dos ensinamentos de Saussure. Veja os seus “Anagrammes”. Acabo justamente de exami- nar Os seus manuscritos em Genebra, gragas a Starobinski, Trata-se_ de sua obra mais genial, que chegou a assustar até mesmo seus dis- ‘cipulos. Dai a tentativa destes dltimos de manter essa parte da obra, saussuriana em segredo, tanto tempo quanto /possivel, ‘Saussure, todavia, em carta a Meillet, considerar esse trabalho como, “sendo sua obra-prima. ~ Mas, afinal de contas, que so os “Anagramas”, onde Saussure, com certeza, teria também posto um tal excesso de inteligéncia e de imaginac4o que discipulos zelosos, mas despidos de igual criatividade, teriam julgado prudente, a bem da reputacdo do mestre, retardar-lhes a publicacao? Explica Starobinski, cujos comentarios ao texto dos fragmentos saussurianos vamos acompanhar’: “Nos anos } em que apresentava a seus estudantes da Universidade de ! Genebra 0 curso cujas notas iriam servir 4 publicagao pés- tuma de Linguistique générale, Ferdinand de Saussure vol- tava sua atencdo a problemas bem diferentes. A julgar pelos ‘. 99 cadernos de notas que ficaram inéditos, a mais impor- tante dessas preocupacées diz respeito a uma variedade particular de anagrama, que Saussure chamou, sucessiva- mente, anafonia, hipograma ou paragrama.” / O anagrama propriamente dito, nds o sabemos, lida com as letras, os sinais graficos, os digitos do alfabeto fonético. Trata-se, como o define Mattoso Camara Jr., de um “artificio que, na base da forma escrita, consiste em 5 Jean Starobinski, Les Anagrammes de Ferdinand de Saussure, Mer- cure de France, n. 350, fev. 1961. Posteriormente, Starobinski publicou mais quatro trabathos sobre o assunto, reunindo-os, em 1972, em volume, Les Mots sous les mots. (Trad. bras.: As Palavras Sob as Palavras, Sao Paulo: Perspectiva, 1974.) 112 disfarcar uma palavra pela troca de posicao das letras e, pois, dos correspondentes fonemas”. Assim, EVA é ana- grama de AVE; ROMA, de AMOR, ¢ reciprocamente®. Saussure, porém, interessou-se pelo anagrama no plano exclusivamente dos fonemas, pelo anagrama enquanto “figura fonica’, como diria jakobson, constituido pela repeti- ¢4o de certos sons cuja combinacao imitaria uma dada pala- vra. Dai o nome de anafonia, de que ele cogitou, para depois © reservar ao anagrama fénico imperfeito, onde a repeticao dos fonemas da palavra-tema nao seria completa. A sim- ples correspondéncia sonora (aliteracao, rima, assonancia), 0 que Saussure chama harmonias fonicas, nao se confundiria seja com o anagrama, seja com a anafonia, por nao incluir 0 fator de imitagao de uma palavra dada. Esta palavra-tema (um onomastico, nome de deus ou heréi), Saussure a Teco. “nhece da maneira bastante livre, sem respeito a ordem de sucessdo linear dos fonemas, como se alguns elementos “pri- vilegiados” (no sentido da teoria da Gestalt, caberia dizer) se fossem ressaltando para 0 seu ouvido contra um bastidor fonético de elementos menos relevantes. As observacées de Saussure nasceram do estudo do verso saturnino latino, caracterizado pela aliteragao. Ao cabo do exame que empreendeu, a pratica aliterativa pare- ceu-lhe, neste verso, a manifestacdo particular e menos sig- nificativa de determinadas leis fénicas, cujo fulcro estaria justamente no anagrama e na anafonia. Assim, no exemplo: Taurasia Cisauna Samnio cepit Saussure reconhece o nome de Scipio (Cipiao), convo- cando para esta reconstru¢ao fonoldgica as sflabas Ci (de Cisauna), pi (de cepit) e io (de Samnio), além de vislumbrar 6 O excelente trabalho de hermenéutica das “mascaras verbais” de Lautréamond, publicado por Leyla Perrone-Moisés no Suplemento Lite- rario de O Estado de S.Paulo, 24 maio 1969, inscreve-se sobretudo no campo do anagrama propriamente dito (no caso, a manipulacao combi- natoria de letras de antropénimos). 113 uma outra repeticao, quase-perfeita, do mesmo nome-tema, em fonemas de Samnio cepit (a sibilante inicial e as vogais finais da primeira palavra; os quatro primeiros fonemas da segunda). Neste outro exemplo: Mors perfecit tua ut essent o autor do Cours discerne a repeticéo ordenada de uma série vocalica: o-e-1-u, modelada no vocalismo do nome Cornelius, com uma tinica imperfeicdo, o primeiro e, breve, de perfecit, que nao res- ponderia exatamente ao ¢ longo do nome-tema, sem toda- via se desviar do timbre e. Pensou também Saussure em dar a sua descoberta 0 nome de hipograma, palavra cujos sentidos de “fazer alu- sao”, “reproduzir por escrito como um notério’, “sublinhar com pintura os tragos do rosto”, se acomodariam, todos, a definigdo do fendmeno examinado, a saber: “sublinhar um nome, uma palavra, esforcando-se por repetir-lhe as sila- bas, dando-Jhe assim uma segunda maneira de ser, facticia, ajuntada por assim dizer a original do vocdbulo”. Finalmente, chegou ele ao termo paragrama, salien- tando sempre que 0 uso do radical grama nao deveria ser tomado no sentido de que a figura estudada fosse de natu- reza escrita, grafica. Anagrama estaria reservado, nesta derradeira especificacao terminoldgica, aos casos em que a palavra-tema ficasse contida num pequeno espaco fonico (uma ou duas palavras), quase como na defini¢ao tradicio- nal do artificio. O anagrama representaria, assim, apenas um aspecto restrito e menos importante do fendmeno mais amplo de mimetismo fénico denominado paragrama. Este paragrama (ou hipograma), repara Starobinski, “faz com que um nome simples perpasse no desdobramento complexo das silabas de um verso; ser4 mister reconhecer e aproximar as silabas diretoras, como Isis reunia 0 corpo despedagado de Osiris”. Metafora tanto mais apropriada, 114 acrescento por minha conta, quanto é certo que o nome de Osiris, por seu turno, contém redistribuidos, anagramati- zados, os fonemas de {sis... Mas Saussure nao fica nisto. Ao lado do paragrama em suas varias modalidades, ou concomitantemente com ele, descobre também harmonias fénicas resultantes de repeti- ges de elementos em numero par (o que chama “couplai- sor’, acoplamento). Assim, no verso: Subigit omne Loucanam opsidesque abdoucit percebe os seguintes elementos fénicos, cada qual duas vezes repetido: ouc, d, b, it, i, 0, n, m. Da avaliacao de suas pesquisas, Saussure conclui que, podendo todas as silabas concorrer para a simetria fonica, existe no carmen um segundo principio combinatério, independente do esquema ritmico do verso, mas que a este se alia para constituir a forma poética. Para satisfazer a esse principio segundo, o poeta tinha por fun¢do entregar-se a andlise fonica das palavras. A ciéncia da forma vocal das palavras — salienta Saussure - é que faria, desde os tempos mais antigos indo-europeus, a superioridade, a qualidade especial, do “Kavis” hindu, do “Vates” latino. Passando a andlise da poesia védica, Saussure encontra, de fato, os mesmos fenémenos. Nos hinos dedicados a Agni Angiras, por exemplo, detecta uma série de calembours” como girah (cantos), anga (conjuncao) etc., que visam a~ imitar as silabas do nome sacro. No primeiro hino do Rig- -Veda, descobre uma anilise gramatico-poética inspirada na andlise fonopoética de base (esse hino, segundo Saus- sure, declina o nome divino de Agni). Simetrias sonoras paritarias sao por ele também reconhecidas na arte poé- tica hindu. Estendendo suas investigacées 4 antiga poesia germa- nica aliterante, Saussure faz uma curiosa digressao etimo- légica. Se incumbia ao poeta, por vetusto preceito de sua arte, a andlise da substancia fonica das palavras (seja para a 115 organizagao de séries puramente acusticas dominadas pela regra paritaria; seja para a constituicdo de séries alusivo- -imitativas - paragramas - em torno de um nome-tema), entio cabe indagar como 0 poeta faria o computo dos ele- mentos fénicos analisados. Esta cogitacdo permite a Saus- sure interpretar a palavra alem Stab, em sua tripla acepcao de “varinha’, “fonema aliterante da poesia” e “letra”. O poeta, que deveria combinar sons em numero determinado, usaria seixos de cores diferentes ou varinhas de diversos tamanhos para marcar os sons utilizados, 4 medida que fosse com- pondo o seu canto. A relagéo de “varinha” como “fonema” ficaria assim historicamente elucidada, pois 0 poeta con- tava os fonemas por meio de varinhas. Este Stab (instru- mento computador de fonemas, ou simplesmente fonema por metonimia), anterior a escrita, depois se iria aglutinar com Buch (buoch, casca de faia na qual se podiam tracar caracteres) para formar 0 atual composto Buchstabe (letra). O ponto nodal das reflex6es de Saussure sobre os fend- menos anagramaticos esta, justamente, naquilo em que elas tocam a questao da linearidade da lingua. Trata-se, como diz Starobinski, da questao do tempo na linguagem, que, por forcga do anagrama, surge a uma nova luz, quando os fone- mas da palavra-tema sao deslocados da ordem que lhes é propria, passando a sofrer um tratamento fugal. Como é sabido, um dos postulados fundamentais da linguistica saussuriana é 0 da linearidade do significante do signo linguistico (“os significantes acusticos nao dispdem sendo da linha do tempo; seus elementos se apresentam um apés 0 outro; eles formam uma cadeia’; este “carater linear da lingua exclui a possibilidade de se pronunciarem dois elementos ao mesmo tempo’, Saussure, Cours). Jako- bson contestou a validade desta assertiva, invocando para infirma-la 0 carater nao-linear, mas simultaneo, dos tra- 60s distintivos que constituem o fonema. Escreve o autor de “Para a Estrutura do Fonema’: “Sim, é claro que nao se pode articular ao mesmo tempo dois sons da fala, mas quanto a duas ou mais propriedades fénicas ¢ claro que 116 se pode!” E exemplifica mostrando que a reunido de duas qualidades distintivas - tonalidade clara e efeito acustico abafado - num mesmo fonema é uma relacao de dois ele- mentos simultaneos in praesentia’. Do ponto de vista de uma psicanilise estrutural, vimos a refutagdo que também faz Lacan ao principio da lineari- dade, chamando a tela, precisamente, o carater polifonico da poesia e, por extensdo, a disposicao em partitura, que todo discurso traz implicita. Pois é da maior importancia saber que o proprio Saus- sure passou a admitir a mitigagao de seu axioma, pelo menos no campo da linguagem poemitica, através do estudo do paragrama, que nao obedece ao principio da consecutividade no tempo. Pondera o mestre: “Pode-se dar TAE através de fa + te, isto é, convidar 0 leitor nao mais a uma justaposi¢ao na consecutividade, mas a uma média das impress6es acusticas fora do tempo? fora da ordem no tempo que tém os elementos? fora da ordem linear que é observada se eu dou TAE através de TA-AE ou TA-E, mas que nao 0 é se o dou através de ta + te a serem amalgama- dos fora do tempo como eu 0 poderia fazer com duas cores simultaneas?” Eis, no plano fénico, o preceito mallarmeano, mais geral, das “subdivisées prismaticas da Ideia’, que inspirou a explicita configuracao em partitura (horizontal/vertical) do Lance de Dados (1897), e que vai instigar depois o simulta- neismo futurista e dadaista. Jakobson, em 1914, escreveria a Vielimir Khliébnikov sobre o problema dos “signos uni- tarios simultaneos’, da “simultaneidade” (odnovremennost) em poesia, das analogias com notas musicais, sem saber que preocupagées bastante semelhantes tinham obsediado 0s ultimos anos de Saussure, falecido em 1913°. Na poesia 7 Em Fonema e Fonologia, organizagao e tradugao de J. Mattoso Camara Jr., Rio de Janeiro: Livraria Académica, 1967. 8 Cf. “Retrospecto’, idem, Jakobson declara que, na sua busca dos infinitesimais do verbo poético, no seu manuseio paronomistico com 0s pares opositivos minimos, Khliébnikov propiciou a antecipacdo das 117 concreta brasileira temos um exemplo frisante de contes- taco até programatica do dogma da linearidade (desde os seus primeiros manifestos, a culminar no Plano Piloto, de 1958: “estrutura espacio-temporal, em vez de desenvolvi- mento meramente temporistico-linear”)®, assim como de manipulacio criativa dos efeitos da simultaneidade para a produgio de textos destinados a uma leitura nao linear, mas plurima. No poema “Lygia fingers’, da série Poeta-menos (1953), de Augusto de Campos, inspirado na técnica da “Klangfarbenmelodie” (melodia de timbres) do composi- tor Anton Webern, ha, por exemplo, uma verdadeira ana- gramatizaco progressiva do nome-tema, a percorrer toda a pesa, com seus fonemas total ou parcialmente redistribuidos por outras palavras (digital, linx, felyna, figlia etc.), as quais funcionam como emblemas metonimicos ou metaféricos da, feminilidade e seus atributos. Como o antigo poeta germa- nico, que se servia de seixos coloridos para marcar os fone- mas de sua composi¢ao, 0 poeta concreto se valeu de uma notac4o propria, onde cores diferentes assinalam as diver- sas “partes” (no sentido musical) de leitura, cada conjunto fonotematico devendo ser executado por uma voz (timbre) diversa (cinco vozes ao todo no poema considerado)"°. unidades fonémicas ultimas. O poeta designava esses fendmenos por “declinacao interna das palavras’, Este meu ensaio foi publicado em 1969. Em 1971, Jakobson estampou ria revista ’Homme o estudo “La Premiére lettre de Ferdinand de Saussure 4 Antoine Meillet sur les anagrammes” (hoje em Questions de poétique, Paris: Seuil, 1973), que confirma as con- jecturas aqui por mim desenvolvidas quanto as afinidades vislumbraveis entre o anagrama saussuriano ¢ a definicao jakobsoniana da fungao poé- tica (afinidades que so se manifestaram com a revelacdo dos inéditos do mestre genebrino). 9 Para se ver como este problema tem hoje voga na vanguarda fran- cesa dos anos 1960 e 1970, leia-se a comunicagao de J.L. Houdebine, “LAnalyse structurale et la notion du texte comme espace’, em Linguisti- que et Littérature, numero especial da revista La Nouvelle critique (col6- quio de Cluny, 1968). 10 Jéem 1955, no Teatro de Arena, este e outros poemas da série foram oralizados pelo grupo “Ars Nova’, dirigido por Diogo Pacheco, simulta- neamente com a projecdo de diapositivos de seus textos-partitura, num espetaculo em que a musica de Webern também comparecia. Em ensaio 118 Mas voltemos aos cadernos saussurianos. Neles, informa Starobinski, os textos propriamente expositivos so raros, avultando em contraparte os exercicios de decifra- 40 paragramatica de Homero, Virgilio, Lucrécio, Séneca, Horacio, Ovidio, Plauto etc. Estimulado pelos resultados de sua andlise, e consi- derando incontestaveis os fendmenos observados em seu valor geral, o mestre se interroga sobre as origens do pro- cesso anagramatico. Tratar-se-ia de uma tradi¢ao “oculta” ou “reservada”? Saussure nao encontrou testemunhos que a confirmassem nos escritos antigos. Todavia, conclui em modo hipotético: 1, Nao se saberia jamais medir a forga de uma tradi- G40 desse género. Muitos poetas franceses do séc. XIX nio teriam escrito na tradicdo prescrita por Malherbe se se tivessem sentido livres para tanto. Virgilio, encontrando os anagramas em Homero, nao deixaria de procurar, neste ponto, emular o rapsodo grego. 2. A dificuldade poética pode servir de instigacao a composi¢ao (coma no caso da rima). Admitindo-se que o método habitual e fundamental da poesia consistisse na decomposic¢ao prévia da palavra-tema, entao a dificuldade do anagrama serviria também ao poeta, que se inspiraria nas silabas dessa palavra para as ideias a emitir ou as expres- ses a eleger. Mas o problema continua a preocupé-lo. Os Paragramas nao seriam meros produtos do acaso? Para 0 observador predisposto a discernir estruturas significan- tes através da reunido de fonemas dispersos, a linguagem, por sua dinamica interna, nao as engendraria quase que automaticamente? Starobinski menciona a seguinte obser- vagao de Saussure como representativa do dilema que enfrentava o pensamento do mestre em seu ultimo estagio: sobre Un Coup de dés, incluido em La Révolution du langage poétique, Paris: Seuil, 1974, Julia Kristeva reconhece a relacao entre a “ritmica fénica” da linguagem mallarmaica e a “melodia de timbres” weberniana, constatagao que a poesia concreta vem fazendo na teoria e na pratica do poema desde os primeiros anos da década de 1950. 119 “A materialidade do fato pode ser devida ao acaso? Isto é, nao seriam as leis do hipograma de tal modo amplas que delas infalivelmente resultaria que se encontrasse cada nome proprio, sem que se tivesse raz4o para espanto, na latitude dada?...” Tal como Mallarmé, perseguido por Le Hasard e ten- tando aboli-lo através (“talvez”) de uma “constelacado” (compte total en formation), o mestre de Genebra (Le Maitre / hors danciens calculs) luta com 0 acaso, procu- rando aprisiona-lo na figura movel (dispersion volatile) de seus paragramas, disciplina-lo na rede combinatéria de suas “harmonias fénicas”. Em ambos os exemplos, 0 acaso, se nao é eliminado, é incorporado irremissivelmente a reflexao de seus antagonistas (si cétait le Nombre / ce serait le Hasard, adverte Mallarmé). Ainda como o genial poeta do Coup de dés, que indaga de Valéry, mostrando-lhe seu poema: - “Nao vos parece um ato de loucura?”, também Saussure escreve a Meillet, na duvida de estar sendo vitima de uma ilusdo subjetiva. Meillet, em sua carta-resposta (repro- duzida por Starobinski), invoca o exemplo de Bach, para justificar aquilo que, aos olhos de terceiros, poderia afigu- rar-se uma idiossincrasia infundada e tola: “Vé-se bem ai (reporta-se a uma tese universitaria recém-aparecida sobre a Estética de Bach) como preocupagées tao pueris na apa- réncia como a do anagrama obsediam Sebastian Bach e, nao o impedindo de escrever musica fortemente expressiva, antes o guiam no trabalho da forma expressiva.”** f 11 Os estudiosos vacilam sobre as relagdes de Meillet para com seu mestre Saussure. Georges Mounin, Saussure ou le structuraliste sons le savoir, Paris: Seghers, 1968, escreve: “Um dos elementos capitais da soli- dao de Saussure é a incompreensao (profunda) de Meillet.” Tullio de Mauro, em suas notas & edi¢do italiana do Corso di linguistica generale, Bari: Laterza, 1968, comenta nos seguintes termos a correspondéncia tro- cada entre mestre e discipulo sobre os anagramas: “Das cartas de Saussure se extrai que o discipulo parisiense hesita em responder francamente, e deve ter tido uma opiniao negativa sobre toda a pesquisa.” Jakobson, com bons argumentos, procura demonstrar o contrario em seu ensaio de 1971, “La Premiere lettre de Ferdinand de Saussure...”, op. cit. 120 Starobinski termina sua primeira apresentacdo dos tra- balhos saussurianos com uma suspensio de julgamento. Para Saussure, a poesia classica seria uma arte combinaté- ria; mas toda linguagem é combinacao. O campo esta assim livre para os decifradores, sejam cabalistas ou foneticistas. E se nao houver cifra a decifrar (um “fundo latente”, uma “linguagem secreta sob a linguagem”)? Restarao - conclui Starobinski — 0 “apelo do segredo’, a “expectativa da desco- berta’, os “passos perdidos no labirinto da exegese...” O fato, porém, é que, embora localizada na arte poética classica, a teoria genial de Saussure sobre os paragramas - 0 seu “lance de dados’ final - se revela um instrumento ines- _timdvel para a avaliacdo da esséncia da poesia. No para- grama (que é, como diz Lepschy, uma espécie de “parafrase espacializada’ da palavra-tema) realiza-se, em ultima ins- tancia - e nao é decisivo saber aqui se ha por tras da figura a operac¢ao de um ritual poético imemorial*? -,a fusio de som e sentido caracteristica da “func4o poética” da lingua- gem, e que Jakobson, autonomamente, pesquisou desde os seus primeiros trabalhos. No simultaneismo da leitura para- gramatica se espelha aquela projecdo do paradigma sobre o sintagma que, segundo Jakobson, distinguiria a poesia. De fato, o paragrama tem a natureza de um paradigma fonico, em que a palavra-tema funciona como centro da constela- " Gao associativa e as variantes combinatorias dos fonemas desta palavra-nucleo fazem as vezes dos termos coordena- dos que para tal centro convergem (paradigma, na definigao tradicional, significa modelo, tabua de flexdes de uma pala- vra dada como modelo de uma série, de uma declinagao). A paronomédsia (jogo de palavras, trocadilho), figura-rainha da poesia na concepcao de Jakobson, nao é senao uma outra 12 Tratar-se-ia, em todo caso, de um fenémeno de “configuracao subli- minar”’, como os que estuda Jakobson na poesia popular eslava. Cf. “Con- figuracdo Verbal Subtiminar em Poesia’, em Linguistica. Poética. Cinema, estudo colocado significativamente sob uma epigrafe extraida dos manus- critos de Saussure: “Que le critique d'une part, et que le versificateur autre part, le veuille ou non” 121 maneira, mais ampla, de ver o fendmeno do paragrama saussuriano*s. Por forca dela, a semelhanga fonoldgica é sentida como um parentesco semantico, como por forga da anafonia (paragrama) o nome-tema reiteradamente se dese- nha no horizonte significativo do poema. Quando Poe, na célebre andlise jakobsoniana, faz 0 seu corvo (rave n, fone- ticamente réiven) pronunciar seu proprio nome as avessas (never) - R.V.N./ N.V.R. -, estd anagramatizando uma pala-” " vra-tema, assim como Virgilio, na decodagem saussuriana, faz aflorar os fonemas de Priamides nos versos da Eneida “que déscrevem 2 aparicao em 10, a Eneias, de Heitor,” ‘filho de Priamo (Canto 11, v, 268 e seguintes: “Tempus erat _ “quo prima quies mortalibus aegris / Incipit, et dono divam gratissima serpit” etc.). Desta forma, as reflexdes de Saussure sobre 0 para- grama, extrapolando da pura investigacao fonoldgica, tocam o cerne mesmo da poesia, e 0 que é mais significa- tivo, sem embargo de se nutrirem na poesia classica, pro- jetam-se em cheio na atualidade, como que a demonstrar a continuidade da invencao poética, a coexisténcia sincré- nica de passado de cultura e presente de criagao. Staro- binski, embora ressalte que nas andlises saussurianas nao se cogita da poesia moderna, nao se furta a entrever um tal alcance prospectivo, ao observar que 0 método de composi- 40 de Raymond Roussel (este pioneiro da écriture francesa de hoje) se deixaria estudar pelos critérios paragramaticos, e ao mencionar nesta conexio o livro de Michel Foucault (1963) sobre o autor de Impressions d'Afrique. E nao é de 13 Cf. Aspectos Linguisticos da Tradugao, Linguistica e Comunicagao: “Em poesia, as equagdes verbais sao elevadas a categoria de principio constitutivo do texto [...] A semelhanga fonoldgica é sentida como um parentesco semintico. O trocadilho, ou, para empregar um termo mais erudito e talvez mais preciso, a paronomdsia, reina na arte pottica.” Evi- dentemente, 0 conceito de paronomdsia, em Jakobson, é lato e operacional (como, de resto, os de metdfora e metonimia), desbordando das palavras “parénimas” dos compéndios de retérica, para colher “todos os consti- tuintes do codigo verbal”, confrontados segundo os principios estudados na “poesia da gramatica” jakobsoniana, 122 surpreender que Julia Kristeva, do grupo da revista Tel Quel, tenha retomado as derradeiras especulagées saussurianas como diretriz para um importante e ambicioso trabalho de investigagdo semioldgica da producao textual (“Pour une sémiologie des paragrammes”)'4. Eis como Kristeva estabe- lece, a partir de Saussure, um conjunto de principios que poderia levar a revisao do conceito geral de texto literario: . A linguagem poética “da uma segunda maneira de ser, facticia, acrescida por assim dizer a original da palavra’. p s . Existe uma correspondéncia dos elementos entre si, por “acoplamento” e por rima. . As leis poéticas bindrias vao até a transgressao das leis da gramatica.'s 9 oe |. Os elementos da palavra-tema (até mesmo uma letra) “se estendem por todo o comprimento do texto ou 14 Tel Quel, n. 29, 1967. Tradugao brasileira em Julia Kristeva, Intro- ducéo a Semandlise, Sao Paulo: Perspectiva, 1974. Reproduzo aqui o que escrevi em nota a meu ensaio “Umbral Para Max Bense’, introdutério 4 Pequena Estética, Sao Paulo: Perspectiva, 1971, do fildsofo de Stuttgart: Kristeva intenta em “Por uma Semiologia dos Paragramas” uma inter- penetragao frutuosa entre a semiologia e os esquemas formais ldgico- -matemiaticos, cuja transposicao possa fornecer o modelo teérico para a explicagao dos sistemas significantes na lingua natural, considerando qualquer outra aplicacdo a posteriori desses esquemas como uma tec- nizagao secundaria, embora nao destituida de interesse; Umberto Eco encara com reservas essa “formalizacdo exasperada do discurso poético” (A Estrutura Ausente, Sao Paulo: Perspectiva, 1971); Jacques Roubad e Pierre Lusson a contestam em nivel de propriedade matematica (Action Poétique, n. 41-42, 1969); nao obstante, o estudo de Kristeva (mesmo a parte de seu aparato logico-matematico, que pode ser visto no caso exatamente como uma “técnica secundaria’, util, de diagramatizacao ilustrativa), parece-me rico de observagées criativas e ousadamente ins- tigadoras, gracas sobretudo ao fascinante desenvolvimento que da aos postulados “anagramaticos” do ultimo Saussure. 15 Kristeva, ao que parece, extraiu este principio da seguinte observa- do de Saussure: “creio poder provar, por uma grande série de exemplos, Jue as inexatidées de forma, algumas vezes tomadas por arcaismos, na poesia saturnina epigrafica, sdo deliberadas, e estéd'em relacgio com as” leis fénicas dessa poesia” 123 entao sao acumulados num pequeno espa¢o, como o de uma palavra ou duas”. Donde, a modo de corolario, as trés teses de Kristeva: . A linguagem poética é a unica infinitude do cédigo. 2. O texto literario é um duplo: escritura-leitura. 3. O texto literario é uma rede de conexées. Na ultima tese esta contida a contestacao da “linearidade’, atra- vés de um “modelo tabular’, sistema de conexées mul- tiplas, rede polivalente, “grafismo dinamico e espacial designando a plurideterminagao do sentido”. Saussure se transforma assim, por seu extremo e mais ousado “lance de dados’, em tedrico da vanguarda, Sua obra, como a de Mallarmé, cujo exato perfil heuristico sé o futuro poderia definir, termina também em falésia’*. 16 Ebem verdade que, de um Angulo diacrénico, as pesquisas sobre os “anagramas” (desenvolvidas entre 1906-1909) séo mais ou menos cole- taneas das prelecdes que redundaram no Cours (ministradas até 1911). Para a visada sincrénica do observador da atualidade, todavia, esses exer- cicios de decifrag4o anagramatica, interrompidos por um interrogar sem resposta e excluidos do conhecimento dos leitores do Curso péstumo (1. ed., 1916) - Jakobson fala mesmo numa “dissimulagado” dos manuscritos por “meio século”... - € que revelam a face oculta do mestre, carregada de audazes premonicées, que sé os vindouros saberiam recolher. (Nao esquecer que um especialista como R. Godel, ainda em 1960, referia-se aos cadernos de anagramas como “Tonga e estéril investigacao”...) 124

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