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1. A adolescéncia em Samoa Marcaret Mrap Introdugao Durante os diltimos cem anos, pais e professores deixaram de encarar a infincia e a adolescéncia como ponto pacifico. Em ‘vez de buscar encaixar a crianga num molde educacional infle- xivel, tentaram adaptar a educaco as necessidades dela. Duas forcas os impeliram a essa nova tarefa: o desenvolvimento da ciéncia da psicologia: as dificuldades e os desajustamentos da juventude. A psicologia sugeriu que havia muito a ganhar com o conhecimento da maneira como as criancas se desenvolviam, dos estigios através dos quais elas passavam, do que o mundo adulto podia esperar razoavelmente do bebé de dois meses ou da crianca de dois anos. As fulminagées do piilpito, os la- mentos ruidosos do filésofo social conservador, os registros dos tribunais da juventude e das agéncias de assisténcia social, tudo isso sugeria que alguma coisa deveria ser feita com 0 periodo que a ciéncia havia rotulado de adolescéncia. O espe- taculo de uma geracdo mais jovem que divergia cada vez mais amplamente dos padres e ideais do passado, geracio deixada a deriva sem a ancoragem de padrdes domésticos respeitados ou valores religiosos coletivos, aterrorizava o reacionirio cau- teloso, atrafa o propagandista radical a empreender cruzadas arias em meio a juventude indefesa e preocupava os menos esclarecidos dentre nés. 8 Cultura e personalidade Na civilizagio americana, com suas muitas linhagens de imigrantes, suas dezenas de padres conflitantes de conduta, suas centenas de seitas r cambiantes, esse status intran era mais evidente que na modada da Europa. As condig6es americanas desafiaram 0 josas, suas condigbes econdmicas lo, perturbado, da juventude ago mais antiga e mais aco- aceitaveis para os problemas da crianca em desenvolvimento. Como hoje na Alemanha do pés-guerra, onde as geracdes mais jovens tém ajustamentos ainda mais dificeis a fazer que nossas criangas, um grande volume de teorizacbes sobre a adolescéncia inunda as livrarias; assim, nos Estados Unidos, © psicélogo tentou explicar a inquietacio da juventude. O resultado foram obras como a de Stanley Hall sobre “Adoles- cen , que atribuiu 20 periodo pelo qual as criancas estavam passando a causa de seu conflito e sofrimento. A adolescéncia foi caracterizada como a fase em que 0 idealismo florescia e a rebelido contra a autoridade ganhava forca, um espaco de tempo durante o qual dificuldades e conflitos eram absoluta- mente inevitaveis. psicdlogo infantil cuidadoso, que baseava suas conclusdes em experimentos, no endossou essas teorias. Ble disse: Nio temos dados. Sabemos pouco sobre os primeiros meses de vida de uma crianga. Estamos apenas aprendendo quando os olhos de um bebé seguirdo a luz pela primeira vez. Como po- demos dar respostas defintivas para quest6es relativas ao modo como uma personalidade desenvolvida, sobre a qual nada sabe- mos, reagiré & religiao? A-adolescéncia em Samoa » Mas as adverténcias negativas da ciéncia nunca sio bem aceitas. Se 0 experimentalista nfo se comprometia, o fildsofo, © pregador ¢ 0 pedagogo faziam um esforgo maior para dar ‘uma resposta mais facil. Eles observaram 0 comportamento dos adolescentes em nossa sociedade, registraram os sintomas onipresentes ¢ Gbvios de desassossego e anunciaram esses as- pectos como caracteristicos do periodo. Maes eram avisadas de que “filhas na adolescéncia” apresentam problemas especiais. Esse, diziam os tedricos, é um periodo dificil. As mudangas fisicas que se processam no corpo de seus meninos e meninas tém suas implicagbes psicolégicas especificas. E impossivel es- capar tanto de uns quanto de outros; 4 medida que o corpo de sua filha muda, deixando de ser infantil para se converter num corpo de mulher, seu espirito também mudaré de manei ine- vitavel — e tempestuosa. Os tebricos olhavam a sua volta para aco € repetiam com grande os adolescentes em nossa ¢i firmeza: “Sim, vempestuosa. Semelhante concepco, embora nio sancionada pelo expe- sta cauteloso, ganhou ampla aceitacio, influenciou ica educacional, paralisow nossos esforcos parentais. Assim como deve se preparar para o choro do bebé quando nasce seu primeiro dente, a mae também tem de se fortalecer € suportar com toda a equanimidade que Ihe for possivel as manifestacdes desagradaveis e turbulentas da “idade dific Se nao havia nenhuma censura a fazer & crianca, tampouco havia algum programa, exceto tolerancia, a recomendar a0 professor. O tedtico continuava a observar o comportamento dos adolescentes americanos, e a cada ano proporcionava no- ‘vas justificacdes para sua hipétese, a medida que as dificulda- des da juventude eram ilustradas e documentadas nos registros das escolas e dos tribunais juvenis. 20 Cultura e personatidade Nesse meio-tempo, porém, outra maneira de estudar desenvolvimento humano ganhava terreno, a abordagem do antropélogo, do estudioso do homem em todos os seus mais diversos contextos sociais. O antropélogo, & medida que refle- tia sobre seu crescente corpus de material referente aos costu- mes de povos primitivos, comecava a compreender o enorme papel desempenhado na vida de um individuo pelo ambiente social em que cada um nasce e é criado. Um a um, aspectos do comportamento que haviamos nos acostumado a considerar complementos invaridveis de nossa humanidade revelaram-se meros tesultados da civilizacdo, presentes nos habitantes de um pafs, ausentes em outro, ¢ isso sem mudanca de raca. Ele aprendeu que nem raca nem humanidade comum podem ser consideradas responsaveis por muitas das formas que mesmo emogGes humanas tao bisicas quanto amor, medo e raiva as- sumem sob diferentes condigbes sociais. Assim, 0 antropélogo, refletindo a partir de suas observa- ‘gOes acerca do comportamento de seres humanos adultos em izagbes, chega a muitas das mesmas conclusbes que o behaviorista atinge em seu trabalho com bebés humanos que ainda nao tém nenhuma civilizagdo para moldar sua maleével humanidade. Com essa atitude diante da natureza humana, 0 antropé- Jogo ouviu 0 comentario corrente sobre a adolescéncia. Vi atitudes que Ihe pareciam depender do ambiente social ~ como rebelio contra a autoridade, perplexidades filoséficas, florescimento do idealismo, conflito e luta —serem atribuidas auma fase de desenvolvimento fisico. E, com base em seu co- nhecimento do determinismo da cultura, da plasticidade dos seres humanos, ele duvidou. Bram essas dificuldades decor- A adolescéncia em Samoa ° 2 rentes do fato de ser adolescente ou do fato de ser adolescente nos Estados Unidos? Para o bidlogo que duvida de uma hipétese antiga ou deseja pér a prova uma nova proposicdo, ha o laborat6rio biolégico. Ali, em condigdes sobre as quais pode exercer 0 mais rigido controle, ele consegue variar a luz, o ar, o alimento que suas plantas ou animais recebem, desde o momento do nascimento € durante toda a sua existéncia, Mantendo todas as condicées constantes, exceto uma, ele pode fazer medic6es precisas do cefeito desta Ultima. Esse 6 o método ideal da ciéncia, o método do experimento controlado, por meio do qual todas as hipé- teses podem ser submetidas a um teste estritamente objetivo. Mesmo 0 estudioso da psicologia infantil so pode reproduzir parcialmente essas condicties ideais de laboratdrio. Ele nfo tem como controlar o ambiente pré-natal da crianga que submetera mais tarde a medigdes objetivas. No entanto, pode controlar 0 ambiente inicial da crianca, os primeiros dias de sua existéncia, e decidir que sons, vis6es, cheiros e gostos devem afeté-la Para o estudioso da adolescéncia, contudo, ndo existe tal simplicidade de condigbes de trabalho. O que desejamos tes- tar € nada menos que o efeito da civilizacéo sobre um ser humano em desenvolvimento na puberdade. Para pé-lo a prova da maneira mais rigorosa, terfamos de construir varios tipos de civili criangas adolescentes a esses ambientes diversos. Farfamos do diferentes e submeter grande ntimero de ra das influéncias cujos efeitos desejassemos estudar. Se quiséssemos estudar a influéncia do tamanho da fa lizagSes semelhantes em construiriamos uma série de ci todos os aspectos, exceto na organizacio da familia. Se en- istinco no comportamento de nossos contréssemos depois 2 Cultura e personalidade adolescentes, poderiamos dizer com seguranca que o tama- nho da familia havia causado a diferenca; que, por exemplo, o filho nico tinha uma adolescéncia mais conturbada que a crianga pertencente a uma familia numerosa. E assim pode- rlamos proceder através de uma ditzia de situagdes possiveis: conhecimento sexual precoce ou tardio; experiéncia sexual precoce ou tardia; pressdo para o desenvolvimento precoce ou desestimulo ao desenvolvimento precoce; segregacio dos sexos ou coeducacdo desde a tenra infancia; divisio do tra- balho entre os sexos ou tarefas comuns para ambos; pressio para fazer escolhas religiosas cedo ou auséncia de tal pres- sdo. Fariamos um fator variar, mantendo os demais razoa- velmente constantes, ¢ analisarfamos que aspectos de nossa civilizacdo seriam responséveis pelas dificuldades de nossas criangas na adolescéncia, caso houvesse algum. Por infortinio, esses métodos ideais de experimentacio nos so negados quando nosso material consiste em seres humanos € em todo 0 tecido de uma ordem social. A colénia-teste de Herédoto, em que bebés deveriam ser isolados, ¢ os resulta- dos registrados, ndo é uma abordagem possivel. Tampouco & vidvel o método de selecionar a partir de nossa propria civi- lizacdo grupos de criancas que correspondam a um requisito ou outro. Esse método consistiria em selecionar quinhentos adolescentes de familias pequenas ¢ quinhentos de familias numerosas ¢ tentar descobrir quais haviam experimentado as maiores dificuldades de ajustamento na adolescéncia. Mas nfo poderfamos saber quais eram as outras influéncias exercidas sobre essas criancas, que efeito seu conhecimento sobre sexo ou o ambiente de sua vizinhanca poderia ter tido sobre seu desenvolvimento adolescente. A.adolescéncia em Samoa 3 Que método, entdo, esté aberto para nés, que desejamos realizar um experimento humano, mas no temos poder, seja para construir as condicées experimentais, seja para encontrar exemplos controlados dessas condigées espalhados aqui e ali por toda a nossa propria ci antropélogo: ir para uma ci tudo de seres humanos sob condiges culturais diferentes em izacao? O tinico método é o do ilizacao diferente e fazer um es- alguma outra parte do mundo. Para esses estudos o antropé- logo escolhe povos muito simples, primitivos, cuja sociedade jamais alcancou a complexidade da nossa. Nessa escolha de povos primitivos como esquimés, australianos, ilhéus dos Mares do Sul ou indios pueblos, o antropélogo & guiado pelo conhecimento de que é mais ficil evar a cabo a andlise de uma civilizago mais simples. Em ci civilizages mais elevadas do Oriente, anos de pesquisa so izagdes complicadas como as da Europa, ou as necessérios antes que o estudioso comece a compreender as forcas em aco dentro delas. Um estudo da familia francesa, apenas, envolveria um exame preliminar da historia francesa, ou do direito francés, das atitudes cat6licas e protestantes em relaco 20 sexo e as relagbes pessoais. Um povo primitive sem Iingua escrita apresenta problema bem menos intricado, e 0 estudioso treinado pode dominar a estrutura fundamental de uma sociedade primitiva em poucos meses. Além disso, no escolhemos uma comunidade camponesa simples na Europa ou um dos grupos isolados de montanhe- ses pobres brancos estabelecidos no Sul dos Estados Unidos, Porque os modos de vida desses povos, embora simples, per tencem essencialmente a tradi¢ao historica em que se inserem as partes complexas da civilizacao europeia ou americana. Em 24 Cultura ¢ personalidade vez disso, escolhemos grupos primitivos que tém milhares de anos de desenvolvimento histérico em linhas completamente diversas das nossas, cuja lingua no possui nossas categorias indo-europeias, cuj religiosas so de natureza diversa, cuja organizacdo social nao s6 é mais simples como muito di- ferente da nossa. A partir desses contrastes, vividos o bastante para surpreender e esclarecer aqueles acostumados ao nosso proprio ambiente de vida e simples 0 bastante para serem logo compreendido: 0 efeito de uma ci é possivel aprender muitas coisas sobre izacdo sobre os individuos que nela vivem. Assim, para investigar o problema particular, nio escoll para Alemanha ou para a Riissia, mas para Samoa, uma ilha dos Mares do Sul a cerca de 30° do equador, habitada por um inésio moreno. Como eu era mulher e podia esperar obter maior intimidade trabalhando com meninas, e no com meninos, e porque, em razio de uma escassez de mulheres exnélogas, nosso conhecimento sobre meninas primitivas é muito mais superficial que aquele sobre meninos, optei foca lizar a menina adolescente em Samoa Ao optar por isso, porém, fiz algo muito diferente do que te- ria feito se me concentrasse num estudo da menina adolescente em Kokomo, em Indiana. Neste tiltimo caso, eu teria ido direto ao ponto crucial do problema; nao teria de me deter muito sobre a lingua de Indiana, as maneiras & mesa ou os hébitos de sono de meus sujeitos, nem fazer um estudo extensive de como eles aprendiam a se vestir, a usar o telefone, ou sobre © significado do conceito de consciéncia em Kokomo. Todas essas coisas sio o tecido geral da vida americana, do meu co- nhecimento como investigadora, do conhecimento de vocés como leitores. A adolescéncia em Samoa cy Com esse novo experimento sobre a menina adolescente primitiva, porém, a questo era inteiramente oposta. Ela fa- Java uma lingua cujos sons me eram estranhos, em que subs- tantivos se tornavam verbos e vice-versa, como num passe de magica. Todos os seus hébitos de vida eram diferentes Ela se sentava de pernas cruzadas no chao, e sentar-se numa cadeira a deixava rigida e infeliz. Comia com os dedos, de ‘um prato de fibra trancada; dormia no chao, Sua casa era um mero cfrculo de pilastras, coberta com um cone de colmo, atapetada com fragmentos de coral desgastados pela agua. ‘Todo o seu ambiente material era diferente. Coqueiros, pés de fruta-pio e mangueiras balancavam sobre sua aldeia. A menina nunca tinha visto um cavalo, nao conhecia nenhum animal, exceto 0 porco, 0 cachorto € 0 rato, Sua comida era inhame, fruta-pio, bananas, peixe, pombos selvagens, porcos cozidos e caranguejos. Do mesmo modo como era necessé- tio compreender esse ambiente fisico, essa rotina de vida to diferente da nossa, conhecer seu ambiente social em suas atitudes em relagio a criangas, em relagao a sexo e & perso- nalidade apresentava forte contraste com o ambiente da me- nina americana, Concentrei-me nas meninas da comunidade. Passava a maior parte do tempo com elas. Estudei com a méxima atencio as familias em que as adolescentes viviam. Fiquei mais tempo nas brincadeiras infantis que nos conselhos dos ancifos. Falando sua lingua, comendo sua comida, sentando-me descalga e de pernas cruzadas no piso forrado de seixos, fiz 0 possivel para minimizar as diferencas entre nds ¢ para aprender a conhecer € compreender todas as meni pequena ilha de Ta't, no arquipélago Manu’ ss de trés aldeias na costa na 26 Cultura e personalidade Durante os nove meses que passei em Samoa, reuni mui tos fatos detalhados sobre essas meninas, 0 tamanho de suas familias, a posicdo e fortuna de seus pais, o ntimero de seus irmios e irmis, a quantidade de experiéncias sexuais que ha- ‘viam tido. ‘Todos esses fatos rotineiros so resumidos numa tabela no apéndice. Eles sio apenas o esqueleto mais simples, mal chegando a constituir matéria-prima para um estudo de situagbes familiares e relagdes sexuais, padres de amizade, lealdade, responsabilidade pessoal, todos esses impalpé centros de turbuléncia na vida de nossas adolescentes. Como essas partes menos mensuraveis de suas vidas eram to simi- lares, como a vida de uma menina era téo parecida com a de outra, numa cultura ndo complexa e uniforme como Samoa, sinto-me justificada ao generalizar, embora tenha estudado apenas cinquenta meninas em trés pequenas aldeias vizinhas. Nos capitulos que se seguem, descrevi a vida dessas meni: nas, de suas irmazinhas que logo sero adolescentes, de seus irméos, com quem um rigoroso tabu as proibe de conversar, de suas irmis mais velhas, que deixaram a puberdade para tras, dos ancifos de suas familias, de suas mies e pais, cujas atitudes perante a vida determinam as atitudes dos filhos. Por meio dessa descricio tentei responder & pergunta que me en- viou a Samoa: sio as perturbagdes que atormentam nossos adolescentes consequéncia da natureza da propria adolescén- cia ou da civilizacao? Sob condig6es diferentes, a adolescéncia apresenta-se sob outra imagem? ‘Além disso, em razao da natureza do tema, em decorréncia do carter desconhecido dessa vida simples numa ilhota do Pa- cifico, tive de fazer uma descri¢go de toda a vida social em Sa- ‘moa, selecionando os detalhes sempre no intuito de iluminar A.adolescéncia em Samoa 7 co problema da adolescéncia. Questdes de organizacio politica, que nao interessam a menina nem a influenciam, nfo foram '. Minticias do sistema de parentesco ou de cultos a0s ancestrais, genealogias € mitologias, de interesse apenas para o especialista, serao publicadas em outro lugar. Mas tentei apresentar ao leitor a menina samoana em seu contexto social, descrever o curso de sua vida do nascimento 4 morte, os pro- blemas que ela terd de resolver, os valores que a guiaro em suas solugées, as dores € os prazeres de seu destino humano Jangado numa itha dos Mares do Sul. Essa descricSo busca fazer mais que iluminar esse problema particular. Ela deveria também dar ao leitor uma ideia sobre ‘uma civilizago diferente ¢ contrastante, outra maneira de vi- ver, que outros membros da raga humana consideraram satisfa- tGria e digna. Sabemos que nossas percepeGes mais sutis, nossos valores mais elevados, baseiam-se todos em contraste; que luz sem escuridao ou beleza sem feiura perderiam as qualidades que agora nos parecem possuir. De maneira semelhante, se quisermos apreciar nossa prépria civilizacio, esse elaborado padirdo de vida que fizemos para n6s mesmos como povo e que tanto nos esforcamos para transmitir a nossos filhos, devemos confrontar nossa civilizacdo com outras muito diversas. Quem viaja pela Europa volta aos Estados Unidos sensivel as nuances em suas proprias maneiras ¢ em filosofias que até entio Ihe ha- viam pasado despercebidas; no entanto, Europa e Estados Uni- dos so partes de uma s6 civilizacao. E com variagdes dentro de um grande padrdo que o estudioso da Buropa hoje ou 0 es- tudioso de nossa propria historia aguca seu senso de apreciacio. Contudo, se saimos do caudal da cultura indo-europeia, a apreciagdo a que podemos submeter nossa propria ci 28 Cultura e personalidade melhora ainda mais. Aqui, nas partes remotas do mundo, sob condigdes histéricas muito diferentes daquelas que fizeram Grécia e Roma florescer e declinar, grupos de seres humanos desenvolveram padrdes de vida tio diferentes dos nossos que no podemos arriscar a conjectura de que iriam chegar algum dia as nossas proprias solucdes. Cada povo primitivo escolheu um conjunto de talentos humanos, um conjunto de valores humanos, e moldou para si mesmo uma arte, uma organizacio social, uma religiZo que so sua contribuicio singular para a histéria do espirito humano. Samoa é apenas um desses padres diversos e graciosos, mas, assim como 0 viajante que um dia se afastou de casa € mais sébio que o homem que nunca foi além da soleira da répria porta, o conhecimento de outra cultura deveria agucar nossa capacidade de esquadrinhar com mais sobriedade, de apreciar mais amorosamente, a nossa prépria cultura. Em razdo do problema particular que nos propusemos a responder, essa histéria de outro modo de vida interessa-se principalmente pela educacio, pelo processo mediante o qual © bebé, que chega desprovido de cultura cena humana, torna- se um consumado membro adulto de sua sociedade. A luz ais forte inc samoana, em seu sentido mais amplo, difere da nossa. A partir desse contraste seremos capazes de passar, tendo nos imbuido de nova e vivida autoconsciéncia e autocritica, ajulgar de nova maneira e talvez moldar de forma diversa a educaco que da- mos as nossas criancas. ré sobre as maneiras pelas quais a educacio Aadoleseencia em Samoa 29 Nossos problemas educacionais & luz dos contrastes samoanos* Ao longo de muitos capitulos, acompanhamos a vida de meni- nas samoanas, virnos como se transformam de bebés em amas, aprendem a acender o forno ¢ a tecer belas esteiras, abando- nama vida do grupo de criangas para se tornar membros mais ativos do lar, adiam o casamento pelo maior ntimero possivel de anos pontilhados por relacées sexuais casuais, por fim se casam e comecam a criar filhos que repetirdo o mesmo ciclo. Até onde nosso material nos permitiu, realizou-se um experi- mento para descobrir como era processo de desenvolvimento numa sociedade muito diferente da nossa. Como a extensio da vida humana e a complexidade de nossa sociedade no nos permitiram fazer nosso experimento aqui, escother um grupo de bebés do sexo feminino e levé-los até a maturidade sob con- digdes criadas para o experimento, foi necessério ir para outro pais, onde a historia armou o palco para nés. Alli encontramos criancas do sexo feminino que passavam pelo mesmo processo de desenvolvimento fisico por que pas- sam nossas meninas, ganhavam seus primeiros dentes e per- diam-nos, ganhavam a segunda denticio, ficavam altas e de- sajeitadas, chegavam & puberdade com a primeira menstruacio, alcangavam pouco a pouco a maturidade fisica e se viam pron- tas para produzir a geracdo seguinte. Foi possivel dizer: aqui esto as condicées adequadas para um experimento; a menina em desenvolvimento é um fator constante nos Estados Unidos * Capitulo 12 de Coming of Ages Samoa. Fy Cultura e personalidade em Samoa; a civilizagio dos Estados Unidos e a civi de Samoa so diferentes. No curso do desenvolvimento ~o processo de crescimento pelo qual a menina se torna uma mulher adulta ~, as stibitas e evidentes mudancas fisicas que tém lugar na puberdade slo acompanhadas por um desenvolvimento espasmédico, emo- cionalmente carregado, e também pelo despertar de um senti- mento religioso, um florescer de idealismo, um grande desejo de autoafirmagio contra a autoridade— ou nfo? A adolescéncia um periodo de sofrimento mental e emocional para a menina que se desenvolve, to inevitavelmente quanto a denti¢go é um perfodo de tormento para o bebezinho? Podemos pensar na adolescéncia como uma etapa na histéria de vida de toda me- nina, que carrega consigo seus sintomas de conffito e tensio, to seguramente quanto implica uma mudanga em seu corpo? Seguindo as meninas samoanas através de todos os aspectos de suas vidas, tentamos responder a essa questo e descobri- mos em toda parte que tinhamos de respondé-la com uma negativa. A menina adolescente em Samoa diferia de sua irma que ainda no chegara a puberdade em um aspecto principal: 1a menina mais velha estavam presentes certas mudancas fist ‘cas ausentes na mais nova. Nao havia nenhuma outra grande diferenca para distinguir o grupo que atravessava a adoles- céncia daquele que entraria nessa fase dentro de dois anos, ou daquele que nela ingressara dois anos antes. Se uma menina jé pibere for menor, ao passo que sua prima é alta e capaz de realizar trabalho mais pesado, haverd uma diferenca entre elas em razio da dotacio fisica, que serd muito maior que aquela atribuida a puberdade. A menina alta e robusta sers isolada de suas companheiras, obrigada a A adolescéncia em Samoa a fazer tarefas mais longas, mais adultas, passar4 a se mostrar reservada, por forga de uma mudanga de indumentéria, a0 asso que a prima, que demora a se desenvolver fisicamente, continuaré a ser tratada como uma crianga e s6 terd de resol- ver os problemas ligeiramente mais reduzidos da infincia. 0 preceito dos educadores daqui, que recomendariam téticas especiais no tratamento de meninas adolescentes traduzido ‘em termos samoanos, seria: meninas altas so diferentes de ‘meninas baixas da mesma idade; devemos adotar um método diferente de educé-las. Mas depois que respondemos & pergunta que nos impuse- mos ainda nao chegamos ao fim do problema. Outra ques- do se apresenta. Se for provado que a adolescéncia no & ificuldade na vida de uma menina ~e ele estaré provado se pudermos encon- necessariamente um periodo de espec' trar qualquer sociedade em que isso ocorra-, 0 que explica a presenca do transtorno ¢ da tensio entre as adolescentes americanas? Em primeiro lugar, podemos dizer muito sim- plesmente que deve haver alguma coisa nas duas civilizagoes para explicar a diferenga. Se o mesmo processo assume uma forma diferente em dois ambientes diversos, nfio podemos dar nenhuma explicagdo em termos do processo, pois ele 0 mesmo nos dois casos. Mas o ambiente social € muito diferente, & para ele que devemos nos voltar em busca de aco. O que existe em Samoa e esta ausente nos Estados Unidos, o que existe nos Estados Unidos ¢ est ausente em ‘Samoa para explicar a diferenca? Essa questo tem enormes implicagées, e qualquer tent lades de erro. No entanto, se estreitarmos nossa questo ao modo segundo a de respondé-la estaré sujeita a muitas posit 2 Cultura e personatidade © qual aspectos da vida de Samioa que afetam irremediavel- mente a vida da menina adolescente diferem das forgas que infiuenciam nossas meninas em desenvolvimento, é possivel tentar respondé-la © cenétio dessasdiferengas é amplo ¢ tem dois componen- tes importantes; um se deve a caracteristicas propriamente samoanas, 0 outro a caracteristicas que so primitivas. (© cendrio samoano que toma o desenvolvimento uma ques- to tao fa sociedade. Samoa é um lugar onde ninguém faz apostas muito alas, ninguém paga pregos muito elevados, ninguém sofre em razo de suas convicgbes nem luta até a morte por fins especifi- cos. Discérdias entre pai efilao so resolvidas com @ mudanca do filho para a casa em frente, entre um homem e sua aldeia, com a mudanga do homem para. aldeia vizinha, entre um ma- Fido e o sedutor de sua mulher, mediante algumas belas ese ras, Nem pobreza nem grandes desastres ameacam as pessoas para fazé-las apegar'se imensamente propria vida etremer de medo de vé-la interrompida. Nenhum deus implacével, iasci io simples, € a informalidade geral de toda a vel e severo em seus castigos perturba o padrao invariavel dos dias. Guerras e cai a maior causa de légrimas, afora a propria morte, éa viagem de um parente para outra lh. Ninguém se apressa na vida nem é punido com rigor por desenvolver-se devagar. Em vez talentosos, os precoces, so contidos até que os mais, tenham alcancado. Nas relagées pessoais, 0 afeto é igualmente superficial. Amor ¢ édio, citime e vinganca, sofrimento e luto so questées de semanas. Desde os primeiros meses de vida, ‘quando a crianga ¢ passada de maneira descuidada das mios de uma mulher para as de outra, aprende-se a lico de nao gostar smo extinguiram:se hé A adolescéncia em Samoa 8 demais de uma pessoa, de no alimentar grandes esperancas diante de nenhum relacionamento, Assim como sentimos que o Ocidente pune aqueles infelizes {que nasceram na civilizago ocidental com um gosto pela me- ditago e uma completa aversio pela atividade, podemos dizer ‘que Samoa é benévola com os que aprenderam a licio de no sse apegar e cruel com os poucos individuos que no a assimi- laram. Lola, Mala e a pequena Siva, irmé de Lola, eram todas meninas mais emotivas que suas companheiras. Lola e Mala, desejando afeicao de modo apaixonado e extravasando sobre a comunidade, de forma excessivamente violenta, a decep¢ao porndo a possuirem, eram ambas delinquentes, infelizes desa- justadas numa sociedade que reservava todas as recompensas, 08 que nfio levavam a derrota muito a sério e se voltavam para alguma outra meta com um sorriso nos labios. Nessa atitudle despreocupada em relacio a vida, nessa evi- tacio do conflito, de situacSes pungentes, Samoa contrasta fortemente nio s6 com os Estados Unidos, mas com a maioria lizacGes primitivas. Por mais que possamos deplorar essa atitude € pressentir que as personalidades importantes que a arte digna de nota nfo nascem numa sociedade tio rasa, devemos reconhecer que aqui esta um forte aspecto do desenvolvimento indolor da infancia para a maturidade. Pois ali, onde ninguém tem sentimentos muito fortes, o adolescente nfo ser torturado por situacdes pungentes. Nao existem es- colhas desastrosas como aquelas com que se confrontavam jo- vvens que sentiam que o servico de Deus exigia que renegassem ‘0 mundo para sempre, como na Idade Média, ou cortassem fora 0 préprio dedo como oferenda religiosa, como entre os indios das planicies. Assim, no alto de nossa lista de explica- das ci Pt (Cultura e personalidade Bes devemos colocara falta de sentimentos profuundos, que os samoanos convencionalizaram, até transformé-la na propria estrutura de todas as suas atitudes perante a vida. Em seguida vem a maneira extremamente impressionante pela qual todas as civilizacGes primitivas isoladas e muitas ci- vilizagdes modernas diferem da nossa no mimero de escolhas permitidas a cada individuo. Nossas criancas crescem para en- contrar um mundo de escolhas que ofuscam seus olhos nao acostumados. Em religido, elas podem ser catélicas, protestan- tes, cientistas cristdos, espiritualistas, agnésticas, ateias ou até ndo prestar nenhuma atencZo & religiZo. Essa é uma situaco impensével em qualquer sociedade primitiva nao expostaa influéncia estrangeira, Hé um tinico conjunto de deuses, uma pritica religiosa aceita, se um homem nio cré, seu Unico recurso 6 crer menos que seus semelhantes; ele pode zomber, mas no hé nenhuma nova fé para a qual se voltar. O povo das ilhas Manu’a dos dias atuais aproxima-se dessa condigio; todos sfo cristdos da mesma seita. Nao hé conflito em matéria de crenca, embora haja uma diferenca de prética entre os que per- tencem e os que nfo pertencem a Igreja. Observou-se que, no caso de varias das meninas em desenvolvimento, a necessidade de escolher entre essas duias priticas pode um dia produzir conflito. Mas hoje em dia a Igreja oferece muito pouco a jovens solteiros para forcar o adolescente a tomar qualquer decisto. De maneira semelhante, nossas eriancas se defrontam com meia diizia de padres de moralidade: um duplo padrao sexual para homens e mulheres, um tinico padrao para homens e mu. Iheres, grupos que defendem que 0 padrao tinico deveria sera liberdade, ao paso que outros propugnam que ele deveria ser ‘a monogamia absoluta. Casamento experimental, casamento A adolescéncia em Samoa 2 eo por compaixao, contrato de casamento ~ todas essas solucées para um impasse social so expostas as criangas em desenvol- ‘vimento, enquanto as condigGes reais em suas proprias comu- nidades € 0s filmes e revistas as informam de grande niimero de violagdes de cada cédigo, violagdes que no marcham sob nenhuma bandeira de reforma social. ‘Accrianga samoana nfo enfrenta nenhum dilema desse tipo. Sexo é uma coisa natural, agradével: a liberdade com que ele pode ser desfrutado status social. Filhas de chefes e esposas de chefes nao devem se nenhum experimento extraconjugal. Adultos respon- ,chefes de fami suntos importantes na cabeca para que Ihes sobre tempo para limitada por uma tinica consideracéo: ‘e mies de familia devem ter muitos as- aventuras amorosas fortuitas. Todos na comunidade concor- dam quanto ao tema, os tinicos dissidentes so 08 missionérios, que discordam, mas de tal forma va que seus protestos néo tém importincia, No entanto, assim que um sentimento suficiente se avolumar em relacdo & atitude missionéria ¢ seu padrao ‘europeu de comportamento sexual, a necessidade de escolha, precursora do conflito, ingressaré na sociedade samoana. Nossos jovens se defrontam com uma série de diferentes grupos que acreditam em diferentes coisas e defendem dife- rentes priticas, a cada um dos quais algum amigo ou parente em que confiam pode pertencer. Assim, o pai de uma menina pode ser presbiteriano, imperialista, vegetariano, abstémio, ter iteraria por Edmund Burke, ser adepto da .¢ao e de tarifas elevadas, acreditar que o lugar forte predileca livre sindic da mulher é em casa, que meninas deveriam usar espartilhos, niio enrolar as meias, nfo fumarnem andar de carro com rapa- zes Anoite. Mas 0 avd materno dessa mesma menina pode ser 36 Cultura e personalidade uum baixo episcopaliano, adepto de um estilo de vida luxuoso, forte defensor dos direitos dos estados da Federacdo e da dou trina Monroe, leitor de Rabelais e frequentador de espeticulos musicais e corridas de cavalo. Sua tia é agnéstica, ardorosa defensora dos direitos da mulher, uma internacionalista que deposita toda a sua confiana no esperanto, devota de Bernard Shaw dedica seu tempo livre a campanhas contra a vivissec: go. Seu irmao mais velho, a quem ela admira imensamente, acaba de passar dois anos em Oxford; ele € anglo-catélico, en tusiasta de todas as coisas medievais, escreve poesia Chesterton e pretende dedicar sua vida a procurar o segredo perdido dos vitrais da Idade Média. O irméo mais mogo de sua mie é engenheiro, materialista restrito que nunca se recupe rou da leitura que fez de Haeckel na juventude; ele despreza a arte, actedita que a ciéncia salvard o mundo, escarnece de stica, 18 tudo que foi dito e pensado antes do século XIX e arruinaa propria satide com experimentos sobre a eliminacio cientifica do sono. A mie da menina tem uma disposi¢ao de espirito quietista, é muito interessada em filosofia indiana, é pacifista, nao militante de causa alguma e, apesar da devocdo da filha por ela, no faré nenhum gesto para aliciar seu entusiasmo, B isso pode estar no préprio lar da menina. Acrescente a isso 8 grupos representados e defendidos por seus amigos, seus professores e os livros que ela lé por acaso, ¢ a lista de possiveis ardores, de lealdades sugeridas, incompativeis umas com as outras, torna-se estarrecedora. As escolhas da menina samoana sfo muito diferentes, Seu pai é membro da Igreja, ¢ assim também seu tio, Seu pai vive numa aldeia onde a pesca ¢ farta; 0 tio, numa aldeia onde hi abundancia de caranguejo-dos-coqueiros. Seu pai é bom pes: A adolescéncia em Samoa a cador ¢ em sua casa hé muito o que comer; seu tio é um porta- vor do chefe da aldeia e seus frequentes presentes de roupas de casca de arvore fornecem excelentes trajes para a danca. ‘Seu avé paterno, que mora com seu tio, tem muitos segredos sobre cura para Ihe ensinar; sua avé materna, que mora com ‘sua mie, tranga leques com muita habilidade. Os meninos na aldeia do tio sto admitidos mais cedo na Aumaga,* e as visitas que fazem & sua casa no sto muito divertidas, mas hé trés ‘meninos em sua propria aldeia de quem ela gosta muito. Sex grande dilema é morar com o pai ou com 0 tio, problema claro e direto, que no introduz nenhuma perplexidade ética, nenhuma questio de légica impessoal. Sua escolha no sera tampouco tomada como questo pessoal, como outros familia- res poderiam interpretar a lealdade de uma menina americana as ideias de determinado parente. Os samoanos terdo certeza de que ela escolheu uma residéncia em vez da outra por razdes. perfeitamente vilidas, porque a comida era melhor, porque ela tinha um amante numa das aldeias ou porque brigara com 0 amante na outra aldeia. Em todos esses casos, ela estaria fa- zendo escolhas concretas dentro de um padrio reconhecido de comportamento, Nunca Ihe foi exigido que fizesse escolhas envolvendo uma rejeicio real dos padr6es de seu grupo social, como deve fazer em nossa sociedade a filha de pais puritanos que permite caricias indiscretas. Nossas meninas em desenvol yento nfo so apenas con- frontadas por uma série de grupos que defendem padrées diferentes e mutuamente exclusivos; um problema mais des- concertante se apresenta para elas. Como nossa civilizagio é * Uma associagio de homens jovens. (N.O) 8 Cultura e personalidade tecida de tantos fios diferentes, as ideias que qualquer grupo aceita revelato numerosas contradic6es. Assim, se a menina tiver entregado sua lealdade entusiasticamente a um grupo qualquer e aceitado de boa-fé suas assercdes de que apenas eles esto certos € todas as outras filosofias de vida sio coisa do Anticristo ¢ um anétema, seus problemas ainda no estargo encerrados. Enquanto as menos reflexivas recebem seus piores golpes na descoberta de que aquilo que seu pai acha bom é con- siderado maim pelo avo, e de que coisas permitidas em casa si0 proibidas na escola, a crianga mais reflexiva tem dificuldades mais sutis a sua espera. Se ela aceitou filosoficamente 0 fato de que ha varios padrdes entre os quais escolher, talvez ainda conserve uma fé infantil na coeréncia da filosofia que escolheu. Depois da escolha imediata, que foi tdo desorientadora dificil de fazer que talvez tenha envolvido ferit seus pais ou alienar seus amigos, cla espera paz. Mas nfo contava com 0 fato de que cada uma das filosofias com que se defrontou ela propria fruto néo muito amadurecido de uma solucio de compromisso, Se ela aceita o eristianismo, fica imediatamente confusa entre os ensinamentos do Evangelho relativos a paz, © valor da vida humana e a entusiastica aceitacio da guerra por parte da Igreja. A conciliagao feita dezessete séculos atris entre a filosofia romana da guerra e da dominacio e a doutrina de paz ¢ humildade da Igreja primitiva ainda esta presente para confundir a crianca moderna. Se ela aceita as premissas filoséficas sobre as quais a Declaracao de Independéncia dos Estados Unidos se fundou, vé-se diante da necessidade de com- patibilizar a crenga na igualdade do homem e nossas promes- sas institucionais de igualdade de oportunidades com o trata- mento que dispensamos a negros e orientais. A diversidade de A.adolescéncia em Samoa 9 padrdes na sociedade atual € ro evidente que mesmo a pessoa mais obtusa, menos curiosa, nfo pode deixar de percebé-la. Essa diversidade é to antiga, esté de tal modo incorporada a semissolucées, a essas solucdes de compromisso entre diferen- tes filosofias que chamamos de cristianismo, democracia ou humanitarismo, que desconcerta os mais inteligentes, os mais, curiosos, 0s mais analiticos. ‘Assim, para explicar a falta de pungéncia nas escolhas das meninas em desenvolvimento em Samoa, devemos olhar para o temperamento da civilizagio samoana, que desconsidera sentimentos fortes. No entanto, para justificar a falta de con- flit, devemos olhar principalmente para a diferenga entre uma aco simples, homogénea, primitiva, uma civilizacio que muda tao devagar que parece estética para cada geracao, c outra matizada, a diversa e heterogénea civilizagio moderna. Ao fazer essa comparacdo, hi uma terceira consideracio, a falta de neuroses entre os samoanos e o grande niimero delas entre nés. Devemos examinar os fatores na educacao que as criancas de Samoa recebem na primeira infancia que as ade- quaram para um desenvolvimento normal, livre de neuroses. Os achados dos behavioristas e dos psicanalistas dio grande énfase ao enorme papel desempenhado pelo desenvolvimento nos primeiros anos da vida. Criancas que tiveram um mau comeso revelam com frequéncia mau funcionamento mais tarde, quando se veem diante de escolhas importantes. E sabe- ‘mos que, quanto mais severa a escolha, mais conflito; quanto ‘mais comogdo se associa &s exigéncias feitas a0 individuo, mais neuroses dai resultarao. A hist6ria, na forma da tiltima guerra, forneceu uma assom- rosa ilustracZo do grande nimero de individuos mutilados 0 Cultura e personatidade € deficientes cujos defeitos s6 apareceram sob estresse muito especial e terrivel. Sem a guerra, no hé razdo para acreditar ‘que muitos desses individuos nao poderiam ter passado pela vida sem se fazer notar; 0 mau come¢o, os medos, os comple- x08, 0s maus condicionamentos da primeira infancia nunca teriam dado frutos positivos o bastante para atrair a atencao da sociedade As implicagdes dessa observacio so duplas. A auséncia de situagGes dificeis em Samoa, de escolhas conflitantes, de ocasiées em que medo, dor ou ansiedade séo extremamente agucados, explicaré em grande medida a auséncia de desa- justamento psicolégico. Assim como uma pessoa com leve retardo mental ndo seria irremediavelmente incapacitada em ‘Samoa, embora fosse um fardo piblico numa grande cidade ra instabilidade nervosa tém chances muito mais favordveis em Samoa que nos Estados Unidos. Além disso, o grau de individualizacio, © Ambito de variacdo, € muito menor em Samoa. Dentro de americana, também 0 individuos com ‘nossos limites mais amplos de desvio, ha temperamentos ine- vitavelmente considerados ftacos endo resistentes. Do mesmo modo como nossa sociedade mostra maior desenvolvimento de personalidade, ela mostra também maior proporcao de individuos que sucumbiram ante as complicadas cobrancas da vida moderna. Apesar disso, & possi crianga samoana fatores particularmente favoraveis a estabi- lizacdo, podemos presumir que uma crianca proveniente de um melhor am- 1 que haja no ambiente inicial da Tidade nervosa. Assim como, em nossa ci biente familiar terd mais chances em todas as circunstincias, &possivel que a crianga samoana nfo sé seja tratada com mais A adolescéncia em Samoa an gentileza por sua cultura, como também esteja mais bem equi- pada para as dificuldades que de fato encontra, Essa suposi¢ao é reforgada pelo fato de que criancas peque- nas samoanas saem aparentemente incélumes de experiéncias que com frequéncia tm graves efeitos sobre o desenvol ‘mento individual em nossa civilizacio, Nossas historias de vida sio cheias de dificuldades tardias, cuje origem pode ser atribui- daa uma experiéncia precoce, extremamente carregada, com sexo, nascimento ou morte. No entanto, as criangas samoanas | esto familiarizadas com essas trés coisas numa idade pre- coce, ¢ isso sem acidentes. E muito possfvel que haja aspectos da vida da crianca em Samoa que a equipem particularmente bem para atravessar a vida sem instabilidade nervosa. Com essa hipétese em mente, vale a pena considerar em maior detalhe em que aspectos o ambiente social das criancas pequenas samoanas é mais evidentemente diverso do nosso. ‘Armaioria das diferencas gira em torno da situaco familiar, 0 ambiente que primeiro e mais intensamente afeta a conscién- ina de uma s6 tacada, em quase todos os casos, muitas das situagSes cia da crianca. A organizacfo de um lar samoano especiais que, segundo se cré, produzem atitudes emocionais indesejéveis. (O caculla, o mais velho eo filho tinico raramente ocorrem, em razdo do grande niimero de criangas numa casa, todas recebendo o mesmo tratamento, Poucas criancas séo sobre- carregadas de responsabilidades, nem se tornam dominadoras € despéticas, como acontece tantas vezes com os filhos mais velhos; nem sfo isoladas, sequestradas do efeito socializante do contato com outras criancas, como ocorre tantas vezes com 0s filhos tinicos; nenhuma crianca é mimada ¢ estragada até 2 Cultura e personalidade que sua visio acerca de seus merecimentos fique irremediavel- mente distorcida, como € 0 destino to frequente dos caculas. Mas nos poucos casos em que a vida em familia samoana se aproxima da nossa, as atitudes especiais que costumam acom- panhar a ordem de nascimento e os lagos afetivos estreitos com (5 pais tendem a se desenvolver. O estreito relacionamento entre pai ou mée e crianca, que izacio, aquela submissio a figura parental ou a oposicéo a ela, que pode se tornar o padrao dominante de toda uma existéncia, tem influéncia tao decisiva sobre tantos em nossa ci no é encontrado em Samoa. Criangas criadas em casas onde ha meia duizia de mulheres adultas para cuidar delas ¢ en- xugar suas légrimas e meia diizia de homens adultos, todos representando a autoridade constitufda, nfo distinguem seus pais de maneira to nftida quanto as nossas. A imagem da mie estimuladora, amorosa, ou do pai admiravel, que pode servir para determinar escolhas afetivas depois, é um quadro compésito, feito de varias tias, primas, irmas mais velhas ¢ avés; composto de chefe, pai, tios, irmiios e primos, Em vez de aprender como sua primeira licdo que hé uma mae bondosa cuja preocupacio especifica e principal é o seu bem-estar, ¢ um pai cuja autoridade deve ser acatada, o bebé samoano aprende que seu mundo é composto por uma hierarquia de homens e mulheres adultos, todos dignos de confianga e que devem ser respeitados ra dessa di- A falta de sentimento especializado que res fusio da afeigdo no lar é ainda mais reforcada pela segrega- ‘io estabelecida entre meninos e meninas, de modo que uma crianga vé as do sexo oposto como parentes tabu, seja qual for sua individualidade, ou como inimigos atuais e futuros A adelescéncia em Samoa - as amantes, de novo independentemente da individualidade, A substituigao da preferéncia pelo parentesco na formacao de amizades completa o trabalho. Quando chega & puberdade, a menina samoana aprendeu a subordinar a escolha na selecdo de amigos ou amantes & observancia de certas categorias. Amigos devem ser parentes do nosso préprio sexo; amantes, no parentes. Qualquer afir- magao de atracio pessoal ou compatibilidade entre parentes de sexo oposto deve ser objeto de zombaria. Tudo isso significa ‘que as relacées sexuais casuais nfo carregam nenhum nus de forte ligacio, que o casamento por conveniéncia, ditado por , € entabulado com f dade ¢ informalmente rompido sem fortes emocSes. Nada poderia ser mais contrastante com o lar americano médio, com seu pequeno nimero de filhos, o vinculo estreito consideragdes econdmicas ¢ soci e teoricamente permanente entre os pais, o drama do ingresso de cada novo filho na cena e 0 destronamento do tiltimo bebé. Aqui a menina em desenvolvimento aprende a depender de poucas pessoas, a esperar as recompensas da vida de certos tipos de personalidade. Com essa primeira tendéncia a prefe- réncias nas relagées pessoais, ela cresce brincando tanto com ‘meninos quanto com meninas, aprendendo a conhecer bem irmaos, primos e colegas de escola. Nao pensa em meninos como uma classe de pessoas, mas como individuos, agradaveis como o irmao de quem gosta muito, ou desagradaveis, domi- nadores, como 0 irmao com quem sempre se desentende. A preferéncia em matéria de constituigdo fisica, temperamento ¢ caréter desenvolve-se e forma as bases para uma atitude adulta muito diferente, em que a escolha desempenha vivido papel. A menina samoana nunca experimenta as compensa- Py Cultura e personalidade {ges do amor roméntico tal como 0 conhecemos, nem sofre como uma velha solteirona que nfo agradou a ninguém, ou como a esposa frustrada num casamento que néo satisfaz suas clevadas exigéncias. Tendo aprendido um pouco sobre a arte de disciplinar o sen- timento sexual em canais aprovados por toda a personalidade, nos tenderemos a julgar nossa solugdo melhor que a samoana. Para alcancar 0 que consideramos um padrio mais digno de relagbes pessoais, estamos dispostos a pagar a penalidade da frigidez no casamento e um enorme tributo de mulheres es- téreis, solteiras, que se movem em insatisfeita procissao pelos palcos americano inglés. Mesmo admitindo a desejabilidade desse desenvolvimento de reagSes sensiveis ¢ discriminadoras & personalidade como base melhor para vidas humanas dignas que uma reagio automitica e indiferenciada a atracio sexual, ainda podemos, a luz das solucSes samoanas, considerar nos- sos métodos extremamente dispendiosos. Acestrita segregaco de meninos e meninas aparentados ¢ a hostilidade institucionalizada entre criancas de sexos opostos sio tragos culturais dos q simpatia. Estamos tentando substituir os vestigios dessas ati- tudes, manifestadas em nossas escolas para um $6 sexo, pela coeducagio, por habituar um sexo ao outro o bastante para que a diferenca de sexo seja desconsiderada em face das mais importantes e notéveis diferencas de personalidade. Nao hi ga- nhos reconheciveis no sistema samoano de tabu e segregacio, de resposta a um grupo, em vez de resposta a um individuo. No entanto, quando comparamos o outro fator de renga, a concluséo ndo é to segura. Quais so as recompen- is no demonstramos nenhuma fen sas da pequenina e insular fami gica que ope seu A adolescéncia em Samoa - 6 circulo fechado de afeicao a umn mundo ameagador, dos fortes lacos entre pais e filhos, lacos que implicam uma relacko pessoal ativa do nascimento até a morte? Especializagio do afeto, € verdade, mas em troca da preservacio, por muitos individuos, durante toda a vida, das atitudes de criangas de- pendentes, de lacos entre pais e filos que conseguem derro- tar as tentativas da crianca de fazer outros ajustamentos, da transformagio de escolhas necessarias em algo desnecessa- riamente pungente, porque elas se tornam problemas numa relagio emocional intensa. Talvez estes sejam precos altos demais a pagar por uma es- pecializacdo da emoc&o que pode ser promovida de outras maneiras, em particular mediante a coeducacéo. Com essa ‘questo em mente, é interessante observar que uma comuni- dade fai res adultos, parece preservar a crianga do desenvolvimento r mais ampla, em que ha varios homens e mulhe- das atitudes paralisantes que foram rotuladas de complexos de Edipo, de Electra, e assim por diante. © quadro de Samoa mostra que nio é necessirio canalizar to profundamente a afeicdo de uma crianga para seus pais; e sugere que, embora possamos rejeitar aquela parte do ar- ranjo de Samoa que nao nos oferece nenhuma recompensa, a segregacio dos sexos antes da puberdade, podemos aprender ‘com um quadro em que o lar nfo domina e distorce a vida da crianga, Apresenca de muitos pontos de vista enfaticamente defen- didos e contradit6rios e a enorme influéncia de individuos na vida de seus filhos em nosso pais se reforgam mutuamente para produzir situagbes carregadas de emogio e dor. Em Samoa, 0 fato de o pai de uma menina ser uma pessoa dominadora ¢ 46 Cultura e personatidade dogmiética, 0 pai de sua prima ser alguém bondoso e sensato, ¢ co pai de outra prima, uma pessoa vivida, brilhante e excéntrica, influenciard as trés meninas em um tinico aspecto: a escolha da residéncia, caso um dos trés pais seja chefe de um lar Mas as atitudes das trés meninas em relacio a sexo ¢ reli- gido nfo serio afetadas pelos diferentes temperamentos dos trés pais, pois eles desempenham papel pequeno demais em um exército de parentes que incute nelas uma conformidade geral sobre a qual a personalidade dos pais tem efeito muito leve. Por meio de uma interminavel cadeia de causa ¢ eftito, diferencas individuais de padrio nao so perpetuadas pela adesao dos filhos & posicdo dos pais; os filhos tampouco si0 lancados em atitudes bizarras e atipicas que poderiam consti tuira base para o desvio e a mudanca. Talvez ali, onde nossa propria cultura é tdo carregada de escolhas, seja desejével mi- 1, pelo menos numa pequena medida, o forte papel que os pais desempenham na vida dos filhos, eliminando assim um dos mais poderosos fatores acidentais nas escolhas de qualquer vida indi Os pais samoanos rejeitariam como indecoroso e odioso um apelo ético feito a crianga em termos de afeicéo pessoal: "V4 A igreja por amor “Nao seja tao desagradével com sua irmé, isso deixa © papai triste”. Onde ha um padrdo de conduta, e apenas um, ssa indigna confusio de ética e afeicdo feliemente é eliminada. Mas onde hé muitos padres e todos os adultos esforcam-se desesperadamente para vincular seus filltos aos cursos parti culares que eles préprios escolheram, recorre-se a meios tortu- (0808 e nio respeitaveis. Crencas, priticas e cursos de aco sto A.adolescéncia em Samoa - 9 impostos a crianca em nome de uma lealdade filial. Em nossa visio ideal da liberdade do individuo e da dignidade das rela- bes humanas, no é agradavel perceber que desenvolvemos uma forma de organizacio familiar que muitas vezes aleija a vida emocional, distorce ¢ confunde, em muitos individuos, 0 desenvolvimento da capacidade de viver com a consciéncia de suas proprias vidas, (O terceiro elemento do padro samoano de falta de relagbes pessoais falta de afeicao especializada € 0 caso da amizade. Aqui, principalmente, os individuos sao inseridos em categorias, ¢ a reacdo 6 & categoria, a um “parente’, ow a “mulher do porta-voz do chefe da aldeia de meu marido”, ou ao “filho do porta-voz.do chefe da aldeia de meu pai, ow a “filha do porta-voz do chefe da aldeia de meu pai”. Consideragdes de simpatia ou identidade de ‘modo de pensar so todas eliminadas em favor de associagbes sistematicamente arranjadas. Atitudes como estas, claro, seriam_ objeto de nossa completa rejeicio. Unindo os fios dessa discussao particular, podemos dizer que uma diferenca notavel entre a st nossa é a falta de especializacao de se -dade samoana e a jentos, em particu- lar de sentimento sexual, entre os samoanos, Dessa diferenga decorre, sem diivida; uma parte da facilidade dos ajustes ma- ritais num casamento de conveniéncia, a auséncia de frigidez lizagdo de senti- mentos deve ser atribuida A familia extensa e heterogénea, & segregacio dos sexos antes da adolescéncia e& arregimentagio da amizade~sobretudo 20 longo de linhas de parentesco. No entanto, embora deploremos o preco em vidas desajustadas frustradas que devemos pagar pela maior especi sentimento sexual em nossa prépria sociedade, vemos 0 de- e impoténcia psiquica. Essa falta de especi ago do a Cultura e personalidade senvolvimento da resposta especializada como um ganho de que no abrirfamos mio. Um exame desses trés fatores causais, contudo, sugere que podertamos alcancar nosso objetivo dese- jado, 0 desenvolvimento de uma consciéncia de personalidad, por meio da coeducacio e de amizades nfo sistematicamente arranjadas; ¢ talvez nos livrar dos males inerentes &s organi- zacées familiares demasiado intimas, eliminando assim parte da pena que pagamos em termos de desajuste sem sacrificar nenhum dos ganhos que tanto nos custaram. A grande diferenca seguinte entre a cultura de Samoa e a nossa, a qual podemos atribuir a menor producio de indi duos desajustados, é a diferenca na atitude em relaso a sexo € & educagao das criangas em matérias relativas a nascimento € motte. Nenhum dos fatos do sexo ou do nascimento é con- siderado inconveniente para as criancas, nenhuma crianca precisa ocultar seu conhecimento com medo de punicéo nem refletir penosamente sobre ocorréncias pouco compreendidas. Segredo, ignorancia, conhecimento culpado, especulacées ina- dequadas resultando em concepgées grotescas que podem ter consequéncias de longo alcance, um conhecimento dos sim- ples fatos fisicos do sexo sem 0 conhecimento da excitaco que ‘0s acompanha, do fato do nascimento sem as dores do parto, do fato da morte sem a degradacio — todas as principais falhas de nossa fatal filosofia de poupar a crianca do conhecimento da horrivel verdade — esto ausentes em Samoa. Além disso, a crianga samoana, que participa intimamente da vida de grande niimero de parentes, tem muitas e variadas experiéncias em que basear suas atitudes emocionais, Nossas 1 (€ esse confina- mento esté se tornando cada vez mais frequente com 0 cres- criancas, confinadas num s6 cfrculo famil A adolescéncia em Samoa - ry cimento das cidades e a substituicao de uma vizinhanga de familias proprietérias de casas por prédios de apartamentos com populacdo transitoria), muitas vezes devem sua tinica ‘experiéncia com nascimento ou morte ao nascimento de um irmio ou irma mais novos ou A morte de um dos pais ou um dos avés. Seu conhecimento de sexo, afora mexericos de crian- cas, vem de uma olhadela acidental na atividade dos pais. Isso tem varias desvantagens obvias. Em primeiro lugar, a crianca depende, para seu conhecimento, do ingresso do nascimento eda morte em seu lar; a crianga mais nova numa familia onde no ha mortes pode chegar idade adulta sem ter tido nenhum conhecimento préximo da gravidez, nenhuma experiéncia com criangas pequenas ou nenhum contato com a morte. Grande quantidade de concepcOes fragmentarias da vida ¢ da morte vai supurar na mente ignorante, inexperiente, € forneceri um campo fértil para 0 crescimento posterior de atitudes desastrosas. Em segundo lugar, essas criancas ex- traem suas experiéncias de uma 4rea de tom excessivamente emocional; podem entrar em estreito contato s6 com um nas- cimento durante os primeiros vinte anos de vida. E toda a sua atitude depende dos aspectos acidentais desse nascimento particular. Se ele é 0 de um irmfo cacula que usurpa o lugar do mais velho, se a mae morre no parto, se a crianca que nasce é deformada, o nascimento pode parecer uma coisa horrivel, acarretando apenas consequéncias indesejaveis. Se 0 tinico leito de morte que a pessoa observou alguma vez é 0 da mie, o simples fato da morte pode estar saturado de toda a emocio que essa perda provocou, pode carregar para sempre um efeito desproporcional as mortes particulares en- contradas depois ao longo da vida. O intercurso sexual visto 50 Cultura e personalidade apenas uma ou duas vezes, entre parentes em relagio aos quais a crianca tem atitudes emocionais complicadas, pode gerar diversas suposiges falsas. Nossos registros de criancas desa- justadas esto cheios de casos em que elas compreenderam mal a natureza do ato sexual panhada de édio, ou como castigo, e recuaram aterrorizadas diante de uma experiéncia altamente carregada Nossas criancas esto, portanto, na dependéncia de sua experiéncia acidental com a vi experiéncias que Ihes foram concedidas situam-se no circulo ferpretaram-no como luta acom- € com a morte; € aquelas familiar intimo, sendo por isso a pior maneita possivel de aprender fatos gerais sobre os quais € importante nao adquirir nenhuma atitude especial e distorcida. Uma morte, dois nasci- ‘mentos, uma experiéncia sexual, esse é um total generoso para a crianca criada sob condigSes que consideramos compativeis com o padrao de vida americano. Diante do niimero de exemplos que consideramos preciso dar sobre como calcular os metros quadrados de papel ne- cessdtios para forrar as paredes de um quarto de 2,5 % 3,5 4 metros, ou sobre como fazer a andlise gramai frase em inglés, esse é um baixo padrdo de experi possivel alegar que essas sto experiéncias de tio elevado teor emocional que a repeticdo é desnecesséria. Pode-se afirmar também que, se uma crianca fosse severamente surrada antes de receber sua primeira ligo sobre como calcular'a quantidade necessiria de papel para forrar as paredes de um quarto, e que, como uma sequéncia da aticador de brasas, ela iria se lembrar para sempre dessa aula de aritmética. Mas aquilo que ela saberia sobre a real natureza dos célculos envolvidos na colocacao de papel de parede no io, visse 0 pai bater na mae com 0 A adolescencia em Samoa - 3 quarto é duvidoso. Em uma ou duas experiéncias no se da a ‘erianga nenhuma perspectiva, nenhuma chance de relegar os detalhes fisicos grotescos e estranhos do processo da vida a seu devido lugar. Falsas impressdes, impressdes parciais, nojo, néusea, horror, desenvolvem-se em torno de um fato experi- mentado somente uma vez, sob intenso estresse emocional ¢ numa atmosfera desfavordvel & consecucéo, pela crianga, de alguma compreensio real. Um padro de reserva que profbe & crianga qualquer tipo de comentario sobre suas experiéncias contribui para a per- sisténcia dessas falsas impress6es, dessas atitudes emocionais estorvadoras; questes como “Por que os labios da vov6 esta- ‘vam tio azuis?” so prontamente silenciadas. Em Samoa, onde a decomposic&o se inicia quase de imediato, uma repugnancia franca ¢ ingénua aos odores do apodrecimento por parte de todos os participantes de um funeral priva o aspecto fisico Assim, em nossos arranjos, nao é facultado a criange repetir suas experiéncias, no Ihe € permitido discutir as que teve e corrigir seus erros. ‘Com a crianca samoana é profundamente diferente. O in- tercurso sexual, a gravidez, o parto, a morte, todas essas coisas so ocorréncias bem conhecidas. Bla nao as experimenta de maneira ordenada ~ como nés, se tivéssemos de decidir por da morte de qualquer significagio espec alargar o campo experimental da criana, considerariamos essencial. Numa civilizacZo que desconfia da privacidade, f- Ihos de vizinhos sero espectadores acidentais e impassiveis numa casa cujo dono esté morrendo ou a mulher sofreu um. aborto espontiineo. As criancas tém conhecimento da patolo: gia dos processos da vida, assim como de seu curso normal. ‘Uma impressiio corrige a anterior até que elas sejam capazes, 5 Cultura epersonalidade como adolescentes, de pensar sobre a vida, a morte ea emogdo sem preocupacio indevida com os detalhes puramente fisicos. Nao se deve supor, no entanto, que a mera exposi¢ao de criangas a cenas de nascimento e morte seja garantia suficiente contra o desenvolvimento de atitudes indesejaveis. E prova- vel que, mais influente até que os fatos que lhes so to co- piosamente apresentados, seja a atitude mental com que os mais velhos encaram a questo. Para eles, nascimento, sexo € morte sio a estrutura natural e inevitavel da existéncia, de uma existéncia que eles esperam que suas criangas mais noves compartilhem, Nosso comentario tantas vezes repetido de que “no é natural” que as criancas se defrontem com a morte iria parecer tio incongruente para eles quanto se disséssemos nao ser natural que as criancas vejam outras pessoas comendo ou dormindo, Essa aceitacdo calma e prosaica da presenca de scus filhos envolve a crianca numa atmosfera protetora, preserva-a do choque ea liga mais estreitamente 4 emoglo comum que The é tio dignamente permitida. Como em todos os casos, é impossivel separar aqui atitude de pritica e dizer 0 que é principal. A disting&o é feita ape- nas para nosso uso em outra civilizacdo. Os pais americanos individuais, que acreditam numa prética como a samoana ¢ permitem a seus filhos ver corpos humanos adultos e ganhar uma experiéncia mais ampla do funcionamento do corpo hu- mano do que é comumente permitido em nossa esto construindo sobre areia. Pois assim que deixa 0 protetor de seu lar a crianga é bombardeada por uma atitude em relacao a essas experiéncias na infancia como coisas feias ¢ antinaturais. E provavel que a tentativa de pai ‘vi fazer 4 crianca mais mal que bem, pois a necess A adolesctncia em Samoa 3 social de apoio est4 ausente. Este € apenas um exemplo adi- ional das possibilidades de desajustamento inerentes a uma sociedade em que cada lar difere do outro; pois é no fato da diferenca, nfo na sua natureza, que reside a tenséo. Sobre essa tranguila aceitacdo dos fatos fisicos da vida os samoanos constroem, 4 medida que ficam mais velhos, uma aceitagdo do sexo. Aqui, mais uma vez, é necessirio distinguir entre as partes de sua pratica que parecem produzir resultados que decerto condenamos e aquelas que produzem resultados que desejamos. & possivel analisar a pratica sexual samoana do ponto de vista do desenvolvimento das relagbes pessoais, por um lado, e da eliminagao da necessidade de dificuldades especificas, de outro. ‘Vimos que 0s samoanos tém um baixo nivel de apreciacao de diferencas de personalidade e uma pobreza de concepcéo acerca das relacdes pessoais. A aceitacéo da promiscuidade contribui de maneira indubitavel para semelhante atitude. A simultaneidade de varias experiéncias; sua curta duragdo; a clara evitagio do estabelecimento de qualquer lago afetivo; a alegre aceitagio dos ditames de uma ocasiao favorével, como na expectativa de infidelidade por parte de qualquer esposa cujo marido se ausente de casa; tudo isso serve para tornar © sexo um fim, e no um mei algo que é valorizado em si mesmo e desaprovado na medida em que tende a liger um individuo a outro. E duvidoso que esse desdém pelas relacdes pessoais seja completamente contingente aos habitos sexuais das pessoas. E provavel que ele reflita também uma atitude cultural mais ampla, em que a personalidade é invariavelmente desconside- rada. Mas ha um aspecto em que essas mesmas praticas tor- 54 Cultura e personatidade ‘nam possivel um reconhecimento da personalidade infimeras vezes negado a muitos em nossa civilizacfo, porque, a partir do completo conhecimento do sexo dos samoanos, de suas possibilidades e compensacées, eles so capazes de Ihe atri- buir seu verdadeiro valor. Se nao tém nenhuma preferéncia por reservar a atividade sexual para relacionamentos importan- tes, eles tampouco consideram os relacionamentos importantes pelo fato de proporcionarem satisfacdo sexual. ‘A menina samoana que dé de ombros diante da excelente técnica de um jovem Lotério” esté mais perto do reconheci- mento do sexo como forca impessoal sem nenhuma validade intrinseca que a protegida menina americana que se apaixona pelo primeiro homem que Ihe dé um beijo. De sua fami dade com 0 ofuscamento que acompanha a excitacdo sexual ‘vem esse reconhecimento da impessoalidade essencial da atra- cio sexual, que podemos sem diivida Ihes invejar; de préticas demasiado ligeiras, demasiado fortuitas, surge o desdém pela personalidade que nos parece tao desagradavel. A maneira como a pritica sexual do samoano reduz.a pos- sibilidade de neuroses jé foi debatida. Desconsiderando nossa categoria de perversio, tal como aplicada A prética, e reser- vando-a para o pervertido psiquico ocasional, eles erradicam todo um campo de possibilidades neuréticas. Masturbacio, homossexualidade, formas estatisticamente incomuns de ati- vidades heterossexuais, nada disso é banido nem institucio- nalizado. Os limites mais amplos que essas préticas propor- + Referénciaa um personagem sedutor presente em Dom Quine Miguel de Cervantes, etomado posteriormente na pega The Fair Penitent (aye, de Nicholas Rowe. (N.O) A adolescéncia em Samoa 5 cionam impedem o desenvolvimento de obsessbes de culpa, causa tio frequente de desajuste entre nés. ‘As mais variadas praticas heterossexuais permitidas preser- vam qualquer individuo de ser punido por um condiciona- ssa aceitacZo de uma variaco maior como algo “normal” fornece uma atmosfera cultural em que frigidez ¢ impoténcia psiquica nfo ocorrem e que um ajustamento se- xual satisfatério no casamento sempre pode ser estabelecido. A aceitagdo de uma atitude como essa, sem admitir de maneira alguma a promiscuidade, contribuiria muito para resolver vé- rios impasses conjugais, esvaziando os bancos de nossos par- ‘ques € nossas casas de prostituicdo. Entre os fatores no esquema de vida samoano influentes na producao de i iduos estiveis, bem-ajustados, robustos, a organizagio da fa e a atitude em relagdo ao sexo si0 indubitavelmente as mais importantes. E necessirio notar, po- ém, o conceito educacional geral que condena a precocidade e mima o lento, o molenga, o desajeitado. Numa sociedade em que o ritmo da vida fosse mais répido, as recompensas me- Thores, a quantidade de energia despendida maior, as criangas ligentes poderiam desenvolver sintomas de tédio. Mas 0 andamento mais lento ditado pelo clima, a sociedade com- placente e pacifica e a compensacio da danca, em sua espa- Ihafatosa e precoce exibicdo de individualidade que remove parte da insatisfacdo sentida pela crianca inteligente, evita que qualquer crianca fique entediada demais. O desajeitado nfo & aguilhoado e arrastado, forcado a andar mais depressa do que & capaz, até que, doente pelo esforco impossivel, desista por completo. Essa estratégia educacional também tende a empa- lidecer as diferencas individuais e, assim, a minimizara inveja, int 36 Cultura e personalidade a rivalidade e a competicao, essas atitudes sociais que brotam de discrepancias de talentos e tém efeitos de to longo alcance sobre a personalidade do adulto. Essa é uma maneira de revolver o problema das diferen- gas entre individuos e um método de solucéo extremamente adequado a um mundo adulto severo. Quanto mais tempo a crianga for mantida em estado de submissio, de néo iniciado, ‘mais ela absorverd a atitude cultural geral, menos se tornara uum elemento perturbador. Além disso, se Ihes for dado tempo, 08 desajeitados podem aprender o suficiente para fornecer um sblido corpo de conservadores sobre cujos ombros a carga da civilizagéo pode repousar em seguranca. Dar titulos a rapa- is; dar titulos a homens de quarenta anos, que afinal adquiriram treinamento suficiente zes seria valorizar os excepcio: para possui-los, assegura a continuaco do habitual. Também desestimula os brilhantes, de modo que sua contribuiclo social & menor que em outras condigées. Devagar, as apalpadelas, estamos abrindo nosso caminho para solucionar esse problema, a0 menos no caso da educagao formal. Até muito recentemente, nosso sistema educacional oferecia apenas duas solucdes muito parciais para as dificulda- des inerentes a uma grande discrepancia entre as criancas dis- tintamente dotadas ¢ com diversos ritmos de desenvolvimento. ‘Uma delas consistia em conceder tempo longo o bastante para cada passo educacional, de modo que todos, salvo os mental- mente deficientes, pudessem ter sucesso, método semelhante 0 samoano, mas sem sua pista de danca compensatéria. A crianca inteligente, refteada, presa a tarefas intoleravel- mente enfadonhas, a menos que tivesse a sorte de encontrar alguma vélvula de escape para sua energia incomum, tendia a A.adolescéncia em Samoa 3 ‘gasté-la com a vadiagem e a delinquéncia geral. Nossa tinica al- ternativa para isso era fazer a crianga “pular de ano”, confiando em sua inteligéncia superior, que lhe permitiria transpor as lacunas. Esse era um método adequado ao entusiasmo ameri- cano por carreiras mete6ricas, indo desde as moradias rsticas até a Casa Branca. Suas desvantagens, ao dar & crianga uma base esquematica, descontinua, e retiréla de seu grupo eta foram enumeradas vezes demais para que eu precise repeti- las aqui. Mas vale a pena notar que, com uma valorizagio da habilidade individual muito diferente daquela da sociedade sa- moana, usamos durante anos uma solucio parecida com a dela, e menos satisfatéria, em nossas tentativas de educacdo formal. Os métodos que educadores experimentais esto adotando em lugar dessas solugGes insatisfatdrias, esquemas como 0 Plano Dalton, ou as classes rapidamente mutéveis em que ‘um grupo de criangas pode avangar em velocidade acelerada ‘e constante, sem prejuizo para si mesma ou para seus colegas mais lentos, so um notvel exemplo dos resultados da at cago da razio as instituig6es de nossa sociedade. A antiga ¢ tradicional escola americana era um fenémeno quase tao acidental e casual quanto a pista de danca samoana. Era uma instituigdo que se desenvolvera em resposta a uma necessi- + Inovasdo educacional introduzida por Helen Parkhurst (1887-1973) na Children’s University School, em Nova York, em 1914, in cadores como Maria Montessori e John Dewey. Em 1918, 0 método foi adotado nas escolas piblicas de Dalton, Massachusetts. Cada aluno deveria desenvolver-se em seu préprio ritmo, recebendo atengdo individual dos tina rigida de disciplinas ¢ 0s alanos eram estimulados a assumir parte da responsabilidade pela organizacdo das aulas do calendério escolar, (NO) 8 Cultura e personalidade dade vagamente sentida, ndo analisada. Seus métodos eram anélogos aqueles usados pelos povos primitivos, solucdes nao racionalizadas para problemas prementes. Mas a institucio- nalizacdo de diferentes métodos de educagao para criancas ‘com capacidades e ritmos de desenvolvimento diversificados no parece nada com 0 que encontramos em Samoa ou em qualquer outra sociedade primitiva, Bla é 0 direcionamento consciente e inteligente de instituicdes humanas em resposta a necessidades humanas observadas. Outro fator na educacZo samoana que resulta em atitudes diferentes é 0 lugar do trabalho e da brincadeira na vida das ctiangas. As criangas samoanas nfo aprendem a trabalhar en- quanto aprendem a brincar, como 0s filltos de muitos povos ptimitivos. Nem Ihes é concedido um periodo de falta de res. ponsabilidade, como é permitido as nossas criancas. Desde (08 quatro ou cinco anos, elas desempenham tarefas definidas, compativeis com sua forga e inteligéncia, porém, ainda assim, tarefas que tém um sentido na estrutura da sociedade em seu conjunto. Isso no significa que elas tenham menos tempo para brincar que as criancas americanas, que ficam todo dia fechadas nas escolas, das oh da manha as 3h da tarde. Antes da adogao das escolas para complicar a rotina orde- ‘nada de sua vida, o tempo que a menina samoana passava em pequenas incumbéncias, varrendo a casa, carregando 4gua € tomando conta do bebé, talvez.fosse menor que aquele que a aluna americana dedica a seus estudos. A distingdo nao reside na proporcao de tempo em que suas atividades sfo dirigidas e naquela em que sio livres, mas sobre- tudo na diferenca de atitude. Com a profissionalizacio da edu- cacdo ¢ a especializacao das tarefas industriais que privaram 0 A adolescéncia em Samoa 59 lar individual de sua antiga variedade de tarefas, nossas crian- ‘gas ndo sio levadas a sentir que o tempo que de fato dedicam 4s atividades supervisionadas esta funcionalmente relacionado ao mundo das atividades adultas. Embora seja mais aparente que real, essa falta de conexao ainda é vivida o bastante para scr um poderoso determinante da atitude da crianga. ‘Amenina samoana que cuida de bebés, carrega agua, varre ‘0 cho, ov o menino que escava o chao a procura de iscas, ou apanha cocos, nao tem essa dificuldade, tio Obvia éa natureza necesséria de suas ocupaces. A pratica de dar a crianca uma ‘tarefa que ela pode desempenhar bem e jamais permitir um manejo infanti eficiente, de mecanismos adultos, como permitimos ds nossas criancas, que batucam a esmo e destru- tivamente as maquinas de escrever de seus pais, resulta numa atitude diferente em rela¢io ao trabalho. [As criancas americanas passam horas em escolas apren- dendo tarefas cuja relacdo visivel com as atividades de suas mies ¢ pais é muitas vezes impossivel de reconhecer. Sua parti- cipacio nas atividades dos adultos dé-se em termos de bringue- dos, aparellos de cha, bonecas e carrinhos, ou da manipulaggo sem sentido e prejudicial do sistema de luz elétrica. (Deve-se compreender que, aqui, como sempre, quando falo “ameri- cano” nfo tenho em mente os americanos recém-chegados da Europa, que ainda apresentam uma tradicdo diferente de educacéo. Um desses grupos seria o dos italianos do Sul, que ainda esperam que seus filhos desempenhem algum trabalho produtivo) ‘Assim, nossas criancas constroem um falso conjunto de cate- gotias, trabalho, brincadeira e escola; trabalho para os adultos, brincadeira para as criancas ¢ escola como um inexplicavel 60 Cultura epersonalidade aborrecimento com algumas compensacGes. Essas falsas dis- tingdes tendem a produzir toda espécie de atitudes estranhas: © tratamento apitico de uma escola que néo tem nenhuma relagio conhecida com a vida; afélsa dicotomia entre trabalho e diverso que pode resultar em pavor do trabalho, como algo ‘que implica responsabilidade macante; ou o desprezo posterior da brincadeira, qualificada como algo infantil. A dicotomia para a crianca samoana ¢ diferente. Trabalho consiste naquelas tarefas necessérias que mantém a vida social em curso: plantio, colheita e preparo da comida, pesca, cons- trucdo da casa, confeccio de esteiras, cuidados com as criancas, acumulagio de bens para validar casamentos, nascimentos heranca de titulos e acolhida de estrangeiros ~ essas so as atividades necessérias da vida, das quais todos os membros da comunidade, até a menor das eriancas, participam. O tra- balho nio € uma maneira de conquistar o lazer; num lugar onde toda a familia produz sua propria comida, suas roupas ¢ seus méveis, onde no hé uma grande quantidade de capital imobilizado e as fai se simplesmente por maior industriosidade no cumprimento de obrigacdes mais pesadas, toda a nossa concepso de pou- panca, de investimento e de prazer adiado esta completamente ausente. (Ha até uma falta de estacSes claramente definidas para a colheita, o que resultaria em abundancia especial de alimento € consequentes banquetes. A comida é sempre abundante, exceto em alguma pequena aldeia na qual pou- ‘cas semanas de escassez podem se seguir a um perfodo de recepgGes prédigas) Na verdade, o trabalho é algo que prossegue o tempo todo para todos; ninguém esta isento dele; poucos ficam sobrecar- 8 de categoria elevada caracterizam- A adolescéncia em Samoa 6 regados. Hé recompensa social para o industrioso, tolerancia social em relac&o 20 homem que mal faz o bastante. E ha sempre lazer~e esse lazer, observe-se, nfo é em absoluto 0 resultado de trabalho arduo ou de capital acumulado, mas ape- nas de um clima ameno, de uma popula¢io pequena, de um sistema social bem-integrado ¢ de nenhuma demanda social em relago a gastos espetaculares. Diversao é o que se faz com o tempo que sobra do trabalho, a maneira de preencher os amplos espacos numa estrutura de trabalho nao exaustivo. A diversio inclui danga, canto, jogos, confeccéo de colares de flores, flerte, conversas espirituosas e todas as formas de atividade sexual. Hé instituigdes sociais como a visita cerimo- nial entre aldeias, que tem um tanto de trabalho e outro tanto de diversio. Mas as distingdes entre o trabalho, como alguma coisa que se ¢ obrigado a fazer, mas nao se aprecia, ¢ a diversio, ‘como algo que se quer fazer; entre o trabalho como a pri pal atividade dos adultos ¢ a brincadeira como o principal in- teresse das criancas; tudo isso esta claramente ausente. As diver- ses das criancas so parecidas com as dos adultos em género, interesse ¢ em sua relagio com o trabalho. A crianga samoana info tem nenhum desejo de transformar atividades adultas em brincadeiras, de traduzir uma esfera na outra, Enviaram-me dos Estados Unidos uma caixa de cachimbos la para fazer bolhas de sabfo. As criancas conheciam as bolhas, mas seu método nativo de sopré-las era muito infe- rior ao uso de cachimbos de argil deleitar por alguns minutos com 0 tamanho ¢ a beleza inco- muns das bolhas de sabao, uma menininha me perguntou se poderia, por favor, levar seu cachimbo para casa, a fim de dato Amie, porque cachimbos deviam ser usados para fumar, nao No entanto, depois de se eo Cultura e personalidade para brincar. Bonecas estrangeiras no as interessavam, ¢ elas nao tém bonecas proprias, embora criancas de outras ilhas montem bonecas com as folhas de coqueiro que as criancas de ‘Samoa utilizam para tecer bolas. Elas nunca fazem casinhas de brinquedo, nao brincam de casinha nem péem barcos de brin- quedo para navegar. Meninos pequenos entram numa canoa havaiana e praticam remo na seguranca da laguna, Toda essa atitude conferia maior coeréncia & vida das do que costumamos proporcionar as nossas. Entre nés, a inteligibilidade da vida de uma dida apenas em termos do comportamento de outras criancas. Se todas as outras criancas vao a escola, aquela que niio o faz se sente incongruente em seu meio. Se a menina da casa a0 lado tem aulas de miisica, por que Mary nfo tem? Ou por que Mary deve ter aulas de miisica se @ outra menina nao tem? ‘Vemos uma diferenca to acentuada entre os interesses das, criangas ¢ os dos adultos que a crianca nfo aprende a julgar jangas samoanas ianga & me- seu proprio comportamento em relacdo & vida adulta. Assim, as criancas muitas vezes aprendem a considerara brincadeira algo indigno em si mesmo, e, quando adultas, desvalorizam deploravelmente seus poucos momentos de lazer, A ctianca samoana, contudo, mede'seu proprio ato de tra- balhar ou brincar em referéncia a toda a sua comunidade; cada item de conduta é dignificado em termos de sua rela- so, percebida como 0 dinico padrdo que ela conhece, com a vida de uma aldeia samoana. Uma sociedade tio complexa ¢ estratificada quanto a nossa nao pode esperar desenvolver espontaneamente um esquema de educagio to simples. Mais uma vez, teremos grande dificuldade em arquitetar modos de articipacdo para criangas ¢ meios de articular sua vida escolar A adolescéncia em Samoa 6 com o resto da vida que lhes deem a mesma dignidade que ‘Samoa oferece as suas criancas. ‘Aitltima das diferencas culturais que pode influenciar a es- tabilidade emocional da crianca é a falta de pressio para fazer escolhas importantes. As criancas em Samoa sfo instigadas a aprender, a se comportar bem, a trabalhar, mas nfo se apres- sarnas escolhas que elas préprias fazem. O primeiro ponto em que essa atitude se faz sentir € na questao do tabu de irmao ¢ irmé, ponto cardeal de modéstia e decéncia. No entanto, 0 ‘estagio exato em que o tabu deve ser observado sempre é dei- xado a critério da menina. Quando alcangar um ponto de dis- cernimento, de compreensio, ela passaré, por conta propria, a se sentir “envergonhada’” e estabelecerd a barreira formal entre eles que ira perdurar até a velhice, De maneira semelhante, a atividade sexual dos jovens nunca €cstimulada, ¢ tampouco eles so forcados a se casar em tenra idade. Onde as possibilidades de desvio em relacio 20 padrio aceito sfo tao ligeiras, alguns anos para mais ou para menos nndo ameacam a sociedade. A crianca que s6 chega mais tarde 4 compreensio do tabu entre irmiios ¢ i de fato nenbum perigo. fis nfo representa ssa atitude laissez-faire foi transportada para a lgreja crista samoana. Os samoanos nao viam nenhuma razdo para se pres- sionar as jovens solteiras a fim de que elas tomassem decisdes importantes que estragariam parte do prazer de sua vida. Ha- veria tempo bastante para esses assuntos strios depois que estivessem casadas, ou mais tarde ainda, quando estivessem bem seguras dos passos que estavam dando e corressem menos perigo de cair em pecado mais ou menos a cada més. al de “deixai fazer”. (NO) 64 Cultura e personalidade As autoridades missionarias, compreendendo as virtudes do avanco lento e muito aflitas para conciliar a ética sexual samoa- na com um cédigo europeu ocidental, perceberam a grande desvantagem dos membros solteiros da Igreja que nfo estavam trancados em escolas religiosas. Por conseguinte, longe de es- timulara adolescente a pensar sobre sua alma, o pastor nativo a aconselha a espera até ficar mais velha, recomendacio que ela aceita com muito prazer. Entre nés, em especial no caso de nossas igrejas protestan- tes, hé forte preferéncia pelo apelo 4 juventude. A Reforma, com sua énfase na escolha individual, nao se dispunha a acei- tara ticita filiagdo habitual 4 Igreja, que era 0 padrio cato- lico, uma filiago marcada por dons sacramentais adicionais, mas que nfo exigia nenhuma conversdo siibita, nenhuma renovacio do sentimento rel oso. A solucdo protestante € adiar a escolha sé na medida do necessario, e, assim que a crianca chega a uma idade que pode ser chamada de “idade do discernimento”, faz-lhe um forte e dramitico apelo. Esse apelo € reforcado pela pressio parental ¢ soci convidada a escolher imediata e sabiamente. Embora essa po- sigdo nas igrejas que tiveram origem na Reforma e sua forte acrianga é énfase na escolha pessoal fossem historicamente inevitéveis, €uma léstima que a convencio tenha durado tanto, Ela foi adotada até por grupos reformistas nao sectérios, todos os quais consideram o adolescente o mais legitimo campo para sua atividade. Em todas essas comparacdes entre Samoa e a cultura ame- ricana, muitos aspectos sio siteis apenas para langar um holo- fote sobre nossas proprias solugées, a0 passo que em outros € possivel encontrar sugestdes para mudancas. Quer inveje- Acadolescéncia em Samoa 6 mos ou nfo uma das solugdes de outros povos, nossa atitude em relagio as nossas solugées deve ser amplamente ampliada ¢ aprofundada por uma consideracio da maneira pela qual outros povos enfrentaram os mesmos problemas. Compreen- dendo que nossos meios nio sféo humanamente inevitaveis nem ordenados por Deus, mas fruto de uma longa e turbulenta hist6ria, decerto podemos examinar, sucessivamente, todas as nnossas instituicdes que se tornaram muito mais claras gracas 20 confronto coma historia de outras civilizagées, pesando-as na balanca, sem medo de consideré-las deficientes.

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