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“Lacan era um leitor e intérprete voraz’, diz © filésofo e psicanalista Slavoj Zizek na Intro- duc&o deste livro. “Para ele, a propria psica~ nalise é um método de leitura, Ndo ha maneira melhor de ler Lacan, entao, do que praticar seu modo de leitura ¢ ler os textos de outros com Lacan,” Como ler Lacan oferece o melhor ponto de partida para exploragdes mais amplas da obra do grande mestre francés da psicandilise, Com sua maneira singular de fazer ligagdes entre diferentes éreas do conhecimento, @ com seu texto e raciocinio dgels, inteligentes, leves, por vezes engracados, Zizek esclarece o8 prin! pais conceitos lacanianos © mostra que eles No séo Inacessivels ou hermeéticos, Ao contrario, estio em toda parte: em Hiteh cock @ em Dostolévski, em Hegel King, na sua relagto com o seu Viginhe & has pladas dos irméos Marx, Esta apalxonada de fosa de Lacan mostra que, as verdad em Stephen Mm contraste com ‘evidentes" apregoad GUNS, @ psicandlise esta viva @ pi AZIZ COAVIS Te BEER Rel Toss) SLAVOJ ZIZEK Slavoj Zizek Como ler Lacan Traducéo: Maria Luiza X. de A. Borges Revisio técnica: Marco Antonio Coutinho Jorge Professor do Programa de Pi-graduasao em Pseandlise, Institute de Pscologia/Uer} Para Tim, 0 mais joven materialista dialético do mundo! ‘Tiel orginal: How tread Lacan “Tradugo atorzada da primeira dio ingles, publica em 2006 por Granta Books, Landes inglterr, nasérle How to Read, sb edigt de Simon Critchley, Copyright © 200, Slav} Zitek ‘Shvoj2itek asset the moral righ tobe dened asthe autor ofthis work. Copyright da ego basera © 2010 Jorge Zaha Bitor Lad, rua México sobelojs | 2eo4 Rio de Jato, fe (a) at08 086 | fax (1) 2108-080 ‘eltora@aharcombr | wwwzahar.com br “Todos os dete reservados. Areproducio no avorzads desta puicast, no todo ‘vem parte, consti Vola de diets autora, (Lei 9 60/98 Grafs atulizadarespetando o noo Acondo Ortgrifice di Lingua Portguesa Preparagio: Ana la Cary | Revs: Sandra Mager, Claudia Ajuz Indexagio: Geiss Pimentel Duque Estrada Projet grifico: Carolin alo | Caps: Dupla Design Foto da capa: © Francols Lelie Sy Corb LatinStock CaP. Brast.Caahgasto afore Sindcato Nacional doe ores de vos, R) Zit, Slovo} 149 Zpe —Comoler Lacan / Sao) Zick; adiso Mata Lava X de A Borges: evsSo tenica Maco Antonio Cound Jonge. dence: Zaha, 010 ‘Tadugdo de: How to read Lacan Incl Indie ecronologia sme os 578-44 1. Lacan aegues gor198 1 Til Sumario Introdugio 7 1. Gestos vazios e performativos: Lacan se defronta com a conspiracao da CIA 15 2. O sujeito interpassi Lacan gira uma roda de oragées 32 3. De Che vuoi? a fantasia: Lacan De olhos bem fechados 53 4-Dificuldades com o real: Lacan como espectador de Alien 5: Ideal do eu e supereu: Lacan como espectador de Casablanca 99 6. “Deus esté morto, mas Ele nfo sabe”: Lacan brinca com Bobék 113, 7. 0 sujeito perverso da politica: Lacan como leitor de Mohammad Bouyeri 129 Notas 147 Cronologia 150 Sugestdes de leituras adicionais 153 Indice remissive 157 Introdugao Tentemos lavar um pouco mais nossos miolos EM 2000, 0 cenTésIMO ANIVERSARIO da publicagao de A in. terpretacdo dos sonhos de Freud foi acompanhado por uma nova onda de proclamacGes triunfalistas a respeito da morte da psicandlise: com os novos avangos das citncias do cére- bro, ela esta enterrada onde sempre deveria ter estado, no quarto de despejo das buscas pré-cientificas e obscurantistas de significados ocultos, ao lado de confessores religiosos ¢ intérpretes de sonhos. Como diz Todd Dufresne? nenhuma figura na histéria do pensamento humano esteve mais errada acerca de todos os seus fundamentos ~ com excecio de Marx, acrescentariam alguns. Bra de se esperar que em 2005 0 es ‘candaloso Livro negro do comunismo; listando todos os crimes comunistas, fosse seguido pelo Livro negro da psicandlise, que listava todos os ertos tedricos ¢ as fraudes clinicas dos psi canalistas.* Dessa maneira negativa, pelo menos, a profunda solidariedade entre o marxismo e a psicandlise ¢ agora exi- bida a vista de todos. Ha algum sentido nessa oratéria fiinebre. Um século atris, para situar sua descoberta do inconsciente na historia da Europa moderna, Freud desenvolveu a ideia de trés hu: milhagées sucessivas softidas pelo homem, as trés “doengas narcisicas”, como as chamou. Primeiro Copérnico demons: trou que a Terra gira em torno do Sol, e assim privou-nos a Como ler Lacan és, seres humanos, do lugar central no Universo. Depois Darwin demonstrou que emergimos da evolugio cega, ¢ os tomou nosso lugar de honra entre os seres vivos. Final- mente, quando Freud descobriu o papel predominante do inconsciente em processos psiquicos, revelou-se que nosso eu no manda nem mesmo em sua propria casa. Hoje, um século depois, um quadro mais implacivel esta emergindo. Os tiltimos avangos cientificos parecem infligir uma série de humilhagées adicionais a imagem narcisica do homem: nossa ‘mente é uma mera méquina de calcular, processando dados; nosso senso de liberdade e autonomia é a ilusio do ususrio dessa maquina. A luz das ciéncias do cérebro, a propria psi canilise, longe de ser subversiva, parece antes pertencer a0 campo humanista tradicional ameacado pelas mais recentes humilhacées. Assim, sera que a psicandlise esta realmente obsoleta em nossos dias? Parece que sim, em trés niveis interligados: 1) 0 do conhecimento cientifico, em que o modelo cognitivista neurobiolégico da mente humana parece suplantar 0 modelo freudiano; 2) o da clinica psiquiatrica, em que 0 tratamento psicanalitico esta perdendo terreno rapidamente para pilulas € terapia comportamental; 3) 0 do contexto social, em que a imagem freudiana de uma sociedade e de normas sociais que reprimem as pulses sexuais do individuo nao soa mais como uma explicacdo valida para a permissividade hedonistica que hoje predomina Apesar disso, no caso da psicanilise o funeral talvez seja pre- maturo, celebrado para um paciente que ainda tem uma vida longa pela frente. Em contraste com as verdades “evidentes’ abracadas pelos criticos de Freud, meu objetivo é demonstrar Intreduedo que 56 hoje o tempo da psicanslise esta chegando. Vistos atra vés dos olhos de Lacan, através do que Lacan chama de seu “retorno a Freud”, os insights fundamentais de Freud emergem finalmente em sua verdadeira dimensio. Lacan compreendeu esse retorno como um retorno nao ao que Freud disse, mas 20 mago da revolucdo freudiana, da qual o préprio Freud no tinha plena consciéncia. Lacan iniciou sew “retorno a Freud” com a leitura lin- guistica de todo o edificio psicanalitico, sintetizada no que é talvez sua formula isolada mais conhecida: “O incons- ciente esté estruturado como uma linguagem.” A percepgio predominante do inconsciente & a de que ele é 0 dominio das pulses irracionais, algo oposto ao eu consciente ¢ ra ional, Para Lacan, essa nogio do inconsciente pertence a Lebensphilosophie (filosofia de vida) romantica e nada tem a ver com Freud. O inconsciente freudiano causou tama- nho escindalo nao por afirmar que o cu racional esta su. bordinado a0 dominio muito mais vasto dos instintos ir- racionais cegos, mas porque demonstrou como o proprio inconsciente obedece 4 sua propria gramatica e ldgica: 0 inconsciente fala e pensa. © inconsciente no é terreno exclusivo de pulsdes violentas que devem ser domadas pelo eu, mas o lugar onde uma verdade traumatica fala abertamente. Airteside a versio de Lacan do moto de Freud Wo es war, soll ich werden (Onde isso estava, devo advin): no “O en deveria conquistar 0 isso", o lugar das pulses inconscientes, mas “Eu deveria ousar me aproximar do lugar de minha verdade”. O ‘que me espera “ali” ndo é uma Verdade profunda com a qual devo me identificar, mas uma verdade insuportavel com a qual devo aprender a viver. Como ler Lacan Como, entdo, as ideias de Lacan diferem das escolas psicana- liticas convencionais de pensamento e do proprio Freud? Com relagio a outras escolas, a primeira coisa que chama a atengao € 0 teor filoséfico da teoria de Lacan. Para ele, fundamental: mente, a psicanilise nfo é uma teoria e técnica de tratamento de distarbios psiquicos, mas uma teoria e pritica que poe 08 individuos diante da dimensio mais radical da existénc humana. Ela néo mostra a um individuo como ele pode se acomodar as exigéncias da realidade social; em vez disso, ex- plica de que modo, antes de mais nada, algo como “realidade” se constitui. Ela nao capacita simplesmente um ser humano a aceitar a verdade reprimida sobre si mesmo; ela explica como a dimensio da verdade emerge na realidade humana. Na visio de Lacan, formacdes patologicas como neuroses, psicoses € Perversdes tém a dignidade de atitudes filoséficas fundamen. tais em face da realidade. Quando sofro de neurose obses. essa “doenca” colore toda a minha relago com a realidade e define a estrutura global de minha personalidade. A principal critica de Lacan a outras abordagens psicanaliticas diz respeito a sua orientagio clinica: para Lacan, 0 objetivo do tratamento Psicanalitico nao é o bem-estar, a vida social bem-sucedida ou a realizacao pessoal do paciente, mas levar o paciente a enfrentar as coordenadas ¢ os impasses essenciais de seu desejo. Com relacio a Freud, a primeira coisa que chama a aten¢io € que a chave usada por Lacan em seu “retorno a Freud” vem. de fora do campo da psicanélise: para descerrar os tesouros secretos de Freud, Lacan arregimentou uma tribo variada de teorias, da linguistica de Ferdinand de Saussure a teoria ma- temitica dos conjuntos ¢ as flosofias de Platio, Kant, Hegel e Heidegger, passando pela antropologia estrutural de Claude Introdugio Lévi-Strauss. Disto decorre que a maior parte dos conceitos essenciais de Lacan nio tem um equivalente na propria teoria freudiana: Freud nunca menciona a triade do imagindrio, sim- Dilico e real, munca fala sobre “o grande Outro” como a ordem, simbélica, fala de “eu’, no de “sujeto”. Lacan usa esses termos importados de outras disciplinas como instrumentos para fa zer distingSes que jé estdo implicitamente presentes em Freud, mesmo que ele nao tivesse conhecimento delas. Por exemplo, se a psicanilise € uma “cura pela fala’, se trata distibios pa toligicos somente com palavras, tem de se basear numa certa nosio de fala. A tese de Lacan & que Freud nio estava ciente da nocao de fala implicada por sua propria teoria e pratica, € que s6 podemos desenvolver essa nogo se nos referirmos & ingufstica saussuriana, 8 teoria dos atos de fala ¢ & dialética hegeliana do reconhecimento, © “retorno a Freud” de Lacan forneceu um novo alicerce te6rico para a psicandlise, com imensas consequéncias também pata o tratamento analitico, Controvérsia, crise € até escdndalo acompanharam Lacan a0 longo de toda a sua carreira. Ele no s6 foi obrigado a se desvincular da AssociagZo Internacional de Psicanélise (ver Cronologia), em 1963, como suas ideias pro- vocativas incomodaram muitos pensadores progressistas, de marxistas criticos a feministas. Embora seja usualmente perce- Dido ma academia ocidental como um tipo de pos-modernista ou desconstrucionista, Lacan escapa dos limites indicados por esses rétulos. Ao longo de toda a sua vida ele foi superando rétulos associados a seu nome: fenomenologista, hegeliano, heideggeriano, estruturalista, pés-estruturalista; ndo admira, ‘uma vez que 0 traco mais importante de seu ensinamento é a autocritica permanente. Como ler Lacan Lacan era um leitor e intérprete voraz; para ele, a propria Psicandlise € um método de leitura de textos, orais (a fala do Paciente) ou escritos. NZo hé mancira melhor de ler Lacan, ento, que praticar seu modo de leitura ¢ ler os textos de outros com Lacan. Assim, cada capitulo deste livro vai con frontar uma passagem de Lacan com um outro fragmento (de filosofia, de arte, de cultura popular e ideologia). A posicao lacaniana seré elucidada através da leitura lacaniana do outro texto, Outra caracteristica deste livro é uma vasta exclusio: ele ignora quase por completo a teoria de Lacan acerca do ue se passa no tratamento psicanalitico, Lacan foi antes de tudo um clinico, ¢ consideracées clinicas permeiam tudo o que ele escreveu e fez, Mesmo quando ele lé Plato, so To- més de Aquino, Hegel, Kierkegaard, é sempre para elucidar um problema clinico preciso. A propria ubiquidade dessas consideraces é 0 que nos permite exclui-las: precisamente Porque o clinico esti em toda parte, podemos contornar 0 Proceso € nos concentrar, em vez disso, em seus efeitos, no modo como ele colore tudo que parece nao clinico — esse € © verdadeiro teste de seu lugar central Em vez de explicar Lacan por meio de seu contexto his t6rico € tedrico, Como ler Lacan usaré o proprio Lacan para explicar nossas agruras sociais ¢ libidinais. Em vez de pro: nunciar um julgamento imparcial, este livro oferecera uma Jeitura partidaria ~ é parte da teoria lacaniana que toda ver- dade é parcial, O préprio Lacan, em sua leitura de Freud, exemplifica o poder dessa abordagem parcial. Em suas Notas para uma definigao de cultura, T.S. Eliot observa que ha mo- mentos em que a tinica escolha se da entre sectarismo e des. renga, momentos criticos em que a tinica maneira de manter Introduce uma religido viva é levar a cabo uma dissidéncia sectaria de seu corpo principal. Por meio dessa dissidéncia sectéria, dissociando-se do cadiver em deterioracio da Associacao Internacional de Psicandlise, Lacan manteve o ensinamento freudiano vivo. Cinquenta anos depois, compete a nés fazer ‘0 mesmo com Lacan,* * Uma observagio final: como este livro é uma introdugio a Lacan, focada emalguns de seus conceitos bisicos, e como este tépico & 0 foco de meu tra batho nas iltimas décadas, ngo houve meio de evitaralguma canibalizacio de meus livros jé publicados. Para compensa, tomei grande cuidado.em dat 8 cada uma dessas passagens emprestadas um novo desdobramento aqui 1. Gestos vazios e performativos: Lacan se defronta com a conspiragao da CIA Serd nesses dons, ou entdo nas senhas que neles harmonizam set contrassenso salutar, que comeca a linguagem com a lei? Pois esses dons ja sio simbolos, na medida em que simbolo quer di zer pacto e em que, antes de mais nada, eles sio significantes do pacto que constituem como significado: como bem se vé o fato de que 08 objetos da troca simbélica ~ vasos feitos para fcar vazios, excudos pesados demais para carregar, feixes que se ressecaro, langas enterradas no solo —sio desprovidos de uso por destinagio, sendo supérfluos por sua abundancia, Seré essa neutralizacio do significante a totalidade da natureza da linguagem? Tomada por esse valor, encontrariamos seu es boco nas gaivotas, por exemplo, durante a exibicio sexual, mate rializado no peixe que elas passam umas as outras de bico em bico, eno qual os etologistas ~ se realmente cabe ver nisso com eles 0 instrumento de uma agitacio do grupo que seria equivalente a uma festa — estariam perfeitamente justficados em reconhecer um simbolo* AS NOVELAS MEXICANAS S40 GRAVADAS num ritmo tao fre- nético (um episédio de 25 minutos por dia, todos os dias) que 08 atores sequer recebem o texto para aprender suas falas de antemo; usam mindsculos receptores em seus ouvidos que thes dizem o que fazer e aprendem a representar o que ouvem (Agora Ihe dé um tapa e diga que o odeia! Depois 0 abrace!...”) 16 Como ler Lacan Esse procedimento nos da uma imagem do que, segundo a percepsao comum, Lacan quer dizer com “o grande Outro”, A ordem simbélica, a constituicao nao escrita da sociedade, é a segunda natureza de todo ser falante: ela esta aqui, dirigindo e controlando os meus atos; é o mar em que nado, mas perma- rece essencialmente impenetrvel ~ nunca posso pé-la diante de mim e seguréla, 6 como se nés, sujeitos de linguagem, fa- lissemos ¢ interagissemos como fantoches, nossa fala e gestos ditados por algo sem nome que tudo impregna. Sera isso 0 mesmo que dizer que, para Lacan, nés, individuos humanos, somos meros epifendmenos, sombras sem nenhum poder real Proprio? Que nossa autopercepcdo como agentes livres auténo mos é uma espécie de “ilusdo do usuério” cegando-nos para o fato de que estamos nas maos do grande Outro que se oculta por tris da tela e puxa os cordes? Hi, no entanto, muitas caracteristicas do grande Outro que se perdem nessa nogo simplificada. Para Lacan, a realidade dos seres humanos é constituida por trés niveis entrelacados: © simbélico, o imaginério e 0 real. Essa triade pode ser preci- samente ilustrada pelo jogo do xadrez. As regras que temos de seguir para jogar sio sua dimensdo simbélica: do ponto de vista simbélico puramente formal, “cavalo” é definido apenas pelos movimentos que essa figura pode fazer. Esse nivel & cla- ramente diferente do imaginario, a saber, 0 modo como as. diferentes pecas sao moldadas e caracterizadas por seus nomes (rei, rainha, cavalo), € ficil imaginar um jogo com as mesmas regras, mas com um imagindrio diferente, em que esta figura seria chamada de “mensageiro’, ou “corredor”, ou de qualquer outro nome. Por fim, o real é todaa série complexa de circuns. ‘ancias contingentes que afetam o curso do jogo: a inteligéncia Gestos vazios ¢ performativos 7 dos jogadores, os acontecimentos imprevisiveis que podem confundir um jogador ou encerrar imediatamente o jogo. © grande Outro opera num nivel simbélico. De que, entio, se compée a ordem simbélica? Quando falamos (ou quando ouvimos), nunca interagimos simplesmente com outros; nossa atividade de fala € fundada em nossa aceitagio e dependéncia cde uma complexa rede de regrase outros tipos de pressupostos. Primeiro ha as regras da gramitica, que tenho de dominar de ‘maneira cega e espontinea: se eu tivesse de ter essas regras em ‘mente © tempo todo, minha fala se desarticularia. Depois hao Pano de fundo de participar do mesmo mundo/vida que per ‘ite que eu € meu parceiro na conversa¢do compreendamos lum ao outro. As regras que eu sigo estio marcadas por uma profunda divisdo: ha regras (esignificados) que sigo cegamente, porhabito, mas das quais, se reflito, posso me tornar ao menos parcialmente consciente (como as regras gramaticais comuns); € haregras que ignoro que sigo, significados que ignoro que me erseguem (como ptoibicdes inconscientes) E hd regras e signi ficados cujo conhecimento nao devo revelar que tenho ~ insinu: ages sujas ou obscenas que silenciamos para manter 0 decoro, © espaco simbélico funciona como um padtio de compa ragZo contra o qual posso me medir. £ por isso que o grande Outro pode ser personificado ou reificado como um agente ‘inico: 0 “Deus” que vela por mim do além, e sobre todos os individuos reais, ou a Causa que me envolve (Liberdade, Co- munismo, Nacio) ¢ pela qual estou pronto a dar minha vida Enquanto falo, nunca sou meramente um “pequeno outro” (in- dividuo) interagindo com outros “pequenos outros”: o grande Outro deve sempre estar la. Essa referéncia inerente ao Outro € 0 t6pico de uma piada infame sobre um pobre camponés 8 Como ter Lacan que, tendo sofrido um naufragio, vé-se abandonado numa ilha com, digamos, a Cindy Crawford. Depois de fazer sexo com ele, ela Ihe pergunta como foi; sua resposta é “Foi étimo”, mas ele ainda tem um favorzinho a pedir para completar sua satisfa- do: poderia ela se vestir como seu melhor amigo, usar calgas pintar um bigode no rosto? Ele Ihe garante nao ser um per- vertido enrustido, como ela verd assim que lhe fizer o favor. Quando ela o faz, ele se aproxima dela, dé-the um tapinha nas costas ¢ The diz. com o olhar malicioso da cumplicidade masculina: “Sabe 0 que me aconteceu? Acabo de transar com a Cindy Crawford!” Esse Terceiro, que esta sempre presente como a testemunha, nega a possibilidade de um prazer privado inocente ¢ intacto. O sexo é sempre minimamente exibicio- nista e depende do olhar de outrem. Apesar de todo o seu poder fundador, o grande Outro € frégil, insubstancial, propriamente virtual, no sentido de que seu status é o de um pressuposto subjetivo. Ele s6 existe na medida em que sujeitos agem como se ele existisse, Seu status é semelhante ao de uma causa ideol6gica como Comunismo ou Nacdo: ele é a substancia dos individuos que se reconhecem nele, o fundamento de toda a sua existéncia, o ponto de refe- réncia que fornece o horizonte supremo de significado, algo pelo qual esses individuos esto prontos a dar suas vidas; no entanto, a tinica coisa que realmente existe slo esses indivi duos ¢ suas atividades, de modo que essa substancia é real apenas na medida em que individuos acreditam nela e agem de acordo com isso. f por causa do carter virwual do grande ‘Outro que, como Lacan bem expressou no final do seu “Semi- nario sobre ‘A carta roubada”, uma carta sempre chega a0 seu destino, Podemos dizer até que a tnica carta que chega Gest vazios eperformativos 9 completa e efetivamente ao seu destino é a carta nfo enviada — seu verdadeiro destinatario nao so outros de carne € 0ss0, ‘mas 0 proprio grande Outro. A conservagao da carta ndo enviada é sua caracteristica impres. Sionante, Nem a escrita nem o envio sio notiveis (com frequéncia fazemos rascunhos de cartas ¢ 0s jogamos fora), mas sim 0 gesto de guardar a mensagem quando no temos nenhuma intencio de envid-la, Ao guardar a carta, nds a estamos enviando de algum modo, afinal. Nao estamos abandonando nossa ideia ou rejei: tundo-a coma tola ou despreaivel (como fazemos ao rasgar uma carta); a0 contrario, estamos the dando um voto de confianca extra, Estamos, na verdade, dizendo que nossa ideia é preciosa demais para ser confiada ao olhar do destinatitio real, que pode io compreender seu valor, de modo que a “enviamos” a seu equivalente na fantasia, em quem podemos confiar completa. mente para uma leitura compreensiva e apreciativa® Nao se passa exatamente o mesmo com o sintoma no sen: tido freudiano do termo? Segundo Freud, quando desenvolvo um sintoma, produzo uma mensagem codificada sobre meus segredos mais intimos, meus desejos e traumas inconscientes. ( destinatirio do sintoma nao é um outro ser humano real antes que um analista decifre meu sintoma, nao ha ninguém ‘que possa ler sua mensagem. Entdo quem é o destinatario do sintoma? O tinico candidato que resta é 0 grande Outro virtual, Esse cardter virtual do grande Outro significa que a ordem simbélica ndo é uma espécie de substancia espiritual que exista independentemente de individuos, mas algo que é sustentado pela continua atividade deles. No entanto, a origem do grande Como ler Lacan Outro ainda esta obscura. Como € que, quando individuos trocam simbolos, eles nao interagem simplesmente um com. © outro, mas sempre se referem também ao grande Outro virtual? Quando falo sobre a opiniao de outras pessoas, nunca € somente uma questo do que eu, vocé ou outros individuos pensam, mas também do que um “alguém’” impessoal pensa Quando violo uma regra de decéncia, munca faco apenas o que a maioria dos outros ndo faz — fago 0 que nfo “se” faz. Isto nos leva a densa passagem com que abrimos este capi tulo: nela, Lacan prop6e nada menos que uma narrativa da génese do grande Outro. Para Lacan, a linguagem ¢ um pre- sente to perigoso para a humanidade quanto o cavalo foi para 08 troianos: ela se oferece pata nosso uso gratuitamente, mas, depois que a aveitamos, ela nos coloniza. A ordem simbélica emerge de um presente, uma oferenda, que marca seu conteti- do como neutro para fazer-se passar por um presente: quando um presente ¢ oferecido, 0 que importa nao é seu contetido, ‘mas 0 vinculo entre 0 que presenteia ¢ 0 que recebe estabe. lecido quando o que recebe aceita o presente. Lacan chega mesmo a se envolver aqui num pouco de especulagao sobre etologia animal: as andorinhas-do-mar que apanham um peixe € 0 passam de bico em bico (como se para deixar claro que 0 vinculo estabelecido dessa maneira é mais importante do que quem vai finalmente ficar com o peixe e comé-lo) envolvem-se efetivamente numa espécie de comunicagio simbélica, ‘Todos os que amam sabem disto: para que um presente sim bolize meu amor, deve ser imitil, supérfluo em sua propria abundancia ~ somente assim, com seu valor de uso suspenso, ele pode simbolizar meu amor. A comunicago humana & caracterizada por uma reflexividade irredutivel: cada ato de Gestos vazios ¢performativos comunicacdo simboliza simultaneamente o fato da comuni- cacao. Roman Jakobson chamou esse mistério fundamental da ordem simbélica propriamente humana de “comunicagio fitica”: a fala humana nunca transmite meramente uma men- sagem; ela sempre afirma também, autorreflexivamente, 0 acto simbélico basico entre os sujeitos comunicantes. © nivel mais elementar de troca simbélica é 0 chamado “gesto vazio", um oferecimento feito para ser rejeitado ou des- tinado a sé-lo, Brecht deu uma expressio pungente a essa carac teristica em sua peca Jasager, em que um menino € solicitado 4 concordat livremente com 0 que de todo modu seri o seu destino (ser jogado no vale); como explica seu professor, é cos tume perguntar a vitima se ela concorda com sua sorte, mas também é costume que a vitima diga sim. O pertencimento a uma sociedade envolve um ponto paradoxal em que cada um de nés & obrigado a abracar livremente, como resultado de nossa escolha, 0 que de todo modo nos € imposto (todos nés devemos amar nosso pais, nossos pais, nossa religiao). Esse pa radoxo de querer (escolher livremente) 0 que é compulsério, de fingir (mantendo as aparéncias) que ha uma livre escolha embora efetivamente nao haja, é estritamente codependente com a nocio de um gesto simbélico vazio, um gesto — um oferecimento ~ que se destina a ser rejeitado. Algo similar ocorre em nossos cédigos cotidianos de com portamento. Quando, apés ser envolvido numa competigao feroz. com meu maior amigo por uma promocio no emprego, acabo ganhando, a coisa adequada a fazer é ofetecer-me para abrir mao da promocao, de modo que ele a obtenha, e a coisa adequada para ele fazer é rejeitar meu oferecimento ~ desse modo, talvez, nossa amizade possa ser salva. O que temos Comoler Lacan aqui é troca simbélica em sua forma mais pura: um gesto feito apenas para ser rejeitado. A magica da troca simbélica é que, embora no fim estejamos onde estévamos no inicio, hé um. ganho nitido para ambas as partes em seu pacto de solida: tiedade. O problema, é claro, surge: ¢ se a pessoa a quem se faz 0 oferecimento para ser rejeitado realmente o aceitar? E se, tendo perdido a competicdo, eu aceitar o oferecimento de ‘meu amigo para no fim obter a promogio, em vez dele? Uma situagdo como essa é propriamente catastréfica: ela causa a desintegragao da aparéncia (de liberdade) que pertence & or- dem social, o que é igual a desintegracdo da propria substancia social, & dissolucao do vinculo social. A nogo do vinculo social estabelecido por meio de gestos vazios nos permite definir de maneira precisa a figura do so- ciopata: 0 que esté além da compreensao do sociopata é 0 fato de que “muitos atos humanos sio praticados ... no interesse da propria interagdo"?” Em outras palavras, o uso da linguagem pelo sociopata corresponde paradoxalmente & nocio corrente ¢ sensata de linguagem como um meio puramente instrumental de comunicacio, como sinais que transmitem significados. Ele usa a linguagem, nao é envolvido nela, ¢ é insensivel a dimen- sto performativa, Isto determina a atitude de um sociopata em relacdo a moralidade: embora ele seja capaz de discernir as regras morais que regulam a interacZo social, e até de agir ‘moralmente na medida em que verifica que isso serve aos seus objetivos, faltathe o senso visceral do certo e do errado, a nogio de que simplesmente ndo podemos fazer algumas coi: sas, independentemente das regras sociais externas. Em suma, ‘um sociopata pratica verdadeiramente a nocio de moralidade desenvolvida pelo utilitarismo, segundo a qual moralidade Gestos vazios €performativos Ey designa um comportamento que adotamos ao calcular inteli- gentemente nossos interesses (ao fire a0 cabo, todos nés nos beneficiamos se tentarmos contribuir para o prazer do maior ‘ntimero possivel de pessoas): para ele, moralidade é uma teoria que aprendemos ¢ seguimos, no algo com que nos identifica- ‘mos substancialmente. Fazer 0 mal é um erro de célculo, néo umato culpével. Por causa dessa dimensdo performativa, cada escolha com que nos defrontamos na linguagem é uma metaescolha, isto 6, uma escolha da prépria escolha, uma escolha que afeta € ‘muda as préprias coordenadas de meu esculher. Lembremos a situacZo cotidiana em que meu parceiro (sexual, politico ou financeiro) quer que facamos um trato; 0 que ele me diz basi: camente é: “Por favor, eu realmente o amo. Se ficarmos juntos nesta, serei totalmente dedicado a vocé! Mas cuidado! Se vocé ‘me rejeitar, posso perder o controle e desgragar a sua vidal” O ardil aqui, é claro, € que nao sou simplesmente confrontado comma escolha clara: a segunda parte desta mensagem solapa a primeira ~ alguém que esté pronto para me prejudicar se eu © contrariar no pode realmente me amar e estar devotado a minha felicidade, como afirma. Portanto, a verdadeira esco- tha com que me defronto contradiz seus termos: édio, ou pelo ‘menos uma fria indiferenca manipuladora em relagio a mim, std subjacente a ambos os termos da escolha. Ha também uma hipocrisia simétrica, que consiste em dizer: “Eu 0 amo e aceito qualquer escolha que faca; assim, mesmo que (vocé sabe disso) sua escolha me arruine, por favor escolha o que realmente quer, endo leve em conta como isso vai me aferar!” A falsidade mani Puladora deste oferecimento, é claro, reside no modo como usa sua “sincera” insisténcia de que eu posso dizer “no” como uma Como ler Lacan pressio adicional sobre mim para que eu diga "sim": “Como pode me recusar, quando 0 amo to completamente? Podemos ver como, longe de conceber o simbélico que rege 4 percepgdo e a interacdo humana como uma espécie de a Priori transcendental (uma rede formal, dada de antemio, que limita © ambito da prética humana), Lacan esta interessado precisamente em como os gestos de simbolizacao estio entre- lagados com o processo de pritica coletiva e engastados nele. 0 que Lacan clabora como o “momento duplo” da fengao sim- bélica vai muito mais longe que a teoria corrente da dimensio performativa da fala tal como desenvolvida na tradizio de J. Austin a John Searle: A fungio simbélica apresenta-se como um duplo movimento no sujeito: o homem faz de sua aco um objeto, mas para a ela de. volver em tempo habil seu lugar fundador. Nesse equivoco que ‘opera a todo instante, reside todo o progresso de uma ‘uncao em ue se alternam a a¢io ¢ o conhecimento* (© exemplo histérico evocado por Lacan para clarificar esse “movimento duplo” ¢ indicativo em suas referéncias ocultas: primeiro tempo, o homem que trabalha na producio em nossa sociedade inclui-se na categoria dos proletérios; segurdo tempo, em nome desse vinculo, ele faz greve geval? Arreferéncia (implicita) de Lacan aqui € a Histéria e consci- éncia de classe, de Georg Lukics, obra marxista ckissica de 1923 ccuja tradugio francesa amplamente aclamada foi publicada em ‘meados dos anos 50. Para Lukics, a consciéncia opée-se a0 estos vazios ¢ performativos 2s ‘mero conhecimento de um objeto: o conhecimento é externo 0 objeto conhecido, a0 passo que a consciéncia é “pritica” em si mesma, um ato que muda seu proprio objeto. (Depois que um trabathador “inclui-se na categoria dos proletarios’, isso muda sua propria realidade: ele age de maneira diferente) Fa ‘zemos alguma coisa, consideramo-nos (declaramo-nos) aquele que fez aquilo, e, com base nessa declaracio, fazemos algo novo: a transformago subjetiva ocorre no momento da de- claragdo, nfo no momento do ato. Esse momento teflexivo de declaracio significa que toda declaragio nao s6 transmite algum contetido, mas, simultaneamente, transmite 0 modo como 0 sujeito se relaciona com esse contetido. Mesmo os objetos € atividades mais prosaicos sempre contém essa dimensio de clarativa, que constitui a ideologia da vida cotidiana, Nunca deveriamos esquecer que a utilidade funciona como uma no- do reflexiva: sempre envolve a afirmacio de utilidade como significado, Um homem que mora numa cidade grande e pos- sui um Land-Rover (para o qual obviamente nao tem uso) no Jevasimplesmente uma vida despojada, pritica; na verdade, ele ossui um carro como esse para indicar que leva sua vida sob 0 signo de uma atitude despojada, pritica, Usar jeans desbotados ¢ indicar uma certa atitude em relagio a vida. O mestre supremo desse tipo de andlise foi Claude Lévi ‘Strauss, para quem a comida era também um “alimento para a reflexdo”. Os trés principais modos de preparacio de alimentos (cru, assado, cozido) funcionam como um triingulo semidtico: 16s 0s usamos pata simbolizar a oposicio basica entre a natu: reza(“cru’)¢ a cultura (“assado”), bem como a mediacao entre (08 dois opostos (no procedimento do cozimento). Ha uma cena memoravel em O fantasma da liberdade, de Bufiuel, em que 26 Como ler Lacan as relacdes entre comer e evacuar so invertidas: as pessoas se sentam em suas privadas em volta da mesa, conversando agradavelmente, e quando querem comer perguntam baixinho aempregada: “Onde & aquele lugar... sabe?” e se ditigem sorra- teiramente a um quartinho nos fundos. Como um saplemento a Lévi-Strauss, somos tentados a propor que merda também pode servir como “alimento para a reflexio”: os trés tipos ba- sicos de privada no Ocidente formam uma espécie de contra onto excremental para o triingulo culindrio de Lévi-Strauss. Numa privada alema tradicional, o buraco por once a merda desaparece depois que damos descarga fica muito para frente, de modo que ela primeiro fica exposta para que possamos cheiré-la e examiné-la a procura de sinais de alguma doenga; na privada francesa tipica, 0 buraco fica bem atris, de modo que a merda desaparece assim que possivel; por fim, a privada americana apresenta uma espécie de sintese, uma mediacao entre esses dois polos opostos — a bacia da privada é cheia de gua, de modo que a merda flutua ali, visivel, mas nao para serinspecionada. Nao admira que, na famosa discussao sobre diferentes privadas europeias no infcio de seu semiesquecido ‘Medo de voar, Erica Jong afirme zombeteiramente cue “as pri- vadas alemas séo realmente a chave para horrores do Terceiro Reich. Pessoas que constroem privadas assim sio capazes de qualquer coisa.” £ claro que nenhuma dessas verses pode ser explicada em termos puramente utilitarios: certa percep- do ideolégica de como o sujeito deveria se relacionar com 0 desagradavel excremento que sai de dentro de seu corpo é claramente discernivel nelas. Hegel foi um dos primeiros a interpretar a trlade geogréfica de Alemanha-Franca-Inglaterra como expresso de trés dife- Gesios vazios ¢ performativas 7 entes atitudes existenciais: a meticulosidade reflexiva alema, a impetuosidade revolucionéria francesa, o pragmatismo uti litario moderado inglés. Em termos de postura politica, essa triade pode ser interpretada como conservadorismo alemio, radicalismo revoluciondrio francés ¢ liberalismo moderado in- glés; em termos da predominancia de uma das esferas da vida social, a metafisica e a poesia alemias versus a politica francesa © a economia inglesa, A referéncia as privadas nos permite discernir a mesma triade no dominio intimissimo de efetuar a fungdo excrementicia: fascinacao contemplativa ambigua; a tentativa apressada de se livrar do excesso desagradavel u mais rapido possivel; a abordagem pragmitica que trata 0 excesso como um objeto comum que deve ser descartado de maneira apropriada, facil para um académico afirmar numa mesa redonda que vivemos num universo pés-ideolégico ~ assim que ele visitar o toalete apés a acalorada discussio, estar de novo afundado até os joelhos na ideologia. Essa dimensio declarativa da interacdo simbélica pode ser exemplificada por meio de uma situagdo delicada nas relagées humanas. Imagine um casal com um acordo tacito de que po- dem se envolver em casos extraconjugais discretos. Se, de re- pente, o marido fala abertamente com sua mulher sobre um caso em curso, ela teré motivo para entrar em panico: “Se & apenas um caso, por que ele est me contando isso? Deve ser algo mais” O ato de relatar algo publicamente nunca é neutro: le afeta 0 préprio contetido relatado, e mesmo que os parceiros nao aprendam nada de novo por meio dele, ele muda tudo. Hi também uma grande diferenca entre o parceito simplesmente nao falar sobre aventuras secretas e declarar explicitamente que no falard sobre elas (“Vocé sabe, acho que tenho o direito de no 28 Como ler Lacan Ihe contar sobre todos os meus contatos; hé uma parte da mi: nha vida que ndo Ihe diz respeito!”). No segundo caso, quando © pacto silencioso é explicitado, essa declaragao nao pode deixar de emitir ela propria uma mensagem agressiva adicional. O que esté em pauta aqui é o hiato irredutivel entre o conte ‘ido enunciado ¢ 0 ato de enunciago que é préprio da fala hu- ‘mana, Na academia, uma maneira polida de dizer que achamos a intervencio ou a palestra de nosso colega esttipida é dizer: “Foi interessante.” Assim, se em vez disso dizemos abertamente a0 nosso colega: “Isso foi entediante e estiipido”, ele ter todo O direito de se sentir surpreso e perguntar: “Mas se vocé achou entediante e estipido, por que nao diz simplesmente que foi interessante?” O infeliz colega est certo ao tomar a afirma- $40 direta como envolvendo algo mais, ¢ nio sé como um comentario sobre a qualidade de seu artigo, mas um ataque a sua propria pessoa, Exatamente a mesma coisa ndo valeria para a franca admis- sdo de tortura por altos representantes administrativos dos Estados Unidos? A resposta comum e aparentemente convin: cente aqueles que se preocupam com a recente pritica dos Es- tados Unidos de torturar prisioneiros suspeitos de terrorismo & “Por que todo esse estardalhaco? Os Estados Unidos esto apenas admitindo abertamente o que nao s6 eles, mas tam ‘bém outros Estados, fazem e vem fazendo o tempo todo. No minimo, temos menos hipocrisia agora!” Mas isso sugere uma contrapergunta simples: “Se os altos representantes dos Esta: dos Unidos querem dizer apenas isso, por que falam agora? Por ue nao permanecem simplesmente em siléncio, como vinham, fazendo antes?” Quando ouvimos pessoas como Dick Cheney fazendo afirmagdes obscenas sobre a necessidade da tortura, Gestos vazios ¢performativas 29 deveriamos Ihes perguntar: “Se voces querem apenas torturar suspeitos de terrorismo em segredo, por que esto dizendo isso publicamente?” Quer dizer, a pergunta a ser suscitada &: © que mais hé nessa declaracio, a ponto de levé-los a fazé-la? © mesmo se aplica a versio negativa de uma declaracio: nao menos que 0 ato supérfluo de mencionar, o ato de ndo mencionar ou ocultar alguma coisa pode criar significado adi cional. Quando, em fevereiro de 2003, Colin Powell discursou na assembleia da ONU para defender o ataque ao Iraque, a delegacdo dos Estados Unidos pediu que a grande reprodugio de Guernica de Picasso na parede atris da tribuna fosse coberta com um ornamento visual diferente, Embora a explicacio ofi- cial fosse que Guernica nao fornecia 0 pano de fundo visual adequado para a transmissio televisiva do discurso de Powell, ficou claro para todos 0 que a delegacao dos Estados Unidos ‘emia: que Guernica, que imortaliza os resultados catastr6ficos do bombardeio aéreo alemao A cidade espanhola durante a guerra civil, desse origem a “associagdes do tipo errado” se servisse como pano de fundo para o discurso de Powell defen: dendo 0 bombardeio do Traque pela forca aérea muito supe rior dos Estados Unidos. isso que Lacan quer dizer quando afirma que o recalque ¢ 0 retorno do recalcado so um tinico mesmo processo: se a delegacio dos Estados Unidos tivesse se abstido de pedir seu ocultamento, provavelmente ninguém associaria o discurso de Powell 4 pintura exibida atris dele. Foi precisamente esse gesto que chamou atencdo para a associagao € confirmou sua veracidade. Lembremos a figura singular de James Jesus Angleton, 0 supremo combatente da Guerra Fria, Durante quase duas dé. cadas, até 1974, ele chefiou a segdo de contrainformacao da 30 Como ter Lacan CIA, coma tarefa de descobrir agentes duplos em suas fileiras. Angleton, uma figura carismatica, extremamente idiossinerd tico, culto e instruido (foi amigo pessoal de ''S. Eliot, com quem até se parecia fisicamente), era propenso a paranoia. A remissa de seu trabalho era sua crenca absoluta na chamada Conspiracio-Monstro: uma gigantesca farsa coordenada por uma “organizacio (secreta] dentro da organizacio” da KGB ccujo objetivo era penetrar ¢ dominar totalmente a rede ociden- tal de informacio e assim promover a derrota do Ocidente. Por essa razio, Angleton rejeitou como falsos desertores pratica mente todos os desertores da KGB que ofereciam informacio inestimavel, ¢ algumas vezes chegou até a mandé-los de volta para a URSS (onde eram levados a julgamento e fuzilados, ja que cram verdadeiros desertores). O resultado final do reinado de Angleton foi a total paralisia ~ muito significativamente, em seu tempo, nenhum verdadeiro agente duplo foi desco berto e detido, Nao admira que Clare Petty, um dos funcioné ios mais graduados da secdo de Angleton, tenha levado a para- noia de seu chefe a seu climax logico autonegador a0 concluir, ‘apés uma longa ¢ exaustiva investigacdo, que Anatoli Golitsyn (@ desertor russo com quem Angleton se envolveu numa ver: dadeira folie d deux, loucura compartilhada) era uma fraude € © proprio Angleton, o grande agente duplo que conseguira Paralisar 0 servigo secreto antissoviético dos Estados Unidos Somos tentados a levantar a questo: ¢ se Angleton fosse uum agente duplo justificando sua atividade pela procura de um agente duplo (de si mesmo, na versio da vida real da trama de Sem saida de Kevin Costner) E se a verdadeira Conspiragio. Monstro da KGB fosse 0 proprio projeto de pér em jogo a ideia de uma Conspiragio-Monstro e assim imobilizar a CIA e nev- Gestos sazos e performativos x alizar de antemao quaisquer futuros desertores da KGB? Em ambos os casos, a fraude final assumia a aparéncia da propria verdade: havia uma Conspiragio-Monstro (era a propria ideia da Conspiracio-Monstro); havia um agente duplo no coracio da CIA © proprio Angleton). Ai reside a verdade da postura paranoica: ela propri trama destrutiva contra a qual esta lutando. A sagacidade dessa solugdo — e a condenacio final da paranoia de Angleton ~ & que nao importa se Angleton era apenas sinceramente logrado pela ideia de uma Conspi. ragio-Monstro, ou se era o agente duplo: em ambos os casos, o resultado é exatamente o mesmo. O logro esteve em nossa incapacidade de incluir na lista de suspeitos a propria ideia de desconfianca (globalizada) Lembremos a velha histéria de um operario suspeito de furto: toda noite, quando ele deixava a fabrica, 0 carrinho de mao que ele empurrava a frente de si era cuidadosamente ins pecionado, mas os guardas no conseguiam encontrar nada ali, estava sempre vazio. Até que eles se deram conta: 0 que © operirio estava roubando eram carrinhos de mio. Essa pe- culiaridade reflexiva pertence a comunicagio como tal: néo devemnos esquecer de incluir no conteiido de um ato de co- municagio 0 proprio ato, jé que o significado de cada ato de comunicagao é também afirmar reflexivamente que ele é um ato de comunicacio, Esta ¢ a primeira coisa a se ter em mente com rela¢o ao modo como 0 inconsciente opera: a coisa nao esti escondida no cartinho de mao, ela é o proprio cartinho de mao. 2. O sujeito interpassivo: Lacan gira uma roda de oracées ©.Coro, o que é Dirthes-do ~ Sio voces. Ou entdo — Nao sao voc. A questdo nao é essa, ‘Trata-se de meios, meios emocionais. Eu diria - 0 Coro sio pess que se emocionam. Portanto, observem-no duas vezes antes de dizerem que so ‘as emogbes de voces que estdo em jogo nessa purificagio. Elas esto em jogo quando, no final, nao apenas elas, mas muitas ‘outras devem ser, por meio de algum artificio, apaziguadas. Mas nem por isso elas so colocadas diretamente em jogo. Sem mas uma questo er afirmado através s € atos depravados (pecaminosos? E se, para reinar, aleitiver de se basear na acio reciproca de embustese enganos? isso que Lacan tem em ‘mente com sua proposi¢do paradoxal n'y a pas de rapport sexuel [Nao existe relacdo sexual I situa #0 de Bertram durante a noite de amor néo era o destino da Imaloria dos casas casados? Vocé faz amor com sua parceia le sitima enquanto esté“enganando em sua mente’, fantasands estar fazendo amor com uma outra parceira, A relagio sexual real tem de ser sustentada por esse suplemento fantasistico Como gostais propde uma versio di liferente dessa logica do duplo embuste. Orlando esté apaixo nado por Rosalinda, que, Para testar 0 amor dele, disfarcase como Ganimedes ¢, na condigao de um companheiro masculino, interroga Orlando Sobre o seu amor. Ela chega a asumir a personalidade de Ro. salinda (num duplo mascaramento, finge ser ela mesma, ser Ganimedes que faz de conta que é Rosalinda) ¢ convence sus amiga Celia (disfargada como Aliena) a ca nia simulada, Nessa ceriménia, fingir ser o que ela €: a propria ve ‘encenada numa dupla impostura Jos numa cerimd- Rosalinda literalmente finge dade, para vencer, tem de set ~de modo andlogo a Bem esti © aue bem acaba, em que o casamento, para ser afirmado, tem de ser consumado sob a aparéncia de um caso extraconjugal. A aparéncia se sobrepée de maneira semelhante a verdade puma autopercepeio ideolégica. Lembremos a brilhante an- lise de Marx de como, na revolusio francesa de 1848, 0 Partido 4a Ordem, conservador-republicano, funcionava como uma 0 sujeito perverso da politica coalizdo das duas facgdes do realismo (orleanistas e legitimis. tas) no “reino andnimo da Repiblica”*¥ O deputados do Par. iblicanismo como uma troga: ido da Ordem percebiam seu repul ‘ m debates parlamentares, cometiam atos falhos republicanos er arlamentares, : ¢zombavam da Repablica para deixar que se soubesse que se verdadeito objetivo era restaurar a monarquia. O que mio sa biam era que eles proprios se enganavam quanto ao verdadeiro impacto social de seu governo. Sem o saber, eles estabelece- ram as condigdes da ordem republicana que tanto despreza vam (por exemplo, ao garantir a seguranga da propriedade privada). Assim, nao é que fossem realistas que apenas usavam ‘uma mdscara republicana: embora se experimentassem como tais, era sua convicgao realista “interior” que era a fachada enganosa mascarando seu verdadeiro papel social. Em suma, Jonge de ser a verdade oculta de seu republicanismo piiblico, seu realismo sincero era 0 financiador fantasistico de seu real scan sxdo em sua atividade. nublicanismo — era o que fornecia a pail No € 0 caso, entio, de dizer que os deputados do Partido da Ordem estavam também fingindo fingir ser republicanos, para 0 que realmente eram? forma mais radical? Imagine um homem que est tendo um caso sem que sua mulher o saiba. Quando vai se encontrar com a amante, ele finge estar numa viagem de negécios ou algo do género. Depois de algum tempo, ele toma coragem de contar a verdade a sua mulher: que quando esta fora, esta de fato com a amante. Nesse ponto, contudo, quando a fachada do casamento feliz se desintegra, a amante fica perturbada €, por compaixao pela esposa abandonada, evita se encontrar com seu amante. O que deveria o marido fazer para nao dar & 140 Como ler Lacan sua mulher o sinal errado? Como pode impedila de concluir que 0 fato de ele estar fazendo menos viagens de negécios significa que ele est4 retornando para ela? Ele tem de fingir © caso ¢ sair de casa por uns dias, gerando a falsa impressio de que o caso continua, quando de fato esta apenas se hospe dando com algum amigo. Isso ¢ aparéncia em sua forma mais Pura: ela ocorre ndo quando erguemos uma tela enganosa ara ocultar uma transgressio, mas quando fingimos que ha uma transgressdo a ocultar. Nesse sentido preciso, a propria fantasia é uma aparéncia para Lacan: ela no é primariamente @ mascara que oculta o real sob si, mas sim a fantasia do que esta escondido por tras da mascara, Assim, por exemplo, a fantasia masculina fundamental relativamente a mulher nao € sua aparéncia sedutora, mas a ideia de que essa aparéncia deslumbrante esconde algum mistério imponderével. Para demonstrar a estrutura desse engano duplicado, Lacan Jembrou a historia da competicdo, na Grécia Antiga, entre os Pintores Zéuxis e Parrisio, para ver quem conseguiria pintar 8 ilusio mais convincente.** Zéuxis produziu uma imagem de vas to realista que passarinhos famintos tentaram bicé-las. Par ‘ésio venceu pintando uma cortina na parede de seu quarto ~ a0 the fazer uma visita, Zéuxis pediu: “Por favor, abra a cortina e ‘mostre-me o que pintou!” Na pintura de Zéuxis, a ilusio era tio convincente que a imagem foi tomada pela coisa real: na pintura de Parrisio, a ilusio residia na propria noclo de que o que o es- pectador via era uma cortina trivial encobrindo a verdade oculta Para Lacan, essa é também a fungo da mascarada feminina: a mulher usa uma mascara para nos fazer reagir como Zéuxis diante da pintura de Parrasio: Estd cert, tie a mascara e mostre quem vocé realmente é! Do mesmo modo, podemos imaginar Or O sujito perverso da politica ut lando, depois da falsa ceriménia de casamento, vitando-se para Rosalinda-Ganimedes ¢ dizendo-Ihe: “Voce representou Rosa linda to bem que quase me fe acreditar que era ela; agora pode voltar ao que é € ser Ganimedes de novo.” Nao é por acaso que os agentes desses duplos disfarces so sempre mulheres: um Pe ‘mem pode apenas fingir ser uma mulher; s6 uma mulher pode fingir ser um homem que est fingindo ser uma mulher, pon s6 uma mulher € capaz de fngir sero que é~ ser uma mulher. Para explicar esse status especificamenteferinino da sim lacio, Lacan refere-se a uma mulher que usa um pénis falso escondido para comunicar que ela € um falor Assim é a mulher por tras de seu véu: & a auséncia do pénis que faz dela o falo, objeto do desejo, Evoquem essa auséncia de ma neira mais precisa, fazendo-a usar ur mimoso postigo debaixo do trayvestido de baile a fantasia, ¢ vocés, ou sobretudo ela, verdo {que tenho razio:” A légica aqui € mais complexa do que pode parecer: nao apenas que o penis obviamente falso evoca a auséncia do pénis “eal”; num paraleloestrito com a pintura de Parrisio a primeira reacio do homem ao ver os contornos do falso pénis & “Tire fora essa ridicula fasificacio e mostre-me o que vocé tem por aixo!” Com isso o homem deixa de perceber como 0 falso pé- é, € a sombra gerada nis € a coisa real: o “falo”, que a mulher , € 2 pelo falso pénis,ie., 0 espectro do falo “real” nao existente a 6 disfarce do falso falo, Nesse sentido preciso, a mascarada fe minina tem a estrutura da imitacio, uma vez que, para Lacan, 1a imitagio eu nao imito a imagem em que quero me encaixar, ‘mas aquelas caracteristicas da imagem que parecem indicar que ua Como er Lacan ha alguma realidade oculta por tras. Como com Parrisio, no {mito as uvas, mas o véu: “O mimetismo di a ver algo enquanto Aistinto do que poderiamos chamar um ele-mesmo que esté por trds."** O status do proprio falo € o de uma imitacio. O falo é em tltima andlise uma espécie de bortdo no corpo humano, lum trago excessivo que nio se encaixa no corpo e assim gera a ilusio de uma outra realidade oculta atrés da imagem. Isto nos leva de volta perversio. Para Lacan, um perverso no € definido pelo contetido do que esté fazendo (suas praticas sexuais estranhas) A perversdo, fundamentalmente, reside na estrutura formal de como o perverso se relaciona com a ver dade ¢ a fala. O perverso reivindica acesso direto a algumas figuras do grande Outro (que vai de Deus ou da histéria a0 desejo de seu parceiro), de modo que, dissipando todas as am- biguidades da linguagem, ele seja capaz de agir diretamente como 0 instrumento da vontade do grande Outro. Nesse sentido, tanto Osama Bin Laden quanto o presidente Bush, embora adversirios politicos, partilham as estruturas de um erverso. Ambos agem com base no pressuposto de que seus atos so diretamente ordenados e guiados pela vontade divina. A recente maré de fundamentalismo religioso nos Estados Unidos ~ cerca da metade dos adultos no pais tém crencas que Podem ser consideradas “fundamentalistas” - é sustentada pela predomindncia de uma economia libidinal perversa, Um fun damenralista nao acredita, ele sabe diretamente, Tanto os cini- 0s liberais céticos quanto os fundamentalistas partilham uma caracteristica subjacente bésica: a perda da capacidade de acre- ditar, no sentido proprio do termo. O impensivel para eles & 8 decisio infundada que instala todas as crencas auténticas, uma decisio que nao pode ser baseada numa cadeia de raciocinios, no O sujeito perverso da politica 1s conhecimento positivo. Pensemos em Anne Frank, que diante da aterrorizante depravacio dos nazistas, num verdadeiro ato de credo quia absurdum, declarou sua crenga de que ha uma cen telha de bondade em todo ser humano, pot mais depravado que seja. Esta afirmagio no diz repeto a fitos~ épostulada como tum puro axionna tic, Da mesma maneira,o status dos direitos hhumanos universais é o de uma pura crenca: eles nfo podem ser baseados em nosso conhecimento da natureza humana, sio um axioma postulado por decisto nossa. (No momento em que se tentar fundar os direitos humanos universais em nosso co- nhecimento da humanidade, a conclusio inevitavel sera que as pessoas so fundamentalmente diferentes, assim algumas tém ‘mais dignidade e sabedoria que outras) Em sua esséncia = fundamental, a crenca auténtica nao diz respeito : fatos, mas d ssZio a um compromisso ético incondicional lists religioss, a afiemaies relgiosas sio afirmagbes quase iricas de conhecimento direto: os fundamentalistas as cham cos céticos zombam delas. aceitam como tais, enquanto 0s ci Nao admira que os fundamentalists religiosos esteam entre os hackers digitais mais apaixonadbos, e sempre inclinados a com binar sua religio com as iltimas descobertas da ciéncia. Para eles, afirmagGes religiosas e afirmagoes cienificas pertencem 4 mesma modalidade de conhecimento positivo. A ocorréncia do termo “ciéncia” no proprio nome de algumas das seitas fun damentalistas (Ciéncia Crista, Cientologia) nio é apenas uma piada obscena, mas indica essa redugao da crenga 20 a ‘mento positivo. O caso do Sudario de Turim (um pedaco . ‘pano que supostamente teria sido usado para cobrir 0 corpo do Cristo morto e teria manchas do seu sangue) ¢ instrutivo aqui. 144 Como ler Lacan Sua autenticidade seria um horror para todo verdadeito crente (@ primeira coisa a fazer seria analisar o DNA das manchas de sangue e decidir empiricamente a questo de quem foi o pai de Jesus), ao passo que um verdadeiro fundamentalist se deleita- ria com essa oportunidade. Encontramos a mesma reduco de crenga a conhecimento no islamismo atual, que abunda em cen- tenas de livros da autoria de cientistas que “demonstram” como (08 mais recentes avangos cientificos confirmam os insights e injungées do Cordo: a proibicao divina do incesto & confitmada Por conhecimento genético recente sobre criancas defeituosas nascidas de incesto. © mesmo pode ser dito do budismo, em que muitos cientistas se aproveitam do tema do “Tao da fisica moderna’, mostrando como a visio cientifica contemporinea da realidade como um fluxo insubstancial de eventos oscilan tes confirmou finalmente a antiga ontologia budista.* Somos compelidos a extrair a conclusio paradoxal de que, na oposi fo entre humanistas seculares tradicionais e fundamentalistas religiosos, so os humanistas que tomam o partido da erenca, 30 passo que os fundamentalistas tomam o partido do conhe imento. Isto é 0 que podemos aprender, a partir de Lacan, so bre a ascensdo do fundamentalismo religioso: seu verdadeiro Perigo nio reside na sua ameaca ao conhecimento cientifico ular, mas em sua ameaca & propria crenca auténtica. “Vin do xenon acon dea joi es in vem ee ofandamentalismo cline atop cts es creme om doe un gro rego contenido da venade lea a pofece Tament de queo Mess vin qundo nae un bese tole vermelho esti gastando enormes quantidades di ; prod m bezerro assim através de engenharia genética, Osujeito perverso da politica 5 "Tatvez A MANEIRA ADEQUADA de terminar este livro seja mencio- nar o caso de Sophia Karpai, a chefe da unidade cardiolégica do hospital do Kremlin no fim dos anos 40. Seu ato, o oposto da ele~ vvacio perversa de si mesmo a um instrumento do grande Outro, merece ser chamado de um verdadeito ato ético no sentido lacaniano. Seu infortanio foi ter sido incumbida duas vezes de fazer eletrocardiogramas em Andrei Zhdanov, em 25 de julho de 1948 e novamente em 3r de julho, dias antes de ele morrer por faléncia cardiaca. O primeiro ECG, feito depois que Zhdanov ‘manifestou alguns sintomas cardiacos, foi inconclusivo (ao foi possivel nem confirmar nem excluir um ataque cardiaco), 20 ‘Passo que o segundo, surpreendentemente, mostrou um quadro ‘mais favordvel (0 bloqueio intraventricular tinha desaparecido, ‘uma clara indicacio de que ndo havia ataque cardiaco). Em 195, Sophia foi presa sob a acusacdo de que, em conluio com outros médicos que tratavam de Zhdanov, havia falsficado dados cl nicos, apagando as claras indicagdes de que um ataque cardi- aco havia ocorrido, ¢ assim privando Zhdanov dos cuidados especiais requeridos pela vitima de um ataque cardiaco, Ap6s ‘maus-tratos, incluindo surras brutais continuas, todos os ou- tros médicos acusados confessaram. “Sophia Karpai, a quem seu chefe Vinogradov havia descrito como nada mais que ‘uma tipica pessoa comum com a moral da pequena burguesia’ foi ‘mantida numa cela refrigerada sem dormir para que confessasse. Ela nio o fez.”** 0 impacto € o significado de sua perseveranca no podem ser superestimados: sua assinatura teria encerrado definitivamente a causa do promotor sobre “a conspiracao dos médicos”, pondo imediatamente em movimento mecanismos que, uma vez desencadeaclos,teriam levado & morte de centenas de milhares de pessoas, talvez até a uma nova guerra europeia oes Como ter Lacan (segundo 0 plano de Sti a “conspiracao dos médicos" pre- tendia demonstrar que as agéncias ocidentais de informacio tinham tentado assassinar altos lideres soviéticos, e assim for necer uma desculpa para um ataque a Europa ocidental), Kar. pai resistiu por tempo suficiente para que Stalin entrasse em seu coma final, depois do que todo o caso foi imediatamente abandonado, Seu herofsmo simples foi decisivo na série de de talhes que, “como grios de areia nas engrenagens da enorme maquina que havia sido posta em movimento, evitou mais uma catdstrofe na sociedade soviética e na politica em geral ¢ salvou as vidas de milhares, se no milhées de pessoas inocentes” A simples persisténcia contra todas as probabilidades é em ‘altima andlise a matéria de que a ética é feita — ou, como Sa muel Beckett 0 expressa nas tiltimas palavras da obra-prima absoluta da literatura do século XX, O inomindvel, uma saga da pulsio que persevera sob o disfarce de um objeto parcial morto-vivo, “no silencio vocé nao sabe, vocé deve continuar, eu no posso continuar, eu continuarei”** Notas . Jacques Lacan, O Semindrio livro 7, A étea da psicandlise, Rio de Janeiro, Zahar, 1988, p359. 2, Ver Todd Dufresne, Killing Freud: 20th Century Culture and the Death of Psychoanalysis, Londres, Continuum Books, 2004 4. Lelivre noir du communisme, Paris, Robert Laffont, 2000, 4. Le livre noir de la psychanalyse: vivre, penser et aller mieux sans Freud, Paris, Les Arénes, 2005, s-Jacques Lacan, Bscrtas, Rio de Janeito, Zahar, 1998, p.273. 6, Janet Malcolm, The Silent Woman, Londres, Picador, 1994, p.172 7 Adam Morton, On Evil, Londres, Routledge, 2004, Pst 8 Jacques Lacan, Fscritos, op cit, 286. 9. Ibid, p28. to, Jacques Lacan, O Seminario, liveo 7 éica da psicandlise, op cit. p29. 11 Baseio-me aqui em Robert Pfaller,llusionen der Anderen, Frankfurt, Suhrkamp, 2003. 12, Ver Michel de Certeau, "What We Do When We Believe’ in Marshall Blonsky (org), On Signs, Baltimore, The Johns Hopkins University Press, 1985, p.200. 15, Jean-Pierre Dupuy, Avions-nous oublié le mal? Penser la politique apres leas septembre, Paris, Bayard, 2002. 14. Ver John Rawls, A Theory ofusice, Cambridge (MA), Harvard Univer: sity Press, 1971 (edicio revista 1999) ‘Ver Friedrich Hayek, The Road to Serfiom, Chicago, University of Chicago Press, 1994 16, Jacques Lacan, O Seminario liveo 3, As psicases, 2! ed, Rio de Janeiro, Zahar, 1988, ps. 17, Jacques Lacan, Escrtos, op.cit. p.829. 18. Guillermo Arriaga, 21 Grams, Londres, Faber & Faber, 200, p.107. Reproduzido aqui com a permissio de Faber & Faber. 19. Daniel C. Dennett, Consciousness Explained, Nova York, Little, Brown & Company, 199, p32 20, Sigmund Freud, Dora: An Anal Macmillan, 1963, p10 lysis of Case of Hysteria, Nova York, ry us Como ter Lacan 2. Jacques Lacan, O Seminario, liveo 1, Os quatro conceitosfundamentais a psicandlise, Rio de Janeiro, Zahar, 1985, po. 22, Stephen Mulhall, On Film, Londres, Routledge, 2001, pz 23, Herman Melville, Moby Dick, trad. Irene Hirsch e Alexandee Barbosa de Souza, Si0 Paulo, Cosac Naify, 2008, p.a35, 24. Jacques Lacan, O triunfo da religdo, Rio de Janeiro, Zahar, 2005, p77 35. Ibid., p79. 236. Joseph Campbell, The Power of Myth, Nova York, Doubleday, 1988, p.2aa 27. Brian Greene, The Elegant Universe, Nova York, Norton, 1999, p16-9, 28, Jacques Lacan, O Seminéri, livro 20, Mais, ainda, Rio de Janeiro, Zaha, 1985, pa. 29, Jacques Lacan, O Seminario, livro 7,4 ética da psicandlise, opcit, p36, se. Ibid,, pas. 31: Bascio:me aqui em Richard Maltby, “A Brief Romantic intrude’ Dick and Jane go to 3% Seconds of the Classic Hollywood Cinema’, in Post. Theory, David Bordwell e Noel Carroll (orgs), Madison, University of Wisconsin Press, 196, 43459. 32. Trecho do roteiro de Casablanca ~ cortesia de Turner Entertainment Co, Casablanca e todos os seus personagens ¢ elementos sfo marca registrada de © Turner Entertainment Co. 35. Maltby, “A Brief Romantic Interlude”, op cit, p.44. 34. Tid, paar 35. Scott Fitzgerald, Oiltimo magnata, trad, Carlos Eugenio Marcondes de Moura, Porto Alegre, LP&M, 2006, p72. 36, Jacques Lacan, O Semindro,liveo 11, Os quatro conceitos fundamentais a psicandlise, op cit, péo. s37-Jacques Lacan, O Semindro, livro 2, O ew nateoria de Freud ena técnica a psicandlise, Rio de Janeiro, 1085, p16 38. Karl Marx, O Capital, vol, Harmondsworth, Penguin Books, p16. 438. Citado de Jana Cerna, Kafka’s Milena, Evanston, Northwestern Univer sity Press, 1993, p. 174 4o. Esta ¢ as proximas citagGes de Dostoiévski, "Bobdk’, trad. Paulo Bezerra, in Paulo Bezerra, Dostoiévski: Bobsl (Traduca e andlise do conto), Sio Paulo, Edivora 34, 2005 4 Jacques Lacan, O Seminério,livro 11, Os quatro conceitos fundamentais ta psicandtise, opi, pars 42. Hannah Arendt, Eichmann in Jerusalem: a report on the banality of ei, Harmondsworth, Penguin Books, 1963, po. i 19 1 Disponivetem p/w verona eevin Aron, oon ain eon, Cacao. he Unies of Ching Pes 205 9. Mer Ra Mara “Clas Sirgen rc’, allel Work, vo Londres, Lantnee and Wishart 98,293 " 46 Vee Jaques aca, 0 Semin, Or ha ccs end setts de rican, ope pate aa Jaues Lacan, srl ope, pa ‘pJatues Lacan, 0 Senn ion Ota contain epoca, opi. p98 0 Jonathan rate Vadis Naumov ii Lat Coins, Nova Yor Harpercolins, 2005 p07 sett pan 51. Samuel Beckett, Trilogy, Londces, Calder Publications, 2003, p.4i8. Cronologia t901 Ems de abril Jacques Marieémile Lacan nasce em Paris, numa familia de sblida tradigio calica, E educado no College Stanislas Aitigido por jesuitas. Depois de seu bacalaurat estuda medicina e mais tarde psiquiatria, 1927 Iniia a formacio clinica, trabalha no Hépital Sainte Anne. Um ano depois, trabalha no Servigo de Enfermaria Especial, dirigido por Clérambaul. 1932 Obtém 0 doutorado com a tese Dela psych tse Dela paychose poranoaque dans ses ‘Yapports avec la personnalité. mt 1933 A riqueza de sua tse, especialmente a anlise do caso de Aimée ‘oma-ofamoso junto aos surealistas. Ente este ano e938 f 0 curso de Kojéve na Ecole Pratique des Hautes Etudes, uma “Intodugao 8 leitaca de Heget 1934 Casas com Marie-Louise Blondin, mae de Caroline, Thibaut e Sibylle, Bnquanto em andlise com Rudolph Loewenstein, torna-se smembro de La Société Psychanalytque de Pars ($PP 140 Trabalha em Val-de-Grice,o hospital militar em Paris, Durante ocupacio alema, ndo toma parte em nenhuma atividade oficial 1946 Em 1946, a SPP retoma suas atividades e Lacan, com Sacha Nacht Daniel Lagache, encarrega-se de anilises didéticas e supervisbes e desempenha importante papel te6rico e institucional 1951 A SPP comeca a levantar a questio das sessdes curtas de Lacan como opostas & hora analitica usual, 1953 Em janeiro Lacan & cleito presidente da SPP. Seis meses mais tarde, remuncia para ingressar na Société Francaise de Psychanalyse (SFP) com Lagache, Francoise Dolto e Juliette Favez-Boutonnier, entre outros. Em Roma, Lacan pronuncia seu telatério "Fund trio "Fungo e campo da fala e da linguagem em psicanslise”. Em 17 de julho casa-se com Sylvia Maklés, mie de Judith. Naquele outono, Lacan inicia seus seminérios no Hépital Sainte-Anne. 1954 Os dez primeitos seminérios elaboram noes fundamentais so- bre a técnica psicanalitica, os conceitos Fundamentais da psicanslise 150 Cronologia wt ‘easua dca, Durante ese periodo Lacan escreve, com base em seus seminarios, conferencas e comunicagdes em col6quios, que const tuem os principais textos encontrados em Eicrtos em 196. 1956 (Os seminéris atraem celebridades (a anise de Jean Hyppalite do artigo de Freud sobre a Negepdo,apresentada no primeiro semindrio, € um exemplo muito conhecido). Alexandre Koyré, Claude Levi Strauss, Maurice Merleau-Ponty, o etnélogo Marcel Griaule e Emile Benveniste, entre outros, frequentam os cursos de Lacan. 1962 Membros da SFP querem ser reconhecidos pela International Pycho-Analytical Association (IPA). AIPA emite um ultimato: 0 nome de Lacan dever ser riscado da lista dos datas. 1963 Duas semanas antes do prazo final ixado pela IPA (3 de outubro), © comit® de didatas da SFP abandona sa corajosa posicio de 1962. pronunciaa favor da proscrigo: Lacan nfo mais um dos seus datas, 1964 Lacanianos formam um Grupo de Estudos sobre Psicandlise og nizado por Jean Clavreul, até que Lacan funda ofcialmente a fole Francaise de Paychanalyse, que logo se torna a Ecole Freudienne de Paris (EFP), Com o apoio de Lévi-Strauss e Althusser, ele é nomeado conferencista na Ecole Pratique des Hautes Etudes. 1965 Em janeiro Lacan nica eu novo seminsrio, sobre “Os quatro con ceitos fundamentais da psicandlise”, na Ecole Normale Supérieure (ENS), Sua audiéneia & composta por analistas jovens estudantes de flosofa na ENS, notadamente Jacques-Alain Miler. 1966 Publicacao de Ecrits, em Paris, O livro atrai consideravel atenca0_ para a EFP, estendendo-se muito além da incligentsa, 1967 Lacan apresenta o Act de Fondation da BFP, sua novidade reside no procedimento de paste. O passe consiste em atestar, diante de dois passadores,a propria experiéncia como analisando especial ‘mente o momento decisive da passagem da posicio de analisando para a de analista, Os passadores sfo escolhidos por seus analistas (geralmente analistas da EFP) e deveriam estar no mesmo estigio em sua experiéncia analitica que passante. Fles 0 ouvem e depois, sucessivamente, atestam o que ouviram diante de um comité de aprovacio composto pelo diretor, Lacan, ¢ algum AE, analista da escola, A fungio desse comité é escolher 0s analistas da Escola € claborar, depois do processo de selecZo, um “trabalho de doutrina 1969 A emissio do passe invade constantemente a vida da EFP. O “qua- tridme groupe” é formado em torno daqueles que se demitem da wa Como ler Lacan EFP contestando os métodos de Lacan para a formacio ¢ o creden: ciamento de analistas. Lacan toma uma posigao na crise da univer. sidade que se segue a maio de 1968. “Se a psicanalise no pode ser articulada como um conhecimento ¢ ensinada como tal, ela nfo tem lugar na universidade, que lid r a " ue lida somente com o conhecimento.” O

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