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Estudos sobre o Tempo: O Tempo na Filosofia e na Historia Maria Helena Oliva Augusto e Instituto de Estudos 1é Avan¢ Universid Sao Paulo da lade de As opinies aqui expressas so de interaresponsablidade dos autores, nfo refletindo nacessariamente as posicbes do IEA/ USP. "Texto publicado em 1989 TEXTOS ‘Transcrigio das comunicagées apresentadas na mesa-redonda © TEMPO NA FILOSOFIA E NA HISTORIA, promovida pelo Grupo de Estudos sobre 0 Tempo no Auditério de Cinema da Escola de Comunicagées e Artes da Universidade de Sio Paulo, no dia 29 de maio de 1989. AUTORES Maria Helena Oliva Augusto é professora do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciéncias Humanas da USP. José Carlos Bruni € professor do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciéncias Humanas da USP. Raquel Glezer é professora do Departamento de Hist6ria da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciéneias Humanas da USP. Milton Santos é professor do Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciéncias Humanas da USP. O TEMPO NA FILOSOFIA E NA HISTORIA APRESENTACAO Maria Helena Oliva Augusto (Departamento de Sociologia/USP) Quando se analisam as questées do tempo, as delimitagées que distinguem as especialidades cientfficas, bem como seu aparato conceitual especffico, nfio podem servir de critério Gnico de classificagao. As nogdes de tempo fisico, tempo biolégico, tempo social, tempo vivido, focalizadas por disciplinas cientfficas distintas, qualificam diferentes dimensées da temporalidade e permitem a percepgio fundamental da interpenetragiio entre "natureza" € "sociedade". ‘A palavra tempo pode ser entendida como s{mbolo da relagio estabelecida por um grupo humano entre dois ou mais processos, dentre os quais um € tomado como quadro de referéncia ou medida dos demai Considerando-se que esses processos se alteram e, em conseqiiéncia, a relagio que mantém entre si, pode-se afirmar que a experiéncia dos acontecimentos vividos pelos homens niio ¢ fixa: houve no passado € continua havendo no presente alteragées em seu significado. Constata-se, por um lado, que a idéia de tempo é sempre relactonal e, por outro, que o tempo nfo existiria num mundo onde nfio houvesse homens e seres vivos. ‘A discussio dO Tempo na Filosofia e na Hist6ria aborda como diferentes disciplinas do social enfrentam as dificuldades que essa questiio apresenta José Carlos Bruni, rastreando a hist6ria da filosofia, analisa o tempo como uma das dimensées centrais do pensamento, na filosofia moderna e contempordineas por outro lado, sua reflexfo impele-nos a constatar que nem sempre foi assim: a centralidade do tempo, tal qual o conhecemos 6, ela prépria, uma questio histérica. Raquel Glezer mostra como o tempo, na histéria, aparece como elemento organizador do passado da humanidade e inclui, obrigatoriamente, 0 passado, 0 presente e o futuro; além disso, distingue temporalidades construfdas pelos historiadores: um tempo breve (que possibilita a aproximagio da vida cotidiana), um tempo médio (que propicia andlises conjunturais) e um tempo longo (que permite a delimitagio hist6rico-estrutural). Finalmente, Milton Santos aponta para a diferenciagio dos ritmos temporais presentes na vida urbana e afirma a existéncia de ritmos hegemdnicos, dos objetos, que se impéem & sociedade e terminam por dominar os homens; ao mesmo tempo, a existéncia material da cidade surge, em sua fala, como um dado fundamental da compreensio do espago, enquanto presenga dos tempos que se foram e permanecem através de formas e objetos. M.H.O. AUGUSTO : A mesa est aberta para o pablico. Com a palavra, o professor José Carlos Bruni, que falar sobre © TEMPO NA FILOSOFIA. J.C. BRUNI: Falar sobre © TEMPO NA FILOSOFIA em vinte minutos ¢ realmente alguma coisa de totalmente impossfvel. Tanto que eu fiquet tentado a fazer a mesma coisa que uma certa pessoa fez, segundo um relato do fil6sofo Hegel. Em determinada ocasifio, um conferencista chegou a uma cidade pronunciar uma palestra sobre os vegetais. E dirigindo-se ao auditério, afirmou: o vegetal é - 0 vegetal! A platéia ficou extremamente decepcionada com a conferéncia, mas o conferencista estava rigorosamente correto, 0 seu discurso tinha sido absolutamente verdadelro. De forma que eu fiquei tentado a fazer a mesma coisa aqui, Porém, se eu falasse apenas: 0 tempo 6 0 tempol, ew ocuparia com isso apenas dois segundos e nfo vinte minutos. Portanto, vocts vio me desculpar a precariedade da exposigio por essa limitagio, espero que depois, no debate, os pontos confusos ou que derem margem A discussio sejam retomados pela intervengio de voeés. Inicialmente, eu nem me preocupei em estabelecer algo de preciso em torno de nosso tema, o tempo na filosofia, mas conforme fui pensando ¢ lendo sobre o assunto, um certo fio condutor apareceu melo que espontaneamente, sem que tivesse sido realmente deliberado e preparado. Assim, talvez a nogio que v4 ficar desses poucos vinte minutos, esteja ligada a idéia de eternidade e a idéia do tempo propriamente dito. Também, nfo gostaria de voltar 14 para a Grécia; em todo caso, para pontuar as coisas mais do que para desenvolver uma questo, vamos dar uma espiadinha na hist6ria da filosofia, ver mais ou menos 0 que 0s fil6sofos levantaram a respeito da questio do tempo. Na Grécia, as primeiras formulagées mais trabalhadas a respeito do tempo, vamos encontrar justamente na filosofia de Platio. Isso néo significa que em filésofos antes de Platio, no houvesse {4 indicagées extremamente agudas sobre a questfio da temporalidade. Plato, na obra Timeo, d4 uma definigao de tempo extremamente interessante, Nesse didlogo, 0 fildsofo relata a hist6ria da criagio do mundo. O demiurgo, isto 6, 0 supremo artifice (demiurgo significa exatamente artifice), contemplando como modelo as formas cternas, as verdades eternas, as esstncias eternas, val criar ou construir 0 mundo, O demiurgo teve também a idéia de formar uma espécie de imagem mével da eternidade e enquanto organiza o céu, ele forma, segundo a eternidade imutivel de sua unidade, uma imagem do eterno desenrolar, ritmada pelo nimero, E é a isso que chamamos tempo. Tem-se, pois, 0 tempo propriamente dito contraposto a idéia de eternidade. N6s temos, entio, no mundo inteligivel, as verdades eternas, necessirias, imutaveis e, no mundo sensfvel, justamente 0 mundo dominado pelo tempo. A eternidade nfo é uma forma de tempo; a eternidade aparece, em Platiio, como a negagio do tempo. O tempo existe no mundo sensfvel como o lugar da passagem, 0 lugar daquilo que no permanece, como o lugar da geragio e da corrupgio, como 0 Tugar do aparecer e do desaparecer; enfim, como 0 lugar em que nada ¢ permanente, ‘em que tudo est submetido a um fluxo absolutamente perpétuo. E contra esta idéia de tempo, ligada a0 mundo senstvel ¢, portanto, a0 mundo das aparncias, Platio vai contrapor a imagem de eternidade como a negacio do tempo. Assim, o tempo aparece pela primeira vez desqualificado; a eternidade se impGe como objeto de investigagio, pelo menos como meta ideal da determinagio da verdade e da comtemplaciio do filésofo. Esse mundo do devir, da mudanga, da transformacio, esse mundo do movimento, aparece como desqualificado, além do que, é um mundo também do erro, do engano, da ilusio e do mal. Esse primeiro momento do aparecimento da questio do tempo na filosofia, pode-se colocé-lo como um momento em que o tempo ¢ extremamente desprestigiado. Contra o tempo se impée a tarefa do fil6sofo de procurar as verdades eternas e a contemplagio da eternidade, Em Arist6teles, isso de certa maneira continua, & medida que ele também pensa o mundo como dividido entre 0 mundo sublunar e 0 mundo supralunar, O mundo sublunar, isto é, aquele que se d4 da esfera da Iua para a terra, € também 0 mundo do movimento, 0 mundo da passagem, 0 mundo da geragio e da corrupgao, o mundo em que nada é permanente. No mundo supralunar, n6s temos 0 mundo das esferas fixas, 0 mundo da estabilidade, da eternidade, o mundo de Deus, que justamente € Deus justamente est inteiramente fora da esfera do tempo. Em Deus nao ocorre mudanga absolutamente nenhuma, pois se houvesse alguma mudanga na esséneia divina, nés terfamos justamente alguma coisa que néo seria Deus, mas alguma coisa da matéria. Quer dizer, 0 mundo sublunar 6 0 mundo da matéria, isto 6, das coisas imperfeitas que necessitam de algo mais que determine a sua forma; e justamente 0 mundo supralunar é 0 mundo das formas. Portanto, a divisio inicial de Plato permanece, se bem que, em Aristételes, essa desqualificagio do tempo e do movimento sofre, digamos, uma relativa atenuagéio, & medida que 0 movimento vai ser objeto da propria ciéncia. O movimento, em que se manifesta mais visivelmente a questfio da temporalidade, vai ser submetido a uma andlise racional e este tempo terreno, sublunar, vai receber, por Aristotéles, uma andilise extremamente percuciente, & medida que toda estrutura do sucessivo, toda idéia de sucessio vai receber, pela primeira vez, um tratamento mais racional, Eu poderia também colocar que, entre os est6icos, a idéia do tempo vai receber uma sofisticagio mator, uma vez que, no estoicismo, nés vamos poder distinguir entre trés tipos de tempo. As palavras gregas que designam esses trés tipos de temporalidade so: Cronos, Aion e Cairos. Cronos 6, digamos, jé indicado pela primeira vez em Platio, esse tempo da passagem, da mudanga, em que nada permanece, tudo € consumido, em que existe a vida e a morte, esse tempo desqualificado como o lugar da verdade ou do bem, Aion é 0 tempo que designa propriamente o presente enquanto tal. Cronos, esse tempo que consome tudo e que mals ou menos poderia ser caracterizado como 0 passado, 0 presente e 0 futuro, recebe, na idéia de Aion, uma presentificacio, quer dizer, a Enfase vai cair sobre o presente, Nao se trata de pensar, por exemplo, a cicatriz como uma ferida passada, mas como uma marea atual: nfo se liga, entfo, o presente 20 passado, nem se pensa a ligagio do presente com o futuro. & como se tudo que existisse, s6 existisse no presente. H4 paginas muito bonitas no livre de Deleuze, chamado Légica do Sentido, em que retoma a distingio estdica e propée toda uma leitura nova da idéia de acontecimento, £ com os est6icos, portanto, que se encontra algo que antecipa muito a modernidade nesta questo de colocar dois tipos de temporalidade: 0 presente enquanto tal, por um lado, e, por outro, a temporalidade que esté Iigada ao passado e ao futuro, em que 0 presente € propriamente evanescente, isto 6, é um instante sempre dividido entre um passado que se encerra e um futuro que se inicia. Entéo, a temporalidade poderia ser colocada como uma questo em que a tensio permanente entre uma idéia de tempo que esta dividida entre o passado € o futuro e uma idéia de tempo que da primazia e se estabelece no presente. Isso vai ter um enorme desenvolvimento na filosofia deste século, com Husserl e a fenomenologia, toda uma idéia fundada na Teoria do Campo do Presente, Enfim, tem-se também a idéia de Cairos que é extremamente importante para a ética e para a politica. Kairés vai designar, justamente, o momento oportuno, 0 momento privilegiado em que o politico tem que tomar uma decisiio, em que 0 médico tem que tomar uma deliberagio, 0 instante em que todas as oportunidades devem ser pesadas e que uma decisfio deve ser tomada. Vejam, ento, que, de alguma maneira, mesmo que toda énfase recaia sobre a idéia de eternidade, no mundo propriamente humano a questfio da temporalidade tem que ser enfrentada e nfo apenas desqualifieada, Na idéia do Aion, do presente, na idéia de Cairos, como 0 instante privilegiado para a agio e para a deliberacio, temos a colocacio precisa de linhas analfticas que vio se desenvolver mais tarde, Durante muito tempo, as idéias de Platio e de Aristételes prevaleceram, com a concepcio da divisio entre dois mundos, um mundo de cima e um mundo de baixo, um mundo das idéias e um mundo da matéria, um mundo inteligivel e um mundo sensfvel. Elas formam o proprio ambiente geral da cultura do cristianismo, em que justamente 0 mundo da matéria € pensado sempre como o mundo da morte, o mundo da limitac&o, o mundo do finito € o mundo da esséncia divina, 0 mundo de Deus, 0 mundo celeste é sempre pensado como o mundo da eternidade, como o destino final das almas, que praticaram o bem na terra, No entanto, até que ponto justamente isto no faz mais parte da nossa cultura é uma coisa muito complicada. Li, em tradugio recente do livro Imitagio de Cristo, escrito em 1441, a seguinte passagem: 'A natureza cuida dos bens temporais, alegra-se por um lucro pequeno, entristece-se por um prejufzo e irrita-se com uma palavrinha injuriosa. A graca, porém, culda das coisas eternas, nfio se apega as temporais, néo se perturba com a sua perda, nem se ofende com as palavras speras; porquanto, pos 0 seu tesouro e sua gl6ria no e6u, onde mada perece’.” (f um livro 6timo para a gente estudar uma das consequéncias mais extremas da idéia da mortificagio da carne e do corpo em fungio da precariedade do tempo da vida terrena; uma an(lise psicanalitiea dessa idéia de mortificagio absoluta seria realmente interessante). Observem a ressonfncia com o texto de Platio, onde * Thomds de Kempis, Imitagao de Cristo, tr. de Frei Tomas Borgmeier. Petrépolis: Vozes, 1982, p. 201. Justamente no eéu a gente tem uma imagem mais ou menos adequada do tempo, uma imagem mével, uma imagem da eternidade; aqui, a eternidade € colocada diretamente no céu, mas € perfeitamente compativel com o texto de Plato. Enfim, podfamos também lembrar, associada a essa idéia de bens temporais, a expressio extremamente comum na Idade Média, que é 0 poder temporal contraposto ao poder espiritual, O poder espiritual, aquele que estaria concentrado na Igreja, que governaria as almas, que governaria o espfrito, que governaria a moralidade dos homens, e 0 poder temporal, aquele ligado aos assuntos mais comezinhos € mesquinhos da politica, da economia, totalmente fragmentério, desprovido de unidade, que trataria das coisas absolutamente desimportantes, como a sobrevivéncia material dos corpos dos homens. Vejam bem, na distingio que Thomas de Kempis fez entre natureza e graga - que corresponde justamente ao mundo sensfvel e a0 mundo inteligivel, 20 mundo sublunar e a0 mundo supralunar - coloca-se uma questio importante aqui: se, de um lado, nés temos a natureza com toda a sua maldade, com toda a sua precariedade, com toda a sua mesquinhez e, de outro lado, a graga, com toda a elevacio espiritual, e o homem, sendo natureza e ao mesmo tempo tendo uma centelha divina em si, imediatamente se apresenta a questio da passagem da natureza para a graca. O homem nasce como animal e se espiritualiza e se diviniza através do tempo. Se, num primeiro momento, temos outra vez a desqualificagio do tempo, no segundo momento, temos a necessidade da reflexfio sobre 0 tempo como condigio da prépria espiritualidade e salvagio do homem pois a passagem dos instintos animais para a dimensio propriamente divina do homem s6 seria posstvel através de um caminho em que o homem ao se desmaterializar, se espiritualiza eada vez mais. & justamente essa reflexfio que est na base de toda a filosofia de Santo Agostinho, no século IV D.C.muito anterior a Thomas de Kempis. Em Santo Agostinho temos, pela primeira vez no cristianismo, a idéia de que o tempo nio € tio exeerdvel, como um cristianismo vulgar talvez pudesse colocar, A Imitagio de Cristo 6 justamente, um livro escrito para as pessoas simplea, Na filosofia de Santo Agostinho, vemos justamente o primeiro momento em que o tempo € qualifieado, no interior da filosofia cristé, nfio s6 na ascese individual de cada um, no caminho que vai, progressivamente, libertando 0 homem dos instintos animais, como também o tempo em escala c6smica. O que € propriamente o tempo do cristianismo, colocado pela primeira vez por Santo Agostinho? £ o tempo em que se destaca a idéia de queda, do pecado original, depois, da redengéo, da vinda de Cristo e do Juizo Final. Durante todo esse tempo, temos 0 que? Temos um momento de gléria de Deus - em que Deus s6 se contemplava a si mesmo - um momento da queda - 0 momento do pecado original - um momento da decadéncia e, depois, todo um outro tempo futuro em que a humanidade vai, pouco a pouco, pela inspiragio na figura de Cristo, retomando a sua natureza propriamente divina. De forma que € necessario o tempo propriamente hist6rico para o aperfeigoamento moral do género humano. Temos, portanto, no s6 a necessidade de pensar no aperfeicoamento individual, na passagem da natureza para a graca, como a necessidade de pensar no tempo da salvagio da humanidade, ao longo de toda a sua hist6ria, Em outras palavras, estou colocando que em Santo Agostinho (pode parecer meio esquisito para as pessoas que no estejam muito familiarizadas com a filosofia), n6s j4 temos a pre-figuragio da idéia Iaica e moderna de progresso, isto 6, a concepgéio de que a espécie humana vai imperceptivelmente, gradativamente, pouco a pouco, passando de um estado pior para um melhor, de em estado simples para um mais complexo, de um estado menos desenvolvido para um mais desenvolvido. Estou apresentando rapidamente uma questiio que € extremamente discutida entre os historiadores da filosofia, qual sejat no século XVIII ou no século XIX, quando a id¢ia de progresso foi retomada e teorizada, existia realmente uma filiagdo a Santo Agostinho? Alguns acham que sim, outros acham que nfo, outros, ainda, acham que € mais ou menos, mas enfim, tenho a impressio de que h4, em Santo Agostinho, uma idéia de tempo muito préxima Aquela 10 que as filosofias da hist6ria da modernidade formulam, a partir do século XVIII. Nela, a idéia de progresso, a idéia de aperfeigoamento moral, intelectual e material da humanidade, isto 6, a idéia de civilizagdo vai aparecer de maneira totalmente clara, Comegamos por essa desqualificagio do tempo e agora estamos vendo que no cristianismo, através de Santo Agostinho, o tempo comegou a receber uma conotagio positiva, Esta vai retornar na Renascenga, quando se pensou o passado, as origens, quer dizer, as civilizagées antigas (grega e romana), como sendo o lugar do infcio da verdade e © presente como sendo um momento da retomada da verdade, Nesse momento, diferentemente do cristianismo, nio é 0 futuro como redengio, mas 0 passado, como o lugar de pesquisa e de retomada da verdade, que é valorizado, Enquanto 0 cristianismo apontava o futuro como a possibilidade de espiritualizagio e da salvacio da alma, 0 humanismo renascentista concebe na volta a0 passado a retomada da verdade interrompida pela noite de mil anos, as trevas medievais. Depois, vamos ver que durante 0 perfodo da razio classica, séculos XVI e XVII, a idéia de tempo entrou em quarentena, justamente porque a idéia de razio que 6 extremamente forte nessa época, se apresenta como critério imanente de verdade, verdade que mais ou menos independe do tempo. Quer dizer, a construgio da raziio © desenvolvimento da ordem interna da prépria razio; € 0 que nos permite estabelecer a verdade sobre 0 mundo, sobre a natureza, € o tempo nfo conta muito. Isso vai mudar no século XVII, de maneira cada vez mais intensa. Podemos até ler a filosofia de Hume, como uma filosofia que se assenta clara ¢ totalmente, sobre uma idéia muitfssimo precisa de temporalidade, Toda a erftica que Hume vai fazer sobre a idéia de causalidade, isto 6, da conexio necessAria entre dois eventos que se seguem no tempo, a destruicao que faz dessa idéia, est4 ligada a uma idéia de tempo. O que 6 © tempo para Hume? & sucessio de instantes, de elementos diseretos que se justapéem ao longo de uma linha, Acontecimentos sucedem-se num tempo inteiramente vazio, inteiramente neutro; quer dizer, 0 tempo € a sucesso de eventos. ce Como no tempo nés vamos distinguir instantes que néo possuem conexiio interna uns com 0s outros, todo o material do conhecimento aparece Inteiramente desconectado ea conexiio que pode ser feita é estabelecida pelo hébito, pela memsria, Nesse sentido, 0 conhecimento fica na dependéncia direta de uma categoria temporal. O que se conhece € 0 que se acredita ver sempre unido em sequéncia temporal, isto é temos o calor e a chama, temos a neve e 0 frio, temos 0 corpo no ar e a queda do corpo, quer dizer, impressdes que se sucedem no tempo. A idéia de sucessio, marca, pots, toda a formulagio da teoria humana do conhecimento ¢ a destruicio de uma categoria classiea, que vem desde Aristételes, a categoria de causalidade, Aqui temos algo um pouco diferente: a introdugio da questiio da temporalidade no interior mesmo da questio do conhecimento. Isto vai ficar claro, extremamente claro, na filosofia de Kant. Em Kant, celebram-se muitas coisas, entre elas justamente a colocagio da primazia do tempo sobre 0 espago: 0 tempo vai se tornar uma das dimens6es centrais do pensamento na filosofia moderna e contempordnea, justamente a partir de suas formulagées, Para ele, o tempo nio é algo que esteja nas coisas: nfo 6 a imagem do céu que nos permite pensar o tempo pelo movimento dos astros, do sol, da lua e pela divisio em anos, dias, estagées, ete... 0 tempo nio vem dessa objetividade; 0 tempo vem muito mais por uma qualificagio do sujeito do conhecimento. A andlise de Kant mostra, portanto, 0 seguinte: antes de haver acontecimentos, temos que ter 0 tempo como anterior a esses acontecimentos, S6 podem haver coisas que se sucedem, sob a condig&o da existéncia do tempo. Quer dizer, antes de haver acontecimentos que decorram no tempo, precisamos ter 0 pr6prio tempo: para haver um evento A que sucede o evento B, eu preciso ter 0 tempo, como condigho de possibilidade, Por outro lado, o tempo nfio € um conceito, porque conceito, para Kant, € aquilo que é resultado da existéncia de varias espécies semelhantes, exatamente das quais se recolhem caracterfsticas comuns com 0 que se chega a uma Idéia geral. Isto 6, tenho um conceito de homem, de folha, de livro, 12 porque existem varios exemplares; comparo uns com os outros ¢ tiro as caracterfsticas comuns, Entio, para Kant, o tempo nfo é um conceito, porque no existem varios tempos: hé um s6 tempo, um finico tempo, onde acontecem milhares de coisas. O tempo 6 finico. Justamente por niio ser um conceito, o tempo vai ser visto como uma forma: 6 uma forma a priori da sensibilidade, daf a jungio com a teoria do conhecimento. Quer dizer, os homens sfo constitufdos de tal forma, que s6 podem receber coisas externas a eles através do tempo e do espaco, que € outra dimensiio do conhecimento. O espaco e o tempo sio formas a priori da sensibilidade. O tempo é mais importante do que 0 espago porque 0 espaco, para subsistir, isto 6, para permanecer espao, precisa estar dentro do tempo. Por isso, 0 tempo recebe primazia em Kant. A questio do tempo néo € mais a de estar no futuro, de estar no passado, nfo se trata mais da possibilidade de elevacio espiritual do homem, de aperfeigoamento moral, © tempo est4 localizado no préprio conhecimento da natureza, no préprio conhecimento do mundo, além de que o tempo néo é apenas uma forma a priori da sensibilidade, mas ¢ também a forma geral do sentido interno do homem, De maneira que, nfo se trata apenas, em Kant, de uma visio do mundo que precisa do tempo como caracterfstica do sujelto: a questio se aprofunda mais porque é a partir do tempo que a prépria hist6ria pode ser pensada. A novidade em Kant é que a hist6ria pode ser pensada racionalmente, isto 6, extstem leis na hist6ria. Isto vem melo preparado por uma série de outros fil6sofos do séeulo XVIII, que falam do progresso e temas correlatos. Mas a idéia de uma racionalidade na hist6ria, © lugar em que possamos encontrar leis, 6, pela primeira vex formulada por Kant, ‘Vou ler uma pAgina de Kant, que mostra exatamente isso! Vejam bem o que ele falaz "De um ponto de vista metafisico, qualquer que seja 0 conceito que se faga da liberdade da vontade, as suas manifestag6es - as ages humanas - como todo outro acontecimento natural sio determinadas por leis naturais, universais, A hist6ria que se ocupa da narrativa dessas manifestagdes, por mais profundamente ocultas que 13 possam estar as suas causas, permite todavia esperar que, com a sua observagéio, em suas linhas gerais, do jogo da liberdade da vontade humana, ela possa descobrir af um curso regular - dessa forma, 0 que se mostra confuso e irregular nos sujeitos individuais poderé ser reconhecido, no conjunto da espécie, como um desenvolvimento continuamente progressive, embora lento, das suas disposigies originals.(...) Os homens, enquanto indivfduos ¢ mesmo povos inteiros, mal se dio conta de que, enquanto perseguem propésitos particulares, cada qual buscando seu pr6prio proveito e frequentemente uns contra os outros, seguem inadvertidamente, como a um fio condutor, 0 propésito da natureza que Ihes € desconhecido e trabalham para sua realizagio, e, mesmo que conhecessem tal prop6sito, pouco thes importaria* Termina dizendo que nés precisamos encontrar um Kepler ou um Newton que proceda com o mundo hist6rico da mesma forma que Kepler procedeu com o mundo da astronomia e Newton com o mundo da fisica. Isto é que descubra as leis que regem a hist6ria universal. O tempo, entio, nfo se restringe a uma consideragio sobre o passado e o futuro, nem a uma consideragio sobre 0 conhecimento, mas 0 tempo vai habitar de forma racional o interior da hist6ria da espécie humana, Podem-se ler, entfio, todas as grandes filosofias do século XIX como her6icos empreendimentos na tentativa de descobrir as leis da historia, Marx est nesse registro. Hegel est nesse registro, Augusto Comte est nesse registro, Herbert Spencer esté nesse registro! Todos eles vio procurar descobrir 0 ser do homem na histéria, de uma maneira muito precisa, nas etapas de evolugio da humanidade. Entio, estou tentando sugerir que temos a0 longo da histéria da filosofia - este 6 um modo que a histéria da filosofia pode ser lida, nfio € absolutamente nenhuma novidade o que estou falando, nem hf a idéia da historia de filosofia em si mesma, mas um modo que se pudesse ler a hist6ria e no que diz * Immanuel Kant, Idéia de uma Histéria Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita. Séo Paulo: Brasiliense, 1986, p. 9- 10. 14 respeito justamente A questio do tempo talvez se pudesse seguir essa linha - de uma interiorizagio eada vez maior do tempo no interior do mundo humano de tal forma que 0 tftulo do livro de Heidegger, Ser e tempo, tem algum sentido para nés. Heidegger fala de ser e tempo, isto €, 0 ser de que vai tratar é basicamente o ser da realidade humana, o Dasein, o ser do homem que est4 no tempo. O tempo vai deixar de ter essa caracterfstica externa, fisica, meio espacial, onde ocorrem coisas "Ié fora", categoria desqualifieada porque associada ao mundo da corrupgho, da geracio, da morte e alguma coisa mais ou menos ligada ao pecado, para se interiorizar cada vez mais e passar a significar a prépria esséneta do homem. Agora, como meu tempo acabou, podemos depois retomar no debate as idéias aqui colocadas de maneira extremamente répida, Desculpem a precariedade da exposigio. M.H.O.AUGUSTO: Agora passo a palavra para Raquel Glezer, que vai falar sobre O TEMPO NA HISTORIA. R.GLEZER: Apesar de nfio haver combinado com o Bruni por onde comegaria, s6 posso mesmo comegar quando a Filosofia da Hist6ria se separa da Hist6ria e, 0 que chamamos de Hist6ria como um processo de conhecimento, uma forma de apreensio da realidade, tornou-se possfvel ao ser humano, independente da Providéncia Divina, independent da vontade divina, independente de algo transcendente aos homens, & natureza e A propria Histéria, A laicizagio do pensamento permitiu a existéncia da Hist6ria e ela surge com duas varidveis obrigat6rias: 0 espago eo tempo. O tempo da histéria, quando ela se estrutura como conhecimento, é um tempo que chamamos tripartite. & o tempo que vem do cristianismo, laicizado, mas a ligagio com o futuro permaneceu forte e marcada, O tempo da histéria inclui, obrigatoriamente, o passado, 0 presente ¢ o futuro, Esse futuro, quer seja o ideal de progresso, quer 0 ideal de liberdade, quer 0 ideal de raziio, est4 sempre ligado a uma idéia de progresso intelectual, material, de desenvolvimento, da submissio da natureza a forca humana, 15 aos atos humanos, & vontade humana. A separagio da Filosofia da Histéria que permitiu a cringio da Hist6ria, a formulagio do pensamento hist6rico, fez com que 0 tempo, na hist6ria, passasse a ser encarado, pelo menos naquele momento, como um absoluto, Nao se discutia a questio do tempo, porque o tempo € o elemento organizador do passado da humanidade, permite o arranjo e a comparagio das diversas sociedades, permite a articulagio de elementos aparentemente desconexos. Se para a Filosofia, como o Bruni falou, existe o problema do mundo material ser um mundo degradado, para a Hist6ria, quando se formula, ao se separar da Filosofia da Historia, na qual a explicagiio de tudo o que o ser humano fez, faz ou faré, era dada pela transcendéncia divina ou qualquer outro processo de explicagio dos atos humanos, 0 elemento tempo entrou como elemento de articulagio, como uma conexiio causal, primfria, extremamente elementar. Os fatos foram agregados por proximidade, mas € 0 tempo que vai permitir a0 homem explicar os fatos, independente da vontade divina. © tempo também vai permitir a periodizagio, a criagio dos recortes temporais e ¢ estranko que & medida que a Hist6ria se separa da Filosofia da Hist6ria, mantenha elementos da prépria Filosofia da Hist6ria, Ela mantém, por exemplo, a idéia de uma hist6ria universal, uma hist6ria catdlica, Essa hist6ria universal, na hist6ria laica, vai manter a periodizagio em idades. E claro que a origem das idades, tal como as conhecemos, numa visio europocéntrica, bem mediterrfnea, é ligada ao Renascimento. & uma periodizagio que tem sido bastante criticada pelos historiadores, porque, como se pretende uma periodizagio universal, a hist6ria dos povos nfo mediterrfineos sé passa por essa hist6ria universal quando esbarra na hist6ria dos povos do Mediterrineo, Entretanto, essa concepgio europoctntrica que presidiu a todo 0 desenvolvimento do conhecimento hist6rico, resiste a duras penas As erfticas que vém sendo feitas desde meados da década de cinquenta, desde 0 inicio do processo de descolonizagio dos povos africanos e asidticos, Mesmo os autores europeus, a partir da década de sessenta criticam essa 16 periodizacfo em idades universais definidas, estruturadas, iguais para todo o mundo. Entretanto, ela continua como referéncia, é um recorte, permite que o tempo se divida e 6 na divisio do tempo que as explicagGes hist6ricas se articulam, Ao lado da periodizagio da histéria universal, encontramos a periodizagio dos modos de produgio, hoje em dia tao criticada, tio atacada quanto a periodizagio universal, Da critica & periodizagio homogeneizada, algumas vezes fica para as pessoas que acompanham a discussio na frea, a idéia de que o tempo se tornou um elemento desnecesssrio, deixou de ser importante, fundamental, para o trabalho de explicagio. Entretanto, quer o historiador trabalhe com explicagées causais muito simples, muito ligadas A cronologia, a um tempo direto, quer ele trabalhe com temporalidades, est sempre amarrado a0 tempo. Desde o final da década de cinquenta, os historiadores trabalham com um tempo decomposto, dependendo do tipo de Hist6ria que estejam fazendo, do material dispontvel, dependendo da concepgio de Hist6ria. Eles podem trabalhar com um tempo breve, um tempo médio e um tempo Tongo. Normalmente, as pessoas acham que os historiadores trabalham com o tempo numa sequéncia cronolégica amarrada. Na pritica, o tempo do historiador € todo Iacunar. A amarragio € dada pela narrativa, é dada pela construgio. Néo existe a possibilidade do historiador reconstitutr em sua explicacio, tudo 0 que aconteceu, Ele trabalha com resfduos aleatérios do passado, o seu trabalho com esses resfduos depende do momento em que esté vivendo, daquilo que a sociedade Ihe permite pensar, the permite usar como instrumental e Ihe defina como objetivo do conhecimento, O historiador usa as lacunas temporais como se elas nao existissem. Ele sabe que elas existem, sabe que sfo partes integrantes da narrativa e elas sio simplesmente ignoradas, A caracterfstica da narrativa histérica normal € que ela é uma narrativa Tinear; as pessoas que a Kéem nunca encontram as Iacunas temporais. A impressfio que d4 € que tudo aconteceu numa ordem direta, arrumada, cronolgica e, obviamente, foi aquilo mesmo que aconteceu. A montagem das Tacunas, a montagem 17 a narrativa, a selecio do material 6 todo 0 trabalho do historiador. O historiador pode optar com qual tempo vai trabalhar, com qual material e com qual perfodo de duragio. Quando falamos numa narrativa de tempo breve, falamos numa Historia que tem sido chamada de hist6ria fatual, de hist6ria tradicional, Uma Hist6ria que se prende ao fato histérico, na narrativa considerada como uma narrativa dramética, cuja caracterfstica da produgio nos dias de hoje € 0 que chamamos de historia imediata - a hist6ria que est sendo eserita praticamente no momento em que est4 acontecendo. Essa hist6ria fatual ¢ uma hist6ria que vai sendo montada de acordo com a selecio dos acontecimentos da vida cotidiana. f uma histéria montada muito em cima do dramético, Tradicionalmente, tem-se considerado a histéria polftica como a histéria do tempo breve, a histéria dos rfpidos acontecimentos. Os historiadores, na primeira metade do século vinte, discutiram muito como destruir essa hist6ria politica e colocar no lugar da hist6ria dos reis, dos herdis, das guerras, dos tratados, uma outra hist6ria, De certa forma, na decomposigio do tempo hist6rico, eles fazem isso. E 0 fazem eriando outras formas de Hist6ria, Uma outra forma de trabalhar o tempo em Histéria € através do chamado tempo médio, tempo de conjuntura, que € 0 tempo da hist6ria econémica e social. £ uma concepgiio de tempo que a hist6ria extrai da economia: literalmente pega os ciclos econdmicos € transporta a idéia para sua hist6ria quantitativa, criando ciclos diferentes, de acordo ‘com o fendmeno que € estudado. Algumas vezes, as pessoas leigas pensam que uma hist6ria de conjuntura possui obrigatorlamente uma duragio definida. Isso nio ocorre, Ela possui a duragio que o historiador define, a partir do assunto que escolhe como tema de pesquisa, do material que seleciona, Entio, temos histérias de conjuntura de dez a cem anos ¢, As vezes, histérias de conjuntura de duzentos anos. Dependendo do material que se conseguiu selecionar, que se conseguiu recuperar, que se conseguiu articular, temos histérias muito diferentes do que tradicionalmente se concebia como hist6ria, que € a hist6ria do tempo curto. Temos hist6rias de 18 técnicas, de instituig6es politicas, hist6ria das ciéncias, hist6ria de civilizages mesmo, como hist6rias conjunturais. A terceira fase da decomposigio temporal é a chamada hist6ria estrutural, hist6ria de tempo longo, histéria de longa duragio, Essa histéria de longa duragiio fez com que historiadores procurassem trabalhar com fendmenos de persisténcia extremamente demorada. Trabalhava-se fundamentalmente com hist6ria da cultura, com a geohistéria, no momento de seu lancamento. Tentou-se passar, nos anos seguintes, para a hist6ria das mentalidades, Quando o historiador fala em estrutura, nesse momento, niio esté pensando nem na estrutura antropolégica, nem na estrutura no sentido marxista; esté pensando em realidades que existem dentro do tempo, Ele nfio consegue dar outro nome senao estrutura, mas vai defini-la como realidade que o tempo demora muito para movimentar, agitar e desgastar. & um tempo que os historiadores definem como um tempo quase imével. As trés velocidades do tempo somaram-se as eriticas das periodizagées e fizeram com que a produgio hist6rica contemporfinea se tornasse completamente fragmentada, Muitas vezes, nfio 6 a especialidade que define a temporalidade. Nés vamos encontrar simultancamente hist6rias do imaginario de tempo breve, médio e longo. Vamos encontrar hist6rias da famflia que sio hist6rias de longa duracio, mas também hist6rias de famflia de curta duragio. A fragmentagio se torna tio complexa que a discusséo do tempo deixa de aparecer na narrativa hist6riea, fechando-se no campo restrito da Teoria da Hist6ria, E a narrativa hist6rica continua sendo feita praticamente como se o tempo, na sua utilizagio e decomposigio, no tivesse sido alterado, Dificilmente 0 historiador coloca um aviso na sua obra de que a sua narrativa € uma hist6ria de longa duragio, deixando a discussfo para outro tipo de obra, fazendo a separagio, o corte. Isso acaba provocando no leitor a idéia de que 0 tempo, para o historiador, é sempre uma continuidade, que ¢ sempre um tempo continuo, com conexiio sempre causal direta e que toda explicagio ¢ estruturada em cima da continuidade. Na verdade, qualquer que seja o tempo que escolha, 0 19 historiador trabalha com a descontinuidade, com o lacunar e com um tempo de diffcil apreensiio e de diffcil eaptaglio. $6 que na sua narrativa isso nfo aparece. A narrativa sempre uma narrativa estruturada como sequencial, A fragmentagio das concepcées de tempo, das periodizagSes, aparece ma escolha dos objetos. A fragmentagio surge como decorréncia do tempo do capital, da percepcio multidimensional e consciente do fluxo de pensamentos que caracterizam a sociedade contempordnea. M.H.O.AUGUSTO: Agora, 0 professor Milton Santos falaré sobre © TEMPO NAS CIDADES. M.SANTOS: Eu quero comecar pedindo desculpas pelo atraso, pois tive que participar de uma homenagem a uma colega, a professora Kiitia Matoso, historiadora eminente, ¢ isso atrasou nossa chegada neste evento. Peco desculpas! Em segundo Tugar, quero agradecer aos que organizaram esta série de eventos, em particular ao meu velho amigo Menna-Barreto, com quem tive a oportunidade de trabalhar a alguns anos atr4s, sobre este mesmo tema, Eu nfo trago nada acabado para esta reunifio, Eu vou proceder como se estivesse num seminario, Na realidade, 0 que vou trazer aqui, 6 um esbogo de uma velha ambigio que jamais pude realizar (espero poder realiz4-la ainda) que é oferecer um curso de p6s-graduagio sobre o tempo. Ainda que nfo seja filésofo, sou geégrafo, parto da idéia de que a Geografia é uma filosofia das técnicas, considerando a técnica como a possibilidade de realizagio da Hist6ria, de mudanca da Hist6ria, de visibilidade dessas rupturas As quais se referiu a professora Glezer, A Geografia pretende utilizar como um de seus campos de trabalho ou como uma das geografias possfveis, aquela que se preocupa com a apreensio do contexto dos atuais e diferentes momentos, o que faz dela, de alguma maneira, a hist6ria de cotidianos sucessivos. O entrosamento entre técnica e Historia permite o entendimento do que se passou, do que se passa ¢ eventualmente do que 20 vai se passar, quando as técnicas se tornam um conjunto unificado e “nico, movidas por um motor também finico, o que permite uma visibilidade do futuro, © tempo pode ser encarado das mais diversas manciras; eu, como nfo sou fil6sofo, repito, apenas vou tomar alguns filésofos como ponto de partida, como ajuda na minha conversa, Eu lembraria, por exemplo, o que li em Baillard, quando ele divide 0 tempo em trés tipos: 0 tempo e6smico, o tempo histérico e 0 tempo existencial. © tempo c6smico, da natureza, objetivado, sujeito ao efileulo matemftico; o tempo histérico, objetivado, pois a Hist6ria o testemunha, mas no qual hé cesuras, em vista de sua profunda carga humana; e o tempo existencial, tempo fntimo, interiorizado, nio externado como extensio, nem objetivado, € 0 tempo do mundo da subjetividade e niio da objetividade, Mas, esses tempos todos se comunicam entre eles, na medida em que o tempo € social, Parafraseando Heidegger, para quem sem 0 homem nfio ha tempo, € desse tempo do homem, do tempo social contfnuo e descontfnuo, que néio flui de maneira uniforme, que temos de tratar. E € por af que se vé que esses diversos tipos de tempo convergem ¢ divergem, Convergem ma experiéncia humana e divergem na anflise. Do tempo matemitico, tempo e6smico, tempo do relégio, a0 tempo hist6rico, vai toda uma evolugio que € assinalavel ao longo da hist6ria, O relégio que € descoberto num determinado momento da hist6ria, € redescoberto neste séeulo com 0 taylorismo e depois com o fordismo; um tempo que é medida do rel6gio, se nfio o enchermos dessa substAncia social. O tempo individual, tempo vivido, sonhado, vendido e comprado, tempo simbélico, mftico, tempo das sensagdes, mas com significagio limitada, nfo é suscetivel de avaliagio se nfo referido a esse tempo hist6rico, tempo sucessiio, tempo social, o ontem, 0 hoje, o amanhé. Essas sequéncias, que nos do as mudangas que fazem hist6ria, eriam as periodizagbes, isto 6, as diferengas de significagio. Nesse momento, eu gostarla de me referir a um fil6sofo latino-americano, Sérgio Bags, que distingue entre o tempo como sequéncia - © transcurso - 0 tempo como raio de operagGes - 0 espago - e o tempo como rapidez 21 de mudangas, como riqueza de operagées. Af se vé que o tempo aparece como sucesso, permitindo uma periodizagiio; depois aparece como raio de operagées, isto 4,0 tempo que nos € concomitante, que nos € coetfineo, ou que foi coetfineo de uma outra gerago, e esas duas acepgées do tempo nos permitem trabalhar nfo 56 0 espaco geogréfico como um todo, mas a cidade em particular. Ha uma ordem do tempo que é a das periodizagées, que nos permite pensar na existEncia de geragées urbanas, em cidades que se sucederam ao longo da histéria, e que foram construidas segundo diferentes maneiras, diferentes materiais ¢ também segundo diferentes ideologias..Na cidade atual, essa idéia de periodizacio é ainda presente; € presente nas cidades que encontramos ao longo da histéria, porque cada uma delas nasce com caracterfsticas préprias, ligadas as necessidades e possibilidades da época, e é presente no presente, & medida que o espago é formado pelo menos de dois elementos: materialidade e as relagdes sociais. A materialidade, que é uma adigho do passado e do presente, porque est presente diante de nés, mas nos traz o pasado através das formas: basta passear por uma eidade, qualquer que seja, e nos defrontaremos nela, em sua paisagem, com aspectos que foram eriados, que foram estabelecidos em momentos que nio estio mais presentes, que foram presentes no passado, portanto atuais naquele passado, e com o presente do presente, nos edificios que acabam de ser concluidos, esse presente que escapa de nossas mios, Na realidade, a paisagem 6 toda cla passado, porque o presente que escapa de nossas mos, j4 é passado também, Entio, a cidade nos traz, através de sua materialidade, que é um dado fundamental da compreensio do espago, essa presenga dos tempos que se foram e que permanecem através das formas e objetos que sfio também representativos de técnicas, & nesse sentido que eu falei que a técnica é sindnimo de tempo: cada técnica representa um momento das possi idades de realizagio humana e 6 por isso que as téenicas tem um papel to importante na preocupagio de interpretagio hist6rica do espago. Ora, essas técnicas que nos trazem a periodizagées, 22 que nos permitem reconstituir como aquele palimpsexto, que € a paisagem, a acumulagio de tempos desiguais, que € a paisagem urbana, como ela chega até n6s, permitem-nos também passar dos tempos Justapostos aos tempos superpostos. Se nés considerarmos a hist6ria do espago e do tempo ao longo da hist6ria, vamos ver que ela 6 0 passar de momentos que se propuseram Justapostos, isto 6, em que cada sociedade que criava o seu tempo através de suas téenicas, através do seu espaco, através das relagées sociais que elaborava, através da linguagem que conjuntamente criava também, a tempos que no so mais justapostos, tempos que siio superpostos, isto 6, aquele momento que o capitalismo entroniza, no qual hé uma tendéncla A internacionalizagio de tudo e que vai se realizar plenamente nos tempos dos quais somos n6s contemporaneos, onde h4 uma yerdadeira mundializagio, Esse momento no qual nés vivemos, para repetir Chesnaux, 6 de uma soctedade sincrOnica, integral, na qual o homem vive sob a obsesstio do tempo, sociedade essa que é, a0 mesmo tempo, cronofigica. Nessa sociedade cronofigica, & qual o tempo cede, nés encontraremos a cidade, tal como descrita por Baillard, no seu Cronépolis: dizia ele que, no seu esplendor, essa cidade era como um organismo fantasticamente complexo. Transportar a cada dia quinze milhées de empregados de escrit6rio, manter o servigo de eletricidade, de Sgua, de televisio, administrar essa nossa populagio, tudo isso dependia de um s6 fator: o tempo! Esse organismo nfio poderia subsistir senfo sincronizando estritamente cada passo, cada refeicio, cada chamada telefonica. Daf, houve necessidade de descongestionar os horérios, segundo a zona da cidade. Os carros tinham placas de cores diferentes, de acordo com 0 hordrio em que podiam circular, e assim o sistema se generalizou. S6 se podia ligar a mfquina de lavar, postar uma carta ou tomar um banho, durante uma faixa determinada de tempo. Um sistema de eartas coloridas e uma série de quadros publicados a cada dia, assim como programas de televisio, permitiam a cada pessoa sua localizagio dentro daquela faixa de tempo, Caso contrério, os fustveis saltavam e a recuperacio do 23 sistema seria muito cara, Nos edificios que, antigamente, eram um dos maiores parlamentos do mundo, isto 6, o lugar onde se faziam lels, nesse décor, de estilo g6tico perpendicular, uma espécie de ministério do tempo estava pouco a pouco se constituindo, em torno de um relégio gigantesco. Os programadores eram, de fato, os senhores absolutos da cidade. E a totalidade da existéncia de cada um era impressa nos boletins expedidos a cada més pelo ministério do tempo, Num retrato de uma obra orientada para o futuro, vemos o retrato das cidades em que vivemos, So Paulo que conhecl quando jovem tinha relégios, mas aqueles rel6gios eram apenas uma mostra da modernidade. Séo Paulo ainda nfo era uma grande cidade, mas imitava os grandes centros para parecer também uma grande cidade, Nesse entretempo, os rel6gios desapareceram de Sio Paulo, e reapareceram agora, quando Séo Paulo se torna cron6polis. S40 Paulo se torna cron6polis como qualquer outra grande cidade do mundo, a0 mesmo tempo que as assincronias, as dessincronias se estabelecem, O império do tempo € muito grande sobre nés, mas 6, sobre n6s, diferentemente estabelecido. Nés, homens, nfo temos 0 mesmo comando do tempo na cidade; as firmas no o tem, assim como as intituigdes também nio o tem. Isso quer dizer que, paralelamente a um tempo que € sucessio, temos um tempo dentro do tempo, um tempo contido no tempo, um tempo que € comandado e, af sim, pelo espago. Nesse momento em que o tempo aparece como havendo dissolvido © espago, ¢ algumas pessoas o descreveram assim, a realidade ¢ exatamente oposta. O espago impede que 6 tempo se dissolva e 0 qualifica de maneira extremamente diversa para cada ator. Certo que Kant esereveu também que 0 espaco aparece como uma estrutura de coordenagio desses tempos diversos. © espago permite que pessoas, instituigdes € firmas com temporalidades diversas, funcionem na mesma cidade, nfo de modo harmonioso, mas de modo harménico, Também atribui a cada individuo, a eada classe social, a cada firma, a cada tipo de firma, a cada instituigho, a cada tipo de instituicho, formas particulares de comando € de uso do tempo, formas particulares 24 de comando e de uso do espago. Nao fosse assim, a cidade niio permitiria, como Sio Paulo permite, a convivéncia de pessoas pobres com pessoas ricas, de firmas poderosas e firmas fracas, de instituig6es dominantes e de instituig6es dominadas. Isso 6 possfvel, porque ha um tempo dentro do tempo, quer dizer, 0 recorte sequencial do tempo; nés temos um outro recorte, que € aquele que aparece como ‘espaco. Essa temporalizagio, digamos assim, prética, como Althusser havia sugerido, aparece nos contextos, que é 0 que a nés ge6grafos interessa estudar - os contextos, a sucessio de contextos, onde o tempo, & imagem de Einstein, se confunde com o espaco, € espago. O espaco é tempo, coisa que somente é possivel através desse trabalho de empiria que nos € admissfvel, concebendo a téenica como tempo, incluindo entre as técnicas, n Zio apenas as técnicas da vida material, mas as técnicas da vida social, que vio nos permitir a Interpretagdo de contextos sucessivos, De tal manelra que 0 espaco aparece como coordenador dessas diversas organizagies do tempo, o que permite, por conseguinte, nesse espago to diverso (nesse espago que sendo global é também um espaco monddico, & medida que cada ponto tem uma significagio particular dentro do mundo, ponto do mundo que 6 mundo também, pois cada ponto do espago é mundo também, esse ponto, a imagem dos pontos, eventos sugeridos por tantos filésofos) essas temporalidades que coabitam no mesmo momento hist6rico. & esta a pesquisa que eu desejaria realizar, nfio sei se poderei fazt-la, estou trazendo para discussio aqui neste seminario de trabalho, para ver se h4 viabilidade. De tal maneira que nfo terfamos apenas, como Fernand Braudel, nosso mestre, que foi o fundador da escola de Hist6ria ¢ Geografia da USP, as nogdes de tempo longo e de tempo curto; eu, modestamente, proporia que ao lado dos tempos curto e longo, falassemos de tempos répidos e tempos lentos. A cidade € 0 paleo de atores os mais diversos: homens, firmas, instituigoes, que nela trabalham conjuntamente, Alguns movimentam-se segundo tempos rfpidos, outros, segundo tempos lentos, de tal mancira que a materialidade que possa parecer como tendo 25 uma Gnica indicagio, na realidade nfo a tem, porque essa materialidade € atravessada por esses atores, por essa gente, segundo os tempos, que sfio lentos ou répidos. Tempo répido que € 0 tempo das firmas, dos individuos e das instituigbes hegemdnicas e tempo lento que é 0 tempo das intituigées, das firmas e dos homens hegemonizados. A economia pobre trabalha nas dreas onde as velocidades sio Ientas. Quem necesita de velocidades rapidas € a economia hegemOnica, sio as firmas hegemdnicas, para as quais a significagio de uma avenida dos Bandcirantes, ou de uma estrada como a dos Bandeirantes, a Anhanguera, que siio estradas que sobretudo interessam aos agentes hegemOnicos e As pessoas ricas que usam melhor, do seu ponto de vista, essas estradas... Do aeroporto ao centro da cidade vai-se muito depressa, eriam-se condigées materiais para que o tempo gasto na viagem seja curto. ‘JA entre os bairros vai-se mais devagar, no sentido de que nio hé uma materialidade que favorega o tempo répido. Aqui, a materialidade impée um tempo lento. Isso quer dizer que os pobres vivem dentro da cidade sob tempos lentos. Sio temporalidades concomitantes e convergentes que tm como base o fato de que os objetos também tém uma temporalidade, os objetos também impdem um tempo aos homens. A partir do momento em que eu crio objetos, deposito num lugar e eles passam a se conformar a esse lugar, a dar, digamos assim, a cara do lugar, esses objetos impéem & sociedade ritmos, formas temporais do seu uso, das quais os homens nfo podem se fortar e que terminam, de alguma maneira, por domind-los, Néo naquele sentido a que Maffesoli se reportou, quando disse que os objetos deixaram de ser obedientes e passaram a nos comandar. Os objetos nos comandam de alguma maneira, mas esse comando dos objetos sobre o tempo consagra, no meu modo de ver, essa unio entre © espaco e 0 tempo, tal como nés geégrafos 0 vemos (evidentemente, no 0 espago e © tempo dos fildsofos tout court), Era o que eu tinha a dizer, pedindo ajuda e sugestées para o projeto de pesquisa. Universidade de So Paulo Reitor: Flavio Fava de Moraes Vice-Reitor: Ruy Laurenti Instituto de Estudos Avangados Conselho Deliberative Jacques Marcoviteh — diretor Alfredo Bosi Gerhard Malnic Joao Evang: Myrian Matsuo Umberto G. Walter Colli Cordani

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