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Organizagao Reila Grinberg e Ricardo Salles O Brasil Imperial - Vol. Ill - 1870-1889 Se ‘CIVILIZAGRO BRASILEIRA Rio de Janeiro 2008 casino Apropriacao de ideias no Segundo Reinado! Angela Alonso Nenbuoma reforma se fee stil e definitiva sem padecer primeiro as reistncias da tra- digdo, a coligagto da rotina (..). £0 batis- ‘mo das boas idéias; a0 mesmo tempo 0 seu purgatorio, MACHADO DE ASS, O Crueio, 77/1878 [AS IDEIAS COMO PROBLEMA Silvio Romero tem a mais influente interpretagio sobre o movimento de ‘deias no Segundo Reinado. A metéfora, de 1878, & de péssaros em re- voada, Sitagio castica, na qual pretensos intelecruis tupiniquins imitam pobremente os desenvolvimentos de te6ricos estabelecidos na Europa. Escrevendo na década de 1870, Romero era parte do que julgava. Quem voltou posteriormente 20 assunto negligenciou esse fato, caso da linhagem da histéria das ideias, da qual Cruz Costa? e Antonio aim? s80 epigonos. Adotando uma perspectiva cognitiva, reduziram o movimento ‘seus escritos ¢clasificaram os textos em escolas, conforme sua filiacéo a teorias europeias. Sera, assim, um movimento de intelectuais, mais espe- Cificamente de fil6sofos. Estudos com outro foco aceitaram esse presst- Por circunscrever 0 movimento as instiuicdes de ensino ou pesquisa’ seja por tomar seus componentes como “intelectuais”.> Outro grupo de intérpretes othou o movimento a partir da posicSo so- cial de seus membros. Sempre falando de “intelectuais" segmentaram-nos em classes sociais identificaram ideologias correspondentes. Hall, por © anasit mmpeniac — vowume 3 ‘po: © darwinismo social.* E assim por diante. Estudos sobre a formagio social brasileira equacionaram a questio na forma de linhagens doutrindrias de longa durasao, caso de Faoro"” ¢ Morse," sem atentar para suas modulagSes contextuais. Em Sérgio Buarque de Holanda’? aparece a tese de um desajuste entre sistemas de Pensamento importados e realidade brasileira, retomada por Schwarz," agora de dentro da estrutura da obra literdria. Nesse prisma, a descrigao de Silvio Romero vira sintoma, Essa experiéncia social, o “sentimento de imitagio”, € explicada por referéncia ao desenvolvimento caudatério do capitalismo entre nés. © par centro/periferia estrutura 0 argumento, apontando sempre o descompasso entre ideias modernas e sociedade atta sada. Dafa necessidade de adaptagio. Schwarz, embora entrevendo novas. fungGes para oliberalismo, que ganha versio reaciondria para se aclimatar, nido atentou para o sentido contrério, como o radicalismo — jé vere- ‘mos —, que o positivismo adquiriu por aqui. Além disso, buscou conectar 8s l6gicas dos textos e da formagao social, nfo se detendo nas agdes con- cretas de seus autores nem na conjuntura sociopolitica da qual emergiram, As anilises tm por pressuposto comum tomar 0 movimento de ideias como estritamente intelectual. Iso supe um campo auténomo. Ora, no lectuais strictu sensu, mas carreira piblica, incluindo postos politicos, diplomaticos ¢ académicos. Ao descurar desse dado de realidade, compraram a inter- retacdo dos préprios agentes, endossando como fato sua construgio ex-post como homens de letras apartados da pratica politica. Assim, seccionaram 0 objeto em dois pedacos: autores de obras intelectuais, de tum lado, e ativistas politicos, de outro, e cobraram dos primeiros que cumprissem requisitos de qualidade académica que jamais visaram. Outra suposigao comumn é a de que havia um fosso tio grande entre as realidades metropolitanas ¢ coloniais, que quaisquer ideias empresta- das ficariam necessariamente deslocadas. Por conta dessa diferenca, no ‘€ prestou atengio nas semelhangas e padres compartilhados por paises, APnoPRiacho 0: IAS NO SEGUNDO AEINADO membros, afinal, da mesma civilizagio ocidental. E, a0 mesmo tempo, obscureceram-se os elementos genuinamente singulares com os quais 0 ‘movimento da gerasio 1870 podia dialogar, isto é, a tradicio brasileira Tais interpretagSes compartilham a pergunta sobre o sucesso da “adaptagdo” de teorias estrangeiras a r im sendo as ideias 0 sujeito do processo. tagiam” os agentes, meros suportes. Aos membros do movimento nao se concede nenhuma perspicacia ou capacidade de discernimento da situa- ‘40, menos ainda de selecio interessada das ideias. Desconsidera-se, pois, toda e qualquer agency. O carter de aio coletiva da geragio 1870 fica simplesmente exclutdo. Levé-lo em conta obriga a abandonar culos das ideias estrangeiras pelos da conjuntura nacional. Boa parte dda sociologia da cultura mais recente passou do estril debate em tor~ no da supremacia das préticas sobre as formas de pensar, ou vice-versa, Para abordagens que enfatizam os vinculos entre cultura e experiéncias sociais concretas. Uma ala dessa literatura avizinhou-se da sociologia po- Iisica, surgindo daf abordagens como a de Ann Swindle adogio seletiva de recursos culturais em repert6rios. O relevante sio as estratégias de aco dos agentes, 0 uso que fazem de elementos do reper- ‘ério e, de modo algum, sua consisténca tebrica — donde gua definigio ‘metaférica como “caixa de ferramentas". Essa pista encaminha a troca do problema da imitagdo para o da apropriacdo de ideias estrangeiras, 0 ‘que significa supor dos agentes capacidade de escolha interessada de ideias conforme experiéncias e os dilemas préprios. Swindler, contudo, restringe seu conceito de repert6rio a dimensoes Do outro lado, no coragao do debate sobre movimentos soci ly" adotou 0 mesmo conceito, mas dilatou-o de modo a fazer caber a dimensio pratica. Os repertérios de agdo coletiva sio um conjunto de le pensar e agir, simultaneamente nascidas em meio a conflitos Seus componentes sio sujeitos, por isso hé reinterpretagées ¢ . Os ideres partidos, senadores e deputados, simultaneamente de as instituigdes cen- trais do Segundo Reinado e sua legitimacio simbélica. O Instit 0 Brasileiro, onde se albergavam todos os p lo império, fez. boa parte da tarefa.2 Natural, pois, que fossem especulares as instituigdes e as ideias, Nesse tempo saquarema, como 0 chamou Matos,» a dominacio so- cial estevea cargo dos conservadoresfluminenses, masa imagem da socie- dade que entéo se constituiu expressava os valores compartilhados por toda a elite imperial, que descreviam os alicerces de sua sociedade e ins- tinuigbes politicas. A ctiagio dessa tradigio nacional alimentou-se de duas fontes: o re- pert6rio europen e a experiéncia nacional. A apropriacio de conceitos estrangeiros foi seletiva ¢ interessada. Do repertério contemporineo, a life imperial colheu elementos que a ajudassem a forjar uma couraga contra as intempéries amargamente vivenciadas durante a Regéncia e 0 Primeito Reinado, o que he deu os parametros para triagem de ideias no repertorio estrangeiro. Olhando para a Europa convulsa de prinefpios do século XIX, foram atrafdos por elementos aptos a exorcizar os fantasmas que os assombra- vam, 0 despotismo do principe e a revolucao popular. Escolheram em- beber-se dos principios de politicos exitosos em esconjurar esses males. © pensamento francés da Restauracio foi sua grande fonte — Guizot, Thiers, Royer-Collard viraram seus autores de predilecio —, de onde veio um liberalismo moderado, que previa a hierarquizagio dos cidadios, a contengio dos excessos do Poder Executivo e que demarcava os pro- prietérios como cidadios plenos. Seria essa a condigo indispensével para a independéncia de opiniées politicas. Configurava-se o que Florestan (© BRASIL IMPERIAL — voLUME 3 Fernandes™ chamou de “liberalismo estamental”, cujo minimo elemento nio era o individuo, mas a familia, na qual exercia a cidadania plena, representando-se e a seus dependentes, restringidos em direito por con- ta de suas incapacidades. Mulheres, criangas e homens sem renda jd es- tavam exclufdos no modelo francés, o b acoplou os escravos. Conservadores, como o visconde de Uruguai, e liberais, como Zacarias de Gées e Vasconcelos, conjuntamente advogaram essa restrigio dos direi- £0 politicos, jé que nio havia povo apto a exercé-los. Dizia este dltimo em 1876: “A nossa constituigéo admitin a soberania do povo no bom sentido (..) as familias que se reiinem tm direito de governaro pais.” Nessa formulagio, néo democritica, o liberalismo unia-se sem proble- mas & escravidio, A orientagio catélica herdada da metr6pole foi mantida, e a forma de governo monérquica era ela propria emanagio da vontade divina. O absolutista francés Jacques Bossuet era constantemente citado, por conta de sua vinculagao dos direitos mondrquico e divino. Por obra de Deus, 0 rei concentrava legitimamente todos os poderes terrenos. Tal catolicismo hierérquico, em versio medievalista estratificava rigorosamente a socie~ dade, mas era também a porta para acolher aqueles que o liberalismo excluira. Os menores— mulheres, homens bres, escravos—eram aceitos na mesma comunhio, incorporados simbolicamente. Com gi0 do Estado, o catolicismo continuava garantindo a exclusio politica desse seu rebanho. A Igreja auxiliava o Estado no controle social nos rin- Coes € garantia que as eleig6es, sediadas pela igrejas, seguissem 0 roteiro tracado na corte. Para consumo préprio, a elite imperial deu ao catoli- cismo um ar mais abstrato, com a incorporacio do ecletismo filos6fico de Victor Cousin. Era um espiritualismo atenuador de confrontos, an- dando em diregio das s{nteses, fugindo de afirmagées dogmaticas. Fun-

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