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MARTIN HEIDEGGER CONFERENCIAS E ESCRITOS FILOSOFICOS NoTA DO TRADUTOR Em nossa época observamos um proceso de despersonalizagdo do filosofar. Em consegiiéncia, a figura do pensador solitério, que empolga e arrasta as massas académi cas, perde em importancia ou tende a desaparecer. Em seu lugar aparecem os trabalhos coletivos e a filosofia assume o papel de regulador de um fecundo labor interdisciplinar. Heidegger tera sido uma das iiltimas grandes figuras que, contra sua vontade pes soal, fornou-se um ponto de partida para diversos debates decisivos no cendrio da filoso- fia académica do séeulo XX. E verdade, 0 fildsofo foi a testemunka de uma época; mais ‘pelo contetido de suas andllises, que pelo estilo pessoal de comportamento. Retirado na provincia, irradiou, através dos alunos de muitos patses do mundo, que o vinham procu- rar, una temédtica que se matizaria, de acordo com os ambientes para onde era levada. Situado entre as duas grandes guerras, envolveu o motivo central de sua interroga- ¢do com uma linguagem muito ao gosto da época e com andlises hist6ricas e existenciais, que pareciam refletir a angtistia do mundo de entao. O jargdo expressionista e o elemento patético de certos temas de sua obra capital, Ser ¢ Tempo. foram tdo rapidamente assimi- Jados que terminariam encobrindo a questéo, central que movia as intengdes do filésofo: 4 questdo do ser. Néo foi esta, mas aspectos existenciais, antropoldgicos, éticos que for. ‘maram a moldura em que foi recebido Ser e Tempo, antes e sobretudo, apos a Il Guerra Mundial. Para melhor compreender a posiedo do pensador e de sua obra, convém situd-lo na vertente de uma idéia que nasceu com Dilthey e Nohl, e se bifurcou em dois tracos anta- génicos, que ainda hoje correm paralelos, sem esperanca de uma confluéncia. De Dilthey e Nohl receberam Heidegger e Carnap a idéia da superacdéo da Metafisica. Tomada como tarefa, esta idéia desdobrou-se, de maneira bem diferente, nos dois filésofos, geran do, nos seus seguidores, duas tendéncias separadas por barreivas intransponiveis até hoje. Heidegger, por influéncia dos contatos com a erttica de Nietzsche ao platonismo e cristianismo e com a polémica de Kierkegaard com a filosofia reflexiva do idealismo especulativo, moldou uma forma muito original de superacdo da Metafisica. O filésofo convenceu-se de que, até 0 seu tempo, toda a histéria da ontologia ndo passara de uma teologia e que, com os neokantianos, caira numa teoria do conhecimento.A Metafisica era esta hist6ria da ontologia como onto-teo-logia. Heidegger propds uma ontologia fundamental que, através de uma analitica exisiencial, preparasse um modo de colocar a questdo do ser. Enido, conduzido pela andlise do tempo, procederia a uma destruigdo da ontologia da tradi¢do, superando, assim, a Metafisica. Num processo regressivo, o fil6- sofo realizou, utilizando-se de um método fenomenoldgico husserliano radicalizado ¢ transformado, um adentramento nas camadas da existéncia, de um lado, na hist6ria da filosofia, de outro. Ambas as incursdes revelaram a questdo esquecida: a questéo do ser. "A temporalidade como sentido da preocupagdo que constitui o ser do ser-at tornar-se-ia 202 NOTA DO TRADUTOR 0 horizonte para a interrogagdo do ser; e a questdo do ser fora precisamente esquecida por wna falsa solugao dada ao problema no tempo na hist6ria da Metafisica ocidental. Deste modo, Heidegger move-se sempre em dois niveis; ao nivel da andlise da exis- téncia e ao nivel da andlise da historia da filosofia. Seu método the permite este modo paralelo e reciprocamente imbricado de interrogagdo, Pois conduz-se no modelo bindrio de velamento e desvelamenio: hé um encobrimento radical, ao nivel da existéncia, ¢ outro, ao nivel da historia da Metafisica. Este encobrimento vela a questiéo do ser-no plano da existéncia e no plano da histéria. A superacdo da Metaffsica mostrard que 0 ser sempre se vela no ente e que o homem tende a esquecer este velamento. Importa pensar 0 ser velando-se sempre e ndo propriamente expd-lo a luz da objetivacdo, 0 que seria ‘Confiundi-lo com o ente. Carnap entenderia de maneira bem diferente a questiéo da superagdo da Metafisica. Props sua solugdo no conhecido ensaio de 1932: Superagao da Metafisica pela Andlise Légica da Linguagem. Todo 0 movimento neopositivista, inspirado em Frege, levado avante por Wittgenstein através do Circulo de Viena, encaminka-se nesta diregéo: a Metafisica constitui-se de proposigées destituidas de sentido. A anélise ldgica de suas proposi¢ées levard @ sua superagéo. Realizada esta tarefa, o pensamento neopositivista envereda pelo caminho fecundo do pensamento ldgico e da filosofia das ciéncias. Enquanto a filosofia das ciéncias pée todo 0 seu empenho em promover a atividade cientifica na era da técnica, através dos subsidios indispensaveis da reflexdo metodold gica, Heidegger vé, em todo este processo, um signo do esquecimento do ser. Sua erftica 4 inelutdvel invasiéo do planeta pelo dominio da técnica ndo deve ser vista como postura anticientifica ou simplesmerite reacionéria e pessimista; ele quer salvar um espaco essen- cial para 0 humano, que ndo pode ser dissolvido no processo tecnocratico, e nisto coin- cide singularmente com pensadores neo-hegelianos € neomarxistas. Quando afirma que “a ciéneia ndo pensa”, néo 0 faz como uma critica, mas como uma constatagao do que é a estrutura interna da ciéncia. Heidegger reconhece o fendmeno da autonomizagéo das ciéncias do ambito da filosofia como um acontecimento inevitével e que nao possui nada de negativo. O que ele quer impedir é que a razéo se instrumentalize inteiramente e perca a visdo do todo. Também para Heidegger esté morta a possibilidade de wma filosofia pri. meira, no sentido classico, ¢ com isto libertou ele o homem e a obra humana de modelos cosmolégicos superados. A recepedo das idéias de Heidegger, sobretudo na América Latina, lamentavel- mente se orientou no sentido de compreendé-lo como restaurador de uma filosofia pri- meira e dos mitos ontolégicos superados. Nao apenas pelas influéncias que recebeu, também pelo sentido de abordagem de sua temdtica, pelas vivéncias pessoais, pelo nivel de consciéncia politica e pelo contexto historico em que se situava, mas sobretudo pelas pretensées falsas de uma problemati- zagdo e tematizaedo certas, revela Heidegger tragos reaciondrios. Nao é sua passageira adeséo a0 nacional-socialismo, cujas implicagdes bem cedo reconheceu que deve ser vista como iinico elemento de peso no julgamento de sua posi¢éo politica. Hd uma certa sobranceria que the vem da consciéncia de ser “o pastor do ser que o torna vulnerdvel quando se-trata de fazer ju‘z0s histéricos que tém a ver com 0 aqui e agora. Move-se no plano do ser e, a quem se move apenas neste plano, a asticia da razdo mostra muito cedo que the faltard 0 senso da proporedo para as coisas humanas, senso que s6 poderé advir de um conhecimento cieniffico das diversas regides dos enies. A tentacéo de apresentar- fewla. E Heidegger nem se como profeta, enquanto se é fildsofo, além de absurda é rid BiBgiO NOTA DO TRADUTOR - 203 sempre consegue fugir a esta tentacdo. E 0 que muitas vezes mais chama a atencéo & encobre sua enorme coniribuigdo para o pensamento do século XX. Além de recolocar a questo do ser numa dimensdo que a libertou das ilusdes de uma ontoteologia; além de estabelecer uma distinedo clara entre as questées ontoldgicas € as questdes Gnticas; além de libertar definitivamente a filosofia e de separd-la das visdes de mundo; Heidegger destruiu o sentido ilusdrio da metéfora da reconciliagdo de historia e natureza, enquanto ela implica uma busca de identidade absoluta. Esta metéfo- ra, base de todas as utopias, retoma, nele, suas verdadeiras dimensdes: 0 homem deve assumir-se na finitude. E de lamentar que tudo isto tenha permanecido implicito em seu pensaniento, faltando-the 0 sentido da mediagéo, a impaciéncia do conceito, para dar-the forma na praxis histérica. _O pensamento do futuro, tdo visceral em Ser e Tempo, nunca chegou a ser conereti- zado em posstveis formas histéricas de reflexdo. Néo podendo superar Hegel — tendo, contudo, nas maos, 0 remédio para a cura da doenca do absoluto —, nunca 0 enfrentou deveras; sempre acabou contornando-o. Por isso tornou-se tao dificil 0 didlogo com 0 pensamento marxista ndo-dogmético e com os neo-hegelianos de Frankfurt. E neles que a idéia w6pica de uma reconciliagdo do homem com a natureza em sentido absoluto deu lugar & idéia da maioridade, do processo de emancipacdo, da convivéncia e comunicacéo sem repressividade. Heidegger abriu 0 caminho, mas demasiadamente fiel a si mesmo, néo chegou a dimenséo crttica, onde tomam forma as interrogagdes humanas no campo da ciéncia, da técnica, do proceso emancipatério, do humanismo, da praxis, enfim. Boa parte do caminho que at esté-se trithando foi antecipado in nuce pelo filésofo da Floresta Negra. Mas este néo péde saltar sobre sua sombra. Talvez nesta fidelidade a si mesmo esconda-se a grandeza de Heidegger; nela, porém, abriu ele os maiores flan- cos para a critica. Os textos reunidos neste volume, que cobrem meio século, devem ser vistos e compreendidos nesta perspectiva. Eles representam realmente todos os passos fundamen- tais do pensador. Séo apenas wna pequena parte do que escreveu; mas siio a concentra- a0 de todos os temas centrais que Heidegger desenvolveu desde a grande aurora de Set Tempo. A presenga de Sartre e Heidegger num s6 volume pode ser discutida, Mas sio pala- vras textuais deste: “Aprecio muito a Sartre”’ isto significa, certamente, também e sobre- tudo, sua obra. E na Carta sobre 0 Humanismo que se dé 0 confronto direto do mestre com um inconfundivel diseipulo que, na sua perspectiva, superou omissées do mestre. Deste confronto, langa-se uma luz que poderd dar a envergadura do debate e da anilise fecunda que poderd aproximar textos tao distantes. QUE E ISTO- A FILOSOFIA? Nota do Tradutor Longos anos de reflexdio sobre determinada questo concentram-se ¢ explodem nas conferéncias de Heidegger. Todas elas surpreendem pela densidade ¢ pelas afirmagdes compactas. $6 a andlise mais detida de sua obra revela 0 proceso mediador, 0 longo caminho discursivo, que precede tais manifestagdes. As leituras, as prelegdes, os cold: quios, os seminarios de varios niveis, centenas de folhas manuscritas representam 0 cui dadoso exercicio ao ver fenomenolégico cujo resultado apenas resume nas conferéncias. O que, a primeira vista, pode parecer uma passageira fulguragao na noite do pensamento € alimentado por um paciente trabalho clarificador. Heidegger somente 0 pensador obs- curo, 0 filésofo de sentengas grandilogiientes, para quem desconhece a escola de trabalho de Husserl ¢ nao penetrou nos bastidores onde se escondem os preparativos de certas aparigdes espetaculares do autor de Ser e Tempo. Que é Isto — a Filosofia? O Principio da Identidade ¢ A Constituigdéo Onto-teo- légica da Metafisica sio tais momentos de cerradas afirmagSes, de parada ao fim de rduo caminho. Sao trés conferéncias pronunciadas respectivamente em agosto de 1955. junho de 1957 ¢ fevereiro de 1957. Situam-se na constelagao dos grandes textos de Hei- degger apis a discutida viravolta; fazem parte da década mais fecunda em publicagdes para o fil6sofo. Nos anos 50 foram editados: Sendas Perdidas (1950), Introduedo a Metafisica (1953), Que Significa Pensar? (1954). Ensaios e Conferéncias (1954). O Prin- efpio da Razdo (1957). A Caminho da Linguagem (1959) ¢ outros textos menores. Ainda que escritos no horizonte terminolégico e tematico do segundo Heidegger, 0 trés trabalhos se iluminam quando compreendidos a partir da analitica existencial. Os problemas da correspondéncia ao ser, da relagao de ser e homem e da diferenga ontolé: gica que af sio tratados nascem do confronto com a tradigao, da intengao destruidora do filésofo, do deslocamento da questo do ser e da verdade para 0 ambito da finitude. A linguagem utilizada nao deve ser vista como um jargao sacralizado, como acon, tece na tradigao escolastica, nem como tentativa de clarificagao de uma linguagem obs cura ¢ confusa que serviu de instrumento de anlise de determinado objeto, como acon- tece nas correntes da analitica da linguagem. O filésofo procede experimentalmente. As palavras nao so definitivas, nem pretendem apresentar-se como melhores face a outr: A linguagem é comandada pela coisa mesma, por um determinado modo de ver — 0 mé- todo fenomenolégico — que clarificou um estado de coisas £, sobretudo, das atuais concepgdes da linguagem que se deve distinguir 0 compor- tamento heideggeriano em face do dizer. Se, para simplificar, dividirmos em dois campos as tendéncias que se ocupam com o problema da linguagem, temos, de um lado, a con- cepgao técnico-cientifica da linguagem (por exemplo, Carnap) e, de outro a experiéncia especulativo-hermenéutica da linguagem (por exemplo, Heidegger). Os primeiros procu: 208 HEIDEGGER ram colocar todo 0 pensamento e linguagem, mesmo os da filosofia, sob a competéncia de um sistema de sinais que a técnica e a logica podem construir, isto é, fixar como instrumento da ciéncia. Heidegger assume sua posigao a partir da questo que procura saber qual é a coisa mesma que o pensamento da filosofia deve experimentar ¢ como deve ele dizé-ta. Nestas duas posigdes nao se trata simplesmente de duas filosofias da lin guagem. Mas a linguagem é vista como 0 dominio em cujo interior o pensamento da filo- sofia e qualquer espécie de pensamento e discurso residem ¢ se movem. Trata-se de um confronto de duas posigdes em que o problema da existéncia do homem e sua definig&o esto em jogo (ver a analise que 0 filsofo faz desta questo em Archives de Philosophie, jutho-setembro de 1969, paginas 396-415) Nestas trés conferéncias realiza-se, portanto, um processo ambivalente e circular: questiona-se 0 objeto do pensamento e questiona-se a linguagem que procura dizé-lo. A coisa que se busca dizer e o dizer mesmo se entrelagam numa interagdo circular. Querer definir e separar uma e outro seria pretender romper o cfrculo, perdendo a coisa mesma e, com ela, a possibilidade da linguagem para dizé-la. A coisa mesma que Heidegger persegue aqui é a questo do ser no horizonte da diferenga ontol6gica. Em Que é Isto — a Filosofia?, esta questo torna-se o centro a par- tir do qual se procura dizer 0 que é filosofia; em O Principio da Identidade, esta questio € 0 ponto de partida para uma andlise da relagdo entre ser e homem: em A Constituigdo Onto-teo-l6gica da Metafisica, a mesma questao é analisada especificamente na perspec- tiva da diferenga, para se determinar a relagdo entre ser e fundamento (Deus). Examinando a estrutura dos trés textos, pode-se descobrir uma certa homogenei dade no tratamento das questdes. Hé um esquema que se repete: primeiro: langam-se algumas interrogagSes; segundo: realiza-se a destruigao da tradigdo; terceiro: esboga-se uma resposta, Na tentativa de responder, 0 fildsofo introduz termos novos que procuram expressar o estado de coisas. Na primeira conferéncia: a questo do ser na perspectiva da correspondéncia ao ser é posta a partir do termo “dis-posigdo” (que est na origem da correspondéncia). Na segunda conferéncia: a questo do ser na perspectiva da relagao entre ser e homem é posta a partir dos termos “arrazoamento” e “acontecimento-apro- priagao”. Na terceira conferéncia: a questéo do ser na perspectiva da relagio entre sere Deus (solugao dada pela tradigao 4 questo da diferenga ontolégica) é analisada a partir dos termos “sobrevento”, “advento” e “de-cisio”. Desta maneira, as questdes da filoso- . da identidade e da diferenga so discutidas através de uma linguagem nova que pro- cura aproximar-se da coisa mesma que nelas se mostra. Heidegger introduz os modos novos de dizer aquilo que persegue, através do horizonte hermenéutico. O confronto interpretativo com a historia da filosofia, a atitude violentadora de sua interpretagao (que jf justifica em Ser e Tempo, § 63), dio como resultado uma nova abertura para o ver fenomenol6gico e o que nela se Ihe mostra é expresso com uma nova “violéncia” termi- nolégica: uma etimologia forgada fornece novos semantemas. Quer discutindo sobre a filosofia, quer desdobrando o principio da identidade, quer langando a questio da diferenga, o fildsofo repete trés temas paraleios ¢ aparentemente secundarios: a) Hegel, idealismo, dialética e mediagdo; b) técnica: automagio, tecnolo. gia, cAlculo e planificagdo; c) linguagem. Através de Hegel. realiza-se 0 encontro com a tradi¢do na sua plenitude. Nele ja se anunciam o fim da filosofia ocidental e as possibi dades para um novo pensamento com nova tarefa. No problema da técnica se mostra a possibilidade de captar o mundo atual como totalidade. As questdes levantadas em torno da questo do ser nas trés conferéncias mostram sua forga questionadora na medida em que respondem as interrogagdes da era da técnica. Ao problema da linguagem se reduz, QUE E ISTO — A FILOSOFIA? 209 afinal, o caminho do questionamento porque por ela somos carregados e somente na me- dida em que tornarmos transparente este ser possuido pela palavra somos capazes de co-responder de maneira conveniente ao que a coisa mesma nos pde como tarefa. Ha, finalmente, ainda um outro elemento que se repete nas trés exposigdes do fil6so- fo: a questéo do fundamento, Na primeira: por que 0 ser chegou a ser determinado como fundamento no sentido de causa? Na segunda: por que o traco de identidade no ser se tomou o principio do fundamento? Na terceira: por que o ser tornou-se fundamento fundamentante, enquanto causa sui? Em sintese: por que entificou a tradigao metafisica © ser do ente, essencializando-o? Uma palavra de Hélderlin serve-nos de sugestdo para uma leitura ainda mais pro- funda da unidade destes trés textos de Heidegger. O poeta diz no Hypérion: “A grande palavra, 0 hén diaphéron heautd (traduzo: 0 uno que em si mesmo se diferencia), de Heréclito, somente um grego pade descobrir; pois é a esséncia da beleza e antes de ter sido encontrada nao havia filosofia”, O texto € tirado do Banquete (187 a) de Platio, onde se lé: “Hén diapheromenon auté auté symphéresthai”: “O uno”, diz Herdclito, “se eencontra consigo mesmo, ainda quando tende para a diferenga” A identidade na diferenga é para Hélderlin a esséncia da beleza. Beleza significa para 0 pocta, naquela época, ser. Antes que se descobrisse que o enigma do ser esta no fato de ocultar em si mesmo a identidade e a diferenga, nao havia filosofia. Ou, ainda, 0 ser somente é ser porque é em si mesmo identidade e diferenga; a tarefa da filosofia é questionar o ser nesta dimensao, porque dela brota sua propria possibilidade. Quando Heidegger pergunta: Que é isto — a filosofia?, ele acena imediatamente para a questo da diferenga ontoldgica. Somente na correspondéncia ao ser do ente 0 homem pode filosofar e isto é saber 0 que é filosofia. Na questo da diferenga ontolégica se impdem como pélos determinantes a questio da identidade e a questo da diferenga. Desta maneira, pode-se concluir que os trés trabalhos de Heidegger, aqui reunidos, devem ser meditados, ndo apenas nas questdes que isoladamente levantam, nem mesmo 36 nas quest6es que objetivamente abordam como comuns, mas também, ¢ talvez sobre- tudo, naquela unidade originaria que os funde num s6 bloco: Hén diaphéron heaut6. Par- tindo da pergunta da filosofia em geral, 0 fil6sofo vai ao principio de identidade e deste para a diferenga. A questo: que ¢ isto — a filosofia? recebe sua resposta na andilise das questdes da identidade e da diferenga. Como as questdes da identidade e da diferenga s6 podem ser respondidas pela interrogagao filos6fica, pode-se concluir que as trés questdes se imbricam numa relago circular. Uma pressupde a outra, Nao ha filosofia sem as questdes da identidade e diferenga ontoldgicas; mas também nio se levantam estas ques- t6es sem a filosofia. O fato de estas questdes sempre terem sido postas implicitamente pela humanidade aponta para a universalidade da atitude filos6fica. Somente quando ho- mens Se puseram a interrogar explicitamente em torno delas comegou a filosofia. Para Heidegger, entretanto, a metafisica se afastou deste comego, esquecendo a questiio da diferenga, dando, em conseqiiéncia, uma resposta equivoca & questo da identidade. Retomar a estas questdes pelo passo de volta é revolver 0 solo em que mergulham as rat- zes da metafisica ocidental. Os problemas da tradugao apresentados por estes textos so os mesmos de outros do filésofo. Mais dificil foi a escolha de determinados termos que trouxessem no verné- culo a carga e 0 poder evocador dos usados no original, quando o sentido Ihes ¢ imposto de fora. As notas que acrescentei a0 texto poderdo apontar para a diregiio de onde vem a tradugao. Estou convencido de que a tradugo de textos filosdficos nao garantida em sua qualidade pelo simples dominio das duas linguas em contato. E preciso saber colo: 210 HEIDEGGER car-se na situagdo hermenéutica adequada ao texto. Isto quer dizer: ¢ preciso saber ante- cipar e projetar um sentido sobre a totalidade do tema que o texto aborda, Muitas luzes para a tradugo adequada s6 nascem desta capacidade antecipadora com que se envolve © texto num sentido que a tradugdo das partes aos poucos confirma. A melhor tradugio sob 0 ponto de vista técnico pode despersonalizar completamente um texto. E, por outro lado, muitos textos filoséficos terminam apresentando na tradugao um carater diferente do original porque 0 tradutor nao assumiu a situagdo hermenéutica adequada ¢ projetou a obra num falso horizonte hermenéutico. E nisto que se concentra a responsabilidade e © risco do tradutor. Ele ndo ¢ apenas a ponte entre a lingua-fonte e a lingua-meta; ¢ tam- bém, por exceléncia, o mensageiro (Hermes) que veicula o sentido. Erlangen, Alemanha Ocidental 9 de dezembro de 1970 ERNILDO STEIN QU’EST-CE QUE LA PHILOSOPHIE? * Com esta questio tocamos um tema muito vasto. Por ser vasto, permanece indeter- minado. Por ser indeterminado, podemos traté-lo sob os mais diferentes pontos de vista e sempre atingiremos algo certo. Entretanto, pelo fato de, na abordagem deste tema to amplo, se interpenetrarem todas as opinides possiveis, corremos o risco de nosso didlogo perder a devida concentragio. Por isso devemos tentar determinar mais exatamente a questio. Desta maneira, levaremos o didlogo para uma diregiio segura. Procedendo assim, 0 didlogo & conduzido a.um caminho. Digo: a um caminho., Assim concedemos que este nao ¢ 0 tinico caminho. Deve ficar mesmo em aberto se 0 caminho para o qual desejaria chamar a atengio, no que segue, é na verdade um caminho que nos permite levantar a questio e respondé-la. Suponhamos que seriamos capazes de encontrar um caminho para responder mais exatamente a questio; entio se levanta imediatamente uma grave objegéio contra o tema de nosso encontro. Quando perguntamos: Que é isto — a filosofia?, falamos sobre a filo fia, Perguntando desta maneira, permanecemos num ponto acima da filosofia e isto quer dizer fora dela. Porém, a meta de nossa questo é penetrar na filosofia, demorar- mo-nos nela, submeter nosso comportamento as suas leis, quer dizer, “filosofar”. O caminho de nossa discussio deve ter por isso nfo apenas uma direcfio bem clara, mas esta diregGo deve, ao mesmo tempo, oferecer-nos também a garantia de que nos move ‘mos no Ambito da filosofia, e nfo fora e em torno dela. O caminho de nossa discussio deve ser, portanto, de tal tipo e diregdio que aquilo de que a filosofia trata atinja nossa responsabilidade, nos toque (nous fouche),? ¢ justa mente em nosso ser. Mas nao se transforma sentimental? “Com 08 belos sentimentos faz-se a mé literatura.” “C est avec les beaux sentiments que Von fait la mauvaise littérature." Esta palavra de André Gide nao vale sd para a lite- ratura; vale ainda mais para a filosofia. Mesmo os mais belos sentimentos nao pertencem a filosofia. Diz-se que os sentimentos so algo de irracional. A filosofia, pelo contrario, nao € apenas algo racional, mas a propria guarda da ratio. Afirmando isto decidimos sem querer algo sobre 0 que é a filosofia. Com nossa pergunta jé nos antecipamos & res- posta. Qualquer uma tera por certa a afirmago de que a filosofia é tarefa da ratio. E, contudo, esta afirmagao é talvez uma resposta apressada e descontrolada 4 pergunta: im a filosofia num objeto de nosso mundo afetivo Em francés, no texto original ® Palavras e citagdes gregas, latinas e francesas, que ocorrem no original alemio, sio mantidas no texto portugués, 212 HEIDEGGER Que é isto — a filosofia? Pois a esta resposta podemos contrapor novas questées. Que @ isto — a ratio, a raztio? Onde e por quem foi decidido 0 que é a razio? Arvorou-se a ratio mesma em senhora da filosofia? Em caso afirmativo, com que direito? Se negativa a resposta, de onde recebe ela sua missio e seu papel? Se aquilo que se apresenta como ratio foi primeiramente e apenas fixado pela filosofia e na marcha de sua historia, entdo nao é de bom alvitre tratar a priori a filosofia como negécio da ratio. Todavia, tio logo Pomios em suspeigio a caracterizagio da filosofia como um comportamento racional, toma-se, da mesma maneira, também duvidoso se a filosofia pertence & esfera do irracio. nal. Pois quem quiser determinar a filosofia como irracional, toma como padrio para a determinagao o racional, e isto de um tal modo que novamente pressupde como ébvio 0 que seja a razao. Se, por outro lado, apontamos para a possibilidade de que aquilo a que a filosofia se refere concerne a nés homens em nosso ser ¢ nos toca, entdo poderia ser que esta maneira de ser afetado nfo tem absolutamente nada a ver com aquilo que comumente se designa como afetos e sentimentos, em resumo, o irracional. Do que foi dito deduzimos primeiro apenas isto: é necessério maior cuidado se ousamos inaugurar um encontro com o titulo: “Que é isto — a filosofia?” Um tal cuidado exige primeiro que procuremos situar a questo num caminho cla- ramente orjentado, para nao vagarmos através de representagdes arbitrdrias e ocasionais @ respeito da filosofia. Como, porém, encontraremos 0 caminho no qual poderemos determinar de maneira segura a questo? O caminho para o qual desejaria apontar agora esté imediatamente diante de nds. E precisamente pelo fato de ser 0 mais préximo o achamos dificil. Mesmo quando 0 encon- tramos, movemo-nos, contudo, ainda sempre desajeitadamente nele. Perguntamos: Que isto — a filosofia? Pronunciamos assaz freqiientes vezes a palavra “filosofia”. Se, porém, agora ndo mais empregarmos a palavra “filosofia” como um termo gasto: se em vez disso escutarmos a palavra “filosofia” em sua origem, entio, ela soa philosophia. A palavra “filosofia” fala agora através do grego. A palavra grega é, enquanto palavra Srega, um caminho. De um lado, esse caminho se estende diante de nés, pois a palavra Jé foi proferida ha muito tempo. De outro lado, ele ja se estende atras de nbs, pois ouvi- mos ¢ pronunciamos esta palavra desde os primérdios de nossa civilizagdo. Desta manei ta, @ palavra grega philosophia é um caminho sobre o qual estamos a caminho. Conhece: mos, porém, este caminho apenas confusamente, ainda que possuamos muitos conhecimentos histéricos sobre a filosofia grega e os possamos difundir. A palavra philosophia diz-nos que a filosofia é algo que pela primeira vez e antes de tudo vinea a existéncia do mundo grego. Nao 86 isto — a philosophta determina também a linha mestra de nossa histéria ocidental-européia. A batida expressio “filosofia ociden- tal-européia” & na verdade, uma tautologia. Por qué? Porque a “filosofia” é grega em sua esséncia — e grego aqui significa: a filosofia é nas origens de sua esséncia de tal natureza que ela primeiro se apoderou do mundo grego e s6 dele, usando-o para se desenvolver, Mas a esséncia originariamente grega da filosofia é dirigida e dominada, na época de sua vigéncia na Modernidade Européia, por representagdes do cristianismo. A hege- monia destas representagdes é mediada pela Idade Média. Entretanto, nao se pode dizer que por isto a filosofia se tornow crist&, quer dizer, uma tarefa da fé na revelago e na autoridade da Igreja, A frase: a filosofia 6 grega em sua esséncia, no diz outra coisa que: 0 Ocidente e a Europa, e somente eles, so, na marcha mais intima de sua his originariamente “filoséficos”, Isto ¢ atestado pelo surto e dominio das ciéncias. Pelo fato ria, QUE E ISTO — A FILOSOFIA? 213 de elas brotarem da marcha mais intima da historia ocidental-européia, o que vale dizer do proceso da filosofia, sdo elas capazes de marcar hoje, com seu cunho especifico, a historia da humanidade pelo orbe terrestre. Consideremos por um momento o que significa o fato de caracterizarmos uma era da histéria humana de “era atémica”. A energia atémica descoberta e liberada pelas ciéncias € representada como aquele poder que deve determinar a marcha da histéria, Entretanto, a ciéncia nunca existiria se a filosofia nao a tivesse precedido e antecipado. A filosofia, porém, é: he philosophta. Esta palavra grega liga nosso didlogo a uma tradi- gio historial, Pelo fato de esta tradigao permanecer nica, ela é também univoca. A tra- digo designada pelo nome grego philosophta, tradigio nomeada pela palavra historial philosophia, mostra-nos a direc de um caminho, no qual perguntamos: Que é isto a filosofia? A tradigio nio nos entrega & prisio do passado ¢ irrevogavel. Transmitir, déli- vrer,? ¢ um libertar para a liberdade do didlogo com o que foi e continua sendo, Se esti- vermos verdadeiramente atentos 4 palavra e meditarmos o que ouvimos, o nome “filoso- fia” nos convoca para penetrarmos na historia da origem yrega da filosofia. A palavra philosophia esta, de certa maneira, na certiddo de nascimento de nossa propria historia podemos mesmo dizer: ela esta na certidfio de nascimento da atual época da hist6ria uni- versal que se chama era atémica. Por isso somente podemos levantar a questo: Que isto — a filosofia?. se comegamos um didlogo com o pensamento do mundo grego. Porém, nao apenas aquilo que esta em questao, a filosofia, é grego em sua origem, mas também a maneira como perguntamos, mesmo a nossa maneira atual de questionar ainda é grega. Perguntamos: que isto, . .? Em grego isto é: i estin. A questio relativa ao que algo seja permanece, todavia, multivoca. Podemos perguntar, por perguntar, por exem- plo: que @ aquilo 14 longe? Obtemos ent a resposta: uma rvore. A resposta consiste em darmos o nome a uma coisa que no conhecemos exatamente. Podemos, entretanto, questionay mais: que é aquilo que designamos “arvore”? Com, a quest@o agora posta avangamos para a proximidade do a estin grego. E aquela forma de questionar desenvolvida por Socrates, Plato e Aristoteles. Estes perguntam, por exemplo: Que é isto — 0 belo? Que é isto — o conhecimento? Que é isto — a natureza? Que é isto — 0 movimento? Agora, porém, devemos prestar atengZo para o fato de que nas questdes acima nio se procura apenas uma delimitagio mais exata do que é natureza, movimento, beleza; mas é preciso cuidar para que ao mesmo tempo se dé uma explicagao sobre o que signi- fica 0 “que”, em que sentido se deve compreender 0 tf, Aquilo que o “que” significa se designa 0 quid est, 16 qui diversamente nas diversas épocas da filosofia. Assim, por exemplo, a filosofia de Plato é uma interpretagdo caracteristica daquilo que quer dizer o 1. Ele significa precisamente a idéa. O fato de nds, quando perguntamos pelo 1, pelo quid, nos referirmos a “idéa nao & absolutamente evidente. Aristételes d4 uma outra explicagdo do que Plato. Outra ainda da Kant e também Hegel explica o tf de modo diferente. Sempre se deve determinar novamente aquilo que é questionado através do fio condutor que representa o Hf, 0 quid, © “que”. Em todo caso: quando, referindo-nos & filosofia, perguntamos: que é isto?, levantamos uma questio originariamente grega. |: a quidditas, a qiiididade. Entretanto, a quidditas se determina * Em francés, no texto, 214 HEIDEGGER Notemos bem: tanto o tema de nossa interrogagio: “a filosofia”, como o modo como perguntamos: “que @ isto, ..?" — ambos permanecem gregos em sua prove- nigncia. Nos mesmos fazemos parte desta origem, mesmo entiio quando nem chegamos a dizer a palavra “filosofia”. Somos propriamente chamados de volta para esta origem, reclamados para ela ¢ por ela, to logo pronunciemos a pergunta: Que é isto — a filoso. fia? nao apenas em seu sentido literal, mas meditando seu sentido profundo. [A questdo: que é filosofia? nao é uma questo que uma espécie de conhecimento se coloca a si mesmo (filosofia da filosofia). A questio também nao é de cunho historico; ndo se interessa em resolver como comegou e se desenvolveu aquilo que se chama “filo. sofia”. A questéo é carregada de historicidade, é historial, quer dizer, carrega em si um destino, nosso destino, Ainda mais: ela ndo é “uma”, ela & a questo historial de nossa existéncia ocidental-européia.} Se penetrarmos no sentido pleno ¢ originario da questo: Que ¢ isto — a filosofia? entéio nosso questionar encontrou, em sua proveniéncia historial, uma diregdo para nosso futuro historial. Encontramos um caminho. A questo mesma é um caminho. Ele conduz da existéncia prépria ao mundo grego até nés, quando nao para além de nés mesmos, Estamos — se perseverarmos na questio — a caminho, num caminho claramente orien tado. Todavia, nao nos dé isto uma garantia de que ja, desde agora, sejamos capazes de tilhar este caminho de maneira correta. J4 desde ha muito tempo costuma-se caracte- rizar a pergunta pelo que algo & como a questo da esséncia. A questo da esséncia tor- na-se mais viva quando aquilo por cuja esséneia se interroga, se obscurece ¢ confunde, quando ao mesmo tempo a relag&io do homem para com o que é questionado se mostra vacilante e abalada. A questo de nosso encontro refere-se a esséncia da filosofia. Se esta questo brota realmente de uma indigéncia e se ndo est fadada a continuar apenas um simulacro de questéo para alimentar uma conversa, entio a filosofia deve ter-se tornado para nés problematica, enquanto filosofia. E isto exato? Em caso afirmativo, em que medida se tomou a filosofia problematica para nds? Isto evidentemente s6 podemos declarar se ja langamos um olhar para dentro da filosofia. Para isso € necessario que antes saibamos que € isto — a filosofia. Desta maneira somos estranhamente acossados dentro de um circulo. A filosofia mesma parece ser este circulo. Suponhamos que nao nos podemos libertar imediatamente do cerco deste circulo; entretanto, é-nos permitido olhar para este Girculo. Para onde se dirigird nosso olhar? A palavra grega philosophia mostra-nos a diregio. Aqui se impe uma observagio fundamental. Se nés agora ou mais tarde prestamos atengdo as palavras da lingua grega, penetramos numa esfera privilegiada, Lentamente vislumbramos em nossa reflexdo que a lingua grega nao é uma simples lingua como as européias que conhecemos. A lingua grega, e somente ela, é /égos. Disto ainda devere- mos tratar ainda mais profundamente em nossas discussdes, Para 0 momento sirva a A palavra grega philosophia remonta palavra philésophos. Originariamente esta palavra é um adjetivo como philérgyros, o que ama a prata, como philétimos, 0 que ama a honza, A palavra phildsophos foi presumivelmente criada por Heraclito. Isto quer dizer indicagdo: 0 que é dito na lingua grega é, de modo privilegiado, simultaneamente aquilo que em dizendo se nomeia. Se escutarmos de maneira grega uma palavra grega, entio seguimos seu /égein, 0 que expde sem intermedidrios, O que ela expde € 0 que esté af inte de nés. Pela palavra grega verdadeiramente ouvida de maneira grega, estamos imediatamente sem presenga da coisa mesma, af diante de nés, e no primeiro apenas diante de uma simples significagdo verbal. QUE F ISTO — A FILOSOFIA? 215 que para Herdclito ainda no existe a philosophta. Um anér phildsophos nao & um homem ' filosdfico”. O adjetivo grego phildsophos significa algo absolutamente diferente que 0 adjetivos filosdfico, philosophique. Um anér philésophos & aquele, hos philet 10 sophén, que ama a sophdn; philein significa aqui, no sentido de Heraclito: homologetn, falar assim como o Légos fala, quer dizer, corresponder ao Légos. Este corresponder esti em acordo com 0 sophdn. Acordo harmonta. O elemento especifico de philein do amor, pensado por Herdclito, é a harmonia que se revela na reciproca integragao de dois seres, nos lagos que os unem originariamente numa disponibilidade de um para com o outro. 0 anér philésophos ama 0 sophdn, O que esta palavra diz para Herdclito ¢ dificil traduzir. Podemos, porém, elucida-lo a partir da propria explicagio de Herdclito. De acordo com isto, 16 sophén significa: Hén Panta “Um (@) Tudo”. Tudo quer dizer aqui: Panta té dnta, a toralidade, 0 todo do ente, Hén, o Um, designa: o que & um, 0 nico, 0 que tudo une. Unido é, entretanto, todo o ente no ser. O sophén significa: todo ente € no ser. Dito mais precisamente: o ser é 0 ente, Nesta locugdo, o “é" traz uma carga transi- tiva e designa algo assim como “recolhe”. O ser recolhe o ente pelo fato de que é o ente. O ser € 0 recolhimento — Légos. Todo o ente é no ser. Ouvir tal coisa soa de modo trivial em nosso ouvide. quando nao de modo ofensivo, Pois, pelo fato de o ente ter seu lugar no ser. ninguém precisa preocupar-se, Todo mundo sabe: ente é aquilo que é. Qual a outra solugo para o ente a ndo ser esta: ser? E entretanto: precisamente isto, que o ente permanega recolhido no ser, que no fendmeno do ser se manifesta o ente; isto jogava os gregos, a eles primeiro unicamente, no espanto. Ente no ser: isto se tornou para os gregos 0 mais espantoso. Entretanto, mesmo os gregos tiveram que salvar e proteger o poder de espanto deste mais espantoso — contra o ataque do entendimento sofista, que dispunha logo de uma explicagio, compreensivel para qualquer um, para tudo ¢ a difundia, A salvagao do mais espantoso — ente no ser — se deu pelo fato de que alguns se fizeram a caminho na sua diregdo, quer dizer, do sophdn. Estes tornaram-se por isto aqueles que fendiam para 0 sophén e que através de sua propria aspirag%io despertavam nos outros homens 0 anseio pelo sophdn eo mantinham aceso. O phileii 16 sophén, aquele acordo com 0 sophén de que falamos acima, a harmonia, transformou-se em drecsis, num aspirar pelo sophon. O sophén — 0 ente no ser — @ agora propriamente procurado. Pelo fato de o philefn no ser mais um acordo originario com 0 sophdn, mas um singular aspirar pelo sophén, 0 philein t6 sophén torna-se “philosophia”. Esta aspiragao é determinada pelo Eros. Uma tal procura que aspira pelo sophdn, pelo hén pdnta, pelo ente no ser, se arti- cula agora numa questo: que o ente, enquanto €? Somente agora o pensamento torna- se “filosofia”. Herdclito e Parménides ainda nao eram “fildsofos”. Por que naio? Porque eram os maiores pensadores. “Maiores” nao designa aqui 0 calculo de um rendimento, porém aponta para uma outra dimensio do pensamento. Herdclito e Parménides eram “maiores” no sentido de que ainda se situavam no acordo com 0 Légos, quer dizer, com 0 Hén Pénta. O passo para a “filosofia”, preparado pela sofistica, s6 foi realizado por Socrates e Plato. Aristételes entio, quase dois séculos depois de Heraclito, caracterizou este passo com a seguinte afirmacdo: Kai dé kai 16 pdlai te kai njin ka’ aet zetoiimenon kat ae? aporotimenon, tt t6 én? (Metafisica, VI, 1, 1028 b 2 ss.). Na tradugao isso soa: “Assim, pois, é aquilo para o qual (a filosofia) esta em marcha ja desde os primérdios, ¢ também agora e para sempre e para o qual sempre de novo nao encontra acesso (¢ que & por isso questionado): que € 0 ente? (tf 16 dn)”. 216 HEIDEGGER A filosofia procura 0 que é 0 ente enquanto é. A filosofia esti a caminho do ser do ente, quer dizer, a caminho do ente sob 0 ponto de vista do ser. Aristételes elucida isto, actescentando uma explicagio ao a 16 dn, que € 0 ente?, na passagem acima citada: toiit6 esti tis he ousta? Traduzido: “Isto (a saber, tf 16 dn) significa: que é a entidade do ente?” O ser do ente consiste na entidade. Esta, porém — a ousfa —. determinada por Plato como idéa, por Aristateles como enérgei De momento ainda nao ¢ necessario analisar mais exatamente 0 que Aristateles entende por enérgeia e em que medida a ousta se deixa determinar pela enérgeia. O importante por ora é que prestemos atengdo como Aristoteles delimita a filosofia em sua esséncia. No primeiro livro da Metafisica (Metafisica, I, 2, 982 b 9 s,), 0 filésofo diz 0 seguinte: A filosofia é epistéme 16n préton arkhn kat aition theoretiké. Traduz-se facil- mente epistéme por “ciéncia”. Isto induz ao erro, porque, com demasiada facilidade, per- mitimos que se insinue a moderna concepgao de “ciéncia”. A tradugio de epistéme por “ciéncia” € também, ent&o, enganosa quando entendemos “ciéncia” no sentido filosdfico que tinham em mente Fichte, Schelling e Hegel. A palavra epistéme deriva do participio epistémenos. Assim se chama 0 homem enquanto competente ¢ habil (comipeténcia no sentido de appartenance). * A filosofia é epistéme ws, uma espécie de competéncia, theo- retiké, que & capaz de theorein, quer dizer, olhar para algo e envolver e fixar com o olhar aquilo que perscruta. E por isso que a filosofia € epistéme theoretiké. Mas que é isto que ela perscruta? 2 Arristoteles di-to, fazendo referéncia as protai arkhai ka’ aitfai. Costuma-se traduzir: “as primeiras razdes e causas” — a saber, do ente. As primeiras razdes ¢ causas consti tuem assim o ser do ente. Apds dois milénios ¢ meio me parece que teria chegado 0 tempo de considerar o que afinal tem o ser do ente a ver com coisas tais como “raz” e“causa™s. Em que sentido é pensado o ser para que coisas tais como “razéo”’e “causa” sejam apropriadas para caracterizarem e assumirem o sendo-ser do ente? Mas nés dirigimos nossa atengao para outra coisa. A citada afirmagio de Aristé- teles diz-nos para onde esta a caminho aquilo que se chama, desde Plato, “filosotia”. A afirmagao nos informa sobre isto que € — a filosofia. A filosofia é uma espécie de competéneia capaz de perserutar o ente, a saber, sob 0 ponto de vista do gue ele é enquanto é ente, A questiio que deve dar ao nosso dialogo a inquietude fecunda ¢ 0 movimento e indicar para nosso encontro a diregao do caminho, a questo: que é filosofia? Aristételes Jé a respondeu. Portanto, néo é mais necessario nosso encontro. Esta encerrado antes de ter comegado. Revidar-se-4 logo que a afirmagdo de Aristételes sobre o que é a filosofia nao pode ser absolutamente a tinica resposta a nossa quest’io, No melhor dos casos, é ela uma resposta entre muitas outras. Com o auxilio da caracterizagao aristotélica de filoso: fia pode-se evidentemente representar e explicar tanto 0 pensamento antes de Aristdteles ¢ Plato quanto a filosofia posterior a Aristételes. Entretanto, facilmente se pode apontar para o fato de que a filosofia mesma, e a maneira como ela concebe sua esséncia, passou Por varias transformagSes nos dois milénios que seguiram o Estagitita. Quem ousaria nega-lo? Mas nao podemos passar por alto 0 fato de a filosofia de Aristételes e Nietzsche permanecer a mesma, precisamente na base destas transformagées e através delas. Pois as transformagdes so a garantia para o parentesco no mesmo. * Em francés, no texto, QUE £ ISTO — A FILOSOFIA? ae De nenhum modo afirmamos com isto que a definig¢&o aristotélica de filosofia tenha valor absoluto. Pois ela é ja em meio a historia do pensamento grego uma determinada explicagao daquele pensamento ¢ do que Ihe foi dado como tarefa. A caracterizagao aris totélica da filosofia nao se deixa absolutamente retraduzir no pensamento de Herdclito e de Parménides; pelo contrario, a definigao aristotél é de filosofia certamente é livre continuagdo da.aurora do pensamento e seu encerramento. Digo livre continuagao por- que de maneira alguma pode ser demonstrado que as filosofias tomadas isoladamente € as épocas da filosofia brotam uma das outras no sentido da necessidade de um processo dialético. Do que foi dito, que resulta para nossa tentativa de, num encontro, tratarmos a questo: Que é isto — a filosofia? Primeiramente um ponto: ndo podemos ater-nos ape nas A definigfo de Arist6teles. Disto deduzimos o outro ponto: devemos ocupar-nos das primeiras e posteriores definigdes de filosofia. E depois? Depois alcangaremos uma for mula vazia, que serve para qualquer tipo de filosofia. E entdo? Entdo estaremos 0 mais longe possivel de uma resposta a nossa questio. Por que se chega a isto? Porque, pelo processo ha pouco referido, somente reunimos historicamente as definigdes que esto af prontas ¢ as dissolvemos numa formula geral. Isto se pode realmente fazer quando se dis- poe de grande erudigao ¢ auxiliado por verificagdes certas. Nesta empresa nao precisa mos, nem em grau minimo, penetrar na filosofia de.tal modo que meditemos sobre a esséncia da filosofia, Procedendo daquela maneira nos enriquecemos com conhecimentos muito mais variados e sblidos e até mais titeis sobre as formas como a filosofia foi repre- sentada no curso de sua histéria. Mas por esta via nunca chegaremos a uma resposta auténtica, isto é, legitima, para a questio: Que é isto — a filosofia? A resposta somente pode ser uma resposta filosofante, uma resposta que enquanto res-posta filosofa por ela mesma. Mas como compreender esta afirmagio? Em que medida uma resposta pode, na medida em que é res-posta, filosofar? Procurarei esclarecer isto agora provisoriamente por algumas indicagdes. Aquilo que tenho em mente e a que me refiro sempre perturbara novamente nosso didlogo. Sera até a pedra de toque para averiguar se nosso encontro tem chance de se tornar um encontro verdadeiramente filoséfico. Coisa que nao esti absolutamente em nosso poder. Quando & que a resposta a questo: Que € isto — a filosofia” é uma resposta filoso: fante? Quando filosofamos nés? Manifestamente apenas entio quando entramos em d Jogo com os fildsofos. Disto faz parte que discutamos com eles aquilo de que falam. Este debate em comum sobre aquilo que sempre de novo, enquanto o mesmo, ¢ tarefa especi- fica dos fildsofos, € 0 falar, o légein no sentido do dialégesthai, 6 falar como dialogo. Se e quando o didilogo é necessariamente uma dialética, isto deixamos em aberto. Uma coisa é verificar opinides dos fildsofos edescrevé-las. Outra coisa bem dife- rente é debater com eles aquilo que dizem, e isto quer dizer, do que falam. Supondo, portanto, que os filésofos so interpelados pelo ser do ente para que digam o que o ente é, enquanto é, entZo também nosso didlogo com os filésofos deve ser interpelado pelo ser do ente. Nés mesmos devemos vir com nosso pensamento ao encon- tro daquilo para onde a filosofia esté a caminho, Nosso falar deve co-responder aquilo pelo qual 0s fildsofos so interpelados. Se formos felizes neste co-responder, res-pon- demos de maneira auténtica 4 questo: Que é isto — a filosofia? A palavra alem worten”, responder, significa propriamente a mesma coisa que ent-sprechen, co-respon- der. A resposta nossa questo nfo se esgota numa afirmagao que res-ponde a questo ‘com uma verificagdio sobre 0 que se deve representar quando se ouve 0 conceito “filoso fia”. A resposta nao 6 uma afirmagao que replica (n est pas une réponse), a resposta é 218 HEIDEGGER muito mais a co-respondéncia (la correspondance), que corresponde ao ser do ente. Imediatamente, porém, quiséramos saber 0 que constitui o elemento caracteristico da resposta, no sentido da correspondéncia. Mas primeiro que tudo importa chegarmos a uma correspondéncia, antes que sobre ela levantemos a teoria. A Tesposta a questo: Que € isto — a filosofia? consiste no fato de correspon- dermos aquilo para onde a filosofia esté a caminho. E isto é: 0 ser do ente, Num tal corresponder prestamos, desde 0 comego, atengao aquilo que a filosofia ja nos inspirou, a filosofia, quer dizer, a philosophia entendida em sentido grego. Por isso somente chega. mos assim a correspondéncia, quer dizer, a resposta A nossa questdo, se permanecemos no didlogo com aquilo para onde a tradigdo da filosofia nos remete, isto &, libera. Nao encontramos a resposta A questo, que é a filosofia, através de enunciados historicos sobre as definigdes da filosofia, mas através do didlogo com aquilo que se nos transmitiu como ser do ente. Este caminho para a resposta 4 nossa questo no representa uma ruptura com a historia, nem uma negagdo da hist6ria, mas uma apropriacdo ¢ transformagao do que foi transmitido. Uma tal apropriagio da histéria é designada com a expresso “destruigi0”, O sentido desta palavra é claramente determinado em Ser e Tempo (§ 6). Destruigio nao significa ruina, mas desmontar, demolir e pér-de-lado — a saber, as afirmagdes pura- mente hist6ricas sobre a historia da filosofia. Destruigao significa: abrir nosso ouvido, tomé-lo livre para aquilo que na tradigao do ser do ente nos inspira. Mantendo nossos ouvidos déceis a esta inspiragdo, conseguimos situar-nos na correspondéncia. Mas, enquanto dizemos isto, ja se anunciou uma objegdo. Eis o teor: sera primeiro necessario fazer um esforgo para atingirmos a correspondéncia ao ser do ente? Nao esta- mos nés homens ja sempre numa tal correspondéncia, ¢ nao apenas de fato, mas do mais intimo de nosso ser? Nao constitui esta correspondéncia 0 trago fundamental de nosso ser? Na verdade, esta é a situagio. Mas, se a situagdo é esta, entio nfo podemos dizer que primeiro nos devemos situar nesta correspondéncia. E, contudo, dizemos isto com Tazo, Pois nds residimos, sem diivida, sempre ¢ em toda parte, na correspondéncia ao ser do ente; entretanto, s6 raramente somos atentos inspiragao do ser. Nio ha divida que a correspondéncia ao ser do ente permanece nossa morada constante. Mas s6 de tem- Pos em tempos ela se torna um comportamento propriamente assumido por nés ¢ aberto a um desenvolvimento. $6 quando acontece isto correspondemos propriamente aquilo que concerne a filosofia que esta a caminho do ser do ente. O corresponder ao ser do ente € a filosofia; mas ela o somente ent&o e apenas entdo quando esta correspondéncia se exerce propriamente ¢ assim se desenvolve e alarga este desenvolvimento. Este corres. ponder se dé de diversas maneiras, dependendo sempre do modo como fala o apelo do ser, ou do modo como é ouvido ou nio ouvido um tal apelo, ou ainda, do modo como é dito e silenciado o que se ouviu. Nosso encontro pode dar oportunidade para meditar sobre isto. Procuro agora dizer apenas uma palavra preliminar ao encontro. Desejaria ligar o que foi exposto até agora aquilo que afloramos, fazendo referéncia a palavra de André Gide sobre os “belos sentimentos”. Philosophia é a correspondéncia propriamente exer- cida, que fala na medida em que é décil ao apelo do ser do ente. O corresponder escuta a voz do apelo. O que como voz do ser se dirige a nds dis-pde nosso corresponder. “Co- responder” significa entio: ser dis-posto. étre dis-posé, ° a saber, a partir do ser do ente. ® Disposicio (Stimmung) & um originarie modo de ser do ser-al, vineulado ao sentimento de situagio Gefindlichkei) que acompanha a derelicgio (Geworfenheit), Pela disposigao (que nada tem a vet com QUE E£ ISTO — A FILOSOFIA? 219 Dis-posé significa aqui literalmente: ex-posto, iluminado e com isto entregue ao servigo daquilo que é. O ente enquanto tal dis-pde de tal maneira o falar que o dizer se harmo- niza (accorder) com 0 ser do ente. O corresponder é, necessariamente e sempre e no ape- nas ocasionalmente e de vez em quando, um corresponder dis-posto. Ele esta numa disposigdo. E s6 com base na dis-posicio (dis position) o dizer da correspondéncia rece- be sua preciso, sua vocagao. Enquanto dis-posta e con-vocada, a correspondéncia é essencialmente uma dis-posi- go. Por isso 0 nosso comportamento é cada vez dis-posto desta ou daquela maneira. A dis-posigo no ¢ um concerto de sentimentos que emergem casualmente, que apenas acompanham a correspondéncia. Se caracterizamos a filosofia como a correspondéncia dis-posta, no é absolutamente intengdo nossa entregar o pensamento as mudangas for- tuitas e vacilagdes de estados de animo. Antes, trata-se unicamente de apontar para 0 fato de que toda precisio do dizer se funda numa disposigaio da correspondéncia, da correspondance, digo eu, a escuta do apelo. Antes de mais nada, porém, convém notar que a referéncia a essencial dis-posigao da correspondéncia nao ¢ uma invengao apenas de nossos dias. J4 os pensadores gregos, Plato e Aristételes, chamaram a atengdo para o fato de que a filosofia e o filosofar fazem parte de uma dimensdo do homem, que designamos dis-posigdo (no sentido de uma tonalidade afetiva que nos harmoniza e nos convoca por um apelo).. Plato diz (Teereto, 155 d): mdla gar philosdphou toiito (6 pathos, 16 thaundzein, ou gar dlle arkhé philosophtas hé haite. “E verdadeiramente de um fil6sofo este pathos — 0 espanto; pois nao ha outra origem imperante da filosofia que este”. O espanto é, enquanto pathos, a arkhé da filosofia. Devemos compreender, em seu pleno sentido, a palavra grega arkhé. Designa aquilo de onde algo surge. Mas este “de onde” no é deixado para tras no surgir; antes, a arkhé torna-se aquilo que é expresso pelo verbo arkhein, 0 que impera. O pathos do espanto nao esta simplesmente no comego da filosofia, como, por exemplo, 0 lavar das mos precede a operagao do cirurgifio. O espanto carrega a filosofia ¢ impera em seu interior. Aristételes diz 0 mesmo (Metafisica, 1, 2, 982 b 12 ss.): did gar 10 thaumdzein hoi Anthropoi kat nyn kat proton éresanto philosophein. “Pelo espanto os homens chegam agora e chegaram antigamente & origem imperante do filosofar” (Aquilo de onde nasce 0 filosofar e que constantemente determina sua marcha). Seria muito superficial e, sobretudo, uma atitude mental pouco grega se quisés- semos pensar que Plato ¢ Aristoteles apenas constatam que o espanto é a causa do filo- sofar. Se esta fosse a opinido deles, entao diriam: um belo dia os homens se espantaram, a saber, sobre 0 ente e sobre o fato de ele ser e de que ele seja. Impelidos por este espanto, comegaram eles 2 filosofar. Tao logo a filosofia se pds em marcha, tornou-se o espanto supérfluo como impulso, desaparecendo por isso. Pade desaparecer jé que fora apenas um estimulo. Entretanto: 0 espanto é arkhé — ele perpassa qualquer passo da filosofia, O espanto pathos. Traduzimos habitualmente pathos por paixio, turbilhao afetivo. Mas pathos remonta a paskhein, softer, agiientar, suportar, tolerar, deixar-se levar por, deixar-se con-vocar por. E ousado, como sempre em tais casos, traduzir pathos por tonalidades psicologicas).oser-no-mundo éradiealmente aberto. Esta abertura antecede oconhecere o querere € condigao de possibilidhue de yualyucr orientar se para prdiprns cit imtenciomalidde (veja se Ser e Tempo, § 29). Jogando com a riqueza semantica das derivagSes de Srinmung: bestimmt, gestion, abstieamen, Gestimmtheit, Bestimmntheit, Heidegger procura tornar claro coma esta disposigao é uma abertura que deter mina a correspondéncia ao ser, na medida em que ¢ instaurada pela voz (Stimme) do set. O filésofo toca aqui znas raizes do comportamento filosifico, da atitude originante do filosofar. 220 HEIDEGGER dis-posigio, palavra com que procuramos expressar uma tonalidade de humor que nos harmonizit ¢ nos con-voca por um apelo. Devemos, todavia, ousar esta tradugdo porque s6 ela nos impede de representarmos pathos psicologicamente no sentido da moderni- dade. Somente se compreendermos pathos como dis-posigao (dis-position) podemos tam- em caracterizar melhor o thaumdzein, o espanto. No espanto detemo-nos (étre en arrét). E como se retrocedéssemos diante do ente pelo fato de ser e de ser assim e nao de outra maneira. O espanto também ndo se esgota neste retroceder diante do ser do ente, mas no proprio ato de retroceder e manter-se em suspenso é ao mesmo tempo atrafdo e como que fascinado por aquilo diante do que recua. Assim o espanto é a dis-posigdo na qual e para a qual o ser do ente se abre. O espanto é a dis-posigdo em meio a qual estava garantida para 0s fildsofos gregos a correspondéncia ao ser do ente. De bem outra espécie é aquela dis-posigo que levou 0 pensamento a colocar a questo tradicional do que seja 0 ente enquanto é, de um modo novo, e a comegar assim uma nova época da filosofia. Descartes, em suas meditagdes, nao pergunta apenas e em primeiro lugar if 16 6n —~ que € 0 ente, enquanto é? Descartes pergunta: qual é aquele ente que no sentido do ens certum é 0 ente verdadeiro? Para Descartes, entretanto, se transformou a esséncia da certitudo, Pois na Idade Média certitudo nio significava certe za, mas a segura delimitagao de um ente naquilo que ele é. Aqui certitudo ainda coincide com a significagdo de essentia. Mas, para Descartes, aquilo que verdadeiramente é se mede de uma outra maneira. Para ele a divida se torna aquela dis-posigio em que vibra © acordo com o ens certum, o ente que & com toda certeza. A certitudo torna-se aquela fixagio do ens qua ens, que resulta da indubitabilidade do cogito (ergo) sum para 0 ego do homem. Assim o ego se transforma no sub-iectum por exceléncia, e, desta maneira, a esséncia do homem penetra pela primeira vez na esfera da subjetividade no sentido da egoidade. Do acordo com esta certitudo recebe o dizer de Descartes a determinagao de um clare et distinete percipere. A dis-posigio afetiva da divida é o positive acordo com a certeza. Dai em diante a certeza se torna a medida determinante da verdade. A dis-po- sigGo afetiva da confianga na absoluta certeza do conhecimento a cada momento acess vel permanece 0 pathos e com isso a arkhé da filosofia moderna Mas em que consiste 0 éélos, a consumagio da filosofia moderna, caso disto nos seja permitido falar? £ este termo determinado por uma outra dispo-sigio? Onde deve- mos nés procurar a consumagao da filosofia moderna? Em Hegel ou apenas .na filosofia dos tiltimos anos de Schelling? E que acontece com Marx ¢ Nietzsche? Ja se movimen tam eles fora da érbita da filosofia moderna? Se no. como determinar seu lugar? Parece até que levantamos apenas questées histéricas. Mas na verdade meditamos © destino essencial da filosofia. Procuramos pér-nos a escuta da voz do ser. Qual a dis-posigdo em que ela mergulha o pensamento atual? Uma resposta univoca a esta per- gunta é praticamente impossivel. Provavelmente impera uma dis-posigao afetiva funda- mental. Ela, porém, permanece oculta para nds. Isto seria um sinal para o fato de que nosso pensamento atual ainda ndo encontrou seu claro caminho. O que encontramos sio apenas dis-posigdes do pensamento de diversas tonalidades. Diivida e desespero de um lado ¢ cega possessio por princfpios, ndo submetidos a exame, de outro, se confrontam. Medo e angiistia misturam-se com esperanga e confianga. Muitas vezes ¢ quase por toda parte reina a idéia de que o pensamento que se guia pelo modelo da representagao e cal- culo puramente logicos ¢ absolutamente livre de qualquer dis-posiga0, Mas também a frieza do célcuto, também a sobriedade prosaica da planificagao sao sinais de um tipo de dis-posigao. Nao apenas isto; mesmo a raz&o que se mantém livre de toda influéncia das QUE E ISTO — A FILOSOFTA? 221 paixdes é enquanto razio, pre-dis-posta para a confianga na evidéncia logico-mate- mitica de seus principios ¢ regras. ® ‘A correspondéncia propriamente assumida e em processo de desenvolvimento, que corresponde ao apelo do ser do ente, é a filosofia, Que é isto — a filosofia? somente aprendemos a conhecer ¢ a saber quando experimentamos de que modo a filosofia é. Ela & ao modo da correspondéncia que se harmoniza e poe de acordo com a voz do ser do ente. Este co-responder é um falar. Esta a servigo da linguagem. O que isto significa é de dificil compreensio para nés hoje, pois nossa representagao comum da linguagem pas- sou por um estranho processo de transformagSes. Como conseqiiéncia disso a linguagem aparece como um instrumento de expresso. ’ De acordo com isso, tem-se por mais acer- tado dizer que a linguagem est a servigo do pensamento em vez de: 0 pensamento como co-respondéncia esta a servigo da linguagem. Mas, antes de tudo, a representago atual da linguagem esta tio longe quanto possivel da experiéncia grega da linguagem. Aos gre- gos se manifesta a esséncia da linguagem como o [dgos. Mas 0 que significa l6gos e lé- gein? Apenas hoje comecamos lentamente, através de miltiplas interpretagdes do légos, a descerrar para nossos olhos 0 véu sobre sua originaria esséncia grega. Entretanto, nds néio somos capazes nem de um dia regressar a esta esséncia da linguagem, nem de simplesmente assumi-la como heranga. Pelo contrario, devemos entrar em didlogo com a experiéncia grega da linguagem como légos. Por qué? Porque nés, sem uma suficiente reflexo sobre a linguagem, jamais sabemos verdadeiramente o que é a filosofia como a co-respondéncia acima assinalada, o que ela ¢ como uma privilegiada maneira de dizer. Mas pelo fato de a poesia, em comparagéo com o pensamento, estar de modo bem diverso e privilegiado a servigo da linguagem, nosso encontro que medita sobre a filoso- fia € necessariamente levado a discutir a relagao entre pensar e poetar. Entre ambos, pen- sare poetar, impera um oculto parentesco porque ambos, a servigo da linguagem, inter- yém por ela e por ela se sacrificam, Entre ambos, entretanto, se abre ao mesmo tempo um abismo, pois “moram nas montanhas mais separadas”. © 44 em Ser e Tempo (§ 29) se alude & disposigfo que acompanha a teotia e se afirma que “o conhecimento vido por determinages logicas se enraiza ontolégica ¢ existencialmente no sentimento de situagio, caracte- ristico do ser-no-mundo” (p. 138). Apontando para o fato de que a propria razio esta pre-dis-posta para con- fiar na evidéncia logico-matematica de sevs principios e regras, Heidegger fere um tabu que 05 sucessos da técnica ainda mais sacralizam. Mas, desc que Habermas, em seu livro Conhecimento e Interesse (Ed. Shut- amp, Frankfurt a. M. 1968), mostrou que atras de todo conhecimento existe 0 interesse que o dirige, que & teoria quanto mais pura se quer mais se ideologiza, pode-se descobrir, nas afirmagdes de Heidegger, uma antecipacio das razGes ontologico-existenciais da mistura do conhecimento ¢ interesse. Néo ha conheci- mento imune ao processo de ideologizago; dele n&o escapa nem mesmo 0 conhecimento cientifico, por mais exato, rigoroso e neutro que se prociame. 7” A critica da instrumentalizagao da linguagem visa a proteger o sentido, a dimenséo conotadora e simbé- lica, contra a redugo da linguagem ao nivel da denotagao, do simplesmente operativo. Nao se trata apenas de salvar a mensagem lingiifstica da ameaga da pura semioticidade, filésofo descobre na linguagem 0 poder do légos, do dizer como processo apofantico; entrevé na linguagem a casa do ser, onde o homem mora nas raizes do humano. Se lembrarmos as trés constantes que a tradigdo apresenta na filosofia da linguagem — a l6gica da linguagem, o humanismo da linguagem e a teologia da linguagem —, verificamnos que 0 filé- sofo assume a segunda, radicaliza-a pela hermenéutica existencial, carrega-a de historicidade ¢ transforma a Jinguagem em centro de discussao, pela idéia da destruigio da ontologia tradicional, a partir de sua tessitura ccategorial. Em Heidegger, uma ontologia ja impossivel & substitufda pela critica da linguagem, numa anteci- pagdo da moderna analitice da linguagem. Veja-se esta admoestagio do fikisofo que abre um texto seu, saido no jornal Neue Ziircher Zeitung (Zeicker, 21-9-1969): “A linguagem reptesentada como pura semioticidade (Zeichengebung) oferece © ponto de partida para a tecnicizagdo da linguagem pela teoria da informagio. A instauragao da relagao do homem com a linguagein que parte destes pressupostos realiza, da mancira mais inguietante, a exigéncia de Karl Marx: ‘Trata-se de transformar o mundo’ ”. 222 HEIDEGGER Agora, porém, haveria boas razées para exigir que nosso encontro se limitasse a questo que trata da filosofia. Esta restrigdo seria s6 entiio possivel e até necessria, se do didlogo resultasse que a filosofia no é aquilo que aqui lhe atribuimos: uma corres- pondéncia, que manifesta na linguagem o apelo do ser do ente. Com outras palavras: nosso encontro nao se propée a tarefa de desenvolver um pro- grama fixo. Mas ele quisera ser um esforgo de preparar todos os participantes para um recolhimento em que sejamos interpelados por aquilo que designamos 0 ser do ente, Nomeando isto, pensamos no que jé Arist6teles diz: “O sendo-ser torna-se, de miltiplos modos, fendmeno”. To dn légetai pollakhés. QUE E METAFISICA? NOTA DO TRADUTOR E tarefa primordial da filosofia conduzir 0 homem para além da pura imediatidade ¢ instaurar a dimensao critica. Superada a postura ingénua diante da realidade ¢ entdo possivel assumir responsavelmente a verdade como um todo. Pois somente a perspectiva que abre 0 comportamento filosdfico é capaz de antecipar os limites e as possibilidades das diversas areas em que se move a interrogago pela verdade. E por isso que o destino do homem e da historia depende da lucidez e distancia critica que so 0 apandgio da filosofia, Num momento de crise da sociedade brasileira, em que uma falsa seguranga é bus- cada com o sacrificio da liberdade; em que se elabora um projeto nacional comprimido dentro de uma visio tecnocratica, nada melhor que a serena meditagdo da filosofia, Ela nos ensina a paciéncia diante da historia e a coragem para apostar nas possibilidades que se escondem no risco da liberdade. Ela nos mostrar principalmente o verdadeiro lugar da ciéncia ¢ da técnica na construgao da historia humana, Todo o determinismo que se quer imprimir a sociedade brasileira e & consciéncia nacional, mediante a absolutizagio da tecnologia, deve ser desmascarado pela consciéncia critica instaurada pela filosofia. Ela é um instrumento de libertagdo das amarras deste novo positivismo teenocratico com que o sectarismo e 0 interesse nos querem prender. Que & Metafisica?, de Heidegger, ¢ um texto de grande penetragio e oportunidade. Os amplos horizontes que descerra garantem contribuigao segura para o despertar da verdadeira consciéncia critica. Com rara felicidade o filésofo desenvolve neste texto o horizonte metafisico em que o cientista antecipa a visio da totalidade e clarifica as con- digdes de sua propria existéncia de pesquisador. A luz da tanscendéncia exercida no comportamento concreto destacam-se as possibilidades e os limites da pesquisa cienti- fica, do cdlculo e da técnica, e prepara-se um novo pensamento, Dele Heidegger nos fala insistentemente como de uma terra onde o homem reencontra suas raizes. As notas que seguem procuram situar a obra em seu verdadeiro lugar. Antecipam elementos importantes para uma interpretagao adequada das idéias centrais. 1. Origem dos Textos — Depois de varios anos de atividades na Universidade de Freiburg im Breisgau, como livre-docente, Heidegger deixara a companhia de seu mestre Husserl e aceitara o convite para a catedra de Filosofia em Marburgo, até entéo ocupada por Nicolai Hartmann. Ali trabalhou de 1923 a 1928, Neste ano foi convidado para assumir a catedra de Filosofia em Freiburg, vaga com a aposentadoria de Edmund Hus- serl, Ao comegar ali suas atividades de professor ordinario, Heidegger pronunciou, como era de praxe, sua primeira aula diante de todo o corpo docente ¢ discente da Universi- dade. Esta aula inaugural piblica, que teve lugar no dia 24 de julho de 1929, trazia o tf tulo Que é Metafisica? Publicado no mesmo ano, 0 texto integral da prelegao obteve pro- 226 HEIDEGGER funda repercuss%io. Provocou também muitos mal-entendidos. Parecia vir reforgar suspeitas despertadas ja por Ser e Tempo. Heidegger era promotor do niilismo, da filoso. fia do sentimento da angiistia ¢ da covardia, do irracionalismo que combatia a validez da logica. Em resposta as objegdes que se multiplicavam o fildsofo acrescentou a quarta edi- go de 1943 um posficio que respondia As abjecdes ¢ elucidava aspectos da prelego que suscitavam diividas ¢ mal-entendidos. Em 1949 0 autor publicou, com a quinta edicdo do texto, uma introduce com o titulo “Retorno ao Fundamento da Metafisica”, 2. Posigiio no Contexto da Obra — Se prescindirmos dos dois livros de sua juven- tude — a tese de doutorado O Juizo no Psicologismo e a de livre-docéneia A Doutrina das Categorias e do Significado em Duns Scot — e levarmos em conta apenas as obras da maturidade, 0 texto da prelegfio Que é Metafisica? & 0 terceiro trabalho impresso por Heidegger. Depois de Ser e Tempo e Kant e 0 Problema da Metafisica, Que é Metaft- sica? foi publicada no mesmo ano em que surgia Sobre a Esséncia do Fundamento no volume complementar do Anuario de Filosofia e Investigagdes Fenomenoldgicas, come morativo dos setenta anos de Edmund Husserl. Em 1933 se editou seu discurso de toma- da de posse da Reitoria da Universidade de Freiburg i, B, A Auto-afirmagdo da Universi- dade Alema. Além dos comentarios sobre a poesia de Hoelderlin, os primeiros textos marcantes publicados aps Que é Metafisica? so Sobre a Esséncia da Verdade em 1943 € a carta Sobre o Humanismo em 1947. Os textos do posfacio e da introdugio acrescen- tados posteriormente ja sio manifestagdes nitidas do segundo Heidegger. Revelam o gio em que o filésofo analisa a metafisica como histéria do ser. Os dois volumes inti tuiados Nietzsche, que contém as prelegGes entre 1936 ¢ 1946, retratam 0 contexto te tico em que nasceram os dois textos. 3. Elementos Caracteristicos — Heidegger toma como ponto de partida para a pre- lego uma situagao conereta: a reunio de pesquisadores, professores ¢ estudantes. Reali tica da existéncia cientifica e a partir dela procura responder o que é metafi Nao define a metafisica, Um problema que emerge do proprio comportamento do homem de ciéncia € examinado. A questo do nada como questio metafisica envolve toda metafisica e a existéncia global daqueles que interrogam. Assim é possivel respon der a pergunta pela metafisica aprofundando uma questo metafisica Dentro do mais auténtico estilo heideggeriano, a prelegdo marcha para seu objetivo. Importa, porém, acompanhar a tessitura da interrogagdo que perseguir a meta que, desli gada do movimento problematizador, aparece despida de qualquer interesse. Este enca. deamento dialético visa a arrancar 0 ouvinte ou leitor da postura ingénua e imediatista para eleva-lo ao nivel em que se deve desdobrar a interrogagiio metafisica. Atingido tal nivel, a resposta é encontrada pelo esforgo pessoal Que é Metafisica? & um testemunho desta pedagogia heideggeriana que socratica- mente faz participar do processo interrogador aquele a quem se dirige. Mas ela nfio se reduz a isto. Ha uma particularidade que a faz uma pedagogia propria da filosofia. Hei degger arranca o ouvinte ou leitor da imediatidade da postura natural em face das coisas € 0 leva a postura transcendental. Torna reflexo no interlocutor o exercicio cotidiano e npensado da transcendéncia. Mostra, pelo proprio movimento da interrogagao, 0 Fato de que o homem nio esta ao lado da pedra, da flor ou da estrela, mas que as envolve pela compreensdo numa estrutura referencial, abre um espago antecipador a partir do qual tomam sentido. Isto é a caracteristica primeira da existéncia humana e que Ihe dé a dis- tancia do mundo natural ¢ a faz ser transcendentalmente na cotidiancidade. Assumir, no exercicio da interrogagao, esta condigéo transcendental é proprio do comportamento filoséfico. QUE E METAFISICA? 227 magistrais andlises fenomenoligicas de Que é Metafisica?, que tanto lembram Ser e Tempo, nao visam a outra coisa, A fenomenologia é precisamente a arte de desve- lar aquilo que, no comportamento cotidiano, nos ocultamos a nés mesmos: o exercicio da transcendéncia. Por isso Heidegger nao permanece aqui na analitica existencial. Até a maneira como ela ¢ realizada ja vem marcada pela finalidade a que se dirige: 0 pro- blema do ser, que em sua radicalidade é precisamente a revelagio da condigZo transcen. dental do homem. Mas no texto que estudamos o ser & buscado a partir do nada. O pos facio dira que este € 0 véu do ser. A questo do nada é a que foi desencadeada a partir da pesquisa cientifica. Esta diregao ontoligica de toda a fenomenologia heideggeriana ¢ que a distingue da orientacdo puramente antropol6gica de Max Scheler ou da orientagio légico-gnosiologica de Edmund Husserl A marcha da prelegao mostra como toda problematica metafisica deve ser colocada a partir do homem, ainda que nele ndo deva parar. E o que separa radicalmente Heideg- ger de Husserl. Este transformara a ontologia em fenomenologia. Aquele, sem voltar atrés de Husserl, procura antes radicalizar a fenomenologia para recolacar o problema da ontologia. E a radicalizagao da fenomenologia é a radicalizagdo da subjetividade. E a partir desta ele recoloca o problema da ontologia. Heidegger, portanto, nao rejeita as conquistas do pensamento moderno. Leva-o as suas tiltimas conseqiiéncias e, mediante a radicalizagao, 0 supera para instaurar uma ontologia que aproveita as conquistas do pensamento moderno e supera, assim, também a ontologia classica A ontologia classica é superada através do proprio ponto de partida antropoldgico da fenomenologia, No pensamento grego a ontologia constituia 0 ponto de partida da interrogagao metafisica. Isto se mostrou, de modo inequivoco, na divisio da filosofia apresentada por C. Wolif no século XVIII. A partir da ontologia ou metafisica geral se constituiam as metafisicas especiais: cosmologia, psicologia racidnal e teologia natural. Considerado o ser como evidente, era possivel nele fundar toda a interrogago posterior. ‘Mas, uma vez posta em diivida a auséncia de problematicidage do ser, a ontologia perdia © privilégio de ponto de partida indiscutivel. Assim, aos poucos, a antropologia foi tomando a si o privilégio de ponto de partida para toda a interrogagio filoséfica. Esta mudanga, que foi iniciada com o pensamento moderno, representa um momento decisivo na obra de Heidegger. A analitica existencial do homem em sua cotidianeidade torna-se © ponto de partida necessario para a discussio do problema do ser, do mundo e de Deus. Na prelegao 0 problema do nada (0 véu do ser) é levantado a partir do homem, Nao é, sem diivida, uma dimensdo qualquer do homem que serve de ponto de partida, mas aque- la em que ele se revela na sua cxisténcia, enquanto exercicio da transcendéncia (Heideg- ger da uma interpretagdo etimoldgica de existéncia escrevendo-a ek-sisiéncia, para acen- tuar sua forga de transcendéncia). Desta maneira o homem & considerado o lugar privilegiado para a manifestagao do ser, manifestagio que se realiza pela experiéncia do nada. Nem é preciso chamar particularmente a ateng3o para a seguinte conseqiiéncia 1o- gica: assim como 0 conceito de ser se modifica quando se toma o homem como ponto de partida, assim também o nada. O nada heideggeriano se distingue nitidamente do nada grego e do nada da tradi assim como no pode ser confundido com a negativi- dade da filosofia moderna. Pelo que vimos até aqui. compreende-se também por que Heidegger nao chama expressamente a atengdo para a necessidade de uma ruptura com a atitude natural do cientista para que assim se instaure o ambito transcendental, No pensamento do fil6sofo desaparece a epoche ¢ o processo de redugo que procurava instaurar metodicamente a Tuptura com o mundo natural para atingir a dimensio transcendental. Para Husserl tal procedimento se impunha pelo fato de, segundo ele, o homem movimentar-se, em seu cotidiano, na atitude natural. Para Heidegger no ha propriamente um comportamento 228 HEIDEGGER natural do homem. Em todo o comportamento humano ja é exercida a transcendenta- lidade. O que importa & mostrar tal comportamento pela analitica existencial. A fenome- nologia nao sera um método que busca a transcendentalidade pelo processo redutivo; para Heidegger ela consiste em desvelar o que propriamente sempre est em marcha. A transcendentalidade nao reside na intelectualidade do sujeito, mas na pré-compreensio. do ser pelo ser-ai no homem. O texto Que é Metafisica? deve, portanto, ser meditado na dimensio em que se apresenta, a transcendentalidade. Todas as objegdes que contra ela se levantaram nasce- ram da postura do objetivismo ingénuo. O ‘inico modo de o filisofo responder as obje- Ges era determinar a verdadeira dimens%o em que toda prelegdo se movimentava. Entio caiam as trés objegSes principais: 1 — o nada nada tem a ver com qualquer tipo de nii- lismo ou pessimismo. Ele se apresenta, na prelegao, como o véu do ser. Isto s6 com- preende quem se desprende da atitude do objetivismo e se eleva para a dimensao trans- cendental. E ali que se desdobra a fenomenologia heideggeriana; é ali que o nada é um nome para o ser; 2 — também a angistia deve ser compreendida na dimensio transcen- dental. Ela no representa algum estado psicol6gico ou sentimento. E um acontecer no ser-ai (na dimensdo transcendental) em que se realiza a experiéncia do ser como o nada; 3 — 0 mesmo acontece com a légica. Heidegger no the nega a validez. Mostra apenas que ha dimensdes, ¢ uma delas é aquela em que se manifesta o ser, em que se ultrapassa © ldgico do entendimento. A verdade do ser ou a manifestco do ser ou, ainda, a compreensio do ser ultrapassa a légica dos entes. A dimensio transcendental vai em busca das condigSes de possibilidade da logic: © posficio acrescentado a prelegio procura tomar claro como é preciso ler ¢ compreender tal texto, Mas quem pergunta Que é Metafisica? problematiza a propria metafisica. E proble- matizé-la é situar-se fora dela. E a partir deste fato que o filésofo elabora a sua introdu- gdo. Para compreender o que é metafisica, é preciso voltar aos seus fundamentos. A isto se destina toda a obra do pensador. Somente se compreende a pergunta Que é Metaft- sica? quando se descobriram as razées, os fundamentos da metafisica. E para Heidegger a metafisica mergulha num fundamento que ela mesma ignora, Assim, nao é ela que responder a pergunta Que é Metafisica?, mas um pensamento que a superou, isto & que penetrou em seus fundamentos. E este o pensamento que o fildsofo desenvolve desde 0 comego de sua obra Ser e Tempo. O pensamento originario que retorna ao fundamento da metafisica somente pode fazé-lo porque superou o objetivismo da metafisica que con- fundiu 0 ser com o ente e nao pensa o proprio ser. Este somente pode ser pensado quando se parte da transcendentalidade do ser-ai, isto ¢, quando se leva em consideragdo aquela dimensdo em que misteriosamente o ser se revela no ser-ai. Na dimens&o que se abre com © encontro do homem com o ser pode surgir a metafisica. Ela, entretanto, ndo é capaz de pensar esta dimensio que ¢ seu fundamento e esconde em si a resposta 4 pergunta Que é Metafisica? Com a introdugdo Heidegger recapitula toda a marcha de seu pensamento, para reinterpreta-la e nela inserir a questo do nada a partir da qual se procurou responder 0 que é metafisica. 4, A Tradugdo — Ha passagens dos textos que traduzimos em que o sentido filos6- fico esta estreitamente vinculado com a lingua alema. Certos “topoi”: palavras, expres- sdes, frases carregadas de contetido essencial, exigem circunlocugdes. Mas isto vem em prejuizo da beleza da linguagem e obscurece, por vezes, 0 sentido exato que 0 autor quer QUE £ METAFISICA? 229 dar. Procuramos fazer um solitério esforgo para atingir um nivel aceitével na tradugao, tornando-a ao menos um instrumento itil para leitores indulgentes e para o exercicio de anélise de textos na universidade. TradugSes como estas exigiram o trabalho combinado de fil6sofos e filélogos. Nao para carregar as paginas com notas, mas para elaborar um texto em que se transportassem com fidelidade os conteddos expressos em alemio para uma lingua romanica. Tempos melhores talvez permitirlio que se tratem com a seriedade exigida os textos classicos que devemos usar no Brasil. Temos presente as exigéncias ¢ nfio esquecemos as inconveniéncias de uma tradugio. O texto poderd ser aprimorado pelo auxilio que prestarem os estudiosos, apontando erros e sugerindo modos mais claros € menos equivacos de dizer pensamentos dificeis. Utilizamos para a tradugdo a redagao da sétima edigdo alema e nao fazemos alu- sdes a redagGes anteriores. A discussio de certas modificagdes seria interessante, mas no se faz necessaria para compreendermos o texto que traduzimos. ‘Alguns talvez estranhardo a distribuigo da matéria no volume que apresentamos. Colocamos a introdugdo no fim do volume, em primeiro lugar, porque quisemos respei- tar a ordem cronolégica do aparecimento dos textos; em segundo lugar, porque, ainda que interligados entre si, 0 texto da introdugdo tem sentido independente; em terceiro lugar, porque 0 texto que sera mais usado para o estudo é 0 da prelegao. Poderiamos acrescentar um quarto argumento: num volume editado pela Editora Vittorio Kloster- mann, em 1967, ¢ que contém grande parte dos trabalhos menores de Heidegger, os trés textos em questdo so apresentados na ordem cronoldgica de sua publicagio. ' Finalmente, sugerimos, para a compreensio deste volume, a leitura de Sobre o Pro- blema do Ser. Ha ali referéncias explicitas a Que é Metaffsica?, que constituem preciosas elucidagées. Porto Alegre, 25 de janeiro de 1969. * Heidegger, M. — Wegmarken, Vittorio Klosterman, Frankfurt am Main, 1967, A PRELECAO (1929) QuE E METAFISICA? — A pergunta nos da esperangas de que se falara sobre a metafisica. Nao 0 faremos, Em vez disso, discutiremos uma determinada questo metafi- sica, Parece-nos que, desta maneira, nos situaremos imediatamente dentro da metafisica. Somente assim lhe damos a melhor possibilidade de se apresentar a nés em si mesma. Nossa tarefa inicia-se com o desenvolvimento de uma interrogago metafisica, pro cura, logo a seguir, a elaboragao da questo, para encerrar-se com sua resposta. O Desenvolvimento de uma Interrogagio Metafisica Considerada sob 0 ponto de vista do so entendimento humano, é a filosofia, nas palavras de Hegel, o “mundo as avessas”. E por isso que a peculiaridade do que empreendemos requer uma caracterizagao prévia. Esta surge de uma dupla caracteristica da pergunta metafisica De um lado, toda questo metafisica abarca sempre a totalidade da problematica metafisica. Ela é a propria totalidade. De outro, toda questio metafisica somente pode ser formulada de tal modo que aquele que interroga. enquanto tal, esteja implicado na questo, isto 6, seja problematizado. Dai tomamos a indicagdo seguinte: a interrogagio metafisica deve desenvolver-se na totalidade e na situago fundamental da existéncia que interroga. Nossa existéncia — na comunidade de pesquisadores, professores e estudantes — é determinada pela ciéncia, O que acontece de essencial nas raizes da nossa existéncia na medida em que a ciéncia se tornou nossa paixdio? Os dominios das ciéncias distam muito entre si. Radicalmente diversa é a maneira de tratarem seus objetos. Esta dispersa multiplicidade de disciplinas é hoje ainda apenas mantida numa unidade pela organiza- go técnica de universidades ¢ faculdades e conserva um significado pela fixago das finalidades praticas das especialidades. Em contraste, 0 enraizamento das ciéncias, em seu fundamento essencial, desapareceu completamente. Contudo, em todas as cigncias nés nos relacionamos, déceis a seus propésitos mais auténticos com 0 préprio ente. Justamente, sob o ponto de vista das ciéncias, nenhum dominio possui hegemonia sobre o outro, nem a natureza sobre a histéria, nem esta sobre aquela. Nenhum modo de tratamento dos objetos supera os outros. Conhecimentos mate- maticos nao so mais rigorosos que 0s filolégico-historicos. A matematica possui apenas © cardter de “exatidiio” e este ndo coincide com o rigor. Exigir da histéria exatidao seria chocar-se contra a idéia de rigor especifico das ciéncias do espirito. A referéncia a0 mundo, que impera através de todas as ciéncias enquanto tais, faz com que elas procu- 234 HEIDEGGER rem 0 préprio ente para, conforme seu contetido essencial ¢ seu modo de ser, transfor- ma-lo em objeto de investigagao e determinagao fundante. Nas ciéncias se realiza — no plano das idéias — uma aproximagao daquilo que é essencial em todas as coisas. Esta privilegiada referéncia de mundo ao proprio ente é sustentada e conduzida por um comportamento da existéncia humana livremente escolhido. Também a atividade pré © extracientifica do homem possui um determinado comportamento para com o ente. A ciéneia, porém, se caracteriza pelo fato de dar, de um modo que Ihe € proprio, expressa € unicamente, & propria coisa a primeira e dltima palavra. Em téo objetiva maneira de perguntar, determinar ¢ fundar o ente, se realiza uma submiss&o peculiarmente limitada ao proprio ente, para que este realmente se manifeste. Este por-se a servigo da pesquisa e do ensino se constitui em fundamento da possibilidade de um comando proprio, ainda que delimitado, na totalidade da existéncia humana. A particular referéncia a0 mundo que caracieriza a ciéncia © 0 comportamento do homem que a rege, os entendemos, evidentemente apenas entio plenamente, quando vemos e compreendemos 0 que acon- tece na referéncia ao mundo, assim sustentada. O homem — um ente entre outros — “faz ciéncia”. Neste “fazer” ocorre nada menos que a irrupgdo de um ente, chamado homem, na totalidade do ente, mas de tal maneira que, na e através desta irrupedo, se descobre o ente naquilo que é em seu modo de ser. Esta irrupgdo reveladora é 0 que, em primeiro lugar, colabora, a seu modo, para que o ente chegue a si mesmo. Estas trés dimensdes — veferéncia a0 mundo, comportamento, irrupgdio — trazem, em sua radical unidade, uma clara simplicidade e severidade do ser-ai, na existéncia cien- tifiea. Se quisermos apoderar-nos expressamente da existéncia cientifica, assim esclare- cida, ent&o devemos dizer: Aquilo para onde se dirige a referéncia a0 mundo € o proprio ente — e nada mais. Aquilo de onde todo o comportamento recebe sua orientagio é 0 proprio ente — ealém dele nada, Aquilo com que a discussio investigadora acontece na irrupgdo € o proprio ente — e além dele nada. Mas 0 estranho é que precisamente, no modo como o cientista se assegura o que the € mais proprio, ele fala de outra coisa. Pesquisado deve ser apenas 0 ente e mais — nada: somente o ente ¢ além dele — nada; unicamente o ente e além disso — nada. Que acontece com este nada? E, por acaso, que espontaneamente falamos assim? E. apenas um modo de falar — e mais nada? Mas, por que nos preocupamos com este nada? O nada é justamente rejeitado pela ciéncia e abandonado como o elemento nadificante, E quando, assim, abandonamos 0 nada, nao o admitimos precisamente entio? Mas podemos nds falar de que admitimos algo, se nada admitimos? Talvez. ja se perca tal inseguranga da linguagem numa vazia querela de palavras. Contra isto deve agora a ciéncia afirmar novamente sua seriedade e sobriedade: ela se ocupa unicamente do ente. O nada — que outra coisa poderd ser para a ciéncia que horror ¢ fantasmagoria? Se a ciéncia tem razo, entdo uma coisa é indiscu- tivel: a ciéncia nada quer saber do nada, Esta 6, afinal, a rigorosa concepeao cientifica do nada. Dele sabemos, enquanto dele, do nada, nada queremos saber. A ciéncia nada quer saber do nada, Mas no € menos certo também que, justa- mente, ali, onde cla procura expressar sua propria esséneia, ela recorre ao nada, Aquilo que ela rejeita, ela leva em considerago. Que esséncia ambivalente se revela ali? Ao refletirmos sobre nossa existéncia presente — enquanto uma existéncia determi- nada pela ciéncia —, desembocamos num paradoxo. Através deste paradoxo ja se desen- volveu uma interrogagao. A questo exige apenas uma formulagio adequada: Que acon- tece com este nada? QUE E£ METAFISICA? 235 A Elaboragao da Questéo A elaboragtio da questio do nada deve colocar-nos na situagio na qual se torne possivel a resposta ou em que entio se patenteie sua impossibilidade. O nada € admitido. A ciéncia, na sua sobranceira indiferenga com relag&o a ele, rejeita-o como aquilo que “nao existe”. Nés contudo procuramos perguntar pelo nada. Que é o nada? Jé a primeira aborda. gem desta questio mostra algo insdlita. No nosso interrogar j4 supomos antecipada- mente 0 nada como algo que “é” assim ¢ assim — como um ente. Mas, precisamente, é dele que se distingue absolutamente. O perguntar pelo nada — pela sua esséncia e seu modo de ser — converte o interrogado em seu contrario. A questio priva-se a si mesma de seu objeto especifico. Se for assim, também toda resposta a esta questi é, desde o inicio, impossivel. Pois ela se desenvolve necessariamente nesta forma: 0 nada “é” isto ou aquilo. Tanto a per- gunta como a resposta so, no que diz respeito ao nada, igualmente contraditérias em si mesmas. Assim, ndo € preciso, pois, que a ciéncia primeiro rejeite o nada. A regra funda- mental do pensamento a que comumente se recorre, 0 principio da nio-contradigao, a légica” universal, arrasa esta pergunta. Pois o pensamento, que essenciaimente sempre & pensamento de alguma coisa, deveria, enquanto pensamento do nada, agir contra sua propria esséncia. Pelo fato de assim nos ficar vedado converter, de algum modo, o nada em objeto, chegamos ja ao fim com nossa interrogacdo pelo nada — isto, pressuposto que nesta questio a “légica” seja a tiltima instancia, que o entendimento seja 0 meio € 0 pensa: mento o caminho para compreender originariamente o nada e para decidir seu possivel desvelamento. Mas ¢ por acaso possivel tocar no império da “légica”? Nao é o entendimento real- mente 0 senhor nesta pergunta pelo nada? Efetivamente, é somente com seu auxilio que podemos determinar 0 nada e colocd-lo como um problema, ainda que fosse como um problema que se devora a si mesmo. Pois 0 nada é a negagao da totalidade do ente, 0 absolutamente nfio-ente. Com tal procedimento subsumimos 0 nada sob a determinagao mais alta do negativo e, assim, do negado. A negagdo é, entretanto, conforme a doutrina dominante ¢ intata da “logica”, um ato especifico do entendimento. Como podemos nds, pois, pretender rejeitar o entendimento na pergunta pelo nada e até na questio da possi bilidade de sua formulagio? Mas sera que € to seguro aquilo que aqui pressupomos? Representa o “nao”, a negatividade e com isto a negacao, a determinagao suprema a que se subordina o nada como uma espécie particular de negado? “Existe” o nada apenas porque existe 0 “nao”, isto é, a negagdo? Ou nio acontece o contrario? Existe a negagao € 0 “ndo” apenas porque “existe” 0 nada? Isto ndo esta decidido; nem mesmo chegou a ser formulado expressamente como questo. Nés afirmamos: o nada é mais originario que 0 “nao” e a negagao, Se esta tese € justa, entio a possibilidade da negagao, como atividade do entendi mento, e, com isto, o proprio entendimento, dependem, de algum modo, do nada, Como poder ento o entendimento querer decidir sobre este? Nao se baseia afinal o aparente contra-senso de pergunta e resposta, no que diz respeito ao nada, na cega obstinagao de um entendimento que se pretende sem fronteiras? 236 HEIDEGGER Se, entretanto, no nos deixarmos enganar pela formal impossibilidade da questio do nada e se, apesar dela, ainda a formularmos, entdo devemos satisfazer a0 menos Aqui- lo que permanece valido como exigéncia fundamental para a possivel formulagao de qualquer questo. Se o nada deve ser questionado — o nada mesmo —, entdo devera estar primeiramente dado. Devemos poder encontré-lo. Onde procuramos 0 nada? Onde encontramos 0 nada? Para que algo encontremos n4o precisamos, por acaso, ja saber que existe? Realmente! Primeiramente ¢ 0 mais das vezes 0 homem somente ent&o € capaz de buscar se antecipou a presenga do que busca Agora, porém, aquilo que se busca é 0 nada. Existe afinal um buscar sem aquela anteci pagdio, um buscar ao qual pertence um puro encontrar? Seja como for, nds conhecemos o nada, mesmo que seja apenas aquilo sobre o que cotidianamente falamos inadvertidamente, Podemos até, sem hesitar, ordenar numa “definigao” este nada vulgar, em toda palidez do dbvio, que to discretamente ronda em nossa conversa: O nada é a plena negagio da totalidade do ente. Nao nos dar, por acaso, esta caracteristica do nada uma indicagao da diregao na qual unicamente teremos possibili- dade de encontra-lo? A totalidade do ente deve ser previamente dada para que possa ser submetida enquanto tal simplesmente a negagéo, na qual, entéo, 0 proprio nada se deverd manifestar. Mesmo, porém, que prescindamos da problematicidade da relagdo entre a negagio ¢ o nada, como deveremos nés — enquanto seres finitos — tornar acessivel para nds, em sie particularmente, a totalidade do ente em sua omnitude? Podemos, em todo caso, pen- sar a totalidade do ente imaginando-a, ¢ entio negar, em pensamento, o assim figurado © “pensa-lo” enquanto negado. Por esta via obteremos, certamente, o conceito formal do nada figurado, mas jamais o proprio nada. Porém, entre 0 nada figurado, e 0 nada “auténtico” néio pode imperar uma diferenga, caso o nada represente realmente a abso- uta indistingdo. Nao é, entretanto, o proprio nada “auténtico” aquele conceito oculto, mas absurdo, de um nada com caracteristicas de ente? Mas paremos aqui com as per. Buntas. Que tenha sido este o momento derradeiro em que as objegdes do entendimento Tetiveram nossa busca que somente pode ser legitimada por uma experiéncia funda. mental do nada, Tao certo como & que nds nunca podemos compreender a totalidade do ente em.si € absolutamente, to evidente é, contudo, que nos encontramos postados em meio a0 ente de algum modo desvelado em sua totalidade. E esta fora de diivida que subsiste uma dife. renga essencial entre 0 compreender a totalidade do ente em si eo encontrar-se em meio ao ente em sua totalidade. Aquilo é fundamentalmente impossivel. Isto. no entanto, acon. tece constantemente em nossa existéncia. Parece, sem diivida, que, em nossa rotina cotidiana, estamos presos sempre apenas 2 este ou aquele ente, como se estivéssemos perdidos neste ou naquele dominio do ente, Mas, por mais disperso que possa parecer o cotidiano, ele retém, mesmo que vagamente, © ente numa unidade de “totalidade”. Mesmo entio e justamente entio, quando nao esta, mos propriamente ocupados com as coisas e com nds mesmos, sobrevém-nos este “em totalidade”, por exemplo, no tédio propriamente dito. Este tédio ainda esta muito longe de nossa experiéneia quando nos entedia exclusivamente este livro ou aquele espetaculo, aguela ocupagao ou este dcio. Ele desabrocha se “a gente esté entediado”. O profundo tédio, que como névoa silenciosa desliza para cé e para ld nos abismos da existéncia, ni- Vela todas as coisas, os homens e a gente mesmo com elas, numa estranha indiferen Este tédio manifesta o ente em sua totalidade QUE E METAFISICA? : 237 Uma outra possibilidade de tal manifestagdo se revela na alegria pela presenga — no da pura pessoa —, mas da existéncia de um ser querido. Semelhante disposigio de humor em que a gente se sente desta ou daquela maneira situa-nos — perpassados por esta disposigio de humor — em meio ao ente em sua tota- lidade, O sentimento de situagao da disposigao de humor nio revela apenas, sempre & sua maneira, 0 ente em sua totalidade. Mas este revelar é simultaneamente — longe de ser um simples epis6dio — um acontecimento fundamental de nosso set-ai. © que assim chamamos “sentimentos” ndo ¢ um fenémeno secundario de nosso comportamento pensante e volitivo, nem um simples impulso causador dele nem um es- tado atual com o qual nos temos que haver de uma ou outra maneira. Contudo, precisamente quando as disposiges de humor nos levam, deste modo, diante do ente em sua totalidade, ocultam-nos 0 nada que buscamos. Muito menos sere mos agora de opinido de que a negacao do ente em sua totalidade, manifesta na disposi gio de humor, nos ponha diante do nada. Tal somente poderia acontecer, com a ade- quada originariedade, numa disposigao de humor que revele o nada, de acordo com seu proprio sentido revelador. Acontece no ser-ai do homem semelhante disposicao de humor na qual ele seja leva- do a presenga do préprio nada? Este acontecer € possivel e também real — ainda que bastante raro — apenas por instantes, na disposig&o de humor fundamental da angiistia, Por esta angiistia ndo enten- demos a assaz freqiiente ansiedade que, em iiltima andlise. pertence aos fendmenos do temor que com tanta facilidade se mostram. A angiistia € radicalmente diferente do temor. Nos nos atemorizamos sempre diante deste ou daquele ente determinado que, sob um ou outro aspecto determinado, nos ameaga. O temor de... sempre teme por algo determinado, Pelo fato de o temor ter como propriedade a limitagdo de seu “de” (Wovor) e de seu “por” (Worum), 0 temeroso ¢ 0 medroso sao retidos por aquilo que nos ame- dronta. Ao esforgar-se por se libertar disto — de algo determinado —, torna-se, quem sente o temor, inseguro com relagao as outras coisas, isto é, perde literalmente a cabeca. A angistia nao deixa mais surgir uma tal confusfio. Muito antes, perpassa-a uma estranha trangililidade. Sem divida, a angistia é sempre angistia diante de. . ., mas nio angiistia diante disto ou daquilo. A angiistia diante de... @ sempre angistia por. ., mas nio por isto ou aquilo. O carater de indeterminago daquilo diante de e por que nos angustiamos, contudo, ndo é apenas uma simples falta de determinagao, mas a essencial impossibilidade de determinagio. Um exemplo conhecido nos ‘pode revelat esta impossibilidade. Na angiistia —~ dizemos nés — “a gente sente-se estranho”. O que suscita tal estra- nheza e quem € por ela afetado? Nao podemos dizer diante de que a gente se sente estra- tho. A gente se sente totalmente assim. Todas as coisas ¢ nds mesmos afundamo-nos numa indiferenga. Isto, entretanto, nao no sentido de um simples desaparecer, mas em se afastando elas se voltam para nés. Este afastar-se do ente em sua totalidade, que nos {stia, nos oprime, Nao resta nenhum apoio. Sé resta e nos sobrevém — na fuga do ente — este “nenhum”. A angistia manifesta o nada, stamos suspensos” na angustia. Melhor dito: a angiistia nos suspende porque ela pode em fuga o ente em sua totalidade. Nisto consiste 0 fato de nds préprios — os homens que somos — refugiarmo-nos no seio dos entes. E por isso que, em tiltima anélise, nao sou “eu” ou no és “tu” que te sentes estranho, mas a gente se sente assim. Somente con: tinua presente 0 puro ser-ai no estremecimento deste estar suspenso onde nada ha em que apoiar-se, 238 HEIDEGGER A angiistia nos corta a palavra. Pelo fato de o ente em sua totalidade fugir, e assim, Justamente, nos acossa 0 nada, em sua presenga, emudece qualquer dicgdo do “é". O fato de nds procurarmos muitas vezes, na estranheza da angtistia, romper o vazio siléncio com palavras sem nexo é apenas o testemunho da presenga do nada. Que a angiistia reve- la o nada é confirmado imediatamente pelo proprio homem quando a angiistia se afas- tou. Na posse da claridade do olhar, a lembranga recente nos leva a dizer: Diante de que © por que nds nos angustiavamos era “propriamente” — nada. Efetivamente: 0 nada mesmo — enquanto tal — estava af. Com a determinago da disposigio de humor fundamental da angistia atingimos 0 acontecer do ser-ai no qual 0 nada esta manifesto e a partir do qual deve ser questionado. Que acontece com o nada? A Resposta a Questao A resposta, primeiramente a tnica essencial para nosso proposito. ja foi aleangada se tivermos a precaugao de manter realmente formulada a questo do nada. Para isto se exige que reproduzamos a transformago do homem em seu ser-ai que toda angustia em nés realiza. Entdio captamos o nada que nela se manifesta, assim como se revela. Com isto se impde, ao mesmo tempo, a exigéncia de mantermos expressamente longe a deter- minago do nada que nao se desenvolven na abordagem do mesmo. O nada se revela na angistia — mas nao enquanto ente, Tampouco nos é dado como objeto. A angiistia nio € uma apreensio do nada, Entretanto, o nada se torna manifesto por ela ¢ nela, ainda que nao da maneira como se 0 nada se mostrasse separa- do, “ao lado” do ente, em sua totalidade, o qual caiu na estranheza, Muito antes, ¢ isto J€ 0 dissemos: na angiistia deparamos com o nada juntamente com o ente em sua totali- dade. Que significa este “juntamente com”? Na angiistia 0 ente em sua totalidade se torna caduco, Em que sentido acontece isto? Pois, certamente, o ente nio é destrufdo pela angiistia para assim deixar como sobra o nada. Como é que ela poderia fazé-lo quando justamente a angiistia se encontra nna absoluta impoténcia em face do ente em sua totalidade? Bem antes. revela-se propria- mente 0 nada com 0 € no ente como algo que foge em sua totalidade. Na angistia ndo acontece nenhuma destruigio de todo o ente em si mesmo, mas tampouco realizamos nds uma negagio do ente em sua totalidade para, somente entio, atingirmos o nada, Mesmo nao considerando o fato de que é alhieio a angtistia enquanto tal, a formulagao expressa de uma enunciagao negativa, chegariamos, mesmo com uma tal negago, que deveria ter por resultado o nada, sempre tarde. Ja antes disto o nada nos visita. Diziamos que nos visitava juntamente com a fuga do ente em sua totalidade. Na angiistia se manifesta um retroceder diante de. . . que. sem dévida, nfo é mais, uma fuga, mas uma quietude fascinada. Este retroceder diante de... recebe seu impulso inicial do nada. Este ndo atrai para si, mas se caracteriza fundamentalmente pela rejei- gio. Mas tal rejeigdo que afasta de si é , enquanto tal, um remeter (que faz fugir) ao ente em sua totalidade que desaparece. Esta remissio que rejeita em sua totalidade, reme- tendo ao ente em sua totalidade em fuga — tal é 0 modo de o nada assediar, na angéstia, 0 ser-ai —, é a esséncia do nada: a nadificagao. Ela ndo é nem uma destruigdo do ente, nem se origina de uma negagao. A nadificagdo também nio se deixa compensar com a destruigio e a negago. O proprio nada nadifica. QUE f METAFISICA? 239 O nadificar do nada nfo é um episédio casual, mas, como remissdo (que rejeita) ao ente em sua totalidade em fuga, ele revela este ente em sua plena, até entéo oculta, estra- nheza como o absolutamente outro — em face do nada, Somente na clara noite do nada da angistia surge a originéria abertura do ente enquanto tal: 0 fato de que é ente — e nao nada. Mas este “e niio nada”, acrescentado em nosso discurso, nao é uma clarificagao tardia e secundaria, mas a possibilitagao pré- via da revelagio do ente em geral. A esséncia do nada originariamente nadificante con- siste em: conduzir primeiramente o ser-af diante do ente enquanto tal. Somente a base da originaria revelagdo do nada pode o ser-ai do homem chegar ao ente ¢ nele entrar. Na medida em que o ser-af se refere, de acordo com sua esséncia, ao ente que ele proprio é, procede ja sempre, como tal ser-ai, do nada revelado. Ser-ai quer dizer: estar suspenso dentro do nada. Suspendendo-se dentro do nada o ser-ai ja sempre est além do ente em sua totali- dade. Este estar além do ente designamos a transcendéncia, Se o ser-ai, nas raizes de sua esséncia, nao exercesse o ato de transcender, ¢ isto expressamos agora dizendo: se 0 ser- ai no estivesse suspenso previamente dentro do nada, ele jamais poderia entrar em rela- 40 com o ente e, portanto, também nao consigo mesmo. Sem a originaria revelagdo do nada nao ha ser-si-mesmo, nem liberdade, Com isto obtivemos a resposta 4 questo do nada. O nada nao € nem um objeto, nem um ente. O nada nao acontece nem para si mesmo, nem ao lado do ente ao qual, por assim dizer, aderiria. O nada é a possibilitagdo da revelagio do ente enquanto tal para 0 ser-ai humano. O nada nao é um conceito oposto ao ente, mas pertence originariamente a esséncia mesma (do ser). No ser do ente acontece o nadificar do nada. Mas agora devemos dar finalmente a palavra a uma objegio j4 por tempo dema- siado reprimida. Se 0 ser-ai somente pode entrar em relag&o com o ente enquanto estd suspenso no nada, se, portanto, somente assim pode existir e se o nada somente se revela originariamente na angiistia, nao devemos nds entdo pairar constantemente nesta angis- tia para, afinal, podermos existir? Nao reconhecemos nds mesmos que esta angilstia originaria rara? Mas, antes disso, esta fora de divida que todos nds existimos ¢ nos relacionamos com o ente — tanto aquele ente que somos como aquele que no somos — sem esta angiistia, Nao é ela uma invengdo arbitraria eo nada a cla atribuido um exagero? Entretanto, o que quer dizer: esta angéstia origindria somente acontece em raros momentos? Nao outra coisa que: 0 nada nos é primeiramente ¢ 0 mais das vezes dissi- mulado em sua originariedade. E por qué? Pelo fato de nos perdermos, de determinada maneira, absolutamente junto ao ente. Quanto mais nos voltamos para o ente em nossas ocupagées, tanto menos nés o deixamos enquanto tal, e tanto mais nos afastamos do nada. E tanto mais seguramente nos jogamos na piblica superficie do ser-ai. E, contudo, é este constante, ainda que ambiguo desvio do nada, em certos limites, seu mais préprio sentido. Ele, o nada em seu nadificar, nos remete justamente ao ente. O nada nadifica ininterruptamente sem que nds propriamente saibamos algo desta nadifica- a0 pelo conhecimento no qual nos movemos cotidianamente. que testemunha, de modo mais convincente, a constante ¢ difundida, ainda que dissimulada, revelagéio do nada em nosso ser-ai, que a negagtio? Mas, de nenhum modo, esta aproxima 0 “néo”, como meio de distingdio e oposi¢do do que € dado, para, por assim dizer, colocé-lo entre ambos. Como poderia a negagao também produzir por si o “nao” se cla somente pode negar se Ihe foi previamente dado algo que pode ser negado? Como pode, entretanto, ser descoberto algo que pode ser negado ¢ que deve sé-lo enquanto afetado pelo “no” se no fosse realidade que todo 0 pensamento enquanto t 240 HEIDEGGER J de antemao, tem visado ao “ndo”? Mas 0 “no” somente pode revelar-se quando sua origem, o nadificar do nada em geral ¢ com isto o proprio nada foram arrancados de seu velamento, O “nao” ndo surge pela negag%io, mas a negagdo se funda no “no” que, por sua vez, se origina do nadificar do nada. Mas a negagao € também apenas um modo de uma relagao nadificadora, isto quer dizer, previamente fundado no nadificar do nada. Com isto esté demonstrada, em seus elementos basicos, a tese acima: o nada é a ori gem da negagio e nao vice-versa, a negagao a origem do nada. Se assim se rompe 0 poder do entendimento no campo da interrogagao pelo nada e pelo ser, entio se decide também, com isto, o destino do dominio da “légica” no seio da filosofia. A idéia da “I6- gica” mesma se dissolve no redemoinho de uma interrogago mais originaria. Por muito ¢ diversamente que a negagdo — expressamente ou nfio — atravesse todo o pensamento, ela, de nenhum modo, por si s6, é testemunho valido para a revela- gio do nada pertencente essencialmente ao ser-ai. Pois a negagaio ndo pode ser procla- mada nem 0 {inico, nem mesmo 0 comportamento nadificador condutor, pelo qual o ser- ai é sacudido pelo nadificar do nada. Mais abissal que a pura conveniéncia da negagio pensante é a dureza da contra-atividade e a agudeza da execrago. Mais esponsavel & a dor da frustragao e a incleméncia do proibir. Mais importuna é a aspereza da privagio. stas possibilidades do comportamento nadificador — forcas em que 0 ser-ai sus tenta seu estar-jogado, ainda que néo o domine — nio sio modos de pura negagdo, Mas isto nao as impede de se expressar no “nao” e na negasiio. Através delas 6 que se trai sem diivida, de modo mais radical, 0 vazio e a amplidao da negag3o. Este estar 0 ser-al totalmente perpassado pelo comportamento nadificador testemunha a constante e, sem divida, obscurecida revelagio do nada, que somente a angistia originariamente desvela, Nisto, porém, est: esta originaria angistia é 0 mais das vezes sufocada no ser-ai. A angistia esta ai. Ela apenas dorme. Seu halito palpita sem cessar através do ser-af raramente seu tremor perpassa a medrosa e imperceptivel atitude do ser-af agitado envol- vido pelo “sim, sim” e pelo “nao, nao”; bem mais cedo perpassa o ser-ai senhor de si ‘mesmo; com maior certeza surpreende, com seu estremecimento, o ser-ai radicalmente audaz. Mas, no tiltimo caso, somente acontece originado por aquilo por que o ser-af se prodigaliza, para assim conservar-Ihe a derradeira grandeza, A angistia do audaz nao tolera nenhuma contraposigio & alegria ou mesmo a agra- davel diversdo do trangiiilo abandonar-se a deriva. Ela situa-se — aquém de tais posi gdes — na secreta alianga da serenidade e dogitra do anelo criador. A angistia originaria pode despertar a qualquer momento no ser-ai. Para isto ela ndo necessita ser despertada por um acontecimento inusitado. A profundidade de seu imperar corresponde paradoxal. mente a insignificancia do elemento que pode provocé-la. Ela esta continuamente a espreita e, contudo, apenas raramente salta sobre nés para arrastar-nos que nos sentimos suspensos. O estar suspenso do ser- homem no lugar-tenente do nada, Tio finitos somos nds que precisamente nio somos capazes de nos colocarmos originariamente diante do nada por decisio e vontade pré- prias, Tao insondavelmente a finitizagao escava as rafzes do ser-ai que a mais genuina e profunda finitude escapa a nossa liberdade. © estar suspenso do ser-ai dentro do nada originado pela angiistia escondida ¢ 0 ultrapassar do ente em sua totalidade: a transcendéncia. Nossa interrogaco pelo nada tem por meta apresentar-nos a propria metafisica. O nome “metafisica” vem do grego: fd metd physikd. Esta surpreendente expressio foi mais tarde interpretada como caracterizagao da interrogagao que vai meté — rans “além” do ente enquanto tal. mas { no nada originado pela angistia escondida transforma o QUE E METAFISICA?” 241 Metafisica é o perguntar além do ente para recuperé-lo, enquanto tal e em sua totali dade, para a compreensio. Ne pergunta pelo nada acontece um tal ir para fora além do ente enquanto ente em sua totalidade. Com isto prova-se que cla é uma questo “metafisica”. De questdes deste tipo davamos, no inicio, uma dupla caracteristica: cada questo metafisica compreende, de um lado, sempre toda a metafisica. Em cada questo metafisica, de outro lado, sempre vem envolvido o ser-ai que interroga Em que medida perpassa e compreende a questio do nada a totalidade da metafisica? Sobre o nada a metafisica se expressa desde a Antiguidade numa enunciagao, sem divida, multivoca: ex nihilo nihil fit, do nada nada vem, Ainda que, na discussie do emunciado, 0 nada, em si mesmo, nunca se torne problema, expressa ele, contudo, a partir do respective ponto de vista sobre o nada, a concepedio fundamental do ente que aqui ¢ condutora. A metafisica antiga concebe o nada no sentido do nao-ente, quer dizer, da matéria informe, que a si mesma nao pode dar forma de um ente com cardter de figura, gue, desta maneira, oferece um aspecto (eidos). Ente é a figura que se forma a si mesma, que enquanto tal se apresenta como imagem. Origem, justificago e limites desta concep- de ser sio tio pouco diseutides como o é o proprio nada, A dogmatica crista, pelo contrario, nega a verdade do enunciado: ex nihilo nihil fit e d&, com isto, uma significa- do modificada ao nada, que entio passa a significar a absoluta auséncia de ente fora de Deus: ex nihilo fit — ens creatum. O nada torna-se agora 0 conceito oposto ao ente verdadeiro, ao summum ens, a Deus enquanto ens increatum, Também a explicagao do nada indica a concepgdo fundamental do ente. A discussio metafisiea do ente mantém- se, porém, ao mesmo nivel que a questo do nada, As questdes do ser e do nada enquanto tais nfo tém lugar. E por isso que nem mesmo preocupa a dificuldade de que, se Deus cria do nada, justamente precisa poder entrar em relago com o nada, Se, porém, Deus € Deus, no pode ele conhecer 0 nada, se é certo que 0 “absoluto” exclui de si tudo 0 que tem carater de nada, A superficial recordagdo histérica mostra 0 nada como conceito oposto ao ente verdadeiro, quer dizer, como sua negacao. Se, porém, 0 nada de algum modo se torna problema, entio esta contraposig4o nao experimenta apenas uma determinagdo mais clara, mas ento primeiramente se suscita a verdadeira questo metafisica a respeito do ser do ente. O nada nao permanece o indeterminado oposto do ente, mas se desvela como pertencente ao ser do ente. “O puro ser ¢ 0 puro nada so, portanto, o mesmo.” Esta frase de Hegel (Ciéncia da Logica, Livro 1, WW III, p. 74) enuncia algo certo. Ser e nada copertencem, mas no porque ambos — vistos a partir da concepso hegeliana do pensamento — coincidem em sua determinagio ¢ imediatidade, mas porque o ser mesmo é finito em sua manifesta- gio no ente (Wesen), e somente se manifesta na transcendéncia do ser-ai suspenso dentro do nada, Se, de outro lado, a questiio do ser enquanto tal é a questo que envolve a metafi- sica, entio esta demonstrado que a questo do nada é uma questo do tipo que com preende a totalidade da metafisica. A questéo do nada pervade, porém, ao mesmo tempo, a totalidade da metafisica, na medida em que nos forga a enfrentar o problema da origem da negagao, isto quer dizer, nos coloca fundamentalmente diante da decisdo sobre a legi- timidade com que a “I6gica” impera na metafisica. A velha frase ex nihilo nihil fit contém entdo um outro sentido que atinge 0 proprio problema do ser ¢ diz: ex sihilo omne ens qua ens fit. Somente no nada do ser-ai o ente em sua totalidade chega a si mesmo, conforme sua mais propria possibilidade, isto € de 242 modo finito. Em que medida entdo a questiio do nada, se for uma questo metafisica, jé envolveu em si mesma nossa existéncia interrogante? Nos caracterizamos nossa existén- cia, aqui e agora experimentada, como essencialmente determinada pela ciéncia. Se nossa existéncia assim determinada est colocada na questo do nada, deve entdo ter-se tornado problematica por causa desta questo. A existéncia cientifica recebe sua simplicidade e acribia do fato de se relacionar com o ente ¢ unicamente com ele de modo especialissimo. A ciéncia quisera abandonar, com um gesto sobranceiro, o nada. Agora, porém, se torna patente, na interrogagao, que esta existéncia cientifica somente é possivel se se suspende previamente dentro do nada. Apenas entio compreende ela realmente o que é quando nfo abandona o nada. A apa rente sobriedade ¢ superioridade da ciéncia se transforma em ridfculo, se nio leva a sério © nada, Somente porque o nada se revelou, pode a ciéncia transformar o proprio ente em objeto de pesquisa. Somente se a ciéncia existe gragas a metalisiea, é ela capaz de con- quistar sempre novamente sua tarefa essencial que nao consiste primeiramente em reco- Iher ¢ ordenar conhecimentos, mas na descoberta de todo o espago da verdade da natu- reza e da historia, cuja realizag&o sempre se deve renovar. Somente porque o nada esta manifesto nas raizes do ser-ai pode sobrevir-nos a absoluta estranheza do ente. Somente quando a estranheza do ente nos acossa, desperta € atrai cle a admiragdio. Somente baseado na admiragio — quer dizer, fundado na reve- lagdo do nada — surge o “porqué™. Somente porque é possivel o “porque” enquanto tal, podemos nés perguntar, de maneira determinada, pelas razdes ¢ fundamentar. Somente porque podemos perguntar e fundamentar foi entregue A nossa existéncia o destino do pesquisador. ‘A questo do nada pie a nés mesmos — que perguntamos — em questio. Ela é uma questo metafisica. ser-ai humano somente pode entrar em relagdio com o ente se se suspende dentro do nada. O ultrapassar 0 ente acontece na esséncia do ser-ai. Este ultrapassar, porém, a propria metafisica. Nisto reside 0 fato de que a metafisica pertence a “natureza do homem”. Ela nao é uma disciplina da filosofia “académica”, nem um campo de idéias arbitrariamente excogitadas. A metafisica ¢ acontecimento essencial no dmbito de ser- af, Ela € 0 proprio ser-af. Pelo fato de a verdade da metafisica residir neste fundamento abissal possui ela, como vizinhanga mais préxima, sempre A espreita, a possibilidade do erro mais profundo. E por isso que nenhum rigor de qualquer ciéncia alcanga a seriedade da metalisica. A filosofia jamais pode ser medida pelo padro da idéia da ciéncia. Se realmente acompanhamos, com nossa interrogagao, a questo desenvolvida em torno do nada, ent&o no nos teremos representado a metafisica apenas do exterior. Nem nos transportamos também simplesmente para dentro dela. Nem somos disso capazes porque — na medida em que existimos — j4 sempre estamos colocados dentro dela, Physei gar, o phite, énest tis philosophta te toil andrds didnoia (Platao, Fedro 279a). Na medida em que o homem existe, acontece, de certa maneira, o filosofar. Filosofia — 0 que nés assim designamos — é apenas 0 por em marcha a metafisica, na qual a filosofia toma consciéncia de si ¢ conquista seus temas expressos. A filosofia somente se pde em movimento por um peculiar salto da propria existéncia nas possibilidades fundamentais do ser-ai, em sua totalidade, Para este salto sfio decisivos: primeiro, 0 dar espago para 0 ente em sua totalidade; segundo, o abandonar-se para dentro do nada, quer dizer, o ibe tar-se dos {dolos que cada qual possui e para onde costuma refugiar-se sub-repticia mente; e, por iiltimo, permitir que se desenvolva este estar suspenso para que constante. mente retorne a questo fundamental da metafisica que domina o proprio nada: Por que existe afinal ente e no antes Nada? as POSFACIO (1943) A pergunta “Que € metafisica?” permanece uma pergunta. O seguinte posficio & para aquele que acompanha a questio, um prefacio mais originario. A pergunta “Que é metafisica?” interroga para além da metafisica, Ela nasce de um pensamento que jé penetrou na superagao da metafisica. A esséncia de tais transigdes pertence o fato de, em certos limites, terem que falar ainda a linguagem daquilo que auxiliam a superar A especial oportunidade na qual é discutida a questo da esséncia da metafisica no deve induzir & opinido de que tal questionar esteja condenado a tomar seu ponto de parti- da das ciéncias. A investigagio moderna esta engajada, com outros modos de represen- tagdo e com outras espécies de produgao do ente, no elemento caracterfstico daquela ver- dade, conforme a qual todo ente se caracteriza pela vontade de vontade. Como forma antecipadora, comegou a aparecer a “vontade de poder”. “Vontade”, compreendida como trago basico da entidade do ente, é, tio radicalmente, a identificagdo do ente com © que é atual, que a atualidade do atual é transformada em incondicional factibilidade da geral objetivagdo, A ciéncia moderna nem serve a um fim que lhe primeiramente pro- posto, nem procura uma “verdade em si”. Ela é enquanto um modo de objetivagio calculadora do ente, uma condigo estabelecida pela propria vontade de vontade, através da qual esta garante 0 dominio de sua esséncia. Mas pelo fato de toda objetivagio do ente se exaurir na produgao e garantia do ente, conquistando, desta maneira, as possibili- dades de seu progresso, permanece a objetivagao apenas junto ao ente e j4 0 julga o ser Todo comportamento que se relaciona com o ente testemunha, desta maneira, jé um certo saber do ser, mas atesta simultaneamente a incapacidade de, por suas proprias for- gas, permanecer na lei da verdade deste saber. Esta verdade é a verdade sobre o ente. A metafisica € a histéria desta verdade. Ela diz 0 que o ente €, enquanto ela conceitua a entidade do ente. Na entidade do ente pensa a metafisica o ser, sem contudo, poder consi derar, pela sua maneira de pensar, a verdade do ser. A metafisica se move, em toda parte, no ambito da verdade do ser que the permanece o fundamento desconhecido ¢ infundado. Suposto, porém, que ndo apenas o ente emerge do ser, mas que também, e ainda mais originariamente, o proprio ser reside em sua verdade e que a verdade do ser se desdobra (west) como o ser da verdade, entio, € necessiria a pergunta pelo que seja a metalisica em seus fundamentos, Este interrogar deve pensar metafisicamente e, 20 mesmo tempo, deve pensar a partir dos fundamentos da metafisica, vale dizer, no mais metafisica mente. Num sentido essencial, um tal questionar permanece ambivalente. Toda tentativa, portanto, de acompanhar a marcha da prelegdo se chocar4, por isso. com dificuldades. Isto é bom. O interrogar torna-se, com isto, mais auténtico, Cada per- gunta objetiva é ja uma ponte para a resposta. Respostas essenciais siio, constantemente, apenas 0 iiltimo passo das proprias questdes, Este passo, porém, permanece irrealizavel 246 HEIDEGGER sem a longa série dos primeiros passos ¢ dos que seguem. A resposta essencial haure sua forga sustentadora na in-sisténcia do perguntar. A resposta essencial & apenas 0 comego de uma responsabilidade, Nela o interrogar desperta mais originariamente. E também, por isso, que a questo auténtica ndo é suprimida pela resposta encontrada. As dificuldades para acompanhar 0 pensamento da prelegio sio de duas especies. Umas surgem dos enigmas que se ocultam no Ambito do que aqui é pensado. As outras se originam da incapacidade e também, muitas vezes, da mé vontade para pensar. Na es- fera do interrogar pensante podem ja ajudar objegdes passageiras, mas certamente, entre estas, aquelas que forem cuidadosamente meditadas. Também opinides grosseiras ¢ fal- sas frutificam de algum modo, mesmo que sejam proclamadas na raiva de uma polémica cega. A reflexdo deve apenas recolher tudo na serena trangiiilidade da longanima meditagao. Podemos reunir em trés proposigdes basicas as objegdes ¢ falsas opinides sobre esta prelegdo. Diz-se: 1 — a preleg&o transforma “o nada” em tinico objeto da metafisica. Entretanto, porque o nada é absolutamente nadificante, leva este pensamento & opinifio de que tudo é nada, de tal maneira que nao vale a pena, quer viver quer morrer. Uma “filosofia do nada” é um acabado “nillismo”; 2 — a prelegdo eleva uma disposi¢io de humor isolada e ainda por cima depri- mente, a angiistia, ao privilégio de nica disposigao de humor fundamental. Entretanto, porque a angistia é o estado de animo do “medroso” ¢ covarde, renega este pensamento a confiante atitude da coragem. Uma “filosofia da angistia” paralisa a vontade para a acho; 3 — a prelecdo toma posigao contra a “légica”. Entretanto, porque o entendimento contém os padrées de todo célculo e ordem, este pensamento transfere 0 juizo sobre a verdade para a aleatéria disposigao de humor. Uma “filosofia do puro sentimento” poe em perigo o pensamento “exato” e a seguranga do agir. A postura correta diante destas proposigdes surge de uma renovada meditagao da preleco. Ela deve examinar se o nada, que dispde a angstia em sua esséncia, se esgota numa vazia negacio de tudo o que é, ou se — o que jamais ¢ em parte alguma é um ente — se desvela como aquilo que se distingue de todo ente e que nds chamamos o ser. Em qualquer lugar ¢ em qualquer amplitude em que a pesquisa explore o ente, em parte algu- ma, encontra cla o ser. Ela apenas atinge sempre 0 ente porque, antecipadamente, ja na intengio de sua explicagdo, permanece junto do ente. O ser. porém, nao é uma qualidade 6ntica do ente. O ser nao se deixa representar ¢ produzir objetivamente a semelhanga do ente. O absolutamente outro com relagdo ao ente é 0 ndo-ente. Mas este se desdobra (ivest) como ser. Com demasiada pressa renunciamos ao pensamento quando fazemos passar, numa explicagdo superficial, o nada pelo puramente nadificador ¢ 0 igualamos ao que no tem substincia. Em vez de cedermos a esta pressa de uma perspiccia vazia e sacrificarmos a enigmética multivocidade do nada, devemos armar-nos com a disposigao tinica de experimentarmos no nada a amplidio daquilo que garante a todo ente (a possi- bilidade de) ser. Isto é 0 préprio ser. Sem o ser, cuja esséncia abissal, mas ainda nao desenvolvida, 0 nada nos envia na angistia essencial, todo ente permaneceria na indi- géncia do ser. Mas mesmo esta indigéncia do ser, enquanto abandono do ser, ndo é, por sua vez, um nada nadificador, se é certo que & verdade do ser pertence o fato de que 0 ser nunca se manifesta (vest) sem o ente, de que jamais o ente é sem o ser. A angiistia dé-nos uma experiéneia de ser como 0 outro com relagio a todo ente, suposto que — por causa da “angistia” diante da angiistia, quer dizer, na pura atitude QUE E METAFISICA? 247 medrosa do temor — nds no nos esquivemos, fugindo da voz silenciosa que nos dispde para o espanto do abismo. Se abandonarmos arbitrariamente 0 curso do pensamento desta prelegao, ao nos referirmos a esta angiistia fundamental, se despojarmos a angés- tia, enquanto disposigdo de humor instaurada por aquela voz, da referéncia ao nada, entio nos resta apenas a angiistia como “sentimento” isolado que podemos distinguir & separar de outros sentimentos, no conhecido sortimento de estados de animo vistos psicologicamente. Tomando como guia a simplista diferenga entre “em cima” e “embai- xo”, podemos registrar, entio, as “disposigdes de humor” nas classes das que elevam das que deprimem, Sempre havera presa para a caca entusiasmada de “tipos” e “antiti- pos” de “sentimentos”, de espécies ¢ subespécies destes “tipos”. Contudo, esta explora- ao antropolégica do homem nunca ter possibilidades de acompanhar o curso do pen- samento desta preleco: pois esta pensa a partir da atengfio A voz do ser; ela assume a disposigao de humor que vem desta voz; esta disposigo de humor apela ao homem em sua esséncia para que aprenda a experimentar o ser no nada. A disposigdo para a angiistia € o sim a insisténcia para realizar o supremo apelo, 0 unico que atinge a esséncia do homem. Somente o homem, em meio a todos os entes, experimenta, chamado pela voz do ser, a maravilha de todas as maravilhas: que 0 ente é Aquele que assim ¢ chamado em sua esséncia para a verdade do ser esta, por isso, continuamente envolvido, de maneira fundamental, na disposigio de humor. A clara coragem para a angiistia essencial garante a misteriosa possibilidade da experiéneia do ser. Pois, proximo 8 angisstia essencial, como espanto do abismo, reside o respeito humil- de, Ele ilumina e protege aquele lugar da esséncia do homem no seio do qual ele perma- nece familiar no permanente. ‘A “angiistia” em face da angistia, pelo contrario, pode enganar-se de tal modo que desconhega as simples referéncias na esfera essencial da angustia. Que seria toda core- gem se nao tivesse, na experiéncia da angistia fundamental, seu constante elemento de confronto? Na medida em que diminufmos a angistia fundamental e a referéncia do ser ao homem, nela iluminada, aviltamos a esséncia da coragem. Mas esta € capaz de supor- tar o nada. A coragem reconhece, no abismo do espanto, o espaco do ser apenas entre- visto, a partir de cuja iluminagio cada ente primeiramente retorna Aquilo que €e é capaz de ser. A prelecdo nem se compraz numa “filosofia da angéistia”, nem procura insinuar a impressio de uma “filosofia herdica”, Ela pensa apenas aquilo que apareceu ao pensa- mento ocidental, desde 0 comego, como aquilo que deve set pensado ¢ permaneceu, entretanto, esquecido: 0 ser. Mas o ser no & produto do pensamento. Pelo contrario, 0 pensamento essencial é um acontecimento provocado pelo ser. E por isso que também se torna necessaria a formulagao do que até agora foi silen- ciado: situa-se este pensamento jé na lei de sua verdade se apenas segue aquele pensa- mento compreendido pela “Iégica”, em suas formas ¢ regras? Por que pac a prelegao esta expresso entre aspas? Para assinalar que a “lgica” € apenas uma das explicagdes da esséneia do pensamento; aquela que ja, 0 seu nome o mostra, se funda na experiéneia do ser realizado pelo pensamento grego. A suspeita contra a W6gica — como sua conse- giiente degenerescéncia pode valer a logistica — emana do conhecimento daquele pensa- mento que tem sua fonte na experiéncia da verdade do ser endo na consideragao da obje- tividade do ente. De nenhum modo € 0 pensamento exato o pensamento mais rigoroso, se 6 verdade que o rigor recebe sua esséncia daquela espécie de esforgo com que o saber sempre observa a relagio com o elemento fundamental do ente. O pensamento exato se prende unicamente 20 cflculo do ente e a este serve exclusivamente. Qualquer céleulo reduz todo 0 numeravel ao enumerado, para utilizd-lo para a proxima enumeragdo. O 248 HEIDEGGER ~ $ ‘ilculo nao admite outra coisa que o enumerdvel. Cada coisa & apenas aquilo que se pode enumerar. O que a cada momento é enumerado assegura 0 progresso na enumera- go. Esta utiliza progressivamente os mimeros e é, em si mesma, um continuo consumir- se. O resultado do calculo com o ente vale como o enumerdvel e consome o enumerado para a enumeragdo. Este uso consumidor do ente revela o cardter destruidor do céleulo. Apenas pelo fato de o nimero poder ser multiplicado infinitamente e isto indistintamente na dirego do maximo ou do minimo, pode ocultar-se a esséncia destruidora do célculo atras de seus produtos ¢ emprestar ao pensamento calculador a aparéncia da produtivi dade, enquanto, na verdade, faz valer, j4 antecipando e nfo em seus resultados subse- giientes, todo ente apenas na forma do que pode ser produzido e consumido. O pensa- mento calculador submete-se a si mesmo a ordem de tudo dominar a partir da Kgica de seu procedimento, Ele ndo é capaz de suspeitar que todo 0 calculével do célculo j& & antes de suas somas € produtos calculados, num todo cuja unidade, sem diivida, pertence a0 incalculavel que se subtrai a si e sua estranheza das garras do célculo. O que, entre- tanto, em toda parte e constantemente, se fechou de antemdo as exigéncias do céleulo que, contudo, ja a todo momento, é, em sua misteriosa condiga0 de desconhecido, mais préximo do homem que todo ente, no qual ele se instala a si ¢ a seus projetos, pode, de tempos em tempos, dispor a esséncia do homem para um pensamento cuja verdade nenhuma “Ilégica” € capaz de compreender. Chamemos de pensamento fundamental aquele cujos pensamentos ndo apenas calculam, mas so determinados pelo outro do ente. Em vez de calcular com o ente sobre o ente, este pensamento se dissipa no ser pela verdade do ser. Este pensamento responde ao apelo do ser enquanto o homem entrega sua esséncia historial 4 simplicidade da énica necessidade que ndo violenta enquanto submete, mas que cria 0 despojamento que se plenifica na liberdade do sacrificio. E preciso que seja preservada a verdade do ser, acontega o que acontecer ao homem € a todo ente. O sacrificio € destituido de toda violéncia porque é a dissipacio da essén cia do homem — que emana do abismo da liberdade — para a defesa da verdade do ser para o ente. No sacrificio se realiza 0 oculto reconhecimento, nico capaz de honrar 0 dom em que o ser se entrega & esséncia do homem, no pensamento, para que o homem assuma, na referéncia ao ser, a guarda do ser, © pensamento originario € o eco do favor do ser pelo qual se ilumina e pode ser apropriado 0 tinico acontecimento: que 0 ente 6, Este eco é a resposta humana & palavra da voz silenciosa do ser. A resposta do pensamento é a origem da palavra humana; pala- vea que primeiramente faz surgir a linguagem como manifestagdo da palavra nas palavras. Se, de tempos em tempos, néo houvesse um pensamento oculto no fundamento essencial do homem historial, entio ele jamais seria capaz do reconhecimento, suposto que, em toda reflexdo e em todo agradecimento, deve existir um pensamento que pensa originariamente a verdade do ser. Mas de que outro modo encontraria, um dia, uma humanidade o caminho para o reconhecimento originario que no pelo fato de o favor do ser oferecer ao homem, pela aberta referéncia a si mesma, a nobreza do despojamento, no qual a liberdade do sacrificio esconde 0 tesouro de sua esséncia? O sacrificio é a des pedida do ente em marcha para a defesa do favor do ser. O sacrificio pode, sem divida, ser preparado ¢ servido pelo agir ¢ produzir na esfera do ente, mas jamais pode ser por ele realizado. Sua realizag%o emana da in-sisténcia a partir da qual todo homem historial age — também o pensamento essencia! endo o ser-af instaurado para a defesa da dignidade do ser. Esta in-sisténcia é a impassibilidade que nao permite que seja contestada a oculta disposigao para a despedida propria de cada sacrificio. O sacri- uma QUE E METAFISICA? 249 ‘cio tem sua terra natal na esséncia daquele acontecimento que é © ser chamando o homem para a verdade do ser. E por isso que o sacrificio nao admite célculo algum pelo qual seria calculada sua utilidade ou inutilidade, sejam os fins visados mesquinhos ou elevados. Tal cflculo desfigura a esséncia do sacrificio. A mania dos fins confunde a lim- peza do respeito humilde (preparado para a angistia) da coragem para o sacrificio, que presume morar na vizinhanga do indestrutivel © pensamento do ser nao procura apoio no ente. O pensamento essencial presta atengdo aos lentos sinais do que nao pode ser calculado e nele reconhece © advento do inelutavel, que ndo pode ser antecipado pelo pensamento, Este pensamento esté atento a verdade do ser ¢ auxilia, desta maneira, o ser da verdade para que encontre seu lu, que nao precisa de repercussdo. O pensamento essencial auxilia com sua simples in: téncia no ser-ai na medida em que nela se desencadeia o que lhe é semelhante, sem que ela, entretanto, disso pudesse dispor ou mesmo apenas saber. O pensamento, décil 4 vox do ser, procura encontrar-the a palavra através da qual a verdade do ser chegue a linguagem. Apenas quando a linguagem do homem historial emana da palavra, esta ela inserida no destino que Ihe foi tragado. Atingido, porém, este equilibrio em seu destino, entio Ihe acena a garantia da voz silenciosa de ocultas fontes. © pensamento do ser protege a palavra € cumpre nesta solicitude seu destino, Este é 0 cuidado pelo uso da linguagem. O dizer do pensamento vem do siléncio longamente guardado ¢ da cuidadosa clarificago do ambito nele aberto. De igual origem é 0 nomear do poeta. Mas, pelo fato de o igual somente ser igual enquanto é distinto, e 0 poetar e 0 pensar terem a mais pura igualdade no cuidado da palavra, estio ambos, a0 mesmo tempo, maximamente separados em sua esséncia. O pensador diz 0 ser. O poeta nomeia © sagrado, Nao podemos analisar aqui do acontecimento. _(Wesen) do do ser, 0 poetar e 0 reconhecer e 0 pensar estdo referidos um ao outro ¢ a0 mesmo tempo separados, Provavelmente o reconhecer e © poetar se ori- ginam, ainda que de maneira diversa, do pensamento originario que utilizam, sem contu: do, poderem ser, para si mesmos, um pensamento. Conhecemos, é claro, muita coisa sobre a relagdo entre filosofia e poesia. Nao sabe mos, porém, do didlogo dos poetas e dos pensadores que “moram préximos nas monta- nhas mais separadas”. Um dos lugares fundamentais em que reina a indigéncia da linguagem ¢ a angistia, no sentido do espanto, no qual o abismo do nada dispde o homem. O nada, enquanto 0 outro do ente, é 0 véu do ser. No ser j& todo destino do ente chegou originariamente & sua plenitude. A Altima poesia do iltimo poeta da Grécia antiga, Edipo em Colonos, de Séfocles, encerra com a palavra que incompreensivelmente se volta sobre a oculta historia deste povo e conserva seu comeco na ignota verdade do si All’apopayete med’ epi pleio thrénon egetrete pantos gar ékhet tade kro. “Mas agora cessai e nunca n O lamento suse Pois, em todos os quadrantes. 0 que ac [retém junto a si Guardada uma decisdo de plenitude.” ais para o futuro INTRODUCAO (1949) O RETORNO AO FUNDAMENTO DA METAFISICA Descartes escreve a Picot, que traduzira os Principia Philosophiae para o francés: “Ainsi toute la philosophie est comme un arbre, dont les racines sont a Metaphysiqu le trone est la Physique, et les branches qui sortent de ce tronc sont toutes les autres sciences. . .” (Oeuvres de Descartes, editadas por C. Adam e P. Tannery, vol. IX, 14.) Aproveitando esta imagem, perguntamos: Em que solo encontram as raizes da 4r- vore da filosofia seu apoio? De que cho recebem as raizes e, através delas, toda a Arvore as seivas e forgas alimentadoras? Qual o elemento que percorre oculto no solo, as rafzes que dio apoio e alimento a arvore? Em que repousa e se movimenta a metafisica? O que @ a metafisica vista desde seu fundamento? O que, em diltima andlise, é a metafisica? Ela pensa o ente enquanto ente, Em toda parte, onde se pergunta o que é 0 ente, tem-se em mira 0 ente enquanto tal. A representagdo metafisica deve esta visio a luz do ser. A luz. isto & aquilo que tal pensamento experimenta como luz, ndo é em si mesma objeto de andlise; pois este pensamento analisa ¢ representa continuamente ¢ apenas 0 ente sob 0 ponto de vista do ente, E, sem diivida, sob este ponto de vista que 0 pensa- mento metafisico pergunta pelas origens énticas por uma causa da luz. A luz mesma vale como suficientemente esclarecida pelo fato de garantir transparéncia a cada ponto de vista sobre o ente. Seja qual for 0 modo de explicagao do ente, como espirito no sentido do espiritua lismo, como matéria ¢ forga no sentido do materialismo, como vir-a-ser e vida, como representagao, como vontade, como substancia, como sujeito, como enérgeia, como eter- no retorno do mesmo, sempre o ente enquanto ente aparece na luz do ser. Em toda parte, se iluminou o ser, quando a metafisica representa o ente. O ser se manifestou num desve- lamento (alétheia). Permanece velado 0 fato ¢ 0 modo como o ser traz. consigo tal desve- lamento, 0 fato € 0 modo como o ser mesmo se situa na metafisica e a assinala enquanto tal. O ser no & pensado em sua esséncia desveladora, isto é, em sua verdade. Entretanto, a metafisica fala da inadvertida revelag&o do ser quando responde a suas perguntas pelo ente enquanto tal. A verdade do ser pode chamar-se, por isso, 0 cho no qual a metati sica, como raiz da arvore da filosofia, se apdia e do qual retira seu alimento, Pelo fato de a metafisica interrogar o ente, enquanto ente, permanece ela junto ao ente ¢ nfo se volta para o ser enquanto ser. Como raiz da arvore ela envia todas as seivas e forgas para o tronco ¢ os ramos. A raiz se espalha pelo solo para que a arvore dele sur- gida possa crescer ¢ abandoné-lo. A rvore da filosofia surge do solo onde se ocultam as raizes da metafisica. O solo é, sem divida, o elemento no qual a raiz da arvore se desen- volve, mas o crescimento da arvore jamais sera capaz de assimilar em si de tal maneira © chao de suas raizes que desaparega como algo arbéreo na Arvore. Pelo contrario, as raizes se perdem no solo até as ltimas radiculas. O chao é chao para a raiz; dentro dele 254 HEIDEGGER ela se esquece em favor da arvore. Também a raiz. ainda pertence & arvore, mesmo que a seu modo se entregue ao elemento do solo. Ela dissipa seu elemento e a si mesma pela arvore. Como raiz ela no se volta para 0 solo; ao menos nio de modo tal como se fosse sua esséncia desenvolver-se apenas para si mesma neste elemento. Provavelmente, tam- bém o solo nao é tal elemento sem que 0 perpasse a raiz. Na medida em que, constantemente, apenas representa o ente enquanto ente, a metafisica no pensa no proprio ser. A filosofia nao se recolhe em seu fundamento. Ela o abandona continuamente e 0 faz pela metafisica. Dele, porém, jamais consegue fugit Na medida em que um pensamento se pde em marcha para experimentar 0 fundamento da metafisica, na medida em que um pensamento procura pensar na propria verdade do ser, em vez de apenas representar o ente enquanto ente, ele abandonou, de certa maneira, a metafisica. Visto da parte da metafisica, 0 pensamento se dirige de volta para o funda: mento da metafisica. Mas, aquilo que assim aparece como fundamento, se experimen- tado a partir de si mesmo, é provavelmente outra coisa até agora nao dita, segundo a qual a esséneia da metafisica € bem outra coisa que a metafisica. Um pensamento que pensa na verdade do ser nao se contenta certamente mais com a metafisica; um tal pensa- mento também nao pensa contra a metafisica. Para voltarmos a imagem anterior, ele ndo arranca a raiz da filosofia, Ele the cava 0 chao ¢ Ihe lavra o solo. A metafisica permanece a primeira instancia da filosofia. Ndo alcanga, porém, a primeira instancia do pensa- mento. No pensamento da verdade do ser a metafisica esta superada. Torna-se caduca a pretensio da metafisica de controlar a referéncia decisiva com o ser e de determinar adequadamente toda a relagdio com o ente enquanto tal. Esta “superagdo da metafisica”, contudo, no rejeita a metalisica. Enquanto o homem permanecer animal rationale & ele animal metaphysicum. Enquanto 0 homem se compreender como animal racional, per- tence a metafisica, na palavra de Kant, & natureza do homem. Se bem sucedido, talvez fosse possivel ao pensamento retornar ao fundamento da metafisica, provocando uma mudanga da esséncia do homem de cuja metamorfose poderia resultar uma transfor- magio da metafisica. Quando se falar assim, no desenvolvimento da questo da verdade do ser, de uma superagdo da metafisica, isto entio significa: Pensar no proprio ser. Um tal modo de pen sar ultrapassa o pensamento atual que no pensa no chao em que se desenvolve a taiz da filosofia. © pensamento tentado em Ser ¢ Tempo pie-se em marcha para preparar a supe- ragdo da metafisica assim entendida, Aquilo, porém, a que este pensamento dé o impulso necessario somente pode ser aquilo mesmo que deve ser pensado. O fato e a maneira de ‘© ser mesmo abordar um pensamento nunca dependem primeira ¢ unicamente do pensa- mento, Se o ser atinge um pensamento e 0 modo como o consegue, pde-no em marcha para sua matriz que vem do proprio ser, para, desta maneira, corresponder ao. ser enquanto tal, Mas por que, afinal, é necessaria uma tal espécie de superagio da metafisica? Deve- 14, desta maneira ser apenas substituida e fundamentada através de disciplina mais origi naria aquela disciplina da filosofia que até agora foi a raiz? Trata-se de uma modificagao do corpo doutrinario da filosofia? Nao. Ou deverd ser descoberto, pelo retorno ao funda. mento da metafisica, um pressuposto da filosofia até agora esquecido para mostrar-lhe que ainda nao assenta sobre seu fundamento inconcusso, néo podendo, por isso, ainda ser a ciéncia absoluta Nao. Com o advento ou a auséncia da verdade do ser. esté em jogo outra coisa: nfio a constituigio da filosofia, no apenas a propria filosofia, mas a proximidade ou distanci daquilo de que a filosofia, como 0 pensamento gue representa 0 ente enquanto tal, recebe QUE E METAFISICA? 255 sua esséncia e sua necessidade. O que se deve decidir é se o proprio ser pode realizar, a partir da verdade que Ihe é propria, sua relagao com a esséncia do homem ou se a metafi- sica, desviando-se de seu fundamento, impedira, no futuro, que a relagao do ser com o homem chegue, através da esséncia desta mesma relagao, a uma claridade que leve o homem a pertenga ao ser. Ja antes de suas respostas & questo do ente enquanto tal a metafisica representou © ser. Ela expressa necessariamente o ser e, por isso mesmo, o faz constantemente. Mas a metafisica ndo leva o ser mesmo a falar, porque nao considera o ser em sua verdade e a verdade como o desvelamento ¢ este em sua esséncia. A esséncia da verdade sempre aparece 4 metafisica apenas na forma derivada da verdade do conhecimento e da enun- ciagio, O desvelamento, porém, poderia ser algo mais originario que a verdade no senti- do da veritas. Alétheia taivez fosse a palavra que da o aceno ainda nao experimentado para a esséncia impensada do esse. Se a coisa fosse assim, sem divida o pensamento da metafisica que apenas representa jamais poderia alcancar esta esséncia da verdade, por mais afanosamente que se empenhasse historicamente pela filosofia pré-socratica; pois no se trata de algum renascimento do pensamento pré-socratico — tal projeto seria vio e sem sentido —, trata-se, isto sim, de prestar ateng’io ao advento da ainda no enun- ciada esséncia do desvelamento que é 0 modo como o ser se anunciou. Entretanto, velada permanece para a metafisica a verdade do ser ao longo de sua historia, de Anaximandro a Nietzsche. Por que nao pensa a metafisica na verdade do ser? Depende uma tal omis dio apenas da espécie de pensamento que é 0 metafisico? Ou pertence ao destino essen- cial da metafisica, que se Ihe subtraia seu proprio fundamento, porque em toda a eclosao do desvelamento permanece ausente sua esséncia, 0 velamento, e isto em favor do que foi desvelado e aparece como o ente? Entretanto, a metafisica expressa 0 ser constantemente ¢ das mais diversas formas. Ela mesma suscita e fortalece a aparéncia de que a questio do ser foi por ela levantada e respondida. Mas a metafisica no responde, em nenhum lugar, & questio da verdade do ser, porque nem a suscita como questao. Ela nao problematiza por que é que somente pensa o ser enquanto representa o ente enquanto ente. Ela visa ao ente em sua totalidade ¢ fala do ser. Ela nomeia o ser e tem em mira o ente enquanto ente. Os enunciados da metafisica se desenvolvem de maneira estranha, desde 0 comego até sua plenitude, numa geral troca do ente pelo ser. Esta troca, sem divida, deve ser pensada como aconteci- mento e nao como engano. Ela, de maneira alguma, tem suas razdes numa simples negli- géncia do pensamento ou numa exatidio no dizer. Em conseqiiéncia desta geral troca, a representagdo atinge o auge da confusdo quando se afirma que a metafisica realmente poe a questdo do ser Até parece que a metafisiea, sem seu conhecimento, esti condenada a ser, pela maneira como pensa o ente, a barreira que impede que o homem atinja a originaria rela iio do ser com o ser humano. Que seria, porém, se a auséncia desta relagdo e o esquecimento desta auséncia desde h& muito determinassem os tempos modernos? Que seria, se a auséncia do ser entregasse ‘© homem, sempre mais exclusivamente, apenas 20 ente, de tal modo que o ser humano fosse abandonado pela relaco do ser com sua (do homent) esséncia, fieando, ao mesmo tempo, tal abandono velado? Que seria, se assim fosse e se desde ha muito tempo esti- vesse persistindo tal situagHio? Que seria, se houvesse sinais mostrando que tal esqueci- mento se instalard para 0 futuro ainda mais decisivamente no esquecimento? Existiria ainda ocasido para um pensador se deixar conduzir presungosamente por este destino do ser? Se as coisas estivessem neste pé, haveria ainda motivo para, em tal 256 HEIDEGGER abandono do ser, se fantasiar ainda outra coisa ¢ isto levado até por uma disposig&o de humor elevado mas artificial? Se esta fosse a situagdo em torno do abandono do ser, nao haveria motivo bastante para que 0 pensamento, que pensa no ser, caisse no espanto que © paralisaria de tal modo que no fosse mais capaz de outra coisa que sustentar na angiistia este destino do ser para, antes de tudo, levar a uma decisio 0 pensamento que se ocupa do esquecimento do ser? Mas seria disto capaz um pensamento enquanto a angiistia, herdada como destino, fosse apenas uma deprimente disposigo de humor? Que tem a ver o destino do ser com psicologia e psicandlise? Suposto, porém, que d superagiio da metafisica corresponda o esforgo de primeira- mente aprender a prestar ateng&o ao esquecimento do ser, para experimenta-lo, assumir esta experiéncia na relagdo do ser com o homem e nela @ conservar, entio a pergunta “Que € metafisica?” permaneceria na indigéncia do esquecimento do ser, talvez contudo © mais necessério de tudo 0 que é necessario para 0 pensamento. Assim, tudo depende de que, em seu tempo oportuno, 0 pensamento se tome mais Pensamento. A isto chega o pensamento se, em vez de preparar um grau maior de esfor- ¢0. se dirige para outra origem. Entdo, o pensamento suscitado pelo ente enquanto tal, que por isso representa ¢ esclarece o ente, sera substituido por um pensamento instau- rado pelo proprio ser e por isso décil a vor do ser. Perdem-se no vazio consideragées sobre 0 modo como se poderia levar a agir sobre a vida cotidiana ¢ pablica de modo efetivo ¢ itil, 0 pensamento ainda e apenas metafi sico. Pois, quanto mais o pensamento é pensamento, quanto mais se realiza a partir da telagio do ser consigo, tanto mais puramente encontra-se, por si mesmo, engajado no inico agir que Ihe ¢ apropriado: na ago de pensar aquilo que the foi destinado e que por isso j4 foi pensado. Mas quem pensa ainda no que foi pensado? Inventam-se coisas. O pensamento ten- tado em Ser e Tempo esta “a caminho” para situar 0 pensamento num caminho em cuja marcha possa aleangar 0 interior da relagio da verdade do set com a esséncia do homem; esta em marcha para abrir ao pensamento uma senda na qual medite consenta- neamente o ser mesmo em sua verdade. Neste caminho, e isto quer dizer, a servigo da questio da verdade do ser, torna-se necessaria uma reflexdo sobre a esséncia do homem; pois a experiéncia do esquecimento do ser, ainda nio expressa porque exigindo demons. tragao, encerra em si a conjetura da qual tudo depende, de que, conforme o desvelamento do ser, a relagio do ser com o homem pertence a0 préprio ser. Mas como poderia esta conjetura aventada tornar-se mesmo apenas uma pergunta expressa sem que antes se empenhassem todos as esforgos para libertar a determinagdo fundamental do homem da subjetividade e da definigio do animal rationale. . .? Para reunir, ao mesmo tempo, numa palavra, tanto a relagdo do ser com a esséncia do homem, como também a referéncia fundamental do homem a abertura (“ai”) do ser enquanto tal, foi escoihido para o ambito essenciai, em que se situa o homem enquanto homem, o nome “ser-ai”, Isto foi feito, apesar de a metafisica usar este nome para aquilo que em geral é designado existentia, atuelidade, realidade e objetividade, nao obstante até se falar, na linguagem comum, em “ser-ai humano”, repetindo o significado metafisico da palavra, Por isso obvia toda possibilidade de se pensar 0 que nos entendemos quem se contenta apenas em averiguar que em Ser e Tempo usa-se, em vez de “consciéncia”, a palavra “ser-al”. Como se aqui estivesse apenas em jogo o uso de palavras diferentes, como se niio se tratasse desta coisa tnica: da relagdo do ser com a esséncia do homem € com isto, visto a partir de nds, como se nao se tratasse de levar o pensamento primeira mente diante da experiéncia essencial do homem, suficiente para a interrogagdo decisiva. QUE E METAFISICA? 257 Nem a palavra “ser-ai” tomou 0 lugar da palavra “consciéneia”, nem a “coisa” chamada “ser-ai” passou a ocupar o lugar daquilo que ¢ representado sob o nome “consciéncia”. Muito antes, com o “ser-ai” € designado aquilo que, pela primeira vez aqui, foi experi mentado como Ambito, a saber, como o lugar da verdade do ser e que assim deve ser adequadamente pensado. Aquilo em que se pensa com a palavra “ser-ai” através de todo o tratado de Ser e Tempo recebe ja uma luz desta proposigo decisiva (p. 42), que diz: “A ‘esséncia’ do ser-af consiste em sua existéncia” Se se considera que na linguagem da metatisica a palavra “existéneia” designa 0 mesmo que “ser-ai”, a saber, a atualidade de tudo o que é atual, desde Deus até 0 grio de areia é claro que apenas se desloca — quando se entende a frase linearmente — a dif culdade do que deve ser pensado da palavra “ser-ai” para a palavra “existéncia”. O nome “existéncia” é usado, em Ser e Tempo, exclusivamente como caracterizagio do ser do homem, A partir da “existéncia” corretamente pensada se revela a “esséncia” do ser- ai,em cuja abertura o ser se revela ¢ oculta, se oferece e subtrai, sem que esta verdade do ser no ser-ai se esgote ou se deixe identificar com o ser-ai ao modo do prinefpio metafi- sico: toda objetividade &, enquanto tal, subjetividade. Que significa “existéncia” em Ser e Tempo? A palavra designa um modo de ser e, sem diivida, do ser daquele ente que esta aberto para a abertura do ser, na qual se situa, enquanto a sustenta. Este sustentar @ experimentado sob o nome “preocupagio”. A esséneia ekstatica do ser-ai é pensada a partir da “preocupagio” assim como, vice-versa, a preocupagao somente pode ser experimentada, de modo satisfatério, em sua esséneia ekstatica, O sustentar assim compreendido é a esséncia da ékstasis que deve ser pensada. A esséncia ekstatica da existéncia é, por isso. ainda entdo insuficientemente entendida, quando representada apenas como “situar-se fora de”, concebendo o “fora de" como o “afastado da” interioridade de uma imanéncia da consciéncia ¢ do espirito: pois, assim entendida, a existéncia ainda sempre seria representada a partir da “subjetividade” e da “substéncia”, quando 0 “fora” deve ser pensado como o espago da abertura do proprio ser. Por mais estranho que isto soe, a sidsis do ekstatico se funda no in-sistir no “fora” e “ai” do desvelamento que é 0 modo de o priprio ser acontecer (west). Aquilo que deve ser pensado sob o nome “existéncia”, quando a palavra é usada no seio do pensamento que pensa na diregdo da verdade do ser ¢ a partir dela, poderia ser designado, do modo is belo, pela palavra “in-sisténcia” Mas entdo devemos pensar em sua unidade e como plena esséncia da existénci sobretudo, o in-sistir na abertura do ser, o sustentar da in-sisténcia (preocupagio) e a per-sisténcia na situagdo suprema (ser para a morte). O ente que é a0 modo da existéncia é 0 homem. Somente o homem existe. O roche do é, mas nao existe. A arvore é, mas niio existe. O anjo é, mas nio existe, Deus 6, mas no existe, A frase: “Somente o homem existe” de nenhum modo significa apenas que o homem é um ente real, ¢ que todos os entes restantes sdo irreais e apenas uma aparéncia ou a representagdo do homem. A frase: “O homem existe” significa: 0 homem é aquele ente cujo ser é assinalado pela in-sisténcia ex-sistente no desvelamento do ser a partir do ser e no ser. A esséncia existencial do homem é a razio pela qual o homem representa 0 ente enquanto tal e pode ter consciéncia do que € representado. Toda consciéncia pressu- pOe a existéncia pensada ekstaticamente como a essentia do homem. significando entio essentia aquilo que ¢ 0 modo proprio de o homem ser (west) na medida em que é homem A consciéncia, pelo contrario. nem é a primeira a criar a abertura do ente, nem a pri meira que da ao homem o estar aberto para o ente. Pois, qual seria a meta, o lugar de ori 258 HEIDEGGER gem ¢ a dimensio livre para 0 movimento de toda a intencionalidade da consciéncia se ‘0 homem ja nao tivesse sua esséncia na in-sisténcia? Meditada com seriediade, que outra coisa pode designar a palavra “ser” (“sein”) na palavra consciéneia (Bewusstsein =ser consciente) ¢ auto consciéncia (Selbstbewusstsein = ser-autoconsciente) a nao ser a esséncia existencial daquele que € quando enquanto existe? Ser um si-mesmo caracteriza, sem divida, a esséncia daquele ente que existe; mas a existéncia nfo consiste nem no ser-si-mesmo, nem a partir dele se determina. Pelo fato, porém, de o pensamento metafi- sico determinar o ser-si-mesmo do homem a partir da substancia ou, o que no fundo é 0 mesmo, a partir do sujeito, o primeiro caminho que leva da metafisica para a esséncia ekstatico-existencial do homem, deve passar através da determinagiio metafisica do ser- si-mesmo do homem (Ser e Tempo, §§ 63 ¢ 64). Mas. pelo fato de a questo da existéncia sempre estar apenas a servigo da finica questo do pensaniento, a saber, a servigo da pergunta (a ser desenvolvida) pela verdade do ser, como 0 fundamento escondido de toda metafisica, o tratado Ser e Tempo, que tenta 0 retorno ao fundamento da metafisica, no traz como titulo Existéncia e Tempo, também n&o Consciéncia ¢ Tempo, mas Ser e Tempo. Este titulo. porém, também n&o pode ser pensado como se correspondesse a estes outros titulos de uso corrente: Ser € vir-a-ser, ser e aparecer, ser e pensar, ser ¢ dever. Pois em tudo o ser é ainda aqui repre- sentado de maneira limitada, como se “vir-a-ser”, “aparecer”, “pensar”, “dever”, ndo pertencessem ao ser; pois, evidentemente nao so nada e por isso devem pertencer ao ser. Em Ser e Tempo “ser” nao € outra coisa que “tempo”, na medida em que “tempo” é designado como pré-nome para a verdade do ser, pré-nome cuja verdade é 0 aconteci- mento (Wesende) do ser ¢ assim o proprio ser. Entretanto, por que “tempo” e “ser”? Relembrar o comego da histbria, em que o ser se desvela no pensamento dos gregos, pode mostrar que os gregos desde os primérdios experimentaram o ser do ente como a presenga do presente. Se traduzimos einai por “ser”, a tradugao é literalmente certa. Contudo, substituimos apenas uma palavra por outra, Se formos mais rigorosos, mostrar-se-4 bem logo que nao pensamos nem efitai no sentido grego, nem “ser” em sua determinagao convenientemente clara ¢ univoca. Que dizemos, portanto, quando dize- mos “ser” em vez de “efitai” einai e esse em vez de “sen”? Nao dizemos nada. Tanto a palavra grega quanto a latina e a portuguesa permanecem do mesmo modo sem vida. Repetindo 0 uso corrente, revelamo-nos exclusivamente como seguidores da maior inconsciéncia que um dia surgi no pensamento e que até agora continua dominando. Aquele efnai, porém, significa: presentar-se. A esséncia deste presentar esta profun- damente oculta no primitivo nome do ser. Para nés, pois, efttai ¢ ousfa enquanto parousta € apousta significam primeiramente isto: no presentar-se impera impensada ¢ oculta- mente 0 presente ¢ a durago, acontece (west) tempo. Desta maneira, o ser enquanto tal se constitui ocultamente de tempo. E desta maneira ainda o tempo remete ao desvela- mento, quer dizer, 4 verdade do ser. Mas o tempo, a ser agora pensado, no é extraido da inconstancia do ente que passa. O tempo possui ainda bem outra esséncia que néo ape- nas ainda nao foi pensada pelo conceito de tempo da metafisica, mas nunca 0 podera ser. Assim 0 tempo se torna o primeiro pré-nome que deve ser considerado para que se expe- rimente 0 que em primeiro lugar é necessario: a verdade do ser. Assim como nos primeiros nomes metafisicos do ser fala uma esséncia escondida de tempo, assim também no seu tiltimo nome: no “eterno retorno do mesmo”. Durante a época da metafisica, a historia do ser esté perpassada por uma impensada esséncia de tempo. O espago niio esté ordenado nem paralelamente a este tempo nem situado dentro dele. QUE £ METAFISICA? 259 Uma tentativa de passar da representagiio do ente enquanto tal para o pensamento da verdade do ser deve, partindo daquela representagao, também representar ainda, de certa maneira, a verdade do ser, para que esta, finalmente, se mostre como representagao inadequada para aquilo que deve ser pensado. Esta relagao que vem da metafisica e que procura penetrar na referéncia da verdade do ser ao ser humano é concebida como compreensiio. Mas a compreensio é pensada aqui, ao mesmo tempo, a partir do desvela- ‘mento do ser. A compreenso é 0 projeto ekstatico jozado, quer dizer, 0 projeto in-sis- tente no Ambito do aberto. O Ambito que no projeto se oferece como o aberto, para que nele algo (aqui o ser) se mostre enquanto algo (aqui o ser enquanto tal em seu desvela- mento) se chama sentido (cf. Ser e Tempo, p. 151). “Sentido do ser” e “verdade do ser” dizem a mesma coisa. O preficio de Ser e Tempo, na primeira pagina do tratado, encerra com as frases: “A elaboragdo concreta da questo do sentido do ‘ser’ é o objeto do presente trabalho. Seu fim provis6rio & fornecer uma interpretagio do tempo como horizonte de toda compreensio possivel do ser”. ‘A filosofia nao podia trazer facilmente uma prova mais clara para o poder do esquecimento do ser em que toda ela se afundou — esquecimento que, entretanto, se tor- nou e permaneceu o desafio herdado pelo pensamento de Ser e Tempo — do que a sondmbula seguranga com que ela passou por alto a auténtica ¢ tinica questo de Ser e Tempo. E por isso que também nao se trata de mal-entendidos em face daquele livro, mas de um abandono por parte do ser. ‘A metafisica diz 0 que € 0 ente enquanto ente. Ela contém um Idgos (enunciagao) sobre 0 6n (0 ente). O titulo tardio “ontologia” assinala sua esséncia, suposto. é claro, que 0 compreendamos pelo seu contetido auténtico ¢ nao na estreita concepgao “escoliis- tica”, A metafisica se movimenta no ambito do dn he dn. Sua representagao se dirige 20 ente enquanto ente, Desta maneira, a metafisica representa, em toda parte, 0 ente enquanto tal e em sua totalidade, a entidade do ente (a ousia do én). A metafisiea, porém, representa a entidade do ente de duas maneiras: de um lado a totalidade do ente enquanto tal, no sentido dos tragos mais gerais (6n kathdlow, koindn); de outro, porém, @ a0 mesmo tempo, a totalidade do ente enquanto tal, no sentido do ente supremo ¢ por isso divino (6n kathdlou, akrétaton, thefon). Em Aristételes 0 desvelamento do ente enquanto tal propriamente se projetou nesta dupla direedo (vide Merafisica, Livros XI, V eX). Pelo fato de representar o ente enquanto ente & a metafisica em si a unidade destas duas concepgdes da verdade do ente, no sentido do geral e do supremo. De acordo com sua esséncia ela é, simultaneamente, ontologia no sentido mais restrito ¢ teologia. A esséncia ontoteolégica da filosofia propriamente dita (préze philosophia) deve estar, sem diivida, fundada no modo como The chega ao aberto o dn, a saber, enquanto én. O car’- ter teol6gico da ontologia nao reside, assim, no fato de a metafisica grega ter sido assu- mida mais tarde pela teologia eclesial do cristianismo e ter sido por ela transformada. O carter teol6gico da ontologia se funda, muito antes, na maneira como, desde a Antigui- dade, 0 ente chega ao desvelamento enquanto ente. Este desvelamento do ente foi que propiciou a possibilidade de a teologia crista se apoderar da filosofia grega. Se isto acon- teceu para seu proveito ou sua desgraga, isto os tedlogos devem decidir baseados na experiéncia da esséncia do cristianismo, enquanto consideram o que esté escrito na pri- meira carta aos Corintios do apéstolo Paulo: Oucht eméramen ho theds tén sophian tout Késmou; Nao permitiu Deus que em loucura se transformasse a sabedoria do mundo? (1 Corintios, 1.20). A sophia toi késmou, porém, é aquilo que conforme 1, 22 os “Héllenes zetoiisin”, © que os gregos procuravam, Aristételes até designa a prose philosophia (a 260 HEIDEGGER filosofia propriamente dita) expressamente de zetouméne — a procurada. Serd que um ia a teologia crista se decidiré mais uma vez a levar a sério a palavra do apdstolo e de acordo com ela a filosofia como loucura? A metafisica tem, enquanto a verdade do ente enquanto tal, duas formas. Mas a azo destas duas formas e mesmo sua origem estio fechadas para a metafisica, ¢ isto, sem diivida, no por acaso ou como consegiiéneia de uma omissio, A metafisica aceita esta dupla face pelo fato de ser o que é: a representagio do ente enquanto ente. Para a metafisica no resta escolha. Enquanto metafisica ela est& exclufda pela sua propria esséncia da experiéneia do ser; pois ela representa o ente (én) constantemente apenas naquilo que a partir dele se mostrou enquanto ente (he dn). Contudo, a metafisica nao presta atengdo aquilo que precisamente neste dn, na medida em que se tomou desvelado, também ja se velou. Assim pode-se tomar necessario, em tempo oportuno, novamente meditar sobre aquilo que propriamente é dito com a palavra én, com a palavra “ente”, De acordo com isto foi retomada, pelo pensamento, a questio do dn (vide Ser e Tempo, prefacio). Mas esta repetigao nao recapitula simplesmente a questdo platénico-aristotélica, mas retorna, pela interrogagao, aquilo que se esconde no 6n. Se a metafisica realmente dedica sua representago ao dn he én, cla permanece fun- dada sobre este elemento velado no én. A interrogagao que retorna a este elemento vela- do procura, por isto, do ponto de vista da metafisica, o fundamento para a ontologia. E por isso que o procedimento em Ser e Tempo (p. 13) se chama “ontologia fundamental”. Mas a expresso se mostra, em pouco tempo, embaragosa, como, alias, qualquer expres sio neste caso. Ela diz. algo certo se pensava a partir da metafisica; mas, justamente, por isso induz a erro; pois trata-se de conquistar a passagem da metafisica para dentro do pensamento de ser. E enquanto este pensamento se caracteriza a si mesmo como ontolo: gia fundamental, ele se interpée, com tal designago, seu proprio caminho ¢ o obscurece. A expressio “ontologia fundamental” parece induzir & opiniao de que 0 pensamento que procura pensar a verdade do ser ¢ nfo como toda ontologia, a verdade do ente, é enquanto ontologia fundamental, ela mesma ainda uma espécie de ontologia. Entretanto, 44 desde seus primeiros passos, © pensamento da verdade do ser, enquanto retorno a0 fundamento da metafisica, abandonou 0 ambito de toda ontologia. Mas toda filosofia que se movimenta na representagao mediata ou imediata da “transcendéncia” permanece necessariamente ontologia no sentido essencial, procure ela preparar uma fundamen. tagdo da ontologia ou rejeitar ela a ontologia que para sua seguranga busca apenas crispagao conceitual de vivéncias, Se, entretanto, esta fora de divida que o pensamento que procura pensar a verdade do ser trazendo consigo é verdade, 0 peso do antigo costume da representagao do ente enquanto tal se perde até a si mesmo, nesta representagdo, ento nada mais se torna tao necessirio, seja para a primeira reflexdo, seja para a preparacdo da passagem do pensa- mento que representa para aquele que realmente pensa, quanto a pergunta: Que é metafisica? O desenvolvimento desta questdo pela prelegio que segue desemboca, por sua vez, numa pergunta, Ela se chama a questo fundamental da metafisica e diz: Por que é afinal ente endo muito antes Nada? Discutiu-se, entretanto, muito sobre a angiistia e 0 nada que foram abordados na prelegao. Mas ninguém teve a idéia de meditar por que a prele- 40 que procura pensar, partindo do pensamento da verdade do ser, no nada, e a partir deste, na esséncia da metafisica, considera a questo formulada como a questo funda- mental da metafisica. Sera que isto nao poria na cabega de algum ouvinte atento uma uma DRIVERSINS a QUE E METAFISICA? 261 suspeita mais grave que todo o zelo contra a angistia ¢ 0 nada? Pela questio final vemo-nos colocados diante da suspeita de que uma reflexiio que procura pensar o ser, seguindo o caminho do nada, retorne no fim novamente a uma questo sobre o ente, Na medida em que esta questo, ainda no estilo tradicional de questionar da metafisica, per- gunta causalmente conduzida pelo “porqué”, 0 pensamento do ser é totalmente negado em favor do conhecimento representador do ente a partir do ente. Para cimulo de tudo, a questdo final 6, sem davida, aquela que o metafisico Leibniz formulou em seu Principes de ta Nature e de la Grace: “Pourquoi il y a plutét quelque chose que rien?” (Edigao Gerhardt, tomo VI, 602, niimero 7). Nio fica, assim, a prelegdio aquém de seus propdsitos? Isto poderia acontecer visto a dificuldade da passagem da metafisica para 0 outro pensamento, Nao formula a expo: sigdo em seu final, com Leibniz, a questiio metafisica da causa suprema de tudo o que é? Por que, ento, o que seria conveniente, nio é citado o nome de Leibniz? Ou seré que a pergunta é formulada em sentido inteiramente diferente? Se ela no interroga pelo ente © nao esclarece a iltima causa éntica deste, entdo deve a pergunta partir daquilo que nio é o ente. Tal coisa a pergunta nomeia e o escreve com letra maitis- cula: O Nada que a prelegdo meditou como seu tinico tema. E preciso meditar o final desta prelegao a partir do ponto de vista que Ihe é proprio e que em tudo a orienta. Entdo aquilo que é citado como a questo fundamental da metafisica deveria ser formulado na perspectiva da ontologia fundamental, como a questo que brota do fundamento da metafisica e como a questo que por este fundamento interroga. Como devemos nés, entio, compreender a questo que encerra & prelegio, se esta mos de acordo que esta, no seu final, retorna a seu objetivo proprio? O teor da questo ¢ 0 seguinte: Por que é afinal ente e néo antes Nada? Suposto que no pensamos a verdade do ser mais no Ambito da metafisica ¢ metafisicamente como de costume, mas a partir da esséncia e da verdade da metafisica, entio o sentido da questéo que encerra a prelegao pode ser o seguinte: Donde vem, que, em toda parte, o ente tem a hegemonia e reivindica para si todo 0 “é”, enquanto fica esquecido aquilo que nao é um ente, o nada aqui pensado como o proprio ser. Donde vem que propriamente nada é com © ser e que o nada propriamente nao é (west)? Nao vem daqui a aparéncia inabalavel para a metafisica de que o “ser” é evidente e que, em conseqiiéncia disso, o nada se torna menos problematico que o ente? Tal é realmente a situago em torno do ser e do nada. Se as coisas fossem diferentes para a metafisica, entio Leibniz nao poderia dizer, na pas sagem referida, esclarecendo: “Car le rien est plus simple et plus facile que quelque chos © que permanece mais enigmatico, o fato de que o ente é ou o fato de que o ser é? Qu nao chegamos também, nem mesmo com esta reflexio, até a proximidade do enigma que aconteceu com o ser do ente? Seja qual for um dia a resposta, o tempo, entretanto, se ter tornado mais maduro para pensar a combatida prelego Que é Metafisica?, uma vez a partir de seu final, a par- tir de seu final, no a partir de um final qualquer imaginado. O FIM DA FILOSOFIA E A TAREFA DO PENSAMENTO’ Introdugaio Ha muitos modos de se falar em “fim da Filosofia”, Antes de Heidegger, sobretudo Marx ¢ Wittgenstein quiseram abrir duas portas para o fim da Filosofia, Em Marx ela deveria chegar ao fim através da transformago da Filosofia em mundo, de sua “supres- sio” na praxis. Em Wittgenstein a Filosofia deveria assumir, de uma vez, sua tnica fun- do: realizar a terapia da linguagem, Cumprido tal trabalho, ela “desapareceria”. Marx confundiu a Filosofia com as filosofias de seu tempo, e nas exigéncias que levantava no estava contida a supressio da Filosofia, mas o caminho para uma nova realizagao da Filosofia, Em Wittgenstein, a afirmagdo de que a Filosofia desapareceria, uma vez resolvidos os problemas da linguagem, revela, de um lado, a descoberta de uma nova tarefa para a Filosofia, mas de outro, também, a ignordncia de que de uma tal tare fa surgiriam questes de método das quais o proprio Filésofo nio mais tomou cons- ciéncia ¢ que precisamente implicam uma continuagao da Filosofia. Tanto Marx como Wittgenstein, um buscando a supressdo da Filosofia e outro seu desaparecimento, abritam novos horizontes para o pensamento cujo fim anunciaram, Para Heidegger o fim da Filosofia é 0 “fim” da Filosofia enquanto Metafisica. A Metafisica atingiu suas “possibilidades supremas” dissolvendo-se no surto crescente das ciéncias que esvaziam a problematica filos6fica. O Fildsofo reserva, porém, um novo co- mego para a Filosofia, superando a Metafisica. Heidegger afirma que no fim da Filosofia (como Metafisica) resta uma “tarefa para o pensamento”, Esta tarefa € a questdo do pensamento. “A iiltima possibilidade” — a dissolugio da Filosofia nas ciéncias tecnici- zadas — acaba revelando uma “primeira possibilidade”. A questo propria do pensamento para Hegel, tanto quanto para Husserl, foi a subjetividade e esta levada a seu momento supremo: o método. Heidegger, procurando superar os dois, afirma como nova questéo do pensamento a Alétheia. Com esta palavra compreende ele o sentido, a verdade, o desvelamento, o velamento, a clareira do ser, resumindo tudo na palavra-sintese: Ereignis. Se para Marx o fim da Filosofia deveria ser realizado definitivamente pela sua “supressiio” ¢ transformagao na praxis; se para Witigenstein o fim da Filosofia se daria mediante seu “desaparecimento”, uma vez cumprida sua fungdo terapéutica; para Hei- degger o fim da Filosofia como “acabamento” ((issolugo nas ciéncias da era da técnica) @ no entanto, compreendido como um novo comego. Heidegger tem consciéncia de que a afirmagio da auto-supressdo da Filosofia s6 pode significar sua renovada auto-afirma- edo. Esta auto-afirmagdo ¢ sintetizada pelo Fildsofo na expresso “questio do pensa- mento”. Nao discutiremos aqui até que ponto Heidegger tera razio quando critica e pro- cura superar Hegel e Husserl. E, sem ditvida, simplificagdo resumir a Filosofia de ambos na subjetividade e, conseqiientemente, na questo do método: como também é impossivel pensar em separar, na “questéo do pensamento”, método e questao. 266 HEIDEGGER Mostrando que 2 problematica filoséfica chegou ao fim enquanto problematica metafisica, Heidegger deve conceber uma nova problematica no bojo da expressiio “questio do pensamento”, Esta nova problematica devera ser compreendida sob dois an gulos fundamentais: 0 ponto de vista genético e ponto de vista sistemdtico. Formulamos as duas perguntas essenciais que deveria enfrentar a determinagdo da génese da “questdo do pensamento”: a) Quais as condigdes de possibilidade do surgimento desta nova questo do pensa- mento, no fim da Filosofia? b) Como se instaura, como se constitui e como se desdobra todo 0 campo possivel do correlato desta questio do pensamento? Nao nos deteremos nestas duas perguntas fundamentais. Elas so, no entanto, essenciais para apanhar o surto da nova problematica filoséfica implicita na “questo do pensamento”, A segunda perspectiva de abordagem da problematica filoséfica, contida na questo do pensamento, chamamos aqui de sistematica. Esta consistiria no enfoque sistematico da problematica filosofica visada com a expresso “questio do pensamento”, Esta expressio anuncia uma radical reflexdo autocritica que a problematica filosdfica deveria exercer sobre si mesma. E nisto que se esconde o sentido polémico da expresso “questo do pensamento”. Esta exprime uma postura que diretamente nao quer ser algo, a saber, uma pacifica enumeracao de problemas da Filosofia que nao problematizam 0 horizonte donde surgem. Quando Heidegger fala em “questo do pensamento”, no pressupde a descoberta de um espdlio esquecido do pensamento ocidental, uma totalidade previa- mente dada, mas somente agora descoberta. Seria, antes, uma totalidade relativamente 4 qual nosso trabalho se limitaria simplesmente a uma mudanga de lentes ou eventual- mente a uma mudanga de posigao. E precisamente em tais movimentos que se constitui a questo do pensamento e a eventual problematica nela contida. J4 conseguimos aqui uma fecunda antevisio da ambigilidade essencial da expressio heideggeriana, aparentemente simples e quase ingénua: “questio do pensamento”. Temos aqui, com efeito, simultaneamente um genitivo objetivo e um genitivo subjetivo. Para maior clareza, comegamos por dissociar estas duas possibilidades, para, em seguida, rearticulé-las, mostrando como justamente na wnidade de sua relagdo esta 0 seu fundamento e 0 seu tinico sentido viavel. a) Enquanto genitivo objetivo, “questio do pensamento” focaliza 0 pensamento como correlato de um espectador. No caso-limite a problematica filosofica contida na expresso poderia significar a pura objetividade. b) Enquanto genitivo subjetivo aquela expressio faz emergir um pensamento que se autoquestiona. Crispando este sentido do genitivo e cortando-0 do primeiro, teriamos uma queda na subjetividade, © que importa para o Filésofo é manter articulados entre si estes dois genitivos ocultos na expressio “questi do pensamento”. Teremos entio, no fim da Filosofia como Metafisica. nem apenas um novo questionamento do que é pensamento, nem ape- nas um novo voltar-se do pensamento sobre si mesmo para se autoquestionar, Resta, em sintese. a unidade de uma questo que se pensa e de um pensamento que se questiona. Nao teremos apenas uma questo do pensamento simplesmente dada, mas também, e tal- vez sobretudo uma questdo do pensamento, em que este desempenha uma fungao eminentemente ativa na constituigao da questo. E na unidade dialogal, no intimo espago entre os dois mencionados sentidos do genitivo. que se deve buscar a determinagdo das relagdes entre questo © pensamento. O FIM DA FILOSOFL. ‘Nem o pensamento é puro constituido, nem a questo é pura constituigdo, Nem o pensa- mento permanece exterior 4 questo, nem a questdo permanece exterior ao pensamento. Os nomes a que Heidegger recorre para designar esta unidade dialogal, este intimo espago, sio sobretudo aproximagées. Mas talvez na palavra Ereignis, enquanto tradu- zida por acontecimento-apropriacdo, 0 Filésofo mais se avizinhe do elemento nodal que se esconde na expressio “questo do pensamento”. A ambigiiidade essencial que per- passa todos os nomes fundamentais com que Heidegger procura dizer a “questo do pensamento” esta, porém, escondida e concentrada no nome Alétheia, lido filolégico-fi- losoficamente. Se em Marx o fim da Filosofia se anunciou como supressdo, e em Wittgenstein como desaparecimento, em Heidegger o fim da Filosofia é a “fltima possibilidade” que, enfrentada, torna-se a “primeira possibilidade”, a partir da qual se refaz toda a “questo do pensamento”. ERNILDO STEIN © titulo nomeia uma tentativa de meditagdo que se demora no questionamento, As questées so caminhos para sua resposta. Estas questdes deveriam, caso um dia real- mente tomem forma, consistir numa transformagao do pensamento ¢ nao se reduzir a simples enunciagao de um estado de coisas. O texto que segue faz parte de um contexto mais amplo. E a tentativa, sempre repe- tida desde 1930, de dar uma forma mais radical ao questionamento de Ser e Tempo. Isto significa: submeter 0 ponto de partida da questo articulada em Ser e Tempo a uma cri- tica imanente. Através disto deve esclarecer-se em que medida a questio erftica que per- gunta pela questéo do pensamento pertence necessaria e constantemente ao pensamento. Em conseqiiéncia disto se modificaré o titulo da tarefa Ser e Tempo. Levantamos duas questées: 1, Em que medida entrou a Filosofia, na época atual, em seu estgio final? 2. Que tarefa ainda permanece reservada para o pensamento no fim da Filosofia? Em que medida entrou a Filosofia, na época presente, em seu estgio final? Filosofia ¢ Metafisica. Esta pensa o ente em sua totalidade — 0 mundo, 0 homem, Deus — sob 0 ponto de vista do ser. sob o ponto de vista da reciproca imbricagio do ente e ser. A Metafisica pensa o ente enquanto ente ao modo da representagio fundadora. Pois o ser do ente mostrou-se, desde 0 comego da Filosofia, e neste proprio comego, como o fundamento (arché, aftion, principio). Fundamento é aquilo de onde o ente como tal, em seu tornar-se, passar e permanecer, é aguilo que é e como é, enquanto cognosci- vel, manipulavel e transformével. O ser como fundamento leva 0 ente a seu presentar-se adequado. O fundamento manifesta-se como sendo presenga. Seu presente consiste em produzir para a presenga cada ente que se presenta a seu modo particular. O funda- mento, dependendo do tipo de presenga, possui o cardter do fundar como causagao énti a do real, como possibilitago transcendental da objetividade dos objetos, como media- go dialética do movimento do espirito absolute, do processo histarico de producdo, como vontade de poder que poe valores. O elemento distintivo do pensamento metafisico, elemento que erige o fundamento para o ente, reside no fato de, partindo do que se presenta, representer a este em sua pre senga e assim o apresentar como fundado desde seu fandamento, Que dizemos nds quando falamos do fim da Filosofia? Temos a tendéncia de compreender 0 fim de algo em sentido negative como a pura cessagiio, como a cessagao 270 HEIDEGGER de um processo, quando néo como ruina e impoténcia, Pelo contrario, quando falamos do fim da Filosofia queremos significar o acabamento da Metafisica. Acabamento nao quer dizer, no entanto, plenitude no sentido que a Filosofia deveria ter atingido, com seu fim, a suprema perfeigao. Falta-nos nao apenas qualquer medida que permitisse estimar a perfeigdo de uma época da Metafisica em comparagao a outra. Nao ha mesmo nada que possa justificar tal maneira de proceder. O pensamento de Plato nao é mais perfeito que 0 de Parménides. A Filosofia hegeliana no € mais perfeita que a de Kant. Cada época da Filosofia possui sua propria necessidade. Que uma Filosofia seja como é, deve ser simplesmente reconhecido. No nos compete preferir uma a outra, como é possivel quando se trata das diversas visdes do mundo, O antigo significado de nossa palavra “fim” (Ende) é 0 mesmo que o da palavra “lugar” (Or): “de um fim a outro” quer dizer: “de um lugar a outro”. O fim da Filosofia €0 lugar, € aquilo em que se redine 0 todo de sua historia, em sua extrema possibilidade. Fim como acabamento quer dizer esta reuniao. Através de toda a Histéria da Filosofia, o pensamento de Plato, ainda que em dife- rentes figuras, permanece determinante. A metatisica é platonismo. Nietzsche caracte- rizou sua filosofia como platonismo invertido. Com a inversio da metafisica, que ja realizada por Karl Marx, foi atingida a suprema possibilidade da Filosofia. A Filosofia entrou em seu estagio terminal, Toda tentativa que possa ainda surgir no pensamento filoséfico nfio passard de um renascimento epigonal e de variagdes deste. Por conse- guinte, o fim da Filosofia sera uma cessago de seu modo de pensar? Tal conclusio seria muito apressada. Fim é como acabamento, a concentragao nas possibilidades supremas. Pensamos estas possibilidades de maneira muito estreita enquanto apenas esperarmos o desdobra- mento de novas filosofias do estilo até agora vigente, Esquecemos que ja na época da filosofia grega se manifesta um trago decisivo da Filosofia: 6 0 desenvolvimento das cién- cias em meio ao horizonte aberto pela Filosofia. O desenvolvimento das ciéncias 6, a0 mesmo tempo, sua independéncia da Filosofia e a inauguragdo de sua autonomia, Este fendmeno faz parte do acabamento da Filosofia. Seu desdobramento esti hoje em plena marcha, em todas as esferas do ente, Parece a pura dissoluedo da Filosofia; €, no entan- to, precisamente seu acabamento. Basta apontar para a autonomia da Psicologia, da Sociologia, da Antropologia Cul- tural, para o papel da Légica como Logistica e Semantica, A Filosofia transforma-se em ciéncia empirica do homem, de tudo aquilo que pode tornar-se objeto experimentavel de sua técnica, pela qual ela se instala no mundo, trabalhando-o das miltiplas maneiras que oferecem o fazer ¢ 0 formar. Tudo isto realiza-se em toda parte com base e segundo os padrées da exploragio cientifica de cada esfera do ente. Nao necessirio ser profeta para reconhecer que as modernas ciéncias que esto se instalando serio. em breve, determinadas e dirigidas pela nova ciéncia basica que se chama cibernética. Esta ciéncia corresponde a determinagdo do homem como ser ligado @ praxis na sociedade. Pois ela é a teoria que permite o controle de todo planejamento possivel e de toda organizagao do trabalho humano. A cibernética transforma a linguagem num meio de troca de mensagens. As artes tomam-se instrumentos controlados ¢ controladores da informagao. O desdobramento da Filosofia cada vez mais decisivamente nas ciéncias auténom , no entanto, interligadas, € 0 acabamento legitimo da Filosofia. Na época presente a Filosofia chega a seu estagio terminal. Ela encontrou seu lugar no carater cientifico com que a humanidade se realiza na praxis social. O cardter especifico desta cientificidade ¢ O FIM DA FILOSOFIA 271 de natureza cibernética, quer dizer, técnica. Provavelmente desaparecer4 a necessidade de questionar a técnica moderna, na mesma medida em que mais decisivamente a técnica marcar ¢ orientar todas as manifestagSes no Planeta ¢ 0 posto que o homem nele ocupa. As ciéncias interpretardo tudo o que em sua esirutura ainda lembra a sua origem na Filosofia, segundo as regras de ciéncia, isto , sob 0 ponto de vista da técnica. As catego- rias das quais cada ciéncia depende para a articulagao e delimitagao da area de seu obje- to, a compreendem de maneira instrumental, sob a forma de hipéteses de trabalho. A verdade destas hipoteses de trabalho nao sera apenas medida nos efeitos que sua aplicagio traz para o progresso da pesquisa. A verdade cientifica é identificada com a eficigncia destes efeitos. ‘Aquilo que a Filosofia, no transcurso de sua histéria, tentou em etapas, ¢ mesmo nestas de maneira insuficiente, isto é, expor as ontologias das diversas regides do ente (natureza, histéria, direito, arte), as ciéncias o assumem como tarefa sua. Seu interesse dirige-se para a teoria dos, em cada caso necessarios. conceitos estruturais do campo de objetividade af integrado. “Teoria” significa agora: suposigdo de categorias a que se reconhece apenas uma fung%o cibernética, sendo-lhe negado todo sentido ontolégico. Passa a imperar 0 ele- mento racional e os modelos préprios do pensamento que apenas representa e calcula. * ‘As ciéncias, ndo obstante, ainda falam do ser do ente ao sentirem-se obrigadas & suposig&io de suas categorias regionais. Apenas nao o dizem expressamente. Podem, sem davida, negar sua procedéncia, no podem, contudo, rejeité-la. Pois a cientificidade das ciéncias é a certiddo que atesta seu nascimento da Filosofia. CO fim da Filosofia revela-se como o triunfo do equipamento controlavel de um mundo técnico-cientifico e da ordem social que Ihe corresponde, Fim da Filosofia quer dizer: comeco da civilizagao mundial fundada no pensamento ocidental-europeu. Sera, no entanto, o fim da Filosofia, entendido como seu desdobramento nas cién- cias, a plena realizagdo de todas as possibilidades em que 0 pensamento da Filosofia apostou? Ou existe para o pensamento, além desta tiltima possibilidade que caracteri- zamos (a dissolugao da Filosofia nas ciéncias tecnicizadas), uma primeira possibilidade, da qual pensamento da Filosofia certamente teve que partir, mas que, contudo, enquanto Filosofia, nao foi capaz de experimentar e assumir propriamente? Seja este 0 caso, deverd ento estar reservada (ocultada), para o pensamento, na Histéria da Filosofia, de seu comego até seu fim, ainda uma tarefa ndo acessivel nem a Filosofia como metafisica, nem as ciéncias dela oriundas. Por tal motivo colocamos esta segunda questio: aa Que tarefa esté ainda reservada para o pensamento no fim da Filosofia? Jé a idéia de uma tal tarefa do pensamento deve desconcertar. Um pensamento que no pode ser nem metafisica nem ciéncia? Uma tarefa que se teria tornado inacessivel & Filosofia, no apenas desde 0 seu comego, mas por causa deste comego é que, em conseqiiéncia, se teria subtraido constan- temente e de maneira crescente nas épocas posteriores? Uma tarefa do pensamento que, a0 que parece, implicaria a afirmagao de que a Filosofia ndo est a altura da questio do pensamento e que. por isso, se tornou uma his toria da pura decadéncia? 272 HEIDEGGER Nao revela tal linguagem presungo de sobrepor-se mesmo i grandeza dos pensado- res da Filosofia? Esta suspeita realmente se impde. Pode, porém, ser facilmente eliminada. Pois qual- Quer tentativa e preparar um acesso & presumivel tarefa do pensamento depende de um retorno sobre o todo da Histéria da Filosofia. E nio apenas isto; uma tal tentativa vé-se na contingéncia de primeiro pensar sobre a historicidade daquilo que garante & Filosofia uma possivel historia, J por este motivo permanece o pensamento a que nos referimos necessariamente aquém da grandeza dos fildsofos. Ele é menos importante que a Filosofia. E 0 é também pelo fato de ser-Ihe recusada tanto atuacdo imediata quanto mediata sobre o dominio pi- blico da era industrial, caracterizado pela técnica e pela ciéncia. Menos importante, porém, permanece o pensamento em questo, sobretudo pelo fato de sua tarefa ter apenas carter preparatério, e de maneira alguma carater fundador, Satisfaz-se com despertar uma disponibilidade do homem para uma possibilidade cujos contornos permanecem indefinidos, e cujo advento, incerto. Como penetrar naquilo que até entio the esta reservado e aberto, o pensamento, de inicio, ainda deve aprender; nesta aprendizagem o pensamento prepara a sua propria transformagio. Aqui se tem em mira a possibilidade de a civilizagtio mundial, assim como apenas agora comegou, superar algum dia seu cardter técnico-cientifico-industrial como tinica medida da habitagdo do homem no mundo. ' Esta civilizagdo mundial certamente no 0 conseguiré a partir dela mesma ¢ através dela, mas, antes, através da disponibilidade do homem para uma determinagGo que a todo momento, quer ouvida quer no, fala no inte- rior do destino ainda nao decidido do homem. Igualmente incerto permanece se a civilizago mundial seré em breve subitamente destruida ou se se cristalizaré numa longa duragdo que nio resida em algo permanente, mas que se instale, muito ao contrério, na mudanga continua em que o novo é substituido pelo mais novo. O pensamento preparador em questo nio quer nem pode predizer um futuro. Pro- cura apenas ditar para o presente algo que ha muito, exatamente no comeco da Filosofia, J4 Ihe foi dito, e que, entretanto, nao foi propriamente pensado. De momento, deve ser suficiente apontar nessa diregd0 com a maior brevidade possivel. Para fazé-lo recorre- ‘mos a uma indicagao que a propria Filosofia oferece, Quando perguntamos pela tarefa do pensamento isto significa no horizonte da Filo- sofia: determinar aquilo que interessa ao pensamento, aquilo que para o pensamento ainda controverso, o caso em litigio. Isto é dito na lingua alema pela palavra “Sache” a “questo”. Ela designa aquilo com que, no caso presente, o pensamento tem de haver. seina linguagem de Platao, 16 pragma auté (ver a Sétima Carta, 341 c7). Ora, a Filosofia. nos tempos modernos, convocou. por propria iniciativa e expressa- mente, 0 pensamento para “a questo mesma”. Lembremos apenas dois casos a que hoje se dirige uma especial atengdo. Ouvimos esta chamada “para a questéio mesma” no “Pre- facio” que Hegel antepds a sua obra publicada em 1807, Sistema da Ciéncia, Primeira Parte: A Fenomenologia do Espirito. Este preficio nao € 0 prélogo 4 Fenomenologia mas ao Sistema da Ciéncia, a0 todo da Filosofia, © chamado “3 questo mesma” vale " Dizem respeito a esta questio varias das dltimas manifestagdes de Heidegger. Uma delas, que causou bas- fante impacto. foi feita numa pequena alocugdo, na passagem dos festejos de seus oitenta anos, a 26 de setembro de 1969. Ver também o final da carta ao Professor Kojima, O FIM DA FILOSOFIA. 273 em Ultima instancia, ¢ isto quer dizer: segundo a questo, em primeiro lugar, para “a cigncia da Wgica™. No chamado “8 questo mesma” a ténica cai sobre o “selbst”, “mesmo”. Em seu sentido superficial este chamado possui sentido defensivo, Rejeitam-se relagdes inade- quadas a questio da Filosofia. A elas pertence o simples falar sobre o fim da Filosofia; dela, porém, também faz parte o simples relatério sobre os resultados do pensamento filoséfico. Ambos jamais constituem 0 verdadeiro todo da Filosofia. O todo mostra-se, primeiramente ¢ apenas, em seu tornar-se, Tal ocorre no processo de exposic¢ao deta- Ihada da questo. Na exposigdo, tema e método tornam-se idénticos, Esta identidade chama-se em Hegel: o pensamento pensado. Com ele a questio “mesma” da Filosofia sta. Esta questdo é contudo determinada historialmente: a subjetividade. Com 0 ego cogito de Descartes, diz Hegel, a Filosofia pisou pela primeira vez terra firme, onde pode estar em casa. Se com 0 ego cogito, como subjectum por exceléncia, & atingido 0 fundamentun absolutum, isto quer dizer: 0 sujeito & © hypokermenon transfe- rido para a consciéncia, ¢ 0 que verdadeiramente se presenta, © que na linguagem tradi- cional se chama, de maneira mui poueo clara, de substancia, Quando Hegel deciara no prefacio (Ed. Hoffmeister, p. 19): “O verdadeiro (da Filo- sofia) néo deve ser concebido e expresso como substincia, mas do mesmo modo como sujeito”, isto significa: o ser do ente, a presenga do que se presenta, € somente entio manifesto, e com isto presenga plena, quando esta como tal se torna presente para si mesma na idéia absoluta, Desde Descartes, porém, idea quer dizer: perceptio, O tornat para si mesmo do ser acontece na dialética especulativa, Apenas 0 movimento do pensa- mento, 0 método, € a questio mesma, O chamado a “questio mesma” exige 0 método adequado da Filosofia, Todavia, 0 que € a questio da Filosofia se aceita ja por decidido previamente. A questio da Filosofia como metafisica é o ser do ente, sua presenga, na forma da substan- cialidade e subjetividade, Cem anos depois, ouve-se novamente © chamado “A questiio mesma”, no tratado de Husserl, A Filosofia como Ciéncia Rigorosa, publicado no primeiro volume da revista Logos, no ano de 1910/11 (p. 289 ss.). Novamente 0 chamado tem sentido defensivo. Mas aqui tem-se em mira outra diregao que em Hegel. O chamado procura precaver con- tra a psicologia naturalistica que pretendia ser 0 auténtico método para a exploragdo da consciéncia. Pois este método encontra ja, de antemdo, o acesso aos fendmenos da cons- ciéncia intencional. O chamado “& questo mesma” dirige-se, ao mesmo tempo, contra © historicismo que se perde nos debates sobre os pontos de vista da Filosofia e na divisio dos tipos de visio de mundo filoséficos. A isto se refere Husserl grifando a frase: “Nao é das filosofias que deve partir 0 impulso para a pesquisa, mas das quesiées e dos proble- mas” (op. cit., p. 340). E qual é a questo da pesquisa filosdfica? E para Husserl como para Hegel, de acordo com a mesma tradigdo, a subjetividade da consciéncia. As Meditagdes Carte- sianas nao foram para Husserl apenas o tema das conferéncias de Paris de fevereiro de 1929, mas, em seu espirito, acompanharam, desde os anos posteriores as Investigagdes Légicas, 0 caminho apaixonado de suas pesquisas filosoficas até o fim da vida. O chama- do “a questo mesma” visa, tanto em seu sentido negativo como positivo, A garantia e elaboragio do método, tem em vista o modo de proceder da Filosofia através do qual primeiramente a questio mesma chega a tornar-se um dado comprovavel, Para Husserl, ® Ver o texto mais adiante: Protocolo do seminario sabre a conferéneia Tempo e Ser. 274 HEIDEGGER “o principio de todos os principios” nao & em primeiro lugar algo referente ao contetido, mas aquilo que se relaciona com o método, Em sua obra publicada em 1973, Idéias para uma Fenomenologia Pura, Husserl dedicou & determinagio “do prinefpio de todos os principios” um pardgrafo proprio (24). Neste principio, diz Husserl, “nenhuma teoria imaginavel pode induzir-nos em erro”. “O principio de todos os prinefpios” é assim enunciado: “Toda intuigdo que originariamente da (8) uma fonte de direito para o conhect- mento; tudo que se nos oferece originariamente na ‘Intuigao (por assim dizer em sua rea- lidade viva) (deve) ser simplesmente recebido como aquilo que se da, porém, também somente no interior dos limites nos quais se dé...” “O principio de todos os principios” contém a tese do primado do método. Este principio decide qual a ti ica questo que pode satisfazer ao método. “O principio de todos os principios” exige como questdo da Filosofia a subjetividade absoluta, A redu- transcendental a esta subjetividade da e garante a possibilidade de fundar ne subjeti- vidade e através dela a objetividade de todos os objetos (0 ser deste ente) em sua estru: tura e consisténcia, isto ¢, em sua constituigéo, Desta maneira a subjetividade transcendental mostra-se como “o iinico ente absoluto” (Ldgica Formal e Transcen- dental, 1929, p. 240). O carater de ser deste ente absoluto, isto é, 0 carater da questo mais propria da Filosofia, vale, também, ao mesmo tempo para a reduco transcen- dental, como 0 método “da ciéncia universal” da constituigo do ser do ente. O método se orienta no apenas na questio da Filosofia. Nao faz apenas parte da questo como a chave da fechadura, Seu lugar € dentro da propria questéo, porque € a “questiio mesma” Se se perguntar: de onde recebe entio “o principio de todos os prineipios” seu direito inaliendvel, a resposta deveria ser a seguinte: recebe-o da subjetividade transcendental que ja é pressuposta como a questdo da Filosofia. Escolhemos como indicador de caminho a elucidagio do chamado “a questio mesma”, Dele esperavamos que nos levasse ao caminho no qual pudéssemos realizar uma determinagdo de tarefa do pensamento no fim da Filosofia. Onde chegamos? A con- viogio de que, no apelo “a questo mesma”, ja esta previamente decidido o que interessa a Filosofia como sua questo. Visto a partir de Hegel e Husserl, a questio de Filosofia &— endo sé para cla — a subjetividade. Para o apelo, 0 controvertido nao 6 a questo mesma, mas sua exposigio, através da qual ela mesma se torna presente. A dialética especulativa de Hegel € 0 movimento no qual a questao como tal chega a si mesma, atin- ge a presenga que é devida. O método de Husser! tem como finalidade levar a questo da Filosofia a seu dar-se originario e definitivo, isto é: A presenga que Ihe é propria. Ambos os métodos so radicalmente diferentes. A questdo como tal, porém, que devem representar, é a mesma, ainda que seja experimentada de maneiras diferentes. Mas que nos ajudam estas constatagdes para o nosso projeto de penetrarmos na ta- refa do pensamento? Nada nos ajuda enquanto nos satisfizermos com a simples elucida- gio do apelo. Trata-se, muito ao contrario, de perguntar pelo que permanece impensado no apelo “a questo mesma”. Perguntando desta maneira, € possivel que nos tornemos atentos a uma outra coisa: !é, onde a Filosofia levou sua questo até o saber absoluto e 4 evidéncia iiltima, oculta-se justamente algo que nao pode ser mais pensado pela Filoso- fia como questo que Ihe compete. Mas 0 que é que permanece impensado, tanto na questo da Filosofia como em seu método? A dialética especulativa ¢ um modo como a questio da Filosofia chega a apare- cer a partir de si mesma para si mesma, tommando-se assim presenca. Um tal aparecer acontece necessariamente em uma certa claridade, Somente através dela pode mostrar-se aquilo que aparece, isto 6, brilha. A claridade, por sua vez, porém, repouse numa geet ane O FIM DA FILOSOFIA 275 so de abertura e de liberdade que aqui ¢ acold, de ver. em quando, pode clarear-se. A claridade acontece no aberto e ai Iuta com a sombra, Em toda parte, onde um ente se pre- senta em face de um outro que se presenta os apenas se demora ao seu encontro: mas também ali, onde, como em Hegel, um ente se reflete no outro especulativamente, ali também ja impera abertura, ja est em jogo o livre espago. Somente esta abertura garante também & marcha do pensamento especulativo sua passagem através daquilo que ela pensa. Designamos esta abertura que garante a possibilidade de um aparecer e de um mostrar-se, como a clareira (die Lichtung). A palavra alem& “Lichiung” é, sob 0 ponto de vista da historia da ingua, uma tradugio do francés “Clairiére”. Formou-se segundo o modelo das palavras mais antigas “Waldung”¢ “Feldung”.? A clareira da floresta constrasta com a floresta cerrada; na linguagem mais antiga esta era denominada “Dickung”. * O substantivo “clareira”” vem do verbo “clarear”. O adjetivo “claro” (“‘licht”) & a mesma palavra que “leicht”. Clarear algo quer dizer: tornar algo leve, tornar algo livre e aberto, por exemplo, tornar a floresta, em determinado lugar, livre de arvores, A dimen- so livre que assim surge é a clareira. O claro, no sentido de livre e aberto, nao possui nada de comum, nem sob 0 ponto de vista lingiifstico, nem no atinente A coisa que € expressa, com 0 adjetivo “luminoso™ que significa “claro”. Isto deve ser levado em consideragao para se compreender a diferenga entre Lich- tung e Licht. Subsiste, contudo, a possibilidade de uma conexao real entre ambos. A luz. pode, efetivamente, ineidir na clareira, em sua dimensao aberta, suscitando af o jogo entre o claro ¢ 0 escuro. Nunca, porém, a luz primeiro cria a clareira; aquela, a luz, pres- supée esta, a clareira. A clareira, no entanto, o aberto, no esta apenas livre para a clari- dade e a sombra, mas também para a voz. que reboa e para 0 eco que se perde, para tudo que 50a ¢ ressoa e morre na distincia, A clareira é 0 aberto para tudo que se presenta € ausenta. Impde-se a0 pensamento a tarefa de atentar para a questo que aqui é designada como clareira. Ao fazer isto, no se extraem — como facilmente poderia parecer a um observador superficial — simples representagSes de puras palavras, por exemplo. “cla- reira”. Trata-se, muito antes, de atentar que a singularidade da questdo que é nomeada, de maneira adequada a realidade, com o nome de “clareira”. O que a palavra designa no contexto agora pensado. a livre dimensio do aberto, é para usarmos uma palavra de Goethe, um “fendmeno originario”. Melhor diriamos: uma questio originaria. Goethe observa (Maximas ¢ Reflexes, n.° 993): “Que nao se invente procurar nada atras dos fendmenos: estes mesmos sfio a doutrina”. Isto quer dizer: o proprio fendmeno, no caso presente, a clareira, nos afronta com a tarefa de, questionando-o. dele aprender, isto & Geixar que nos diga algo. ‘De acordo com isto, © pensamento provavelmente nao deverd temer levantar um dia fa questio se a clareira, a livre dimensio do aberto, nao é precisamente aquilo em que tanto 0 puro espago como 0 tempo estiitico e tudo o que neles se presenta e ausenta pos- sui o lugar que recothe ¢ protege. Da mesma maneira que 0 pensamento dialético-especulativo, também a intuicao originéria sua evidéncia ficam dependentes da abertura que jé impera, a clareira. O evi- 3 Waldung equivale a floresta, regio de florestas. Feldung: campo, zona de campo, ¢ expressao dialetal que rio mais consta nos léxicos, * Dickung: provem de dick, grosso, espesso, cerrado. * Licht: claro; leicht: leve. Li onde existe vegetagao leve (leicht), pode-se falar em lich (claro). A 276 HEIDEGGER dente é 0 imediatamente compreensivel. Evidentia é a palavra com que Cicero traduz a palavra grega endrgeia, interpretando-a na lingua romana. Endrgeia, em que fala a mesma raiz que em argentwm (prata), designa aquilo que brilha em si e a partir de si mesmo e assim se expe & luz. Na lingua grega nio se fala da ago de ver, de videre, mas daquilo que luz ¢ brilha. S6 pode, porém, brilhar se a abertura ja € garantida. O raio de luz nao produz primeira- mente a clareira, a abertura, apenas percorre-a. Somente tal abertura garante um dar e um receber, garante primeiramente a dimensio aberta para a evidéncia, onde podem demorar-se e devem mover-se. Todo o pensamento da Filosofia, que, expressamente ou nio segue o chamado “as coisas mesmas”, jé esté, em sua marcha, com seu método, entregue a livre dimensdo da clareira. Da clareira, todavia, a Filosofia nada sabe. Nao ha diivida que a Filosofia fala da luz da razdo, mas nfo atenta para a clareira do ser. O lumen naturale, a luz da razio, s6 ilumina 0 aberto, Ela se refere certamente a clareira; de modo algum, no entanto, a constitui, tanto que dela antes necessita para poder iluminar aquilo que na clareira se presenta. Isto ndo vale apenas para o método da Filosofia, mas também e até em pri meiro lugar para a questo que the é propria, a saber, da presenga do que se presenta. Em que medida também ja na subjetividade é sempre pensado 0 subiectum, 0 hypoketme non?, o que jé esta ai, portanto, 0 que se presenta em sua presenga, nao pode ser aqui mostrado em detalhe. (Veja-se a propésito disto Heidegger, Nietzsche, II vol., 1961, p. 429 ss.) Nossa atengiio volta-se agora para outra coisa. Quer seja experimentado aquilo que se presenta, quer seja compreendido e exposto os nao, sempre a presenga, como o demo- rar-se dentro da dimensio do aberto, permanece dependente da clareira ja imperante. Mesmo o que se ausenta nao pode ser como tal, a ndo ser que se desdobre na livre dimen- sio da clareira, Toda a Metafisica, inclusive sua contrapartida, 0 positivismo, fala a linguagem de Platio. A palavra fundamental de seu pensamento, isto é, a exposigao do set do ente, & efdos, idéa: a aparéncia na qual se mostra o ente como tal. A aparéncia, porém, ¢ um modo de presenga. Nenhuma aparéncia sem luz — Plato jé 0 reconhecera. Mas no ha Juz alguma, nem claridade sem a clareira, Mesmo a sombra dela necessita. Como pode riamos, de outra maneira, penetrar na noite e por ela vagar. Na Filosofia, contudo, per- manece impensada a clareira como tal que impera no ser, na presenga, ainda que em seu comego se fale da clareira. Onde acontece isto ¢ com que nome é evocado? Resposta: No poema filos6fico de Parménides, o qual, ao menos na medida de nossos conheci mentos, foi o primeiro a meditar sobre o ser do ente, 0 que ainda hoje, mesmo que nao se lhe dé ouvido, fala nas ciéncias, nas quais a Filosofia se dissolveu. Parménides ouve a exortagao: chreé dé se panta puthésthat emén Alethetes eukykléos atremes étor edé brotdn décsas, tais ouk éni pistis alethés (Fragmento I, 28 ss.) “tu, porém, deves aprender tudo: tanto 0 coragao inconeusso do desvelamento em sua esfericidade perfeita como a opinido dos mortais a que falta a confianga no desvelado. O FIM DA FILOSOFIA 217 Aqui é nomeada a Alétheia, o desvelamento. Ela ¢ chamada de perfeitamente esfé- rica porque girando na pura circularidade do circulo. na qual, em cada ponto, comego ¢ fim coincidem. Desta rotagao fica excluida toda possibilidade de desvio, de deformagao € de ocultagao. © homem que medita deve experimentar 0 coragiio inconeusso do desve- lamento? Refere-se a este mesmo no que tem de mais proprio, refere-se ao lugar do silén- cio que concentra em si aquilo que primeiramente possibilita desvelamento. E isto é a clareira do aberto. Perguntamos: abertura para qué? jé consideramos que 0 caminho do pensamento, tanto o pensamento especulativo quanto o intuitivo, necessita da clareira que pode ser percorrida. Nela, porém, reside também a possibilidade do aparecer. isto & a possibilidade de a propria presenga presentar-se. que o desvelamento, antes de qualquer outra coisa, garante, é 0 caminho no qual © pensamento persegue a este Ginico e para o qual se abre: hépos éstin, .. . efnai: 0 fato de que o presentar se presenta, A clareira garante, antes de tudo, a possibilidade do cami rnho em diregao da presenga e possibilita a ela mesma o presentar-se. A Alétheia, o desve- lamento, devem ser pensados como a clareira que assegura ser e pensar e seu presentar-se reciproco. Somente o coragao silente da clareira ¢ 0 lugar do siléncio do qual pode irrom- per algo assim como a possibilidade do comum-pertencer de ser e pensar, isto é, a possi- bilidade do acordo entre presenga e apreensio. Somente nesta alianga se baseia a possibilidade de atribuir ao pensamento verda deira seriedade e compromisso. Sem a experiéncia prévia da Alétheia como a clareira, todo discurso sobre a seriedade ou 0 descompromisso do pensamento permanece infun- dado. De onde recebeu a determinagao platénica da presenga como idéa sua legitima- do? De que ponto de vista é legitima a explicitagio aristotélica da presenga como enérgeia? Estas questées, das quais a Filosofia tio estranhamente se abstém, nem mesmo podem ser colocadas por nés, enquanto nao tivermos experimentado o que Parménides deveu experimentar: a Alétheia, o desvelamento. O caminho que conduz até la separa-se da estrada em que vagueia a opiniio dos mortais. A Alétheia nao é nada de mortal, assim como nao o é também a propria morte. Se traduzo obstinadamente o nome Alétheia por desvelamento, fago-o nao por amor & etimologia, mas pelo carinho que alimento para com a questio mesma que deve ser pensada, se quisermos pensar aquilo que se denomina ser ¢ pensar de maneira adequada a questo, O desvelamento & como que o elemento tinico no qual tanto ser como pensar seu comum-pertencer podem dar-se. A Alétheia @, certamente, nomeada no comego da Filosofia, mas nfo é propriamente pensada como tal pela Filosofia nas eras posteriores. Pois desde Aristételes a tarefa da Filosofia como metafisica é pensar o ente como tal ontoteologicamente. Se tal & 0 estado de coisas, ndo devemos condenar a Filosofia como se houvesse negligenciado algo, como se houvesse perdido qualquer coisa, como se houvesse sido por isso marcada por uma falha fundamental. O assinalar o que ficou impensado na Filoso- fia nao é nenhuma critica a Filosofia, Caso agora torne-se necessaria uma critica, ela se dirigira antes aquela tentativa que, desde Ser e Tempo, sempre se faz mais urgente: no fim da Filosofia perguntar por uma tarefa possivel para o pensamento. Pois j4 muito tarde levanta-se agora a questo: por que ndo mais se traduz aqui Alétheia pela palavra corrente “verdade”? A resposta s6 pode ser: Na medida em que se compreende verdade no sentido “natural” da tradigo como a concordancia, posta A luz ao nivel do ente, do conhecimento com o ente; mas também na medida em que a verdade é interpretada a partir do ser como a certeza do saber a res- peito do ser, a Alétheia, 0 desvelamento como clareira, nao pode ser identificada 4 verda- 278 HEIDEGGER de. Pois a verdade mesma, assim como ser € pensar, somente pode ser o que &, no ele- mento de clareira. Evidéncia, certeza de qualquer grau, qualquer espécie de verificagao da veritas, movem-se ja com esta no ambito da clareira que impera. Alétheia, desvelamento pensado como clareira da presenga, ainda nao é a verdade. £ a Alétheia entio menos que verdade? Ou é mais, j& que somente ela possibilita verdade como adaequatio e certitudo, ja que nio pode haver presenga e presentificagio fora do Ambito da clareira? Fique esta questéo entregue como tarefa ao pensamento. O pensamento deve consi- derar se é capaz de levantar esta questo como tal, enquanto pensa filosoficamente, isto é, no sentido estrito da metafisica, a qual apenas questiona o que se presenta sob 0 ponto de vista de sua presenga. Seja como for, uma coisa se torna clara: a questo da Alétheia, a questo do desve- lamento como tal, ndo & a questio da verdade. Foi por isso inadequado e, por conse- guinte, enganoso, denominar a Alétheia, no sentido da clareira, de verdade. O discurso sobre a “verdade do ser” tem seu sentido justificado na Ciéneia da Légica de Hegel, por- que nela verdade significa a certeza do saber absoluto, Mas tampouco Hegel como Hus- serl questionam, como também nao o faz qualquer metafisica, 0 ser do ente, isto é, ndo perguntam em que medida pode haver presenga como tal. $6 hd presenga quando impera clareira. Esta, nao ha divida, é nomeada com a Alétheia, com 0 desvelamento, mas no como tal pensada. © conceito natural de verdade nao designa desvelamento também na Filosofia dos gregos. Insiste-se em apontar, e com razdo. o fato de que jé em Homero a palavra alethés € apenas e sempre usada com os verba dicendi, com a enunciagao, € por isso no sentido da certeza e da contianga que nela se pode ter, e ndo no sentido de desvelamento, Mas esta observagao significa, primeiro, apenas que nem os poetas nem o uso ordinario da linguagem, nem mesmo a Filosofia, se veem colocados diante da tarefa de questionar em que medida a verdade, isto é, a retitude da enunciagao, sé permanece garantida no ele- mento da clareira da presenga. No horizonte desta questo deve ser reconhecido que a Alétheia, o desvelamento no sentido da clareira da presenca, foi imediatamente e apenas experimentada como orthd- tes, como a retitude da representagdo e da enunciagdo. Entéo também nao é sustentavel a afirmativa de uma transformagao essencial da verdade, isto é, a passagem do desvela- mento para a retitude, Em vez. disso, deve-se dizer: a Alétheia, enquanto clareira de pre- senga ea presentificagio no pensar e dizer, logo desemboca na perspectiva da adequa- 40, no sentido da concordancia entre o representar e 0 que se presenta. Mas este processo impde justamente esta questdo: onde esti a causa de, para a experigncia natural e o dizer do homem, a Alérheia, o desvelamento, s6 se manifestar como retitude © seguranga? Reside isto no fato de © morar ec-statico do homem na abertura do presentar-se s6 estar voltado para aquilo que se presenta e para a presentifi- cagio objetiva do que se presenta? Que mais significa isto sendo o fato de a presenga como tal, e com mais razdo ainda a clareira que a garante, ndo serem considerados? Experimentado e pensado é apenas aquilo que Alétheia como clareira garante, ndo aqui- Jo que ela como tal & Isto permanece oculto, Sera por acaso? Acontece apenas como conseqiléncia de uma negligéncia do pensamento humano? Ou acontece porque o ocultar-se, o velamento, a Léthe, faz parte da A-létheia, nao como um puro acréscimo, no como a sombra faz parte da luz, mas como 0 coragao da Alétheia. E néio impera neste ocultar-se da clareira da presenga até mesmo um proteger e conservar, ‘inico Ambito no qual o desvelamento pode ser garantido, podendo so assim manifestar-se. em sua presenga, aquilo que se presenta? O FIM DA FILOSOFIA 279 Se for assim, ento a clareira nfo sera pura clareira da presenga, mas clareira da presenga que se vela, clareira da protegio que se vela. Mas, se for assim, entio apenas com um tal questionamento poderemos atingir 0 caminho que se dirige para a tarefa do pensamento no fim da Filosofia. Mas nao ¢ isto tudo mistica infundada ou mitologia de mé qualidade; em todo caso funesto irracionalismo ¢ negagao da Ratio? Respondo com uma pergunta: Que significa ratio, noils, 1oein, entender? Que signi- fica razdo e principio de todos os principios? Pode ser isto algum dia satisfatoriamente determinado sem que experimentemos a Alétheia de maneira grega como desvelamento, para pensé-la entio, para além dos gregos, como clareira do ocultar-se? Enquanto a Ratio € 0 racional permanecerem duvidosos no que possuem de proprio, fica também sem fundamento falar irracionalismo. A racionalizagio técnico-cientifica que domina a era atual justifica-se, sem divida, de maneira cada vez mais surpreendente através de sua inegavel eficdcia. Mas tal eficdcia nada diz ainda daquilo que primeiro garante a possi lidade do racional ¢ irracional. A eficacia demonstra a retitude da racionalizagao técni- co-cientifica. Esgota-se, no entanto, o carter de revelado daquilo que é, na demonstrabi- lidade? Nao tranca a insisténcia sobre o demonstravel justamente 0 caminho para aquilo que &? Talvez. exista um pensamento mais s6brio do que a corrida desenfreada da raciona- lizagdo ¢ 0 prestigio da cibernética que tudo arrasta consigo. Justamente esta doida dis- parada é extremamente irracional. Talvez exista um pensamento fora da distingdo entre racional ¢ irracional, mais s6- brio ainda do que a técnica apoiada na ciéncia, mais sobrio e por isso a parte, sem a efi- cdcia e, contudo, constituindo uma urgente necessidade provinda dele mesmo. Se pergun- tarmos pela tarefa deste pensamento, entao sera questionado primeiro, nao apenas este pensamento, mas também o proprio perguntar por ele. Perante toda a tradigiio da filoso- fia isto signific Nos todos precisamos de uma disciplina para o pensamento e antes disso de saber © que significa uma disciplina ou falta de disciplina no pensamento, Para isto Arist6teles nos da um sinal no Livro IV de sua Meraffsica (1006 ss.). Ei-to: ésti gar apaideusta 6 mé gigndskein tinon def kat zeteim apddeicsin ka’ tinon ou dei. “E falta de disciplina nao ter olhos para aquilo com relagao a que é necessério procurar uma prova e com relagio a que isto ndo é necessario.” Esta palavra exige uma cuidadosa meditagao. Pois ainda ndo se decidiu qual a maneira por que deve ser experimentado aquilo que nao necesita de prova para se tornar acessivel a0 pensamento. E ela a mediagio dialética ou a intuigao que da de modo origi natio, ou nenhum dos dois? Aqui a decisdo s6 pode vir da maneira de ser propria daquilo que antes de qualquer outra coisa requer que Ihe deixemos livre 0 acesso. Como, porém, pode isto possibilitar-nos a decisio antes que o tenhamos admitido? Em que circulo movemo-nos e, na verdade, de maneira inevitavel? E isto 0 euktikleos Alethete, o proprio desvelamento perfeitamente esférico, pensado como a clareira? Mas entio o titulo para a tarefa do pensamento deve ser em vez de Ser e Tempo: Clareira e Presenga? ® De onde, porém, vem e como se dé a clareira? O que fala no da-se? A tarefa do pensamento seria entio a entrega do pensamento, como foi até agora, a determinago da questdo do pensamento. © A conferéncia Tempo e Ser propde-se como tarefa fundamental explorar esta passagem de Ser e Tempo para Clareira ¢ Presenea. SOBRE A ESSENCIA DO FUNDAMENTO’ Titulo do original alemao: Vom Wesen des Grundes. Contribuigiio para o volume comemorativo dos seten- ta anos de Edmund Husserl: Ergdinzungsband zum Jahrbuch fiir Philosophie und phdnomenologische Fors- chung, Halle 1929, pp. 71-100. Apareceu ao mesmo tempo como separata na Max Niemeyer, Halle (Salle); desde a terceira edigdo (1949) na Vittorio Klostermann, Frankfurt am Main, Quinta edigiio. © texto para a tradugdo foi extraido do volume Wegmarken, Vittorio Klostermann, Frankfurt am Main 1967, pp. que contém boa parte dos textos menores de Martin Heidegger. Introdugao ao Método Fenomenolégico Heideggeriano Ao lado de Ser e Tempo e Que é Metafisica? temos, no ensaio Sobre a Esséncia do Fundamento ¢ na prelegio A Determinagado do Ser do Ente Segundo Leibniz, a melhor possibilidade de observar 0 método fenomenoldgico de Heidegger em sua aplicagao con creta. Nao apenas cronologicamente esto estas duas andlises proximas dos momentos mais altos da criagéo heideggeriana; também tematicamente Ihe sio vizinhas, O texto sobre Leibniz tomou corpo na esteira de interpretagdes de fildsofos que foram incluidas em Ser e Tempo. O estudo sobre o fundamento continua uma exploragdo da questo da transcendéncia, analisada no § 69 c), da mesma obra. A conferéncia Hegel e os Gregos uma pega magistral do segundo Heidegger. E uma engenhosa aplicagiio da fenomeno- logia a um problema de historia da filosofia. Na analise de Leibniz o fildsofo diz que sua dio da histéria da filosofia ndo ¢ meramente historiogrdfica, mas que isto ndo quer dizer que seja do tipo da que Hegel realiza. Ao estudar a relagdo existente entre Hegel ¢ os gregos, partindo da interpretagaio hegeliana da filosofia grega, o filésofo tem em mira uma critica a0 modo hegeliano de interpretagio dos diversos segmentos da hi: toria da filosofia. Em ambos os estudos esto latentes a ago e 0 modo de proceder do método fenomenolégico de Heidegger. Pois a fenomenologia heideggeriana nao & apenas uma “técnica” de andlise do ser-ai e da corrrelata questio do ser. Seu outro polo € 0 con- fronto com a historia da filosofia, também este tendo, é verdade, como meta, a retomada da problematica ontolégica. A destruigdio e repeticio dos momentos mais decisivos da historia da filosofia eram mesmo projeto da segunda parte de Ser e Tempo, que nunca foi escrita. Fragmentariamente, porém, este projeto inacabado se realiza durante as ja qua- tro décadas de confronto direto com as questdes da metafisica ocidental. Ser ¢ Tempo nao esti, portanto, interrompido por um fracasso; esbarra no enigma que espreita todo o questionamento filos6fico. Impasses deste tipo no podem ser previstos, mas fecundam as mentes geniais que até af conseguiram progredir. Seria muito simples afirmar que uma obra destas fracassou. Mas isto certamente proviria ou de uma auto-suficiéncia dogma tica ou de uma superficialidade que, em filosofia, se contenta com um cardapio de res- postas prontas, Mesmo no ensaio sobre a esséncia do fundamento, o método fenomenoldgico nao se reduz aos momentos de analitica existencial. Também nele ha aproximagdes fenomeno- logicas da hist6ria da filosofia. E esta maneira de proceder enriquece uma andllise que, de outra forma, poderia desgarrar-se na pura especulagdo. Temos, portanto, nos trés textos material para observar a estrutura e 0 movimento da interrogacao heideggeriana. E pre- ciso ndo apenas coragem para subverter, da maneira como Heidegger o fez, a questo do principio da razio e a questdo do fundamento, basilares em toda a tradigao. Sem um mé- todo que dé coeréncia e sentido, tentativas destas desembocam em experimentos sem 284 HEIDEGGER consisténcia. Somente a maneira de ver fenomenoldgica pode conduzir a uma ruptura da rigidez de categorias como transcendéncia, finitude, liberdade. Mas que quer 0 filésofo com o método fenomenoldgico? Nao é este, antes, uma maneira de pensar bastante arbitrdria ¢ contra a corrente da tradigdio, sem que, no entan- to, se possa isola-lo e confronta-lo com outros métodos que tomaram forma na historia da filosofia? Nao é, por acaso, teimosa perseguig%o de uma intuigdo original que jamais se esgota ¢ que se espraia por todas as abordagens tanto sistematicas quanto historicas? Os trés textos, lidos com a tengo nao apenas avidamente voltada para os conteddo: mas empenhada em descobrir 0 movimento de interrogagao do fildsofo, servirio certa- mente para novos impulsos € se tomariio indicadores de caminho proprio no campo da reflexio filosdfica, Para introduzir em certos momentos essenciais do método fenomenoldgico como Heidegger 0 esbocou provisoriamente em Ser e Tempo (§ 7), como o discute dentro da analitica existencial (§ 63) e como esparsamente a ele se refere nas obras posteriores, analisaremos os seguintes aspectos: A responsabilidade critica na filosofia atual. A discussio metodoldgica e a posigao da fenomenologia. Os métodos atuais e a critica da fenomenologia, O método fenomenoldgico e 0 primado da teridéncia para o encobrimento. A ambigiiidade do método fenomenologico em Ser e Tempo. Estrutura e movimento da interrogagao heideggeriana. 1. O contexto em que surge, se funda e atua a reflexao filoséifica, nao se recebe, nos tempos atuais, como algo evidente. Andlises precisas, servidas pelo extremo rigor meto dolégico que se elabora nas ciéncias, querem tornar mais transparente a linguagem que a filosofia emprega, ¢ procuram desvendar os caminhos que a conduzem para a verdade, O pensamento filosofico ndo pode mais eximir-se do proceso legitimadot a que se deve submeter todo o discurso humano que pretende, metédica ¢ sistematicamente, propor algo sobre o real. Esta incorporagao do controle das proposigées que se tomnou rotina nas ciéncias leva a filosofia a pér ordem na esfera de suas afirmagdes. Nao se ordenam apenas as interpretagdes pelo método hermenéutico; nao se decompoe somente a lingua- gem culta da tradigdo filosdfica pela analitica da linguagem; nao se presta apenas aten- ¢40 as criticas do empirismo légico, para desmascarar falsos problemas. Ha todo um esforgo positivo que invade o trabalho da filosofia, tentando operacionalizar os dados que acumula e sistematizar a pesquisa filoséfica com as iltimas conquistas da logica e dos processos de formalizagao. Isto implica a integragao de todo um instrumental de analise que a metodologia cientifica, a teoria das ciéncias, as pesquisas da lingiifstica construiram. A filosofia deixou de ser uma ocupagao de diletantes, uma teorizagio sem compromisso ¢ sem controle, uma compensacao para a falta de trabalho (6cio). Instau- Ta-se uma rigorosa correlagdo entre atitude teorética ¢ responsabilidade critica e, cada vez mais, se pergunta pelas motivagées que desencadeiam 0 comportamento filoséfico. Nao que se reduza o pensamento filos6fico aos componentes socio-culturais, mas sempre com mais insisténcia se pdem a nu os interesses que conduzem a atividade do fildsofo. Chega a ser chocante a tenacidade com que se busca um novo estatuto para 2 filosofia € se alijam cargas “initeis” da tradigdo. 2. No que respeita ao método em filosofia, impde-se cada vez com mais clareza o dominio do método dialético de um lado e do método légico-analitico de outro. O pri- SOBRE A ESSENCIA DO FUNDAMENTO 285 meiro se perfila sob a influéncia cada vez maior das ciéncias sociais, sobretudo da socio: Jogia; o segundo se apéia nas conquistas no campo da lingiifstica, nos processos de formalizagao e nos dominios da légica. A polarizagéio entre sociologismo dialético positivismo légico parece cada vez maior. E para o futuro proximo anuncia-se uma “per feita disjungio na oposig&o entre dialética e légica”. “Nao hé diivida que se destacam dos dogmaticos de viseira, de um ¢ do outro arraial, aqueles que tém em mira uma ‘sinte- se’. Mas justamente esta meta pode ser unicamente estabelecida com base na idéia de que logica e dialética juntas constituem o todo da filosofia, que hoje ainda merece ser discuti- da. O que nao se resolve nesta altemnativa, ou no € filosofia ou é ‘de ontem’.” (Michael Theunissen, in Phil, Rundschau, ano 15, janeiro 1968, cad. 1/2, p. 136). Heidegger por muitos julgado como um filosofo “de ontem” ¢ isto, nao em iiltimo lugar, por causa de seu método. E relativamente facil distinguir entre 0 método fenome- noldgico como Husserl o entendia e as pretensdes metodolégicas dos analistas logicos da linguagem, Husserl quer atingir a verdade mediante uma analise eritica da intenciona lidade da consciéncia. A analitica da linguagem procura a verdade pela andlise critica da linguagem. Trata-se do deslocamento de interesses, de uma area para outra, com 0 qual se prometem melhores resultados ¢ mais rigor sob 0 ponto de vista do método. Mas a dis- tincia que separa as duas posturas metodoldgicas é enorme. A oposig&o chega a ser de vontade; depende de motivagdes. Exemplo para isto: Quando Merleau-Ponty perguntou a Ryle: “Nao é nosso programa o mesmo?”, este respondeu: “Espero que nao”. Mas 0 método fenomenolégico, assim como o entende Heidegger, é tio radicalmente recusado pelos analistas da linguagem que nem mesmo um tal didlogo sobre as pretensdes de ambos é poss{vel. A fenomenologia, assim como Heidegger a formula como método, pa rece ser definitivamente “de ontem” para os que se ocupam em pér clareza e ordem nas proposigSes filoséficas. J4 a determinagio inicial do método fenomenolégico leva Heidegger a delimitar seus contornos de maneira tal que fica evidente: a) a verdade que busca 0 método fenomenol6gico nao se pode comparar com, ¢ de maneira alguma é, a verdade que resul- ta como conseqiiéneia do método dialético; b) nem é a verdade, que se pretende atingir com a argumentagio légico-formal, a certeza como retitude ¢ exatiddo. O § 7 de Ser e Tempo o diz claramente: a verdade ¢ 0 desvelamento daquilo que a partir de si mesmo se mostra velado. O método fenomenolégico exige o passo de volta, para tras dos fend- menos no sentido vulgar, onde se move a logica, para o ambito em que o fendmeno no sentido fenomenolégico é, antes, aquilo que se oculta, Isto traz como conseqiiéncia inter- na ao proprio método uma ambigiiidade, que, superficialmente, ja se revela no fato de o filésofo sd poder desenvolver as andlises com seu método utilizando a linguagem que é controlada pelas regras da logica mesma. Ao nivel do proprio discurso se insinua uma ambigiiidade que perpassara todas as proposigdes. Desta maneira, a propria determina- co do método fenomenolégico heideggeriano parece fugir. em seu momento decisivo, ao controle da légica das proposigdes. Nao apenas isto; a idgica mesma torna-se ambiva- lente e querem-se descobrir nela dois niveis: 0 nivel mais profundo determina e condi- ciona 0 outro. £ um circulo que vem afirmado na propria logica. A logica que deve con: trolar as proposigées s6 0 pode na medida em que pressupde 0 nivel profundo destas mesmas proposigdes como condig&io de sua propria possibilidade. Esta ambigiiidade do método fenomenolégico, como ja fora definido provisoriamente em Ser e Tempo, perpas sara toda a obra de Heidegger. Mas a frustrago da légica das proposigdes, ou melhor. a problematizacio com que ela nada pode fazer, nao deve levar para uma tentativa de interpretar dialeticamente o 286 HEIDEGGER método heideggeriano. Nele nada ha que se aproxime do processo dialético, sobretudo de sua necessidade © movimento teleoldgico. As proposigdes centrais da obra de Heidegger nao so proposigdes especulativas no sentido hegeliano. 3. Wittgenstein, dois anos apés a publicagiio de Ser e Tempo, ja suspeitara de que problema fundamental se tratava na interrogacio heideggeriana. Numa observagio fugi dia, diz 0 autor do Tractatus: “Posso imaginar o que Heidegger quer dizer com ser ¢ angustia. O homem tem o instinto de se jogar contra os limites da linguagem” (Ludwig Wittgenstein, Ed. Suhrkamp, 3.° vol., 1967, p. 68). Bem contra a tendéncia do fundador da fenomenologia, Heidegger liga 0 questionamento de sua obra-prima ao problema da linguagem. Ela assume papel condutor na elaboraciio de seu método ¢ na realizago da analitica existencial. No método fenomenoldgico como “interpretagao ou hermenéutica universal”, como apossamento de tudo o que foi transmitido pela tradigao através da lin- guagem, como destruigao ¢ revolvimento do chao lingiiistico da metafisica ocidental, se descobre um imenso projeto de analitica da linguagem. Mas, como 0 método fenomeno- lbgico visa ao redimensionamento da questo do ser, ndo numa abstrata teoria do ser, nem numa pesquisa historiografica de questées ontolégicas, mas numa imediata proximi dade com a praxis humana, como existéncia e faticidade, a linguagem — 0 sentido, a significagio — no é analisada num sistema fechado de referéncias, mas ao nivel da historicidade. Se no método dialético podemos encontrar uma certa mistica teleo-logica (teleo-trépica), da palavra, no método do positivismo uma certa tecno-l6gica da lingua- gem, encontramos no método fenomenoligico de Heidegger uma certa onto-logica do dizer, isto é, uma compreensao da dimensio pré-ontolbgica da linguagem, ligada a exp! citagdo do mundo como horizonte da transcendéncia. O método fenomenoldgico, enquanto método hermenéutico-lingiiistico, nao se desli- ga da existéncia concreta, nem da carga pré-ontol6gica que na existéncia ja vem sempre antecipada. E isto que Ihe dé como caracteristica uma inelutavel circularidade, que, para © método do positivismo légico, sempre & um excesso que a clareza e linearidade da lin- guagem profbem e, para o método dialético, é de menos, porque omite a pretensio de totalidade. Os dois métodos que monopolizam as atengdes na crista da onda de sua atualidade tém razio em suas criticas contra o método fenomenoldgico heideggeriano. A ambigiii- dade em que nele aparece a légica: de um lado, falhando o essencial, porque presa ao fendmeno no sentido vulgar, de outro, a absoluta necessidade de ter que ser usada para poder-se dizer qualquer coisa daquele ambito em que se vela o fenémeno no sentido fenomenolégico — tal ambigtiidade esta longe da transparéncia em que se evita confun- dir questées filos6ficas verdadeiras com aquelas que sfio apenas questées nascidas da lin- guagem. A distincia que separa 0 método fenomenologico da historia ¢ da praxis: por mais que se analise a cotidianeidade, a existéncia, a anglstia, a preocupagao, a analitica existencial parece manter-se longe do conereto acontecer histérico e das questées que agitam a sociedade. Tem-se a impressio de assistir ao desfile de esquemas, arquétipos. de estar-se caminhando num céu rarefeito em que sfio decompostos e articulados os momen- tos essenciais do acontecer humano, num ensaio que nunca chega ao confronto definitivo com a vida. No entanto, ambos os métodos assim flagrados em sua eritica movem-se sobre pres- supostos que eles proprios nao so capazes de explicitar, e que necessariamente devem ser respeitados ja que condigdes de sua propria possibilidade. Isto nao diminui a impor- taneia ¢ porte de seu trabalho e de seus resultados. tanto no ambito da operacionali- SOBRE A ESSENCIA DO FUNDAMENTO 287 zagiio da verdade na linguagem para a comunicagdo intersubjetiva, como no ambito da operacionalizagdo da verdade empirica para a praxis humana. Mas estes pressupostos devem ser explicitados, se a filosofia no quiser renunciar sua tarefa de buscar as raf zes, Esta explicitagdo ndo sera certamente uma explicagao positiva. nem se resumiré em “definigdes operacionais”: somente se dard por um processo de aproximagées que nao podem ser legitimadas por demonstragdes € argumentos apoditicos. A clareza metédica serd sempre, em face dos outros métodos, turvada por um contedido nunca esgotivel nas proposigdes. E isto que da esta caracteristica ambivalente 20 método fenomenoldgico como Heidegger o compreende. 4. Uma vez situado 0 método fenomenoldgico no contexto das discussdes atuais, passo a andlise de certas particularidades ¢ elementos distintivos seus. Nao é facil atingir um ponto de vista a partir do qual se possa refletir, fora da imanéncia da obra, sobre o problema do método em Heidegger. © fildsofo The da uma importéncia muito grande mas uma verdadeira exposigfo nunca apresentou. Ha apenas a apresentago provisoria do § 7 de Ser e Tempo. Por isso, resta, como tinico recurso a prometer um resultado apreciavel, destacar certos momentos de sua anélise da coisa mesma, em que, de um outro modo, se surpreendem modos de proceder que assinalam 0 método fenomenol6- gico. Mas, fugindo da simples repeti¢ao da linguagem que o filésofo utiliza para exami- nar seu objeto, corre-se o risco de cair numa espécie de metalinguagem, descritiva da linguagem-objeto do filésofo, repetindo-se certamente com muito menos felicidade o que © autor disse, sem, no entanto, conseguir destacar algum aspecto relevante do método. Além disso, as observagdes metalingiiisticas (ou metateoréticas) de Heidegger vo, de maneira to intima, fundidas com a analise da coisa, que o tentar separar implica perder uma dimensao importante de ambas. Talvez o controle de certas implicagGes teoréticas ¢ gnosioldgicas de seu método possa servir de instancia corretiva. Mas 0 que 0 filésofo diz da fenomenologia é claro: “Fenomenologia significa primariamente um conceit de método. Caractetiza 0 como ¢ nao 0 qué. Quanto mais auténtico este conceito.... . tanto mais originariamente esté ele enraizado na discussio com as coisas mesmas” (ST, 27). (© que penso ser o fator determinante e individualizador do método fenomenoligico é a descoberta que Heidegger fez de que existe um primado da tendéncia para o encobri- ‘mento. Esta convicgao do filésofo assume um papel importante na autocompreensio de seu método. Ao invés de pensar, como Husserl ¢ outros fildsofos, que diante de nds a rea lidade se estende a espera da rede de nossos recursos metodolégicos que a aprisionem, Heidegger afirma que o homem e o essencial nas coisas tendem para o disfarce ou esto efetivamente encobertos. Por isso, volta-se para 0 como. No comego, o fildsofo ainda fala do “ser dado” (Gegebensein); depois ja trata do “encontro (Begegnung); mais adian- te alude A “descoberta” (Entdeckthei); paralelamente fala de “revelagao” (Erschlosse- nheit); enfim, passa a dominar o “desvelamento™ (Unverborgenheit); as vezes este iltimo vem estilizado no termo “clareira” (Lichtung). Todos estes termos esto afinal ligados & palavra phatnesthai. Trata-se sempre de um empenho para abrir um Ambito em que aqui Jo que esta velado se mostre por si mesmo. E 0 ser que se deve revelar sob 0 ente. Mas, ja que o ser somente se revela sob 0 ente num retorno sobre o ser-ai, torna-se decisivo perseguir e por a nu os modos de dissimulagéio em que primeiramente, e 0 mais das vezes, se situa o proprio ser-ai, na sua cotidianeidade. Heidegger descobre o ser-af no movimento de fuga de si mesmo, numa tentativa de nao se assumir na sua totalidade, como preocupagio, que se articula em existéncia, faticidade ¢ decaida ou ser-adiante-de- si, ja-ser-em e junto-dos-entes. O ser-ai se vela para si mesmo, encobre suas possiblidades 288 HEIDEGGER € assim barra a possibilidade de uma revelagdo de ser. A atitude do filésofo, para contor- nar a fuga do ser-ai de si mesmo, é partir da analise da cotidianeidade e descobrir nela homem ne movimento de fuga. Somente, uma vez realizada a analitica do ser-ai coti- diano, se descobre como o ser-ai pode assumir-se pela deciso enérgica, na sua verdade, para descobrir que sempre esta simultaneamente na ndo-verdade. Este interesse pela nao. verdade ¢ 0 sinal da fuga de si mesmo. © existencial em que se concentra a possibilidade de sucesso do método fenomeno- égico € 0 da compreenstio. Desde sempre o homem é compreensiio, compreende-se em seu ser e nele j4 antecipa uma implicita compreensio de ser em geral. O que importa é explicitar esta compreensao. E através dela que se atinge, no apenas o ser-ai numa ins- tancia decisiva, mas, ao mesmo tempo, “a transparéncia metédica do processo compreensivo-explicativo da interpretagéo do ser” (ST, 230). Por que reside no compreender a possibilidade da transparéncia metddica do método fenomenologico 5. Detenhamo-nos em Ser e Tempo. Quando se examina a obra em seus detalhes, nos recursos técnicos da composigao, nos diversos niveis de exposigéo, nas idas e vindas de suas andlises, depara-se com uma espécie de astiicia, que 0 filésofo aguga cada vez mais, para contornar metodicamente a tendéncia para o encobrimento que espreita no objeto do método fenomenolégico: o ser ¢ o ser-ai. E uma espécie de habilidade do ana- lista que dispde de tal mancira as antenas do seu método e as controla, que o que de si se encobre se mostre, Para isto é decisiva a hipotese da compreensiio como existencial, que pode ser metodicamente explicitada em sua articulago. E através dela que o ser-at sempre esté aberto, antecipa um sentido que o orienta, ainda que s6 0 faga sempre voltando-Ihe as costas, em fuga de si mesmo, por nao suportar a estrutura nadificante que acompanha a preocupagdo. Na compreensao como Heidegger a estiliza em ST, nos §§ 31 € 32, esboga-se a matriz do método fenomenoldgico. Pois pela sua explicitagao se descobre que a compreensio possui uma estrutura em que se antecipa o sentido. Ela se compae de aquisigao prévia, vista prévia e antecipagiic. Desta estrutura explicitada nasce a situaco hermenéutica em que é possivel apoiar-se para a efetivagdo do projeto que se tem em vista. Mas aqui esta o instante que ¢ preciso deter para apanhar a reflexdo do filésofo em seus implicitos pressupostos metodolégicos. A andlise realizada nos §§ 31 € 32 parece puramente voltada para a descoberta da estrutura do existencial “compreen slo”. £ tratado pela linguagem-objeto. O fildsofo descreve algo. No § 63, entretanto, ocorre uma parada metodoldgica imposta pela circularidade do método fenomenoldgico. Nela Heidegger realiza uma reflexio metateorética, que como metalinguagem se distan- cia do objeto ser-ai, para se deter na importincia metodoldgica daquilo que foi exposto na analitica da compreensio nos §§ 31 ¢ 32. Aqui, entio, se revela toda a envergadura do circulo inevitével para quem utiliza 0 método fenomenoldgico como Heidegger o faz, partindo implicitamente da compreensio. 0 filosofo s6 péde antecipar uma exposigéo proviséria do método (§ 7) porque os dados para a compreensdo mais profunda do méto- do existiriam apenas apés a explicitagao do ser-ai cotidiano. O método, portanto, & compreendido quando ja se analisou com ele aquilo para o qual é pensado. A circulari- dade esta em que se pressuponha aquilo que deve ser atingido no caminho (método) antes de trilha-lo explicitamente. Toda a explicitagao do ser-af cotidiano repousa, portanto, num pressuposto. O carater metédico da analitica existencial néo se evidencia ainda na exposigio proviséria do método fenomenolégico: s6 na segunda segao de Ser e Tempo a explicitagaio do método revela sua situagao e porte. SOBRE A ESSENCIA DO FUNDAMENTO 289 Resumamos rapidamente o caminho do fildsofo: ele quer expor o sentido da preocu pagio, que é a temporalidade. Mas este projeto de atingir a temporalidade como sentido ontoldgico do ser-af é uma antecipagdo do sentido. No § 32, p. 153, Heidegger dissera: “O circulo da compreensio pertence a estrutura do sentido”. Entio também a busca do sentido da preocupagao deve mover-se no circulo hermenéutico. Dentro deste circulo se tera que atingir uma situago hermenéutica que permita a interpretagao do sentido da preocupagio. Somente entdo suas “antecipagdes” estario fundadas na conformidade com “as coisas mesmas” (ST, p. 153). A andlise da compreensio, na analitica do ser-a cotidiano, ja supunha o método, mas com esta “clarificagio da compreenstio mesma se garantiu a fransparéncia metédica do processo compreensivo-explicativo da interpre- tagao do ser”, diz Heidegger A p. 230, ao encerrar a analitica da cotidianeidade. As raz6es da andlise da compreensao na primeira segdo de ST, contudo, nao s4o puramente tematicas, nelas se esconde um interesse metodologico, que é explicitamente referido no §63 No inicio do § 45, p. 232, a situag&o hermenéutica é introduzida como conceito va- lido para © método fenomenoldgico que Heidegger jé aplicara em toda a primeira seco, pressupondo-o. A situagdo hermenéutica é ligada com a aquisigdo prévia, vista prévia e antecipagao proprias da explicitago (interpretagdo). Estes trés componentes da explici tagio sdo chamados de “pressupostos”. Destes “pressupostos” fala o fildsofo, no fim do § 62, p. 310, como passagem para o parégrafo propriamente metodolégico (§ 63) no corpo de Ser e Tempo. “Mas nao est na base da interpretagdo ontolégica da existéncia Go ser-ai até aqui realizada uma determinada concepgao Gntica de existéncia auténti um ideal fatico do ser-af? E, realmente, assim. Esse fato no deve nao apenas no ser n gado e confessado obrigatoriamente; ele deve ser compreendido, a partir do objeto tem: tico de investigagdo, em sua positiva necessidade. A filosofia nao deverd jamais querer negar seus “pressupostos”, mas também nao apenas confess4-los. Ela compreende os pressupostos e conduz juntamente com eles, para um radical desdobramento aquilo para que so pressupostos. Esta fungao tem a consideragéo metédica agora exigida” (p. 310). No § 63 descreve, entao, o fildsofo “a situagdo hermenéutica conquistada para a interpretagdo do sentido do ser da preocupago e o cardter metédico da analitica existen- cial em geral”. O que sempre suscita estranheza ao se reler este par4grafo t4o surpreen- dente é 0 fato de que nele nio se faz referéncia alguma ao § 7, em que o método fenome- noldgico é provisoriamente exposto. Os dois §§ tém, sem diivida nenhuma, vinoulos inegaveis. Mas ha uma diferenga que me parece nao ser casual e que dé outra dimensio a0 § 63. Enquanto o § 7 posto na introdugio a Ser e Tempo, o § 63 surge no corpo da exposigao sistematica da analitica existencial. Foi 0 objeto mesmo da andlise que impos “a marcha da investigagio uma parada”? (p. 303). Heidegger parece-me dar uma res- posta fugidia, mas suficiente para apontar na diregdo da questo que nos interessa: no § 61, que introduz o capitulo sobre “o auténtico poder-ser-total do ser-ai e a temporalidade como 0 sentido ontoldgico da preocupagio”, o fildsofo fala do “esbogo do passo metédi- co” (p. 301). “Método auténtico se funda na adequada visio antecipadora sobre a consti tuigdo fundamental do ‘objeto’ a ser explorado, respectivamente, da area do objeto. Auténtica considerag’io metédica — que certamente deve ser distinguida da vazia dis- cussio da técnica — da, por isso, ao mesmo tempo esclarecimento sobre o modo de ser do ente tematizado” (p. 303). As referéncias do § 7 ao ser-ai (ente tematizado) so raras e exteriores. Tem-se a impressio de que aquele paragrafo serve muito antes como partici pagio no debate sobre o que é fenomenologia. O verdadeiro carater do método fenome- nologico nao pode ser explicitado fora do movimento ¢ da dindmica da propria andlise a, 290 HEIDEGGER do objeto. O ser-ai impde, por causa de sua estrutura particular, que a consideragio metédica se realize dentro da sistematica analise de seu ser e sentido. A introdugio ao método fenomenolégico é, portanto, somente possivel na medida em que de sua aplica- 0 se obtiveram os primeiros resultados. Isto constitui sua ambigiiidade e sua intrinseca circularidade. A “constituigo fundamental do objeto” ¢ o “modo de ser do ente temati- zado” esto implicados na exposi¢ao do método. Mas, como a “constituigdo e 0 modo de ser” do ser-ai sé resultam de uma andlise existencial, deve primeito ser suposto 0 méto- do. Sua explicitagao s6 teré lugar no momento em que tiver sido atingida a situag%o hermenéutica necesséria. Uma comparagao poderd esclarecer a questo. Wittgenstein diz na sentenga niimero 6.54 de seu Tractatus: “Minhas proposigdes se elucidam do seguinte modo: quem me entende, por fim as reconhecera como absurdas, quando gracas a elas — por elas — tiver escalado para além delas. (E preciso por assim dizer jogar fora a escada depois de ter subido por ela.)” (Traducdo de J. A. Giannotti.) Tornadas claras as proposigdes obs- curas com 0 ausilio das andlises do Tractatus, joga-se fora a escada que conduziu para a clareza. A filosofia nao trata propriamente de conteddos. Ela importa como caminho, como método. Uma vez que 0 método prestou seu servigo, torna-se inttil. Sd se fala daquilo de que se pode falar claramente, “Deve-se calar sobre aquilo de que nao se ¢ capaz de falar”, é a diltima sentenga do Tractatus. A postura de Heidegger, em Ser e Tempo, é absolutamente diferente. O filosofo pre- para provisoriamente seu método para penetrar na analitica existencial. Uma vez reali zada parte da analise, isto €, atingida a situagdo hermenéutica que permite determinar o sentido do ser do ser-ai, 0 fildsofo para. Descobre que 0 método se determina a partit da coisa mesma. A escada para penetrar nas estruturas existenciais do ser-ai é manejada pelo proprio ser-ai e nao pode ser preparada fora para depois se penetrar no objeto. Nao ha propriamente escada que sirva para penetrar no seu “sistema”. A escada ja esta impli cada naquilo para onde deveria conduzir. O objeto, o ser-ai, traz consigo a escada, Ha uma relagdo circular, Somente subimos para dentro das estruturas do ser-ai, porque ja nos movemos nelas. E apenas uma questo de explicitagao, A anilise do ser-af esta sus- pensa no ar. O ser-ai se levanta pelos cabelos, (A analogia com o Baro de Miinchhausen no @ ironia; quer apenas iembrar que a circularidade — absurdo e tautologia aparentes faz parte da condigio humana.) Apés a andlise da morte, da consciéncia ¢ da culpa (na segunda segdio de ST), Hei- degger atingiu a posigdo metédica, isto é, a situag%o hermenéutica. necesséria para a explicitagio do sentido do ser do ser-ai, que é propriamente a meta perseguida em toda a andlise anterior. Agora o método aicangou a necessiria profundidade e expresso para- lelamente a analise para que serviu. “O ser-ai esta colocado originariamente dentro da aquisi¢ao prévia, isto é, sob o ponto de vista de seu auténtico poder-ser-total; a vista pré- via condutora, a idéia da existéncia, conquistou sua determinidade através da clarifica- ¢40 do seu mais auténtico poder-ser; com a estrutura ontolégica do ser-af concretamente elaborada, tornou-se téo distinta sua particularidade ontolégica, em face de todos os entes puramente subsistentes, que a antecipacio sobre a existencialidade do ser-ai pos suia uma articulagio suficiente para conduzir com seguranga a elaboragéo conceitual dos existenciais” (p. 311). Este resumo do que foi, até ent&o, atingido mostra que a antecipagio realizada pelo fil6sofo, ao iniciar a analitica da cotidianeidade, realmente conduziu a um ponto em que ‘0 método recebe, na verdade, sua transparéncia a partir de dentro da propria marcha da analitica. Por isso a exposigao do método sé podia ser proviséria ¢ exterior, proviséria SOBRE A ESSENCIA DO FUNDAMENTO. 291 porque exterior. “O caminho até ai percorrido” (311), analisando o ser-ai, revelou tam- bém por que o método fenomenoldgico foi, de inicio, provisério. Heidegger expde como teve que lutar com o primado da tendéncia para o encobrimento que reside no ser-af. Era preciso romper a atitude da fuga e da recusa de se assumir que caracteriza seu ser coti- diano. “Metodicamente se exigiu” (313), para isto, “violéncia”. S6 apés tal “violéncia” (311 ¢ 313), que repousava sobre uma hipotese, 0 método intimamente ligado ao ser-aé e & pré-compreensio de ser teria conquistado seu estatuto fundamental. $6 a descoberta da tendéncia para o encobrimento e a fuga propria ao ser- af daria razdio ao método, antes apenas esbogado. A ambigilidade e complexidade do método fenomenologico heideggeriano se fun- dam certamente na hegemonia da tendéncia para o encobrimento; mas tal tendéncia é destacada porque somente assim se pode instaurar uma distdncia entre o fenémeno no sentido vulgar ¢ o fenémeno no sentido fenomenoldgico. entre os miiltiplos entes ¢ o ser. Pois nao se trata de aleangar o ser por um processo de abstragaio (nao & possivel, porque 4 acompanha e condiciona a abstragdo), mas a partir do ser-af, das estruturas origind- rias que o constituem. E este esta, primeiro, e 0 mais das vezes, envolvido na articulagao dos entes, ocupado com a sua familiaridade. Assim o método fenomenologico heidegge- riano, em contraste com todos os métodos que se propdem em filosofia, deve se adequar um fendmeno que s6 se mostra sob o velamento. Distancia-se, dessa forma, tanto do método do positivismo ldgico, que deliberadamente foge das andlises de seus pressupos- tos, para optar por um sistema fechado de referéncias, em que predominam a univoci dade e a clareza; como também do método dialético que, de antemio, aposta numa tota- lidade, a partir da qual suas proposicdes se iluminam e na qual se apdiam, mantendo, contudo, ao nivel em que so enunciadas, uma contradigdo que apenas se resolve no todo. A ambigiiidade das proposigdes basilares do pensamento heideggeriano no nasce de algum seereto amor ao crepuscular e nebuloso. Nem amplia o fildsofo 0 conceito de verdade como desvelamento, até o indefinido, porque julgue supérflua a verdade que se legitima e define operacionalmente, Nem pretendem suas tiradas proféticas e afirmagoes enfaticas abafar as conquistas delimitadas ¢ restritas de uma linguagem que lida com moeda mitida e s6 da passos em regides jé iluminadas. A clareza com que viu a fixidex de um pensamento ontoldgico e, contudo, 2 conviegao de que de algum modo a ontologia ainda era necessiria fizeram-no enveredar pelo caminho da radicalizagdo fenomenols- gica, O fato de seu método fenomenoldgico ser sustentado entre as duas alternativas metodol6gicas atuais torna sua compreensio mais dificil, mas nao o dispensa de sua contribuigdo necessaria. 6. Numa anélise quase linear da estrutura e do movimento da interrogagao heideg- geriana, pode-se isolar as instncias fundamentais que determinam esta ambigiiidade que vimos ligada a seu objeto. Nao foram preocupagdes formais e procura de critérios de cla- reza que impeliram o filésofo para a investigagao. Séo antes poderosas intuigdes, que, teimosamente perseguidas, dao-the o material para seu método e suas analises ontoldgicas. Antes do aparecimento de Ser e Tempo, analises de Aristoteles lhe revelaram, como impacto decisivo, o conteddo e a carga ambivalentes da palavra alétheia. Nao que 0 fild- sofo tirasse deste semantema, por um passe de magica, toda a temdtica. Mas a interpre- tagio polarizadora de alétheia, como velamento que é negado, como desvelamento sem- pre referido a velamento, deu-lhe, como confessa, 0 impulso decisive para a 292 HEIDEGGER radicalizagio da fenomenologia no sentido husserliano, elaborando seu método fenome- nolégico. Este joga implicitamente com os dois pélos da alétheia: aquilo que é preciso ser desvelado est primeiramente e 0 mais das vezes velado. A fenomenologia recebe sua ambigilidade da alétheia. Enquanto utilizada para a analitica da faticidade e da existén cia, a fenomenologia se torna hermenéutica, passa a se movimentar num e/reulo herme- néutico. Esta circularidade, que no é apenas caracteristica da compreensio, mas, atra- vés dela, do préprio ser-ai, também apresenta uma ambigiiidade que acompanha toda a obra de Heidegger. Pelo método fenomenoligico se desvendou esta circularidade, que passa, por sua vez, a possibilitar uma verdadeira penetrago na fenomenologia. A estru tura circular da interrogagao heideggeriana leva-o ao que chamaré de viravolta (Kehre) Na estrutura circular do ser-ai se revela que a andlise do ser-ai pressupde uma compreen- sio do ser; mas uma compreensao do ser supSe, quando quer ser explicita, uma analitica do ser-af. A Kehre é um movimento pelo qual o filésofo, uma vez realizada a mediagio pela analftica, se volta para o ser ¢ a partir dele analisa o homem. A estrutura circular do ser-ai, de inicio reduzida ao ambito da analitica, se converte em movimento — na histé- tia de um pensamento — pelo qual este se volta para o ser. Circulo hermenéutico e Kehre nao se sucedem na obra do filésofo, mas se entrelagam, destacando-se um ow outro, conforme se queira enfatizar 0 problema do ser-ai ou o problema do ser. Se apos © movimento da Kehre, o filésofo retorna como que sua primigénia inspiraco, que re- side na alétheia, no se pode falar de arbitrariedade. £ ainda o impulso originario da alé- theia, como velamento e desvelamento, que comanda a reflexdo do tiltimo Heidegger Assim, alétheia, fenomenologia, ctreulo hermenéutico, viravolta, podem set designe dos: 0 momento de eclosio, 0 método, a estrutura e 0 movimento da interrogagao heideggeriana.’ Com isto apenas se assinala a dimensio formal da questo para a qual se quis chamar a atengdo pelas observagdes que atrés foram feitas. Mas os quatro ele- mentos formam uma unidade pela qual se pode apanhar o pensamento do filisofo como um todo disseminado nas miltiplas andlises fragmentarias. Neste todo, 0 método fenomenoldgico nao pode ser destacado com um instrumento a parte. Se ele conduz o todo, também dele recebe o que o individualiza como método. E que dizer da atualidade do método fenomenolégico? Atual é o resultado: a obra do filésofo. Nao se pense que a fenomenologia possa ser destacada da coisa ¢ aplicada com eficiéncia em qualquer area da realidade. O projeto de Heidegger e seu método slo inseparaveis. Esto ai como bloco erratico que desafia a superficialidade com que se fazem coisas necessarias em filosofia, nos dias que correm. Muito aprendemos da obra heideggeriana; e muito esta nela ainda por ser decifrado. Estranhamente, entretanto, o caminho de Heidegger é solitério. Os que quiseram seguir suas pegadas tornaram-se epf- gonos, apenas epigonos. Nao hé um pensador que tenha atingido porte original repetin. do-o, quer retomando seu objeto, quer aplicando seu método. Heidegger é um dos gran- 4 caminho. Talvez seja destino das grandes filosofias serem muito tempo, serem “de ontem” e com isto guardarem sua atualidade; exigem sua ultrapassagem e para ela preparam caminho. pensadores que podem alimentar-nos, mas que nos desafiam a seguir o proprio ceaieadas por seu clidade, porque * Ver 9 trabalho de livre-docéncia do isadwior: Compreensdo ¢ Finitude — Estr Interrogacao Heideggeriana, Etica Impressora, Porto Alegre. 1967. (N. do T.) fe Movimento da Prefacio a terceira edigéo (1949) © tratado Sobre a Esséncia do Fundamento surgiu no ano de 1928 simultanea- mente com a prelegdo Que é Meta/isica? Esta reflete sobre o nada, aquela nomeia a dife- renga ontologica. ‘O nada é 0 ndo do ente, e, deste modo, o ser experimentado a partir do ente. A dife. renga ontolbgica ¢ 0 ndo entre ente ¢ ser. Mas, assim como ser, enquanto 0 do com rela- ¢H0 ao ente, no é um nada no sentido do nihil negativum, tampouco é a diferenga, enquanto 0 ndo entre ente ¢ ser, somente o produto de uma distingao do entendimento (ens rations). Aquele ndo nadificante do nada ¢ este ndo nadificante da diferenga no sio, certa mente com a prelegdio Que é Metafisica? Esta reflete sobre o nada, aquela nomeia a dife- légico do ser do ente, faz parte de uma comum-unidade, Este mesmo € 0 digno de ser pensado, que ambos 0s escritos, propositalmente mantidos separados, procuram aproxi mar de uma determinagio, sem lhe estarem A altura. Aqui vai um convite para que todos os que ainda meditam comecem finalmente a se aprofundar, pela reflexdo, nesta mesma questo, que ha dois decénios por isto espera. Sopre A ESsENCIA DO FUNDAMENTO, Aristételes assim resume sua participagao dos miltiplos significados da palavra arché: pasén mén oun koindn t6n archén 16 préton einai héthen @ éstin & gignetai & gigndskerai.? Com isto sio postas em relevo as modificagdes daquilo que costumamos designar “fundamento”: fundamento da esséncia (Was-sein), da existéncia (Dass-sein) ¢ da verdade (Wahr-sein), Mas, além disso, ainda se procura captar aquilo em que estes “fundamentos” como tais concordam. Seu koindn é 10 proton héthen, o primeiro, a partir de que... Ao lado desta triplice articulago dos “principios” supremos, se encontra uma quadripartigao do aftion (“causa”) em hypokeimenon, 16 tt en einai, arche tés meta- bolés e how héneka,® que, na posterior historia da “metafisica” e “logica”, mantiveram seu papel de guias. Ainda que se reconhegam os pénta td aftia como archai, a conexio interna entre a partigdo e seu principio permanece obscura. E é de duvidar que se possa encontrar a esséncia do fundamento pela via de uma caracterizago daquilo que é “comum” aos “modos” de “fundar”, ainda que nao se deva desconhecer que nisto reside © impulso para uma origindria elucidagio de fundamento em geral. Aristételes também nfo se satisfez em ver as “quatro causas” apenas como ajuntadas, mas se empenhou na compreensio de sua conexdo e numa fundamentagao do nimero de quatro. Isto revela, tanto sua andlise exaustiva em Fisica B, como, antes de tudo, também a discussio “hist6- rico-problematica” da questio das “quatro causas” em Merafisica A 3-7, que Arist6teles conclui com a seguinte constatagao: Adti mén oun orthds didristai pert t6n attion kat pésa kat pota, martyrein eotkasin hemin kat hoiitoi pantes, ou dyndmenoi thigein diles aitias, pros dé toiitois hdti zetetéai hai archat é hotitos hépasai é tind wépon ‘oiotiton, déton.* E preciso deixar aqui de lado a histéria pré e pos-aristotélica do problema do fundamento, © No que se refere & projetada colocagao do problema seja, contudo, lem- brado o seguinte: através de Leibniz o problema do fundamento é conhecido na forma da questio do principium rationis sufficientis. Monograficamente foi Chr. A. Crusius 0 pri- meiro que tratou do “Principio da Razdo” em sua Dissertatio philosophica de usu et limitibus principit rationis determinantis vulgo sufficientis (1743) ° , e, por Gtimo, Scho- penhauer em sua dissertago “Sobre a Quadrupla Raiz do Principio da Razdo Suficien: ® Metafsica, Delta 1, 1013 8 178.(N. do A) ® Op. cit, Delta 2, 1013b 16.88. (N.d0 A.) © Op.cita, A 7, 9886 1685. (N. do A.) * O-que a lingua alemi exprime com o mesmo termo Grund deve ser expresso no vernéculo umas vezes por Jfundlamento, onras por razdo.{N. do T.) ® Vide Opuscula philosophico-theologica antea seorsum edita nune secundis curis et copiose aucta. Lipsiae, 1750, p. 152 ss.(N.do A.) 296 HEIDEGGER te” (1813). Se, porém. o problema do fundamento esta imbricado com as questdes cen- trais da metafisica em geral, entdo deve também estar vivo mesmo la onde nao é tratado expressamente na forma conhecida. Assim Kant, aparentemente, dedicou interesse mini- mo ao “principio da raz&o”, mesmo que o analise tanto no comego ® de seu filosofar como pelo fim.* E. contudo, situa-se ele no centro da Critica da Razdo Pura.'° De nao menos importéncia. porém, sao, para o problema, as Investigagdes Filosdficas sobre a Esséncia da Liberdade Humana e os Objetos com Ela em Conexéo de Schelling (1809)."* Ja a referéncia a Kant e a Schelling torna problematico se o problema do funda- mento coincide com o do “principio da razio” ou se é com ele, quando muito. posto. Se este no € 0 caso, entéo o problema do fundamento precisa ser primeiro levantado, 0 que no exclui que para isto uma discussio do “prinefpio da razio” possa dar motivos proporcionar uma primeira indicagio. A exposig&o e andlise do problema € de igual importincia obtengdo e delimitagao do émbito, em cujo seio se tratara da esséncia do fundamento, sem a pretensio de po-lo, com um sd golpe, diante das othos. Como sendo tal Ambito sera evidenciada a iranscendéncia. Isto quer. a0 mesmo tempo, dizer: ela mesma sera justamente determinada de modo mais originario amplo através do pro- biema do fundamento. Toda a clarificagao da esséncia deve, enquanto flosofante, quer dizer, como um esforgo intimamente finito, testemunhar também sempre necessaria- mente a desordem (Unwesen) que 0 conhecimento humano insinua em qualquer esséncia (Wesen)."* Como consegiiéncia do que foi dito, resultow a articulagdio do que segu 1 — O problema do fundamento. 2 — A transcendéncia como ambito da questdo da esséneia do fundamento. 3 — Sobre a esséneia do fundamento. ? Segunda edigdo. 18447: tereeira edigdo. drigida por Jul, Frouenstédt, 1864. (N.do A.) © Principiorum primorumn cognitionis metaphu'sicae nova dilucidatio, 1758.(N. do A.) ° Sobre uma descoberta, segundo a qual toda a critica nova da razio pura deverd se rornar dispensével atra v6 ca mais antiga, 1790.(N. do A.) *0 Vide mais adiante a andlise de Kant. (N, do A.) * Vide Obras, vol. 7, p. 333-416.{N. do A.) ' Ainda que Wesen designe. de per si, esséncia e Cinweser tndo-esséncia) desordem, Heidegger carrega os dois termos com um sentido fenomenolégieo. De acordo com sua compreensiio do método fenomenologico, passam a (er forga verbal. Wesen significard entdo: acontecer. imperar. revelar-se, a manifestagio fenomeno- Nbgicas Unwesen (treiben) frustrar e perturbar © acontecer. o imperar. dissimulagio do que de si se revela, oeultagio “Fenomenologica”. Wesen e Umvesen exprimem. assim, de maneiza decidida, umm trago basico do pensamento teideggeriano. Apontam sobretudo também para a superacio da tradigao essencialista. A nova earga semantica os transforma numa chave (ou lave) que desloca toda a linguagem do filSsofo para dentro de um novo horizonte conotador. Todo 0 contetido ontol6gico tradicional se torna fenomenokigico. Ontolo: gia se torna fenomenologia. Na nova postura se revela, jé desde o inicio, seminalmente, a destruiglo, trans- Formagao, repetisdo em outro nivel. de toda a metafisica ocidental. Esta violenta metamorfose das palavras transfere toda a finguagemt filosofiea para um novo comegos e dele emerge a impulso do pensamento existen- cial como Heidegger 0 compreende. Quem I8 entio as expressdes esséncia da verdade, esséncia do funda mento, deve saber transpor-se para dentro deste nova situagio. Toda a proiblemAtica do fundamento é arran cada de sua petspectiva metafisica essencialisia, Fala-se de fundamento nio mais buscando razSes, causas, mas descobrindo-se nele um acontecer originério ligado a transcendéneia, melhor, & existéncia, a0 Esta subversio das estruturas nodais da ontologia tradicional deixa entrever o impacto radical e. paralela mente, a dificuldade de compreensio da pretensio heidegseriana. Nesta passagem o filésofo aponta a “de- sordem”, a dissimulagao do acontecer do fundamento, provocads pelo conhecimento humano finito. Mais adiante este processo sera atribuido também & liberdade finita, O méiodo fenomenoliico ocupa-se em des- vendar o enigma do velamento ¢ desvelamento que assim acontecem, (N. do T.) SOBRE A ESSENCIA DO FUNDAMENTO 297 1. O problema do fundamento 0 “principio da razdo* parece, como um “prinefpio supremo”, recusar de antemao algo tal como problema do fundamento. E, porém, entio, o “principio da razio” um enunciado sobre o fundamento como tal? A formula vulgar e abreviada 6: nihil est sine ratione, nada & sem razo (fundamento). Na transposigao positiva isto quer dizer ens habet rationem, todo ente tem uma razso (fundamento). A proposigao enuncia sobre 0 ente ¢ isto do ponto de vista de algo como “razao” (fundamento). Contudo, aq constitui a esséncia do fundamento nao é determinado nesta proposigao. Isto é pressu- posto para esta proposigdo como uma “representagdo” evidente por si mesma. O “supre- mo” principio da razio apela, ainda de uma outra maneira, para o uso da esséncia ndo esclarecida do fundamento; pois 0 especifico carter proposicional desta proposi¢ao como proposigao (principio) “fundamental” (da razio), a principialidade deste princi- pium grande (Leibniz) s se pode, contudo, delimitar, originariamente, tomando como referencia a esséncia do fundamento. Desta maneira, o “principio da razo” é questionavel, tanto no seu modo de ser pro-posto, como no “‘contetido” por ele posto, caso a esséncia do fundamento possa ¢ deva ser questionada além de uma “representagao” indeterminada ¢ geral. Mesmo que o principio da razio nfio dé nenhum esclarecimento sobre o fundamento como tal, pode, no entanto, servir como ponto de partida para a caracterizacdo do pro: blema do fundamento. Certamente o principio — ainda prescindindo por completo dos problemas ja levantados — esta sujeito a multiplas interpretagdes ¢ apreciagdes. Para o que agora se tenciona convém, contudo, tomar o principio na forma e no papel, que, pela primeira vez. Leibniz expressamente Ihe atribuiu. Mas justamente neste caso € controver tido se o prineipium rationis vale para Leibniz como um principio “l6gico” ou um pring pio “metafisico”, ou se ambas as coisas, Enquanto confessamos sem rodeios nada saber de exato, nem do conceito de “I6gica” nem do de “metafisica”, nem mesmo da “relagiio” entre ambos, permanecem as discusses da interpretagao hist6rica de Leibniz sem seguro fio condutor e, por conseguinte, filosoficamente infecundas. De mancira alguma podem elas prejudicar aquilo que, no que segue, é aduzido de Leibniz sobre o principium ratio- nis, Baste a citagao de uma passagem capital do tratado Primae veritates:'? Sempre igitur praedicatum seu consequens inest subiecto seu antecedent; et in hoe ipso consistit natura veritatis in universum seu connexio inter terminos enuntiationis, ut etiam Aristoteles observavit. Et in identicis quidem connexio illa atque comprehensio praedicati in subiecto est expressa, in reliquis omnibus implicita, ac per analysim notio- num ostendenda, in qua demonstratio a priori sita est. * Cf, Opuseules et Fragments Inédits de Leibniz, ed, L. Couturat, 1903, p. $18 ss. Cf. também Revue de Métaphysique ¢¢ de Morale, wom X (1902) p. 2 ss. —~ Couturat atribui a este tratado uma significagio part: cular, porque Ihe deve fornecer uma prova decisiva para sua tese, “que la métaphysique de Leibniz repose toute entiére sur Ia logique". Se uso como base para a andlise que segue este tratado, isto nfo significa nenhuma concordineia, nem com a interpretagio que Couturat dele faz. nem corm sua concepeaio de Leibniz, nem mesmo com seu conceito de logica. Este tratado fala antes da mancira mais incisiva contra a origem do principium rationis da lgica, sim, em gecal contra a maneita de questionar se em Leibniz a primazia € reser vada & légica ou & metafisica. Uma tal possibilidade de perguntar torna-se lébil justamente com Leibniz ¢ re cebe com Kant seu primeiro abalo, ainda que sem efeitos posieriores. (N. do A.) 298 HEIDEGGER Hoc autem verum est in omni veritate affimativa universali aut singulari, necessaria aut contingente, et in denominatione tam intrinseca quam extrinseca. Et latet hic arca- num mirabile a quo natura contingentiae seu essentiale discrimen veritatum necessarium et contingentium continetur et difficultas de fatali rerum etiam liberarum necessitate tollitur. Ex his propter nimiam facilitatem suam non satis consideratis multa consequuntur magni momenti. Statim enim hie nascitur axioma receptum, nihil esse sine ratione seu nullum effectum esse absque causa. Alioqui veritas daretur, quae non potest probari a priori, seu quae non resolveretur in identicas, quod est contra naturam veritatis, quae semper vel expresse vel implicite identica est. Leibniz, de um modo que Ihe é caracterfstico, da aqui, junto com a determinagio das “primeiras verdades”, uma determinagao daquilo que verdade primeiramente e em geral é, ¢ isto com a inteng&o de demonstrar 0 “nascimento” do principium rationis da natura veritatis, E, justamente nesta empresa, tem ele por necessario apontar para o fato de que a aparente evidéncia de conceitos tais como “verdade”, “identidade”, impede uma clarificagio dos mesmos, que seria suficiente para apresentar a origem do principium rationis e dos outros axiomas. Mas, para a presente consideragao, no estd em questo a dedugio do principium rationis, mas a explicagio articuladora do problema do funda mento. Em que medida oferece a passagem citada um fio condutor para isto? O principium rationis subsiste porque sem sua subsisténcia haveria entes que deve- riam ser sem fundamento (sem razao). Isto quer dizer para Leibniz: haveria algo verda. deiro que se oporia a uma reduc a identidades, haveria verdades que deveriam infringir a “natureza” da verdade. Ja que isto € impossivel e a verdade subsiste, por isso também © principium rationis tem subsisténcia, porque se origina da esséncia da verdade. A esséncia da verdade, porém, reside na connexio (symploké) de sujeito e predicado. Leib- niz concebe, por conseguinte, a verdade desde 0 comego e com expressa, ainda que no justificada, referéncia a Aristételes, como verdade da enunciag&o (proposig&o). Deter- mina o nexus como “inesse” do P no S, 0 “inesse”, porém, como “idem esse”. Identidade como esséncia da verdade proposicional nao designa aqui certamente mesmidade vazia de algo consigo mesmo, mas unidade, no sentido da harmonia (unio) do que faz parte de uma comum-unidade. Verdade significa, por conseguinte, acordo que somente é tal enquanto con-cordincia com aquilo que na identidade se manifesta como unido. As “verdades” — enunciagSes verdadeiras — recebem sua natureza por referéncia a algo em razdo do qual podem ser acordos. Em cada verdade a unido que separa é 0 que é, sempre em razo de. . ., isto é, como algo que se “fundamienta”. Na verdade reside, por conseguinte, uma referéncia essencial a algo semelhante como “fundamento””. Isto leva 0 problema da verdade necessariamente para a “proximidade” do problema do funda- mento. Por isso, quanto mais originariamente nos apoderarmos da esséncia da verdade tanto mais urgente se tornard o problema do fundamento, Pode-se, entretanto, conseguir algo ainda mais originario sobre a delimitagao da esséncia da verdade como carater da enunciagio? Nada menos que a compreensio de que esta determinagao essencial da verdade — seja formulada como for em particular — &, por certo, ineludivel, mas, todavia, derivada.'* A concordancia do nexus com o ente €, como conseqliéncia, seu acordo, ndo tornam como tais primeiramente acessivel o ente. '* Cf. M, Heidegger, Ser ¢ Tempo 1, 1927 (Anuério de Filosofia e Pesquisa Fenomenoldgica, vol, VII), § 4, pp. 212-230; sobre a enunciagao § 33, p. 154 ss. — A paginagdo conearda com a edigio em separado da obra. (N. do A.) SOBRE A ESSENCIA DO FUNDAMENTO 299 Esie deve, muito antes, como possivel objeto (Wontiber) de uma determinagio predica- tiva, estar manifesto antes desta predicago e para ela. A predicagio deve, para tornar-se possivel, radicar-se num Ambito revelador, que possui carater ndo predicativo. A verdade da proposigao esta radicada numa verdade mais origindria (desvelamento), na revelagao antepredicativa do ente que podemos chamar de verdade dntica. De acordo com as diver- sas espécies e areas do ente modifica-se o cardter de seu possivel grau de revelagao e dos modos de determinago explicativa que dele fazem parte, Assim se distingue, por exem: plo, a verdade do puramente subsistente (por exemplo, as coisas materiais) como desco- berta, especificamente da verdade do ente que nds mesmos somos, da abertura, do ser-ai existente.'® Por mais variadas que sejam as diferengas de ambas as espécies de verdade Entica, para toda revelago antepredicativa vale o fato de que o Ambito revelador nunca possui, primariamente, o cardter de uma pura representagao (intuigao), nem mesmo na contemplagiio “estétiea”. A caracterizagao da verdade antepredicativa como intuigdo se insinua com facilidade pelo fato de a verdade Sntica, ¢ aparentemente a verdade propria- mente dita, ser determinada como verdade proposicional, isto 6, como “unido da repre sentagdo”. O mais simples em face desta é, entéo, um puro representar, livre de toda unio predicativa, Este representar tem, ndo hd divida, sua funcdo propria para a objeti- vaedo do ente, certamente, entdo ja sempre necessariamente revelado. A revelagao dntica mesma, porém, acontece num sentir-se situado em meio ao ente. marcado pela disposi- gio de humor, pela impulsividade e em comportamentos em face do ente, tendéncias ¢ volitivos que se fundam naquele sentimento de situagdo.'® Contudo, mesmo estes comportamentos nao seriam capazes de tornar acessivel 0 ente em si mesmo, interpre tados como antepredicativos ou como predicativos, se sua ago reveladora nao fosse sempre antes iluminada e conduzida por uma compreensio do ser (constituigdo do ser: que-ser e como-ser) do ente. Desvelamento do ser é 0 que primeiramente possibilita 0 grau de revelagdo do ente. Este desvelamento como verdade sobre o ser é chamado ver- dade ontolégica. Nao ha davida, os termos “ontologia” e “ontoldgico” so multivocos, ¢ de tal maneira que, justamente. escondem o problema propriamente dito de uma onto: logia, Ldgos do én significa: o interpelar (légein) do ente enquanto ente, significa, porém, a0 mesmo tempo o horizonte (woraufhin) em diregdo do qual o ente é interpelado (legd- ‘menon). Interpelar algo enquanto algo nao significa ainda necessariamente: compreender © assim interpelado em sua esséncia. A compreensdo do ser (légos num sentido bem amplo), que previamente ilumina e orienta todo © comportamento para com 0 ente, néo &nem um captar 0 ser como tal, nem um reduzir ao conceito o assim captado (légos no sentido mais estrito — conceito “ontoldgico”). A compreensao do ser, ainda nao redu- zida a0 conceito, designamos, por isso, compreensio pré-ontolégica ou também ontold- gica, em sentido mais amplo. Conceituar o ser pressupée que a compreensio do ser se tenha elaborado a si mesma e que tenha transformado propriamente em tema e problema © ser nela compreendido, projetado em geral ¢ de alguma maneira desvelado. Entre compreens&o pré-ontoldgica do ser e expressa problematizagéo da conceituagao do ser, ha muitos graus. Um grau caracteristico é, por exemplo. o projeto da constituigao do ser do ente, através do qual &, concomitantemente, delimitado um determinado campo (natu- reza, historia) como area de possivel objetivagao através do conhecimento cientifico. A prévia determinagao do ser (que-ser ¢ como-ser) da natureza em geral se fixa nos “con- ceitos fundamentais” da respectiva ciéncia. Nestes conceitos so. por exemplo, delimi- tados espaco, lugar, tempo, movimento, massa, forga, velocidade; todavia, a esséncia do *® Cf, dbidem $60, p. 295 ss.(N. do A.) 1 Sobre “sentimento de situagao”, ef. ibidem § 29, p. 134 ss.(N. do A.) 300 HEIDEGGER tempo, do movimento. no propriamente problematizada. A compreensio ontold do ente puramente subsistente ¢ aqui reduzida a um conceito, mas a determinago con- ceitual de tempo lugar, etc., as definigdes, so reguladas, em seu ponto de partida e amplitude, unicamente pelo questionamento fundamental que na respectiva ciéneia é diri- gido ao ente. Os conceitos fundamentais da ciéncia atual ndo contém, nem ja os “auténti- cos” conceitos ontoldgicos do ser do respectivo ente, nem podem estes set simplesmente conquistados por uma “adequada” ampliagéio daqueles. Muito antes, devem ser conquis- tados 0s originarios conceitos ontoldgicos antes de toda definigdo cientifica dos concei- tos fundamentais, de tal modo que, a partir daqueles, se torne possivel estimar de que maneira restritiva e, em cada caso, delimitadora a partir de um ponto de vista, 0s concei- tos fundamentais das ciéncias atingem o ser, somente captavel em conceitos puramente ontoldgicos. O “fato” das ciéncias, isto é, 0 contetido fatico de compreens&o do ser que elas necessariamente encerram, como qualquer comportamento para com o ente, nao é nem insténcia fundadora para o a priori, nem a fonte do conhecimento do mesmo, mas € apenas uma possivel e motivadora orientagao que aponta para a originaria constituigao ontolégica, por exemplo, de histéria ou de natureza, orientago que ainda, por sua vez, deve permanecer submetida a constante critica, que ja recebeu os pontos que tem em mire da problematica fundamental de todo 0 questionamento do ser do ente. Os possiveis graus e derivagdes da verdade ontolégica no sentido mais amplo traem, a0 mesmo tempo, a riqueza daquilo que, como verdade originaria, fundamenta toda a verdade éntica.'” Desvelamento do ser é, porém, sempre, verdade do ser do ente, seja este efetivamente real ou nao. E vice-versa, no desvelamento do ente jé sempre reside um desvelamento de seu ser. Verdade Sntica ¢ ontolégica sempre se referem, de maneira diferente, ao ente em seu ser ¢ ao ser do ente. Elas fazem essencialmente parte uma da outra em razo de sua relagao com a diferenca de ser e ente (diferenga ontoldgica). A esséncia éntico-ontolégica da verdade em geral, desta maneira necessariamente bifurca- da, somente & possivel junto com a irrupgao desta diferenca. Se, entretanto, de outro lado, 0 elemento caracteristico do ser-ai reside no fato de se relacionar com o ente compreendendo o ser, entio o poder distinguir, em que a diferenga ontoldgice se torna fa- tica, deve ter langado a raiz de sua propria possibilidade no fundamento da esséncia do ser-ai. A este fundamento da diferenga ontoldgica designamos, jé nos antecipando, frans- cendéncia do ser-a Se se caracterizar todo 0 comportamento para com o ente como intencional, entdo a intencionalidade ¢ somente possivel sobre o fundamento da transcendéncia, mas ela nao é nem idéntica a esta, nem ela mesma a possibilitagdo da transcendéncia. '* Até aqui se tratou de mostrar, em poucos passos. mas essenciais, que a esséncia da verdade deve ser procurada mais originariamente do que @ tradicional determinagao *7 Quando hoje se toma em consideragio “ontologia” ¢ “ontoldgico” como cliché e nome para movimen- tos, entio tais expressdes siio usadas com bastante superficialidade e com desconhecimento de qualquer problemitica. E-se da opiniao false de que ontologia como questionamento do ser do ente significa “postu .° “realista” (ingénua ou ica) em oposigio a “idealista”. Problematica ontoldgica tem tao pouco a ver com “realismo” que justamente Kant em e com seu questionamento ‘ranscensdental pode realizar o primeiro ‘asso decisivo para uma expressa fundamentacao da ontologia, desde Platio ¢ Arist6teles. Pelo fato de zene se empenhar pela “realidade do mundo exterior” nio se est ainda orientado ontologicemente, “Onto \bgico” — tomado no sentido popular filos6tico — significa, contudo — e nisto se revela sua desesperada Confuso —, isto que muito antes deve ser chamado de éntico, isto é, uma postura, que deixa 0 ente sor em si, 0 que e como ele é Mas com isto no se levantou ainda nenhum problema do ser, e muito menos se con. quistou assim o fundamento para a possibilidade de uma ontologia, (N. do A.) ** CE. ibidem, § 69, p. 364 ss, ¢ ainda p. 363, nota, (N, do A.) SOBRE A ESSENCIA DO FUNDAMENTO 301 dela, no sentido de uma propriedade da enunciag&o, quereria admitir. Se, porém, a essén- cia do fundamento possui uma relaco interna com a esséncia da verdade, entdo também © problema do fundamento somente pode residir 1a, onde a esséncia da verdade haure sua possibilidade interna, na esséncia da transcendéncia. A questio da esséneia do funda- mento transforma-se no problema da transcendéncia E este entrelagamento de verdade, fundamento, transcendéneia de uma unidade originaria, entio também 0 encadeamento dos respectivos problemas deve irromper 4 luz, em toda parte, onde a questio do “fundamento” — e seja apenas na forma de uma expressa discussio do principio da razio — é abordada com mais decisio. J4 a passagem citada de Leibniz trai o parentesco entre problema do “fundamento” e problema do ser. Verum esse significa inesse qua idem esse. Veruin esse — Ser verda- deiro, porém, significa ao mesmo tempo ser “na verdade” — esse simplesmente. Ent&o, a idéia de ser em geral é interpretada por inesse qua idem esse, O que torna um ens um ens & a “identidade”, a unidade bem entendida, que, enquanto simples, unifica originaria- mente e, neste unificar, simultaneamente individua. A unificag&o que originaria (anteci pando) ¢ simplesmente individua, que constitui a esséncia do ente enquanto tal, é, porém, aesséncia da “subjetividade” do subjectum (substancialidade da substéncia) monadolo- gicamente entendida. A dedugdo leibniziana do principium rationis da esséncia da verda- de proposicional revela, desta maneira, que tem por fundamento uma idéia bem determi- nada de ser em geral, a cuja luz somente é possivel aquela “deducfio”. Apenas na metafisica de Kant mostra-se realmente a conexdo entre ‘“fundamento” e “ser”, Nao ha divida que em seus escritos “criticos” se estaria praticamente inclinado a afirmar a falta de um tratamento expresso do “principio da razfio”; a nfo ser que se faga valer a prova da segunda analogia como compensagio para esta falta quase incompreensivel. Mas Kant certamente discutiu o prinefpio da razao e, numa passagem excelente de sua Critica da Razdo Pura, sob 0 titulo de “Supremo principio de todos os juizos sintéticos”, dé notavel indicagao de investigages que ainda se deveriam realizar na metafisica.'® Este principio explica o que em geral — no ambito e ao nivel do questionamento ontoldgico de Kant — faz parte do ser do ente, que é acessivel na experiéneia. Kant da neste princi- pio uma definigao real da verdade transcendental, isto & determina sua possibilidade interna através da unidade do tempo, forga da imaginacio ¢ “Eu penso”.® O que Kant diz. do principio, vale, por sua vez, para seu proprio principio supremo de todo conheci- mento sintético, na medida em que nele se oculta 0 problema da conexo essencial de ser, verdade e fundamento. Uma questao que apenas disso pode ser derivada é, ento, aquela gue trata da relagao originaria de légica formal e transcendental, respectivamente, 0 direito de uma tal distingio em geral. A breve exposigio da dedugao leibniziana do principio da razéo, partindo da essén- cia da verdade, tinha como meta elucidar a conexio do problema do fundamento com a questio da possibilidade interna da verdade ontol6gica, isto quer afinal dizer, com a questo ainda mais originaria e, por conseguinte, ainda mais ampla da esséncia da trans- cendéncia. A trancendéncia é, assim, 0 ambito em cujo seio 0 problema do fundamento devera ser encontrado. Este ambito deve agora ser exposto em suas linhas capitais. *° Cf. Heidegger, Kant ¢ 0 Problema da Metafisiea, 1929.(N. do A.) *° Cf. Kant, Sobre uma descoberta, segundo a qual toda a nova critica da raziio pura deverd tomar-se dispensavel através da mais antiga, 1790, consideragio final sobre as tr8s importantes caracteristicas da metafisica do senhor von Leibniz. Cf. também a obra premiada sobre os progeessos da metafisica, Parte 1. (N.do A.) 302 HEIDEGGER 2. A transcendéncia como ambito da questio da esséncia do fundamento Uma observacdo terminolégica preliminar regulara o uso da palavra “transcen- déncia” e preparard a determinagao do fenémeno com ela visado. Transcendéncia signi- fica ultrapassagem, Transcendente (transcendendo) é aquilo que realiza a ultrapassagem, fi que se demora no ultrapassar. Este é, como acontecer, peculiar a um ente. Formalmente a ultrapassagem pode ser compreendida como uma “relagio” que se estende “de” algo “para” algo, Da ultrapassagem faz, entao, parte algo tal como 0 horizonte em direedo do qual se realiza a ultrapassagem: isto é designado, o mais das vezes, inexatamente de “transcendente”. E, finalmente, em cada ultrapassagem algo € transcendido. Estes ‘momentos so tomados de um acontecer “espacial”; é a este que a expressiio primeira. mente visa A transcendéncia, na significago terminolégica que deveré ser clarificada e demonstrada, refere-se Aquilo que é proprio do ser-at humano e isto n&o, por certo, como um modo de comportamento entre outros possiveis de vez em quando posto em exerci- cio, mas como constituigdo fundamental deste ente, que acontece antes de qualquer comportamento. Nio ha davida, o ser-ai humano, enquanto existe “espacialmente”, pos- sui, entre outras possibilidades, também a de um “ultrapassar” um espago, uma barreira fisica ou um precipicio. A transcendéncia, contudo, é a ultrapassagem que possibilita algo tal como existéncia em geral e, por conseguinte, também um movimentar-“se”-no- espaco. Se se escolhe, para o ente que sempre nds mesmos somos e que compreendemos como “ser-ai’ dio “sujeito”, entdo a'transcendéncia designa a esséncia do sujei: to, é a estrutura basica da subjetividade. O sujeito nunca existe antes como “sujeito”, para ent&o, caso subsistam objetos, também transcender; mas ser-sujeito quer dizer: ser ente na e como transcendéncia. O problema da transcendéncia nunca se pode expor de tal modo que se procure uma decisio se a transcendéncia pode convir ou ndo ao sujeito; muito antes a compreensio da transcendéncia ja é a decisdo sobre o fato se realmente temos em mente algo assim como a “subjetividade” ou se apenas tomamos em considera- go como que um esqueleto de sujeito. Muito pouco se ganha, num primeiro momento, pela caracterizagdo da transcen- déncia como estrutura fundamental da “‘subjetividade”, para a penetragdo nesta consti- tuigdo do ser-ai. Pelo contrario, como agora, de maneira geral, esta propriamente desva- lorizado o pressuposto expresso ou, o mais das vezes, no expresso de um conceito de sujeito, nao se deixa também a transcendéncia determinar mais como “relago sujeito- objeto”. Mas entao o ser-ai transcendente (expresso ja tautoldgica) no ultrapassa nem uma “barreira” posta diante do sujeito, obrigando-o primeiro a permanecer dentro de (imanéncia), nem um “precipicio” que separa 0 sujeito do objeto. Os objetos — os entes objetivados — também nio sio, porém, aquilo em direedo do que (horizonte) se da a ultrapassagem. O que é ultrapassado é justamente unicamente 0 ente mesmo, ¢, na verda- de, caida ente que pode tornar-se ou jé esta desvelado para o ser-af, por conseguinte, ram bém e justamente o ente que é “ele mesmo” enquanto existe. Na ultrapassagem o ser-ai primeiramente ver ao encontro daquele ente que ele é, a0 encontro dele como ele “mesmo”. A transcendéncia constitui a mesmidade (ipseida- SOBRE A ESSENCIA DO FUNDAMENTO. 303 de).?* Mas, novamente, ndo apenas a ela; a ultrapassagem sempre se refere também, ao mesmo tempo, ao ente que ndo é o ser-ai “mesmo”; mais exatamente: na ultrapassagem dela pode apenas distinguir-se e decidir-se, em meio ao ente, quem e como é um ” © 0 que nao o é Na medida, porém, em que o ser-ai existe como mesmo — ¢ somente nesta medida — pode ele ter um comportamento (relacionar-“se”) para com o ente, que, entretanto, deve ter sido ultrapassado antes disso. Ainda que sendo em meio a0 ente e por ele cercado, o ser-ai enquanto existente ja sempre ultrapassou a natureza, O que, entretanto, do ente € cada vez ultrapassado num ser-ai, nfo se ajuntou simplesmente por acaso, mas o ente, seja determinado e articulado como for em cada caso, jé esta sempre previamente ultrapassado em dirego de uma totalidade, Esta pode- r4 permanecer desconhecida como tal, na ultrapassagem, ainda que sempre — por razGes que agora nao se podem discutir — seja interpretada a partir do ente e, na maio- ria das vezes, a partir de uma area que mais se impde do mesmo, sendo, por isso, a0 menos conhecida como totalidade. A ultrapassagem acontece em totalidade ¢ nunca apenas as vezes ¢ as vezes no, aproximadamente como, se porventura, consistisse unicamente e, antes de tudo, numa captagao teorética dos objetos. Antes com o fato do ser-ai a ultrapassagem ja sempre esti a. Se, entretanto, ndo esté ai o ente em diregdo do qual acontece a ultrapassagem, como deve entio ser determinado este “horizonte” (Woraufhin); mais, como deve, em til tima analise, ser procurado? Nés designamos aquilo em direedo do qual (horizonte) 0 set-ai como tal transcende, o mundo, e determinamos agora a transcendéncia como ser- no-mundo. Mundo constitui a estrutura unitaria da transcendéncia; enquanto dela faz parte, 0 conceito de mundo é um conceito transcendental. Com este término é denomi- nado tudo que faz essencialmente parte da transcendéncia e dela recebe de empréstimo sua interna possibilidade. E somente por causa disso pode também a clarificagao e inter- pretagao da transcendéncia ser chamada uma exposigdo “transcendental”. O que, na ver- dade, quer dizer “transcendental” nao deve agora ser tomado de uma filosofia a que se atribui 0 (elemento) “transcendental” como “ponto de vista” até porventura “gnosiols gico”, Isto nao exclui a constatagdo de que precisamente Kant reconheceu o (elemento) “transcendental” como 0 problema da interna possibilidade de ontologia em geral, ainda que para ele o “transcendental” tenha ainda essencialmente significagio “critica”. O transcendental se refere, para Kant, a “possibilidade” (0 possibilitante) daquele conheci mento que ndo sem razdo “sobrevoa” a experiéncia, isto & que nao ¢ “transcendente” mas é a experiéncia mesma, O transcendental da, desta maneira, a delimitagdo essencial (definig&o), que, ainda que restritiva, ¢, contudo, através disto, ao mesmo tempo positiva, nscendente, isto é, do conhecimento dntico possivel ao homem enquanto tal. do nao tr. Uma concepgao mais radical e universal da es: da transcendéncia € entao necessa- 2" Selbst, Selbsthelt: traduz0-0s por mesmo © mesmidade. Ambos os termos referem-se aqui A identidade pessoal. Em outros textos o filsofo fala de “das Sethe”, que significa 0 mesmo referido a identidade em geral (ver a conferéneia “O Principio da identidade”, Livraria Duas Cidades. Sio Paulo, 1971). Um mal-enten dido nfo & possivel no presente trabalho. Temos no vernaculo ipseidade que corresponde a Selbstheit; ¢ Ipsetsmo como identidade propria. Decido-me, no entanto, pela uniformiza¢io bascado num fato etimols. gico, Meso ¢ mesmidade originam-se do latim vulgar meripsimu, superlativo de metipse, resultante da combinagio do demonstrativa ipse, mesmo, com a particula mer. De um lado, portanto, tém origem seme: Ihante a de ipseidade e ipseismo, levando, de outro lado, a vantagem de vir de um superlativo, devendo s justamente considerada superlativa a identidade pessoal em face do principio geral da identidade. (N.do T.) 304 HEIDEGGER riamente acompanhada por uma elaboragdo mais originaria da idéia da ontologia e, por conseguinte, da metafisica, A expressio “ser-no-mundo” que caracteriza a transcendéncia nomeia um “estado de coisas” e, na verdade, um que aparentemente se compreende com facilidade. Contudo, © que com isto é visado depende da condigao de o conceito de mundo ser tomado num sentido pré-filos6fico vulgar ou num sentido transcendental. A anélise de uma dupla significagio do discurso sobre o ser-no-mundo pode esclarecer isto. Transcendéncia, concebida como ser-no-mundo, quer atribuir-se ao ser-ai humano, Isto 6, porém, afinal o mais trivial ¢ o mais vazio que se deixa enunciar: o ser-ai também aparece entre os outros entes e € por isso também encontravel. Transcendéncia significa entio: fazer parte do resto do ente que ja subsiste puramente ou que respectivamente pode ser multiplicado continuamente até o ilimitado. Mundo é, entdo, a expres sume tudo o que é, a totalidade, como unidade que determina 0 “tudo” como uma reu- nido e nada mais além. Se se toma como base para 0 discurso sobre o ser-no-mundo este conceito de mundo, entdo, sem divida, a “transcendéncia” deve ser atribuida a cada ente como puramente subsistence. Puramente subsistente, isto 6, 0 que ocorre entre outras coi- sas, “esté no mundo”. Se “transcendente” no diz nada mais que “fazendo parte dos res- tantes entes”, ento é evidentemente impossivel predicar a transcendéncia como const tuigdo essencial caractertstica do ser-ai human. A proposigdo: da esséncia do ser-af humano faz parte o ser-no-mundo ¢ entio mesmo evidentemente falsa. Pois nao é essen- cialmente necessario que entes como o ser-ai humano existam faticamente. E claro que pode ndo ser. Se, no entanto, por outro lado, o ser-no-mundo é predicado do ser-ai com razdo e exclusividade, ¢ em verdade como constituigio fundamental, entdo esta expresso no pode ter a significagao acima citada, Entio mundo também significa algo diferente que a totalidade do ente subsistente, que por acaso subsiste. Predicar do ser-ai o ser-no-mundo como constituigéio fundamental significa enun- ciar algo sobre sua esséncia (sua mais propria possibilidade interna enquanto ser-ai). Neste caso do se pode justamente considerar-se como instancia orientadora se e qual ser-ai, agora justamente, existe faticamente ou nao. O discurso que trata do ser-no. mundo nao é uma verificagao da ocorréncia fatica de ser-ai; é, alias, de maneira alguma, uma enunciagdo dntica, Ela se refere a um estado de coisas essencial (Wesensverhalt) que determina o ser-af em geral e tem como conseqiiéncia o carater de uma tese ontold- gica, Por conseguinte, importa: o ser-ai ndo é um ser-no-mundo pelo fato de, ¢ apenas pelo fato de, existir faticamente; mas, pelo contrario, somente pode ser como existente, isto & como ser-ai, porque sua constituigo essencial reside no ser-no-mundo. A proposigao: o ser-ai fatico est num mundo (ocorre entre outros entes) se trai como uma tautologia que nada diz. A enunciagio: faz parte da esséncia do ser-ai o fato de estar no mundo (de também ocorrer “ao lado” de outros entes) se mostra falsa. A tese: da esséncia do ser-ai como tal faz parte o ser-no-mundo contém o problema de transcendéncia, A tese é originria ¢ simples. Disto niio segue a facilidade de sua revelagio, ainda que o ser-no-mundo somente possa — sempre apenas num iinico projeto com diferente: graus de transparéneia — ser elevado ao nivel de uma compreensio preparatoria a ser novamente (em verdade sempre relativamente) complementada conceitualmente. Com a caracterizagio de ser-no-mundo realizada até agora, a transcendéncia do ser-ai foi determinada apenas defensivamente, Da transcendéncia faz parte mundo, como © horizonte em diregao do qual acontece @ ultrapassagem. O problema positive do que se SOBRE A ESSENCIA DO FUNDAMENTO, 305 deve entender por mundo, de como se deve determinar a “referéneia” do ser-ai ao mundo, isto é, de como deve ser compreendido o ser-no-mundo como constituigao do ser-ai origi- nariamente unida, tudo isto somente serd analisado por nds naquela diregio ¢ nos limites que so exigidos pelo problema do fundamento que nos orienta, Com esta intengdo tenta- Femos uma interpretagio do fendmeno do mundo, que deverd ser de utilidade para a clarificagdo da transcendéncia como tal Para nos orientarmos na analise deste fendmeno transcendental do mundo, vamos antecipar uma caracterizagio, sem divida necessariamente incompleta, das principais significagdes que se impdem na histéria do conceito de mundo, No caso de tais conceitos clementares, nao é a significagao vulgar, o mais das vezes, a originaria e essencial. Esta Ultima é sempre de novo encoberta ¢ somente chega a ser conceituada com muito esforgo e assaz raramente. Jé nos decisivos comegos da filosofia antiga se mostra algo essencial.?? Késmos ndo quer dizer este ou aquele ente mesmo que irrompe e se impde com insisténcia, nem quer dizer também tudo isto reunido; mas significa “estado”, isto & 0 como, em que 0 ente, ¢ em verdade, na totalidade, &. Késmos hotitos nao designa, por isso, este ambito de entes em contrasie com outro, mas este mundo dos entes & diferenga de um outro mundo do mesmo ente, 0 edn mesmo katd kdsmon.?* O mundo enquanto este “como em sua totalidade” ja esta na base de toda possivel divisdo do ente: esta néo destrdi o mundo. mas sempre dele carece. Aquilo que esta en 16 heni késmo?* nio o formou primeira- mente por um processo de aglomeragdo, mas é dominado prévia e inteiramente pelo mundo. Heraclito reconhece um outro rasgo essencial do kdsmos:?° hd Herakleités phesi tois egregorésin héna kai kdsmon einai, tn dé koimoménon hékaston eis idion apostréphesthai. “Aos despertos pertence um mundo comum; cada um dos que dormem, Ro entanto, volta-se para seu proprio mundo.” Aqui o mundo esta posto em relagio com modos fundamentais em que o ser-ai humano existe faticamente. Na vigilia o ente se mostra num como sempre unissono, em geral acessivel a cada um. No sono 0 mundo do ente é exclusivamente individuado para cada ente em particular. Estas breves indicagSes tornaram visiveis varios aspectos: 1. Modo quer dizer, muito antes, um como do ser do ente, que © proprio ente. 2, Este como determina o ente em sua totalidade, E, em Gltima anélise, a possibilidade de cada como em geral enquanto limite e medida. 3. Este como em sua totalidade 6, de certa maaneira, prévio. 4. Este como prévio, em sua totalidade, é ele mesmo relativo ao ser-af humano. O mudo, por conse- guinte, pertence ao ser-ai humano, ainda que abarque todos os entes, também o ser-ai, em sua totalidade. Por mais certo que seja o resumo que se possa fazer desta compreensio, sem divi- da, ainda pouco explicita e crepuscular, do késmos nos significados acima mencionados, tdo inegavel é também que esta palavra nomeia muitas vezes apenas o ente mesmo que se experimenta no tal como. Nao é, porém, nenhum acaso que no contexto da nova compreensio 6ntica da exis- téncia que irrompeu no cristianismo, se radicalizasse e esclarecesse a relagtio de késmos e ser-ai humano e com isto 0 conceito de mundo em geral, A relagdo é experimentada tio originariamente, que kdsmos passa a ser usado, de agora em diante, diretamente como 2? CK. Reinhardt, Parménides e a Hist. da Filos. Grega, 1916, p. 174 ss. €216. nota.(N.do A.) 32 Cf. Diels, Fragmentos dos Pré-socréticos: Melissos, Fragm. 7; Parménides, Fragm. 2.(N. do A.) 2* Foidem, Anaxigoras, Fragm. 8. (N. do A) *° Ibidem, Heraclito, Fragm. 89.(N. do A.) 306, HEIDEGGER expresso para um determinado modo fundamental de ser da existéncia humana, Kés- mos hoiitos significa em Paulo (vide 1. Corintios e Galatas) nao apenas ¢ nao primaria- mente 0 estado do “cdsmico”, mas 0 estado e a situagao do homem, a espécie de sua pos- tura diante do cosmos, seu modo de apreciar os bens. Késmos € 0 ser-homem no como de uma mentalidade afastada de Deus (he sophia toi késmou). Késmos hoiitos designa © ser-ai humano, numa determinada existéncia “historica” que se distingue de uma outra que ja esta despontando (aidn ho meéllon). Com inusitada freqiiéncia — sobretudo, em comparagio com os sindticos —, usa o Evangelho de Sdo Joao? * 0 conceito de kdsmos, € ao mesmo tempo em um sentido bem central. Mundo caracteriza a forma fundamental de afastamento de Deus do ser-ai humano, 0 cardter do ser-homem simplesmente. De acordo com isto, é entio mundo um nome que designa de maneira geral todos os homens Juntos, sem distingo entre sdbios e tolos, justos e pecadores, judeus ¢ pagios. O signifi- ‘cado central deste conceito de mundo, absolutamente antropolégico, chega a expressar- se no fato de funcionar como conceito anténimo da filiagao divina de Jesus, a qual € compreendida como Vida (z0é), Verdade (alétheia) e Luz (phés).?” Esta carga semintica de kdsmos que se inicia no Novo Testamento, mostra-se entdo de maneira inconfundivel, por exemplo, em Agostinho e Tomas de Aquino. De um lado, significa mundus, segundo Agostinho, a totalidade do que foi criado. Mas com a mesma freqiiéncia mundus est em lugar de mundi habitatores. Este termo tem, por sua vez. 0 especitico sentido existencial de dilectores mundi, impti, carnales. Mundus non dicuntur iusti, quia licet carne in eo habitent, corde cum Deo sunt.?® Agostinho deve ter tirado este conceito de mundo, que entio co-determinou a historia espiritual do ocidente, tanto de Paulo como do Evangelho de Sdo Joao. Para prova disto sitva a seguinte passa- gem extraida do Tractatus in Joannis Evangelium. Agostinho da a passagem de Sa0 Joao (prlogo) 1.10 en 16 késmo én, kai ho kdsmos di autow egéneto, kat to késmos auton ouk égno, uma interpretagiio de mundus em que demonstra que 0 uso duas vezes repetido de mundus, em “mundus per ipsum factus est” e “mundus eum non cognovit", é feito com dupto sentido. No primeiro significado mundo designa ens ereatum. A segunda significa- g&o de mundus quer dizer 0 habitare corde in mundo como amare mundum, 0 que € igual anon cognoscere Deum. No contexto o teor € 0 seguinte: Quid est, mundus factus est per ipsum? Coelum, terra, mare et omnia quae in eis sunt, mundus dicitur. Iterum alia significatione, dilecto- res mundi mundus dicuntur. Mundus per ipsum factus est, et mundus eum non cognovit. Num enim coeli non cognoverunt Creatorem suum, aut non cognoverunt Creatorem 28 No que se refere as passagens do Evangelho de Séo Jodo, cf. 0 escorgo sobre os kéismos, em W. Bauer, 0 Evangelho de Sd0 Jodo (Manual de Lietzmann, sobre 0 Novo Testamento, 6). segunda edigao totalmente reelaborada, 1925, p. 18. — Para a interpretagao teolégica ver a excelente exposigao de A. Schlatter, A fe0- logia do Novo Testamento, Parte 11, 1910, p. 114 ss. (N. do A.) 27" Como grande parte das analisesteologicas, também as referéncias ao Evangelho de Sizo Jodo resultatio 4a época em que Heidegger trabalhou na Universidade de Marburgo (1923-28). O filésofo se viu ali envol- vido pelo clima de tormentosos debates filoséfico-teoldgicos; de um lado, vinha declinando a estrela do ‘neokantismo ¢, dé outro, nascia a teologia htermenéutica e dialética, Heidegger marcou profundamente as teorias de interpretagio (exesese) teoldgica dos anos 20 na Alemania, A parcial transposigao das categorias existenciais de Ser e Tempo para a exenese biblica ¢ interpretagdo da existéncia eristd, que foi tealizada por Bultmann, constitui uma das provas. Sabe-se hoje que a forma original de Ser e Tempo foi uma conferéncia pronunciada diante dos te6logos de Marburgo em 1924, Heidegger ¢ Bullman encontravam-se freqientes vyezes nos fins de semana, para interpretar 0 Novo Testamento, principalmente o Evangelko de So Jodo. A estas discussdes remontarao certamente parte das referéncias, as vezes polémicas. que em suas obras se repe- tem sobre temas biblico-teolégicos. (N. do T.) 2 Agostinho, Opera (Migae), tomo IV. 1842.(N. do A.) SOBRE A ESSENCIA DO FUNDAMENTO 307 suun sider , quem cor qui non cognoverunt? Qui amando mundum dicti sunt mundus. Amando enim habita- mus corde: amando autem, hoc appellari meruerunt quod ille, ubi habitabant. Quomodo dicimus, mala est illa domus, aut, bona est illa domus, non in illa quam dicimus malam parietes accusamus, aut in illa, quam dicimus bonam, parietes laudamus, sed malam domum: inhabitantes malos, et bonam domum: inhabitantes bonos. Sic et mundum, ipsi enim corde habitant in mundo. Nam qui non diligunt mundwn, carne versantur in mundo, sed corde inhabitant coelum.?* Mundo significa, por conseguinte: o ente em sua totalidade e, na verdade, enquanto © decisivo como, de acordo com qual o ser-ai humano se manifesta ao ente e com ele se relaciona. Do mesmo modo Tomas de Aquino usa mundus uma vez com a significagao igual & universwm, universitas creaturarum; mas, ao lado disto, também com o signifi do de saeculum (mentalidade mundana) quod mundi nomine amatores mundi signifi- cantur. Mundanus (saecularis) ¢ aqui anténimo de spiritualis.2° Sem nos determos no conceito de mundo em Leibniz, lembremos a determinagao de mundo da metafisica escolistica. Baumgarten define: mundus (universum, pan) est series (multitudo, totum) actualium finitorum, quae non est pars alterius.?* Mundo @ aqui iden tificado com a totalidade do que subsiste, e, na verdade, no sentido de ens creatum. Isto, porém, diz: a concepeao da nogdo de mundo depende da compreensao e da possibilidade das provas da existéncia de Deus. Isto se torna particularmente claro em Chr. A. Cru- sius, que define assim o conceito de um mundo: “um mundo significa uma real jungao de coisas finitas, a qual, por sua vez, no é novamente uma parte de outra, da qual faria parte por meio de uma real jungao”.** O mundo é, por conseguinte, oposto a Deus mesmo, Mas ele também ¢ distinto de uma “eriatura individual”, e nao menos de “nuilt- plas criaturas que sto ao mesmo tempo” e que n&o possuem nenhum “encadeamento”; ¢ finalmente distingue-se também o mundo de um tal conceito compreensivo de criaturas “que é apenas wma parte de um outro com o qual esta em encadeamento real”.?? O que. porém, constitui as determinagoes essenciais de um tal mundo deve poder derivar-se de uma dupla fonte. Em cada mundo deve, de um lado, subsistir “aquilo que decorre da esséncia geral das coisas”. De outro, tudo aquilo que “se reconhece como necessario na posigio de certas criaturas, a partir das propriedades essenciais de Deus”.** Por isso também a “doutrina do mundo” é, no conjunto da metafisica, posta ap6s a ontologia (a doutrina da esséncia e das distingdes mais gerais das coisas em geral) € a “teologia natural teorética”. Mundo é, por conseguinte, o nome que exprime a regiaio da suprema unidade encadeada da totalidade do ente criado. entur daemonia? Omnia undique testimonia perhibuerun:. Sed Se, desta maneira, 0 conceito de mundo faz o papel de uma nogdo fundamental da metafisica (da cosmologia racional como disciplina da metaphysica specialis), e se a Cri- tica da Razéo Pura de Kant, porém, expde uma fundamentagéio da metafisica em sua totalidade,*® entdo deve, aqui, o problema do conceito de mundo receber uma forma modificada, correspondente a transformagao da idéia da metafisica. Sobre isto exige-se, 2° Tract... cap. In, 11.tomo Il, 1393.(N. do A.) 3° CL. p. ex. Suma Teoldgica U?, qu, CLXXXVII, a 2. ad, 3: dupliciteraliquis potest esse in sa ‘modo per praesentiam corporalem, alto modo per mentisaffectum. (N. do A.) 81 Metaflsica, ed. IU. 1743, § 354, p.87. (N.do A) 32 Exbogo das necessérias verdades da razo, na medida em que se contrapdem as contingentes. Leipzig, 1145, § 350, p. 657. (N. do A.) 39 Thidem, § 349, p. 654 ss. (N. do A.) 3* bidem, § 348, p. 653. (N. do A.) 9 Cf. sobre isto: Kant e 0 Problema da Metafisica, 1929. (N. do A.) clo: uno 308 HEIDEGGER porém, tanto mais, uma indicagio ainda que, sem davida, muito breve, quando mais certo é que irrompe, ao lado da significago “cosmolégica” de “mundo”, na antropologia de Kant, novamente a significagao existencial, liberta, é claro, da especifica coloragao i na Dissertagdo de 1770, onde a caracterizagio introdutoria do conceito de mundo em parte ainda se move inteiramente no roteiro da tradicional metafisica éntica, toca Kant numa dificuldade que se esconde no conceito de mundo, que mais tarde, na Critica da Razdo Pura, toma a gravidade e amplidao de um problema central. Kant ini- cia a analise do conceito de mundo na Dissertagdo com uma determinagzo formal daqui to que se compreende com “mundo”: mundo como “termo” esta essencialmente referido a “sintese": In composito substantiali, quemadmodum Analysis non terminatur nisi parte quae est totum, he, Simplici, ita synthesis non nisi toto quod non est pars, i. Mundo.’ * No § 2 determina o fil6sofo aqueles “momentos” que sao essenciais para uma definigao do conceito de mundo: 1. Materia (i sensu transcendeniali) h.e. partes, quae hic summuntur esse substantiae. 2. Forma, quae consistit in substantiarum coordina- tione, non subordinatione. 3. Universitas, quae est omnitudo compartium absoluta. Com relagdo a este terceiro momento nota Kant: Totalitas hae absoluta, quamquam concep- tus quotidiani et facile obvii speciem prae se ferat, praesertim cum negative enuntiatur, * sicuti fit in definitione, tamen penitus perpensa crucem figere philosopho videtur. Esta “cruz” pesa o decénio seguinte sobre Kant; pois, a Critica da Razdo Pura tor- na-se justamente esta universitas mundi problema e sob varios aspectos. Trata-se de acla- rar: 1. A que (Worauf) se refere a totalidade representada sob 0 nome “mundo”, respecti- vamente, a que pode cla unicamente referit-se? 2, O que, de acordo com isto, ¢ representado no conceito de mundo? 3. Que cardter possui este represeniar de tal totali- dade, isto é. qual é a estrutura conceitual do conceito de mundo como tal? As respostas de Kant a estas questées, por ele nao formuladas tdo expressamente, trazem consigo uma absoluta modificagao do problema do mundo. Nao ha diivida que também para 0 conceito de mundo de Kant se mantém o fato de que a totalidade nele representada se refere as coisas finitas subsistentes. Mas esta relagao com a finitude, tio essencial para o conietido de conceito de mundo, recebe um novo sentido, A finitude das coisas puramente subsistentes nao € determinada pela via de uma demonstracio dntica de seu ser-criado por Deus, mas é explicada levando em conta o fato de que e em que me- dida as coisas so objeto possivel para um conhecimento finito, isto é, para um tal conhe- cimento, que deve primeiramente deixar-se dé-las enquanto ja subsistentes. Este ente mesmo, dependente sob o ponto de vista de sua acessibilidade, de uma passiva recept dade (intuigao finita), designa Kant como “fendmenos”, isto é, “coisas em sua aparigao” Todavia, 0 mesmo ente, entendido como possivel “objeto” de uma intuig%o, absoluta, isto é, criadora, ele o chama “coisa em si”. A unidade do complexo de fenémenos, isto & a constituigdo ontolégica do ente acessivel 20 conhecimento finito, é determinada pelos principios ontolégicos, isto quer dizer, pelo sistema dos conhecimentos sintéticos a priori.” O contetido objetivo representado a priori nestes “principios sintéticos”, sua “realidade” no sentido antigo, justamente retido por Kant, de coisidade, se pode apresen- tar, sem a experiéncia, intuitivamente a partir dos objetos, isto ¢, a partir daquilo que ¢ necessariamente intuido a priori com eles, a partir da pura intuigdo do “tempo”. Sua rea. 36 De minal sensibilis atque intelligibitis forma et principtis, Sectio I, De notione mundi generatim, §§ 1, 2.(N.do A.) - "7 Ver o ensaio do Tradutor A Finitude na Revoluedo Kantiana, in Revista Brasileira de Filosofia, Volume XX (1970), pp. 515-526. (N, do.) SOBRE A ESSENCIA DO FUNDAMENTO 309 lidade @ uma realidade objetiva, representivel a partir dos objetos. Nao obstante, é a uni- dade dos fenémenos, ja que necessariamente dependente de um dar-se faticamente contingente, sempre condicionada e fundamentalmente imperfeita. Se agora esta unidade da multiplicidade dos fenémenos for representada como perfeita, endo surge a represen. tagio de um conceito compreensivo, cujo contetido (realidade) nao se deixa projetar numa imagem, isto é, em algo intuivel. A representagdo é “transcendente”. Na medida, porém, em que esta representagdo de uma perfeigao é, contudo, a priori necessaria, pos- sui ela, ainda que transcendente, no entanto, realidade transcendental. As representagdes deste caréter Kant denomina “idéias”. Ela “contém uma certa perfeigo a que nao tem acesso nenhum conhecimento empirico poss(vel, ¢ a razdo persegue com isto apenas uma unidade sistematica, da qual procura aproximar a unidade empirica possivel, sem jamais poder atingi-la de maneira completa”.** “Eu, porém, entendo por sistema a unidade dos conhecimentos miiltiplos sob uma idéia. Esta conceito racional da forma de um todo.”** Esta unidade e totalidade representada nas idéias nao pode também nunca, por- que “jamais pode ser projetada na imagem”, *° referir-se imediatamente a algo intuivel. Ela concerne, por conseguinte, enquanto unidade superior, sempre apenas & unidade da sintese do entendimento. Mas estas idéias “nao séo inventadas arbitrariamente, mas impostas pela natureza da razdo mesma e se referem, portanto, necessariamente a todo © uso do entendimento”. ** Como puros conceitos do entendimento, clas nao brotam da reflexio do entendimento, ainda sempre referido ao que ¢ dado, mas emergem do puro procedimento da razio enquanto conclusiva. Kant denomina, por isso, as idéias, A dife- renga dos conceitos “refletidos” do entendimento, conceitos “obtidos por conclu: No procedimento conclusivo, porém, a razao visa a conquistar o incondicionado para as condigdes. As idéias, como puros conceitos racionais da totali sentagdes do incondicionado. “Portanto, 0 conceito transcendental da ra sendio aquele da totalidade das condigées para um condicionado dado. Pelo fato de o incondicionado poder unicamente tomar possivel a totalidade das condigdes, e vice- versa, a totalidade das condigées ser sempre, ela mesma, incondicionada, pode um puro conceito da razdo como tal ser explicado pelo conceito incondicionado, na medida em que contém um fundamento da sintese do condicionado.” ** Idéias sio como representagdes da totalidade incondicionada de um ambito do ente, representagdes necessarias. Na medida em que é possivel uma triplice relagio das representagdes com algo, com o sujeito ¢ com o objeto e com este novamente de duas maneiras, de maneira finita (fenémenos) e de maneira absoluta (coisa em si), surgem trés classes de idéias, com as quais se deixam harmonizar as trés disciplinas da metaphy'sica specialis da tradig&o. A idéia de mundo é, de acordo com isto, aquela em que é represen- tada a priori a totalidade absoluta dos objetos acesséveis no conhecimento finito. Mundo designa. por conseguinte, tanto “conjunto de todos os fendmenos” * * como “conjunto de todos os objetos da experiéncia possivel”. ** Denomina todas as idéias transcendentais, na medida em que se referem & totalidade absolut na sintese por fendmenos, “conceitos 8 CE. Critica da Razdo Pura, A 568, B 596,(N. do A.) 8° Tbidem, A 832, B 860. (N. do A.) 4° Ibidem, A 328,, A 328, B 384. (N. do A.) ** biden, § 327, B 384. (N. do A.) #2 Ibidem, A 310, B 367: ainda A 333, B390.(N. do A.) como uma determinada pécie de represen: tagio” na “escala” das representagdes, cf. ibidem, A 320, B 376 e ss,(N.do A.) ** Dbidem, A 34, B391,(N.do A) jea: orlentar-se no pensamento?, 1786. O1 is Compleras (Cassirer), IV, p. 355. (N. do A.) ea) HEIDEGGER de mundo”, *® Mas pelo fato de o ente acessivel ao conhecimento finito poder ser consi- derado ontologicamente, tanto sob o ponto de vista de sua qiiididade (essentia) como sob ‘© ponto de vista de sua existéncia (existentia) ou, de acordo com a formulagao kantiana desta diferenga, segundo a qual ele também divide as categorias e princfpios da analitica transcendental, “matematicamente” e “dinamicamente”,*’ surge como resultado uma divisio de conceitos de mundo em matematicos e dinmicos. Os conceitos de mundo matematicos sio os conceitos de mundo “em sentido estrito”. a diferenga dos dinamicos, que © fildsofo também denomina “conceitos transcendentais da natureza”. *° Contudo, Kant acha “muito convenient” denominar estas idéias “em conjunto” conceitos de mundo, “porque com mundo se entende o conceito compreensivo de todos os fendmenos, € nossas idéias também se dirigem somente ao incondicionado sob os fendmenos”; em parte também porque a palavra “mundo” significa, no entendimento transcendental, a absoluta totalidade do conjunto das coisas existentes, e porque nds dirigimos nossa aten- do unicamente para a perfeigio da sintese (ainda que propriamente apenas no regresso ‘as condigdes). ** ‘Nesta nota, vem luz no apenas a conexio do conceito kantiano de mundo com a metafisica tradicional, mas, com a mesma clareza, a transformagio realizada na Crf- tica da Razdo Pura, isto é, a originaria imerpretagdo ontologica do conceito de mundo, que agora, em resposta breve ds questdes acima colocadas, pode ser assim caracterizada: 1. O coneeito de mundo nao é um encadeamento éntico das coisas em si, mas um con- ceito compreensivo transcendental (ontoldgico) das coisas como fendmenos. 2, No con- ceito de mundo nao é apresentada uma “coordenagéo” das substancias, mas justamente uma subordinaco, ¢, a saber, “a série ascendente” das condigées da sintese para o incondicionado. 3. © conceito de mundo nao é uma representagao “racional” indetermi nada em sua conceitualidade, mas determinado como idéia, isto é, como puro conceit sintético da razio e distinto dos conceitos do entendimento. E, desta maneira, é tirado do conceito de mundus agora também o cardter de universitas (totatidade), que antigamente the era atribuido, ¢ reservado para uma classe ainda mais alta de idéias transcendentais, para as quais o conceito de mundo mesmo pos- sui uma indicagGo e que Kant denomina de “ideal transcendental”. °° Neste lugar, é preciso renunciar a uma interpretagdo deste momento supremo da metafisica especulativa de Kant, Somente uma coisa deve ser lembrada, para por, com mais clareza, em relevo. o cardter essencial de mundo, a finitude, Como idéia € 0 conceito de mundo a representagdo de uma totalidade incondicio- nada. Contudo, no representa ele simples e “propriamente” o incondicionado, na medi- da em que a totalidade nele pensada, 0 objeto possivel do conhecimento finito, perma- nece referida a fenémenos. Mundo como idéia é, na verdade, transcendente, wlérapassa os 4 Critica da Razdo Pura, A 407 ss.. B434.(N.do A.) 47 “Na aplicagio dos conceitos puros do entendimento 4 experiéncia possivel, 0 uso de sua sintese, ou ‘matemético ou dindmico: pois eles se dirigem em parte & Inaulgdo, em parte 3 existéncia de um fendmeno em eral.” Ibidem, A 160, 8 199. — No que diz respeito 4 correspondente disting¥o dos “prineipios”, diz Kant: “Deve'se, entretanto, natar que nio tenho diante de meus olhos, aqui, tampouco os prineipios da matemi- tica, num caso, quanto os prineipios da dinmica geral (isica) no outro, mas apenas os principios do pro ‘entendimento em sua relacao com o sentido interno (sem distingdo das tepresentagdes nele dadas), dos quais aqueles, reunidos, recebem sua possbilidade. Denomino-os, portanto, levando mais em consideragio sua aplicagio que seu conteiido....” fbidemt, A 162, B 302. —» CP. justamente no que respeita a uma problemé- tica mais radical do conceito de mundo ¢ do ence em sua totalidade, a diferenga entre o sublime-matematico €0 sublime-dindmico. Critiea da Forea do Juizo, prticulacmente § 28.(N. do A.) “8 Ibudem, A419 5s.,B 446 5s.(N. do A.) 4“ Ibidem.(N. do) °° Ibidem, A 572, B 600, nota, (N. do A.) SOBRE A ESSENCIA DO FUNDAMENTO, 311 fendmenos, mas de tal maneira que como totalidade deles é a eles retroreferido. Trans- cendéncia, no sentido kantiano do ultrapassar da experiéncia é, porém, ambigua. De um lado, pode significar: ultrapassar. ent meio a experiéncia, aquilo que nela é dado como tal, a multiplicidade dos fendmenos. Isto vale da representacio “mundo”. De outro lado, porém, transcendéncia significa: sair da experiéncia como conhecimento finito em geral € representar a possivel totalidade de todas as coisas como “objeto” do intuitus origina- rius, Nesta transcendéncia emerge o ideal transcendental, em face do qual mundo repre- senta uma restrigiio e torna-se expresso do conhecimento finito kumano em’sua totali dade, O conceito de mundo esta como que entre a “possibilidade da experiéncia” e “ideal transcendental” ¢ significa assim, em seu néicleo, a totalidade da finitude do ser hummano. A partir daqui se descerra o véu para a segunda significagdo especificamente ex tencial que em Kant recebe 0 conceito de mundo ao lado do “cosmoldgico”. “O objeto mais importante no mundo, a que o homem pode aplicar todos os pro- gressos na cultura, é 0 homem, porque ele é seu proprio fim ultimo. — Conhecé-lo, por- tanto, como habitante da terra, dotado de razo segundo sua espécie, merece ser particu- larmente chamado conhecimento do mundo, ainda que apenas constitua uma parte dos seres terrestres.” °' Conhecimento do homem, e isto, precisamente, sob o ponto de vista “daquilo, que ele como ser que age com liberdade, faz de si ou pode e deve fazer”, por- tanto, precisamente néo o conhecimento do homem sob 0 ponto de vista “fisiolégico”, é aqui denominado conhecimento do mundo. Conhecimento significa o mesmo que antro- pologia pragmatica (ciéncia do homem). “Uma tal antropologia, considerada como conhecimento do mundo... ., nao € propriamente ainda entio denominada de pragmd- fica, quando contém um conhecimento ampliado das coisas no mundo, por exemplo, dos animais, plantas e minerais em diversos paises e climas, mas quando contém conhe: mento do homem como cidadao do mundo.”"*? 0 fato de “mundo” significar justamente a existéncia do homem no convivio histé- rico e no como fendmeno cosmico, como espécie € ser vivo, torna-se ainda particular- mente claro a partir das expressées que Kant aduz para a clarificagio deste conceito existencial do mundo: “Conhecer mundo” e “possuir mundo”. Ambas as expresses significam, ainda que ambas visem a existéncia do homem, algo diferente, “enquanto um (0 que conhece 0 mundo) apenas compreende o jogo a que assistiu, o outro, porém, tomou parte do jogo”. ** Mundo é aqui o nome para o jogo do ser-ai, cotidiano, para este mesmo. De acordo com isto distingue Kant a “sabedoria do mundo” da “sabedoria priva- da”, A primeira é habilidade de um homem para influenciar outros, para usé-los para seus “propésitos”.®* Ademais: “Pragmaticamente uma histéria esté redigida quando torna sdbio, isto €, quando instrui o mundo, como pode procurar sua vantagem melhor ou ao menos to bem como o mundo que o precedeu”. °* ®* Antropotogia redigida sob 0 ponto de vista pragmético, 1800, segunda edigio, preficio. Obras Comple: tas (Cassirer), VIL p. 3.(N. do Ad) °2 bide, p.4. (N. do A.) ®3 Ibidem. “Um homem do mundo & companheiro no grande jozo da vida” — “Homem do mundo quer 1 saber das relagdes com outros homens e © que est acontecende na vida humana.” “Ter mundo quer izer ter méximas ¢ imilar grandes modelos. Vem do francés, Alcanga-se o fim através da conduite, costa- mes, trato, etc.” Prelegies sobre antropologia. Cf. As princivais preleedes floséficas de I. Kant. Conforme 0s recém-encontradas cadernos do Conde Heinrich zu Dohnawunderlacken, Editados por A. Kowalewski, 1924, p. 71.(N. do A.) 5* Ch Fundamentagdo da metajisica dos costumes, Obras Completas (Cassirer), IV, p. 273, nota. (N. do AD 5 Ibidem, p.274,nota. (N. do A 312 HEIDEGGER Deste “conhecimento do mundo” no sentido de uma “experiéncia da vida” e da compreensao da existéncia, distingue Kant o “saber da escola”. ° ® Usando como fio con- dutor esta distingaio, desenvolve 0 filésofo entio 0 conceito de filosofia segundo 0 “con- eeito de escola” e segundo 0 “conceito de mundo”. *” Filosofia no sentido escolastico permanece objeto do puro “artista da razo”. Filosofia segundo o conceito de mundo a meta do “mestre no ideal”, isto 6, daquele que visa ao “homem divino em nés”. °* “Conceito de mundo significa aqui aquele que se refere Aquilo que a cada um necessaria- mente interessa,” °° Mundo é, em tudo isto, a denominagio para o ser-al humano no nficleo de sua esséncia. Este conceito de mundo corresponde perfeitamente ao conceito existencial de mundo de Agostinho, s6 que perdeu a valoragao especificamente cristi do ser-af “mun- dano”, de amatores mundi, mundo passou a significar positivamente os “camaradas de jogo” no jogo da vida, O significado existencial de conceito de mundo que por iiltimo foi extraido de Kant é, entao, atestado pela expressiio que surgiu na época posterior “Visdo de mundo”. *° ‘Mas também formulas como “homem do mundo”, “mundo elegante”, mostram uma significago semelhante de conccito de mundo. “Mundo” no é também simplesmente uma expressio para uma regiio (ontolégica) que designa a comunidade de homens & diferenga da totalidade das coisas da natureza, mas mundo significa justamente os ho- mens em suas relaedes com 0 ente em sua totalidade, isto é, do “mundo elegante” fazem também parte, por exemplo, os hotéis e os studs. E, por conseguinte, enganoso recorrer a expressfio mundo, quer como caracteri- zagao da totalidade das coisas da natureza (conceito natural de mundo), quer como nome para a comunidade dos homens (conceito pessoal de mundo). °' Muito antes, a £© Chas prelegdes sobre antropotogia que citamos, p. 72.(N.do A.) °? Critica da Razdo Pura, A $39. 8 867 — CI. também Légica (ed. por G. B, Vische), Introdugdo, Seqoes ML. (N. do A) 8 Doident, A $69, B 597.(N. do A.) 5° Thidem, A 840, B 868, nota. (N. do A.) 8° As questdes: 1. Fim que medida faz parte da esséncia do ser ai, como ser-no-mundo, algo tal como “visio 4ée mundo"? 2. De que modo deve, tendo presente a transcendéncia do ser-ai, ser delimitada a esséncia da visio de mundo em geral e fundamentada em sua possibiidade interna? 3, Como se relaciona, de acordo ‘com seu carater transcendental, a visio de mundo com a filosofia?” — no podem ser aqui elaboradas, nem mesmo respondidas.(N. do A.) Se porventura se identifica a conexdo dntica das coisas de uso, do utensil, com o mundo e se se expli- cita 0 ser-no-mundo eomo trato com as eoists de uso, entio certamente fica sem perspectiva uma compreen sito da teanscendéncia como ser-no-mundo, no sentido de uma “constituigio fundamental do ser-a Pelo contrario, a esutura do ente “mundane ambiente” — na medida em que esta descoberto como uten: lio — tem, para uma primeira caracterizacdo do fendmeno do mundo, 2 vantagem de servir de transiga0 para a analise deste fendmeno e de preparar 0 problema transcendertal do mundo. Isto é também a tina e, na articulagdo e disposigdo dos §§ 14-24 de Ser e Tempo com suficienteclareza apontada, intengio da ané- lise do mundo ambiente; esta andlise permanece no todo e tendo em vista a meta conduora, de importincia secundéria, Se, porém. falta aparentemente a natureza na analitica do ser-ai assim orientada — nfo apenas a natureza como objeto das ciéncias naturais, mas também a natureza num sentido mais origina (cf. para isto Ser e Tempo, p. 63, embaixo) —. entio ha razdes para isto. A razio decisiva reside no fato de nao se poder encon- ‘rar natureza, nem no cireulo do mundo ambiente, nem em geral primariamente, como algo a que nos rela- cionamos. Nacureca esté originariamente revelada no ser-ai, pelo Tato de este existr, como situado e disposto ent meio ao ente. Na medida, porém, em que sentimento de situagdo (derelicgo) faz parte da esséneia do ser-ie se expressa na unidade do conceito pleno de preocupacifo (cuidado), pode somente aqui ser conquis tada primeiramente 2 base para 0 problema da natureza, (N. do A.) SOBRE A ESSENCIA DO FUNDAMENTO, 313 relevancia metafisica do significado, mais ou menos destacado, de kdsmos, mundus, mundo, reside no fato de que visa a interpretagio do ser-ai humano em sua referéncia ao ente em sua totalidade. Por razées que aqui nao podem ser analisadas, a formacio do conceito de mundo depara primeiro com ¢ significagao, de acordo com a qual ele carac- teriza o como do ente em sua totalidade, e isto de tal maneira que sua relapdo com o ser af é primeiramente apenas compreendida de modo indeterminado. Mundo faz parte de uma estrutura referencial que caracteriza 0 ser-ai como tal, estrutura que ja denomi- namos de ser-no-mundo. Esse emprego do conceito de mundo @ —- isto as indicagSes hist6ricas tinham como finalidade mostrar — to pouco arbitrario que justamente pro- cura elevar um fendmeno existencial (Daseinsphaenomen), j sempre conhecido, mas no capiado de modo ontologicamente unitario, ao nivel de clareza e preciso formal de um problema. O ser-ai humano — ente situado em meio ao ente, mantendo uma relagéo com 0 ente — existe, de mais a mais, de maneira tal que o ente sempre esteja revelado em sua totalidade. A totalidade nao precisa ser propriamente captada nisso, sua “pertenga” ao ser-af pode estar velada, a amplitude deste todo é mutavel. A totalidade é entendida, sem que também o todo do ente revelado tenha sido captado ou mesmo “exaustivamente investigado em suas conexdes especificas, regides ¢ estratos. A compreensio desta totali- dade, que & sempre antecipadora e abarcadora, é, porém, ultrapassagem com relagao ao mundo. E preciso buscar agora uma interpretagio mais concreta do fenémeno do mundo. Ela resultaré da resposta destas duas questdes: 1. Qual é 0 cardter fundamental desta totalidade caracterizada? 2. Em que medida esta caracterizagao do mundo possibi lita uma clarificagao da esséncia da relagao existencial (Daseinsbezug) com o mundo, quer dizer, uma clarificagao da possibilidade interna do ser-no-mundo (transcendéncia)? Mundo como totalidade nao “é” ente, mas aquilo a partir do qual 0 ser-ai se dd a entender a que ente pode dirigit-se seu comportamento e como se pode comportar com relagio a cle, O ser-ai “se”dé a entender a partir de “sew” mundo quer entdo dizer: neste vir-ao-encontro-de-si a partir do mundo o ser-ai se temporaliza (zeitigi) como um ‘mesmo, isto & como um ente que foi entregue a si mesmo para ser. No ser deste ente se trata de seu poder-ser. O ser-ai é de modo tal que existe em-vista-de-si-mesmo. Se, porém, © mundo é aquilo em cuja ultrapassagem a mesmidade primeiramente se temporaliza, entdo ele se mostra como aquilo em-vista-de-que o ser-ai existe. O mundo tem o carater fundamental do em-vista-de... ¢ isto no sentido originario de que é ele que primeira- mente oferece a possibilidade interna para cada “em-vista-de-ti”, “em-vista-dele”, “em- vista-disso”, etc. Aquilo em-vista-de-que, porém, o ser-ai existe, é ele mesmo. A mesmi- dade pertence mundo; ele esta essencialmente referido ao ser-ai. Antes de tentarmos a investigagao da esséncia desta referéncia e de interpretarmos © ser-no-mundo do em-vista-de como primeiro caréter do mundo, faz-se necessario desfa zer alguns mal-entendidos sobre o que foi dito, facilmente compreensiveis. A proposigao: O ser-af existe em-vista-de-si-mesmo néio contém nenhuma afirma- do egoistico-éntica de um fim para um cego amor-proprio de cada homem fatico. Ela nao pode, por conseguinte, ser “refutada”, digamos, mostrando-se o fato de que muitos homens se sacrificam pelos outros e que em geral os homens nao existem apenas para si ‘mas em comunidade. Na proposigao citada, nao reside nem um isolamento solipsista do ser-ai, nem uma afirmagdo egoista do mesmo. Mas, pelo contrario, a proposigao da a condigio de possibilidade para que 0 homem “se” comporte, quer “egoistica”, quer “altruisticamente”. Somente porque o ser-ai como tal 6 determinado pela mesmidade pode um eu-mesmo relacionar-se com um tu-mesmo, Mesmidade é 0 pressuposto para a 314 HEIDEGGER possibilidade da egoidade, que sempre apenas se revela no tu, Nunca, porém, a mesmi- dade esté relacionada com 0 tu, mas é — porque possibilita isto — neutra em face do ser-eu e ser-tu ¢ ainda com mais razdo em face da “sexualidade™. Todas as proposiges, de uma analitica ontoldgica do ser-ai no homem tomam este ente de antemio nesta neutralidade, Como se determina a referéncia do ser-ai ao mundo? Ja que ele nfo & ente e ja que deve fazer parte do ser-ai, ndo pode, manifestamente, esta referéncia ser pensada como a relago entre o ser-ai como um ente ¢ o mundo como o outro. Se isto nao é possivel, nio é entdio 0 mundo levado para dentro do ser-ai (sujeito) e declarado como algo puramente “subjetivo”? Trata-se, contudo, de primeiro conquistar pela clarificagao da transcen- déncia uma possibilidade para a determinago daquilo que significam “sujeito” e “subje- tivo”. No fim o conceito de mundo deve ser assim entendido, que 0 mundo realmente seja subjetivo, mas que justamente por causa disso no caia como ente na esfera interna de um sujeito “subjetivo”. Pelo mesmo motivo, porém, nao € 0 mundo também puramente objetivo, se isto significa: fazendo parte dos objetos que sao. O mundo é, enquanto a respeetiva totalidade do em-vista-de de um ser-af, posto por ele mesmo diante dele mesmo, Este por-diante-de-si-mesmo de mundo € 0 projeto orig nario das possibilidades do ser-ai, na medida em que em meio ao ente se deve poder com- portar em face dele. O projeto de mundo, porém, é, da mesma maneira como nao capta propriamente 0 projetado, também sempre trans-(pro);jeto do mundo projetado sobre o ente, Este prévio trans-(pro)-jeto € 0 que apenas possibilita que 0 ente como tal se revele. Este acontecer do trans-(pro)-jeto projetante, em que o ser-ai se temporaliza, € 0 ser-no- mundo, “O ser-ai transcende” significa: ele é, na esséncia de seu ser formador de mundo, e“formador” no sentido miltiplo dé que deixa acontecer o mundo, de que com o mundo se da uma vista originaria (imagem), que nao capta propriamente, se bem que funcione justamente como pré-imagem (modelo revelador, Vor-bild) para todo ente revelado, do qual o ser-af mesmo faz por sua vez parte. O ente, digamos a natureza no sentido mais amplo, nio poderia revelar-se de manei- ra alguma, se ndo encontrasse ocasido de entrar num mundo. Por isso, falamos de uma possivel € ocasional entrada no mundo (Welteingang) do ente. Entrada no mundo no é algo que ocorre no ente que entra, mas algo que “acontece” “com” o ente. E este aconte- cer € o existir do ser-ai, que como existente transcende. Somente quando, na totalidade do ente, o ente se torna “mais ente” 20 modo da temporalizacio do ser-ai, é dia e hora da entrada no mundo pelo ente, E somente quando acontece esta histéria primordial, a transcendéncia, isto ¢, quando ente com o cardter do ser-no-mundo itrompe para dentro do ente, existe a possibilidade de o ente se revelar. ° Ji a clarificago da transcendéncia realizada até agora deixa entender que ela, se 6 verdade que somente nela o ente enquanto ente pode vir & luz, constitui um dmbito privi- legiado para a elaboragio de todas as questdes que se referem ao ente como tal, isto é, em seu ser. Antes de explicitarmos o problema principal do fundamento no ambito da transcendéncia e com isto radicalizarmos o problema da transcendéncia sob um determi nado ponto de vista, vamos familiarizar-nos ainda mais com a transcendéncia do ser-af através de uma nova lembranga historica. © Através da interpretacio ontolégica do ser-ai como ser-no-mundo nao eaiu, nem positiva nem negativa mente, a deciso sobre um possivel ser para Deus. Mas pela clarificagio da transcendéncia se aleanga primeiramente um adequado concelto do serat, 0 qual, levado em consideragao, permite entio perguntar qual & sob 0 ponto de vista ontolbgico, o estado da relagao do ser-ai com Deus. (N. do A.) SOBRE A ESSENCIA DO FUNDAMENTO. 35 Propriamente expressa est a transcendéncia na epékeina tes ousias de Platio. ©? Mas seré permitido interpretar 0 agathén como a transcendéncia do ser-af? J4 um rapido relance de olhos ao contexto no seio do qual Plato analisa a questo do agathén deve dissipar tais dividas. O problema do agathén & somente a culmindncia da questo cen- tral e concreta da possibilidade orientadora fundamental da existéncia do ser-at na pélis. Mesmo que no se proponha expressamente a tarefa de um projeto ontoldgico do ser-ai sobre sua constituigéo metafisica fundamental e mesmo que ela nao esteja elaborada, contudo, a triplice caracterizagao do agathdn, realizada em constante correspondéncia com o “sol”, impele para a questo da possibilidade de verdade, compreensio e ser — isto é, na sintese dos fenémenos —, para a questio do fundamento originariamente uni- tario da possibilidade da verdade da compreensio de ser. Esta compreensio — como revelador projetar de ser — é, porém, o comportamento primordial da existéncia huma- na, em que deve estar radicado tudo 0 que existe no seio do ente, O agathdn & portanto, aquela hécsis (poténcia) que tem em seu poder a possibilidade de verdade, compreensio ‘e mesmo de ser, e, na verdade, os trés, simultaneamente numa unidade. Nao € por acaso que 0 agathdn esté indeterminado sob o ponto de vista do contet- do, e de tal mancira que todas as definigées e interpretagdes devem fracassar sob este ponto de vista. Explicagdes racionalistas fracassam da mesma maneira que a fuga “irra- cional” para 0 “mistério”. A clarificagdio de agathén deve ater-se, de acordo com a indi: cago que dé 0 proprio Plato, tarefa da interpretagio essencial da conexio de verda- de, compreensao ¢ set. A interrogagao que se volta para a interna possibilidade desta conexdo vé-se “forcada” a realizar expressamente a ultrapassagem, que acontece em cada ser-ai necessariamente, mas o mais das vezes de maneira velada. A esséncia do aga- thén reside no dominio de si mesmo como how héneka — como o em-vista-de... & a fonte da possibilidade como tal, E j4 que o possivel situa-se acima do atual, ® * é, na ver- dade, he toil agathou héesis, a fonte essencial de possibilidade, meizdnos timetéon. °® Nao ha diivida de que precisamente agora a referéncia do em-vista-de ao ser-af se torna problemética. Mas este problema nao vem a luz. Muito antes, ficam as idéias, segundo uma doutrina que se tornou tradigao, num hyperourdnios 1épos; trata-se apenas de garanti-las como o mais objetivo dos abjetos, como o ente no ente, sem que com isto “ Repiiblica VI, 509 B.(N. do A.) 8+ Possibilidade — atualidade, — Ji em Ser ¢ Tempo o filbso%o afirma: “Acima da atualidade esti a possi- bilidade”, p. 38. Aqui o repete: “O possivel situa-se acima do atual.” A alirmagaa do primado da possibili- dade sobre a atualidade é um dos subterrancos motivos fundamentais do pensamento heideggeriano. Possi- vel, possibilidade, tomam aqui sentido bem diverso do da tradigao: dynamis-enérgeia, ato e poténcia. A categoria da possibilidade refere-se a0 ser enquanio velamento e desvelamento; vem contida na ambivaléncia do termo alétheia, ¢ &, assim uma das chaves para a interpretaga0 do método fenomenolégico (Ver E. Stein: Compreensio e Finitude, pp. 39-42). O uso de categorias carregadas de ambigiiidade e ambivaléncia do onto de vista semntico constitui trago caracteristico e relevante nos textos do fildsofa e the da uma resso- nineia ¢ intensidade raras, hoje em dia, na literatura filos6fics. Numa época em que a busca do rigor e da ‘economia na linguagem filosética exige cada vez maior formalizaglo, perde-se esta ambivaléneia e polisse mia, Os sistemas légicos puramente extensionais reduzem os valores de verdade a dois: “verdadeiro” & “falso”. Quando, porém, nao se busca apenas a significagao ou referéncia (Bedeutung), mas 0 sentido (Sin), 8 intensio do termo ou da proposi¢ao, salva-se a possibilidade de um jogo quaseilimitado com a linguagem, ‘ou melhor, salva-se aquela estranta transgressao de limites com que se deparam todas as formalizagdes no terreno da linguagem, Por vias pouco ustais para as modernas preocupagées com a linguagem, Heidegger explora radicalmente a intensionalidade. Ao lado da semantica extensional deve-se pressupor a possibitidade de uma semdniiea intensional para aceitar as proposigdes heideggerianas. Com um autor com intengdes esgencialmente ontolégieas, nada pode fazer a logica extensional, (N. do T.) $* Ihidem, 509 A.(N. do A.) 316 HEIDEGGER se mostre o em-vista-de, como cardter primario do mundo e assim repercuta 0 contetido originario da epékeina como transcendéncia do ser-ai. De modo inverso, surge, entio, mais tarde, a tendéncia, j4 pré-figurada no “mondlogo da alma” em processo de “remi- niscéncia”, em Plato, de conceber as idéias como inatas ao “sujeito”. Ambas as tentati- vas denunciam que 0 mundo tanto antecede (est além) o ser-ai como, ao mesmo tempo, se constitai de novo a si mesmo no ser-ai. A histéria do problema das idéias mostra como a transcendéncia procura abrir-se um lugar ao sol, mas sempre pende ao mesmo tempo, de 14 para c, entre dois pélos de interpretago possivel, ambos insuficientemente fundados e determinados. As idéias valem como mais objetivas que os objetos e simulta- neamente mais subjetivas que o sujeito. Assim como um ambito privilegiado do que sem- pre é passa a ocupar o lugar de fendmeno do mundo nao reconhecido, assim também a referéncia ao mundo no sentido de um determinado comportamento do mundo em face do ente é interpretada como noein, intuitus, como um perceber nio mais mediado, “razdo”. O “ideal transcendental” coincide com o intuitus originaria Nestas breves evocagées da historia, ainda oculta, do originario problema da trans- cendéncia deve ter amadurecido a convicgdo de que a transcendéncia ndo pode ser nem revelada nem compreendida, por uma fuga para o objetivo, mas unicamente por uma interpretagéo ontoldgica, constantemente renovada, da subjetividade do sujeito que tanto procede contra 0 “subjetivismo” como deve recusar atrelar-se ao “objetivismo”. ®° 3. Sobre a esséncia do fundamento A anilise do “principio da razdo” remeteu 0 problema do fundamento para o ambi- to da transcendéncia (I). Esta foi determinada, pela via de uma analise do conceito de *© Seja-me aqui permitida a observagao de que © que até o presente momento foi publicado das investiga- ses sobre Ser e Tempo nio tinha como tarefa outra coisa que © projeto conereto-desvelador da franscen- déncia (of. §§ 12-83; particularmente § 69). Isto ovorre, por sua vez, para que seja tornada possivel a tnica intengio diretriz, que ver claramente apontada no tftulo de toda a primeira parte, a de conquistar 0 “hori zonte ranscendental da questio do ser”. Todas as interpretagdes coneretas, antes de tudo ado tempo, devem set wicamente estimadas no sentido de uma possibilitagdo da questdo do ser. Blas tém tio pouco a ver com a moderna “teologia dialética” quanto com a escolastica da Idade Média. Se la (ST) 0 ser-ai é interpretado como 0 ente que realmente pode levantar algo assim como 0 problema do ser enquanto faz parte de sua existéncia, isto ndo quer dizer que este ente, que coma ser-ai pode exist autén- tica ¢ inautenticamente, seje 0 ente enfim “propriamente dito” entre todos os entes restantes, como se estes fossem apenas uma sombra dele, Justamente pelo contrario, o que se quer é conquistar, na clarificagio da transcendéncia, 0 hotizonte no qual. primeiramente, 0 conceito de ser — também o muito faiado conceito “natural” — se deixe fundamentar filosoficamente como conceito. Interpretagio ontolégica do ser na e a partir da transcendéncia do ser-ai, nfo quer. contudo, dizer derivagiio Smtice do universo do ente sem o card: ter do ser-a, do ente enguamnto ser a E no que entio se refere a objecio da “postura antropocéntrica” em Ser e Tempo, que esta em conexo com tal interpretagio false, objecdo que, agora, com excessiva facilidade, é passeda de mio em mo, esta nada diz enquanto se deixa de compreender — na consideragdo do ponto de partida, de toda a marcha e da meta do desenvolvimento dos problemas em Ser e Tempo —-, como justamente, através da claboraglo da teans- cendéncia do ser-ai,“o homem” alcanga de tal modo o “centro” que sua nulidade apenas entio pode e deve tornar se problema na totalidade do ente. Que perigos, afinal, esconde um “ponto de vista antropologica” em si, quando, justamente tudo empenba wnicamente para mostrar: a) que a esséncta do ser-ai. que esté “no cen- to”, € ekstitica, isto & “ex-eéneriea” e b) que por isso também a presumida liberdade-de-ponto-de-vista que vai contra todo o sentido do filosofar, como uma possibilidade essencialmente finita da existéncia, perma: nece um delirio? CF., para isso, a interpretagao da estrutura ekstitico-horizontal do tempo como temporali- dade em Ser ¢ Tempo, 1, pp. 316-438. (N. do A.) SOBRE A ESSENCIA DO FUNDAMENTO 317 mundo, como o ser-no-mundo do ser-af. Trata-se agora de clatificar a esséncia do funda- mento a partir da transcendéncia do ser~ Em que medida reside na transcendéncia a possibilidade interna para algo tal como fundamento em geral? O mundo se dé ao ser-ai como a respectiva totalidade do em-vis- ta-de-si-mesmo, isto €, do em-vista-de um ente que € co-originariamente: 0 ser,junto- do. . ., ente puramente subsistente, 0 ser-com com... ser-ai de outros e ser-para. .. si mesmo. O ser-ai sé pode, desta maneira, ser para si como para si mesmo, se “se” ultra- passa no em-vista-de. A ultrapassagem com o carater de em-vista-de somente acontece numa “vontade”, que como tal se projeta sobre possibilidades de si mesmo, Esta vonta. de, que essencialmente sobre{pro-jjeta e por isso projeta 20 ser-ai 0 em-vista-de-si- mesmo, ndo pode, por conseguinte, ser um determinado querer, um “ato de vontade”, & diferena de outros comportamentos (por exemplo, representar, julgar, alegrar-se). Todos 0s comportamentos radicam na transcendéncia, Aquela vontade, porem, deve “formar”, como ultrapassagem nela, 0 proprio em-vista-de, Aquilo, entretanto, que, segundo sua esséncia, antecipa projetando algo tal como em-vista-de em geral e nao 0 produz também como eventual resultado de um esforgo, é 0 que chamamos liberdade. ®” A ultrapassagem para 0 mundo € a prépria liberdade. Por conseguinte, a transcendéncia nfo se depara com 0 em-vista-de como com um valor ou fim por si existente; mas liberdade — é, na verdade, como liberdade — mantém 0 em-vista-de em-face-de-si (entegegen). Neste manter-em-face de-si do em-vista-de, pelo transcender, acontece 0 ser-af no homem, de tal maneira que, na esséncia de sua existéncia, pode ser responsavel por si, isto & pode ser um (si) mesmo livre. Aqui, porém, se desvela a liberdade, ao mesmo tempo, como a possibilitagdo de compromisso ¢ obrigagao em geral. Somente a liberdade pode deixar imperar e acontecer um mundo como mundo (welten). Mundo jamais é, mas acontece como mundo (welten). Em tiltima andlise, reside, nesta interpretag3o de liberdade conquistada a partir da transcendéncia, uma originiitia caracterizago de sua esséncia em face da determinagio da mesma como espontaneidade, isto é, como uma espécie de causalidade. O comegar- por-si-mesmo da apenas a caracteristica negativa da liberdade, isto é, de que mais para tras nao reside uma causa determinante."Esta determinagao, porém, passa por alto, antes de tudo, 0 fato de que fala de “comecar” e “acontecer” sem fazer uma diferenciagio ontolégica, sem que o ser-causa seja caracterizado expressamente e a partir do modo especifico de ser do ente que & assim, do ser-ai. Se, por conseguinte, a espontaneidade (“comegar-por-si-mesmo”) deve poder servir como caracterizagao essencial do “sujeito”, entdo se requerem duas coisas: 1. A mesmidade deve estar ontologicamente esclarecida para uma possivel e adequada formulagao do “por-si”, 2. Desta mesma clarificagio da mesmidade deve decorrer 0 esbogo do carater do acontecer de um mesmo, para poder determinar a modalidade de movimento do “comegar”. A mesmidade do mesmo que jé esté na base de toda a espontaneidade, reside, porém, na transcendéncia. Aquilo que, *7 A liberdade de que aqui se fala no deve ser confundida com livre arbitrio, Ela se liga & capacidade de transoendéncia que acompanha o ser humano enquanto tal. Mas nao & uma caracteratica do sueto, Eo lugar de encontro de sere homem ¢ assim & ceferiéa ao Dasein (cer-af; pot favor nao se modalize o ermo traduzindo-o por cis-ai-ser). Enquanto ligada a transcendéncia o fildsofo pode vincular mais tarde esta liber- dade a vontade e a clareira (Lichtung); ver Sobre a Esséncia da Verdade, Livearia Duas Cidades, Sdo Paulo, 1970. Seria erro hipostasiar liberdade como algo entitativo ou interpreta-la na diregdo da substancia ou da Subjetividade da tradigao metafisica. O filésofo forja precisamente estas dificeis carzas seminticas para se colocaralsm de uma visio substancialista on subjetivst. Na riz da ibeade, aqui em questao, esti 0 nig, ma da alévheta como velnmento edesvelamento.(N-¢0T ) 318 HEIDEGGER projetando e transpro-jjetando, faz imperar 0 mundo é a liberdade. S6 porque ela cons- titui a transcendéncia, pode ela manifestar-se, no ser-ai existente, como tipo privilegiado de causalidade. A explicitagdo da liberdade como “causalidade” se move, porém, jé, antes de tudo, dentro de uma determinada compreensio de fundamento. A liberdade como transcendéncia nao é, contudo, apenas uma “espécie” particular de fundamento, mas a origem do fundamento em geral. Liberdade é liberdade para o fundamento. A relagio originéria da liberdade para com o fundamento, nés a denominamos 0 fundar. Fundando, ela dé liberdade e toma fundamento, Este fundar radicado na trans- cendéncia esta, porém, disperso numa multiplicidade de modos. Deles ha trés: 1. O fun- dar como erigir. 2. O fundar como tomar-chao. °* 3, O fandar como o fundamentar. Se estes modos de fundar fazem parte da transcendéncia, entio as expressées “erigir”, “tomar-cho”, no podem ter certamente um significado vulgar éntico, mas devem ter um significado transcendental. Em que medida, porém, é o transcender do ser-ai um fun- dar segundo os modos mencionados? Propositadamente citado o “erigir” como “primeiro” entre os trés modos. Nao como se produzisse de si os outros. Também nio é 0 fundar primeiramente conhecido, nem o mais das vezes reconhecido. Contudo, cabe a ele justamente uma primazia, que se mostra no fato de que ja a clarificagio precedente da transcendéncia, nao péde evité-lo. Este “primeiro” fundar nao outra coisa que o projeto do em-vista-de, Se este deixar imperar livremente mundo foi determinado como transcendéncia, se ao projeto de mundo como fundar, porém, também pertencem necessariamente os outros modos de fundar, ento resulta que, até agora, nem a transcendéncia nem a liberdade foram levadas A sua plena determinagdo. Nao ha diivida de que no projeto de mundo do ser-ai reside sempre © fato de que retorna ao ente na e pela ultrapassagem. O em-vista-de, projetado no ante- (pro)-jeto, aponta de volta para o ente em sua totalidade que pode ser desvelado neste horizonte do mundo. Ao ente pertence sempre, seja em que niveis de distingao e graus de expressividade for: ente como ser-ai e ente que no possui o carter de ser-ai. Mas, no projeto de mundo, este ente, contudo, nao est revelado em si mesmo. Sim, deveria per- manecer velado, se o ser-ai projetante como projetante nio estivesse ja também em-meio Aquele ente. Este “em-meio-a. . .” nao significa nem ocorrer entre outros entes, nem tam- bem: orientar-se para este ente, tendo um determinado comporiamento face a ele. Este estar-em-meio-a... faz muito antes parte da transcendéncia, Aquilo que ultra-passa ¢ que assim se alteia deve, como tal, estar situado em meio ao ente. Enquanto assim situa- do, o ser-ai é ocupado pelo ente de tal maneira que, pertencendo ao ente, é por ele perpas- sado pela disposigdo. Transcendéncia significa projeto de mundo, mas de maneira tal que aquele que projeta jé é também perpassado pela disposigéo por obra do ente, que ele ultrapassa, Com uma tal ocupacdo (Eingenommenheit) pelo ente, a qual faz parte da transcendéncia, 0 ser-ai tomou-chao (assento) em meio ao ente, conquistou “fundamen- ** Boden-nehmen: tomar-chao, Traduzo assim para salvar o que se sugere com a expressio alema. Trata- se agui de dois modos de fundar. O primeiro como erigis, projetar, transcender, como excesso; 0 segundo como tomar-chio, ser ocupado pelo ente, fundassentar(permito-me recorrer a esta sugestiva criagao de J.C. de Melo Neto), subtragio, retragdo. A relagio originaria entre ambos os modos de fundar fzz com que ‘eciprocamente se revelem, um provocado pelo outro. O fundar como transcender revela-se como excesso em face do fundar como tomar-chao; e este revela-se como subtragio em face daquele. Estes dois comporta ‘mentos em face do fundar, ou melhor, o fundar eomo estes dois comportamentos. revelam a estrutura amb valente da finitude, Nao hé transcendéncia sem rescendéncia e vice-versa: a transcendéncia exige o tomar. chio como sua possibilidade e o tomar-chio recorre & transcendéncia para sua auto-revelagio, (Wer B. Stein: Em Busea de wna Oncologia da Finitude, in Revista Brasileira de Filosofia, volume XIX, 1969, pp. 399-420 (.d0T) SOBRE A SENCIA DO FUNDAMENTO 319 to”, Este “segundo” fundar n&o surge apds 0 “primeiro”, mas ¢ com ele “simulténeo”. Com isto nfo se quer dizer que eles existem no mesmo agora, mas: projeto de mundo ¢ cocupacao pelo ente fazem, como modos de fundar, respectivamente, parte de uma tempo ralidade, na medida em que constituem sua temporalizagao (Zeiligung). Mas, do mesmo modo como o futuro precede “no” tempo, mas somente se temporaliza na medida em que Justamente tempo, isto & também passado e presente se temporalizam na especifica unidade-do-tempo, assim também os modos de fundar que se originam na transcendéncia mostram esta conexao, Esta correspondéncia, porém, subsiste porque a transcendéncia radica na esséncia do tempo, isto é, em sua constituicdo ek-statico-horizontal. °° ( ser-ai nao poderia, enquanto ente, ser pelo ente perpassado pela disposigao e, em conseqiiéncia, por exemplo, ser por ele cercado, por ele ocupado e por ele atravessado — faltar-Ihe-ia, alias, espago para isso —, se esta ocupagdo pelo ente nao fosse acompa- nhada por uma irrupgao de mundo, ainda que fosse um mundo apenas crepuscular. Mesmo que o mundo desvelado tenka pouca ou nenhuma transparéncia conceitual; mesmo que mundo seja até interpretado como wm ente entre outros; pode faltar um saber expresso em torno do transcender do ser-ai; a liberdade do ser-ai, que traz consigo 0 pro- jeto de mundo, pode estar apenas desperta — o ser-ai é, contudo, ocupado pelo ente, ape- nas como ser-no-mundo. O ser-ai funda (erige) mundo apenas enquanto se autofunda em meio ao ente, No fundar com o carter de erigir, como projeto da possibilidade de si mesmo, resi de, entretanto, o fato de o ser-ai sempre se exceder (iibersehwingt). O projeto de possibili- dades 6, segundo sua esséncia, sempre mais rico que a posse que repousa naquele que projeta. Mas uma tal posse é propria do ser-ai, porque se encontra situado, como proje- tante, em meio ao ente. Com isto ja estio subtrafdas ao ser-af certas outras possil dades — ¢ isto simplesmente através de sua propria faticidade. Mas somente esta subtra- ¢d0 (privagio) de certas possibilidades de seu poder-ser-no-mundo, decididas na ocupagiio pelo ente, traz para o ser-ai, como seu mundo, as possibilidades “realmente” acessiveis do projeto de mundo. A privagao justamente consegue. para a obrigatoriedade do ante-(pro}-jeto que permanece projetado a forga de seu imperar no Ambito existencial do ser-ai. A transcendéncia é, conforme aos dois modos de fundar, ao mesmo tempo, aguilo que excede e que priva. Que 0 projeto de mundo, cada vez. se excedendo, somente se torne poderoso ¢ posse na privagio, é ao mesmo tempo, um documento transcen- dental da finitude da liberdade do ser-ai. Ser que nao se manifesta nisto, até mesmo, a esséncia finita da liberdade em geral? Para a explicitagio do diverso fundar da liberdade é primeiramente essencial ver a unidade dos modos de fundar, até aqui examinados, vinda 4 luz na harmonia transcen- dental de excesso ¢ privagao. O ser-ai, entretanto, nao é um ente que apenas se acha situado em meio ao ente; ele se relaciona também com o ente e, desta maneira, consigo mesmo. Este relacionar-se com o ente é, primeiramente ¢ 0 mais das vezes, equiparado a transcendéncia. Mesmo que isto revele um desconhecimento da esséncia da transcendéncia, contudo, deve set examinada como problema a possibilidade transcendental do comportamento intencio- nal. E se, realmente, a intencionalidade é um privilegiado elemento constituinte da exis- téncia do ser-ai, nfo pode ser omitida numa clarificagio da transcendéncia projeto de mundo possibilita, certamente — 0 que aqui no pode ser mostrado —. a prévia compreensdo do ser do ente, mas cle mesmo nao 6 referéneia do ser-ai a0 A interpretagio temporal da doA) a consideragdo. (N. 320 HEIDEGGER ente, Do mesmo modo, a ocupagdo que faz 0 ser-ai situar-se em meio ao ente (e, na ver- dade, nunca sem desvelamento do mundo) ¢ ser por ele disposto nfo 6 um comporta. mento em face do ente. Mas ambos sio — na sua unidade que caracterizamos — a Possibilitagdo transcendental da intencionalidade, e isto de maneira tal que, como modos de fundar. temporalizam juntamente com eles um terceiro modo: 0 funda: como fuunde. mentar. Neste a transcendéncia do ser-ai assume a possibilitagao da revelagao do ente em si mesmo, a possibilidade ca verdade éntica, “Fundamentar” no seré tomado aqui no estreito e derivado sentido do demonstrar de proposigdes Ontico-teoréticas, mas numa significago fundamentalmente originaria, De acordo com isto, fundamentacao significa tanto camo possibilitagdo da questo do porqué em geral. Tornar visivel o caréter proprio originariamente fundador do funda. mentar, quer dizer, conforme isso, clarificar a origem transcendental do porqué como tal. Procurados nfo so, portanto, 0s motivos da irupgdo fética da questdo do porqué no Ser-ai, mas procura-se a possibilidade transcendental do porqué em geral. Por isso deve ser interrogada a transcendéncia mesa, na medida em que foi determinada através dog dois modos de fundar até aqui examinados. O fundar que erize antecipa, como projeto de mundo, possibilidades de existéncia, Existir significa sempre: situado em meio ao ente, comportar-se em face dele — do ente que ndo possui o cardter do ser-ai, de si mesmo ¢ de seu semethante — de tal maneira que neste comportamento situado sempre esteja em ira 0 poder-ser do ser-ai. No projeto de mundo é dado um excesso de possivel, em vista do qual ¢ no ser perpassado pelo imperar do ente (real), que de todos 0s lados nos cerea no sentimento de situacdo brota 0 porque, Mas, pelo fato de os dois modos de fundar, primeiro examinados, fazerem parte de uma unidade na transcendéncia, a origem do porqué transcendentalmente necessaria, Com sua origem o porqué também ja se diversfica, As formas fundamentais so: por que assim © ndo assado? Por que isto ¢ ndo aquilo? Por que afinal algo e ndo nada? Neste porqué, seja de que modo for expresso, jé reside, porém, uma pré-compreensio, ainda que pré-conceitual, do que-ser, como-ser e ser (nada) em geral. Isto, porém, quer dizer: ja contém a resposta primordial, primeira e Gltima para todo o questionar. A compreensio do ser da, como resposta que a tudo precede simplesmente, a primeira ¢ al. tima fundamentagdo. Nela a transcendéncia é fundamentante enquanto tal. Porque nisso ser ¢ constituigao de ser so desvelados, chama-se o fundamentar transcendental verdade ontoldgica. Este fundamentar esté “A base” de todo 0 comportamento em face do ente, de tal modo que somente na claridade da compreensio do ser 0 ente pode ser revelada em si mesmo (sto & enquanto o ente que ele & e como o €). Porque, entretanto, todo o revelar. se do ente (verdace dntica) é, de anteméo, perpassado transcendentalmente pelo imperar do findamentar que caracterizamos, por isso, devem, todo 0 descobrir e revelar Snticos, ser a sua maneira “fundantes”. isto é devem legitimar-se. Na legitimagio se realiza 2 aduedo do ente exigida respectivamente pelo que-set e como-ser do referido ente ¢ do modo de desvelamenio (verdade) que the & proprio; um tal ente entdo, por exemplo, se manifesta como “causa’ e “motivo” (Beweggrund) para uma ja revelada conexio de entes. Pelo fato de a wranscendéncia do ser-ai, enquanto projeta ¢ esta situada, enquanto clabora compreenso de ser, fundamenta, e pelo fato de este fundar ser co-originario com os dois primeiros citados, na unidade da transcendéncia, isto é, pelo fato de brotar da liberdade finita do ser-at. por isso pode o ser-ai, em suns iegitimagdes Faticas e justice. ges, desembaragar-se das “razdes”, sufocar 0 apelo a elas, transtorné-las e encobriles Em conseqiiéncia desta origem da fundamentagao e, por eamseguinte, também da lepit SOBRE A ESSENCIA DO FUNDAMENTO 321 magio, fica, em cada situagdo, entregue a liberdade. até que ponto a legitimagdo é exer- cida e se ela consente na fundamentagao propriamente dita, isto é no desvelamento de sua possibilidade transcendental. Ainda que ser sempre esteja desvelado na transcen- déncia, nfo € necessaria, contudo, uma formulagiio ontolégico-conceitual. Assim, pois, de resto, a transcendéncia pode ficar oculta como tal ¢ somente ser conhecida numa explicitago “indireta”. Mas mesmo entio ela esta desvelada, pois, ela justamente deixa irromper o ente na constituigdo fundamental do ser-no-mundo, em que se manifesta 0 autodesvelamento da transcendéncia. Propriamente se desvela, porém, a transcendéncia como origem do fundar, quando este é levado a eclodir em seu originar-se, na sua triplici- dade. De acordo com isto, fundamento quer dizer: possibilidade, chao, legitimacdo. Ape- nas o fundar da transcendéncia, triplamente disperso, causa, enquanto originariamente unifica, 0 todo em que o ser-ai sempre deve poder existir, Liberdade & neste tripiice modo, liberdade para o fundamento. O acontecer da transcendéncia como fundar é 0 for mar-se do espago em que pode irromper o respectiv manter-se fatico do ser-ai fitico em meio ao ente como totalidade. Reduzimos, por conseguinte, o tradicional nimero quatro de fundamentos a trés, ou coincidem os trés modos de fundar com as trés modificagdes do prdton héthen em Aris- tdteles? To extrinsecamente nao se pode fazer a comparacio; pois é caracteristica pr pria da primeira exposigéo dos “quatro fundamentos” que, ao se faz6-lo, nao se distingue ainda fundamentalmente entre os fundamentos transcendentais ¢ as causas especifica- mente dnticas. Aqueles séo apenas os “mais gerais” com relagdo a estas. A origina riedade dos fundamentos transcendentais ¢ seu carater especifico de fimdamento ficam ainda encobertos sob a caracterizacio formal de “primeiros” ¢ “supremos” prineipios, Por isso também Ihes falta a unidade. Ela somente pode subsistir na co-originariedade da origem transcendental do triplice fundar. A esséncia “do” fundamento nao se deixa nem procurar e muito menos achar pelo fato de se perguntar por um género universal que deveria surgir como resultado pela via de uma “abstragio”, A esséncia do fundamento é 4 triplice distribuicdo do fundar em projeto de mundo, ocupagdo no (pelo) ente e funda- mentagdo ontoldgica do ente que brota transcendentalmente. E somente por isso jé 0 mais antigo interrogar pela esséncia do fundamento mos- tra-se imbricado com a tarefa de uma clarificago da esséncia de ser e verdade. Néo se poderd, porém, perguntar, contudo, ainda agora, por que estes trés elemen- tos determinantes da transcendéncia que fazem parte de uma unidade so designados com a mesma expresso “fundamentos”? Subsiste aqui apenas ainda uma comunidade verbal artificial ¢ forgada e que se reduz a jogo de palavras? Ou sao os trés modos de fundar, contudo, ainda idénticos numa perspectiva — ainda que isto seja, em cada caso, diferente? A pergunta deve realmente receber resposta positiva. A clarificagio do signifi. cado, porém, com respeito ao qual os trés modos inseparaveis de fundar se correspondem unitariamente e, contudo, diversificados, nao se deixa concretizar ao “nivel” da presente considerago. Baste, como alusao, a indicagdo de que o erigir, tomar-chio ¢ legitimaco brotam, cada um a seu modo, do cuidado pela estabilidade e consisténcia, 0 qual, pot sua vez, somente é possivel como temporalidade. Afastando-nos intencionalmente desta Area de problemas, analisaremos agora brevemente, num retrospecto sobre 0 ponto de partida de nossa investigacao, se alguma coisa e o que foi ganho para o problema “do principio da razio” através da tentada clari ficagio da “esséncia” do fundamento. O principio diz: todo ente tem sua razio (funda mento). Pelo que precedeu, é primeiro esclarecido por que isto é assim, Pelo fato de ser, originariamente, enquanto previamente compreendido, primordialmente fundar, anuncia 322 HEIDEGGER cada ente enquanto ente, & sua maneira, “razdes”, quer sejam clas propriamente captadas © adequadamente determinadas, quer no. Pelo fato de “fundamento” ser um essencial carter transcendental do ser em geral, por isso vale o principio da radio do ente. A esséncia do ser, porém, pertence fundamento, porque ser (nao ente) somente se di na transcendéneia como o fundar situado que projeta mundo. Em seguida, tornou-se claro, no que se refere ao principio da razao, que o “lugar de origem” deste principio nao esta, nem na esséncia da enunciagao, nem na verdade da proposigo, mas na verdade ontol6gica, isto, porém, quer dizer, na propria transcen- déncia. A liberdade é a fonte do principio do fundamento; pois nela, na unidade de exces- so e privagaio, se funda o fundamentar que se configura como verdade ontolégica: Se partirmos desta fonte, néo compreenderemos o principio apenas em sua possibi- lidade interna, mas nossos olhos se abrirfio para o digno de nota que até agora néo cha- mou a atengao, de suas formulagdes, que nas formulas vulgares ¢ certamente reprimido. Justamente em Leibniz se encontram formulagSes do principio que expressam um momento aparentemente irrelevante de seu contetido, Numa justaposig&o esquematica sdo 0s seguintes: ratio est cur hoc potius existit quam aliud; ratio est cur sic potius existit quam aliter; ratio est cur aliquid potius existit quam nihil, O cur se exterioriza como cur potius quam. Também aqui 0 primeiro problema nao é por que via e com que meios se decidirio estas questdes, cada ver faticamente postas em comportamentos énticos. Preci- sa de explicitagao, primeiro, qual a razio de se ter podido juntar ao cur o potius quar. Toda legitimagdo deve se mover na esfera do possivel, porque ela ja, como compor- tamento intencional em face do ente, é tributdria, no que se refere & sua possibilidade, de uma fundamentagdo (ontologica) expressa ou tacita. Essa oferece, de acordo com sua esséncia, necessariamente e sempre, campos de desenvolvimento (Ausschlagbereiche) do possivel — no que o carter de possibilidade se modifica conforme a constituigao onto: logica do ente a ser desvelado —, porque o ser (constituig&o do ser), que fundamenta, como compromisso transcendental, radica, em favor do ser, em sua liberdade. O reflexo desta origem da esséncia do fundamento no fundar da liberdade finita mostra-se no “po- tius quam” da formula do principio de razo. Mas novamente impele a clarificagao das concretas conexdes transcendentais entre “razdo” e “antes que”, para a explicitagio da idéia de ser em geral (que-ser, como-ser, algo, nada e nulidade). Conforme sua forma e papel tradicionais, 0 princfpio da razio ficou prisioneiro da exteriorizagao, que traz consigo necessariamente uma primeira clarificagao de tudo “que possui carater de principio”. Pois também o proclamar uma proposigéio como “princi- pio” e, porventura, junta-la com o principio de identidade e 0 de nao-contradicio ou mesmo dele deduzi-lo néo conduz para a origem, mas se assemelha a um corte de todo © questionamento posterior. Aqui € preciso atentar, além disso, para 0 fato de que os principios de identidade ¢ de nao contradig&o nfo sio sambém apenas transcendentais, mas apontam para tras, para algo mais originario, que nao possui caréter proposicional, € que muito antes faz parte do acontecer da transcendéncia como tal (temporalidade). Assim, pois, também o principio da razao continua perturbando a esséncia do fun- damento e sufoca, na sua forma sancionada de principio, uma problematica que primeiro sacudiria a ele mesmo. Mas esta “desordem’ ¢ perturbagdo nao devem, porventura, ser imputadas & presumivel “superficialidade” de filésofos isolados e nao podem por isso também ser superados por um assim-dito “progresso” (“Weiterkommen") mais radical © fundamento tem sua desordem (ndo-esséncia) porque brota da uberdade finita. Ela mesmo nao se pode subtrair a0 que dela assim brota, O fundamento, que transcendendo brota, remonta a propria liberdade, e esta, como origem, se transforma ela mesma em SOBRE A ESSENCIA DO FUNDAMENTO 323 “fundamento”. A liberdade é a razdo do fundamento (0 fundamento do fundamento). Isto, sem divida, nao no sentido de uma “iteragao” formal sem fim. O ser-fundamento da liberdade nao possui — isto facilmente se esta tentado a pensar — 0 cardter de um dos modos de fundar, mas se determina como a unidade fundante da distribuigao transcen- dental do fundar. Enquanto este fundamento, porém, a liberdade ¢ 0 abismo (sem-funda- mento) do ser-ai. Nao que o comportamento individual livre seja sem razio de ser (grun- alos); mas a liberdade situa. em sua esséncia como transcendéncia, o ser-af como poder- ser diante de possibilidades, que se escancaram diante de sua escolha finita, isto 6, que se abrem em seu destino, Mas o ser-ai deve, na ultrapassagem do ente que projeta mundo, ultrapassar-se a si mesmo, para apenas entio poder compreender-se como abismo a partir de sua elevagao. E esta abissalidade do ser-ai no é, por sua vez, nada do que se abriria para uma dialé- tica ou uma andlise psicoldgica. A abertura do abismo na transcendéncia fundante é muito antes um movimento primordial, que a liberdade realiza conosco mesmo, “dando- nos a entender” com isto, isto é, antecipando-nos como originério conteiido de mundo, de que este, quanto mais originariamente ¢ fundado, com tanto mais simplicidade atinge 0 coragio do ser-ai, sua mesmidade no agir. A ndo-esséncia (0 elemento perturbador) do fundamento 6 por conseguinte, unicamente “‘superada” no existir fatico, mas nunca afastada. Se, entretanto. a transcendéneia, no sentido da liberdade para o fundamento, é, em primeira ¢ Gltima anélise. compreendida como abismo, entio se agudiza, por conse- guinte, também a esséncia daquilo que foi denominado a ocupagdo do ser-ai no e pelo ente, O ser-ai — ainda que situado em meio ao ente e por ele perpassado pela disposigio == estd jogado como livre poder-ser entre os entes. O fato de ser, segundo a possibili- dade, um mesmo e sé-lo em correspondéncia fatica com sua liberdade; 0 fato de a trans- cendéncia se temporalizar como acontecer originario, nao esta no poder desta liberdade mesma, Tal impoténcia (derelicgiio), porém, nio é primeiro o resultado da invasio do ser-ai pelo ente, mas ela determina o ser do ser-ai como tal. Todo projeto de mundo é, por isso, jogado. A explicitagiio da esséncia da finitude do ser-ai a partir de sua constitui- G40 ontoldgica deve preceder a toda base “ébvia” da “natureza” finita do homem, a toda descrigdo de qualidades que somente sio conseqiiéncias da finitude, ¢, por tltimo, a todos os “esclarecimentos” sobre a origem éntica da mesma. ‘A esséncia da finitude do ser-ai se desvela, porém, na transcendéncia como liber- dade para o fundamento. E assim @ 0 homem, enquanto transcendéncia existente excedendo-se em possibili- dades, um ser da distancia, Somente através de distancias originérias, que em sua trans- cendéncia ele se forja para com todo ente, comega a ascender dentro dele a verdadeira proximidade para com as coisas. E s6 o ser capaz de abrir os ouvidos para a distancia temporaliza para o ser-ai como mesmo o despertar da resposta da co-existéncia (Mitda- sein) no ser-com (Mitsein) com o qual ele pode sacrificar a egoidade para se conquistar como 0 auténtico mesmo. SOBRE A ESSENCIA DA VERDADE * * A primeira edigio deste trabalho foi impressa em 1943. Encerra o conferéncia pliblica qu texto, diversas vezes revisto, de uma sobre o mesmo titulo, foi repetidas vezes proferida, desde 1930. A presente edigio n modificagdes. O primeiro parégrafo da observagio final falta no texto anterior. Nota do Tradutor Este texto jé € familiar para muitos estudiosos de filosofia, Apesar de reduzido na extensio, sua trajet6ria foi das mais luminosas no pensamento contemporaneo. O pré: prio fildsofo a ele torna, seguidamente, quando sustém seu caminho e se volta na busca de uma auto-interpretagdo. Nele apontam os primeiros sinais da viravolta (Kehre). Enquanto marco inicial da passagem do primeiro ao segundo Heidegger, tornou-se 0 necessario ponto de referéncia para o desbravador desta enigmatica regidio do pensador. E um texto sobre 0 qual jé se debrugaram muitas geragSes de universitarios e uma geragao de fildsofos. Aj sempre se encontram novos desafios e novos impulsos para pros seguir na interrogagio em tomo da questo, velha como a humanidade, mas sempre insolvida como o proprio mistério, que sustenta o homem neste velho planeta: Que é a Verdade? Sobre a Esséneia da Verdade nos auxilia a perguntar pelo sentido ¢ evolugdo do conceito de verdade em Heidegger. Condug-nos, a0 mesmo tempo, a pensar as conse- giiéncias da intuigao do filsofo e a confronté-lo com outras definigdes de verdade. Que ha de subjetivo no conceito de verdade esbogado em Ser e Tempo? Qual a novidade introduzida pelo presente texto? Pode-se dizer que ai comega uma concepgio ma tiva de verdade? Tem algum sentido falar em “subjetivo-objetivo”, na discussio da ver- dade em Heidegger? Quais 0s elementos que distinguem a verdade como adequagao ¢ a verdade como desvelamento? Sendo a adequagaio um conceito derivado, estreito e equi- voco da verdade, nao é, por outro lado, a verdade como desvelamento algo muito vago ¢ amplo demais? Qual a utilidade desta redefinigao heideggeriana para a concepgiio de verdade nas ciéncias em geral? Que dizer da interpretagdo que o filésofo propde do voca bulo grego alétheia? Coincide o sentido de alétheia com o conceito heideggeriano de ver- dade? E possivel um confronto da concepgiio de verdade como desvelamento com a ver- dade como a compreende a analitica da linguagem? Houve uma evolugio do conceito de verdade em Heidegger, depois da redaciio do texto em questo? Como deve ser entendida arelagio entre verdade ¢ liberdade? E a atitude do filésofo que entrega a liberdade a ver- dade? Nao se mostra aqui a falta de responsabilidade da liberdade diante da verdade? Nio sio necessarias a busca ¢ a elaboragio eritica da verdade, como o queria Husserl!? N§o encontrou Heidegger. entretanto, o fundamento da verdade que amplia as proprias lades do conceito de verdade em Husserl? Como situar a complementaridade concepgdes de verdade nos dois filésofos? Basta a verdade que resulta da redugao ou @ preciso pensar também a verdade ligada a historicidade, 0 que vale dizer, & nao-ver- dade? Qual a verdadeira relag&o que existe entre verdade e praxis? 328 HEIDEGGER A solidez ¢ 0 vigor de Sobre a Esséncia da Verdade, como texto filoséfico, revelam- se, justamente, nessz capacidade de suscitar, em cada leitor atento, estas e outras interro- gag6es. Encontra-se ai também a garantia de sua presenga duradoura no diélogo fileséfico. ERNILDO STEIN 329 Introdugdo. Trata-se da esséncia da verdade. A pergunta pela esséncia da verdade no se preo- cupa com o fato de a verdade ser a verdade da experiéncia pratica da vide ou a da conje- tura no campo econdmico, a verdade de uma reflexdo técnica ou de uma prudéncia poli- tica; ou, mais especialmente, com o fato de a verdade ser a verdade da pesquisa cientifica ou da criagdo artistica, ou mesmo a verdade de uma meditagio flosGfica ou de uma fé religiosa. A pergunta pela esséncia se afasta de tudo isto e dirige seu olhar para aquilo que unicamente caracteriza toda “verdade” enquanto tal. Mas nao nos desgarramos, com a questio da esséncia, no vazio do universal abs- trato que corta o folego a qualquer pensamento? Nao manifesta a excentricidade de tal interrogagao que a filosofia nao tem apoio na realidade? Um pensamento radical voltado para o real deve aspirar, primeiramente ¢ sem rodeios, a instaurar a verdade real que hoje nos oferece medida ¢ seguranga contra a confusio da opinido ¢ do calculo. Que importa, em nossa indigéncia concreta, a questo da esséncia da verdade que em sua abstragdo se afasta de toda realidade? Nao € a questo da esséncia o problema mais inessencial e gratuito que se possa colocar? Ninguém ira subtrair-se a0 evidente acerto destas objegdes. Ninguém poder des- prezar levianamente a urgéncia ¢ gravidade delas. Mas que se exprime nestas objegdes? O simples “bom senso”. Ele teima em sustentar as exixéncias do imediatamente titil e se evolta contra o saber que se refere a esséncia do ente, saber fundamental que, j4 hd muito tempo, itaz 0 nome de “filosofia” senso comum tem sua propria necessidade; ele defende seu direito usando a tnica arma de que dispde. Esta € 0 apelo 4 “evidéncia” de suas pretensdes e eriticas. A filoso- fia, por sua vez, jamais pode refutar o senso comum porque este nao tem ouvidos para sua linguagem. Pelo contririo, ela nem deve ter a intengio de refuti-lo porque o senso comum no tem olhos para aquito que a filosofia prope para ser visto como essencial. Além do mais, nds mesmos nos movimentamos no nivel de compreensio do senso comum, na medida em que nos cremos em seguranga no seio das diversas “verdades” da experiéncia da vida, ¢ da ago, da pesquisa, da criago e da f. Nés mesmos part pamos da revolta do “evidente” contra tudo o que exige ser posto em questo, Se, no obstante, é necessdrio perguntar pela verdade, entio se exige uma resposta a0 nosso desejo de saber onde hoje nos encontramos, Queremos saber 0 que, hoje em dia, acontece conosco. Clamamos pela meta a ser proposia ao homem como ser historial ¢ histria mesma, Queremos a “verdade™ real. Portanto, existe, contudo. uma preocupagaio pela verdade! ci- Entretanto, enquanto reclamamos a “verdade” real, jé devemos saber o que afinal significa verdade enquanto tal. Ou sabe-se isto apenas “confusamente” e “de modo geral”? No é por acaso este “saber” impreciso ¢ aproximativo e a indiferenga com rela- ¢io a ele, no fundo, mais miserdvel que a pura e simples ignorancia da esséncia da verdade? 1. O conceito corrente de verdade © que, pois, se entende ordinariamente por “verdade”? Esta palavra to sublime e, a0 mesmo tempo, tio gasta e embotada designa o que constitui o verdadeiro enquanto verdadeiro. O que é ser verdadeiro? Dizemos, por exemplo: “E uma verdadeira alegria colaborar na realizacao desta tarefa”. Queremos dizer que se trata de uma alegria pura, real. O verdadeiro € 0 real. Assim falamos do ouro verdadeito distinguindo-o do falso. O our falso no é realmente aquilo que aparenta. E apenas uma “aparéncia” e por isso irreal. O irreal passa pelo oposto do real. Mas 0 ouro falso é. contudo, algo real. E assim que dizemos mais claramente: 0 ouro real € 0 ouro auténtico. Mas um ¢ outro so “reais”, 0 ouro auténtico nao o é nem mais nem menos que o falso. O verdadeiro do ouro auténtico nao pode, portanto, ser simplesmente garantido pela sua realidade. Retorna a questo: Que significam aqui auténtico e verdadeiro? O ouro auténtico € aquele ouro real, cuja realidade consiste na concordancia com aquilo que “propriamente”, prévia e constantemente entendemos como ouro. Pelo contrario, ali onde presumimos que haja ouro falso, exclamamos: “Aqui algo nao estd de acordo”. O que, entretanto, € assim “como deve ser” nos faz dizer: esta de acordo. A coisa esta de acordo. Nao designamos, porém, apenas verdadeira uma alegria real, 0 ouro auténtico € qualquer ente deste género, mas chamamos ainda, e antes de tudo, verdadeiras ou falsas nossas enunciagdes sobre o ente, que, por sua vez, conforme sua natureza, pode ser auténtico ou inauténtico, desta ou daquela mancira em sua realidade. Uma enunciagdo & verdadeira quando aquilo que ela designa e exprime esta conforme com a coisa sobre a qual se pronuncia. Também neste caso dizemos: est de acordo. O que, porém. agora estd de acordo no é a coisa, mas sim a proposigio. verdadeiro, seja uma coisa verdadeira ou uma proposigaio verdadeira, é aquilo que est de acordo, que concorda. Ser verdadeiro e verdade significam aqui: estar de acordo, e isto de duas maneiras: de um lado, a concordancia entre uma coisa e o que dela previamente se presume, e, de outro lado, a conformidade entre o que é significado pela enunciagio e a coisa, Este duplo carater da concordancia traz A luz a definigio tradicional da esséncia da verdade: Veritas est adaequatio rei et intellectus. Isto pode significar: Verdade é a ade quagio da coisa com o conhecimento. Mas pode se entender também assim: Verdade ¢ a adequacio do conhecimento com a coisa. Ordinariamente a mencionada definigao é apenas apresentada pela formula: Veritas est adaequatio intellectus ad rem. Contudo, a verdade assim entendida, a verdade da proposigao, somente & possivel quando fundada na verdade da coisa, a adaequatio rei ad intellectum. Estas duas concepgdes da esséncia da veritas significam um conformar-se com... e pensam, assim, a verdade como conformidade. 332 HEIDEGGER Todavia, uma destas concepgdes nao resulta simplesmente da conversao da outra. Pelo coniririo, incellectus ¢ res sio pensados de modo diferente, num caso ¢ noutro. Para reconhecer isto é preciso que conduzamos a expressdo corrente do conceito ordinario de verdade & sua origem imediata (medieval). A veritas, interpretada como adaequatio rei ad intellectum, nao exprime ainda o pensamento transcendental de Kant, que & posterior @ somente se tornar4 possivel a partir da esséncia humana enquanto subjetividade, segun- do a qual “os objetos se conformam com nosso conhecimento”. Mas a formula acima decorre da fé cristae da idéia teoldgica segundo as quais as coisas, em sua esséncia e existéncia, na medida em que, como criaturas singulares (ens creatum), correspondem & idéia previamente concebida pelo intellectus divinus, isto & pelo espirito de Deus. Assim, clas concordam com a idéia e com ela se conformam, sendo neste sentido “verdadeiras”, Também o intellectus humanus € um ens creatum. Como faculdade concedida por Deus, 0 intelecto humano deve adequar-se a idéia. Ora, o intelecto somente é conforme com a idéia porque realiza a adequagdo do que pensa com a coisa, tendo esta que ser conforme com @ idéia. A possibilidade da verdade do conhecimento humano se funda, se todo ente € “criado”, sobre o fato de a coisa e a proposig&o serem igualmente conformes com a idéia e serem, por isso, coordenadas um ao outro a partir da unidade do plano da cri sao. A veritas enquanto adaequatio rei (creandae) ad intellectum (divinum) garante a veritas enquanto adaequatio intellectus (humani) ad rem (creatam). Veritas significa por toda parte ¢ essencialmente a convenientia e a concordancia dos entes entre si que, por sua vez, se fundam sobre a concordancia das criaturas com o criador, “harmonia” deter- minada pela ordem da criagio. Mas esta ordem pode também — destigada da idéia de criagtio — ser representada de modo geral e indeterminado como ordem do mundo. Em lugar da ordem da criagao teologicamente, surge a ordenacio poss{vel de todos os objetos pelo espirito que, como raziio universal (mathesis universalis), se da a si mesmo sua lei e postula, assim, a inteli- aibilidade imediata das articulagdes de seu proceso (aquilo que se considera como “logi- co”). Nao é entiio mais necessario que se justifique, de maneira especial, por que a essén cia da verdade da proposigio reside na conformidade da enunciag3o. Mesmo la, onde, com not6rio insucesso, se procura esclarecer 0 modo como se fixou esta conformidade, cla j& sempre esta pressuposta como a esséncia da verdade. Paralelamente, a verdade da coisa significa sempre o acordo da coisa dada com seu conceito essencial, tal como o “espirito” (a raziio) 0 concebe. Assim, pode parecer que esta concepgdo de esséncia da verdade seja independente da interpretagdo relativa a esséncia do ser de todo ente: esta liltima inclui, entretanto, necessariamente uma interpretagio correspondente da esséncia do homem como sujeito que é portador e realizador do intellectus . Assim, a formula da esséncia da verdade (veritas est adaequatio intellectus et rei) adquire, para cada um e imediatamente, uma evidente validez. Sob o império da evidéncia deste conceito de esséncia da verdade, mal ¢ mal meditada em seus fundamentos essenciais, admite-se como igualmente evidente que a verdade tem um contrario e que ha a ndo-verdade. A ndo-verdade da proposigao (nao-conformidade) ¢ 2 no concordancia da enunciagao com a coisa. A ndo-verdade da coisa (inautenticidade) significa o desacordo de um ente com sua esséncia, A nao-verdade pode ser compreendida cada vez como nao estar de acordo. Isto fica excluido da esséncia da verdade. E por isso que a verdade, enquanto pensada como parte contraria da verdade, pode ser negligenciada quando se trata de apreender a pura esséncia da verdade Mas. afinal, € preciso ainda proceder-se a um especial desvelamento da esséncia da verdade? Nao esta a esséncia pura da verdade suficientemente explicitada por esta nogdo SOBRE A ESSENCIA DA VERDADE 333 comumente valida que nenhuma weoria perturba e que protege sua evidéncia. Se, enfim, tomarmos a redugdo da verdade da proposigdo & verdade da coisa, por aquilo que ela significa ordinariamente, a saber, por uma explicagao teoldgica, e se procurarmos man- ter inteiramente depurada a determinagao filos6fica da esséncia de qualquer intromissao da teologia ¢ se restringirmos 0 conceito de verdade A verdade da proposigao, entio nos encontramos, 20 mesmo tempo, com uma tradigdo antiga do pensamento, ainda que nao a mais antiga, segundo a qual a verdade consiste na concordancia (ombiosis) de uma enunciagao (I6gos) com o seu objeto (pragma). Que nos restara para investigar se admi- tirmos que sabemos 0 que significa a concordancia de uma enunciag&io com uma coisa? Mas sabemos nés isto? 2. A possibilidade intrinseca da concordancia Falamos da concordancia em diversos sentidos. Dizemos, por exemplo, em pre- senga de duas moedas de cinco marcos postas sobre 4 mesa: hé concordincia entre elas. Elas esto em concordancia pela identidade de seu aspecto. Por isso, elas tém este aspec- to em comum ¢, sob este ponto de vista, siio iguais, Falamos ainda em concordancia quando dizemos, por exemplo, de uma das moedas: esta moeda é redonda. Aqui a enun- ciago esta em concordancia com a coisa. A relagio, neste caso, nao se estabelece de uma coisa a outra, mas entre uma enunciagao e uma coisa, Mas em que devem convir a coisa ¢ a enunciagao, ja que ambos os elementos da relagdo so manifestamente diferen- tes pelo seu aspecto? A moeda é feita de metal. A enunciagio nao é de nenhum modo material. A moeda é redonda. A enunciag3o no tem nenhum carater espacial. A moeda permite comprar um objeto. A enunciagdo jamais é um meio de pagamento. Mas, apesar de todas as diferengas, a enunciagaio em questo concorda, enquanto é verdadeira, com a moeda. E este acordo, conforme o conceito corrente de verdade, deve ser concebido como uma adequagao. Como pode aquilo que ¢ completamente diferente, a enunciagao, adequar-se moeda de cinco marcos? Esta enunciagdo deveria entio tornar-se uma moeda ¢ desta maneira cessar absolutamente de ser ela inesma. Mas isto a enunciagao ja- mais consegue. No momento em que tal coisa acontecesse, uma enunciagdo enquanto tal ndo mais poderia estar em concordancia com a coisa. Para realizar a adequagio, a enun- ciagiio deve permanecer, ou antes, tornar-se 0 que & Em que consiste, portanto, sua esséncia, fundamentalmente diferente de qualquer coisa? Como pode uma enunciagao, mantendo sua esséneia, adequar-se a algo diferente, a uma coisa? A adequago no pode significar aqui um igualar-se material entre coisas desiguais. A esséncia da adequagio se determina antes pela natureza da relag&o que reina entre a enunciago ¢ a coisa. Enquanto esta “relagio” permanecer indeterminada ¢ infundada em sua esséncia, toda e qualquer discussio sobre a possibilidade ou impossibilidade, sobre a natureza ¢ 0 grau desta adequacio, se desenvolve no vazio. A enunciag&o sobre a moeda “se” relaciona com esta coisa enquanto a apresenta € diz da coisa apresentada 0 que ela é sob o ponto de vista principal. A enunciagio apre- sentativa exprime, naquilo que diz da coisa apresentada, aquilo que ela é, isto é expri- me-a tal qual é, assim como €. O “assim como” se refere & apresentagiio e a0 que é apre- sentado. “Apresentar™ significa aqui, descartando todos os preconceitos “psicologistas” ¢ “epistemol6gicos”, o fato de deixar surgir a coisa diante de nds enquanto objeto. O que 334 HEIDEGGER assim se opie a nés deve, sob este modo de posigao, cobrir um Ambito aberto para nosso encontro, mas permanecer, ao mesmo tempo, também a coisa em si mesma e se manifes tar em sua estabilidade. Esta aparigdo da coisa, enquanto cobre (mede) um ambito para © encontro, se realiza no seio de uma abertura cuja natureza de ser aberto nao foi criado pela apresentagdo, mas é investido e assumido por ela como campo de relagao. A relagao da enunciagao apresentativa com a coisa é a realizagdio desta referéncia; esta se realiza. originariamente e cada vez, como 0 desencadear de um comportamento. Todo 0 compor. tamento, porém, se caracteriza pelo fato de, estabelecido no seio do aberto, se manter referido aquilo que é manifesto enquanto tal. Somente isto que, assim, no sentido estrito da palavra, est manifesto foi experimentado precocemente pelo pensamento ocidental como “aquilo que esta presente” e jé, desde ha muito tempo, ¢ chamado “ente”. © comportamento esté aberto sobre o ente. Toda relagdo de abertura, pela qual se instaura a abertura para algo, é um comportamento, A abertura que o homem mantém se diferencia conforme a natureza do ente e 0 modo do comportamento. Todo trabalho € toda realizagao, toda ago e toda previsdo, se mantém na abertura de um ambito aberto no seio do qual o ente se pée propriamente ¢ se torna suscetivel de ser expresso naquilo que € € como é, Isto somente acontece quando 0 ente mesmo se pro-pée, na enunciagio que o apresenta, de tal maneira que esta enunciagio se submete a ordem de exprimir ente assim como é. Na medida em que a enunciagdo obedece a tal ordem, ela se con forma ao ente. O dizer que se submete a tal ordem é conforme (verdadeiro). O que assim é dito € conforme (verdadeiro). A enunciagio recebe sua conformidade da abertura do comportamento. Pois. somente através dela, 0 que é manifesto pode tornar-se, de maneira geral, a medida dire tora de uma apresentagio adequada. Mas 0 comportamento aberto mesmo deve deixar- se guiar por esta medida. Isto quer dizer: 0 comportamento mesmo deve receber anteci- padamente o dom prévio desta medida diretora de toda apresentagao. Isto faz parte da abertura que 0 comportamento mantém. Mas se somente pela abertura que 0 comporta- mento mantém se torna possivel a conformidade da enunciagiio, ent aquilo que torna possivel a conformidade possui um direito mais original de ser considerado como a esséncia da verdade. Assim, cai por terra a atribuig&o tradicional e exclusiva da verdade a enunciagdo, tida como o tinico lugar essencial da verdade. A verdade origindria ndo tem sua morada original na proposigao. Mas surge simultaneamente a seguinte questo: qual é 0 funda- mento da possibilidade intrinseca da abertura que mantém o comportamento e que se da antecipadamente uma medida? £ somente desta possibilidade intrinseca da abertura do comportamento que a conformidade da proposi¢ao recebe a aparéncia de realizar a esséncia da verdade, 3. O fundamento da possibilitagdo de uma conformidade De onde recebe a enunciagio apresentativa a ordem de se orientar para o objeto, de se por de acordo segundo a lei da conformidade? Por que é este acordo co-determmante da esséncia da verdade? Como pode unicamente efetuar-se a antecipagao do dom de uma medida ¢ como surge a injungao de se ter que por de acordo? £ isto que somente se reali- zara se esta doagio prévia nos tiver instaurado como livres, dentro do aberto, para algo que nele se manifesta e que vincula toda apresentagao. Liberar-se para uma medida que SOBRE A ESSENCIA DA VERDADE 335 vincula somente é possivel se se estd livre para aquilo que esta manifesto no seio do aber- to. Maneira semelhante de ser livre se refere a esséncia até agora incompreendida da iberdade, A abertura que mantém o comportamento, aquilo que torna intrinsecamente possivel a conformidade, se funda na liberdade. A esséncia da verdade é a liberdade. Nao substitui, porém, esta afirmagio sobre a esséncia da conformidade uma “evi- déncia” por outra? Uma ago obviamente nao se pode realizar a ndo ser através da liber- dade de quem age. © mesmo acontece com a ago de enunciar apresentando, ¢ com a ago de consentir ou recusar uma “verdade”. Esta tese, entretanto, nao significa que para levar a termo uma enunciagio, para comunicé-la ou assimila-la, se deva agir sem constrangimento. A afirmagio diz: a liber- dade é a propria esséncia da verdade. Entendamos aqui por “esséncia” o fundamento da possibilidade intrinseca daquilo que imediata ¢ geralmente ¢ adimitido como conhecido. Todavia, no conceito de liberdade nés nao pensamos a verdade e muito menos sua essén. cia. A tese segundo a qual a esséncia da verdade (a conformidade da enunciago) é a liberdade deve, portanto, surpreender. Situar a esséncia da verdade na liberdade nao significa, por acaso, entregar a verda- de ao arbitrio humano? Pode-se sabotar mais profundamente a verdade do que a abando nando ao arbitrio deste “canigo instavel? O que constantemente se impos a0 bom senso durante a discussdo manifesta-se agora de modo mais claro: a verdade aqui deslocada para a subjetividade do sujeito humano, Mesmo que este sujeito tenha acesso a uma obje- tividade, ela permanece, porém, do mesmo modo humana como esta subjetividade ¢ posta a disposigaio do homem Pée-se, sem davida, na conta do homem, a falsidade e a hipocrisia, a mentira e 0 engano, 0 logro ¢ a simulacio, numa palavra, todos os modos da ndo-verdade. Mas jé que a nao-verdade é 0 contrario da verdade, tem-se o direito de afasta-la do ambito de interrogagao pela pura esséncia da verdade com relago & qual aquela ¢ inessencial. Esta origem humana da nao-verdade apenas confirma. por oposigio, que a esséncia da verda- de “em si” reina “acima” do homem. Ela ¢ tida pela metafisica como eterna e impereci- vel, e jamais poder4 ser edificada sobre a instabilidade do fragil ser humano. Como pode, ainda assim, a esséncia da verdade encontrar seu apoio e fundamento na liberdade do homem? A hostilidade contra a tese que diz que a esséncia da verdade é a liberdade apdia-se em preconceitos dos quais os mais obstinados so: a liberdade & uma propriedade do homem; a esséncia da liberdade nao necesita nem tolera mais amplo exame; 0 que é 0 homem, cada qual sabe. 4, A esséncia da liberdade Entretanto, a indicagao de uma relagdo essencial entre a verdade como conformi- dade e a liberdade sacode estes preconceitos, suposto evidentemente que estejamos dis- postos para a transformagio do pensamento, A reflexdo sobre o lago essencial entre a verdade e a liberdade nos leva a perseguir o problema da esséncia do homem, dentro de uma perspectiva que nos garantira a experiéncia de um fundamento original oculto do homem (do ser-ai) ¢ isto de tal maneira que esta reflexfio nos transporta primeiramente para 0 ambito onde a esséncia da verdade se desdobra originariamente, Também a partir 336 HEIDEGGER deste fundamento se mostrar: a liberdade somente € 0 fundamento da possibilidade intrinseca da conformidade porque recebe sua propria esséncia da esséncia mais original da tnica verdade verdadeiramente essencial. A liberdade foi primeiramente determinada como liberdade daquilo que é manifesto no seio do aberto. Como deverd ser pensada esta esséncia da liberdade? O manifesto a0 qual se conforma a enunciagao apresentativa, enquanto the é conforme, é o ente assim como se manifesta para e por um comportamento aberto. A liberdade em face do que se Fevela no seio do aberto deixa que cada ente seja 0 ente que 6. A liberdade se revela entao como 0 que deixa-ser o ente. Falamos ordinariamente de “deixar” quando, por exemplo, nos abstemos de uma tarefa que nos haviamos proposto. “Deixamos algo ser” significa: no tocamos mais nisto e com isto ndo mais nos preocupamos, “Deixar™ tem, entio, aqui, 0 sentido nega- tivo de desviar a atengdo de algo, de renunciar a. . .; exprime uma indiferenga ou mesmo uma omissao. A palavra aqui necessiria para expressar o deixar-ser do ente nio visa, entretanto, nem a uma omissao nem a uma indiferenga, mas ao contrario delas. Deixar-ser significa © entregar-se ao ente. Isto, todavia, ndio deve ser compreendido apenas como simples ocupagao, protegdo, cuidado ou planejamento de cada ente que se encontra ou que se procurou. Deixar-ser 0 ente — a saber, como ente que ele é — significa entregar-se a0 aberto ¢ 4 sua abertura, na qual todo ente entra e permanece, ¢ que cada ente traz, por assim dizer, consigo. Este aberto foi concebido pelo pensamento ocidental, desde o seu comego, como 1d aléthea, 0 desvelado, Se traduzimos a palavra alétheia por “desvela- mento”, em lugar de “verdade”, esta tradugo ndo é somente mais “literal”, mas ela com- preende a indicagao de repensar mais originalmente a nog&o corrente de verdade como conformidade da enunciacao, no sentido, ainda incompreendido, do carter de ser desve- lado e do desvelamento do ente. O entregar-se ao carater de ser desvelado nao quer dizer perder-se nele, mas se desdobra num recuo diante do ente a fim de que este se manifeste naquilo que é € como é, de tal maneira que a adequago apresentativa dele receba a medida. Semelhante deixar-ser significa que nés nos expomos ao ente enquanto tal e que transferimos para o aberto todo 0 nosso comportamento. O deixar-se, isto é, a liberdade, &, em si mesmo, exposigio ao ente, isto é, ek-sistente, A esséncia da liberdade, entrevista 4 luz da esséncia da verdade, aparece como ex-posigao ao ente enquanto ele tem o caré- ter de desvelado, A liberdade nao € somente aquilo que 0 senso comum faz com facilidade circular sob tal nome: a veleidade que de vez em quando se manifesta em nés, de oscilarmos em nossa escolha ora para este, ora para aquele extremo. A liberdade também nao é a ausén- cia pura ¢ simples de constrangimento relativa as nossas possibilidades de ago ou ina- so. A liberdade também no consiste somente na disponibilidade para uma exigéncia ou uma necessidade (e, portanto, para um ente qualquer), Antes de tudo isto (antes da liber- dade “negativa”’ ou “positiva”), a liberdade & 0 abandono ao desvelamento do ente como tal. O cariiter de ser desvelado do ente se encontra preservado pelo abandono ek-sistente: gragas a este abandono, a abertura do aberto, isto é, a “presenga” (0 “ai"),é 0 que & No ser-ai se conserva para o homem o fundamento essencial, longamente nao fun- dado, que lhe permite ek-sistir. “Existéncia” no significa aqui existentia no sentido do acontecer da pura “subsisténcia” de um ente nao humano. “Existéncia”, porém, também niio significa o esforgo existencial. por exemplo, moral, do homem preocupado com sua identidade, baseada na constituigdo psicofisica. A ek-sisténcia enraizada na verdade SOBRE A ESSENCIA DA VERDADE como liberdade é a ex-posigdo ao cardter desvelado do ente como tal, Ainda incom preendida e nem mesmo carecendo de fundamentagdo essencial, a ek-sisténcia do homem historial comega naquele momento em que o primeiro pensador é tocado pelo desvela mento do ente e se pergunta o que é 0 ente. Nesta pergunta o ente é pela primeira vez experimentado em seu desvelamento, O ente em sua totalidade se revela como physis, “natureza”, que aqui nfo aponta um dominio especifico do ente, mas o ente enquanto tal €m sua totalidade, pereebido sob a forma de uma presenga que eclode. Somente onde o préprio ente é expressamente elevado e mantido em seu desvelamento, somente la onde tal sustentagdo & compreendida & luz de uma pergunta pelo ente enquanto tal, comega a historia. O desvelamento inicial do ente em sua totalidade, a interrogagio pelo ente enquanto tal e © comego da histéria ocidental so uma e mesma coisa; eles se efetuam ao mesmo “tempo”, mas este tempo, em si mesmo nfo mensuravel, abte a possibilidade de toda medida. Se, entretanto, 0 ser-ai ek-sistente, como deixar-ser do ente. sua “liberdade”, quer oferecendo a sua escolha alguma coisa possivel (ente), quer impon do-the alguma coisa necessaria (ente), nao é ento o arbitrio humano que dispée da liber- dade. © homem nio possui a liberdade como uma propriedade, mas antes, pelo contra Tio: a liberdade, o ser-ai. ek-sistente e desvelador, possui o homem, ¢ isto tao era o homem para a originariamente que somente ela permite a uma humanidade inaugurar a relago com 0 ente em sua totalidade e enquanto tal, sobre o qual se funda e esboga toda a historia. Somente o homem ek-sistente é historial. A “natureza” nao tem hist A liberdade assim compreendida, como deixar-ser do ente, realiza e efetua a essén. cia da verdade sob a forma do desvelamento do ente. A “verdade” nao é uma caracte- ristica de uma proposig&o conforme, enuncida por um “sujeito” relativamente a um “objeto” ¢ que entio “vale” nao se sabe em que ambito; a verdade é 0 desvelamento do ente gracas ao qual se realiza uma abertura, Em seu ambito se desenvolve, ex-pondo-se, todo 0 comportamento, toda tomada de posigiio do homem. £ por isso que o homem é ao modo da ek-sisténcia. Pelo fato de todo comportamento humano sempre estar aberto a seu modo e se por em harmonia com aquilo a que se refere, o comportamento fundamental do deixar-ser, quer dizer, a liberdade, Ihe comunicou como dom a dirétiva intrinseca de conformar sua apresentagio a0 ente. O homem ek-siste significa agora: a historia das possibilidades essenciais da humanidade historial se encontra protegida e conservada para ela no desve- lamento do ente em sua totalidade. Conforme 2 maneira do desdobramento originario da esséneia da verdade, irrompem as raras, simples ¢ capitais decisdes da histéria. Porque a verdade é liberdade em sua esséncia, o homem historial pode também, dei- xando que o ente seja, ndo deixa-lo-ser naquilo que ele é ¢ assim como &. O ente, entao, & encoberto ¢ dissimulado. A aparéncia passa assim a dominar. Sob seu doménio surge a ndo-esséncia da verdade. Pelo fato de a liberdade ek-sistente como esséncia da verdade nao ser uma propriedade do homem, ¢ ainda pelo fato de o homem nao ek-sistir a nao ser -enquanto possufdo por esta liberdade e somente assim tornar-se capaz de histéria, a ndo-esséncia nfo poderia nascer subsidiariamente da simples incapacidade e da negli- géncia do homem. A nfo-verdade deve, antes pelo contrario, derivar da esséncia da ver- dade. E pelo fato de a verdade ¢ ndo-verdade nao serem indiferentes um para 0 outro em sua esséncia, mas copertencerem, que, no fundo, uma proposigao verdadeira pode se encontrar em extrema oposi¢do com a correlativa proposigao nao-verdadeira. Por isso, a questo da esséncia da verdade atinge, somente ent&o, 0 dominio originai do que real: 338 HEIDEGGER mente é perguntado, quando a vista prévia da plena esséncia da verdade permite englobar também a reflexdo sobre-a ndo-verdade no desvelamento da esséncia da verdade. O exame da nao-esséncia da verdade nfo vem preencher tardiamente uma lacuna, mas ele constitui o passo decisivo na posig&io adequada da questéo da esséncia da verdade. Mas como devemos nés conceber a ndo-esséncia na esséncia da verdade? Se a esséncia da verdade nao se esgota na conformidade da enunciagdo, entdo a ndo-verdade também nao pode ser igualada com a nio-conformidade do juizo, 5. A esséncia da verdade A esséncia da verdade se desvelou como liberdade. Esta é 0 deixar- que desveia o ente. Todo comportamento aberto se movimenta no deixar-ser do ente e se relaciona com este ou aquele ente particular. A liberdade ja colocou previamente o comportamento em harmonia com 0 ente em sua totalidade, na medida em que ela ¢ 0 abandono ao desvelamento do ente em sua totalidade e enquanto tal. Esta disposigao de humor ndo se deixa, entretanto, conceber como “vivéncia” ou como “estado de alma”. Pois ela é desviada de sua esséncia quando compreendida a partir de nogdes que (como “vida” ¢ “alma”) ndio podem elas prdprias pretender uma dignidade de esséncia senio aparentemente ¢ enquanto se distorce ¢ falsifica 0 sentido da disposiggo de humor. Uma disposigao de humor, isto é uma ex-posig&o ek-sistente no ente em sua totalidade, somente pode ser “vivenciada” e “sentida” porque “o homem que vivencia”, sem pres- sentir a esséncia da disposigo de humor, ja sempre est abandonado a esta disposi¢ afetiva que é desveladora do ente em sua totalidade. Todo o comportamento do homem historial, sentido expressamente ou no, compreendido ou nao, esta disposto e através desta disposigdo colocado no ente em sua totalidade. O grau de revelagdo do ente em sua totalidade nao coincide com a soma dos entes realmente conhecidos. Pelo contrario: ali onde 0 ente é pouco conhecido ¢ onde conhecido rudimentarmente pela ciéncia, a reve- lagdo do ente em sua totalidade pode imperar de maneira mais essencial que 14, onde que é conhecido é constantemente oferecide ao conhecimento e tornado exaurivel para o olhar, que 14 onde nada mais resiste a0 zelo do conhecimento, na medida em que a capa- cidade técnica de dominar as coisas se desdobra numa agitag4o sem fim. £ justamente neste nivelamento simplista, que tudo conhece ¢ apenas conhece, que se torna superficial a revelagao do ente, que ela desaparece na aparente nulidade daquilo que nem mesmo é mais indiferente, mas esta apenas esquecido. deixar-ser do ente que dispée o ser-ai com o ente em sua totalidade penetra e pre- cede todo 0 comportamento aberto que nele se desenvolve. © comportamento do homem @ perpassado pela disposigdo de humor que se origina da revelagao do ente em sua totali- dade, Esta “em sua totalidade” aparece, entretanto, a preocupagio e ao céleulo cotidiano como o imprevistvel e 0 inconcebivel. Este “em sua totalidade” jamais se deixa captar a partir do ente que se manifestou, pertenga ele quer & natureza, quer a historia. Ainda que este “em sua totalidade” 2 tudo perpasse constantemente com sua disposigao, permane- ce, contudo, 0 nao-disposto (ndo-determinado) e 0 n&o-disponivel (indisponivel, indeter- minavel) e é, desta maneira, confundido, o mais das vezes, com o que é mais corrente € menos digno de nota. Aquilo que assim nos dispde de maneira alguma é nada, mas uma dissimulagdo do ente em sua totalidade. Justamente, na medida em que o deixar-ser sem- SOBRE A ESSENCIA DA VERDADE 39 pre deixa o ente, a que se refere, ser, em cada comportamento individual, ¢ com isto 0 desoculta, dissimula ele o ente em sua totalidade. O deixar-ser 6, em si mesmo, simulta. heamente, uma dissimulagao, Na liberdade ek-sistente do ser-ai acontece a dissimulagai do ente em sua totalidade, é 0 velamento. 6. A no verdade enquanto dissimulacao O velamento recusa 0 desvelamento & alétheia. Nem 0 admite até como stéresis (pri- vagdo), mas conserva para a alétheia o que lhe é mais proprio, como propriedade. O velamento 6, entio, pensado a partir da verdade como desvelamento, o nao-desvelamento €, desta maneira, a mais propria e mais auténtica ndo-verdade pertencente & esséncia da verdade. O velamento do ente em sua totalidade nio se afirma como uma conseqiiéncia secundaria do conhecimento sempre parcelado do ente. O velamento do ente em sua tota- lidade, a n&o-verdade original, € mais antiga do que toda revelagio de tal ou tal ente. E mais antiga mesmo do que o préprio deixar-ser que, desvelando, ja dissimula e, assim, mantém sua relagao com a dissimulagao. O que preserva o deixar-ser nesta relagdo com a dissimulago? Nada menos que a dissimulagdo do ente como tal, velado em sua totali dade, isto &, 0 mistério, Nao se trata absolutamente de um mistério particular referente a isto ou Aquilo, mas deste fato tinico que o mistério (a dissimulagio do que est velado) como tal domina o ser-ai do homem, No deixar-ser desvelador ¢ que simultaneamente dissimula 0 ente em sua totalidade acontece 0 fato de que a dissimulago aparece como aquilo que esta velado em primeiro lugar. Enquanto existe, o ser-af instaura o primeiro ¢ o mais amplo ndo-desvelamento, a ndo-verdade original. A nio-esséncia original da verdade é 0 mistério. © termo nio-es- séncia nao implica aqui ainda aquele trago de degradaco que Ihe atribuimos quando a esséncia é entendida como universalidade (koindn, génos), como possibilitas (possibili tagdo) do universal e como seu fundamento. E que a ndo-esséncia visa aqui & esséncia pré-existente, Ordinariamente, entretanto, a “ndo-esséncia” designa a deformagio da esséncia jé degradada. Mas em todas estas significagdes a ndo-esséncia esta sempre liga- da essencialmente A esséncia, segundo as modalidades correspondentes, e jamais se torna inessencial no sentido de indiferente. Falar, entretanto, assim da ndo-esséncia e da nao- verdade choca demasiadamente a opiniio ainda corrente e parece uma acumulagio for cada de “paradoxos” arbitrariamente construidos. Ja que é dificil afastar esta aparéncia, renunciamos a esta linguagem paradoxal apenas para a déxa (opinidio) comum. Para 0 bom entendedor certamente 0 “nao” da n&o-esséncia original da verdade como nio-ver dade aponta para 0 ambito ainda ndo-experimentado e inexplorado da verdade do ser (e no apenas do ente). A liberdade enquanto dexar-ser do ente é em si mesma uma relago re-solvida, uma relagio que nao esta fechada sobre si mesma. Todo comportamento se funda sobre esta relagio e dela recebe a indicagao que o refere ao ente ¢ a seu desvelamento. Entretanto, esta relagdo com a dissimulagao se esconde a si mesma nesta relagio enquanto da prima- zia a um esquecimento do mistério e nele desaparece. Ainda que o homem se relacione constantemente com o ente, limita-se, contudo, habitualmente, a este ou Aquele ente em seu carter revelado. O homem se limita & realidade corrente ¢ passivel de ser dominada, mesmo ali onde se decide o que é fundamental. E se ele se decide alargar, transformar, se reapropriar e assegurar 0 carater revelado do ente nos dominios mais variados de sua ati- 340 HEIDEGGER vidade, ele, contudo, procura as diretivas para tal nos estreitos limites de seus projetos ¢ necessidades correntes, Instalar-se na vida corrente é, entretanto, em si mesmo o nao deixar imperar a dissi- mulagao do que esté velado. Sem divida, também na vida corrente existem enigmas, obscuridades, questdes ndo decididas e coisas duvidosas, Mas todas estas questses, que no surgem de nenhuma inquietude e estio seguras de si mesmas, so apenas transicdes ¢ situacdes intermediérias nos movimentos da vida corrente e, portanto, inessenciais La onde o velamento do ente em sua totalidade é tolerado sob a forma de um limite que acidentalmente se anuncia, a dissimula esquecimento, Mas 0 mistério esqueciclo do ser-ai nao é eliminado pelo esquecimento. Este, pelo contrario, d ao aparente desaparecimento uma presenga propria. Enquanto o mistério se subtrai retraindo-se no esquecimento ¢ para o esquecimento, leva o homem historial a Permanecer na vida corrente e distraido com suas criagées. Assim abandonada, a huma. nidade completa “seu mundo” a partir de suas necessidades e de suas intengdes mais Fecentes ¢ o enche de seus projetos e célculos. Deles o homem retira ento suas medidas, esquecido do ente em sua totalidade, Nestes projetos ¢ calculos o homem se fixa munin. do-se constantemente com novas medidas, sem meditar o fundamento proprio desta to ee ——C—TCC—“ @ novas medidas e novas metas, o homem se ilude no que diz respeito a esséncia auten. tica destas medidas. O homem se engana nas medidas tanto mais quanto mais exclusiva. mente toma a si mesmo, enquanto sujeito, como medida para todos os entes, Neste desmesurado esquecimento, a humanidade insiste em assegurar-se através de si mesma, aragas équilo que Ihe & acessivel na vida corrente. Esta persisténcia encontra seu apoio, apoio que ¢la mesma desconhece, na relagio pela qual o homem ndo somente ek-siste, Mas ao mesmo tempo in-siste, isto é, petrifica-se apoiando-se sobre aquilo que o ente, manifesto como que por si ¢ em si mesmo, oferece. Ek-sistente, o ser-ai ¢ in-sistente, Mesmo na existéncia insistente reina o mistério. mas como a esséncia esquecida, e assim ornada “inessencial”, da verdade. 0 como acontecimento fundamental caiu no 7. A ndo-verdade enquanto errdncia Insistente, o homem est voltado para o que é 0 mais corrente em meio ao ente, Ele, Porém, somente pode insistir na medida em que ja é ek-sistenie, isto é, enquuanto ele, con tudo, toma como medida diretora 0 ente como tal. Mas a humanidade, enquanto toma medida, esta desviada do mistério. Este insistente dirigir-se ao que € corrente ¢ o ck sis. lente afastar-se do mistério se copertencem. Sao uma e mesma coisa, Esta maneita de se Yoltar ¢ se afastar resulta, no fundo, da agitacao inquieta que € caracteristica do ser af Este vaivém do homem no qual ele se afasta do mistério e se dirige para a realidade cor Fente, corre de um objeto da vida cotidiana para outro, desviando-se do mistério, € o errar, © homem erra, © homem néo cai na erréneia num momento dado. Ble somente se move dentro da errdncia porque in-siste ek-sistindo e ja se encontra, desta maneita, sem. pre na errincia. A errancia em cujo seio o homem se movimenta no € algo semelhante @ um abismo ao longo do qual o homem caminha e no qual cai de vez em quando, Pelo ‘ncia participa da constituigo intima do ser-ai 4 qual o homem historial SOBRE A ESSENCIA DA VERDADE 341 esta abandonado. A errancia é 0 espago de jogo deste vaivém no qual a ek-sisténcia insis tente se movimenta constantemente, se esquece e se engana sempre novamente, A dissi- mulagio do ente em sua totalidade, ela mesma velada, se afirma no desvelamento do ente particular que, como esquecimento da dissimulagao, constitui a errancia. A errancia é a antiesséncia fundamental que se opée a esséncia da verdade, A erran cia se revela como 0 espago aberto para tudo o que se opde a verdade essencial. A erran- cia € 0 cenario ¢ 0 fundamento do erro, O erro nao é uma falta ocasional, mas 0 império desta historia onde se entrelagam, confundidas, todas as modalidades do errar. Todo o comportamento possui sua maneira de errar, correspondente & abertura que mantém € a sua relago com o ente em sua totalidade, O erro se estende desde o mais comum engano, inadverténcia, erro de cAlculo, até o desgarramento e o perder-se de nos. sas atitudes © nossas decisdes essenciais. Aquilo que o habito e as doutrinas filosoficas chamam erro, isto 6, a nlo-conformidade do juizo e a falsidade do conhecimento, é ape nas um modo e ainda o mais superficial de errar. A errancia na qual a humanidade histo- rial se deve movimentar para que se possa dizer que sua marcha ¢ errante é uma compo- nente essencial da abertura do ser-ai. A errancia domina o homem enquanto o leva a se desgarrar. Mas pelo desgarramento a errancia contribui também para fazer nascer esta possibilidade que o homem pode tirar da ek-sisténcia e que consiste em nao se deixar levar pelo desgarramento. O homem nio sucumbe no desgarramento se for capaz de pro- var a errancia enquanto tal e no desconhecer 0 mistério do ser-ai, Pelo fato de a ck-sisténcia in-sistente do homem marchar na erraneia e pelo fato de esta enquanto desgarramento ameagar sempre o homem de alguma maneira, a ek-sis- téncia esta plena de mistério e de um mistério esquecido. Eis por que o homem esta sub- misso, na ek-sisténcia de seu ser-af, ao mesmo tempo ao reino do mistério e & ameaga que irrompe da errancia. Tanto 0 mistério como a ameaga de desgarramento mantém o homem na indigéncia do constrangimento. A plena esséncia da verdade, incluindo sua propria antiesséncia, mantém o ser-ai na indigéncia, pela constante oscilagiio do vaivém entre 0 mistério e a ameaga de desgarramento, O ser-ai € 0 voltar-se para a indigéncia. Somente do ser-ai do homer brota o desvelamento da necessidade e por ela a existéncia humana pode ser levada para a esfera do inelutavel, O desvelamento do ente enquanto tal é, 20 mesmo tempo € em si mesmo, a dissimu- ago do ente em sua totalidade. E nesta simultaneidade do desvelamento e da dissimula 40 que se afirma a errancia. A dissimulagao do que esta velado e a errancia pertencem a esséncia origindria da verdade. A liberdade, compreendida a partir da ek-sisténcia insistente do ser-af, somente é a esséncia da verdade (como conformidade da apresenta G40) pelo fato de a propria liberdade irromper da origindria esséncia da verdade, do reino do mistério da errancia. O deixar-ser do ente se realiza pelo nosso comportamento no Ambito do aberto, Entretanto, o deixar-ser do ente como tal ¢ em sua totalidade acontece, autenticamente, apenas entio, quando, de tempos em tempos, é assumido em sua essen. cia originaria. Entio a decisdo enérgica pelo mistério se pde em marcha para a errancia que reconheceu enquanto tal, Neste momento a questo da esséncia da verdade é posta mais originariamente. Ento se revela, afinal, 0 fundamento da imbricagdo da esséncia da verdade com a verdade da esséncia. A perspectiva sobre o mistério, que se descerra a partir da erréncia, pde o problema da questo que unicamente importa: que é 0 ente enquanto tal em sua totalidade? Uma tal interrogagao pensa o problema essencialmente desconcertante ¢ por isso ndio dominado ainda em sua ambivaléncia: a questi do ser do ente. O pensamento do qual emana originariamente tal intertogagao se concebe, desde Plato, como “filosofia”, e recebeu mais tarde o nome de “metafisica”, HEIDEGGER 8. A questéo da verdade e a filosofia E no pensamento do ser que a libertago do homem para a ek-sisténcia, libertagao que funda a histéria, alcanga a sua palavra. A palavra no é em primeiro lugar, a “expresso” de uma opinido, mas é constantemente ja a articulagdo protetora da verdade do ente em sua totalidade. O nmero daqueles que entendem esta palavra pouco importa A qualidade dos que podem prestar tengo a ela decide da posiggio do homem na histé- ria. Mas, neste mesmo momento da histéria do mundo em que comega a filosofia, come- ga também a dominagao expressa do senso comum (da sofistica). O senso comum apela a evidéneia do ente revelado e qualifica toda interrogacio filosofica de atentado contra ele mesmo e sua infeliz suscetibilidade. Entretanto, o que o bom senso, antecipadamente justificado em seu ambito proprio, pensa da filosofia, nao atinge a esséncia dela. Esta somente se deixa determinar a partir da relag&o com a verdade originiria do ente enquanto tal e em sua totalidade. Mas pelo fato de a plena esséncia da filosofia incluir sua ndo-esséncia ¢ imperar originariamente sob a forma da dissimulagdo, a filosofia, enquanto poe a questio desta verdade, é ambi- valenie em si mesma. Seu pensamento é a tranqiiilidade da mansido que no se nega a0 velamento do ente em sua totalidade. Mas seu pensamento é também, ao mesmo tempo, ‘© enérgica do rigor, que nao rompe o velamento, mas que impele sua esséncia a deci intacta para dentro da abertura da compreen: propria verdade. No manso rigor ¢ na rigorosa mansidiio do deixar-ser do ente como tal em sua tota- lidade, a filosofia se desenvolve e transforma numa interrogag%o que nao se atém unica- mente ao ente, mas também nao tolera nenhuma injungdo exterior. Esta intima indi géncia do pensamento, Kant a pressentiu, pois disse da filosofia: “Vemos aqui a filosofia colocada numa situagao critica: € preciso que ela encontre uma posigdo firme, sem saber entretanto, nem no céu nem na terra, de um ponto em que se possa suspender ou apoiar. E preciso que a filosofia manifeste aqui sua pureza, fazendo-se guardia de suas proprias leis, em vez de ser o apanagio daqueles que lhe sugerem um sentido inato ou nao sei que natureza tutelar. .." (Kant, Fundamento da Metafisica dos Costumes, Obras da Edigao da Academia, volume IV, p. 425). Interpretando, desta maneira, a esséncia da filosofia, Kant, cuja obra introduz 0 til timo perfodo da metafisica ocidental, olha para um dominio que, de acordo com sua pos- tura metafisica, fundada sobre a subjetividade, ele ndo podia compreender, a ndo ser a partir desta iltima. E por isso que a filosofia devia ser interpretada por Kant como guar- did de suas prOprias leis. Esta concepgao essencial da destinagao da filosofia é, contudo, suficientemente ampla para rejeitar toda subordinagdo de seu pensamento. Subordinagao cuja forma mais flagrante se dissimula sob o pretexto de ainda admitir a filosofia como “expressfio” da “cultura” (Spengler) ou como luxo de uma humanidade entregue ao seu trabalho, Se, todavia, a filosofia realiza sua esséncia assim como Ihe foi originariamente posta enquanto “guardia de suas préprias leis” ou se, pelo contrario, é primeiramente sustentada ¢ determinada em sua atitude de guardia pela verdade daquilo de onde suas leis recebem o carter de leis, isto se decide a partir da originalidade com a qual a essén- cia primeira da filosofia se tornara fundamental para a interrogagao filosdfica. O ensaio aqui apresentado conduz a questio da verdade para além dos limites tradi- io, ¢ desta maneira, para dentro de sua SOBRE A ESSENCIA DA VERDADE 343 cionais da concepeao comum e auxilia a reflexdo a se perguntar se a questo da esséncia da verdade n&o deve ser, ao mesmo tempo e primeiramente, a questo da verdade da esséncia. Porém, sob 0 conceito de “esséncia” a filosofia pensa o ser. A redugao da possi- bilidade interna da conformidade de uma enunciago a liberdade ek-sistente do deixar- ser, reconhecido como seu “fundamento” e, ao mesmo tempo, o aceno para situarmos o comego essencial deste fundamento na dissimulagao ¢ errncia, apontam para o fato de que a esséncia da verdade nao é absolutamente a “generalidade” vazia de uma universa- lidade “abstrata”, mas, pelo contrario, o tnico dissimulado da tinica historia do desvela- mento do “sentido” daquilo que designamos ser e que. jé ha muito tempo, costumamos considerar como o ente em sua totalidade, 9. Observacao A questéio da esséncia da verdade se origina da questo da verdade da esséncia. Aquela questio entende esséncia, primeiramente, no sentido de qilididade (quidditas) ou de realidade (realttas) ¢ entende a verdade como uma caracteristica do conhecimento. A questo da verdade da esséncia entende esséncia em sentido verbal e pensa, nesta pala- vra, ainda permanecendo no ambito da representagio metafisica, 0 ser (Sey7t) como a diferenga que impera entre ser e ente, Verdade significa o velar iluminador enquanto trago essencial do ser (Seyn). A questio da esséneia da verdade encontra sua resposta na proposigao: a esséncia da verdade é a verdade da esséncia. Apos a explicagao descobre- se, com facilidade, que a proposigao nao inverte simplesmente um aglomerado de pala- vras, nem quer suscitar a impressio de paradoxo. O sujeito da proposigio é, caso esta fatal categoria gramatical ainda possa ser usada, a verdade da esséncia. O velar ilumina- dor & quer dizer, faz com que se desdobre (Wesen) a concordancia entre conhecimento cente. A proposigao nao € dialética. Nao é de maneira alguma uma proposigiio no senti- do de uma enunciagio, A resposta A questo da esséncia da verdade é a diccfio de uma viravolta no seio da historia do ser (Seyn). Porque ao ser pertence o velar iluminador, aparece ele originariamente a luz da retragéio que dissimula. O nome desta clareira é alétheia. A conferéncia Sobre a Esséncia da Verdade deveria ser completada, ja 20 projeto original, por uma segunda conferéncia: Sobre a Verdade da Esséncia. Esta nao foi viavel por motivos para os quais aceno agora na carta Sobre o Humanismo ‘A questo decisiva (Ser e Tempo, 1927) do sentido. quer dizer (Ser e Tempo, p. 151), do ambito do projeto, quer dizer, da abertura, ou ainda, da verdade do ser ¢ nao apenas do ente, fica propositalmente nao-desenvolvida. Aparentemente 0 pensamento se movimenta no caminho da metafisica e, contudo, realiza, em seus passos decisivos — que conduzem da verdade como conformidade para a liberdade ek-sistente ¢ desta para a verdade como dissimulagao e errancia —, uma revolugdo na interrogagao, revolugao que ja pertence & superagao da metafisica. O pensamento ensaiado na conferéncia atinge sua plenitude na experiéncia decisiva de que somente a partir do ser-ai, no qual o homem, pode penetrar, se prepara. para 0 homem historial, uma proximidade com a verdade do ser. Qualquer espécie da antropologia e toda subjetividade do homem enquanto sujeito no € apenas, como ja acontece em Ser e Tempo, abandonada e procurada a verdade do ser como fundamento de uma nova posigao historial, mas o curso cla exposigao se prepa- ra para pensar a partir deste novo fundamento (a partir do ser-af). As fases da interroga- ¢40 constituem em si o caminho de um pensamento que, em vez. de oferecer representa- ges € conceitos, se experimenta ¢ confirma como revolugdo da relagaio com o ser. SOBRE O "HUMANISMO" CARTA A JEAN BEAUFRET, PARIS. Estamos ainda Jonge de pensar, com suficiente radicalidade, a esséncia do agir Conhecemos 0 agir apenas como o produzir de um efeito. Sua realidade efetiva 6 ava- linda segundo a utilidade que oferece. Mas a esséncia do agir € 0 consumar. Consumer significa: desdobrar alguma coisa até a plenitude de sua esséncia: leva-la & plenitude, producere. Por isso, apenas pode ser consumado, em sentido proprio. aquilo que ja &. O que, todavia, “é”, antes de tudo, é 0 ser. O pensar consuma a relagdo do ser com a essén: cia do homem. O pensar nao produz nem efetua esta relagiio. Ele apenas oferece-a ao ser. como aquilo que a ele proprio foi confiado pelo ser. Esta oferta consiste no fato de, no pensar, 0 ser ter acesso a linguagem, A linguagem é a casa do ser. Nesta habitagao do ser mora 0 homem. Os pensadores ¢ os poetas so os guardas desta habitagao. A guarda que exercem é 0 consumar a manifestagio do ser, na medida em que a levam a linguagem e nela a conservam, Néo é por ele irradiar um efeito ou por ser aplicado que 0 pensar se transforma em ago. O pensar age enquanto se exerce como pensar. Este agir é provavel: mente o mais singelo e, a0 mesmo tempo, o mais elevado, porque interessa A relagiio do ser com o homem. Toda eficdcia, porém, funda-se no ser e se espraia sobre 0 ente. O pen: sar, pelo contrario, deixa-se requisitar pelo ser para dizer a verdade do ser. O pensar con- suma este deixar. Pensar & engagement par Etre pour l€tre.’ Ignoro se, do ponto de vista lingiiistico, possivel dizer ambas as coisas (“par”e “pour’) numa s6 expressio, a saber: penser c'est l’engagement de Etre. Aqui, a palavra para o genitivo “de”. .. "visa & expressar que © genitivo ¢ ao mesmo tempo genitivus subjectivus e objectivus. Mas njsto nao se deve esquecer que “sujeito” e “objeto” so expressdes inadequadas da Meta fisica, que se apoderou, muito cedo, da interpretagdo da linguagem, na forma da “Légi- ca” e “Gramética” ocidentais. Mesmo hoje, somos apenas capazes de pressentir o que se esconde neste processo. A libertagao da linguagem dos grilhdes da Gramitica e a aber- tura de um espago essencial mais originario esti reservado como tarefa para 0 pensar e poetizar. © pensar nao é apenas l’engagement dans ‘action? em favor ¢ através do ente, no sentido do efetivamente real da situagdo presente, O pensar é engagement através do ente, no sentido do efetivamente real da situagio presente. O pensar 6 engagement at vés e em favor da verdade do ser. Sua historia nunca é passada, ela sempre esté na imi néncia de vir. A historia do ser sustenta e determina cada condition e situation humaine. Para primeiro aprendermos a experimentar, em sua pureza, a citada esséncia do pensar, 0 que significa, a0 mesmo tempo, realiza-la, devemos libertar-nos da interpre. tagao técnica do pensar, cujos primérdios recuam até Plato e Aristételes. O proprio pensar € tido, ali, como uma tékhne, 0 processo da reflexio a servigo do fazer e do ope- * Trad.: O engajamento pelo ser para o ser. (N. do E.) ® Trad.: O engajamento na agao. (N. do E.) 348 HEIDEGGER rar. A reflexdo, j4 aqui, é vista desde 0 ponto de vista da praxis e potesis. Por isso, 0 pensamento, tomado em si, nao é “pratico”. A caracterizagiio do pensar como theoria ¢ a determinagao do conhecer como postura “tedriea” ja ocorrem no seio da interpretagio “técnica” do pensar. E uma tentativa reacional, visando a salvar também o pensar, dan- do-the ainda uma autonomia em face do agir ¢ operar. Desde entio, a “Filosofia” esta constantemente na contirigéncia de justificar sua existéncia em face das “Ciéncias”. Ela cr? que isto se realizaria da maneira mais segura, elevando-se ela mesma a condigao de uma cigncia. Este empenho, porém, é 0 abandono da esséncia do pensar. A filosofia é perseguida pelo temor de perder em prestigio ¢ importancia, se nao for ciéncia. O no ser ciéncia é considerado uma deficiéncia que é identificada com a falta de cientificidade, Na interpretagdo técnica do pensar, é abandonado o ser como o elemento do pensar. A “L6- gica” € a sancao desta interpretagio que comega com a Sofistica ¢ Plato. Julga-se o pen- sar de acordo com uma medida que Ihe € inadequada, Um tal julgamento se assemelha @ um procedimento que procura avaliar a natureza ¢ as faculdades do peixe, de acordo com sua eapacidade de viver em terra seca. Jé hd muito tempo, demasiado tempo. o pen, sar esta fora de seu elemento. Sera possivel chamar de “irracionalismo” o reconduzir pensar ao seu elemento? As questes levantadas em sua carta poderiam ser mais facilmente elucidadas numa conversa direta. No papel, 0 pensar sacrifica facilmente sua mobilidade. Mas sobretudo, nestas condigdes, s6 com muita dificuldade poder conservar a pluridimensionalidade de seu ambito que Ihe 6 prépria, Em comparagdo com as ciéicias, 0 rigor do pensar n&o sé consiste na exatiddo artificial, isto é, técnico-tedrica dos conceitos, mas repousa no fato deo dizer permanecer, de modo puro, no elemento do ser. deixando imperar o simples de suas miltiplas dimensdes. Mas, por outro lado, 2 forma escrita oferece a salutar coergaio para formulagdes lingiifsticas cuidadosas. Para hoje, gostaria de escolher apenas uma de suas questdes. A andlise desta talvez jogue uma luz também sobre as outras. Vocé pergunta: Comment redonner un sens au mot “Humanisme”?? Esta questio nasce da intengdo de conservar a palavra “Humanismo”. Pergunto-me se isto é necessa- rio. Ou sera que no se manifesta, ainda, de modo suficiente, a desgraga que expressées desta natureza provocam? Nao ha divida, de h4 muito j& se desconfia dos “-ismos”. Mas © mercado da opiniao piblica exige constantemente novos. E sempre se esti disposto a cobrir esta necessidade. Também os nomes como “Légica”, “Etica”, “Fisica”, apenas surgem quando o pensar originario chega ao fim. Em sua gloriosa era, os gregos pensa- ram sem tais tftulos. Nem mesmo de “Filosofia” chamavam o pensar. Este termina 20 sair de seu elemento. O elemento é aquilo a partir do qual o pensar é capaz de ser um pensar. O elemento é 0 que propriamente pode: o poder. Ele assume 0 pensar e 0 conduz, assim, para sua esséncia. Dito de maneira simples, o pensar é 0 pensar do ser. O genitivo diz duas coisas. O pensar é do ser na medida em que o pensar, apropriado e manifestado pelo ser, pertence ao ser. O pensar é, av mesmo tempo, pensar do ser na medida em que © pensar, pertencendo ao ser, escuta 0 ser. Escutando o ser ¢ a ele pertencendo, o ser & aquilo que ele & conforme sua origem essencial. O pensar é — isto quer dizer: o ser encarregou-se, dcil ao destino e por ele dispensado da esséncia do pensar. Encarregar-se de uma “coisa” ou de uma “pessoa” em sua esséncia significa: amé-la, queré-la. Este querer significa, quando pensado mais originariamente: gratificar a esséncia. Tal querer é a esséncia propriamente dita do poder, 0 qual nao é apenas capaz de produzir isto ou aquilo, mas é capaz de deixar que algo desdobre seu ser em sua pro-veniéneia, isto signi- ° ‘Trad.: Como tomar a dar sentido & palavra “Humanismo™? (N. do E.) SOBRE O “HUMANISMO” 349 fica, que € capaz de deixar-ser. O poder do querer é aquilo gragas ao qual aiguma coisa 6 propriamente capaz de ser, Este poder & o propriamente possivel; aquele possivel cuja esséneia repousa no querer. E a partir deste querer que o ser € capaz do pensar. Aquele possibilita este. O ser como o que pode e quer é 0 “*pos-sivel”. O ser como o elemento & a “forga silenciosa” de poder que quer dizer, isto é, do possivel. Nossos termos “posst- vel” e “possibilidade” so, sem diivida, pensados sob o império da “Légica” e “Metalisi- ca”, distinguindo-se da “atualidade”; isto significa, a partir de uma determinada interpre- tagao — a metafisica — do ser, como actus e potentia, distingao que ¢ identificada com a de existentia e essentia. Quando falo da “forga silenciosa do possivel”, no me refiro a0 possibile de uma possibilitas apenas representada, nem A potentia enquanto essentia de um actus da existentia, refiro-me ao proprio ser que. pelo seu querer, impera com seu poder sobre o pensar e, desta maneira. sobre a esséncia do homem, ¢ isto quer dizer, sobre sua relago com o ser. Poder algo significa aqui: guardé-lo em sua esséncia, conserva-lo em seu elemento, Quando o pensar chega ao fim, na medida em que sai de seu elemento, compensa esta perda, valorizando-se como rékhne, como instrumento de formagio, e por este moti- vo, como atividade académica e, mais tarde, como atividade cultural. A Filosofia vai transformar-se em uma técnica de explicagao pelas causas tiltimas. Nao mais se pensa; a gente se ocupa com “Filosofia”. Na concorréncia destas ocupagdes, elas ento se exi- bem publicamente como “ismos”, procurando uma sobrepujar a outra. O dominio destas expresses nao é casual. Ele reside, e isto particularmente nos tempos modernos, na sin- gular ditadura da opinigo piblica. A assim chamada “existéncia privada” ndo é, entre- tanto, ja 0 ser-homem essencial ¢ livre. Ela simplesmente crispa-se numa nega¢do do que é piiblico. Ela permanece 0 chanto dele dependente e alimenta-se apenas do recuo diante do que é piblico, Ela atesta. assim, contra sua propria vontade, sua subjugagao a opiniaio piiblica. Ela mesma, porém, ¢ a instauragao e dominagao metafisicamente condicionadas — porque originando-se do dominio da subjetividade — da abertura do ente, na incondi cional objetivagao de tudo. Por isso. @ linguagem termina a servigo da mediagdo das vias de comunicagao. nas quais se espraia a objetivagao, como 0 acesso uniforme de tudo para todos. sob 0 desprezo de qualquer limite. Deste modo, a linguagem cai sob a dita- dura da opinido pablica. Esta decide previamente 0 que é compreensivel e 0 que deve ser desprezado como ineompreensivel, Aquilo que se diz, em Ser e Tempo (1927), §§ 27 ¢ 35. sobre o “a gente”’nfo quer fomecer, de maneira alguma, apenas uma contribuigéo incidental para a Sociologia, Tampouco o “a gente” significa apenas a figura oposta, compreendida de modo ético- existencialista, ao ser-si-mesmo da pessoa. O que foi dito contém, ao contrario. a indica- a0, pensada a partir da questo da verdade do ser, para o pertencer originario da pala- vra ao ser. Esta relagdo permanece oculta sob o dominio da subjetividade que se apresenta como a opinido piiblica. Se, todavia, a verdade do ser tornou-se digna de ser pensada para o pensar, deve também a reflexdo sobre a esséncia da linguagem alcangar um outro nivel. Ela nao pode continuar sendo apenas pura filosofia da linguagem. E somente por isso que Ser e Tempo (§ 34) contém uma indicagdo para a dimensao essen- cial da linguagem e toca a simples questiio que pergunta, em que modo de ser, afinal. a linguagem enquanto linguagem é, em cada situagdo. O esvaziamento da linguagem, que grassa em toda parte e rapidamente, nao corrdi apenas responsabilidade estética ¢ moral em qualquer uso da linguagem. Ela provém de uma ameaga & esséncia do homem. Um simples uso cultivado da linguagem nao demonstra, ainda, que conseguimos escapat a este perigo essencial. Um certo requinte no estilo poderia hoje, 80 contrario. até signifi- 350 HEIDEGGER car que ainda néo vemos o perigo, nem somos capazes de vé-lo, porque ainda no ousa- mos jamais enfrentar seu olhar. A decomposigio da linguagem, atualmente tio falada isto bastante tarde, ndo é, contudo, a razdo, mas jé uma conseqiiéncia do fato de que a linguagem, sob o dominio da meiafisica moderna da subjetividade, se extravia, quase invencivelmente, de seu elemento. A linguagem recusa-nos ainda sua esséncia? isto &, que cla @ a casa da verdade do ser. A linguagem abandona-se, ao contrério, a nosso puro que- rer ¢ & nossa atividade, como um instrumento de dominagio sobre o ente. Este proprio ente aparece como o efetivamente real no sistema de atuagao de causa ¢ efeito, Encon- {ramos 0 ente como o efetivamente real tanto quando calculamos e agimos, como quan- do procedemos cientificamente ¢ filosofamos com explicagées e fundamentagdes, A elas também pertence o garantir que algo seja inexplicavel. Com tais afirmagdes pensamos estar diante do mistério. Como se ja estivesse estabelecido que a verdade do ser se pudes. se fundamentar, de qualquer modo, sobre causas ¢ razées explicativas, ou, o que da no mesmo sobre a impossibilidade de sua apreensdo. Caso o homem encontre, ainda uma vez, 0 caminho para a proximidade do ser, entdo deve antes aprender a existir no inefével. Ter que reconhecer, de maneira igual, tanto a sedugdo pela opinitio piiblica quanto a impoténcia do que é privado. Antes de falar, 0 homem deve novamente escutar, primeiro, 0 apelo do ser, sob o risco de, décil a este apelo, pouco ou raramente algo Ihe restar a dizer. Somente assim sera devolvido a Palavra o valor de sua esséncia e © homem sera gratifieado com a devolugdo da habjta- do para o residir na verdade do ser, Nao residem, no entanto, neste apelo ao homem, ndo se escondem nesta tentativa de reparar o homem para este apelo um empenho e uma solicitude pelo homem? Para onde se dirige “o cuidado”, sendo no sentido de reconduzir 0 homem novamente para sia esséncia? Que outra coisa significa isto, a no ser que o homem (homo) se torne humano Grumanus)? Deste modo entio, contudo, a humanitas permanece a preocupagio de um tal pensar; pois humanismo ¢ isto: meditar, e cuidar para que o homem seja humano ¢ nao des-humano, inumano, isto é, situado fora de sua esséncia. Entretanto, em que con- siste a humanidade do homem? Ela repousa em sua esséncia, Mas de onde ¢ como se determina a esséncia do homem? Marx exige que o “homem humano”, seja conhecido e reconhecido. Ele o encontra na “sociedade”, O homem “socializado” € para ele o homem “natural”. na “sociedade” que a “natureza” do homem, isto , a totalidade de “suas necessidades naturais” (alimentagio, vestudtio, reproducao, subsisténcia econémica) é eqiiitativamente assegurada, O cristio vé a huma. nidade do homem, a humanttas do homo, desde o ponto de vista de sua distingao da Det- as, Ele é. sob 0 ponto de vista da historia da salvagdo, homem como “filho de Deus”, que, em Cristo, escuta ¢ assume 0 apelo do Pai. O homem nio é deste mundo, na medida em que 0 “mundo” pensado tedrica e platonicamente & apenas uma passagem provisoria para o Além, Somente na época da repiiblica romana, hwmanitas €, pela primeira vez, expressa- mente pensada ¢ visada sob este nome. Contrapde-se 0 homo humanus a0 homo barba- rus. O homo humanus, 6, aqui, o romano que eleva ¢ enobrece a virtus romana através da “incorporagao” da paidéia herdada dos gregos. Estes gregos sio os gregos do helenis. mo, cuja cultura era ensinada nas escolas filosdficas, Fla refere-se erudito et institutio in bonas artes. A paidéia assim entendida & traduzida por humanitas. A romanidade Propriamente dita do homo romanus consiste em tal humanitas. Em Roma, encontramos © primeiro humanismo, Ele permanece, por isso, em sua esséncia, um fendmeno especi- camente romano, que emana do encontro da romanidade com a cultura do helenismo. A SOBRE O “HUMANISMO” ae assim chamada Renascenga dos séculos XIV e XV, na Italia, é uma renascentia romani tatis, Como 0 que importa é a romanitas, trata-se da humanitas e, por isso, da paidéia grega. Mas a grecidade sempre é vista em sua forma tardia, sendo esta mesma vista de maneira romana, Também 0 homo romanus do Renascimento esta numa oposigao com 0 homo barbarus, Todavia, 0 in-umano é, agora, assim chamado barbarismo da Esco- lastica Gética da Idade Média, Do humanismo, entendido historicamente, faz sempre parte um siudium humanitatis; este estudo recorre, de uma certa maneira, A Antiguidade, tornando_se assim, em cada caso, também um renascimento da grecidade. Isto se mostra no humanismo do século XVII, aqui entre nds, sustentado por Winckelmenn, Goethe ¢ Schiller. Hélderlin, a0 contrario, no faz parte do “humanismo”, e isto, pelo fato de pen sar © destino da esséncia do homem mais radicalmente do que este “humanismo” é capaz. Se, porém, se entende por humanismo, de modo geral, 0 empenho para que o homem se torne livre para sua humanidade, para nela encontrar sua dignidade, ent&o 0 humanismo se distingue, em cada caso, segundo a concepeio da “liberdade” e da “natu reza” do homem. Distinguem-se, entéo do mesmo modo, as vias para sua realizagiio. O humanismo de Marx nao carece de retorno 4 Antiguidade, como também nao 0 huma: nismo que Sartre entende quando fala em Existencialismo. Neste sentido amplo, em questo, também o cristianismo é um humanismo, na medida em que, segundo sua dou- trina, tudo depende da salvagio da alma (salus aeterna) do homem, aparecendo a historia da moldura da hist6ria da salvaciio. Por mais que se distingam estas espécies de huma- nismo, segundo suas metas e fundamentos, segundo a maneira e os meios de cada reali zagio, segundo a forma de sua doutrina, todas elas coincidem nisto que a humanitas do homo humanus @ determinada a partir do ponto de vista de uma interpretagdo fixa da natureza, da histéria, do mundo, do fundamento do mundo, ¢ isto significa, desde 0 onto de vista do ente em sua totalidade Todo humanismo funda-se ou numa Metafisica ou ele mesmo se postula como fun- damento de uma tal. Toda determinagao da esséncia do homem que ja pressupse a inter pretagao do ente, sem a questo da verdade do ser, ¢ o faz, sabendo ou nao sabendo, é Metafisica. Por isso, mostra-se, ¢ isto no tocante ao modo como é determinada a esséncia do homem, 0 elemento mais proprio de toda Metafisica, no fato de ser “humanistica”. De acordo com isto, qualquer humanismo permanece metafisico, Na determinagio da humanidade do homem, o humanismo nao apenas deixa de questionar a relagdo do set com o ser humano. Mas o humanismo tolhe mesmo esta questdo, pelo fato de, por causa de sua origem da Metafisica, néo conhecé-la nem compreendé-la. E vice-versa, a necessi dade ¢ a natureza particular da questo da verdade do ser, esquecida na Metafisica ¢ através dela, s6 pode vir A luz, levantando-se, em meio ao dominio da Metafisica, a ques- “Que é Metafisica?” De inicio até qualquer questo do “ser”, também aquela da ver- dade do ser, deve ser introduzida como uma questio “metafisica’ primeiro humanismo, a saber, 0 romano, ¢ todos os tipos de humanismo que. desde entio até o presente, tém surgido, pressupdem como dbvia a “esséncia” mais uni- versal do homem. O homem é tomado como animal rationale. Esta determinagao nao ¢ apenas a tradugdo latina da expresso grega zdon ldgon ékhon, mas uma interpretagio metafisica. Esta determinagao essencial do homem nao é falsa. Mas ela é condicionada pela Metaiisica, cuja origem essencial ¢ no apenas cujos limites tornaram-se, contudo, em Ser e Tempo, dignos de serem questionados. O digno de ser questionado foi primeiro, confiado ao pensar como aquilo que ele deve pensar; mas de maneira alguma jogado ao consumo de uma inane compulsio de davida. HEIDEGGER A Metafisica realmente representa 0 ente em seu ser ¢ pensa assim o ser do ente, Mas ela no pensa a diferenga de ambos (vide Sobre a Esséncia do Fundamento, 1929, p. 8, ¢ mais Kant ¢ 0 Problema da Metafisica, 1929, p. 225, ¢ ainda Ser e Tempo, p. 230). A Metafisica ndo levanta a questo da verdade do ser mesmo, Por isso ela também ja- mais questiona © modo como a esséncia do homem pertence 4 verdade do ser. Esta ques- do a Metafisica, até agora, ainda no levantou, Esta questio é inacessivel para a Metaff siea enquanto Metafisica. O ser ainda esta & espera de que ele mesmo se torne digno de ser pensado pelo homem. Seja de que maneira se determine a ratio do animal e a tazio do ser vivo, tendo em mira a determinagao essencial do homem, quer como “faculdade dos prineipios”, quer como “faculdade das categorias” ou de outra maneira, em toda Parte, € cada vez, a esséncia da razo se funda no fato de que, para toda percepedio do ente em seu ser, ser mesmo ja se iluminou e acontece historiaimente em suia verdad Do mesmo modo com “animal”, zdon, j se pro-pés uma interpretagao da “vida” que repousa necessariamente sobre uma interpretagdo do ente como zoé e pihsis, em meio qual se manifesta o ser vivo. Além disto e antes de qualquer outra coisa, resta, enfim, perguntar se a esséncia do homem como tal, originalmente — e com isto deci, dindo previamente tudo — realmente se funda na dimensdo da animalitas. Estamos nos no caminho certo para a esséncia do homem, quando distinguimos 0 homem e enquanto © distinguimos, como ser vivo entre outros, da planta, do animal e de Deus? Pode-se pro- ceder assim, pode-se situar, desta maneira, o homem, em meio ao ente, como um ente entre outros. Com isto se poder afirmar, constantemente, coisas acertadas sobre o homem. E preciso, porém, ter bem claramente presente que o homem permanece assim relegado definitivamente para o ambito essencial da animalitas; & 0 que acontecerd, mesmo que nao seja equiparado ao animal e se the atribuir uma diferenga especific Pensa-se. em principio, sempre 0 homo anivialis, mesmo que artima seja posta como ani. mus sive mens e mesmo que estes, mais tarde, sejam postos como sujeito, como pessoa. como espirito, Um tal pdr 0 modo préprio da Metafisica. Mas com isto a esséncia do homem é minimizada e ndo é pensada em sua origem. Esta origem essencial permanecers sempre a origem essencial para a humanidade historial. A Metafisica pensa o homem a partir da animalitas; ela no pensa em diregao de sua humanitas, A Metafisica cerra-se para o simples dado essencial de que o homem somente des. dobra seu ser em sua esséncia, enquanto recebe 0 apelo do ser. Somente na intimidade deste apelo, j@ “tem” ele encontrado sempre aquilo em que mora sua esséncia. Somente deste morar “possui” ele “linguagem” como a habitag&o que preserva o ec-statico para sua esséncia. O estar postado na clareira do ser denomino eu a ec-sisténcia do homem, Este modo de ser s6 € proprio do homem. A ec-sisténcia assim entendida nfo é apenas © fundamento da possibilidade da razio, ratio, mas a ev-sisténcia ¢ aquilo em que a esséncia do homem conserva a origem de sua determinagao. A ec-sisténcia somente deixa-se dizer a partir da esséncia do homem, isto é, somente @ partir do modo humano de “ser”; pois, apenas o homem, ao menos tanto quanto sabe- mos, nos limites de nossa experiéncia, esta iniciado no destino da ec-sisténcia. E por isso que a ec-sisténcia nunca poderd ser pensada como uma maneira especifica de ser entre Outras espécies de seres vivos; isto naturalmente suposto que o homem foi assim disposto que deve pensar a esséncia de seu ser e nao apenas realizar relatorios sobre a natureza ¢ historia de sua constituicdo e de suas atividades. Desta maneira, funda-se na esséncia da cosisténcia também aquilo que atribuimos ao homem, mediante a comparagao com 0 “animal”. O corpo do homem é algo essencialmente diferente do organismo animal. O erro do biologismo niio esté superado quando se ajunta ao elemento corporal do homem SOBREO “HUMANISMO” ae a alma, ¢ a alma o espirito, ¢ a espirito o aspecto existencialista (0 aspecto dntico da existncia E. S.), pregando ainda mais alto que até agora o grande aprego pelo espfrito. para entio, contudo, deixar tombar tudo de volta para a vivéncia da vida, admoestando: se ainda, com ilusdria seguranga, que o pensar destréi, pelos seus conceitos rigidos, 0 fluxo da vida e que o pensar do ser deforma a existéncia. O fato de a fisiologia e a qui mica fisiol6gica poderem examinar 0 homem como organismo, sob 0 ponto de vista das Ciéneias da Natureza, nao é prova de que neste elemento “orginico”, isto é de que no corpo explicado cientificamente, resida a esséncia do homei. Isto vale tio pouco como a opinitio de que, na energia atomica, esteja encerrada a esséncia da natureza. Pois, pode- ria mesmo acontecer que a natureza esconde precisamente sua esséncia naquela face que volta para dominio técnico pelo homem. Como a esséncia do homem nao consiste em ser um organismo animal, assim também no se pode eliminar e compensar esta insufi ciente determinagao da esséncia do homem instrumentando-o com uma alma imortal ou com as faculdades racionais ou com o carater de pessoa. Em cada caso, passa-se por alto aesséncia, e isto baseado no mesmo projeto metaiisico. Aquilo que 0 homem é, 0 que na linguagem tradicional da Metafisiea chama-se a “esséncia” do homem, reside em sua ec-sisténcia, Mas a ec-sisténcia, assim pensada, ndio @ idéntica ao conceito tradicional de existentia, que significa realidade efetiva, & diferenga com a essentia enquanto possibilidade. Em Ser e Tempo (p. 42) encontra-se a frase grifa da: “A esséncia do ser-at reside em sua existéncia". Aqui nao se trata de uma contrapo- sigdo de existentia e essentia, porque, de maneira alguma, ainda esto em questo estas duas determinagdes metafisicas do ser, nem se fale entdo de sua relago. A frase contém, ainda muito menos, uma afirmagao geral sobre a existéncia (dasein), na medida em que esta designagdo que surgiu, no século XVII, em lugar da palavra “objeto”, deveria expressar 0 conceito metafisico de realidade efetiva do real. Ao contrario, a frase diz: O homem desdobra-se assim em seu ser (west) que ele é a “at”. isto 6, a clareira do ser. Este “ser” do ai, e somente ele, possui o trago fundamental da ec-sisténcia, isto significa, 0 trago fundamental da in-sisténcia ec-statica na verdade do ser. A esséncia ec-statica do homem reside em sua ec-sistncia, que permanece distinta da existentia pensada metafi camente. Esta ¢ compreendida pela Filosofia medieval como actualitas. Kant representa a existentia como a realidade efetiva no sentido da objetividade da experiéncia, Hegel determina a existentia como a idéia que se sabe a si mesma, a idéia da subjetividade absoluta. Nietzsche concebe a existentia como o etemo retorno do mesmo. E verdade que ainda fica aberta a questio se, através do termo “existentia”, em suas interpretagdes, diferentes apenas primeira vista, como realidade efetiva, j € pensado com suficiente preciso o ser da pedra ou mesmo a vida como ser da flora e da fauna, Em todo caso, os seres vivos sfio como so, sem que, a partir de seu ser como tal, estejam postados na ver dade do ser, guardando numa tal postura o desdobramento essencial de seu ser. Prova velmente causa-nos a maxima dificuldade, entre todos os entes que so, pensar o ser vivo. porque, por um lado, de certo modo, possui conosco o parentesco mais préximo, estan do, contudo, por outro lado, ao mesmo tempo, separado por um abismo de nossa essén- cia ec-sistente. Em comparagao pode até parecer-nos que a esséncia do divino nos & mais proxima, como o elemento estranho do ser vivo; proxima, quero dizer, numa distancia essencial, que, enquanto distincia, contudo ¢ mais familiar para nossa esséneia ec-sis- tente que o abissal parentesco corporal com © animal, quase inesgotivel para nosso pensamento. Tais consideragées jogam uma estranha luz sobre a determinagao corrente, € por isso sempre proviséria e apressada, do homem como animal rationale. Porque as plantas ¢ os animais esto mergulhados, cada qual no seio de seu ambiente proprio, mas 354 HEIDEGGER nunca esto inseridos livremente na clareira do ser — ¢ s6 assim é “mundo” —, por isso, falta-lhes a linguagem. E nao porque thes falta a linguagem, estdo eles suspensos sem mundo em seu ambiente. Mas nesta palavra “ambiente” concentra-se toda dimensio enigmatica do ser vivo. Em sua esséncia, a linguagem nao é nem exteriorizago de um organismo nem expresso de um ser vivo. Por isso, ela também ndo pode ser pensada em harmonia com sua esséncia, nem a partir de caréter semasiol6gico, ¢ talvez nem mesmo a partir de seu cardter semantico. Linguagem 6 advento iluminador-velador do proprio ser. A ec-sisténcia, pensada ec-staticamente, nao se cobre, nem quanto ao conteido, nem quanto & forma, com a existentia, Ec-sisténcia significa, sob o ponto de vista de seu contefido, estar exposto na verdade do ser. Existentia (existence) quer, ao contrario, dizer actualitas, realidade efetiva, a diferenga com a pura possibilidade da idéia, Ec-sisténcia nomeia a determinagao daquilo que o homem é no destino da verdade. Existentia perma. nece o nome para a efetivag&o daquilo que alguma coisa é, enquanto se manifesta em sua idéia, A frase: “O homem ec-siste” nao responde & pergunta se o homem efetivamente 6 ou ndo, mas responde questéo da “esséncia” do homem. Costumamos levantar esta questo inadequadamente, quer perguntemos pelo que é 0 homem, quer perguntemos quem & 0 homem. Pois no quem? e no qué? ja temos em vista algo que possui carater de pessoa ou que possui cardter de objeto. Mas o elemento pessoal falha e obstrui, ao mesmo tempo, o desdobramento do ser da ec-sisténcia ontol6gico-historial, endo menos que 0 que possui cardter objetivo. Com cautela escreve, por isso, a frase citada, em Ser e Tempo (p. 42) a palavra “Wesen” entre aspas. Isto assinala que agora “esséncia” nao se determina nem a partir do esse essentiae, nem a partir do esse existentiae, mas a partir do elemento ec-stético do ser-ai. Como ec-sistente 0 homem sustenta o ser-al, enquanto toma sob seu “cuidado” o af enquanto a clareira do ser. Mas o ser-ai mesmo & enquanto “jogado”. Desdobra seu ser no lance do ser que dispensa o destino ¢ a ele toma décil. A suprema confusio seria, se se quisesse explicar a frase sobre a esséncia ec-sistente do homem, como se fosse uma transposig&o secularizada de um pensamento expresso pela teologia cristd sobre Deus (Deus est suum esse), * para aplicé-lo ao homem; a ec- téncia nao é nem uma realizagio efetiva de uma esséncia nem causa e poe a ec-sisténcia mesma, o que é essencial (Essentielle). Se se compreende 0 “projeto” nomeado em Ser e Tempo como um pér que representa, entdo se © toma como a producdo da subjetividade € niio se pensa como a “compreensio do ser”, no ambito da “analitica existencial” do ‘set-no-mundo”, unicamente pode ser pensada, a saber, como a relagdo ec-statica com a clareira do ser. A tarefa de repetir e acompanhar, de maneira adequada ¢ suficiente, este outro pensar que abandona a subjetividade foi sem divida dificultada pelo fato de, na publicagdio de Ser e Tempo, eu haver retido a Terceira Segdo da Primeira Parte, Tempo Ser (vide Ser ¢ Tempo, p. 39). Aqui o todo se inverte, A seco problematica foi retida, porque o dizer suficiente desta viravolta fracassou ¢ nao teve sucesso com o auxilio da linguagem da Metafisica. A conferéncia Sobre a Esséncia da Verdade, pensada e levada & piiblico em 1930, mas apenas impressa em 1943, oferece uma certa perspectiva sobre 0 pensamento da viravolta de Ser e Tempo para Tempo e Ser. Esta viravolta nao é uma mudanga do ponto de vista de Ser e Tempo; mas, nesta viravolta, o pensar ousado alcan- a0 lugar do ambito a partir do qual Ser e Tempo foi compreendido e. na verdade, compreendido a partir da experiéncia fundamental do esquecimento do ser. * Trad.: Deus é 0 seu proprio ser. (N. do E,) SOBRE O “HUMANISMO” 355 Sartre, ao contrério, assim exprime o principio do existencialismo: A existéncia pre cede a esséncia. Ele toma, ao dizer isto, existentia e essentia no sentido da Metafisica que, desde Platio, diz: a essentia precede a existentia, Sartre inverte esta frase. Mas a inversao de uma frase metafisica permanece uma frase metafisica. Com esta frase, per manece ele com a Metafisica, no esquecimento da verdade do ser. Pois, mesmo que a Filosofia determine a relagdo de essentia e existentia, no sentido das controvérsias da Idade Média ou uo sentido de Leibniz ou de outro modo, antes de tudo isto, resta, contu- do, perguntar a partir de que destino do ser esta distingao no ser de esse essentiae e esse existentiae chega a ser pensada, Permanece desafiando 0 pensamento © motivo por que © questionamento deste destino do ser nunca foi levantado ¢ por que esta questo pode ser pensada. Ou é esta situagdo da distingZo de essentia e existentia um sinal do esqueci- mento do ser? Podemos conjeturar que este destino nio reside numa simples omissio do pensar humano e muito menos numa menor capacidade do pensamento dos primérdios do Ocidente. A distingao entre essentia (qiiididade) e existentia (atvalidade) perpassa 0 destino da historia ocidental e da hist6ria determinada pela Europa. A frase principal de Sartre sobre a procedéncia da existentia sobre a essentia justifi- ca, entretanto, o nome “Existencialismo” como um titulo adequado para esta filosofia. Mas a frase capital do “Existencialismo” nao tem o minimo em comum com aquela frase em Ser e Tempo; isto, nfo tomando em consideragaio que em Ser e Tempo nem se podia ainda pronunciar um frase sobre a relagdo de essentia e existentia; pois, trata-se, ali, de preparar algo pre-cursor. Pelo que dissemos, isto ainda se faz de um modo bastante desa jeitado, Talvez 0 que ainda fica para dizer poderia eventualmente transformar-se num estimulo para levar a esséncia do homem a atentar, com seu pensar, para a dimensiio da verdade do ser que o perpassa com seu dominio. Todavia, também isto s6 poderia acon. tecer em favor da dignidade do ser e em beneficio do ser-ai, que o homem, ec-sistindo, sustenta, e nfo por causa do homem, para que através de sua obra se afirmem a civiliza gio ea cultura, Para que nds, contempordneos, entretanto, possamos atingir a dimensdo da verdade do ser a fim de poder medita-la, devemos primeiro tomar, de uma vez, bem claro como © ser se dirige ao homem e como o requisita. Tal experiéncia essencial nos sera dada, se compreendermos que © homem 6 enquanto ec-siste, Digamo-lo, primeiro, na linguagem da tradigdo, entio isto quer dizer: A ec-sisténcia do homem é sua substancia. Por isso aparece repetidas vezes a frase em Ser e Tempo: “A ‘substancia’ do homem é a exis cia” (pp. 117, 212, 314). Mas substancia 6, pensada ontolégico -historialmente, jé a tradi 40 encobridora de ousia, palavra que nomeia a presenga do que se presenta e que o mais das vezes, através de uma enigmatica ambigiiidade, visa A propria coisa que se presenta. Se pensarmos 0 nome metafisico “substncia”, neste sentido, 0 qual em Ser e Tempo, de acordo com a “destruigdo fenomenoldgica” ai realizada, j4 se tinha em mente (vide p. 25), entio a frase “A ‘substincia’ do homem € a ec-sisténcia” no diz outra coisa que: O modo como o homem se presenta em sua propria esséncia ao ser 6 a ec-statica in téncia na verdade do ser. Através desta determinagao essencial do homem, as interpreta des humanisticas do homem como animal rationale, como “pessoa”, como set espiritual-animico-corporal, nao so declaradas falsas, nem rejeitadas. Ao contrario, o Unico pensamento que se quer impor € que as mais altas determinagdes humanisticas da esséncia do homem ainda nao experimentam a dignidade propriamente dita do homem. Nesta medida, 0 pensar. em Ser e Tempo, é contra o humanismo. Mas esta oposigo nao significa que um tal pensar se bandeie para o lado oposto do humano, defendendo o inu mano ¢ a desumanidade e degradando a dignidade do homem. Pensa-se contra 0 huma- én- HEIDEGGER nismo porque ele ndo instaura a humanitas do homem numa posigéo suficientemente alta. E claro que a sublimidade da esséncia do homem no repousa no fato de ele ser a substneia do ente como seu “‘sujeito”, para, na qualidade de potentado do ser. deixat-se diluir na tio decantada “objetividade”, a entidade do ente, Ao contrario, 0 homem é “jogado” pelo ser mesmo na verdade do ser, para que, ec sistindo, desta maneira, guarde a verdade do ser, para que na luz do ser o ente se mani- feste como o ente que efetivamente & Se ¢ como o ente aparece, se ¢ como 0 Deus ¢ os deuses, a historia e natureza pene- tram na clareira do ser. como se presentam ¢ ausentam, ndo decide o homem. O advento do ente repousa no destino do ser. Para 0 homem, porém, permanece a questo se encon. tra o bem-disposto de sua esséncia, que corresponde a este destino; pois, de acordo com cle, tem 0 homem, enquanto o ec-sistente, que vigiar e proteger a verdade do ser. O homem ¢ 0 pastor do. ser. E somente nesta directo que pensa Ser e Tempo, quando é experimentada a existéncia ec-stitica como “o cuidado” (Vide § 44a, p. 226 ss.) Mas o ser — que é 0 ser? Ele é ele mesmo. Experimentar isto e dizé-lo é a aprendi zagem pela qual deve passar o pensar futuro, O “ser” — isto nao é Deus, nem um funda mento do mundo. O ser mais ainplo que todo ente ¢ é contudo mais proximo do homem que quaiquer ente, seja isto uma rocha, um animal, uma obra de arte, uma maquina, seja isto um anjo ou Deus. O ser é 0 mais proximo. E, contudo, a proximidade permanece. para o homem, a mais distante. © homem se atém primeiro ja sempre apenas ao ente Quando, porém, o pensar representa o ente enquanto ente, refere-se, certamente, a0 ser: todavia, pensa, na verdade, constantemente, apenas o ente como tal e precisamente nao ¢ jamais 0 ser como tal, A “questo do ser” permanece sempre a questo do ente. A ques- tio do ser no é ainda aquilo que designa esta capciosa expresso: a pergunta pelo ser. A Filosofia segue, também ali onde ela, como em Descartes e Kant, torna-se “critica”, constantemente na esteira da representagZo metafisica. Ela pensa, partindo do ente ¢ para ele se dirigindo, na passagem através de um olhar para o ser. Pois na luz do ser esta situado cada ponto de partida do ente ¢ cada retorno a ele. A Metafisica, porém, somente conhece a clareira do ser, ou desde 0 olhar que nos langa aquito que se presenta no “aspect” (idéia), ou criticamente, como o visado da perspectiva de representar categorial por parte da subjetividade. Isto significa: a verdade do ser como a clareira mesma permanece oculta para a Metafisica. Este velamento. Porém, nfo é uma lacuna da Metafisica, mas 0 tesouro de sua propria riqueza a ela mesma recusado € a0 mesmo tempo apresentado. A clareira mesma, porém, é 0 ser. Ela somente garante, no seio do destino ontoldgico da Metafisica, a perspectiva a partir da qual as coisas que se presentam afetam o homem que thes vem ao encontro: desta manei "2 0 proprio homem pode apenas atingir o ser (thigein, Arist6teles, Metaffsica, VIII, 10) na percepedo (noefn). Somente a perspectiva atrai a visio para si ea ela se entresa, quan- do o perceber se transformou no propor-diante-de-si, na perceptio da res cogitans como subjectwm da certitudo. Suponho que em si nos seja dado questionar to simploriamente: como se comporta entéo © ser com relagio & ec-sisténcia? O ser mesmo é a relagio, na medida em que retém, junto a si, a ec-sisténcia em sua esséncia existencial, isto , ec-statica, e a recolhe Junto a si como 0 lugar da verdade do ser, no seio do ente. Pelo fato de o homem, como © ec-sistente, vir a postar-se nesta relagaio que & a forma como o proprio ser se destina, enquanto o homem o sustenta ex-staticamente, isto é, assume com cuidado, desconhece tle, primeiro. o mais proximo e se atém ao que vem depois deste. Ele até pensa que isto €0 mais proximo. Contudo, mais proxi mo que © prximo e 20 mesmo tempo mais remo- SOBRE O “HUMANISMO” 357 to que o mais longiquo para o pensamento corrente, é esta proximidade mesma: a verda- de do ser. ~% O esquecimento da verdade do ser, em favor da agressdo do ente impensado em sua essincia, ¢ 0 sentido da “decaida” nomeada em Ser e Tempo. A palavra nao se refere a uma queda do homem, entendida sob o ponto de vista da “filosofia moral” e ao mesmo tempo secularizado, mas nomeia uma relagao essencial do homem com o ser no seio da referéncia do ser esséncia do homem, Por conseguinte, as expressdes preparatérias “autenticidade” ¢ “inautenticidade”, usadas como prelidio, nao significam uma distin- gGo moral-existencialista, nem “antropolégica”, mas a relagdo “ec-statica” do ser huma- no com a verdade do ser que é a primeira a ter que ser pensada, porque até agora oculta para a Filosofia. Mas esta relagio & como é, ndo em razdio da ec-sisténcia, mas a esséncia da ec-sisténcia é existencial ec-staticamente a partir da esséncia da verdade do ser. A iinica coisa que 0 pensar que, pela primeira vez. procura expressar-se em Ser e Tempo gostaria de alcangar é algo simples. Como tal o ser permanece misteriosamente a singela proximidade de um imperar que nao se impde a forga, Esta proximidade desdo- bra seu ser como a propria linguagem. Mas a linguagem nao € apenas linguagem, no sen- tido em que a concebemos, quando muito, como a unidade de fonema (grafema), melodia € ritmo ¢ significagio (sentido). Pensamos fonema e grafema como o corpo da palavra; melodia e ritmo como a alma ¢ 0 que possui significagdo adequada, como 0 espirito da “‘linguagem. Pensamos comumente a linguagem a partir da correspondéncia a esséncia do homem, na medida em que esta é apresentada como animal rationale, isto é, como a uni- dade de corpo-alma-espirito. Todavia, assim como na humanitas do homo animalis a es-sisténcia permanece oculta e, através dela, a relagdo da verdade do ser com 0 homem, assim encobre a interpretagao metafisico-animal da linguagem sua esséncia ontolgico- historial. De acordo com ela, é a linguagem a casa do ser manifestada e apropriada pelo ser e por ele disposta, Por isso, trata-se de pensar a esséncia da linguagem a partir da’ correspondéncia ao ser a isto, enquanto tal correspondéncia, 0 que quer dizer, Con } habitagao da esséncia do homem. © homem, porém, nao é apenas um ser vivo; ao lado de outras faculdades, também possui a linguagem. Ao contrario, a linguagem é a casa do ser; nela morando, o homem ec-siste enquanto pertence a verdade do ser, protegendo-a. Assim, 0 que importa na determinagao da humanidade do homem enquanto ec-sis- téncia é que ndo o homem é o essencial, mas 0 ser enquanto a dimensdo do elemento ec- stético da ec-sisténcia. A dimensio, todavia, nao é 0 conhecido elemento espacial. Ao contrario, tudo que ¢ espacial ¢ todo espago de tempo desdobra seu ser no elemento dimensional que ¢ a propria maneira deo ser ser. O pensar atenta para estas simples relagdes. Para elas procura ele a palavra ade- quada em meio 4 linguagem tradicional da Metafisica e da Gramética que vem de longe. E problematico se um tal pensar — supondo que ainda importa uma expressdo como tal — ainda se deixa denominar humanismo, Certamente nao, enquanto o humanismo & metafisico. Certamente nao, se for Existencialismo e defende a frase que Sartre ex- prime: Précisément nous sommes sur un plan oil it y a seulement des hommes® (L Existencialisme Est un Humanisme, p. 36). Em vez disso, pensando a partir de Sere Teinpo, dever-se-ia dizer: Précisément nous sommes sur un plan ot il y a principalement “ Etre. Mas de onde vem e 0 que € le plan? L Etre et le plan sio 0 mesmo. Em Ser e Tempo, vem dito intencionalmente e com cuidado (p. 212); ily a [Btre: “da-se” o ser. O * Trad: Nos estamos precisamente num plano onde hé apenas homens. (N. do E.) ' 358 HEIDEGGER ily a waduz 0 “da-se” de modo impreciso. Pois 0 “se” que aqui “da” € 0 proprio ser. O “dA”, contudo, nomeia aquilo que da, a esséncia do ser que garante a sua verdade. O dar-sc a0 aberto, com ele mesmo, é o proprio ser. Emprega-se, a0 mesmo tempo, o “da-se” para, provisoriamente, evitar a expressdo: “o ser €”; pois comumente diz-se o “é” das coisas que sio, Estas nds as designamos de ente. Mas 0 ser justamente nfo “é” “o ente”. Se o “é” vem dito, sem maior explicagao, do ser, ent&o o ser é representado com demasiada facilidade como um “ente”, a0 modo do ente conhecido, que opera como causa e é operado como efeito. Contudo, ja Parmé- nides afirma nos primérdios do pensamento: éstin gar efitat. “E, a saber, 0 ser.” Nesta palavra esconde-se o mistério origindirio para todo pensar. Talvez 0 “é” s6 possa ser dito, de maneira adequada, apenas do ser, de maneira tal que todo ente jamais propriamente ‘@”, Mas como 0 pensamento ainda deve atingir a dimensio em que dir 0 ser em sua verdade, em vez de explicé-lo como um ente a partir do ente, deve ficar aberta para a solicitude do pensar a questo, se e como 0 ser é. O éstin gar einai de Parménides permanece ainda hoje impensado. Por ai pode-se medir como se da o progresso da Filosofia. Ela nao progride de forma alguma, caso res- peite sua esséncia, Ela marca passo para sempre pensar o mesmo. O progredir, a saber, afastando-se do lugar, € um erro que segue o pensar como a sombra que ele mesmo proje- ta. Porque o ser esti ainda impensado, diz-se também, em Ser e Tempo, do ser: “da-se Sobre este il y @ no se pode especular sem mais e sem apoio. Este “da-se” impera como © destino do ser, cuja historia se manifesta na linguagem pela palavra dos pensadores essenciais. E por isso que o pensar que pensa, penetrando na verdade do ser, & enquanto pensar, historial, Nao existe um pensar “sistematico” e, ao lado, para ilustragao, uma hist6ria das opinides passadas. Mas também nao existe, como pensa Hegel, uma sistema- tica que seria capaz de fazer da lei de seu pensar uma lei da histéria e que pudesse sobressumir, a0 mesmo tempo, esta no sistema: Existe, se pensarmos mais radicalmente, a histéria do ser 4 qual o pensar, como memoria desta histéria, pertence, acontecendo através da posterior recordagao da histéria, no sentido do que teve lugar no passado. A historia nao acontece primeiro como um evento. E este ndo é um simples passar. O even- to da histéria se desdobra em ser como o destino da verdade do ser, a partir dele (vide Conferéncia sobre 0 Hino de Hélderlin “Como num dia de festa. ..", 1941, p. 31). Ao destino chega o ser, na medida em que ele, o ser, se d&. Mas isto significa, quando pen- sando com docilidade ao destino: ele dé-se e recusa-se simultaneamente. Entretanto, a determinagao hegeliana de historia, como desenvolvimento do “espirito”, no & desti tuida de verdade. Ela, porém, também nao é em parte certa e parte falsa, Ela 6 tio verda deira, como é verdadeira a Metafisica que, pela primeira vez, em Hegel, traz a linguagem sua esséncia pensada de modo absoluto, no sistema. A Metafisica absoluta faz parte — com suas inversdes, através de Marx e Nietzsche — da historia da verdade do ser. O que dela provém nio se deixa atingir por refutagSes ou mesmo afastar, Somente deixa-se assumir, na medida em que se recolhe sua verdade, mais radicalmente no ser mesmo, retirando-a da esfera de uma opinidio apenas humana, Néscia é toda refutagdo no campo do pensar essencial. A disputa entre pensadores ¢ a “disputa amorosa” da questio mesma. Ela auxilia-os alternadamente a penetrar na simples participago no mesmo, a partir do qual eles encontram a docilidade no destino do ser. Suponho que o homem, no futuro, seja capaz de pensar a verdade do ser, entio ele pensa a partir da ec-sisténcia. Ec-sistindo esta ele postado no destino do ser. A ec-sis- fencia do homem é, enquanto ec-sisténcia historial, mas isto no, em primeiro lugar apenas pelo fato de, no decurso do tempo, muitas coisas acontecerem com o homem e as SOBRE O “HUMANISMO” 359 coisas humanas. Pelo fato de tratar-se de pensar a ec-sisténcia do ser-al, por issu 0 pen- sar, em Ser e Tempo, esté tao fundamente interessado em que seja experimentada a histo- ricidade do ser-ai. Nao se diz, porem, em Ser ¢ Tempo (212), onde se fala do “dé-se”: “Somente enquanto é ser-af, dé-se ser”? Sem davida. Isto significa: somente enquanto se manifesta a clareira do ser, este se transpropria ao homem. Mas 0 fato de o af, a clareira enquanto a verdade do proprio ser, acontecer e manifestar-se, é a destinagaio do préprio ser. Este é 0 destino da clareira tradicional de existentia e no sentido moderno como a realidade efetiva do ego cogito, é aquele ente através do qual o ser primeiramente criado. A frase nao afirma que o ser é um produto do homem. Na Introdugio a Ser e Tempo (38) esta escrita de maneira simples e clara e até em grifo: “Ser é 0 transcendente como tal”. Assim como a abertura da proximidade espacial ultrapassa qualquer coisa proxima ou distante, quando vista a partir desta, assim o ser ¢ fundamentalmente mais amplo que todo ente, porque é a propria clareira. Neste caso, ainda se pensa, de acordo com o ponto de partida inicialmente inevitavel, situado na Metafisica ainda dominante, o ser a partir do ente. Somente a partir de tal perspectiva mostra-se o ser num ultrapassar e como este mesmo, A determinagao introdutéria “Ser ¢ 0 transcendente como tal” refine, numa simples 4 maneira como até agora a esséncia do ser se manifestou ao homem, Esta determi- frase, nagdo retrospectiva da esséncia do ser permanece incontorndvel para 0 ponto de partida antecipador da questio da verdade do ser. Longe dele esta a presungao de querer come- gar tudo desde o inicio e declarar falsa toda a filosofia anterior. Para um pensar que pro- cura pensar a verdade do ser, a tinica questo que permanece é se a determinagio do ser como o simplesmente transcendente jé nomeia a simples esséncia da verdade do ser. Por isso, também se diz, A pagina 230, que somente a partir do “sentido”, isto & a partir da verdade do ser, se pode compreender como o ser é. O ser se manifesta ao homem no pro- jeto ec-statico. Mas este projeto nao instaura o ser. E, além disso, o projeto é cssencialmente um projeto jogado. Aquele que joga no projetar ndo € 0 homem, mas o proprio ser que destina o homem para a ec-existéncia do ser-ai como sua esséncia. Este destino acontece como a clareira do ser, forma sob a qual © destino & Ela garante a proximidade ao ser. Nesta proximidade, na clareira do “al”, mora 0 homem como o ec-sistente, sem que ja hoje seja capaz de experimentar propria- mente este morar ¢ assumi-lo. A proximidade “do” ser, modo como é 0 “ai” do ser-ai, & pensada na conferéncia sobre a elegia de Hélderlin “Retomo” (1943) a partir de Ser e Tempo; é a partir da poesia do poeta que esta proximidade do ser é percebida numa lin- guagem mais radical e nomeada a “patria” a partir da experiéncia do esquecimento do ser. Esta palavra é pensada aqui num sentido mais originario, ndo com acento patriético, nem nacionalista, mas de acordo com a historia do ser. Mas a esséncia da patria é, ao mesmo tempo, nomeada com a intengdo de pensar a apatridade do homem moderno a partir da historia do ser. O iitimo a experimentar esta apatridade foi Nietzsche. Ela ndo foi capaz de encontrar, no seio da Metafisica, outra saida dela que a inversio da Metafi- sica, Mas isto ¢ a consumagio da perplexidade. Todavia, Hélderlin se preocupa, ao com- por o “Retorno”, para que seus “contemporineos” reencontrem o lugar de seu desdobra mento essencial. Isto ele nao procura, de maneira alguma, no egoismo de seu povo. EI 0 vé, ao contrario, a partir da condigao de eles fazerem parte do Ocidente, Mas Ocidente nao e pensado regional e geograticamente, enquanto o ocidental opde-se ao oriental; também nao é pensado como a Europa, mas na perspectiva da hist6ria universal a partir da proximidade com a origem. Nés praticamente ainda no comegamos a pensar as 360 HEIDEGGER misteriosas relagdes com o Oriente, que assomaram & palavra na poesia de Hélderlin (vide “O Ister” e “A Peregrinagdo”, 3. estrofe ¢ ss.). O “alem&o” nao é proclamado ao mundo para que este se restabelega no modo de ser alem&o, mas é dito para os alemaes, ara que eles, em virtude do destino que os liga aos outros povos, com eles atinjam o ver. dadeiro universalismo (Sobre a Poesia de Hélderlin “Lembranca”, Tibinger Gedenks- chrift, 1943, 332). A patria deste morar historial é a proximidade do ser. E nesta proximidade que se realiza — caso isto um dia acontegi — a decisao se e como 0 Deus ¢ os deuses se recusam ¢ a noite permanece, se ¢ como amanhece o dia do Sagrado, se € como, no surgimento do sagrado, pode recomegar uma manifestagiio do Deus e dos deuses. O sagrado, porém, que é apenas 0 espago essencial para a deidade — © qual, por sua vez, novamente apenas garante uma dimensiio para os deuses ¢ 0 Deus —, manifesta-se somente, entio, em seu brilho, quando, anies ¢ apés longa preparagio, © proprio ser se iluminou e foi experimentado em sua verdade. $6 assim comega, a partir do ser, a superagiio da apatridade, na qual erram perdidos nao apenas os homens, mas também a esséncia do homem. A apatridade que assim deve ser pensada reside no abandono ontolégico do ente. Ela € 0 sinal do esquecimento do ser. Em conseqiiéneia dele a verdade do ser permanece impensada. O esquecimento do ser manifesta-se indiretamente no fato de o homem sem- pre considerar e trabalhar s6 0 ente. E como nisto nao pode evitar de ter o ser na repre- sentagdo, também o ser é explicado apenas como o “mais geral” e, por conseguinte, 0 que engloba 0 ente ou como criagao do ente infinito ou ainda como produglo de um Sujeito finito. Ao mesmo tempo, “o ser”, desde a Antiguidade, situa-se em lugar “do ante”, e vice-versa, este em lugar daquele: ambos acossados numa estranha e nao pensa da confusio. ser enquanto destino que destina verdade permanece oculto. Mas 0 destino do mundo se anuncia na poesia, sem que ainda se torne manifesto como a historia do ser. O pensamento de cardter universal de Hélderlin, que se expressa no poema “Lembranca”, € por isso mais essencialmente radical e, por isso, mais antecipador que o puro cosmopo- litismo de Goethe. Pela mesma razao a relagéio de Hélderlin com a grecidade é essencial- mente diferente do humanismo. Por isso, os jovens alemaes que sabiam de Hélderlin pen- saram ¢ viveram bem outra coisa, em face da morte, que aquilo que a opiniao piblica apresentava como sendo a posig&o alema. A apatridade torna-se um destino do mundo. E por isto que se torna necessario pen- sar este destino sob 0 ponto de vista ontoldgico-historial. O que Marx a partir de Hegel Teconheceu, num sentido essencial e significativo, como 2 alienagio do homem, alcanga, com suas raizes,até a apatridade do homem moderno. Esta alienagdo € provocada ¢ isto. a partir do destino do ser. na forma da Metafisica, & por ela consolidada ¢ a0 mesmo tempo por ela mesma encoberta, como apatridade, Pelo fato de Marx, enquanto experi- menta a alienacdo, atingir uma dimensdo essencial da historia, a visio marxista da His- ria @ superior a qualquer outro tipo de historiografia. Mas porque nem Husser}, nem, quanto eu saiba até agora, Sartre reconhecem que a dimensiio essencial do elemento da hhistoria reside no ser. por isso, nem a Fenomenologia, nem o Existencialismo, atingem aquela dimensao, no seio da qual é. em primeiro lugar, possivel um dialogo produtivo como marxismo, Mas, para isto, é naturalmente necessdrio que a gente se liberte das representagdes ingénuas sobre o materiatismo e das refutagdes mesquinhas que pretendem atingi-io. A esséneia do materialismo no consiste na afirmagao de que tudo apenas 6 matéria; ela consiste, 80 contrario, numa determinagdo metafisica, segundo a qual todo o ente apare- ce como material para o trabalho. A esséncia moderna ¢ metalisica do trabalho foi ante- SOBRE O “HUMANISMO” 361 cipada no pensamento da Fenomenologia do Espirito de Hegel como 0 processo que a si mesmo se instaura, da produgio incondicionada, isto é, da objetivagio do efetivamente real pelo homem experimentado como subjetividade. A esséncia do materialismo escon- de-se na esséncia da técnica; sobre esta, nZic ha divida, muito se escreve, mas pouco se pensa. A técnica é, em sua esséncia, um destino ontolégico-historial da verdade do ser, que reside no esquecimento. A técnica nfo remonta, na verdade, apenas com sett nome, até a 1ékhne dos gregos, mas ela se origina ontoldgico-historialmente da fékhne como um modo do alethetiein, isto é, do tornar manifesto o ente. Enquanto uma forma da verdade, a técnica se funda na hist6ria da Metafisica. Esta ¢ uma fase privilegiada da historia do sere a tinica da qual, até agora, podemas ter uma visio de conjunio. Por mais diversas que sejam as posigdes que se tomam em face das doutrinas do comunismo ¢ de sua fundamentagao, é certo, sob o ponto de vista ontolbgico-historial, que nele se exprime uma experiéncia elementar daquilo que é atual na historia universal. Quem toma o “comunismo” apenas como “partido” ou como “visio de mundo” nao pensa com suficiente amplitude da mesma maneira como aqueles que, na expressio “americanismo”, apenas visam, ¢ ainda com acento pejorativo, a um particular estilo de vida. O perigo para o qual é impelido, cada vez mais nitidamente, 0 que até agora era a Europa consiste provavelmente no fato de, antes de tudo, set pensar — um dia sua gran- deza — decair e ficar para trés, na marcha essencial do destino mundial gue inicia; este, contudo, permanece determinado pelo carater europeu nos tragos essenciais de sua ori- gem fundamental. Metafisica alguma, seja ela idealista, seja materialista, seja crist’, pode, segundo sua esséncia, ¢ de maneira alguma apenas nos esforgos despendidos em desenvolver-se, alcangar ainda o destino, isto significa: atingir e reunir, através do pen- sar, 0 que agora é do ser, num sentido pleno. Em face da essencial apatridade do homem, mostra-se ao pensamento, fiel & dimen- sio ontologico-historial, o destino futuro do homem, no fato de ele achar o caminho para a verdade do ser, pondo-se a caminho para este encontrar. Cada nacionalismo é do ponto de vista metafisico, um antropologismo, e como tal, subjetivismo. O nacionalismo nao pode ser superado pelo simples internacionalismo, mas apenas ampliado e elevado a um sistema, Tanto 0 nacionalismo no é conduzido 4 humanitas e sobressumido como nao o 0 individualismo, através do coletivismo a-historico. Este é a subjetividade do homem-na totalidade. Ble realiza sua incondicional auto-afirmagao. Esta no se deixa reconduzir as suas origens. Ela nem se deixa experimentar, de modo suficiente, através de um pensamento que nao radicaliza a mediagio. Expulso da verdade do ser. o homem gira, por toda parte, em torno de si mesmo. como animal rationale, A esséncia do homem, no entanto. consiste em ele ser mais do que simples homem, na medida em que este é representado como o ser vivo racional. “Mais” no deve ser entendido aqui em sentido aditivo. como se a definig&o tradicional do homem tivesse que permanecer a determinagdo fundamental para entio experimentar apenas um alarga- mento, através de um acréscimo do elemento existencialista. O “mais” significa: mais ‘rio & por isso mais radical em sua esséncia. Aqui, porém, mostra-se 0 elemento enigmatico: 0 homem é, na condigao-de-ser-jogado. Isto quer dizer: 0 homem é, como a réplica ec-sistente do ser, mais que 0 aimal rationale, na proporcao em que precisa- mente é menos na relagdo com o homem que se compreende a partir da subjetividade. O homem nao é 0 senhor do ente. O homem é o pastor do ser. Neste “menos” 0 homem nada perde, mas ganha, porquanto atinge a verdade do ser. Ele ganha a essencial pobreza do pastor, cuja dignidade reside no fato de ter sido chamado pelo proprio ser para guar- dar a sua verdade. Fste chamado vem como o lance do qual se crigina a condigao de 362 HEIDEGGER ser-jogado do ser-af, O homem 6, em sua esséncia ontoldgico-historial, o ente cujo ser como ec-sisténcia consiste no fato de morar na vizinhanga do ser. O homem é 0 vizinho do ser. Mas — isto 0 senhor jé ha muito deverd ter querido objetar-me — nao pensa justa- mente um tal pensar a humanitas do homo humanus? Nao pensa ele esta humanitas num sentido tio decisivo, como Metafisica alguma a pensou e jamais a podera pensar? Nao é isto “humanismo” no sentido supremo? Certamente. E 0 humanismo que pensa a humanidade do homem desde a proximidade do ser. Mas & ao mesmo tempo, o huma- nismo no qual esté em jogo, no © homem, mas a esséncia historial do homem, em sua origem desde a yerdade do ser. Nao depende, porém, desta circunstancia, entio, ao mesmo tempo, de maneira absoluta, a ec-sisténcia do homem? De fato, assim 6. Em Ser e Tempo (38) se afirma que todo 0 questionamento da Filosofia “repercute na existéncia”. Mas a existéncia no é aqui a realidade efetiva do ego cogito. Ela também nao @ apenas a realidade efetiva dos sujeitos que agem juntos ¢ uns para os outros e assim chegam a si mesmos, “Ec-sisténcia” é numa diferenga fundamental com qualquer existentia e “existence”, 0 morar ec-statico na proximidade do ser. Ela é a vigilancia, isto &. 0 cuidado pelo saber. Pelo fato de neste pensar dever ser pensado algo simples, parece ele to dificil ao tipo de representagao que nos foi transmitido como Filosofia. Mas a dificuldade no consiste num perder-se em profundas consideragdes de carater particular ¢ em formar conceitos enredados, mas oculta-se no passo de volta que faz penetrar o pen sar num questionar em busca de experiéncia, e que abandona as opinides correntes da Filosofia. Opina-se, por toda parte, que a tentativa de Ser e Tempo findou num beco sem saida. Deixemos esta opinido entregue a si mesma. Para além de Ser e Tempo, o pensar que procura dar alguns passos no tratado que vem com este titulo ainda hoje nfo conse guiu avangar. Entretanto, talvez, este pensar se tera aproximado um pouco mais do miolo de sua questo. Todavia, enquanto a Filosofia apenas se ocupa em obstruir constante- mente a possibilidade de penetrar na questo do pensar, a saber, a verdade do ser, ela certamente esta livre do perigo de um dia romper-se na dureza de sua questo. Por esta razio o “filosofar” sobre 0 fracasso esta separado, por um abismo, de um pensar que realmente fracassa, Se um dia o homem tivesse a sorte de realizar um tal pensar, nfo aconteceria uma desgraga. A ele, a0 contrério, seria presenteada a Gnica coisa que pode- ria advir ao pensamento por parte do ser. Mas também isto ¢ importante: a questo do pensamento néo é atingida por um conversar & toa sobre “verdade do ser” e sobre a “historia do ser”. Tudo depende do fato de a verdade do ser atingir a linguagem e de o pensar conseguir chegar a esta linguagem. Talvez a linguagem entao exija muito menos a expressao precipitada que 0 devido silén- cio. Contudo, quem de nés, contempordneos, quereria pretender que suas tentativas de pensar estejam familiarizadas na senda do siléncio? Quando muito, nosso pensar poderia talvez apontar para a verdade do ser como o que deve ser pensado. Assim, mais que de outra mancira, ela estaria livre do simples pressentimento ¢ do opinar e entregue a tarefa da escrita, que se tornou rara. As coisas que tém alguma consisténcia ainda chegam a tempo por mais tarde que seja, mesmo que nao se destinem para a eternidade. Se o Ambito da verdade do ser é um beco sem safda ou o livre espago em que a liber- dade reserva sua esséncia, isto poderd decidir ¢ julgar todo aquele que tentou, por seu proprio esforgo, trilhar 0 caminho indicado, ou, 0 que ainda é melhor, abrir um caminho melhor, 0 que significa uma via mais adequada 4 questo. Na pentiitima pagina de Ser e Tempo (437), esto as frases seguintes: “A disputa a interpretagao do ser (isto, portanto, SOBRE O “HUMANISMO” 363 nao significa do ente, ¢ também nao do ser do homem) nao pode ser decidida, porque ainda nem mesmo foi desencadeada. E, afinal, ela nao se deixa introduzir improvisada- mente, mas o desencadear da disputa jA necessita de uma preparacdo. E s6 para isto que 2 presente investigagio esté a caminho”. Estas frases valem ainda hoje, apés muitos decénios, Continuemos nés, também nos tempos vindouros, como viajores, no caminho para a vizinhanga do ser. A questo que o senhor levanta ajuda a clarear o caminho, O senhor pergunta: Comment redonner un sens au mot “humanisme"? “De que maneira dar novamente, 4 palavra humanismo, um sentido?” Sua pergunta nfo apenas pressupde que 0 senhor quer conservar a palavra “humanismo"; ela contém também a confissio de que esta palavra perdeu seu sentido. Ela perdeu seu sentido, pela convicgio de que a esséncia do humanismo é de cardter metafisico e isto significa, agora, que a Metafisica nao apenas nao coloca a questio da verdade do ser, mas a obstrui, na medida em que a Metaffsica persiste no esquecimento do ser. Mas 0 pensar que conduz a esta compreensio do carater problematico da es: cia do humanismo levou-nos, ao mesmo tempo, a pensar a esséncia do homem mais radi- calmente, No que diz respeito a esta humanitas do homo humanus, em sua dimensio mais essencial, resulta a possibilidade de devolver a palavra humanismo um sentido hi torial que é mais antigo que seu mais antigo sentido, sob o ponto de vista historiogratico. Este devolver do sentido no se deve entender como se a palavra “humanismo” fosse como tal sem sentido e um simples flatus vocis. O “humanum” aponta, na palayra, para a humanitas, a esséncia do homem, O “ismo™ aponta para o fato que a esséncia do homem deveria ser tomada de maneira radical. Este sentido possui a palavra “humanis- mo” como palavra. Dar-Ihe novamente um sentido somente pode significar: determinar de novo o sentido da palavra, Isto exige, de um lado, que a esséncia do homem seja expe. rimentada mais originariamente; de outro lado, que se mostre em que medida esta essén- cia é, a seu modo, bem disposta. A esséncia do homem reside na ec-sisténcia, E esta ec- sisténcia que essencialmente importa, 0 que significa que ela recebe sua importancia do ser mesmo, na medida em que o ser apropria o homem enquanto ele 0 ec-sistente, para a vigilancia da verdade do ser, inserindo-o na propria verdade do ser. “Humanismo” sig- nifica, agora, caso nos decidamos a manter a palavra: a esséncia do homem é essencial para a verdade do ser, mas de tal modo que, em consegiiéneia disto, precisamente nao importa 0 homem simplesmente como tal. Dest maneira, pensamos um “humanismo” de natureza singular. A palavra dé como resultado uma expressfio que é um “lucus anon lucendo”.® que se deve chamar a este “humanismo” que fala contra todo humanismo conhecido, mas que ao mesmo tempo, de maneira alguma, se arvora em intérprete do inumano, ainda de “humanismo”? E isto apenas para talvez participar no uso da expres- io, acompanhar as correntes dominantes que se afogam no subjetivismo metafisico e que esto afundadas no esquecimento do ser? Ou sera tarefa do pensamento tentar, atra vés de uma aberta oposigdo contra o “humanismo”, um novo impulso que poderia su: tar uma atengdo para a humanitas do homo humanus ¢ sua fundamentagao? Pois, deste modo — caso 0 momento da hist6ria universal atual j4 no a provocasse por si mesmo ~, poder-se-ia despertar uma reflexdo que pensasse, nfo apenas sobre 0 homem, mas sobre a “natureza” do homem, nao apenas sobre a natureza, mas, ainda mais originaria- mente, sobre a dimensio na qual a esséncia do homem, determinada a partit do proprio ser, s¢ torna familiar. Nao seria melhor suportarmos antes, por mais algum tempo ainda, * ‘Trad.+ Clareira sem brilho. (N, do E,) 364 HEIDEGGER 08 inevitaveis mal-entendidos, deixando-os desgastarem-se lentamente, mal-entendidos a quem o caminho do pensamento esté exposto até agora no elemento de Ser e Tempo? Estas falsas interpretagdes so naturalmente interpretagdes do que se leu ou de opinides de outros que leram e do que se pensa j4 saber antes da leitura. Todos eles revelam a ‘mesma estrutura e o mesmo fundamento. Porque se fala contra o “humanismo™, teme-se uma defesa do in-umano e uma slorificagao da barbarie brutal. Pois 0 que é “mais ldgico” do que restar, para aquele que nega o humanismo. apenas a afirmagio da desumanidade? Porque se fala contra a “Légica”, pensa-se que se exige a reniincia ao rigor do pensamento, para introduzir em seu lugar a arbitrariedade dos impulsos e sentimentos, e assim proclamar como verdadeiro 0 “irracionalismo”. Pois o que & “mais lgico” do que isto: aquele que fala contra o Idgico defende 0 a-légico? Porque se fala contra os “valores”, a gente se escandaliza em face de uma filosofia que pretensamente ousa abandonar ao desprezo os supremos bens da humanidade, Pois 0 que é “mais l6gico” do que isto: um pensamento que rejeita os valores dever4 procla- mar tudo sem valor? Porque se diz que o ser de homem consiste em “ser-no-mundo”, imagina-se que 0 homem foi degradado a um ser meramente mundano, reduzindo-se assim a Filosofia ao positivismo. Pois o que é mais l6gico do que isto: quem afirma a mundaneidade do ser- homem s6 da valor ao que é daqui de baixo, negando 0 que é do além e renunciando a toda “transcendéncia”? Porque se aponta para a palavra de Nietzsche sobre a “morte de Deus”, declara-se que tal comportamento é ateismo, Pois o que é “mais logico” do que isto: aquele que fez a experiéncia da “morte de Deus” é um sem-Deus? Porque, em tudo isto, em toda parte, se fala contra aguilo que para a humanidade vale como elevada e sagrado, tal filosofia ensina um “niilismo” irresponsavel e destrui- dor. Pois 0 que é “mais l6gico” do que isto: quem nega, em toda parte, o ente verdadeiro, coloca-se do lado do néio-ente e, com isto, proctama que o simples nada 0 sentido da realidade efetiva? O que se passa aqui? Ouve-se falar de “humanismo”, “Légica”, “valores”, “mundo”, “Deus”. Ouve-se falar de uma oposigdo contra tudo isto. O que foi nomeado se conhece e se torna como 0 positivo, Aquilo que, no ouvir dizer, fala, de um modo nao pensado com rigor, contra 0 que foi acima nomeado. toma-se imediatamente como sua negagio € esta como o “negativo”, no sentido do destrutivo. Em Ser e Tempo fala-se até, em alguma parte expressamente, “da destruigdo fenomenoligica”. Pensa-se com 0 au: lio da Logica e razao, tantas vezes invocadas, que 0 que nao é positivo é negativo, e que assim se pratica o desprezo da razio ¢ merece, por isso, ser marcado como depravacao. Esta-se to saturado de “Légica” que se contabiliza como elemento oposto condendvel tudo 0 que se opuser & semi-sonoléncia do simples opinar. Joga-se tudo 0 que nao perma- nece truncado junto 20 conhecido e idolatrado positivo na fossa previamente preparada da pura negagdo, que a tudo nega e que, por isso, termina no nada e assim completa 0 niilismo. Deixa-se, através desie caminho légico, afundar tudo num niilismo que se inventou com o auxilio da Légica, Mas sera que efetivamente o “contra”, que um pensar apresenta diante do que comumente se imagina, aponta necessariamente para a pura negacio e o negativo? Isto acontece s6 entdo, e neste caso. sem diivida, de modo inevitavel e definitivo — isto é, sem uma livre visio de qualquer outra coisa —. quando ja de antemao se coloca o ele- mento opinativo como “o positive”, decidindo, a partir deste, absoluta e ao mesmo SOBRE O “HUMANISMO™ 365 tempo, negativamente sobre a Ambito de toda e qualquer possivel oposig&o a ele. Num tal procedimento esconde-se a recusa de submeter a uma reflexio 0 que, por preconceito, se julga “positivo”, juntamente com posigao ¢ oposigdo. diade esta em que pensa estar a salvo, Com o constante apelo ao elemento ldgico, suscita-se a aparéncia de um empenho ao pensar, quando, entdo, justamente, se renunciou ao pensar. Destas observagdes deve ter resultado um pouco mais claro que a oposigdo ao “hu- manismo” nao implica, de maneira alguma, a defesa de inumano, mas abre outras perspectivas. A “Légica” entende o pensar como a representagao do ente em seu ser, pensar que se apresenta o representar na generalidade do conceito. Mas o que acontece com a medi- tagdo sobre 0 proprio ser, ¢ isto quer dizer. com 0 pensar que pensa a verdade do ser? Somente este pensar atinge a esséncia originaria do ldgos, que, em Plato e Aristateles, os fundadores da “Logica”, ja foi entulhada e perdida. Pensar contra “a Légica™ nao sig. nifica quebrar langas em defesa do ilégico, mas significa apenas: meditar sobre o [dgos, € sua esséncia nos primérdios do pensamento; significa: empenhar-se. primeiro, na preparagao de um tal me-ditar. Que sentido possuem para nos todos os sistemas da Logi ca, por mais amplos que sejam, quando se subtraem, ¢ mesmo sem o saber, j4 de ante- mio, da tarefa de primeiro questionar, mesmo que seja apenas isto, a esséncia do légos? Quiséssemos devolver na mesma moeda, com objegdes, o que certamente ¢ improdutivo, entio, com maior razdo, se poderia dizer: o irracionalismo como rendincia a ratio impera desconhecido e indiscutido, quando se defende aquela “Légica” que pensa poder esqui- var-se de uma meditag’o sobre o légos e sobre a esséncia da ratio que nele se fundamenta, © pensar contra “os valores” nfo afirma que tado aquilo que se deciara como “va lores”, a “cultura”, a “arte”, “mundo” e “Deu seja em valor. Ao contrario, importa, finalmente, reconhecer que, justamente pela carac- terizagao de algo como “valor”, rouba-se a dignidade daquilo que é assim valorado. Isto quer dizer: ao avaliar algo como valor, aquilo que foi valorado apenas admitido como objeto para a avaliacao pelo homem. Mas aquilo que é algo em seu ser ndo se esgota em sua objetividade e, sobretudo, de modo algum, entdo, quando a objetividade tem 0 caré- ter de valor, Todo valorar, mesmo onde é um valorar positivamente, & uma subjetivacio. © valorar no deixa o ente ser, mas todo valorar deixa apenas valer 0 ente como objeto de seu operar. O esdraxulo empenho em demonstrar a objetividade dos valores nao sabe © que faz, Quando se prociama “Deus” como “o valor supremo”, isto significa uma degradagio de Deus. © pensar através de valores é, aqui, e em qualquer outra situagio, a maior blasfémia que se pode pensar em face do ser. Pensar contra os valores nao signi- fica, portanto, propagar que o ente € destitufdo de valor e que é sem importancia; mas isto significa: levar para diante do pensar a clareira da verdade do ser contra a subjetiva gao do ente em simples objeto. Chamar a atengiio para o “ser-no-mundo” como o trago fundamental da humanitas do homo humanus nio significa afirmar que 0 homem é apenas um ser “mundano”, no sentido cristo; portanto, um ser afastado de Deus e até desligado da “transferéncia”. Com esta palavra pensa-se 0 que mais claramente foi denominado o transcendente. O transcendente é 0 ente supra-sensivel. Este vale como o ente supremo no sentido da causa primeira de todos os entes, Deus é pensado como esta causa primeira, “Mundo”, todavia, na expressio “ser-no-mundo”, nao significa, de maneira alguma, o ente terreno, & dife renga do celeste, nem mesmo o “mundano”, a diferenga do “espiritual”. “Mundo” naquela expressio, nao significa, de modo algum, um ente e nenhum Ambito do ente, mas 366 HEIDEGGER a abertura do ser. O homem & e é homem enquanto é 0 ec-sistente. Ele esta postado, num processo de ultrapassagem, na abertura do ser, que ¢ 0 modo como o proprio ser & este Jogou a esséncia do homem, como um lance, no “cuidado” de si, Jogado desta maneira, © homem esta postado “na” abertura do ser. “Mundo” é a clareira do ser na qual o homem penetrou a partir da condigo de ser-jogado de sua esséncia. O “ser-no-mundo” nomeia a esséncia da ec-sisténcia, com vistas & dimensio iluminada, desde a qual desdo- bra seu ser o “ec” da ec-sisténcia, Pensado a partir da ec-sisténcia, “mundo” , justa mente, de certa maneira, 0 outro lado no seio da e para a ec-sisténcia, O homem jamais é primeiramente do lado de c4 do mundo como um “sujeito”, pensa-se este como “eu” ou como “nds. Nunca é também primeiramente e apenas sujeito, que, na verdade, sempre se refere, ao mesmo tempo, a objetos, de tal maneira que sua esséncia consistiria na rela- go sujeito-objeto. Ao contrério, o homem primeiro é, em sua esséncia, ec-sistente na abertura do ser, cujo aberto ilumina o “entre” em cujo seio pode “ser” uma “relagfio” de sujeito e objeto. A frase: A esséncia do homem r decisio sobre a hipétese se oh mundo ou do outro. Com a determinagao existencial da esséncia do homem, por isso, ainda nada esta decidido sobre a “existéncia de Deus” ou seu “niio-ser”, como tampouco sobre a possibi- lidade ou impossibilidade de deuses. Por isso ndo @ apenas apressado, mas ja falso no modo de proceder, afirmar que a interpretagio da esséncia do homem, a partir da relagiio desta esséncia com a verdade do ser, é ateismo. A esta classificagio arbitréria, ademais, falta cuidado na leitura. Nao ha preocupagio com o fato de que, desde 1929, esta escrito, no texto Sobre a Esséncia do Fundamento (28, nota 1), 0 seguinte: “Através da interpre- tagao ontol6gica do ser-ai como ser-no-mundo nao se decidiu nada, nem positiva nem negativamente, sobre um possivel ser-para-Deus. Mas s6 pela clarificagdo da transcen- déncia se aleanga um adequado conceito do ser-at, que, levado em consideragao, permite, entao, perguntar quai 6, sob © ponto de vista ontolégico, o estado da relagao do ser-ai com Deus”. Se também se interpreta, como de costume, também esta observagio, de maneira mesquinha, ir explicar-se: esta filosofia ndo se decide nem a favor nem contra a existéncia de Deus. Ela permanece presa a indiferenga. E um tal indiferentismo, contu- do, tomna-se vitima do niilismo. Ora, ensina a observagao que aduzimos 0 indiferentismo? Por que grifamos entio palavras isoladas determinadas endo qualquer uma? Pois, foi apenas para insinuar que © pensar que peasa desde a questio da verdade do ser pensa mais radical e originaria- mente do que a Metafisica é capaz de questionar. Some? a partir da verdade do ser deixa-se pensar a esséncia do sagrado. E somen- te a partir a. esséncia do sagrado deve ser pensada a esséncia da divindade. B, final- mente, somente na luz. da esséneia da divindade pode ser pensado e dito 0 que deve no- mear a palavra “Deus”. Ou sera que no deveremos ser capazes de, primeiro, entender e escutar com cuidado estas palavras, se nds homens, isto & como seres ec-sistentes, qui- sermos ter acesso a uma experigncia de uma relagdo de Deus para com o homem? Pois, como poderia o homem da atual hist6ria mundial mesmo apenas questionar, com serie~ dade e rigor, se o Deus se aproxima ou se subtrai, se 0 homem deixa de lado pensar pri- meiro para dentro da dimenso, na qual aquela questo unicamente pode ser desenca deada? Esta dimensio, porém, € a dimensio do sagrado, que mesmo como dimensio permanece fechada, caso nao se clarear o aberto do ser para, em sua clareira, estar pro ximo do homem. Talvez o elemento mais marcante desta idade do mundo consista no r- gido fechamento para a dimensio da graga, Talvez seja esta a tinica desgraga. side no ser-no-mundo também nao cont &, no sentido teolégico-metafisico, um ser deste uma SOBRE O “HUMANISMO” 367 Todavia, com esta indicagao no se quer ja ter decidido, de maneira alguma, pelo teismo, o pensar que, antecipando, aponta para a verdade do ser como 0 que deve ser pensado. Ele nao pode ser tefsta nem ateista, Isto, porém, nao levado por uma atitude de indiferenga, mas por respeito aos limites, postos ao pensar enquanto pensar, ¢ isto atra- vés daquilo que se Ihe da a pensar pela verdade do ser. Na medida em que o pensar se contenta com a sua tarefa, da ele, no momento do presente destino mundial, ao homem, uma orientagao para a dimenso originaria de sua morada historial. Com dizer desta forma a verdade do ser, 0 pensar se entregou Aquilo que é mais essencial que todos os valores ¢ que qualquer ente. O pensar no supera a Metafisica, enquanto ainda mais a exacerba, ultrapassa ¢ a sobressume em qualquer lugar, mas enquanto recua para a proximidade do mais proximo. A descida é bem mais dificil e perigosa, particularmente ali onde o homem perdeu-se na subjetividade. A descida conduz a pobreza da ec-sis téncia do homo humanus. Na ec-sisténcia é abandonado o ambito do homo animalis da Metafisica. O império deste Ambito ¢ a razo indireta e de conseqiiéncias que recuam longe, para a obliteragdo e arbitrariedade daquilo que se pode caracterizar como biolo- gismo e também para aquilo que se conhece pela expresso pragmatismo. Pensar a ver- dade do ser significa, ao mesmo tempo: pensar a humanitas do homo humanus, Importa a humanitas a servigo da verdade do ser, mas sem o humanismo no sentido metafisico. Se, porém, a humanitas esta tio essencialmente no campo visual do pensar do ser, iio deve entdo a “Ontologia” ser completada por uma “Etica”? Nao seria entio seu empenho, que exprime em sua frase, muito essencial: “Ce que je cherche d faire, depuis longtemps déja, c est préciser le rapport de l'ontologie avec une éthique possible”?” Logo apés a publicagao de Ser e Tempo, perguntou-me um jovem amigo: “Quando escreverd o senhor uma ética?” La onde a esséncia do homem é pensada tao essencial- mente, a saber, unicamente a partir da questio da verdade do ser, mas onde, contudo, 0 homem nao foi elevado para 0 centro do ente, deve realmente despertar a aspirago por uma orientago segura e por regras que dizem como o homem, experimentado a partir da ec-sisténcia para o ser, deve viver convenientemente ou de acordo com o destino. A aspi- rago por uma Etica urge com tanto mais pressa por uma realizag&o, quanto mais a perplexidade manifesta do homem e, nao menos, a oculta, se exacerba para além de toda medida. Deve dedicar-se todo cuidado a possibilidade de criar uma Etica de carater obri- gat6rio, uma vez que o homem da técnica entregue aos meios de comunicagao de massa somente pode ser levado a uma estabilidade segura através de um recolhimento e ordena do de seu planejar e agir como um todo, correspondente a técnica. Quem poderia deixar de perceber a indigéncia desta situago? Nao seria conve- niente poupar e garantir os lagos estabelecidos, ainda que somente consigam manter a unidade do ser humano precariamente e apenas na situagio de hoje? Sem duvida. Mas ja desobriga esta indigéncia o pensar de considerar aquilo que principalmente deve ser pen: sado e que permanece, enquanto o ser, mais que todo ente, garantia e verdade? Sera que © pensar pode ainda continuar a esquivar-se de pensar o ser, quando este se manteve escondido em longo esquecimento e ao mesmo tempo se anuncia, neste momento da his toria universal, através da comogao de todos os entes? Antes de procurarmos determinar mais exatamente as relagdes entre “a Ontologia e “a Etica”, devemos perguntar 0 que so a propria “Ontologia” e a propria “Etica” Impée-se considerar se aquilo que € nomeado nestas duas expressdes ainda permanece 7 Trad.: © que procuro faz (N.do E) i ha muito tempo, & precisar a relagiio da Ontologia com uma Etica possivel 368 HEIDEGGER adequado e préximo para aquilo que foi entregue ao pensar como tarefa, que como pen- sar deve, antes de tudo, pensar a verdade do ser. Caso, tanto “a Ontologia” como “a Etica”. junto com todo o pensar por disciplinas, se tornassem caducas, adquirindo, assim, nosso pensar mais disciplina, qual seria, ento, 4a sitnagdo da questo da relagao das duas disciplinas mencionadas com a Filosofia? A “Etica” surge junto com a “Logica” e a “Fisica”, pela primeira vez, na escola de Plato. As disciplinas surgem ao tempo que permite a transformagio do pensar em “Filosofia”, a Filosofia em epistéme (Ciéncia) e a Ciéncia mesma em um assunto de es- cola e de atividade escolar. Na passagem por esta Filosofia assim entendida, surge a Ciéncia e passa 0 pensar. Os pensadores desta época no conhecem nem uma “Légica”, nem uma “Etica”, nem uma “Fisica”, E, contudo, seu pensar no é nem ilégico e imoral, A “physis” era, porém, pensada por eles, numa profundidade e amplitude, que toda “Fi- sica” posterior nunca mais foi capaz de aleangar. As tragédias de Sdfocles ocultam — permita-se-me uma tal comparagéo —, em seu dizer, o éhos, de modo mais originario que as prelegdes de Aristételes sobre a “Etiea”. Uma sentenga de Heraclito que consiste apenas em trés palavras diz algo tio simples que dela brota e chega a luz, de maneira imediata, a esséneia do étios. A sentenga de Herdctito é a seguinte (Fragmento 119): Ethos anthrépo damon. De maneira geral costuma-se traduzir: “O modo proprio de ser é para 0 homem 0 deménio” Esta tradugdo pensa de maneira moderna e nao de modo grego. Ethos significa morada, lugar da habitagdo, A palavyra nomeia o Ambit aberto onde o homem habita. O aberto de sua morada torna manifesto aquilo que vem ao encontro da esséneia do homem e assim, aproximando-se, demora-se em sua proximidade. A morada do homem contém e conserva 0 advento daquilo a que 0 homem pertence em sua esséncia, Isto é, segundo a palavra de Herdclito, 0 dafimon, o Deus. A sentenga diz: 0 homem habita, na medida em que é homem, na proximidade de Deus. Com esta sentenga de Heraclito concorda uma histéria que Aristoteles relata (Das Partes do Animais A 5, 645 a 17). E a seguint Herdkleitos légetai pros tons xénous eipetia totis bouloménous enty khein autd hot epeidé prosiéntes eftdon auton therémenon pros 16 ipnd éstesan, ekéleue gar autowis eisiénai thar- rotintas: einai gar kai entaittha teous “Narra-se de Herdclito uma palavra que teria dito aos forasteiros que queriam che- gar até ele. Aproximando-se. viram-no como se aquecia junto ao forno. Detiveram-se surpresos; isto, sobretudo, porque Herdclito ainda os encorajou —~ a eles que hesitavarn —. convidando-os a entrar, com as palavras: Pois também aqui esto presentes deuses...”” Esta narrativa fala por si; destaquemos, contudo, alguns aspectos. grupo de visitantes esta frustrado e desconcertado na curiosidade que os levou a dirigirem-se ao pensador; o desconcerto & provocado pelo aspecto de sua moradia. O grupo cria ter que encontrar o pensador em circunstancias que, ao contrario do simples viver dos homens comuns. deveriam mostrar, em tudo, os iragos do excepcional e do raro € por isso do emocionante, O grupo traz. a esperanga de, com sua visita, encontrar junto do pensador coisas que —~ ao menos por um certo tempo — forneceriam assunto para uma conversa divertida ¢ animada. Os estranhos que querem visitar 0 pensador esperam vé-lo talvez justamente no momento em que ele, mergulhado em profundas meditagdes, pensa. Os visitantes querem “viver” isto, ndo para serem atingidos pelo pensar, mas simplesmente para poderem dizer que viram e ouviram alguém, do qual igualmente ave- nas diz-se que € um pensador. Em vez disso, os curiosos encontram Herdclito junto ao forno. E um lugar banal e bastante comum. Sem divida, nele se assa 0 pao. Ele esta af apenas para se aquecer. SOBRE O “HUMANISMO” 369 revela ele neste iugar, sem dvida, comum, toda a indigéncia de sua vida. A vista de um pensador passando frio oferece muito pouco de interessante. Os curiosos perdem. pois, com esta visdo frustrante, logo a vontade de se aproximarem mais. Que fardo ali? Este fato, comum e sem encanto, de alguém estar com frio e estar perto do forno, qual- quer um pode revivé-lo, em qualquer tempo. em casa, Para que entdo procurar um pensa- dor? Os visitantes se aprestam para se afastarem. Heraclito |é a curiosidade frustrada em seus rostos, Sabe que para uma multidao j4 basta a falta de uma sensagio esperada, para fazer com que os que recém-chegados imediatamente voltassem sobre seus passos. Por isso, infunde-Ihes coragem. Ele mesmo 0s convida a entrar, contudo, dizendo: emai gar kai entaiitha theotis. “Os deuses também esto aqui presentes.” Esta palavra situa a morada (éthos) do pensador e seu agir numa outra luz. A histo ria no conta se os visitantes imediatamente ou se alguma vez entenderam esta palavra, vendo ento tudo numa outra hz. Mas se esta historia foi contada e transmitida até nds, contemporineos, isto reside no fato de que daquilo que relata provém da atmosfera deste pensador e caracteriza: Ka? entaiitha, “Também aqui”, junto ao forno. neste lugar corti queiro, onde cada coisa € cada circunstincia. cada agir ¢ cada pensar, so costumeiros e banais, isto é, familiares (pois, também aqui), no ambito familiar einai theotis, a coisa 6 de tal modo, “que os deuses esto presentes”, Ethos anthrépo datmon, diz. o proprio Herfelito: “A habituagao (familiar) é para o homem 0 aberto para a presentificagiio do Deus (0 nio-familiar)”. Se, portanto, de acordo com a significago fundamental da palavra éthos, o nome Etica diz que medita a habitagdo do homem, entéo aquele pensar que pensa a verdade do ser como 0 elemento primordial do homem enquanto alguém que ec-siste ja € em si a Etica originaria. Mas este pensar nao é apenas entdo Ftica, porque ¢ Ontonlogia. Pois a Ontologia pensa sempre apenas o ente (611) em seu ser. Enquanto nio tiver sido pensada, contudo, a verdade do ser, permanece toda Ontologia sem seu fundamento. E esta a raz3o por que © pensamento, que com Ser e Tempo procurava antecipar o pensar para dentro da verdade do ser, se caracterizava assim mesmo como Ontologia Fundamental, Esta tende a penetrar no fundamento essencial do qual provém o pensamento da verdade do ser. J4 pelo ponto de partida do outro questionar, afasta-se este pensar da “Ontolo- gia” da Metafisica (daquela de Kant). A “Ontologia”, porém, quer seja ela transcen- dental ou pré-eritica, esta submetida a eritica, nfo porque ele. pensa o ser do ente e forga assim o ser para dentro do conceito, mas porque ndo conhece a verdade do ser, deseo- nhecendo, assim, que existe um pensar que é mais rigoroso que o pensar conceitual. O pensar que procura antecipar-se, pelo pensar, na verdade do ser. s6 consegue. na indi- géncia de seu primeiro esforgo, transformar em linguagem pouca coisa da dimensio absolutamente diferente. Esta ainda falsifica-se a si mesma, na medida em que ndo tem sucesso em reter a essencial ajuda do ver fenomenoligico e, contudo, deixar de lado, por- que sem sentido e inadequada, a preocupagao em ser “Ciéncia” e “Pesquisa”. Todavia, para tornar conhecida e compreensivel esta tentativa do pensar, no seio da filosofia esta- belecida, s6 foi possivel, primeiro, falar desde o horizonte do estabelecido e recorrendo as expresses que The eram familiares, Entretanto, aprendi a ver que justamente estas expressdes tinham que levar direta e inevitavelmente para a errdncia. Pois as expresses e a linguagem conceitual nelas inte- grada nao foram re-pensadas, pelos leitores, a partir da coisa propriamente dita que tinha que ser pensada; ao contrério, 2 coisa propriamente dita foi representada a partir das expressdes que foram mantidas com stas significagdes correntes, O pensar que questiona a verdade do ser e nisto determina o lugar essencial do homem, a partir do ser ¢ em diregdo a ele, ndo é nem Etica nem Ontologia. Por isso a 370 HEIDEGGER questo da relago de ambas entre si nao possui mais chao neste dmbito. E, contudo, sua pergunta, pensada mais originariamente, retém um sentido ¢ um peso fundamentai Pois deve-se perguntar: se o pensar, pensando a verdade do ser, determina a essén a da humanitas como ec-sisténcia a partir do fato de pertencer ao ser, permanece ent3o este pensar apenas um representar tedrico do ser e do homem, ou é possivel retirar, 20 mesmo tempo, de um tal conhecimento, indicages para a vida ativa? A resposta €: este pensamento nio é nem tedrico, nem pratico. E antes desta dis tingo que ele acontece e se realiza, Este pensar ¢, na medida em que é a lembranga do ser e nada além disto. Pertencendo ao ser, porque, por ele jogado na guarda de sua verda de ¢ para cla requisitado, pensa ele o ser. Um tal pensar nfo chega a um resultado; nao produz efeito. Ele satisfaz sua esséncia, enquanto é. Mas ele é na medida em que diz a sua coisa propriamente dita. A questi propriamente dita do pensar pertence apenas uma saga (Sage), aquela que € adequada ao que constitui a esséncia da questio. Sua constringéncia é essencialmente mais alta que a validade das ciéncias, porque mais livre Pois ela deixa que o ser ~~ seja. pensar trabalha na edificagao da casa do ser; é como tal casa que a juntura do ser dispde, sempre de acordo com o destino, a esséncia do homem para morar na verdade do ser. Este morar é a esséncia do “Ser-no-mundo” (Ser e Lempo, 54). A indicagao para 0 “ser-em” como o “morar”, que la aparece, ndo é um simples jogo etimologico. A indica- géio que aparece na conferéncia de 1936, sobre a palavra de Hélderlin, “Cheio de méri- tos, todavia poeticamente, habita o homem nesta terra”, ndo € um enfeite de um pensar que foge da Ciéncia, salvando-se na Poesia. O discurso sobre a casa do ser no é uma transposigao da imagem da “casa” para o ser; ao contrario, um dia seremos mais capa zes de pensar o que é “casa” e “habitar” a partir da esséncia do ser adequadamente pensada. Sem embargo, o pensar jamiais cria a casa do ser. O pensar conduz. a ec-sisténcia historial, isto é, a Aumanitas do homo humanus, para o ambito onde nasce o que é salutar. Com o salutar — 0 bom —, particularmente, se manifesta, na clareira do ser, 0 mal. A esséncia do mal no consiste na simples maldade do agir humano, mas reside na ruindade da grima. Ambos, 0 bom e a grima, somente podem desdobrar seu ser no seio do ser na medida em que o proprio ser é 0 que esta em conilito. Nisto se esconde a ori- gem essencial do nadificar. Aquilo que nadifica se ilumina como 0 que possui cardter nadificador. Isto pode ser expresso no “no”. O “nao” (Nicht) nio emana, de maneira alguma, do dizer-niio da negagdo. Cada “nao” (Nein) que nao corrompe o seu sentido, enquanto uma teimosa insisténcia sobre o poder constituinte da subjetividade, mas que permanece como algo que deixa-ser a ec-sisténcia, responde ao apelo do nadificar clarifi cado. Todo dizer nao ¢ apenas a afirmagdo do nao (Nicht). Cada afirmagio repousa num reconhecer. Este deixa que venha a si aquilo para onde se dirige. Pensa-se que, em parte alguma do ente, se pode encontrar o nadificar. Isto é exato, enquanto se procura o nadifi- car como um ente, como uma caracteristica dntica no ente, Mas, procurando assim, no e procura o nadificar. Também o ser ndo é uma caracteristica éntica que se pode verifi- car no ente. E, contudo, o ser é mais que qualquer ente. Porque 0 nadificar desdobra seu ser no priprio ser. por isso n&o podemos verifica-la como algo éntico no ente. E. alm de tudo, prova a indicagao para a impossibilidade de jamais 0 néo provir do dizer-nao. Esta demonstragiio parece ter apenas entio validez quando se funda 0 ente como a obje- tividade da subjetividade. Conclui-se ento da alternativa de que cada nio, porque nunca aparece como algo objetivo, deve inelutavelmente ser 0 produto de um ato do sujeito. Se, SOBRE O “HUMANISMO” 371 todavia, ¢ apenas o dizer-ndo que pde 0 nao como algo puramente pensado, ou se apenas © nadificar requisita 0 “ndo” como o que deve ser dito no deixar-ser do ente, isto certa- mente jamais pode ser decidico a partir da reflexdo subjetiva sobre o pensar ja fundado como subjetividade. Em tal reflexdo ainda nio foi alcangada a dimensio para correto questionamento, Resta perguntar se jé nio — supondo que o pensar faga parte da ec-sis- téncia — todo “sim” ¢ “nfo” sfo ec-sistentes na verdade do ser. B este 0 caso, entdo 0 “sim” ¢ 0 “no” j4 esto a escuta do ser, Enquanto fazem parte do ser que escutam, eles jamais podem por aquilo a que eles mesmos pertencem. O nadificar desdobra seu ser no ser e, de maneira alguma, no ser-ai do homem, na medida em que este ser-ai pensado como a subjetividade do ego cogito. O ser-ai nio nadifica, de maneira alguma, na medida em que o homem, como sujeito, realiza o ato de nadificagio, no sentido da recusa; o ser-ai nadifica, enquanto, como esséncia em que 0 homem ec-sistente, ele mesmo pertence a esséncia do ser. O ser nadifica — como ser. Por isso aparece no idealismo absoluto, em Hegel ¢ Schelling, o nada como a negatividgde da negagao na esséncia do ser. Este, porém, & pensado ali no sentido da absoluta realidade efetiva como a vontade incondicionada que se quer a si mesma, como a vontade do saber e do amor. Nesta vontade ainda se oculta o ser como a vontade de poder. Todavia, o mo- tivo pelo qual a negatividade da subjetividade absoluta, que é “dialética”, e porque atra. vés através da dialética o nadificar, com efeito, chega a se manifestar, mas ao mesmo tempo se vela na esséncia, no pode ser aqui discutido, O nadificar no ser @ a esséncia daquilo que eu nomeio o nada. Por isso, porque pensa 0 ser, 0 pensar pensa o nad: £ somente o ser que garante ao salutar (salvo) o nascimento com honra, ¢ impulso para a desgraga, a grima. Somente na medida em que o homem, ec-sistindo na verdade do ser, a este pertence, pode vir do proprio ser a adjudicagao daquelas ordens que se devem tornar lei e regra para o homem. Adjudicar significa em grego némein. O némos nao € apenas lei, mas, mais originariamente, a adjudicagao oculta na destinagdo do ser. S6 esta € capaz de dis. por o homem no seio do ser. $6 tal disposigdo é capaz de sustentar e vincular. De outra maneira, toda lei permanece apenas artificio da razio humana. Mais importante que qualquer fixagdo de regras € 0 homem encontrar o caminho para morar na verdade do ser. E somente esta habitacio que garante a experiéncia do que pode ser sustentado e dar apoio. O apoio para todo comportamento presenteia a verdade do ser. “Apoio” (Halt) significa na iingua alema a “protegdo” (Hut). O ser € a protegao que guarda o homem em sua esséncia ec-sistente, de tal maneira, para a sua verdade, que cla instala a ec-sisténcia na linguagem. E por isso que a linguagem é particularmente a casa do ser e a habitagao do ser humano, Somente porque a linguagem é a habitagdo da esséncia do homem podem as humanidades historiais e os homens nao estar em casa na sua linguagem, de maneira tal que ela se torna para eles um habitaculo de suas maquinagées. Quais as relagdes que mantém, entretanto, o pensar do ser com 0 comportamento tedrico ¢ pratico? Isto ultrapassa toda consideragio porque se preocupa com a luz na qual pode residir e mover-se um ver da theoria. O pensar atenta para a clareira do ser. enquanto deposita seu dizer do ser na linguagem como habitagao da ec-sisténcia. Deste modo, 0 pensar é um agit. Mas € um agir que, ao mesmo tempo, supera toda praxis. O pensar perpassa 0 operar € produzir, ndo pela grandeza de seus resultados nem pelas conseqiiéncias de sua atuag%o, mas através do minimo de seu consumar destituido de sucesso. Pois o pensar traz a linguagem, em seu dizer, apenas a palavra pronunciada do ser. 372 HEIDEGGER A expresso “trazer & linguagem”, aqui usada, deve ser tomada agora bem literal: ‘mente. O ser chega, iluminando-se, a linguagem. Ele est constantemente a caminho para ela, Isto que est4 constantemente em advento o pensar ec-sistente, por sua vez, traz, em seu dizer, a linguagem. Esta é assim elevada para a clareira do ser. Somente assim é a lin- guagem daquela maneira misteriosa e que, contudo, constantemente, nos perpassa com seu imperar, Portanto, enquanto a linguagem levada plenamente & sua esséncia ¢ histo- rial, 0 ser é guardado na lembranga. A ec-sisténcia habita. pensando, a casa do ser. Em tudo isto, as coisas permanecem como se nada tivesse acontecido através do dizer pensante, Todavia, ha pouco mostrou-se-nos um exemplo para este invisivel agir do pensar. Pois, enquanto pensamos de maneira apropriada a expresso “trazer & linguagem” que foi destinada a linguagem, apenas isto e nada mais, enquanto conservamos isto que pen- samos como 0 que no futuro deve ser constantemente pensado, na atengio de nosso dizer, trouxemos a linguagem algo essencial do proprio ser. O estranho, neste pensamento do ser, é a sua simplicidade, justamente ela nos man- tém dele afastados. Pois procuramos o pensar que tem seu prestigio universal sob o nome “Filosofia”, na forma do inabituai que é apénas acessivel aos iniciados. Representamo- os, a0 mesmo tempo, 0 pensar a maneira do conhecimento cientifico e seus empreen mentos de pesquisa, Medimos o agir na produgo impressionante e cheia de sucesso da praxis. Mas o agir do pensar n&o é nem tedrico nem pritico, nem é a imbricagao dos dois modos de comportamento. Pelo seu modo simples de ser, 0 pensar do ser se faz para nds irreconhecivel. Se, contudo, nos tornamos amigos do nao-costumeiro do simples, entdo nos assalta imedia. tamente uma outra preocupagio. Surge a suspeita de que este pensamento do ser torna-se vitima da arbitrariedade, pois ndo pode encontrar apoio no ente. Onde busca o pensar sua medida? Qual é a lei de seu agir? Aqui se deve escutar a terceira pergunta de sua carta: Comment sauver lélément diaventure que comporte toute recherche sans faire de la philosophie une simple aventu- riére?® S6 de passagem vamos nomear agora a Poesia. Ela se confronta com as mesmas questées e, da mesma maneira, como o pensar. Mas ainda sempre vale a pouco meditada palavra de Aristételes em sua Poética: que o poematizar é mais verdadeiro que o investi- gar o ente, Mas o pensar nao é apenas une aventure, enquanto procurar ¢ perguntar para além, para o desconhecido. O pensar é, em sua esséncia, enquanto o pensar do ser, por este requisitado. O pensar esta referide ao ser como o que esta em advento (Vavenant). O pen- sar enquanto pensar no advento do ser esta ligado a0 ser como advento. O ser jf se dest ou ao pensamenio. O ser é como o destino do pensar. O destino, porém, ¢ em si histo- rial. Sua histéria ja chegou a linguagem, no dizer dos pensadores. A ‘inica tarefa do pensar é trazer A linguagem, sempre novamente, este advento do ser que permanece ¢ em seu permanecer espera pelo homem. Por isso, os pensadores essenciais dizem sempre o mesmo. Isto, porém, nfo quer dizer: 0 igual. Nao ha diivida que eles s6 0 dizem a quem se empenha em meditar sobre eles, Na medida em que o pen- sar, rememorando historialmente, presta atencdo a0 destino do ser, ele ja se vinculou ao bem disposto que é adequado ao destino. E, contudo, permanece o elemento aventureiro, a saber, como o constante risco do pensar. De que modo este simples, certamente nao em * Trad.: Como salvar o clemento de aventura que toda procura encerra em si sem fazer da Filosofia uma simples aventurcira? (N. do E,) SOBRE O “HUMANISMO” 373 si, mas para o homem, nao deveria permanecer o mais perigoso? Continuemos pensando na palavra de Hlderlin sobre a linguagem, no fragmento “Mas em choupanas mora o homem”. O poeta a denomina “O mais perigoso dos bens”. A boa disposiciio do dizer do ser enquanto o destino da verdade ¢ a primeira lei do pensar, € nao as regras da Légica que apenas se tornam regras a partir da lei do ser. Atentar para o bem disposto do dizer pensante ndo apenas inclui que meditemos cada vez 0 que se deve dizer do ser e como isto deve ser dito. Deve-se pensar com a mesma radicalidade se aquilo que deve ser pensado, em que medida, em que momento da histé- ria do ser, em que didlogo com ela e a partir de que apelo, pode ser dito, Aquele triplice elemento a que acenou uma carta anterior é determinado em seu comum-pertencer a par- tir da lei da docilidade do pensar ontolégico-historial ao destino: o rigor da meditagao, 0 cuidado do dizer, a parciménia da palavra. 44 € tempo de desacostumar-se de supervalorizar a Filosofia e de, por isso, the vir com exigéncias demasiadas. Na presente indigéncia do mundo, é necessario: menos Filo- sofia, mas mais desvelo do pensar; menos literatura, e mais cultivo da letra pensamento futuro ndo é mais Filosofia, porque pensa mais originariamente que a “Metafisica”, nome que diz 0 mesmo. O pensar futuro também ndo pode mais, como exigia Hegel, deixar de lado 0 nome do “amor pela sabedoria” e nem ter-se tornado a propria sabedoria na forma do saber absoluto. O pensar esté na descida para a pobreza de sua esséncia precursora. O pensar recolhe a linguagem para junto do simples dizer. A linguagem ¢ assim a linguagem do ser, como as nuvens so as nuvens do céu, Com seu dizer, pensar abre suleos invisiveis na linguagem. Eles so mais invisiveis que 0s sulcos que o camponés, a passo lento, traga pelo campo. IDENTIDADE E DIFERENCA * * 0 texto de Identidade e Diferenca (titulo da « mpilagao original publicada pela editora Giin ther Neske, Pfullingen) aparece aqui desdobrado em duas partes: O Principio da Identidade, que contém o texto original de uma conferéncia pronunciada por ocasiao do qlingentésimo jubileu da Universidade de Freiburg, no Dia das Faculdades, 27 de junho de 1957, e 4 Constituicdo Onto teo-légica da Metaffsica, que reproduz a andlise reelaborada em alguns pontos, que encerrou um exercicio de seminario do semestre de inverno de 1956/57, sobre a Ciéneia da Légica de Hegel. A exposigao teve lugar no dia 24 de fevereiro de 1957, em Todtnauberg, O PRINCIPIO DA IDENTIDADE principio da identidade soa, conforme uma formula corrente: A= A. O principio vale como a suprema lei do pensamento. Sobre este principio procuramos meditar por uns instantes. Pois queremos experimentar, através do prinefpio, que é identidade. Quando o pensamento, interpelado por um objeto, segue-Ihe os passos, pode aconte- cer-the que se transforme a caminho. Por isso. é aconselhavel atentar, no que segue, 20 caminho, menos ao contetido. O demorar-se adequadamente no conteiido j nos impede a continuagao da conferéncia. Que diz a formula A= A, em que ordinariamente se apresenta o principio da identi- dade? A formula designa a igualdade de Ae A, De uma equagdo fazem parte ao menos dois elementos. Um A se assemelha a um outro. Quer-o principio da identidade expressar tal coisa? Manifestamente ndo. O idéntico, em latim idem, designa-se em grego 15 autd. Traduzido em nossa lingua, 1 auld significa o mesmo. Se alguém repete sem cessar 0 mesmo, por exemplo, a planta é planta, exprime-se numa taurologia. Para que algo possa .sero.mesmo, basta cada vez, um, Nao ¢ preciso dois coma na igualdade. A formula A=_A fala de uma igualdade, Ela nfo nomeia A como o mesmo, A for- mula corrente para 0 principio da identidade encobre, por conseguinte, justamente o que o principio quereria dizer: A é A. quer dizer. cada A é ele mesmo o mesmo. Enguanto assim circunscrevemos 0 idéntico, ecoa uma antiga palavsa pela qual Pla- to torna compreensivel o idéntico, uma palavra que aponta para uma ainda mais antiga, No Didlogo Sofista, 254 d, Platio fala de stasis e Ainesis, de repouso e movimento. Nesta passagem Plato faz falar o estrangeiro: oukoiin auién hékaston (orn men dyoin héterén estin, autd d" heautd tauton, “Entretanto, cada um deles € um outro, ele mesmo, contudo, para si mesmo o mesmo.” Plato nao diz apenas: hékaston auto tauién, “cada um ele mesmo o mesmo”, mas: hékaston heautd taut6n, “cada um ele mesma pata si-mesmo.o-mesmo”. © dativo heawié significa: cada coisa ela mesma é a si mesma devolvida, cada um ele mesmo é 0 mesmo — isto é, para si mesmo consigo mesmo, Como a lingua grega. a nossa lingua prefere explicitar 0 idéntico com a mesma palavra, isto, porém, pela integra- ao das suas diversas formas, A formula mais adequada para o principio da identidade A é A nao diz apenas: cada-A é ele mesmo_o.mesmo: ela diz antes: consigo mesmo € cada A éle miesmio~o mesmo, Em cada identidade reside a relacéo “com”, portanto, uma mediag%o, uma liga- cdo, uma sintese? a unifio numa unidade. Por isso a identidade aparece, através da hist6- ria do pensamento ocidental, com o cardter da unidade. Mas esta unidade no @ absolu- tamente 0 insipido vazio daquilo que, em si mesmo desprovido de relagdes. persiste na monétona uniformidade, Contudo, para que a relagio imperante na identidade — rela- 378 HEIDEGGER 20 do mesmo consigo mesmo que ja ecoa desde a Antiguidade — chegue a se manifes tar decidida e claramente como tal mediagAo, para que efetivamente se encontre recepti vidade para esta manifestagio da mediago no seio da identidade, 0 pensamento ocidental necesita de mais de dois mil anos. Pois somente a filosofia do idealismo espe- culativo, preparada por Leibniz ¢ Kant, funda, através de Fichte, Schelling e Hegel, um lugar para a esséncia em si mesmo sintética da identidade. Isto ndo pode ser examinado aqui. Uma coisa, porém, deve-se ter presente: desde a época do idealismo especulativo, permanece vedado ao pensamento representar a unidade da identidade como mondtona uniformidade e abstrair da mediagdo que impera na unidade. Onde tal acontece, a identi dade é representada apenas abstratamente. Também na formula corrigida “A € A” somente se manifesta a identidade abstrata. Chega a isto? Exprime o principio da identidade algo sobre a identidade? Nao, pelo menos nao imediatamente. O prinefpio ja pressupde o que significa identidade e qual o seu lugar. Como poderemos obter uma informagio sobre este pressuposto? O principio da identidade no-la da, se cuidadosamente prestarmos atengiio ao seu teor fundamental, se o meditarmos em vez de apenas repetir levianamente a formula “A é A”. Seu teor é propriamente: A é A. Que ouvimos nés? Com este “6,0 principio diz como todo e qual- quer ente é, a saber: ele mesmo consigo mesmo o mesmo. Q principio da identidade fala slo.ser-do-ente, Como prineipio.do_pensamento, o principio somente vale na medida. em que & um_prinefpio.do ser, cujo teor é: de cada enie enquanio tal faz parte a identidade, @ unidade consigo mesmo que o principio da identidade, quando ouvido em seu teor fundamental, expressa € exatamente aquilo que todo o pensamento ocidental-curopeu pensa, a saber, isto: a uni- dade da identidade constitui um trago fundamental no seio do ser do ente, Em. toda. parte, onde.quer que mantenhamos.qualquer-tipo de relagio com qualquer.tipo-de ente, somos interpelados pela identidade. Se nao falasse este apelo. ent&o o ente jamais seria capaz de manifestar-se em seu ser como fendmeno. Por conseguinte, também nao haveria nenhu ja. Pois se nao lhe fosse garantida previamente e em cada caso a mesmidade de seu objeto, a ciéncia nao poderia ser o que ela & Através desta garantia, a pesquisa se assegura a possibilidade de seu trabatho. Contudo, a representacdo-guia da identidade do objeto da s traz_utilidade palpavel. Por conseguinte, o elemento de sucesso ¢ fecundo do conhecimento cientifico repousa em toda parte sobre algo iniitil. © apelo da identidade do objeto fala, pouco importando que a ciéncia ouga ou no este apelo, que no 0 leve a sério ou que por ele se deixe consternar. O apelo da identidade fala desde o ser do ente, Onde, porém, 0 ser do ente no pensa- mento ocidental chega primeiro e propriamente palavra, a saber, em Parménides. ali o 16 aut6, 0 idéntico, fala num sentido quase desmesurado. O teor de uma das proposigdes de Parménides é 16 gar auld noein estin te ka’ einai “O mesmo, pois, tanto é apreender (pensar) como também ser.”* Neste caso, coisas diferentes, pensar e ser, so pensados como o mesmo. Que quer isto dizer? Algo absolutamente diverso em comparagio com aquilo que ordinariamente conhecemos como a doutrina da metafisica, que a identidade faz parte do ser. Parmé. nides diz: “O ser faz parte da identidade”. Que significa aqui identidade? Que significa, na proposigao de Parménides, a palavea 1 auté, 0 mesmo? Parménides no nos res ponde esta questo. Situa-nos diante de um enigma do qual nao nos devemos esquivar. E ones! O PRINCIPIO DA IDENTIDADE © uy 379 preciso que reconhegamos: nos primérdios do pensamento, muito antes de a identidade se formular em principio, fala ela mesma, e precisamente, através de um dito que dispde: Pensar-cser tém seu lugar no. mesme-e.a partir deste: mesmo formam.uma.unidade, Sem nos darmos conta, jé interpretamos agora o 10 auté,o mesmo. [aterpeetamos.a ade como comum-pertencer,' Facilmente se representa este comum-pertencer no sentido da identidade, pensada mais tarde ¢ universalmente conhecida. Que, entretanto, poderia impedir-nos de fazé-lo? Nada menos que o principio mesmo que lemos em Parménides. Pois ele diz outra coisa, a saber: ser pertence — com o pensar — ao mesmo, Q ser édeterminada.a partir de uma identidade. como um trago desta identidade. Pelo contrario, aidentidade. mais tarde_pensada na metafisica. é representada como um trago do ser. Portanto, nio podemos querer determinar a partir da identidade represen- tada metafisicamente aquela que Parménides nomeia. A mesmidade de pensar e ser, que fala na proposi¢o de Parménides, vem de mais, longe que a da identidade metafisica que emerge do ser e 6 determinada como um trago dele, A palavra-guia, na proposi¢ao de Parménides, 10 auté,o mesmo. permanece obscu- ra, Deixamo-la assim, Aceitamos, porém, 0 aceno da proposi¢do em que a palavra-guia forma o ini Entretanto, ja fixamos a mesmidade de | & ser como.o comum-pertencer de ambos. Isto foi apressado, talvez mesmo forgado. Devemos fazer reverter isto que foi resultado da pressa. Disso também somos capazes, na medida em que ndo tomamos como definitive o mencionado comum-pertencer ¢ no o arvoramos em explicagio defi- nitiva e decisiva da mesmidade de pensar e ser. Se pensamos-o.coimuntpertencer® como.de costume, entdo, como ja mostra a énfase dad: primeira-parte, da expresso, o. sentido do pertencer ¢ determinado a partir da nunidade, quer dizer, a partit.de sua unidade. Neste caso, “pertencer” significa: inte- “grado, inserido na ordem de uma comunidade, instalado na unidade de algo miltiplo, reunido para a unidade do sistema, nediado pelo centro unificador de uma adequada sin- tese. A filosofia representa este comum-pertencer como mexus ¢ connexio, como a neces- sfria jungZo de um com o outro. Entretanto, 0 comum-pertencer pode também ser pensado como comum-pertencer. Isto quer dizer: a comunidade @ agora determinada a partir do pertencer. Neste caso, endo, sem divida, permanece aberta a questio do significado de “pertencer” ¢ como somente a partir dele se determina a comunidade que lhe é propria. A resposta a esta * Zusammengenérigheittraduzimos aqui por comum-pertencer. Com esta expresso, quer-se acentuat: a) aque ser € pensar estdo imbricados numa reciprocidade: b) que, através deste reciproco pertencer-se, fazem parte de uma unidade, da identidade, do mesmo. * Atcavés do deslocamento do acento principal de um para outro elemento da palavra composta, Heidegger procura destacar os dois sentidos que nela quer ler. Comum-pertencer (Zusammengehirigkeit) mostra poss! vel sentido hegeliano da identidade entre ser e pensar. ser ¢ homem: identidade. resultado de um processo, de uma mediag0 conduzindo a uma sintese. Comum-pertencer (Zusammengehdrigkett) aponta para um Ambito (o mesmo) do qual fazem parte homem e ser; é a identidade heideggeriana que resulta do passo de volta. A diversa leitura da palavea Zusammengehdrigkeit procura mostrar os dois caminhos — ambos recusando identidade como estitico ttago do ser; um em diregdo de um télos (fim). de wma sintese suprema (Hegel), outro em direeao da arkhé (comego), do fundamento, Para Heidenger trata-se de um Riick-gang (re-gresso), para Hegel de um Fort-gang (pro-gresso). Ou compreende Hegel o pensamento como um movimento “ambi- direcional” (gegentliufige Beweguag) de progresso e regresso, como expressamente diz na Légica “que 0 pro-gresso na filosofia & um re-sresso”? (Ver a excelente obra de L. Bruno Puntel, Analogie und Geschteht- lichkeit, Led. Herder, Freiburg, 1969.) 380 HEIDEGGER questo esta mais proxima do que pensamos, sem que, no entanto, seja ébvia. E sufi- ciente agora que esta indicagdo nos faga notar a possibilidade de no mais representar 0 pertencer a partir da unidade da comunidade, mas de experimentar esta comunidade a partir do pertencer. Mas esta indicagdo nao se esgota num vazio jogo de palavras que algo inventa, a que falta qualquer apoio num estado de coisas verificdvel. Assim realmente parece, até que concentramos o olhar e deixamos falar as coisas. O pensamento em um comum-pertencer no sentido de comum-pertencer surge da consideracdo de um estado de coisas, que ja foi mencionado. £, evidentemente, dificil concentrar-se nele, por causa de sua simplicidade. Podemos, entretanto, ver este estado de coisas mais de perto, se atentarmos para o seguinte: na elucidagdio do comum-per- tencer como comum-pertencer, ja tnhamas, seguindo o aceno de Parménides, em mente tanto pensar como ser, portanto, aquilo que reciprocamente se pertence no seio do mesmo, Se compreendermos 0 pensar como a caracteristica do homem, entio refletimos sobre um comum-pertencer que se refere a homem ¢ ser. No mesmo instante nos surge a questo: que significa ser? Quem ou o que é 0 homem? Quaiquer um vé facilmente que, sem a suficiente resposta a estas perguntas falta-nos 0 chdo em que possamos decidir algo seguro sobre 0 comum-pertencer de homem e ser. Contudo, enquanto questio- narmos desta maneira ficamos presos & tentativa de representar a comunidade de homem © ser como uma integrag&o e de dispor esta ou a partir do homem ow a partir do ser assim explicité-la. Nisto 0s conceitos tradicionais de homem e ser formam os pontos de apoio para a integragdo de ambos. E que seria se nés, em ver de continuamente representarmos uma coordenagao de ambos, para refazer sua unidade, prestéssemos uma vez, atengo se como nesta comuni dade esta, antes de tudo, em jogo um reciproco-pertencer? Existe até a possibilidade de entrever, ainda que a distancia, 0 comum-pertencer de homem ¢ ser ja na determinagio tradicional de sua esséncia. Até que ponto? O homem é manifestamente um ente. Como tal, faz parte da totalidade do ser, como a pedra, a arvore e a Aguia, Pertencer significa aqui ainda: inserido no ser. Mas 0 ele- mento distintivo do homem consiste no fato de que ele, enquanto ser pensante. aberto para o ser, esté posto em face dele, permanece relacionado com o ser ¢ assim Ihe corres ponde. O homem é propriamente esta relago de correspondéncia, ¢ & somente isto. “So- mente” ndo significa limitago, mas uma plenitude. No homem impera um pertencer a0 ser; este pertencer escuta ao ser, porque a ele est entregue como propriedade. E 0 ser? Pensemos o ser em seu sentido primordial como presentar. O ser se presenta ao homem, nem acidentalmente nem por excegdo. Ser somente é e permanece enquanto aborda 0 homem pelo apelo. Pois somente 0 homem, aberto para o ser, propicialhe o advento enquanto presentar. Tal presentar necesita o aberto de uma clareira e permanece assim, por esta necessidade, entregue ao ser humano, como propriedade. Isto nao significa abso- lutamente que o ser é primeira e unicamente posto pelo homem. Pelo contrério, torna-se claro. Homem e ser estao entregues reciprocamente um ao outro como propriedade. Per- tencem um ao outro, Deste pertencer-se reciprocamente homem e ser receberam, antes de tudo, aquelas determinagées de sua esséncia, nas quais foram compreendidas metafisica- mente pela filosofia, Este preponderante comum-pertencer de homem e ser por nés teimosamente igno: rado enuanto tudo representarmos em seqiiéncias e mediagdes, seja com ou sem dialé RSL Fl _ © PRINCIPIO DA IDENTIDADE 381 tica, Ento encontramos apenas encadeamentos que ou sao urdidos por iniciativa do ser ‘ou do homem e apresentam o comum-pertencer de homem ¢ ser como entrelagamento. Nao penetramos ainda no comum-pertencer. Como, porém, acontece uma tal entra- da? Pelo fato de nos distanciarmos da atitude do pensamento que representa, Este distan- ciar-se se verifica como um salto. Ele salta, afastando-se da comum representagao do homem como animal rationale, que na modernidade tomou-se sujeito para seus objetos. O salto distancia-se a0 mesmo tempo do ser. Este, entretanto, é interpretado desde os primérdios do pensamento ocidental como fundamento em que todo o ser do ente se funda, Para onde salta 0 salto, se se distancia do fundamento? Salta num abismo (sem- fundamento)?* Sim, enquanto apenas representarmos o salto e isto no horizonte do pen- samento metafisico, Ndo, enquanto saltamos e nos abandonamos. Para onde? Para lt onde jé fomos admitidos: ao pertencer ao ser. O ser mesmo, porém, pertence a nds; pois somente junto a nds pode ele ser como ser, isto é, pre-sentar-se. ‘Assim, pois, torna-se necessario um salto para se experimentar 0 comum-periencer de homem e ser, propriamente. Este salto é a subitancidade da entrada nao mediada naquele pertencer cuja missio é dispensar uma reciprocidade de homem e ser ¢ instaurar a constelacdo de ambos. O salto ¢ a sibita penetrago no ambito a partir do qual homem e ser desde sempre atingiram juntos a sua esséncia, porque ambos foram reciprocamente entregues como propriedade a partir de um gesto que da. A penetragio no ambito desta entrega como propriedade dis-poe e harmoniza a experiéncia do pensar. Fstranho salto, que provavelmente nos convencer que ainda ndo nos demoramos bastante ali, onde propriamente ja estamos, Onde estamos nés? Em que constelagao de sere homem? Hoje, a0 menos assim parece, nao necessitamos mais, como ainda ha alguns anos. de indicagdes detalhadas para descobrirmos a constelagao na qual homem ¢ ser se inter pelam mutuamente, Basta, assim se gostaria de crer, citar a palavra era atémica para fazer saber como o ser se presenta a nds hoje, no universo da técnica. Mas ser& permitido identificarmos, sem mais, 0 universo técnico com o ser? Manifestamente nao, também no quando representamos este mundo como a totalidade em que se fundem energia al mica, planificago calculadora do homem ¢ automatizagao. Por que uma referéncia desta natureza ao mundo técnico, por mais amplamente que 0 analise, no é absoluta- mente capaz de abrir os olhos para a constelagao de ser e homem? Porque toda analise da situagdio no atinge objetivo, na medida em que a mencionada totalidade do uni- verso técnico é interpretada antecipadamente a partir do homem, como obra sua. O téc- nico, representado no sentido mais amplo e segundo suas miiltiplas manifestagdes, considerado como o plano que o homem projeta; este plano finalmente o forga a decidir entre tornar-se escravo de seu plano ou permanecer senhor dele, Pela representagio da totalidade do universo téonico reduz-se tudo ao homem e che- ga-se, quando muito, a reivindicar uma ética para o universo da técnica. Cativos desta 3 0 salto no abismo, no sem-fundamento (Ab-grund), & o jogar-se no ser, assumir 0 pertencer 20 ser. ‘Compreende-se isto quando se 18 em O Principio da Razdo: “Ser e fundamento pertencem a unidade, Do fato de fazer parte do ser o fundamento recebe sua esséncia. B vice-versa, da esséncia do fundamento surge o dominio do ser enquanto ser. Fundamento e ser (‘sio') 0 mesmo, ndo 0 igual, o que ja indica a diversidade dos nomes ‘ser’ ¢ ‘Tundamento’. Ser ‘é” essencialmente: fundamento. Assim, o ser nunca pode p: fundamento que o fundamente. O fundamento fica, desta maneira, afastado do ser. O fundamento fica ausen- te do ser. No sentido de uma tal auséncia de fundamento do ser, 0 set ‘é* sem-fundamento (Ab-grumd), abis- mo. Na medida em que o ser enquanto tal é fundamento em si mesmo, permanece ele mesmo sem-funda- mento”. (Der Satz vom Grund, pp. 92-93.) HEIDEGGER entagio, confirmamo-nos na convicgdo de que a técnica & apenas um negécio do "m. Passa-se por alto 0 apelo do ser, que fala na esséncia da técnica. Distanciamo-nos, afinal, do habito de representar o elemento técnico apenas tecni- camente, isto 6 a partir do homem e suas maquinas, Prestemos atengdo ao apelo cujo alvo em nossa época no é apenas o homem, mas tudo o que é, natureza e hist6ria, sob © ponto de vista de seu ser. A que apelo nos referimos? Toda a nossa existéncia sente-se, em toda parte — uma ver, por divers, outra vez por necessidade, ou incitada ou forgada —, provocada a se dedicar ao planejamento e célculo de tudo. O que fala nesta provocagéo? Emana ela ape- nas de um arbitrério capricho do homem? Ou nos aborda nisso ja o ente mesmo, e justa- mente de tal modo que nos interpela na perspectiva de sua planificabilidade e caleulabili- dade? Ent&o até mesmo o ser estaria sendo provocado a manifestar 0 ente no horizonte da calculabilidade? Efetivamente. E ndo apenas isto. Na mesma medida que o ser, o homem @ provocado, quer dizer, chamado a razio para armazenar o ente que aborda como o fundo de reserva para seu planificar e caleular e a realizar esta explorago indefinidamente, nome para todo 0 processe de provocagdo que leva o homem ¢ 0 ser a um con- fronto de natureza tal que se chamam mutuamente a razdo se denomina: arrazoamento. * Este emprego lingiiistico escandaliza. Mas por que no usar 0 termo “arrazoamento” se a compreensio do estado de coisas o exige? ® Aquilo, em que e de onde homem ¢ ser se defrontam reciprocamente no universo da técnica, interpela 4 maneira do arrazoamento. No reciproco confronto de homem e set ouvimos a interpelagao que determina a constelagio de nossa época. O arrazoamento nos agride diretamente em toda parte. O arrazoamento é, caso ainda nos seja permitido falar assim, mais real(m)ente que todas as energias atémicas e toda a maquinaria, mais real(m)ente que a violéncia da organizagio, informagao ¢ automatizagao. Pelo fato de nfo encontrarmos mais no horizonte da representago, que nos permite pensar o ser do ente como presenga, aquilo que se designa arrazoamento — 0 arrazoamento no mais nos aborda como algo presente —, é ele algo estranho. Antes de tudo, porém, 0 arrazoa- ‘mento permanece estranho na medida em que nao é algo iiltimo, mas em que ele mesmo algo nos comunica que perpasse propriamente a constelagdo de ser e hom roximidade desconcertante, o fato e 2 mangira como-o homem-esta entregue * Traduzo Ge-Stell (Gestell) por arrazoamento. Somente a coisa mesma que se procura dizer justifica, na falta de termo mais adequado, o emprego de arrazoamento, que, segundo 0 projeto do Diciondrio da Lingua Portuguesa da ABL, de Antenor Nascentes, significa ato ou efeito de arrazoar: expor, apresentando razoes pré ou contra; raciocinar, discorrer, conversar; discutir, altercar eom outrem, disputando, argumentar, He deguer utiliza a palavra Gestell (que cm alemdo significa armagio, estante, ete.) proveniente Jo verbo ste Jen, que tem 0 sentido de por, apontar o lugar, fixar. regular, provocar, exigir contas, contestar. ete. para definir aquele Ambito que se cria pelo confronto entre homem e técnica (homem e natureza a ser transfor. ‘mada pela técnica), na medida em que ambos se provocam, exigem contas tum do outro, chamam-se 4 raza0 reciprocamente. Prefira 0 termo arrazoamento go terme com-posigdo que as vezes usei, ou a palavra ‘com-posto por outros sugerida. A palavra arrazoamento exprime também 0 império da razao que tudo inva. de pela técnica, que caracteriza uma época em que o homem busca as razdes, os fundamentos de tudo, calcu lando @ natureza, e em que a natureza provoca a razdo do homem a exploré-la como um fundo de reserva sobre 0 qual dispoe, Os franceses traduzem Gestell por arraisonnement. * No original a passagem literalmente intraduzivel diz: “Der Name flir die Versammlung des Herausfor- derns das Mensch und Sein einander so zu-stellt, dass sie sich weehselweise stellen, lautet: das Ge Stell. Man hat sich an diesen Wortgebrauch gestossen. Aber wir sagen statt ‘stellen’ auch “setzen’ und finden nichts dabei, dass wir das Wort Ge-setz gebrauchen. Warum also nicht auch Ge Stell, wenn der Blick in den Sach, verbait dies verlangt?” de uma O PRINCIPIO DA IDENTIDADE 383 como propriedade ao ser e como o ser & apropriado ao homem. Trata-se de simplesmente experimentar este ser proprio de, no qual homem e ser estio reciprocamente a-propriados, experimentar que quer dizer penetrar naquilo que designamos aconteci- ‘mento-apropriagdo.® A palavra acontecimento-apropriagio é tomada da linguagem natural. “Br-eignen (acontecer) significa originariamente: “er-dugnen”, quer dizer, des- cobrir com o olhar, despertar com o olhar, apropriar, A palavra acontecimento- apropriagio deve, agora, pensada a partir da coisa apontada, falar como palavra-guia a servigo do pensamento. Como palavra-guia assim pensada, ela se deixa traduzir tao pouco quanto a palavra-guia grega Idgos ou a chinesa Tao. A palavra acontecimento- apropriagao nao significa mais aqui aquilo que em geral chamamos qualquer aconteci- mento, uma ocorréncia. A palavra é empregada agora como singulare tantum. Aquilo que designa s6 se d4 no singular, no nimero da unidade, ou nem mesmo num mimero, mas unicamente. O que no arrazoamento, como constelagiio de ser e homem, experimen: tamos através do moderno universo da técnica, € um prelidio daquilo que se chama acontecimento-apropriago. Este, contudo, nao permanece necessariamente em seu pre- lidio. Pois no acontecimento-apropriagao fala a possibilidade de ele poder superar e rea- lizar em profundidade o simples imperar do arrazoamento num acontecer mais origina- rio. Uma tal superagdo e aprofundamento do arrazoamento, partindo do acontecimento- apropriagio e nele penetrando, traria a redengio historial — portanto, jamais unicamente factivel pelo homem — do universo técnico, de sua ditadura, para pé-lo a servigo no Ambito através do qual o homem encontra mais autenticamente 0 caminho para 0 acontecimento-apropriagao. Para onde conduziu 0 caminho? Para a entrada de nosso pensamento naquele el mento simples que designamos no rigoroso sentido verbal 0 acontecimento-apropriagao. Parece que agora corremos 0 risco de orientarmos, com demasiada despreocupagao, nosso pensamento para algum vago universal distante, enquanto que com aquilo que quer designar a palavra acontecimento-apropriagao somente dirige seu imediato apelo para nds o mais proximo daquele proximo em que jé estamos repousando. Pois o que poderia ser mais proximo de nds que aquilo que nos aproxima daquilo a que pertence- mos, aquilo em que somos déceis participantes, 0 acontecimento-apropriagio? O acontecimento-apropriagéo ¢ 0 Ambito dinamico em que homem e ser atingem unidos sua esséncia, conquistam seu carter historial, enquanto perdem aquelas determinagdes que lhes emprestou a metafisica. Pensar 0 acontecimento (-apropriagio) como acontecimento-apropriagao significa trabalhar na edificagdo deste ambito dinamico, O material de construgo para esta cons- trugio dindmica o pensamento o recebe da linguagem. Pois ela € 0 movimento mais deli- * 0 filbsofo procura delimitar aguele Ambito em que homem e ser acontecem e se apropriam reciproc mente (no caso da relagao homem-técnica, chamado arrazoamento) pela palavra Ereignis. Traduzo-a por ‘aconteclmento-apropriaedo, como os franceses por evénément-appropriation. Na palavra alema se escondem ambos os polos expressos pelo termo composto, usado pelas duas linguas romanicas em questo. Em seu livro Unterwegs zur Spracke Heidegger comenta seu uso da palavra Ereignis: “Hoje, quando aquilo que ainda quase nao foi pensado ou pensado pela metade é logo entregue apressadamente @ toda forma de publi- cidade, parecer a muitos inacreditavel 0 fato de o autor ter utilizado jé, em seus manuscritos, ha mais Vinte e cinco anos, a palavra acontecimento-apropriagdo para a coisa que aqui pensa. Esta coisa,ainda.que. simples em si mesma, permanece, em primeiro lugar, difieil de ser pensada porque o pensamento deve desacostumar-se 2 cai sa 'o ser" como acontecimento.apropriagii, O aconteci nto-apropriagio rf 0 que qualquer possiveldeterminagiio melafisica do ser, Pelo conivario, o ser pode ser pensado, no qué respeita a sua origem essencial, a partir do ‘acontecimento-apropriaga0” (p. 260). 384 HEIDEGGER cado, mas também mais frégil, que tudo retém na construgdo suspensa do acontecimen- to-apropriagiio. Na medida em que nossa esséneia esta entregue a linguagem como propriedade, residimos no acontecimento-apropriagao. Atingimos agora um ponto de nossa caminhada, em que se impe a questéo, ainda que aproximativa, mas inevitével: que tem a ver o geontecimento-apropriagéo.com a identidade? Resposta: nada. Pelo contrario, a identidade tem muito, quando nao tudo, a ver com o acontecimento-apropriagao. Em que medida? Respondemos retornando uns poucos passos pelo caminho andado. © acontecimento-apropriagdo apropria homem e ser em sua essencial comunidade. Um primeiro ¢ embaragoso claro do acontecimento-apropriagdo descobrimos no arra- zoamento. Este constitui a esséncia do universo moderno da técnica, No arrazoamento entrevemos um comum-pertencer de homem e ser, em gue 0 deixar pertencer primeira- mente determina a espécie de comunidade e sua unidade. Acompanhou-nos na questéo pelo comum-pertencer, em que 0 pertencer tem prioridade sobre a comunidade, o dito de Parménides: “Pois 0 mesmo é tanto pensar como ser”. A questo do sentido deste mesmo € a questio da esséncia da identidade. A doutrina da metafisica apresenta a iden tidade como um tr sntal no ser. Mas agora se mostra: ser com 0 pensar faz parte de uma identidade, cuja esséncia brota daquele comum-pertencer que designamos acontecimento-apropriagdo. A esséncia da identidade é uma propriedade do aconteci mento-apropriagio. Caso, em nosso ensaio de conduzir nosso pensamento ao lugar de origem da essén- da identidade. algo tiver consisténcia, que tera entdo acontecido com o titulo da “conferéncia? O sentido do titulo “O Principio da Identidade” se teria transformado. O prinefpio se apresenta primeiro na forma de um primeiro principio que pressupse a identidade como um trago no ser. quer dizer, no fundamento do ente. Este principio no sentido de um enunciado transformou-se a caminho num principio que é uma espécie de salto que, distanciando-se do ser como fundamento do ente, salta no abismo (sem-funda- mento). Mas este abismo nao é nem o nada vazio nem o negro caos, mas: 0 acontecimen- to-apropriagao. No acontecimento-apropriagao vibra a esséncia daquilo que a linguagem fala, a linguagem que certa vez designamos como a casa do ser. Principio da identidade diz. agora: um salto exigido pela esséncia da identidade porque dele necessita, se, entre- tanto, 0 comum-pertencer de homem ¢ ser for destinado a aleangar a luz essencial do acontecimento-apropriagao, pensamento se transformou a caminho desde o principio como uma enunciagio sobre a identidade para o principio como salto para dentro da origem essencial da identi- dade, Por isso 0 pensamento descobre, encarando o presente, além da situagiio do homem. a constelagdo de ser e homem, a partir daquilo que a ambos apropria numa comunidade, a partir do acontecimento-apropriagdo. Supondo que nos aguarde a possibi lidade de que o arrazoamento, reciproca provocagio de homem e ser para o célculo do que € caleulavel, nos convoque ¢ se nos explicite como acontecimento-apropriagao que desapropria homem e ser entregando-os aquilo que thes é prdprio, ento estaria livre o caminho em que o homem experimenta de maneira mais originaria o ente, a totalidade do moderno universo da técnica, da natureza e da historia, e, antes de todos, o ser deles. Enquanto a meditagdo sobre o universo da era atomica apenas aspira — ainda que com toda a seriedade da responsabilidade (mas timbém com isso se tranqililiza como se tivesse atingido a meta) — a realizar o emprego pacifico da energia atémica, o pensa- mento permanece a meio caminho, Por essa mediocridade o universo técnico é confi mado ainda mais e. para o futuro, em seu predominio metafisico. O PRINC{PIO DA IDENTIDADE 385 Mas, onde foi decidido que a natureza enquanto tal deve permanecer, para todo sempre, a natureza da fisica moderna e que a histéria somente se deve apresentar como objeto da historiografia? E verdade que nao podemos nem rejeitar 0 moderno universo da técnica como obra do deménio, nem destrui-lo, caso ele mesmo disso nao se encarregue, Mas ainda menos nos é permitido perseguir a idéia de que o universo da téenica é de tal espécie que impede absolutamente dele nos libertarmos. Esta opiniio, possufda pelo que é atual, tem-no como o unicamente real. Esta conviceio é, alias, fantastica; mas, pelo contrério, nao 0 6 um pensamento precursor, que encara com esperanga aquilo que vem ao nosso encontro coma o apelo da esséncia da identidade de homem e ser. Mais de dois mil anos precisou 0 pensamento para entender verdadeiramente uma relagdo tio simples como a mediagdo no seio da identidade. Podemos nds entao pensar que a penetragao na origem essencial da identidade pelo pensamento se deixa realizar num dia? Precisamente pelo fato de esta penetragio exigir um salto, ela precisa de seu tempo, 0 tempo do pensamento, que é bem outro do que aquele do célculo que hoje em dia. por toda parte. mantém tenso nosso pensamento. Um computador calcula hoje num segundo milhares de relagdes. Apesar de sua utilidade para a técnica, nao tem conteddo, Que quer que pensemos e qualquer que seja a maneira como procuramos pensar. sempre nos movimentamos no Ambito da tradig%o. Ela impera quando nos liberta do pensamento que olha para tras e nos libera para um pensamento do futuro. que néo & mais planificagao. Mas. somente se nos voltarmos pensando para o ja pansado. seremos comvozades para o que ainda esta para ser pensado, A CONSTITUICAO ONTO-TEO-LOGICA DA METAFISICA A Este seminario procurou iniciar um didlogo com Hegel. O didlogo com um pensa- dor somente pode tratar do objeto do pensamento. “Objeto” significa, conforme a deter- minago dada, 0 caso em controvérsia, 0 controvertido, 0 que por exceléncia é 0 caso para © pensamento, que interessa ao pensamento." A controvérsia disto que é controver- tido, porém, de modo algum, é procurada pelo pensamento, por assim dizer, por razdes fiiteis. Nossa palavra controvérsia (aleméo arcaico Strit) significa precipuamente ur situagio premente ¢ no discérdia, O objeto do pensamento urge o pensam: maneira que 0 conduz, primeiro, g seu objeto e. a partir deste. a este. Rae AL B Para Hegel 0 objeto do pensamento é: o pense: pretarmos mal, através de um enfoque psicoldgico ¢ objeto, a saber, o pensamento enquanto tal, devemos acr pensamento enquanto tal — na plenitude desenvolvida do caréter Se do, Somente-a partir de Kant podemos entender-o que aqui significa 0 carater.cs do-pensado; q partir da esséncia do transcendental, que flegel. entretanto. absoluto, isto quer dizer. para ele, especulativo. E isto que Hegel tem em m diz, do pensamento do pensamento enquanto tal, que le se.desenvolve-“puramente-20 elemento do pensamento” (Enciclopédia, Introdugao, § 14), Dito numa expresso mais concisa, mas dificil de representar de maneira pertinente, isto quer dizer: Q objeto do pensamento ¢ para Hegel “o pensamento”. Porém, este desenvolvido até a suprema liber- dade de seu ser é.a“Idéia Absolnta”. Dela diz Hegel, perto do fim da Ciéneia da Logica (Ed. Lasson, vol. I, 484): “Somente a Idéia Absoluta é ser, perene vida, verdade que se sabe a si mesma, e & toda a verdade”. Assim, pois, Hegel mesmo ¢ expressamente da ao objeto de seu pensamento aquele nome, que encima o objeto do pensamento ocidental, 0 nome: ser. ic (No_seminario foi discutido.o uso miltiplo e, contudo, unitario, da palavra “ser”. Ser significa para Hegel. em primeiro lugar, porém, gunca_anenas, “a indeterminada * Traduzo Sache por objeto: tome-se aqui com 0 sentido sproximado de tema, assunto. matéria, taref Sache quer também dizer 0 quy esta em causa, em questio. 0 que por exccléncia & questionado pelo pensamento, 388 HEIDEGGER imediatidade”. Ser & visto aqui a partir do mediar determinante, isto &, a partir do.con- geite absoluto e, por isso, na-diregao dele. “A verdade do ser ¢ a esséncia”, quer dizer, a reflexdo absoluta. A verdade da esséncia é 0 conceito no sentido do infinito autoconhe mento. Ser 0 absoluto autopensar-se do pensamento. Somente 0 pensamento absoiuio € a verdade do ser, “é" ser. Aqui, verdade significa, em toda parte: 0 conhecimento cons: ciente de si do cognoscivel. enquanto tal.) Hegel, no entanto, pensa, ao mesmo tempo, de modo pertinente 0 objeto de seu pensamento, num didlogo com a historia do pensamento que o precedeu. Hegel é o pri- meiro que assim pode e deve pensar. Sua relagdo com a historia da filosofia é a relacdo especulativa e somente como tal ¢ ela a relagao historial. © cardter do movimento da his- toria € um acontecer no sentido do proceso dialético. Hegel escreve (Enciclopédia, § 14): “O mesmo desenvolvimento do pensamento que é apresentado na historia da filoso- fia € apresentado na propria filosofia, porém libertado daquela exterioridade-historial, isto & puramente no elemento do pensamento”. Surpreendemo-nos ¢ hesitamos. A filosofia mesma e a hist6ria da filosofia devem permanecer, segundo a propria palavra de Hegel, na relagdo de exterioridade. Mas a exterioridade pensada por Hegel de modo algum é externa no sentido grosseiro do simplesmente superficial e indiferente. Exterioridade significa 0 ambito exterior. no qual reside toda a historia e qualquer processo real. em face do movimento da Idéia Absoluta, A clucidada exterioridade da historia em relagdio com a Idéia se da como consegiiéncia da auto-exteriorizagio da Idéia. A exterioridade mesma é uma determinagao dialética, Fica-se muito longe do pensamento auténtico de Hegel quando se constata que o filosofo teria levado a uma unidade a representagao histérica e o pensamento sistematico na filo- sofia. Pois para Hege! ndo se trata nem de historiografia, nem de um sistema no sentido de um corpo doutrindrio. Qual o sentido destas observagdes sobre a filosofia e sua relagdo com a historia? Elas querem indicar que o objeto do pensamento para Hegel é em si historial; isto, entre- tanto, no sentido do acontecer, cujo carater de processo para Hegel o ser enquanto pen- samento que se pensa a si mesmo, pensamento que somente chega a sino proceso de seu desenvolvimento especulativo e assim percorre os degraus das figuras sempre diversa- mente desenvolvidas e por isso antes necessariamente nao desenvolvidas. Somente a partir do objeto do pensamento assim experimentado emerge, segundo Hegel, uma norma propria, como medida para a maneira especifica de seu didlogo com 0s pensadores que o precederam, E Se, portanto, procuramos um didlogo pensante com Hegel, devemos falar-Ihe néo apenas sobre o mesmo objeco, mas, da mesma maneira, sobre o mesmo objeto. O mesmo, porém, no é 0 igual. No igual a diversidade desaparece. No mesmo a diversidade se manifesta, Ela surge com tanto mais preméncia quanto mais decisivamente um pensa- mento € abordado do mesmo modo pelo mesmo objeto. Hegel pensa o ser do ente especulativo-historialmente. Ora, bem, na medida em que o pensamento de Hegel faz parte de uma época histérica (isto ndo significa absolutamente que pertenga ao passado), procuramos pensar, da mesma maneira que Hegel, o ser por ele pensado. quer dizer, historialmente. A CONSTITUICAO ONTO-TEO-LOGICA 389 © pensamento somente pode permanecer junto de seu objeto se, no permanecer- junto, o mesmo objeto cada vez se torna para ele mais objetivo e mais controvertido. Desta maneira, o objeto exige do pensamento que sustente o objeto em sua situagdio, que Ihe esteja a altura por uma correspondéncia, enquanto o conduz para a sua de-cisdo. O pensamento que permanece junto a seu objeto deve, se este objeto ¢ o ser. engajar-se na de-cistio do ser. De acordo com isto, estamos obrigados a melhor clarificar, no didlogo com Hegel, e, de antemao, para este didlogo, a mesmidade do mesmo objeto. Pelo que foi dito, exige isto que seja trazida & luz, com a diversidade do objeto do pensamento, a0 mesmo tempo, a diversidade do elemento historial no didlogo com a historia da filosofia. Tal esclarecimento deve tomar aqui, necessariamente, a forma de um breve esbogo. F Com a finalidade de esclarecer a diferenga que reina entre o pensamento de Hegel © aquele por nds tentado, consideramos trés aspectos,* Perguntamos: 1, Qual é la e aqui o objeto do pensamento? 2. Qual é ld ¢ aqui a medida para o didlogo com a histéria do pensamento? 3. Qual é 14 ¢ aqui o cardter deste didlogo? Quanto a primeira questdo: Para Hegel o objeto do pensamento é 0 ser so 0 30: do do ente, no pensamento absoluto ¢ enquanto tal. Para Expresso com mais rigor: para Hegel 0 objeto do pensamento ¢ ¢ nensamento ¢ como conceito absoluto. Para nds 0 objeto do pensamento. designada provisorie: a diferenga enquanto diferenga. Quanto & segunda questa Para Hegel a medida para o didlogo com a histéria da filosofia significa: entrar na forga e no Ambito do que foi pensado pelos primeiros pensadores. Nao é por acaso que Hegel pie em relevo sua norma, durante um didlogo com Espinosa ¢ antes de um didloge com Kant, (Ciéneia da Légica, livro Il. Lasson, volume II, pp. 216 e ss.) Em Espinost encontra Hegel o perfeito “ponto de vista da substancia”, o qual ndo pode, entretanto, ser © supremo, porque o ser ainda no é pensado com a mesma intensidade ¢ decisio, desde seu fundamento, como 0 pensamento que se pensa a si mesmo. O ser como substncia e substancialidade ainda nao se desdobrou no sujeito em sua absoluta subjetividade. Espi- nosa, entretanto, sempre novamente interessa ao Idealismo Alemio ¢ ao mesmo tempo 0 pde em contradigao, porque faz 0 pensamento comegar com o absoluto. O caminho de Kant, pelo contririo, é diferente e ainda mais decisivo para o pensamento do idealismo absoluto ¢ para a filosofia em geral do que o sistema de Espinosa. Hegel vé no pensa- mento de Kant da sintese originaria da apercepgio “um dos mais profundos prineipios para o desenvolvimento especulativo” (Zbidem, p. 227). Hegel encontra a forca individual 2 Este 6 um dos raros momentos em que 0 filisofo realize uma auto-interpretagdo, usando © pensamento hegeliano como contraste. De resto, Hegel acompanha a interrogacio heideggeriana como uma preseaga sempre na iminéneia de tornar-se “uma pedra no meio do caminho™. 390 HEIDEGGER de cada pensador naquilo que por ele foi pensado, na medida em que, como degrau sin- gular, pode ser sobressumido no pensamento absoluto, Este somente é absoluto porque Se move em seu processo dialético-especulativo e para isto exige a gradagao. Para nds a medida para o dialogo com a tradigdo historial é a mesma, enquanto se trata de penetrar na forga do pensamento antigo. Mas nés no procuramos a forea no que foi pensado, mas em algo impensado, do qual o que foi pensado recebe sett espaco essencial. Mas somente o jé pensado prepara o ainda impensado que sempre de modos novos se manifesta em sua superabundancia. A medida do impensado no conduz a uma inclusio do anteriormente pensado num desenvolvimento e sistematica sempre mais altos e superados, mas exige a libertadora entrega do pensamento tradicional ao Ambito do que dele ja foi e continua reservado, Este passado-presente perpassa originariamente @ tradigio, constantemente a precede, sem, contudo, ser pensado propriamente e enquanto 0 originario. Quanto & terceira questio: Para Hegel o didlogo com a hist6ria da filosofia que o precede tem 0 caréter do sobressumir (Aufhebung),® isto é, da compreens’o mediadora no sentido da fundagao absoluta, Para nés 0 cardter do didlogo com a historia do pensamento no é mais 0 sobres- sumir (Aufhebung), mas 0 passo de volta, © sobressumir conduz para dentro do Ambito — que sobre-eleva ¢ unifica — da verdade posta como absoluta, no sentido da certeza plenamente desenvolvida do saber que se sabe a si mesmo, O passo de volta aponta para o ambito, até aqui saltado, a partir do qual a esséncia da verdade se toma, antes de tudo, digna de ser pensada. G Apés esta répida caracterizagao da diferenga do pensamento de Hegel e do nosso, no que se refere a0 objeto, no que se refere & medida ¢ ao cardter de um didlogo com a histria do pensamento, tentamos por em marcha, com um pouco mais de clareza, o did- iniciado com Hegel. Isto significa: ousamos uma experiéncia com o passo de volta. A expressiio “passo de volta” suscita miiltiplas interpretagdes falsas. “Passo de volta’ nao significa um passo isolado do pensamento, mas uma espécie de movimento do pen- samento ¢ um longo caminho. Na medida em que o passo de volta determina o carter de nosso didlogo com a histéria do pensamento ocidental, o pensamento conduz, de certo modo, para fora do que até agora foi pensado na filosofia. O pensamento recua diante de seu objeto, 0 ser, € poe o que foi assim pensado num confronto, em que vemos 0 todo desta historia, e, na verdade, sob 0 ponto de vista daquilo que constitui a fonte de todo este pensamento, enquanto Ihe prepara, enfim, 0 Ambito de sua residéncia. Isto nao 6, a diferenga com Hegel, um problema ja transmitido e jé formulado, mas aquilo que, em * A categoria hegeliana da Aufhebung, ponto terminal do processo triddieo ¢ ponto de partida para 0 ‘movimento em diregiia de nova sintese, vem om geral traduzido por supresso, Prefiro o termo sobressumir, em que melhor se preservam os tr8s sentidos sublinhados por Hegel: tar (Lollere), elevar (elevare) ¢ conser var (conservare). * © passo de volta, como re-gresso (Riick-gang), representa o movimento contririo do passo para diante. como progresso (Fort-gang), de Hegel. A grande questo que fica aberta &: pode-se realizar 0 passo de volta sem a mediagao, elemento axial do passo para diante, exigido por Hegel”? A CONSTITUICAO ONTO-TEO-LOGICA 391 toda parte, através de toda esta histéria do pensamento, nao foi questionado, Designa- mo-lo provisoria ¢ inevitavelmente na linguagem da tradigao. Falamos da diferenea entre 0 ser ¢ 0 ente. O passo de volta vai do impensado, da diferenga enquanto tal, para dentro do que deve ser pensado. Isto é 0 esquecimento da diferenga. O esquecimento a ser aqui pensado é 0 velamento da diferenga enquanto tal, pensado a partir da [éthe (oculta- mento), velamento que por sua vez originariamente se subtrai. O esquecimento faz parte da diferenca porque esta faz parte daquele, O esquecimento no surpreende a diferenga, apenas posteriormente, em conseqiiéncia de uma distragao do pensamento humano. A diferenga de ente e ser € 0 mbito no seio do qual a metafisica, 0 pensamento oci- dental em sua totalidade essencial, pode ser aquilo que é. O passo de volta, portanto, se movimenta para fora da metafisica e para dentro da esséncia da metafisica. A observa- co sobre o emprego que Hegel faz da palavra-guia “ser”, em sua pluralidade de senti dos, permite reconhecer que o discurso sobre ser e ente jamais se deixa fixar muma época da histéria reveladora de “ser”, O discurso do “ser” também jamais compreende este nome no sentido de um género, sob cuja vazia universalidade se alinham, como casos individuais, as doutrinas do ente historicamente apresentadas. “Ser” fala sempre histo- rialmente e, por isso, perpassado pela tradigao. Ora, o passo de volta da metafisica para dentro de sua esséncia exige uma duragao € perseveranga cuja medida nés nao conhecemos. Somente uma coisa esta bem clara: 0 passo carece de uma preparacao que deve ser tentada aqui ¢ agora: isto. entretanto. em face do ente enquanto tal em sua totalidade, como agora é como rapidamente ¢ de maneira mais inequivoca comega a mostrar-se. O que agora é vai sendo caracterizado pela dominagao da esséncia da técnica modema, dominagao que se apr todas as esferas da vida, através de miltiplos sinais que podem ser aomeados: funcionali- zagao, perfeigdo, automatizagao, burocratizagio, informagio. Assim como chamamos de Biologia a representagio do que é vivo, assim pode ser chamada Tecnologia a apre- sentagao c aperfeigoamento do ente perpassado pela esséncia da técnica. A expressio pode servir como caracterizagio para a metafisica da era atémica. O passo de volta da metafisica para dentro da esséncia da metafisica, visto a partir dos dias atuais e assu- mido a partir de sua compreensio, é 0 passo da Tecnologia e da deserigao e interpre- taco tecnolégicas da nossa era para dentro da esséncia da técnica moderna que ainda deve ser pensada. Com esta explicagHo quer-se manter & disténcia a outra interpretagio falsa da expressiio “passo de volta”, que facilmente se insinua; a saber, a opiniao de que o paso de volta consiste no retorno histérico aos primeiros pensadores da filosofia ocidental. Sem divida, o “para onde” ao qual conduz o passa de volta somente se desenvolve e se mostra através do exercicio do passo. enta j em H Para conseguirmos, através do seminario, uma visio global da metafisica hegeliana, escolhemos como expediente uma discussio do trecho com o qual comega o primeiro livro da Ciéneia da Légica, “A Doutrina do Ser”. J4 0 titulo do trecho da, em cada pala vra. bastante que pensar. Ele diz: Com que se deve comecar a ciéncia? A resposta de Hegel consiste na justificagdo de que o comego é de “natureza especulativa”. Isto quer dizer: © comego no é nem imediato nem algo mediado, Procuramos dizer a natureza deste comeco com um principio especulativo: “o comego é 0 resultado”. Isto tem signifi cago miltipla, conforme a miltipla significagio dialética do “é”. Uma ver. isto: 0 come- 392 HEIDEGGER go & — tomado o resultare literalmente — 0 rebate que emerge da plenificagdo do movi- mento dialético do pensamento que se pensa a si mesmo. A plenificagdo deste movimento, a idéia absoluta, é 0 todo fechado e desenvolvido. a plenitude do ser. O reba- te que emerge desta plenitude produz a vacuidade do ser. Com ela deve-se comegar na cigncia (com o saber absoluto que se sabe a si mesmo). Comego ¢ fim do movimento, e antes disto 0 movimento mesmo, permanece, em toda parte, o ser. O ser é (wes) enquanto movimento que circula em si mesmo, indo da plenitude para a mais exterior exteriorizago e desta para a plenitude que se plenifica. O objeto do pensamento para Hegel é assim o pensamento que se pensa a si mesmo enquanto ser que circula em si. Invertido, no apenas com razao, mas por necessidade, o principio especulativo sobre 0 comego se formula: “O resultado é 0 comego”. Com o resultado, na medida em que dele resulta 0 comego, se deve propriamente comegar. Isto significa 0 mesmo que a observacao que Hegel insere perto do fim de uma pas- sagem ¢, entre parénteses, no trecho sobre 0 comega (Lasson, I, 63): “eo mais indiscu- tivel diteito teria Deus de que se comecasse com ele”. De acordo com a pergunta que vem no titulo do trecho, trata-se do “comego da ciéncia”. Se ela deve comegar com Deus, cla é a ciéneia do Deus: Teologia. Este nome fala aqui no sentido que tomou séculos apds 0s gregos. Assim, Teologia ¢ compreendida como a enunciagdo do pensamento especulativo sobre Deus. Thedlogos, theologia, significa na Antiguidade o dizer mitico- poético dos deuses, sem referéncia a um ensinamento de {é ¢ a uma doutrina eclesial, Por que é “a ciéneia”, assim desde Fichte se chama a metafisica, por que é a ciéneia teologia? Resposta: Porque a ciencia é 0 desenvolvimento sistematico do saber. que & aquele como 0 ser do ente mesmo se sabe € assim é verdadeiro. O nome escolastico que surgiu na transigdo da Idade Média para a Modemidade, para a ciéncia do ser, quer dizer, do ente enquanto tal em geral, é: Ontosofia ou Ontologia. Ora bem, a metafisica ocidental, desde 0 seu comego nos gregos e ainda nao ligada a estes nomes, é, simulta- neamente, ontologia ¢ teologia. Na aula inaugural, “Que é Metafisica?” (1929), a metafi- ica @. por isso, determinada como a questdo do ente enquanto tal ¢ no todo, A omnitude deste todo é a unidade do ente que unifica enquanto fundamenio pro-dutor, Para aquele que sabe ler. isto significa: A metafisica € onto-teo-logia. Quem experimentou a teologia, tanto a da fé crist como a da filosofia, em suas origens histéricas, prefere hoje em dia silenciar na esfera do pensamento que trata de Deus. Pois o carter onto-teo-l6gico da metafisica tornou-se questionavel para 0 pensamento, no em razio de algum ateismo, mas pela experiéncia de um pensamento para o qual mostrou-se, na onto-teo-logia, a uni- dade ainda impensada da esséncia da metafisica. Esta esséncia da metafisica permanece, entretanto. para o pensamento ainda sempre o mais digno de ser pensado, enquanto ele nao corta arbitrariamente, ¢ por isso de maneira anti-historial, o didlogo com sua tradi- do, que nos é dada como destino. Na quinta edig&o de Que é Metafisica? (1949), a introdugio entdo acrescentada aponta expressamente para a esséncia onto-teo-légica da metafisica. § Entretanto, apres- sado seria afirmar que a metafisica é teologia porque ¢ ontologia. Antes que isso se dir a metafisica ¢ teologia, uma enunciagdo sobre Deus. porque o Deus vem para dentro da filosofia. Assim se agudiza a questo do cardter onto-teolégico da metafisica, até culmi: nar na pergunta: como entra o Deus na filosofia, no apenas na filosofia moderna, mas na filosofia enquanto tal? Esta pergunta pode ser respondida quando antes foi suficiente mente desenvolvida como questio. © Ver Que é Metaftsica? A CONSTITUICGAO ONTO-TEO-LOGICA ea Somente podemos responder objetiva e profundamente i questio: como entra o Deus na filosofia?, se junto com isto se esclareceu, de modo suficiente, aquilo para onde © Deus deve vir — a pripria filosofia, Enquanto perquirirmos a hist6ria da filosofia ape- nas historicamente, em toda parte, apenas descobriremos que o Deus nela entrou. Mas uma vez posto que a filosofia é, enquanto pensamento, o livre engajar-se no ente enquanto tal, engajar-se realizado a partir de si, entdio o Deus somente pode penetrar na filosofia na medida em que ela, a partir de si, segundo sua esséncia, exige e determina, que e como Deus nela entra. A questo: como entra 0 Deus na filosofia? recai por isso nesta outra questo: de onde se origina a essencial constituigao onto-teolégica da metafi a? No entanto, assumir a pergunta assim formulada significa realizar o passo de volta. 1 Neste passo de volta meditamos agora a origem essencial da estrutura onto-teo- bgica de toda a metalisica, Perguntamos: como entra o Deus e. por conseguinte, a teolo- gia e com ela o fundamental trago onto-teo-lgico, na metafisica? Fazemos esta pergunta num didlogo com o todo da historia da filosofia, Levantamos a questo tendo. ao mesmo tempo, Hegel particularmente no horizonte de nosso olhar. Isto ocasiona em nds a medi tagiio de algo singular. fi logia, mas “Cigneia da Lagica’ z Nido ha divida que se poderia esclarecer, num instante. 3 4 “légica” apontando para o fato de que para Hegel “o pensamen'e mento, sendo esta palavra entendida como singulare tantunt. O pensar, 6, manifestamente, e, segundo uso antigo, 0 tema da lgica, Cera também tio indiscutivelmente est constatado que Hegel, fiel A tradigao. localize to do pensamento no ente enquanto tal € no todo, no movimento do ser, ce vacuidade até sua plenitude desenvolvida. Como pode, entretanto, 0 “ser” em geral decair até o ponto de se apresentar como “o pensamento™? De que outra maneira que através do fato de o ser vir caracterizado previamente como fundamento do pensamento, entretanto — porque pertence a unidade com o ser —, se recolher no ser enquanto fundamento, a0 modo do explorar e fundar. 0 ser se manifesta como pensamento. Isto significa: 0 ser do ente se desoculta como o fun- damento que a si mesmo explora e funda, O fundamento, a ratio, siio, segundo a esséncia de sua origem: © légos no sentido do deixar-estar-ai que a tudo rete: 0 én panea. Assim, pois, em verdade, para Hegel “a Ciéncia”, quer dizer, a metafisica, no é “Kogica”™ porque tem como tema o pensamento, mas porque 0 objeto do pensamento permanece 0 ser. Este, entretanto, desde a aurora de seu desocultamento, interpela, através de seu carater de dégos, de fundamento fundante, 0 pensamento e the impée a tarefa de fundamentar. - ‘A metafisica pensa o ente enquanto tal, quer dizer, em geral. A metafisica pensa ente enquanto tal, quer dizer, no todo, A metaiisica pensa o ser do ente, tanto na unidade expioradora do mais geral, quer dizer, do que em toda parte é in-diferente, como na uni dade fundante da totalidade, quer dizer, do supremo acima de tudo. Assim é previamente pensado o ser do ente como o fundamento fundante. Por isso, toda a metafisica ¢, basica mente, desde o fundamento, o fundar que presta contas do fundamento: que Ihe presta contas e finalmente the exige contas. HEIDEGGER Para que aventamos isto? Para experimentarmos as batidas expressdcs ontologiz, eologia ¢ onto-teologia naquilo em que escondem sua importancia. Nao ha divida que, e saida, as expresses ontologia e teologia so tomadas, ¢ isto se da comumente, numa acepgdo paralela a outros termos também conhecidos: psicologia, biologia, cosmologia, arqueologia. As silabas finais “-logia” dizem, de maneira imprecisa e corrente, que se trata da ciéncia da alma, do vivo, do cosmos, das antiguidades, Mas na “-logia” se oculta do apenas 0 Idgico no sentido do conseqiiente e em geral do que tem carter enuncia- tivo, que articula ¢ dinamiza todo o saber das ciéncias, armazena-o e o comunica. A “lo. gia” é, cada vez, 0 todo de um complexo fundador, onde os objetos das ciéncias sio representados sob 0 ponto de vista de seu fundamento, isto é, siio compreendidos. A ontologia, porém, e a teologia so “logias” na medida em que exploram o ente enquanto tal ¢ o fundam no todo. Elas prestam contas do ser, enquanto fundamento do ente. Pres- tam contas ao /égos e so, num sentido essencial, conformes ao ldgos, quer dizer, a lgi- ca do légos. De acordo com isto chamam-se mais exatamente onto-ldgica ¢ teo-légica. Mais objetivamente pensada e determinada de maneira mais clara. a metafisica & Onto-teo-légica. Compreendemos agora 0 nome “légica” no sentido essencial, que também inclui a expresso usada por Hegel ¢ somente assim 0 elucida, a saber, como o nome para aquele Pensamento que, em toda parte, explora e funda o ente enquanto tal e no todo, a partir do ser como fundamento (Jégos). O trago fundamental da metafisica designa-se onto-teo-l6gica. Apés estas considerages, estamos em condigdes de esclarecer como 0 Deus enira na filosofia. J Em que medida é poss{vel que tal esclarecimento seja bem sucedido? Na medida em ue atentamos para o seguinte: o objeto do pensamento é 0 ente enquanto tal, quer dizer, © ser, Isto se mostra na natureza do fundamento. Conforme ela o objeto do pensamento, © ser como fundamento, somente ¢ entio radicalmente pensado quando o fundamento é representado como o primeiro fundamento, préte arkhé. O objeto originario do pensa- mento mostra-se como a causa originéria como a causa prima, que corresponde 4 volta fundamentante a ultima ratio, ao iiltimo prestar contas. O ser do ente somente é represen. tado radicalmente, no sentido do fundamento, como causa sui. Com isto designamos o conceito metafisico de Deus, A metafisica deve ultrapassat, com seu pensamento, tudo em dirego de Deus, pelo fato de que o objeto do pensamento é o ser; este, porém, se toma fendmeno de miltiplas maneiras, enquanto fundamento: como /égos, como hypoketmenon, como substancia, como sujeito. Este esclarecimento toca provavelmente em algo certo, mas permanece absoluta- mente insuficiente para a discussio da esséncia da metafisica. Pois ela ndo é apenas teo-logica, mas também onto-logica. A metafisica nao é apenas também uma e outra coisa. Muito antes, é ela teo-l6gica, porque é onto-l6gica. Ela é isto, porque é aquilo. A Constituigdo onto-teolégica da esséncia da metafisica nfo pode ser esclarecida nem a partir da teolégica, nem partindo da ontolégica, caso aqui algum dia uma explicagio baste para aquilo que fica para ser considerado. Anda permanece impensado de que unidade emerge 0 comum-pertencer de onto- logica ¢ teoldgica; impensada também a origem desta unidade, impensada a diferenga do diferente, que as unifica. Pois, manifestamente, nfo se trata primeiro de uma reuniao de duas disciplinas da metafisica autGnomas, mas da unidade daquilo gue na ontologica A CONSTITUICAO ONTO-TEO-LOGICA 395 na teologica € questionado e pensado: o ente enquanto tal em sua generalidade e princ{- pio, na unidade com o ente enquanto tal em sua eminéncia e diltimo. A unidade deste um é de tal natureza que o dltimo, a seu modo, fundamenta o primeiro e o primeiro, a seu modo, 0 iiltimo, A diversidade dos dois modos de fundamentar assenta, ela mesma, na mencionada diferenga que ainda esta impensada. Na unidade do ente enquanto tal em geral e supremo repousa a constituigao da esséncia da metafisica, Trata-se aqui de discutir, primeiro, apenas como questo. aquela da esséncia onto-teolégica da metafisica. Unicamente o proprio objeto pode apontar para o lugar 0 qual analise a questo da constituigo onto-teoldgica da metafisica de tal maneira que procuremos pensar mais objetivamente o objeto do pensamento. Este foi legado 20 pen- samento ocidental sob o nome de “ser”. Se pensarmos este objeto um pouco mais objeti- vamente, se prestarmos atengdo ao que é controvertido no objeto, entdo se mostra: significa sempre e em toda parte: ser do ente, locugio em que deve ser pensado o genitivo como genitivus obiectivus. Ente significa sempre e em toda parte: ente do ser, locugdo em que deve ser pensado o genitivo como genitivus subiectivus. Falamos, sem divida, com reserva de um genitivo, referindo-nos a objeto e sujeito; pois estas expressdes sujeito e objeto ja tém por sua vez origem em uma caracterizagio do ser. Claro esta apenas que no ser do ente ¢ no ente do ser se trata, cada vez, de uma diferenga. De acordo com isto, pensamos apenas entio objetivamente o ser quando o pensa. mos na diferenga com o ente e este na diferenga com o ser. Assim a diferenga se torna ob jeto de nossa analise, em sentido proprio. Se procurarmos representé-la, entdo logo nos descobrimos levados a conceber a diferenga como relagio que nossa representagao acrescentou ao ser ¢ a0 ente. Com isto a diferenga é rebaixada a uma distingao, a uma obra de nosso entendimento. Aceitemos uma vez que a diferenga é acréscimo de nossa representago, ento surge ‘a questdo: um acréscimo destinado a qué? Responde-se: ao ente. Bem. Mas que quer dizer isto: “o ente”? Que outra coisa significa senio: tal coisa que é? Assim abrigamos © presumido acréscimo, a representagdo da diferenga, junto ao ser. Mas “ser” mesmo diz: ser que é ente. Ja encontramos sempre ente e ser em sua diferenga la para onde deve riamos levar a diferenca como o suposto acréscimo. A situagio aqui é idéntica & do conto da Lebre e do Ourigo de Grimm: “J4 sempre estou aqui” (Ick biinn all hier). Poder-se-ia agora proceder de modo global com este singular estado de coisas que con siste no fato de que ente ¢ ser j sempre so previamente encontrados a partir da dife- renga e no seio dela, e ento esclarecé-la assim: nosso pensamento representativo & assim organizado e constitufdo que ele aplica, por assim dizer, antecipadamente, em toda parte, além do uso de seu intelecto e, contudo, dele emergindo, a diferenca entre 0 ente ¢ 0 ser. Deste esclarecimento, cristalino em sua aparéncia, mas também rapidamente feito. muita coisa poder-se-ia dizer e ainda mais questionar; antes de mais nada talvez isto: de onde surge o “entre” no qual a diferenca deve, por assim dizer, ser inserida? L Deixamos de lado opinides esclarecimentos; em vez disso. fixemos nossa atengio no seguinte: em toda parte e sempre encontramos aquilo que € chamado diferenga: no objeto do pensamento, no ente enquanto tal, e isto tio despojado de dividas, que pri- meiro nem tomamos conhecimento desta constatag’o, enquanto tal. Nada nos obriga 396 HEIDEGGER também a fazer isto. Nosso pensamento esta livre para deixar impensada a diferenga ou para considerd-la propriamente enquanto tal, Mas esta liberdade no vigora para todos os casos, Imprevistamente pode dar-se 0 fato de que o pensamento se veja chamado a enfrentar a questo: 0 que, pois, significa este tio falado “ser”? Mostra-se aqui imediata- mente o ser como ser.... por conseguinte, no genitive da diferenga; ent&o a questo anterior pode ser formulada mais objetivamente assim: que pensais da diferenga, se tanto © ser como o ente, cada um a set modo, tornam-se fendmenos emergindo da diferenca? Para estarmos @ altura desta pergunta, devemos primeiro colocar-nos num confronto objetivo com a diferenga. Este confronto abre-se-nos se realizarmos 0 passo de volta. Pois somente através da distincia por ele trazida se dé o proximo enquanto tal, a proxi- midade chega a sua primeira manifestagdo. Pelo passo de volta, liberamos 0 objeto do pensamento, o ser da diferenga, para um confronto, que absolutamente pode permanecer inobjetivado. Olhando ainda sempre a diferenga e, contudo, liberando-a ja pelo passo de volta para dentro do que deve set pensado, podemos dizer: ser do ente quer dizer: ser que é 0 ente. O “é" fala aqui transitivamente, ultrapassando, O ser se manifesta como fenémeno ao modo de uma ultrapassagem para o ente. Contudo, o ser nao passa para 0 outro lado, para junto do ente, deixando seu lugar, como se ente pudesse, subsistindo primeiro sem © ser, ser apenas entio abordado por ele. Ser ultrapassa (aquilo) para, sobrevém desocul- tando (aquilo) que unicamente através de tal sobrevento advém como desvelado a partir de si, Advento quer dizer: ocultar-se no desvelamento; portanto, demorar-se oculto no presente: ser ente. Ser mostra-se como sobrevento desocultante, Ente enquanto tal aparece ao modo do advento que se oculta no desvelamento. § Ser no sentido do sobrevento desocultante e ente enquanto tal, no sentido do adven- to que se esconde, acontecem como fendmenos enquanto so assim diferenciados a partir do mesmo, a partir da di-ferenga. Somente esta da e mantém separado 0 “entre” em que sobrevento ¢ advento séo conservados na unidade, em que so sustentados distintos & identificados. A diferenga entre ser ¢ ente é, enquanto diferenga entre sobrevento ¢ adven- 10, a de-cistio desocultante-ocultante de ambos. Na de-cistio impera a revelagdo do que se fecha e se vela; este imperar da a separago e unido de sobrevento ¢ advento. Enquanto procuramos considerar a diferenga enquanto tal, no a conseguimos fazer desaparecer, mas a perseguimos na sua origem essencial. A caminho dela pensamos a de-cisio de sobre-vento ¢ ad-vento. Isto € 0 objeto do pensamento pensado por um passo de volta mais objetivamente: ser pensado a partir da diferenga. M Aqui se exige, no resta davida, uma observagio intermediairia que diz respeito a0 nosso discurso sobre o objeto do pensamento, observagdio que sempre novamente recla- S Heidegzer procura caplar a ambivaléncia que se oculte na di-ferenga (entre ser e ente) com as palavras ‘sobrovento” ¢ “advento”. Sobrevento (iberkonimnis), camo acontecimento inesperado, € o eesaiphines (de repente) que manifesta 0 advento (Ankwi/). O ser &0 sobreventa que desoculta o ente e assim desvela aquilo que oculta: 0 advento do ente. Chega-se entia a uma solugdo. que logo se torna dis-soluglo; por isso traduzo Ausirag por de-cisdo, que designe a insuptimyvel diferenca entre ser ¢ ente. Por causa disso a identidade heideggeriana ¢ dines O filbsofo apela. quays desesperadamente. a novas formas de dizer para assinalar um estado de coisas (Sachverhalt) que tomou como tarefa para seu pensamento, Mais de vm lembraré aqui a frase de Wittgenstein que encerra seu Tractatus: “Deve-se calar sobre aquilo de que mio se & eapaz de falar", Nao feriu, porém, Wittgenstein esta regra jé ao enuncié-la? A CONSTITUICGAO ONTO-TEO-LOGICA 397 ma nossa atengao. Dizendo o “ser, utilizamos a palavra na generalidade mais ampla ¢ indeterminada. Quando, porém, falamos somente de uma generalidade, pensamos 0 ser de modo improprio. Representamos o ser de um modo em que ele, o ser, jamais se da. A natureza do comportamento do objeto do pensamento, ou ser, permanece um estado de coisas original. Nosso modo corrente de pensar sempre pode primeiro apenas clarifici-lo de maneira insuficiente. Procuremos fazer isto trazendo um exemplo no qual se deve atentar para o fato de que em nenhum lugar do ente se da um exemplo para a manifesta- do do ser como fendmeno, provavelmente porque a manifestaco do ser como fendmeno & 0 que, em cada exemplo, jé est em jozo. Hegel menciona, uma vez. 0 seguinte exemplo para caracterizar a generalidade do geral: alguém deseja comprar frutas num mercado, Pede frutas. Estendem-lhe magis, peras, exibem-lhe péssegos. cerejas. uvas. Mas ¢ comprador recusa 0 que Ihe é apresen- tado. A todo custo ele quer conseguir do. entretanto, é, em cada caso, frutas, mas, nfo obstante. se consvata: ~ pera comprar, Infinitamente mais impossivel permanese & relagio a cada ente. Ser somente se da sempr sis, l6gos, hén, idéa, enérgeia, substancialide vontade de poder, vontade de vontade. Mas isto ou série, como mags, peras. péssegos, arranjados hist6rica. Entretanto, néo ouvimos alguma coisa do ser na orden: proceso dialético, que Hegel pensa? Certamente. Mas 0 ser t@ na luz que se revelou como clareira para o pensamento de Hegel. Isto ¢ =: ele, 0 ser, se dé, sempre se determina por si préprio, através do modo Este modo, entretanto, é historialmente destinado, é um cunho sempre epocs! < nds somente acontece e impera se o liberamos para aquilo que. do que foi ¢ oo0 sendo, the é proprio. Somente atingimos a proximidade do que nos vem do destino historial através do sibito instante de uma lembranga. Isto também vale para a experiéncia de cada cunho Gs diferenga de ser do ente ao qual corresponde uma particular interpretagio do ente enquanto tal. O que foi dito vale antes de tudo também para nossa tentativa de, no passo de volta do esquecimento da diferenga enquanto tal, pensar a ela enquanto de-cisio de sobre-vento desocultante ¢ ad-vento ocultante. Manifesta-se, na verdade, a um ouvido mais décil, o fato de que nés, quando falamos da de-cisdo, ja permitimos que faga uso da palavra aquilo que foi e continua sendo, na medida em que lembramos 0 desocultar ¢ ocultar, a ultrapassagem (transcendéncia) e 0 advento (presentear). Talvez. se manifeste mesmo pela discussdo da diferenga de ser e ente, na de-ciso enquanto o lugar de sua esséncia, algo comum, que perpassa 0 destino do ser desde o comego até sua plenitude. Entretanto, continua dificil de dizer como esta generalidade deve ser pensada, se cla ndo & nem algo geral, que vale para todos os casos, nem uma lei que garante a necessidade de um processo no sentido do processo dialético. N que agora unicamente interessa para nosso plano é a penetragdo numa possibili- dade de pensar de tal modo a diferenga como de-cisdo que se torne claro em que medida a constituigdo onto-teo-ldgica da imetafisica tem sua origem essencial na de-cisio. que inicia a histOria da metafisica, perpassa suas épocas, e, no entanto, em toda parte, perma. 398 HEIDEGGER nece velada enquanto a de-cisdo e, deste modo, esquecida por um esquecimento que a si mesmo ainda subtrai. Para facilitar a compreensio do acima referido, consideramos o ser ¢ nele a dife renga e nesta a de-cisio, a partir daquele cunho do ser pelo qual ele se revelou como 16gos, como o fundamento. O ser mostra-se no sobrevento desocultante como deixar-es tar-ai do que advém, como o fundar nos miltiplos modos do a-duzir e pro-duzir. O ente enquanto tal, 0 advento que se oculta no desvelamento, é 0 fundado que, como fundado € assim como obrado, funda a seu modo, a saber, obra, isto é causa. A de-cisio entre fundante ¢ fundado enquanto tais nio mantém apenas ambos separados, ela os mantém na unio reciproca. Os elementos sustentados na separacio sio de tal modo imbricados na de-cisiio que nao somente ser enquanto fundamento funda o ente, mas que o ente por seu lado funda & sua maneira o set, causa-o. Tal coisa o ente apenas pode, na medida em que “é” a plenitude do ser: como o mais ente. Aqui nossa reflexao atinge um encadeamento surpreendente. Ser se manifesta como fenémeno com o cunho do J6gos no sentido do fundamento, no sentido do deixar-estar-af. O mesmo {égos é, enquanto recolhimento do unificante, o hén. Este hén, entretanto, tem uma estrutura dupla: de um lado € 0 uno unificante no sentido do primeiro, em toda parte, ¢ assim € 0 mais geral ¢ a0 mesmo tempo o uno unificante no sentido do supremo (Zeus). O J6gos recolhe fundando tudo no universal e recolhe fundando tudo a partir do Gmico. Observemos, apenas de passagem, que o mesmo /égos oculta em si, além disto, a origem essencial da marca distintiva da linguagem e que o légos determina deste modo, em sentido mais amplo, os modos do dizer enquanto im dizer légico. Na medida em que ser acontece como fenémeno como ser do ente, como diferenga, como de-cistio, perdura a separago e unio do fundar e fundamentar; o ser funda o ente. este, enquanto © mais ente, fundamenta o ser. Um sobre-vém ao outro, um ad-vém no outro. Sobrevento ¢ advento aparecem mutuamente enviscerados no re-flexo que os opde Dito a partir da diferenca, isto significa: a de-cisdo um circular, um circular de ser € ente, um em torno do outro. fundar mesmo aparece no seio da revelagdo da de-cisdio como all que é e que assim por si mesmo exige, enquanto ente, a correspondente fundagao pelo ente, quer dizer, a causagio, e, na verdade, a causagdo pela causa suprema. Uma das provas classicas para este estado de coisas na hist6ria da metafisica encontra-se num texto, pouco considerado, de Leibniz, que nds, por amor a brevidade, chamamos As Vinte e Quatro Teses da Metafisica. (Gerh, Phil., VII, 289; ¢ ss.; cf. para isso: O Pxineipio de Razdo, 1957, p. 51 e ss.) ° A metafisica corresponde ao ser enquanto Jdgos e é conforme isto, em sua caracte- ristica principal, em toda parte légica, mas Iégica que pensa o ser do ente ¢, de acordo com isto, a I6gica, determinada pelo diferente da diferenga: onto-teo-l6gica. Na medida em que a metafisica pensa o ente enquanto tal, no todo, ela representa © ente a partir do olhar voltado para o diferente da diferenga, sem levar em consideragdo a diferenga enquanto diferenga. O diferente mostra-se como o ser do ente em geral como o ser do ente supremo Porque o ser aparece como fundamento, o ente é 0 fundamentado; mas o ente supre mo € 0 fundamentante no sentido da primeira causa, Pensa a metafisica 0 ente no que respeita seu fundamento, comum a cada ente enquanto tal, ela é logica como onto-ldgica. ACONSTITUICAO ONTO-TEO-LOGICA, 399 Pensa a metafisica o ente enquanto tal no todo, quer dizer, no que respeita o supremo (que é 0) ente que a tudo fundamenta, ela é logica como teo-l6gica, ‘A metafisica 6, a partir da unidade unificadora da de-cisio, unitéria e simultanea- mente ontologia e teologia, porque © pensamento da metafisica permanece engajado na diferenga como tal impensada. A constituigao onto-teoldgica da metafisica emerge do imperar da diferenga que sustenta separados ¢ unidos ser como fundamento e ente como fundado-fundamentante, sustentagao que a de-cisio consuma. O que assim é designado remete nosso pensamento para o ambito que nio pode mais ser dito pelas palavras-guias da metafisica, ser ¢ ente, fundamento-fundado. Pois 0 que estas palavras designam, o que representa o modo de pensar por clas orientado, nasce como o diferente da diferenga. A origem da diferenga nao mais se deixa pensar no horizonte da metafisica. P A breve andlise da constituigio onto-teolégica da metafisica mostra um camino possivel para respondermos 4 questo: como 0 Deus entra na filosofin?. 2» esséncia da metafisica. Deus entra na filosofia pela de-cisio. que nés » em que se manifesta a diferenga entre ser e ente. A no edificio da esséncia da metafisica. A de-cisio enquanto fundamento a-dutor e pro-dutor, fundamen: do que ele fundamenta, a fundamentagao que Ihe & oe que: dizer. 6 26 coisa (causa) mais originaria (Ur-sache).” Esta ¢ a causa como causa sui. A nome adequado para o Deus na filosofia. A este Deus ndo pode o homem nem rezar, nem sacrificar. Diante da causa sui, no pode o homem nem cair de joethos por temor, nem pode, diante deste Deus, tocar miisica e dangar. Tendo isto em conta, o pensamento a-teu, que se sente impelido a abandonar 0 Deus Ga filosofia, 0 Deus como causa sui, esta talvez mais proximo do Deus divino. Aqui isto somente quer dizer: este pensamento esta mais livre para ele do que a onto-teo-logica quereria reconhecer. Q Caia através desta observagio um pouco de luz sobre o caminho para onde se dirige um pensamento, que realiza 0 passo de volta; de volta da metafisica para dentro da esséncia da metafisica; de volta do esquecimento da diferenga enquanto tal para dentro do destino do ocultamento da de-cisio, ocultamento que se subtrai. ‘A ninguém é dado saber se quando e onde e como este passo do pensamento se desdobra em auténtico (utilizado no acontecimento-apropriagéio) caminho e marcha ¢ abertura de novos caminhos. Talvez a dominagdo da metafisica antes ainda se fortifique ¢ isto sob a forma da técnica moderna e seu frenético desenvolvimento imprevisivel. Tal- vez também tudo o que se da no caminho do passo de volta seja apenas utilizado v e!abo- * Heidegger faz aqui uma transposigo semantica com base na ctimologia irrepetivel no vernacule. originaria (Ur-sache) é, enquanto tal, causa (Ursache. 400 HEIDEGGER rado como resultado de um pensamento representativo pela metafi perdurando, e & maneira dela. Assim o proprio passo de volta permaneceria irrealizado ¢ 0 caminho que ele inau- gura e aponta, nao trilhado, ‘a que continua R Tais consideragdes faciimente se impdem, mas esto desprovidas de peso em comparago com uma dificuldade bem diversa, pela qual deve passar 0 passo de volta. A dificuldade est na linguagem. Nossas linguas ocidentais so, de maneiras sempre diversas, linguas do pensamento metafisico. Fica aberta a questo se a esséncia das Iin- guas ocidentais é em si puramente metafisica e, por conseguinte, em definitivo caracteri- zada pela onto-teo-ldgica, ou se estas linguas garantem outras possibilidades de dizer e isto significa ao mesmo tempo possibilidades do nio-dizer que diz. Com suficiente freqiiéneia mostrou-se-nos durante 0s exercicios do semindrio a dificuldade a que esta exposto o dizer pensante. A palavrinha “é”, que em toda parte fala em nossa lingua e do ser, mesmo ali onde propriamente ndo se manifesta, contém — desde o ésii gar efnat de Parménides até 0 “€” do principio especulativo em Hegel ¢ até a dissolugéo do “8” numa posi¢do da vontade de poder em Nietzsche — todo o destino do ser.® A presenga desta dificuldade que emana da linguagem deveria prevenir-nos de transformar precipitadamente a linguagem do pensamento agora tentado numa termino- logia ¢ ja amanha falar em de-cisdo,® em vez de consagrar todo esforgo ao aprofunda- mento do que foi dito. Pois 0 que foi dito, a foi em um seminario, Um seminario & a palavra jé 0 sugere, um lugar e uma oportunidade de, aqui ¢ ali, semear uma semente, uma semente de meditag%o que um dia possa, 4 sua maneira, pouco importa quando, nascer e frutificar ® Ver A Tese de Kant Sobre 0 Ser * 0 fildsofo adverte 0 leitor contra o vicio de transformar uma linguagem fhutuante, essenctalmente experi ‘mental, num jargio em que se quisera aprisionar aquilo que. como objeto do pensamento. sempre esta em questio. HEGEL E OS GREGOS Titulo do original alemio: Hegel und die Griecken, conferéncia pronunciada ng sesso geral da Ac. Heidelbergense de Ciéncias, no dia 26 de julho de 1988; apareceu em 1960 como contribuigde do comemerativo dos sessenta anos de Hans-Georg Gadamer: Die gegenwart der Grieciver im neweren Di Editora J.C.B, Mohr (Paul Siebeck), Tubingen, 1960, pp. 43-57. O texto para lume Wegmarken, Vittorio Klostermann, Frankfurt am Main, 1967, pp. textos menores de Martin Heidegger fo foi extraido do contém titulo da conferéncia pode ser transformado numa pergunta. Seu teor seria: como apresenta Hegel, no horizonte de sua filosofia, a filosofia dos gregos? Podemos respon: der a esta questo considerando a filosofia de Hegel de um ponto de vista contempo- raneo, historiograficamente, analisando assim a situagae em que Hegel, por sua vez, representa a filosofia grega historiograficamente. De um tal procedimento resulta uma anélise sobre conexdes histricas. Tal projeto tem sua propria justificativa e suas vantagens. Outra coisa, entretanto, esta aqui em jogo. Ao dizermos “os gregos” pensamos no comego da filosofia, e a0 nome de “Hegel” associamos sua consumagao. Hegel mesmo compreende sua filosofia sob o signo do acabamento. No titulo Hegel e os Gregos, nos acena a totalidade da filosofia em sua hist6ria e isto agora, num tempo em que a decomposigao da filosofia torna-se manifesta; pois ela emigra para o Ambito da Logistica, Psicologia e Sociologia. Estas esferas auténomas de pesquisa se garantem seu crescente valor ea miltipla influéncia como formas de fungo e instrumentos de sucesso do mundo politico-econémico, isto é, do mundo num sentido fundamental técnico. Entretanto, a decomposigao da filosofia, de longa data determinada ¢ irresistivel, nao é j4 0 fim do pensamento; é bem antes outra coisa, que, todavia, foge a verificabi- lidade piiblica. Sobre isto quer refletir por um momento 0 que vai dito no que segue, numa tentativa de despertar o olhar para a questo do pensamento. E es.a que esta em jogo. Questo significa aqui: aquilo que a partir de si reclama discuss%o. Para corres- ponder a uma tal exigéncia impde-se que nos deixemos visar pela questo do pensamento € nos tornemos disponiveis para permitir que o pensamento se transforme, na medida em que é determinado pela sua questo. O que se segue se limita a apontar uma possibilidade, a partir da qual a questao do pensamento se mostre acessivel. Mas para que, entio, o desvio sobre Hegel e os gregos para se aleangar a questo do pensamento? Porque precisamos deste caminho. que certa- mente em sua esséncia nao é um desvio: pois a tradigao corretamente experimentada nos da como resultado o presente, aquilo que espera por um encontro conosco, como x ques- to do pensamento, ¢ esta desta maneira em jogo. Auténtica tradigio de maneira aleuma & a seqiiela de cargas do passado; é, pelo contrario, aquilo que nos liberta para 0 que esté 4 & nossa espera, tornando-se, desta maneira, a orientadora que nos conduz para o ambito da questo do pensamento. Hegel e os gregos — isto soa como: Kant ¢ os gregos, Leibniz ¢ os gregos, a esco: lastica medieval e os gregos. Soa assim ¢ é, contudo, algo bem diferente. Pois Hegel pela primeira vez. pensa a filosofia dos gregos como um todo ¢ este sob 0 ponto de vista filos6- 404 HEIDEGGER fico. Como é isto possivel? Pelo fato de Hegel determinar a histéria enquanto tal de modo que ela deva ser filos6fica em seu rasgo essencial. A histéria da filosofia € para Hegel o em si unitario, e por isso necessario processo, do avango do espirito em diregio de si mesmo. A historia da filosofia nao é uma pura sucesstio das mais diversas opinides ¢ doutrinas, que se alternam sem conexo alguma, Hegel, afirma, numa introdugdo a suas prelegdes de Berlim sobre a hist6ria da filo sofia: “A histéria, que temos diante de nés, é a histéria do auto-encontrar-se do pensa- mento”. (Prelecdes Sobre a Historia da Filosofia, Ed. Hofmeister, 1940, vol. I, pag. 81, nota). “Pois somente a hist6ria da filosofia desenvolve a filosofia mesma.” (Op. cit. pag. 235 ss.) De acordo com isto, a filosofia, enquanto autodesenvolvimento do espirito em saber absoluto, e a histéria da filosofia sio idénticas para Hegel. Nenhum filésofo, anfes de Hegel, assumira tal postura fundamental da filosofia, que possibilita ¢ exige do filoso- far que se mova simultaneamente em sua historia e que este movimento seja a propria filosofia. A filosofia, porém, tem, segundo a palavra de Hegel na introdugaio a sua pri- meira prelegao aqui em Heidelberg, por “meta”: “a verdade” (op. cit. pag. 14). A filosofia é, enquanto sua hist6ria, como Hegel diz numa nota 4 margem do manuscrito desta prelegdo, o “reino da pura verdade — nio 0s atos da realidade exterior, mas o intimo permanecer-junto-de-si-mesmo do espirito” (op. cit. pag. 6, nota). “A ver- dade” — isto quer dizer aqui: 0 verdadeiro na sua pura realizag%o, que simultaneamente expe a verdade do verdadeiro, sua esséncia, Ser-nos-A permitido entao aceitar a determinagao hegeliana da meta da filosofia, que ¢ a verdade, como um aceno para uma considerago da questo do pensamento? Provavelmente sim, tao logo tivermos suficientemente elucidado o tema “Hegel e os Gre- gos”, que agora quer dizer a filosofia na totalidade de seu destino, na perspectiva de sua meta, a verdade. Esta é a raz4io por que perguntamos primeiramente: em que medida deve a historia di filosofia, enquanto hist6ria, ser filos6fica em seu rasgo essencial? Que quer aqui “filoséfico”? Que significa aqui “hist6ria”? As respostas devem resultar breves, mesmo sob o perigo de dizerem algo aparente- mente conhecido. Entretanto, em momento algum existe para o pensamento algo conhe- cido. Hegel declara: “Com ele (a saber, com Descartes) cruzamos propriamente 0 um- brat de uma filosofia independente... Aqui, podemos dizer, estamos em casa e podemos, como 0 navegante apés longo périplo por mar proceloso. exclamar ‘terra’. ..” (WW. XV, 328). Com esta imagem, Hegel quer dar a entender: O “ego cogito, sum”, o “eu penso, eu sou” é 0 chao firme em que a filosofia pode habitar em verdade e plena- mente. Na filosofia de Descartes, 0 Ego torna-se o subiectum-critério, isto é, 0 que desde © principio ja sub-(pré)-jaz. Este sujeito, contudo, somente assumido de maneira adequa- da, a saber, no sentido kantiano, transcendental ¢ plenamente, o que quer dizer no senti- do do idealismo especulativo, quando toda a estrutura e movimento da subjetividade do sujeito se desdobraram ¢ foram elevados para dentro do auto-saber-se absoluto, Quando © sujeito se sabe, enquanto tal, saber que condiciona toda a objetividade, é ele enquanto tal saber: 0 absoluto mesmo. O verdadeiro ser é pensamento que se pensa a si mesmo absolutamente, Ser e pensar so para Hegel o mesmo, e, na verdade, no sentido de que tudo é recebido de volta no pensamento ¢ determinado a ser o que Hegel simplesmente desizna o “pensamento pensado”, subjetividade € como ego cogito, a consciéncia que algo representa, retro-refere 0 representado a si mesmo e assim o recothe junto a si, Recolher significa, em grego, é- seit. Recolher © mititiplo para o eu levando-o para dentro dele significa, expresso na voz HEGEL E OS GREGOS 405 média, légesthai. O eu pensante recolhe o representado, enquanto por ele passa. e 0 per passa, na sua representabilidade. “Através de algo” quer dizer em grego: did. Dialéges- thai, dialética, significa aqui que o sujeito num tal processo ¢ enquanto o é faz surgir sua subjetividade, a produz. ‘A dialética € 0 processo de produgio da subjetividade do sujeito absolut e, enquanto tal, a sua “necessaria aglio”. De acordo com a estrutura da subjetividade, o processo de produgao tem trés niveis. Primeiro, 0 sujeito, enquanto consciéneia, se refere imediatamente a seus objetos, O que é imediato e, contudo, é representado de maneira indeterminada, é designado por Hegel também por “o ser”, 0 geral, 0 abstrato. Pois nisto ainda se abstrai da relagio do objeto com o sujeito. Somente através desta retro-refe. réncia, que a reflexiio, o objeto é representado enquanto objeto para o sujeito e este para si mesmo, ¢ isto quer dizer, enquanto se referindo ao objeto. Enquanto, todavia, s6 distinguirmos objeto e sujeito, ser ¢ reflexdo, opondo-os um ao outro, ¢ nos fixarmos nesta distingfo, 0 movimento do objeto em diregdo do sujeito ainda nio manifestou a totalidade da subjetividade para ela, O objeto, o ser, esta, ndo ha davida, mediado pela reflexdo com o sujeito, mas a propria mediagao ainda nao esta representada enquanto o mais intimo movimento do sujeito para este. Somente quando a tese do objeto ¢ a anti- tese do sujeito so descobertas em sua necessiria sintese esta 0 movimento da subjetivi- dade da relagdo-objeto-sujeito plenamente em marcha. A marcha é partida da tese, avan- G0 em diregdo a antitese e passagem para dentro da sintese e desta, como totalidade, o retomo da posig&o posta, a si mesma, Esta marcha recolhe a totalidade da subjetividade em sua unidade desdobrada, Desta maneira, ela con-cresce, con-creseif, torna-se conere- ta, De tal modo a dialética ¢ especulativa. Pois speculari quer dizer procurar ver, receber dentro do campo visual, compreender, con-ceber. Hegel diz, na introdugio a Ciéncia da Légica (Ed. Lasson, vol. I, pag. 38): a especulagao consiste “no compreender o oposto em sua unidade”. A caracterizago hegeliana da especulagao toma contornos mais preci- sos, se atentarmos para o fato de que na especulaco ndo € apenas importante a compreensio da unidade, a fase da sintese, mas que antes € sempre importa o compreender “do que se opSe” enquanto tal. Disto faz parte 0 compreender do aparecer da oposigio e imbricagdo do que € oposto — como tal impera a antitese, que ¢ exposta na “ldgica da esséncia” (quer dizer, a légica da reflexdo). Do aparecer reflexivo, quer dizer, do espelhar recebe o speculari (speculum: o espelho) sua suficiente determinagio. Pensada assim, a especulaco ¢ a positiva totalidade daquilo que a “dialética” quer aqui significar: néio um modo de pensar transcendental, criticamente restritivo ou mesmo polémico, mas 0 espelhamento ¢ unificagaio do que se opse como processo da produgao do proprio espirito, Hegel designa a “dialética especulativa” também simplesmente como “o método”. Com esta expressio ele nao se refere nem a um instrumento da representago. nem ape- nas a uma particular maneira de a filosofia proceder. “O método” é o mais intimo movi- mento da subjetividade, “a alma do ser”, 0 proceso de produgao através do qual a tessitura da totalidade da realidade do absoluto é efetivada, *O método”: “a alma do ser” — isto soa & fantasia, Pensamos que nossa época ja abandonou tais aberragdes da espe- culagio, Vivemos, no entanto, no coragao desta suposta fantasia. 'Na tentativa da fisica moderna em buscar a formula do universo revela-se: 0 ser do ente se dissolveu no método da total calculabilidade. O primeiro livra de Descartes, fil6- sofo através do qual, segundo Hegel, a filosofia e, com ela, a ciéncia moderna pisaram terra firme, traz 0 titulo: Discours de la Méthode (1637). O método, quer dizer, a dialé- tica especulativa, & para Hegel o rasgo essencial de toda a realidade. O método determi- na, por isso, enquanto tal movimenta tudo 0 que acontece, isto a histéria, 406 HEIDEGGER Agora torna-se claro em que medida a histéria da filosofia é 0 mais intimo movi mento na marcha do espirito, quer dizer, da subjetividade absoluta em diregao a si mesma. Ponto de partida, avango, passagem, retorno desta marcha, tudo é determinado especulativo-dialeticamente Hegel diz: “Na filosofia enquanto tal, na presente, na derradeira, est contido tudo © que o labor de milénios produziu; ela é o resultado de tudo 0 que antecedeu”. (Hoff. meister, op. cit pag. 118.) No sistema do idealismo especulativo, a filosofia chegou a sua plenitude, atingiu em outras palavras seu ponto mais alto ¢ esta, a partir dele, encer rada. A proposi¢do hegeliana da consumagio da filosofia escandaliza. Julgam-na preten- siosa e caracterizam-na como equivoco que ja ha tempo foi refutado pela historia. Pois, apés a época de Hegel, continuou existindo e ainda o continua, filosofia. Mas a proposi- go sobre a consumagao nao quer dizer que a filosofia chegou ao fim, no sentido de um deixar de existir ¢ de uma interrupgdo. Antes, a consumagio oferece justamente # porsi bilidade de miltiplas novas formas, até as mais simples: a brutal inversdo e a maciga contraposigéo. Marx ¢ Kierkegaard so as maiores entre os hegelianos. Sdo-no contra sua vontade. A consumagao da filosofia nao é nem seu fim, nem consiste apenas no siste ma isolado do idealismo especulativo. A consumagio somente é como marcha total da histéria da filosofia, marcha na qual 0 comego permanece tio essencial como a consu- magio: Hegel e os gregos. Como se determina, portanto, a filosofia dos gregos a partir do trago fundamental especulativo-dialético da historia? Na marcha desta historia o sistema metafisico de Hegel é 0 momento mais alto, o da sintese. Precede-o 0 momento da antitese que se inicia com Descartes, porque a sua filosofia poe pela primeira vez o sujeito enquanto sujeito. E € somente através deste passo que os objetos se tornam representaveis enquanto objetos. A relagtio sujeito-objeto surge agora enquanto contra-posigao, como antitese. Toda filo sofia antes de Descartes se esgota, pelo contrério, na pura representago do objetivo. Também alma ¢ espiito sdo representados como objetos ainda que nao enquanto obje- tos. De acordo com isto, segundo Hegel, também j4 aqui atua, por toda parte, 0 sujeito pensante, mas nao é ainda concebido como sujeito, nfo como aquilo em que radica toda a objetividade, Hegel afirma, em suas prelegdes sobre a historia da filosofia: “O homem (do mundo grego) no estava ainda téo voltado sobre si mesmo como em nossa época. Era, fora de divida, sujeito, mas nao se havia posto como tal”. (Hoffmeister, op. cit., pag. 144.) A antitese de sujeito e objeto no é ainda, na filosofia antes de Descartes, 0 chao firme. O momento que precede a antitese é 0 momento da tese. Com ela comeca a " filosofia. O pleno desdobramento deste comego € a filosofia dos gregos. Aquilo que concerne aos gregos e desencadeia o comego da filosofia é, segundo Hegel, puramente objetivo: é a primeira “manifestagdio”, a primeira “emergéncia” do espitito, aquilo em que todos os objetos concordam e coincidem. Hegel a denomina “a universa- lidade como tal”. Pelo fato de ainda nao estar referido ao sujeito enquanto tal, de ainda nao ser concebido enquanto estabelecido e mediado pelo sujeito, e isto quer dizer, con- crescido, de ainda nao ser concreto, 0 universal permanece “o abstrato”, “A primeira manifestagdo € necessariamente a mais abstrata; ¢ 0 mais simples, o mais pobre, a que se contra-pée 0 concreto.” Neste sentido Hegel observa: “E, desta maneira, os filésofos mais antigos sio os mais pobres". O momento da “consciéncia” grega, o momento da tese, “o momento da abstragdo”. Ao mesmo tempo, porém, Hegel caracteriza “o momento da consciéncia grega” como “momento da beleza™ (WW. XII, pag. 175). Como podem ambos ser harmonizados? O belo ¢ 0 abstrato nao so. certamente, idénticos, So-no, entretanto, desde que um e outro sejam compreendidos no sentido que GenrEnets, HEGEL E OS GREGOS : 407 Hegel thes da. O abstrato é a primeira manifestago que permanece puramente junto de si, é 0 mais universal de todo ente, o ser enquanto resplendor imediato e simples. Um tal resplendor, porém, constitui o trago fundamental do belo, Este resplendor, que res- plende, puramente recolhido em si mesmo, brotou, ndo ha divida, também do espirito, isto é, do sujeito, como do ideal, mas o espirito “nao se possui ainda a si mesmo como meio (para nele) representar-se a si mesmo e sobre isto fundar seu mundo” (op. cit.). Nao é possivel esbogar aqui como Hegel articula e apresenta, no horizonte da ins- tancia da beleza como instancia da abstragao, a historia da filosofia grega. Em vez disso, apontarei brevemente para a interpretagao hegeliana de quatro palavras fundamentais da filosofia grega. Elas falam a linguagem da palavra-guia “ser” etinai (edn, ousfa). Sua vor fala sempre de novo na filosofia ocidental posterior até nossos dias, Enumeremos as quatro palavras fundamentais, com a tradugdo de Hegel: 1. Hén, 0 universo; 2. Légos, a razao; 3. Idéa, o conceito; 4. Enérgeia, a atualidade. Hén & a palavra de Parménides. L6gos é a palavra de Herdclito. Idéa € a palavra de Platio. Enérgeia & a palavra de Aristételes. Para compreender a maneira como Hegel interpreta estas palayras fundamentais, devemos atentar para duas coisas: de um lado, para aquilo que para Hegel, na interpre- tagio dos citados filésofos, ¢ 0 decisivo em face do que menciona apenas de passagem. De outro lado, para a maneira pela qual Hegel determina sua interpretagio das quatro palavras fundamentais, no horizonte da palavra-guia “ser”, Na introdugo a suas prelegdes sobre a historia da filosofia (Hoffmeister, op. cit. pag. 240), Hegel declara: “O universal primeiro é o universal imediato, isto é 0 ser. O conteiido, 0 objeto, é, portanto, o pensamento objetivo, o pensamento que é”. Hegel quer dizer: o ser é 0 puro carter de pensado do imediatamente pensado, ainda sem tomar em consideragao 0 pensamento que pensa este pensado sem té-lo ainda descoberto ¢ caracte- rizado como pensado. A determinagao do puramente pensado é “a indeterminagao”, e 0 resultado de sua descoberta é a imediatidade, O ser assim compreendido € 0 representado como tai, imediatamente indeterminado, e, na verdade, de tal maneira que enquanto pri- meiro pensado até mantém longe de si mesmo a propria auséncia do proceso de determi- nagdio € mediagdo e como que se insurge contra ele. Através disto se toma claro: o ser, enquanto primeira e simples objetividade dos objetos, é pensado desde 0 ponto de vista da referéncia ao sujeito a ser pensado, através da pura abstragio deste. Para isto ha que atentar, de um lado, para compreender o sentido em que Hegel interpreta a filosofia dos quatro fildsofos mencionados, porém, de outro lado, também para medir a importancia que Hegel atribui a cada uma das palavras fundamentais, A palavra fundamental de Parménides é: Hén, 0 uno, que tudo unifica e assim o uni- versal. Parménides analisa os sémata, os sinais, pelos quais se mostra 0 Hén, no grande fragmento VIII, que I tegel conhecia. Contudo, ndo situa Hegel o “pensamento principal” de Parménides no Hén, no ser como universal, O “pensamento principal” est expres. so, segundo Hegel, na proposic&o que enuncia: “Ser e pensar sio 0 mesmo”. Esta propo- sigo Hegel a interpreta no sentido de que o ser “enquanto™ o pensamento pensado, que “€", € uma produgio do pensar. Hegel vé na proposi¢io de Parménides uma instancia preparatoria para Descartes. com cuja filosofia apenas se inicia a determinagao do ser a partir do sujeito essencialmente posto. Por isso, Hegel pode declarar: “Com Parménides 408 HEIDEGGER comegou o filosofar propriamente dito... Este comego, ndo ha divida, é ainda turvo ¢ indeterminado” (WW. XIIL pag. 269 e ss. A palavra fundamental de Heraclito é: Légos, o recolhimento que torna presente ¢ manifesto tudo o que € em sua totalidade enquanto ente. Logos € 0 nome que Heraclito dé go ser do ente, Mas a interpretagdo hegeliana da filosofia de Herdclito justamente ndo se orienta na diregtio do Jégos. Isto é estranho, tanto mais estranho quanto Hegel conelui © prefiicio a sua interpretagio de Herdclito com as palavras: “Nao ha proposigao alguma de Herdclito que eu nao tenha incluido na minha légica™. (Op. cit., pag. 328.) Mas para esta “lOgica” de Hegel & 0 légos a razio no sentido da subjetividade absoluta; a “logica mesma, todavia. é a dialética especulativa através de cujo movimento o imediatamente universal e abstrato, o ser, é refletido enquanto objetivo na oposig’o com relagao a0 sujeito; esta reflexao €, por sua vez. determinada enquanto a mediagao no sentido do vir yT em que 0 Oposto se aproxima, torna-se concreto. alcangando assim a unidade. Cap- tar esta unidade constitui a esséncia da especulagio que se desdobra como dialética, No juizo de Hegel é Heraclito 0 primeiro que reconhece a dialética como principio e com isto progride para além de Parménides. O filésofo declara: o ser (como o pensa Parménides) é 0 uno. o primeiro: ¢ segundo € 0 vir-a-ser — para esta determinagao avan- cou Heraelito. Isto é o primeiro concreto, 0 absolute enquanto nele se realiza a unidade dos opostas. Nele (Herclito) pode encontrar-se. pela primeira vez. a idéia filos6fica em sua forma especulativa (op. cit., pag. 328). Desta maneira coloca Hegel o acento princi- pal de sua interpretago de Herdclito nas proposigdes em que se exprime o elemento di letico, a unidade e unificagio das contradigSes. A palavra fundamental de Platio é: Tdéa, Para a interpretagio hegeliana da filoso- fia platénica é de notar-se que ele compreende as idéias como “o universal em si determi- nado”; “em si determinado” quer dizer: as idéias so pensadas em sua comum-unidade; elas nao so proto-imagens simplesmente em-si-sendo. mas sio “o em-si e para-si-mesmo sendo” A diferenga do que “existe sensivelmente” (WW, XIV, pag. 199). “Em-si e para- si” — nisto reside um vir-a-ser-para-si-mesmo, a saber. 0 con-ceber-se. De acordo com isto, Hegel pode declarar: as idéias “nfo estio imediatamente na consciéncia (a saber como intuigSes). mas elas esto (mediadas na consciéncia) no conhecimento”. Por isso, “niio as possuimos, mas sao produzidas pelo conhecimento no espirito” (ap. cit., pag. 201). Este produzir é o conceber enquanto atividade do saber absoluto, quer dizer, “da ciéncia”. Por isso, diz, Hegel: “Com Plato comega a ciéneia filoséfica enquanto ciéncia” (op. cit., pag. 169). “O elemento priprio da filosofia platénica é a orientagio para o mundo intelectual, supra-sensivel... .” (op. cit., pag. 170). A palavra fundamental de Aristételes é: Enérgeia, que Hegel traduz por “realidade efetiva” (latim actus). A Enérgeia & “ainda mais determinada” que “enteléquia” (entelé- cheia), que é em si fim ¢ realizagio do fim. A enérgeia & “a pura eficacidade que emerge de si mesma”. “Somente a energia, a forma, ¢ a atividace, aquilo que efetiva, a negativi- dade auto-referente” (op. cit., pag. 321). Aqui a enérgeia é igualmente pensada desde a dialética especutativa como a pura atividade do sujeito absolute. Quando a tese é negada pela antitese ¢ esta por sua vez ne- gada pela sintese, impera num tal processo de negagdo aquilo que Hegel designa “a nega- tividade auto-referente”. Ela no é mada de negative, A negagao da negagio & antes aquela posigdo na qual 0 espirito. pela sua atividade mesma, se poe enquanto abso- luto. Hegel descobre na enérgeia de Aristételes a instincia prévia do automovimento absoluto do espirito. isto é, da realidade efetiva em-si e para-si. O juizo que Hegel faz da totalidade da filosofia aristotélica ¢ testemunhado por esta proposigao: “Se a filosofia HEGEL E OS GREGOS 409 fosse um dia encarada com seriedade, nada seria mais digno que dar aulas sobre Aristé: teles” (op. cit., pag. 314). “Seriamente” se encara a filosofia, segundo Hegel, quando esta nfio mais se perde nos objetos e na reflexao subjetiva sobre eles, mas se exerce como atividade do absoluto. ‘A elucidagdo das quatro palavras fundamentais revela: Hegel compreende Hén, L6gos, Idéa, Enérgeia, no horizonte do set que concebe como o universal abstrato, O ser e, por conseguinte, aquilo que & representado nas palavras fundamentais ndo é ainda determinado ¢ néo é ainda mediado através e para dentro do movimento dialético da subjetividade absoluta. A filosofia dos gregos é a instdncia deste “ainda nao”. Ela no ¢ ainda a consumagio, mas, contudo, é unicamente concebida do ponto de vista desta consumagao que se definiu como 0 sistema do idealismo especulativo. Segundo Hegel, é intimo “impulso”, “a necessidade” do espirito, de desligar-se do absirato, enquanto se ab-solve para dentro do concreto da subjetividade absoluta, liber- tando-se assim para si mesmo. Daf Hegel pode afirmar: *.. . a filosofia 0 que mais se opde ao abstrato: é ela justamente a luta contra o abstrato, a guerra constante com @ reflexo do entendimento” (Hoffmeister, op. cit, pag. 113). No universo grego, na verda- de, 0 espirito chega, pela primeira vez, a aberta oposig&o com o ser. Mas 0 espirito no atinge ainda propriamente como o sujeito que se sabe a si mesmo a absoluta evidéncia de si mesmo, Somente onde acontece isto, no sistema da metalisica especulativo-dialética, a filosofia torna-se aquilo que ela é: “o mais sagrado, ¢ mais intimo do proprio espirito” (op. cit., pig. 125). Hegel determina como “meta” da filosofia: “a verdade”. Esta somente é atingida no momento da plenitude. O momento da filosofia grega permanece no “ainda no”. Ela é enquanto instancia da beleza, nao é ainda a instancia da verdade. Se atravessarmos com um olhar a totalidade da historia da Filosofia, Hegel e os Gre- gos, consumagao e comego desta histria, tornamo-nos pensativos e perguntamos: nao se alteia sobre 0 comego do caminho da filosofia em Parménides a alétheia, a verdade? Por que nao a deixa Hegel tomar a palavra? Compreende ele com a palavra “verdade” outra coisa que desvelamento? Sem diivida, Verdade ¢ para Hegel a evidéncia absoluta do sujeito que se sabe a si mesmo, Para os gregos, porém, segundo sua explicagao, 0 sujeito ainda nao se manifesta enquanto sujeito. Por conseguinte, a Alétheia no pode ser o ele- mento determinante para a verdade no sentido da certeza. Este é 0 estado da questéio para Hegel. Se, porém, a Alétheia, encoberta ¢ impen- sada como for, impera sobre o comego da filosofia grega, devemos entio perguntar: ndo depende justamente a certeza, em sua esséncia. da Alérheia, uma vez estabelecido que no a interpretemos de maneira indefinida e arbitraria como verdade no sentido de certe- za — mas a pensemos como desocultagio? Se ousarmos pensar a Alétheia desta manei ra, entdo ser necessario atentar antecipadamente para duas coisas: de um lado, a expe- rigneia da Alétheia como desvelamento ¢ desocultagdo nao se funda, de manera alguma, sobre a etimologia de uma palavra escolhida ao acaso. mas sobre a questdo que aqui deve ser pensada, questiio da qual nem mesmo a filosofia hegeliana se pode subtrair intei- ramente. Se Hegel caracteriza o ser como a primeira emergéncia ¢ a primeira manifesta cdo do espirito, entio deve-se considerar se nesta emergéncia e automanifestar ja ndo est4 em jogo a desocultagio, aqui nada menos que no puro resplendor da beleza que. segundo Hegel, determina o primeiro momento da “consciéncia” grega. Se Hegel faz cul- minar a posig%o fundamental de seu sistema na idéia absoluta, na plena automanifes taco do espirito, isto nos urge a perguntar se ndo é também ainda neste resplender. isto 6 na fenomenologia do espirito por conseguinte no absoluto auto-saber ¢ sua certeza, 410 HEIDEGGER que a desocultagdo deve estar em jogo, E logo a seguir se impée esta outra pr -gunta: tei a desocultaciio seu lugar no espirito concebido como sujeito absoluto, ou é ela mesma o lugar e aponta para o lugar em que algo semelhante a um sujeito capaz de representagao pode somente “ser” aquilo que ¢? Com isto j& deparamos com aquilo que deve ser tomado em conta, tdo logo a Alé- theia enquanto desocultagao passe a ser discutida. O que este nome designa nao é a gros- seira chave que decifra todos os enigmas do pensamento, mas a Alétheia € 0 proprio enigma — a questo do pensamento. Mas no somos nés que fixamos esta questo como a questo do pensamento. Ela, de longa data, nossa heranga e nos foi transmitida através de toda a histéria da filoso fia, Trata-se apenas de nos afundarmos com nosso ouvido atento na tradigdio e assim examinar os pré-conceitos em que qualquer pensamento a seu modo se deve demorar. Sem divida, também um tal exame jamais se pode arvorar em tribunal que decida sobre a esséncia da historia ¢ sobre uma possivel relag4o com ela; pois este exame tem seus limites que assim podem ser circunscritos: quanto mais um pensamento se dedica a meditagdo, isto 6, quanto mais recebe o apelo de sua linguagem, tanto mais decisivo sera para ele o impensado e até mesmo o para ele impensavel. Quando Hegel interpreta o ser a partir da subjetividade absoluta especulativo-diale- ticamente como 0 indeterminado imediato, o universal abstrato ¢ neste horizonte da filo- sofia moderna, explica as palavras gregas fundamentais para o ser: Hén, Légos, Idéa, Enérgeia, somos tentados a julgar que tal interpretago é historicamente incorreta. Ora, qualquer enunciagao histérica sua fundamentagio jé se movem numa relagao com a historia. Antes da decisdo sobre a corregao histérica da representagao necesita ela por isso de uma reflexdo sobre o fato € 0 modo como a historia 6 experimentada, de onde ela € determinada em seus rasgos fundamentais. No que se refere a Hegel e aos gregos isto significa: precede a todas as enunciagdes certas ou erradas sobre a historia o fato de que Hegel experimentou a esséncia da historia a partir da esséncia do ser no sentido da subjetividade absoluta. Até o momento nao exis- te uma experiéncia da historia que, sob o ponto de vista filoséfico, corresponda a esta experiéncia hegeliana da historia. Mas a determinagao especulativo-dialética da hist6ria traz justamente como conseqiiéncia o fato de para Hegel ter sido vedado descobrir a Alé- theia e seu imperar propriamente como a questdo do pensamento; isto aconteceu exata- mente na filosofia que determinara “o reino da pura verdade” como “a meta” da filoso- fia. Pois Hegel experimenta o ser quando 0 concebe como o indeterminado imediato, como posto pelo sujeito que determina e compreende. Conseqiientemente ndo ¢ ele capaz de libertar o ser no sentido grego, 0 einai, da referéncia ao sujeito para entao entrega-lo A liberdade de seu proprio acontecer fenomenolégico. Este, porém, é 0 pre-sentar, quer dizer, 0 surgir continuo desde o velamento para o desvelamento. No pre-sentar se mani: festa a desocultagao. Ela acontece no Hén e no Légos, isto é, no jazer-ai unificando e recolhendo — quer dizer, no deixar demorar-se como presenga, A Alétheia acontece na Idéa ¢ na koinonia das idéias, na medida em que estas se manifestam umas as outras, constituindo, desta maneira, 0 ente-ser. 0 dntos dn. A Alétheia acontece na Enérgeia, que nada tem a ver com actus e nada com atividade, mas somente com o érgon experimen. tado em seu sentido grego e seu cardter de ser-pro-duzido para dentro do pre-sentar. Mas a Alétheia, a desocultagao, nao acontece apenas nas palavras fundamentais do pensamento grego, aconteve na totalidade da lingua grega, que fala diferente tao logo dei- xamos fora de jogo as maneiras de representar, romanas, medievais e modernas, ao inter- preté-la, @ tio logo deixamos de procurar por personalidades ¢ pela consciéncia no mundo grego. HEGEL E OS GREGOS 411 Mas qual 6, entio, a situagio desta enigmatica Alétheia mesma que se tornou um escindalo para os intérpretes do mundo grego, pelo fato de se aterem apenas a esta pala- vra isolada e sua etimologia, em vez de pensarem a partir da questo para a qual apon- tam palavras como desvelamento e velamento? E a Alétheia enquanto desvelamento 0 mesmo que ser, isto é, pre-sentar? Isto vem confirmado pelo fato de ainda Aristteles entender com 14 dna, o ente, aquilo que se presenta, 0 mesmo que com id alethéa, aquilo que esta desvelado. No entanto, de que maneira desvelamento e presenga, alétheia e ousta, esto ligados entre si? Sao ambos da mesma classe de ser? Ou s6 depende a presenga do desvelamento e no vice-versa, este daquela? Entio o ser tinha, na verdade, algo a ver com a desocultagao, mas nada a desocultagao com o ser? Ainda mais:’se a esséncia da verdade como retitude € certeza que muito cedo se afirmou s6 puder subsistir no ambito do desvelamento, entio, sem divida, a verdade tem algo a ver com a Alétheia, mas nada esta com a verdade. Qual o lugar da Alétheia mesma se libertada da perspectiva sobre a verdade e o ser iver que ser entregue d liberdade que Ihe é prépria? Possui ja 0 pensamento o horizonte para ao menos conjeturar sobre 0 que acontece na desocultagio e mesmo na ocultagdo de que necessita qualquer desocultagio? © enigmatico da Alétheia se torna mais compreensivel, mas ao mesmo tempo o isco de nés a hipostasiarmos num ser fantastico se torna maior, Observou-se ainda, ja varias vezes, que nfo poderia dar-se um desvelamento em si. que desvelamento sempre é desvelamento “para alguém”. E com isto estaria provada sua Deve, todavia, ser 0 homem em que aqui se pensa necessariamente determinado como sujeito? Significa “para o homem” ja obrigatoriamente: posto pelo homem? Ambas as coisas podemos negar e nos vemos levados a lembrar que a Alétheia, pensada em sentido grego, sem davide alguma, impera para o homem, mas que o homem perma nece determinado pelo Idgos. O homem é aquele que diz. Dizer, no alemao arcaico sagan, significa: mostrar, fazer aparecer ¢ ver. O homem & o ser que pelo dizer faz surgir © presente em sua presenga e assim percebe o ai-jaz-presente. © homem apenas sabe falar na medida em que é aquele que diz. As mais antigas referéncias a alethefe e alethés, desvelamento e desvelado, encon- tramos em Homero e, na verdade, no contexto com verbos que significam dizer. Disto se concluiu apressadamente demais: portanto, 0 desvelamento & “dependente” dos verba dicendi.’ Que significa aqui “dependente” quando dizer é 0 deixar aparecer e, em conse- giiéncia, tal também ¢ o disfargar € o encobrir? Nao o desvelamento é “dependente” do dizer, mas qualquer dizer ja precisa do ambito do desvelamento. Apenas lé onde esta j4 impera pode algo tornar-se dizivel, visivel, mostravel, perceptivel, Se mantivermos na mira 0 enigmatico imperar da Alétheia, do desvelamento, entdo podemos até suspeitar que mesmo toda a esséncia da linguagem repousa na des-ocultagio, no imperar da Alé- theia. Entretanto, mesmo a conversa sobre o imperar permanece ainda um expediente, jé que a maneira como acontece o imperar recebe sua determinagio da desocultagio mesma, isto ¢, da clareira do autovelar-se, Hegel e os Gregos — parece que, entretanto, longe do tema, discutimos coisas estranhas. Estamos todavia mais proximos do tema do que antes. Na introdugio da conferéncia foi dito: + Assim fala P. Friedlinder, Plato, vol. 1, 2.® edigo, 1954. pig. 235. seauindo a tilha de W. Luther, que em sua dissertagio de Géttingen, 1935, pig. 8 s.,vé mais elaramente o estado de coisas. 412 HEIDEGGER A questo do pensamento esta em jogo. Procuraremos através do tema focar esta questao. Hegel determina a filosofia dos gregos como o comego da “filosofia propriamente dita”. Esta, porém, permanece, enquanto instancia da tese e abstragdo, nto “ainda nfo”. A plenificagao na antitese ¢ sintese no ocorre, A reflexdo sobre a interpretagao hegeliana da doutrina grega sobre 0 ser procurou mostrar que 0 “ser”, com 0 qual a filosofia comega, somente acontece como presenga, na medida em que ja impera a Alétheia, que a Alétheia mesma, contudo, permanece impen- sada no que diz respeito a sua origem essencial. Refletindo sobre a Alétheia, experimentamos, pois, que com ela recebemos um apelo de algo que antes do inicio da “filosofia” e através de toda a sua historia ja recebeu © pensamento junto a si. A Alétheia antecipou a historia da filosofia, mas de tal maneira que se subtrai a determinabilidade filosdfica enquanto aquilo que exige sua discussio pelo pensamento. A Alétheia 0 impensado digno de ser pensado, a questo do pensa- mento. Assim, pois, a Alétheia permanece para nés aquilo que primeiro deve ser pensado — o ser pensado enquanto libertado da referéncia a representagdo da “verdade” no senti- do da retitude e do “ser”, no sentido da realidade efetiva, trazida pela metafisica, Hegel diz da filosofia dos gregos: “Somente se consegue encontrar satisfagdo até um certo grau dentro dela”, a saber, a satisfagdo do impulso do espirito para a certeza absoluta. Este juizo de Hegel sobre insatisfatério da filosofia grega é pronunciado a partir da consumagio e plenitude da filosofia. No horizonte do idealismo especulativo a filosofia dos gregos permanece no “ainda nao” da plenitude. Ora, atentemos para o enigmatico da Alétheia, que impera sobre 0 éomego da filo- sofia grega e sobre a marcha de toda a filosofia, entio a filosofia grega também se mos- trard para nosso pensamento num “ainda nfio™. Mas é o “ainda nao” do impensado, néo uum “ainda no” que nao nos satisfaz, mas um “ainda nfio” para quem nds nao bastamos € que no somos capazes de satisfazer. A DETERMINACAO DO SER DO ENTE SEGUNDO LEIBNIZ’ Vorlesung. A prelecio foi proferida mo semestre de verlio de 1928 sobre Leibniz: apare io para o livra comemorativo dos oitenta anos de Rudolf Bulumann: Zeit und Geschichte, na Editora 1.C.B. Mohr (Paul Sicbeck). Tilbingen 1964, pp. 497-507. O texto para a tradugio foi extraido do volume Wegmarken, Vittorio Klostermann, Prankfurt am Main, 1967. que contém boa parte dos textos menores le Martin Heidegger. Esta prelegao se propés, durante o semestre de verdo de 1928, a tarefa de experi mentar uma discussio com Leibniz. Orientada era a tarefa na consideragao do ekstatico ser-no-mundo do homem, desde o ponto de vista da questio do ser. O primeiro semestre em Marburgo (1923-1924) tentou a adequada discussio com Descartes, a qual entao passou a fazer parte de Ser e Tempo (8§ 19-21). Esta e outras interpretagdes eram determinadas pela conviegio de que, no pensa mento da filosofia, nds somos um didlogo com o pensamento do passado, Tal didlogo quer dizer outra coisa que complementaco de uma filosofia sistematica pela exposigao historiografica de sua historia, Nao pode, porém, ser também comparada com a singular identidade que Hegel alcangou para a mentago de seu pensamento e do pensamento da historia. A metafisica que Leibniz desenvolveu é, de acordo com a tradigdo, uma interpre taco da substancialidade da substancia O texto que segue, extraido da mencionada prelegao e revisto, procura mostrar 3 partir de que projeto e segundo que fio condutor Leibniz determina o ser do ente. Ja a palavra que Leibniz esvolhe para identificar a substancialidade da substancia é caracteristica. A substdncia ¢ mdnada. A palavra grega monas significa: 0 simples, a unidade, 0 um, mas também: 0 separado, o solitario, Leibniz utiliza apenas a palavra ménada depois que sua metafisica da substincia jé tomara forma definitiva, a saber, desde 1696. O que Leibniz entende por ménada engloba como que em si todos os signifi cados gregos fundamentais: a esséncia da substancia consiste no fato de que ela ¢ ména- da. O ente propriamente dito possui o caréter de simples unidade do individuo separado. Antecipando: ménada é 0 elemento unificador simplesmente originario que previamente individualiza e separa, De acordo com isto, deve-se reter, para a suticiente definigdo da monada, plice elemento: 1, As ménadas, as unidades, os pontos, nao nece: que da unidade, Sao capazes de algo. As unidades que dao unido so elas préprias originariamente unificantes, de certa maneira ativas. Por isso é que Leibniz caracteriza estes pontos como vis primitiva, force primitive, forga originéria. 3. A concepgao da ménada revela uma intengdo metafisica, ontoldgica. Leibniz. por conseguinte, nao designa também os pontos. pontos matematicos, mas poinss métaphysiques, “pontos metafisicos” (Gerhardt IV, 482; Erdmann, 126). Ainda so cha- mados “étomos formais”, no materiais; ndo sio partes iltimas e elementares da hyle, da matéria, mas o originario e inseparavel principio da formagiio, da forma, do eidos mtr jtam da unido, mas slo aquilo 416 HEIDEGGER Cada ente separado se constitui como ménada. Leibniz diz (Gerh. II. 262): ipsum persistens.. . primitivam vim habet. Cada ente separado é dotado de fora. A compreensiio do sentido metalisico da doutrina das ménadas depende da maneira exata como se compreende o conceito de vis primitiva, problema da substancialidade da substincia deve ser solucionado positivamente, € este problema é para Leibniz. um problema da unidade, da ménada. Deste horizonte de problemas de uma determinagdo positiva da unidade da substancia, deve ser entendido tudo o que foi dito sobre a forca e sua fungiio metalisica. O cardter de forga deve ser pen- sado a partir do problema da unidade que se esconde na substancialidade. Leibniz desta- ca seu conceito de vis activa do conceito escolastico de potentia activa. Desde 0 ponto de vista terminologico, vis activa e potentia activa parecem significar o mesmo, Mas: Dif: Jert enim vis activa a potentia nuda vulgo scholis cognita, quod potentia activa scholasti- corum, seu facultas, nihil aliud est quam propinqua agendi possibilitas, quae tamen alie- na excitatione et velut stimulo indiget, ut in actum transferatur (Gerh. TV, 469). “Pois a vis activa se distingue da nua poténcia pura para agir, que é de comum conhecimento na escolistica. porque a poténcia ativa ou possibilidade de agir da escolastica nao é outra coisa que a possibilidade proxima de agir, a qual contudo necessita de um impulso estra nho, como que de um estimulo para tornar-se ato. A potentia activa da escolistica & um puro ser-capaz de agir, mas de maneira tal que este ser-capaz de... justamente esta para agir, mas ainda nao age. Ela é uma capa cidade existente nas coisas que ainda nao entrou em ago, Sed vis activa actum quemdam sive entelécheiam continet, atque inter facultatem agendi actionemque ipsam media est, et conatum involvit (ib.). “A. vis activa, porém, contém um certo agir ja real ou uma enteléquia, ela se situa entre a pura capacidade de agir ¢ 0 agir mesmo e encerra em si um conatus, uma tentativa.” A vis activa & por conseguinte, um certo agir, mas no a ag&o na realizagio propriamente dita: ela € uma capacidade. mas no uma capacidade em repouso. Desig namos 0 gue Leibniz aqui visa o tender para. . .. melhor ainda, para poder exprimir o especifico, de certa maneira j4 efetivado, momento de agir, o impelir, pulsdo.’ Nao & nenhuma disposigao nem um processo espontineo, mas o empenhar-se desde dentro (a saber, por propria iniciativa e por si mesmo). 0 dispor a si para si mesmo (“ele insiste nisso”), instaurar-se na proximidade de si mesmo.? * Drang & 0 termo que Heidegger explora para extrair toda a riqueza de sentido da vis de Leibniz. Drang equivale originariamente a0 termo grego fcrme, que vem de hormda: excita. Desta forma verbal grega se origina a palavra portuguesa Aormdnio: principio ativo das secregées internas. Traduzo Drang por pulsio, que vem de pulsars mpelir,cepeir. Baer. fri, tocar. tanger. Palpitar. ltejar.arqueiar. Pulsio como Drang distingue-se se opde # instinto porque niio exige um objeto correlato. O termo pulsda, além de reproduzir co sentido de Drang, possui a vantagem de permitr 0 jogo semantico que o filésofo reliza pelo uso de pref xos com Drang. Além das formas verbais, podemos formar. em portugués: eom-pulsio, ex-pulsdo, im-pul: sio, repulsio. A longa histria da palavra Drang deu-the ume variedade de eonotagSes que dificilmente so percebidas por uma lingua com outra histris. Desde o tormo medieval drang até a exploragio que dele faz Max Scheler. Drang passa pelo movimento da literatura alem’ Sturm und Drang (1767-1785), pelo idea ismo (Shelling) pela filosofia da vida (Dilthes). Heidegger usa a palavra Drang livre de conotagdes biold- gicas ou irracionalistas. acentuando-the a dimensio transcendental de que nevessita para anslisar a questio do ser do ente no pensamento de Leibniz. no horizonte de sua ontolagia fundamental. (Agradego ao Prof. Hermann Zeliner, da Universidade de Erlangen-Nurnberg, sempre dispanivel para clavificar no dialoge ques 18es como esta.)(N. do T.) ? Heidegger procura cireunserever a dimensiin constitute da ris, da Drang, da pulsio, distinguinde-a: ab do processe mecanico espontaneo: b) da esfera bioligica que (desde a hévis: estado, caracteristca, ter uma disposigio, de Aristteles)fucilmente se insinua quando so fala de forga instinto, pulsio: e determinando-a

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