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ENSAIOS — I 1 assaz imprudente para se comparar a ele, tanto quanto i virtue © 4 piedade como quanto a inteligéncia © a capacidade? “Ai trouxessem nenhum argumento razodvel, eles ‘as. petsuadiriam com a sua autoridade”?*?. E ousadia perigosa ¢ de possiveis conseaiéncias sérias, fora mesmo do que tem de temetitio absurdo, desprezar 0 que nao compreencemos. Que apés terdes acertado, com vosso julpa- mento impevavel, os limites entre o verdadeira © 0 falso, sobrevenham, come & inevitavel, falos inegaveis, ultrapascands ‘inda. mais em sobrenalural 5 que recusais, ¢ cis-vos obri gado a vos desmentirdes, A meu Ver o que acarreta tanta confusdio em nossas eonscigncias, nesles tempos de pettur- bagies religiosas, é esse abandono parcial que farem os caidlicos de sua fé. Imaginam que séo thoderados © sensatos eedendo avs adver saris no que diz respeito a ccrias pontos em Jitigio; no veers a vantagem que Ihes dio em bater cm retirada, e quanto essa desisténeia in. cita 95 outros a prosseguirem, pois os pontos 197 Cicero: em que cedem os catoticos © que thes parecem de nonada podem ao contrario ser de grande importineia. Ora, ¢ necessario, em tudo, submetermo-nos aos paderes eclesissticos que reconhecemos; ou tudo Thes recusarmos. Nae cake ands determinar na que thes devemos ow nao obediénsia. Mais ainda (© posso dizé-lo porque o experimentei, tendo outrora usado essa liberdade de climinar eertas praticas em Felacao As quais juleava nlo dever observar os deveres impostos pela Igreja, porque os achava iitels ou demasiado singulares, emiretendo-me com homens que sabiam a fundo a ciéneia teolégica me foi demonstrado repousarem cles sobre fundamentos de pri micira ordem € seriedade): € unicamente por to lice © ignoraneia que'os tratamos com menos deleréneix do que © reste. Lembremos em quantas contradighes tem caido 0 nosso julga mento! Quantas coisas que ontem consider’ vamos artigos de fé, hoje julgamos fibutas! A. gléria_¢ a curigsidads sfio_dois flagelas_de ossa alma; estenox impele a meter o.nariz em tudo; aquela_nos_proibe deixar. seja.a que for sem decisao ou solugio. Cariruto XXVUL Da amizade Contemplando © trabalho de um pintor que finha,em casa, tive vontade de ver como proce: dia, Escolheu primeito 6 melhor lugar no cen- tro de cada parede para pintar um tems com toda a habllidade de que cra capaz, Em sepui da cncheu os vazlos em volta com arabescos, pinturas fantusistas ques agradam pela varie. dade ¢ originalidade. © mesmo ocorre neste livra, composto unicamente de ascuntos evtra nihos, fora do que se vé comumente, formado de pedagos juntades sem earater define, sem ordem, sem Igica ¢ que sé se adaptam por acaso Uns gos outros: “O corpo de Urtia bela mulher com uma cauda de peixe”®??, Quanto ao segundo ponte fiz, pais, coma o pintor, mas em ‘elagio & outra parte dé trabalho, a methor, hesito, Meu talento nio vai tao longe, € nfio ouso empreender uma obra rica, polida c constiuida em obediéneia as regras da arte. Eis por que me veio a idgia tomar de empres. timo a Etienne de la Boétie aigo que honrara, 399 Horigio, em suma,o restante, E um ensaio a.que deu 0 titulo de “Servidio Voluntiria”, mas que guiros, ignorando-o, batizaram mais tarde, © om tazio, “Contra Um", Esereveu'o Lay Boé- tie em sun ndolescéncia, a fim de se éxereitar em favor da liberdade © contra a tirania, Ha muito circula esse ensaio em maos de gente séria, entre a qual goza de grande ¢ merccida repulagio, pois € helo de nobreza e de argu. mentagao tie wlida quanto possivel. E nao € Poryue © aulor nao pudesse ter escrito melhor ainda. Se ni idade, ja mais madura, em que 0 conheci, tivesse, como eu, concebido a inten. Gi0 de eserever seus pensamentos, houvera dejxado coisas notaveis, bem proximas daque las de que se orgulha a antiguidade. pois, em Particular quanto a isso, era dotado como nin- guém. Esse ensaio, que nunca reviu, creio, de pois de composto, @ a Gnica eoisa que sabra dele; ¢ por efeito do acaso, juntamente com al Buns comentarios acerca desse edito de janciro. tao famosa na histéria de nossas guerras civis, ‘eomentérios. que encontrarao talvez lugar 92 MONTAIGNE alhures. Eis tudo o que, além do eathloge das obras que possuia e que publiquei, pude reco- ther — eu a quem, por afetuosa atengio, a0 fender 0 time suspiro, entregou sua biblio- teca ¢'seus papéis, Por isso sou muito apezado a.esse ensaia, tanto mais quanto foi o panto de partida de nossas relagdes. Fora-me comuni cado muito antes que conhecesse 0 auter cujo nome x ent&o me foi revelado, ¢ assim se pre- Parou essa amizade que nos uniu e durou ‘quanto Deus 0 permitiy, Zo inteira e compleia. que por certo nao se encontrard igual eatre os homens de nosso tempo, Tantas circunstancias se fazem necessirias para que esse scntimento se edifique, que ja € muito vé-lo uma ver cada tts séruios, ‘A natureza parece! muito particularmente interessada em implantar em nés a necessidade das relagSes de amizade © ArisiGteles afirma que 0s bons legisladores se preocupan, mais com essas relagdes do que com a justiga. f verdade que a amizade assindla o mais alto. ponto de perfeigio na sociedade. Em geral sentimenios a que damos a nome de amizades naseidos da satisfuedio de nossos prazeres, das Vantagens que usuituimos, ou de associagSes formadas em vista de interesses. piblicos ou privados, siio menos belos, menos generosos. ¢ Participam tanto menos da amizade, a qual tem oulras causas, Visa a Outros fins. Essas AlcigSes, que ve classificavam outrora ert qua: {ro Categorias, segundo fosscm ditadai pela naturecd, sociedade, a hospitalidade ou as exigéncias dos sentidos, nem em conjunto nem isoladamente atingem 0 ideal. Nas relagGes entre pais ¢ filhos é maiso res- peito que domina, A amizade nutresa de Gomunieagio, a qual nio pode estabelecer-se esse dominio em virtude da grande diferenga que entre eles existe, de todos os ponios de Vista; ¢ esse imtercimbio de idéias © emogdes poderia por veres chocar os deveres reciprocos que a natureza Ihes impas, pois, se todos os Pensamentos intimos dos pais se comuni- cassem aos filhos, ocorreriam entre eles fami Naridades inconvenientes. Mais ainda: nio podem os filhos dar conselhos ou formular eensuras a seus pais, o que € envetanto uma das primeiras obrigacdes da amizade. ‘Ente certos povos ¢ castume que 05 filhos Malem os pais; entre outros so os pais que matam os filhos, a fim de evitar, como acon: tece as vezes, que se constituam em obsticulos Feciprocos, porque a natureza pela eliminagao de um libera o outro. Houve fildsofos que afe: taram nid levar em consideragao os lagos de familia, Aristipo, por exemplo, 4 quem fale: vam da afeicao que devia aos filhos, saidos dele, pos-se a cuspir dizendo que isso tanbém ‘sain dele, E acrescentava que se engendramos filhos engendramos igualmente piolhos ¢ ve mes. Outro, que Plutarco procucava recor liar com 0 irmao, responden: “Nao 0 estima ‘mais, apenas porque saiu do mesmo buraeo”, E, em vetdade, um belo nome ¢ digno da maior afeigio o nome de irmaos e por isso La Boétie ¢ eu o empregamos quando nos toraa- mos amigos; mas na realidade, 2 comunidade de interesses, a partilha dos bens, a pobreza de lum como consegiiéneia da rigueza de outro, destemperam consideravelmenie a. unigo for” mal. Em devendo os irmaos, para vencer neste mundo, seguir o mesma camino, andar com asso igual, inevitavel se toma que se choquem amiiide, Mais ainda: € a correspondéncia dos gostos que engendra esas verdadeiras ¢ pertei. tas amizades ¢ nao ha razio para que ela se Verifique, entre pai e filho, ow entre irmiios, os ais podem ter gostos totalmente diferentes. E meu fitho, meu parente, mas isso ndo impede que se trate de um individu pouco socivel, vm mau, unt tolo, Nas amizadesquenos impoem n lei e as obrigagdes nuturais, nossa vontade io 68 exerce Hvremiencs; clas nai resultam G. ma escoliac nada depende mais ‘de nosso livre arbitrio que 2. amizade c a afei- a0. E filo digo isvo porque nao tenha tido a Oportunidade de conheter 9 que de melhor pode haver como amizade familiar, porquanto meu pai fol @ methor dos pai Sente, ¢ assim permancceu até a mais avan: gada velhice, Nossa familia cra reputada pela exceléncia das relagies nics pais ¢ fithos.¢ a sonc6rdia entre irmios era nicla exemplar: “conhecido cu mesmo pelo amor paternal que ediquei a meus irmios"?°*. Nossa afeigao pelas mulheres, embora pro: veniente de nossa escolha, nto poderia compa. Fare 4 amizade nem substitul ta, Nos scus impulsos, confesso-0: “pois somos também eonhecides da deusa que mistura um doce amargor As suas preocupagdes”?® ", cla é mais ativa, mais aguda, mais Aspera;é uma chama tomerdria © volivel, agitada ¢ veraétily chama febril, sujeita a intermiténcias de temperatura ¢ que s6 nos prende por uma parte de nds, O calor da amizade estende:se a todo 0 nosso ser; € geral ¢ igual; temperada ¢ serena; sobe: Fanamente suave ¢ delicada, nada tendo de ds- pero tem de excessive. O amor é antes de mais nada um desejo violento do qué nos estapa: como 0 cagador perseguindo a lebre, no Frio © na calor, por montanhas ¢ vales; desde. nha-a ao aleangi-la ¢ sé a deseja enquanto a persegue na fuga”?? #, 2°* Horicio: 395 Catulo, 308 Arioato. ENSAIOS —I 93. ‘Quando o amor reveste as formas da amiza- de, 9.que_ocorre quando se estabelecs uma concordancia: das_vontades, ele st es7ai ov definha. O gozo apaga-o, porque seu. obctivo & Carnal, ea saciedade o extingue. A amizade, 49 contrario, cresce com o descjo que dela temos; eleva'se, dasenvolve-se ese amplia na freqlientagao, porque € de esséncia expiritual € @ sla pratiea apura a alma, Juntamente com essa perfeita amizade, conheci outrora essa afeigdes passageiras acerca das quais nao fala Tei porquanto as descrevem demasiado bem estes versos??’. Estas duas paixdes, eu experimentei simultaneamente, sem as escon- der_uma da outra, mas sem que jamais tam ouco houvesse competicao entre elias: ch de nobreca, Manteve-sc sempre a primeira nat regides clevadas, olhando desdenhosamente para 4 outra, que, quase invisivel, pairava muito mais baixe. Quanto ao casaments, além de ser um negd- ‘cio 'em que nossa liberdade se restringe as pi meiras gestbes © cuja duragao indeterminada ‘os & imposta, conclui-se geralmente em vista de outros objetivos e mil ¢ um incidentesectra nhos ¢ imprevisiveis se misturam a ele, o que basta pura perturbar o curso da mais viva afei so ¢ romper o fio a que elit se prends, Ao Passo que, quando se trata.de amizade, nada intervém sendo ela ¢ ela unicamente. A tanto St acreseenta no estacem, em geral, as mulhe- Fes. em condigdes de partivipar de conversas trocas de idéias, por assim dizer fecessdrias & Pratica dessas relagdes devordem tio elevada que a amizade cria; a alma delas parece care- cer do vigor indispensivel para sustentar 0 abrago apertado desse sentimento de duragiio iijmitada ¢ que tio fortemente nos une. Por certo, se s¢ pudesse formar com uma mulher, livre ¢ voluntariamente, semelhante ligagao, em que nie apenas a alma provasse Plena satisfagio mas também o corpo eacon- trasse scu prazer, em que cada qual assim se entregasse por inteiro. a amizade seria mais Perleita ¢ total; mas nio hi exemplo de mulher que a tanto tenha chegado e, de comum acar- do, todas as escolas filosdficas da antiguidade coneluirum ser isso impossivel. | Esse outro genero de licenciasidade contra.a natureza que era permitida entre os -ansgos, Mas que fossos costumes reprovam com Fazio, exiginds como exigia certa diferenza de 22" © periodo & confuse, Thibaudet not “sonetos dé La Boétic”, mas’ Michaut interpreta: “estes versos que acabo de citar" e que seriam tanto os de Ariosio. Na impossibilidade de um eselarecimenta prégiso, respeitamos a Tetra do texto, (edo) idade e papéis diferentes, nao atendia muito mais a0 entendimento perfeito e 4 conformi dade de sentimentos a que a amizade aspira “Que significa afinal esse amor de amizade? Por que nao se ama de amor nem um adoles- eente felo nes um belo anciao?"?°* Endo me desmentirio os filoséfos da Academia, p tomo de empréstimo sua prdpria deserigao: esse delirio, dizem eles, inspirado pelo filho de ‘Vénus, que desde logo se apodcra do amante Yaz, com que se entregue, sobre a flor de moc dade a qué se afeigoou, aos gestos mais extra- vagantvs € apaixonados que pode insullar um ardor excessivo, era simplesmente provocado pela beleza das formas exteriores ¢ uma falsa semlhanga com o ata do amor. Nao era pelo Espirito que 0 adolescente, objeto dessa paixo, Podia inspiri-lo, ndo estava em condipses de Mmostriv-lo. porque joven demais ¢ em vias de desenvolvimento. Se esses transportes tinham por objeto um individuo de sentimentos vulga- Fes. dinheiro, presentes, honrarias, ¢ outros favores igualmente pouco recomendaveis c que, de resto, tais fildsofos condenavam, eram 08 meios postos em pritica para vencer quais quer resisténcias; se o individuo era de cardter ‘mais clevado, faziam-se também os meios mais honrasos: ensinamentos filosdficos que pre Pugnavam respeito a religiio, a abediéncia as leis, © devoramento a patria até 0 sacrificio da Vida, a coragem, a subedoria, a justiga, Era entdo pelas gracas do espirito ¢ a elevacio da alma, compensando a belera fisica jd gasta, que © amante procurava ser aceito por agucle 4 quem propunha uma espécie de associagio mental ma esperanca de acordo mais sério © duradouro. Realizada a ligagio, ocorria um momento em que 0 espirito acordava no ser aniado sob a influéneia das qualidades morais do amante. Um tal resultado no era imedinto, pois nossos fil6sofos ndo impunham ao aman: (e nenhum limite de tempo e the deixavam toda latitude para alcangar seus fins, admitindo que tais condigses cram ainda mais normais no ob- Jeto da afeigao, porquanto: descobrir naquele com quem s@ ligava e3sas qualidades que cons- itulam uma beleza escondida e ser por elas seduzido era coisa longa e diffeil, O desejo de uma concepgao espiritual devia ser © princi pal: a beleza fisica nao passaria de acidenie. No amante © contritrio era 0 certo ¢ por isso davam 0s [ilésofos preferéncia ao papel do amado ¢ pensavam que assim quisessem os deuses, Daj a censura ao poeta Esquilo que invertera esses papéis nos amores de Aquiles ¢ Patroclo, datido o papel de amante a Aquiles, © qual imberbe ¢ adolescente fora o mais belo 308 Cicero, og MONTAIGNE dos gregos. Desta ligayiie moral ¢ fisica, eda afeigao dela decorrente, elemento essencial confessivel, diziam eles que resultavam conse- qiéncias muito tteis tanto para os interessados -como para o pais. Que contribuiam artes de mais nada para 0 fortalesimento da nagzo que acvilava 0 costume, © se conslituta em princi pal defesa da justiga e da liberdade, como.¢ testemunhavam os salutares amores de Har. modio © Aristogiton. Dai, tacharem-na de di nna, nio tendo sido hostilizada sendg pelos tira. nos ¢ a covardia do pore, Todavia, pode-se alegar em favor da Acade- nla 0 fato de que tais amores acabavam por se tornar amizadcs. 0 que sé adapta bastan:e bem fi definigta que os estdicox dio do. amor: » deseo de aleangar.a amizade ce uma ss00.que Nos alrai pela beleza”??*, Volto & minha tese que diz respeito a uma amizade mais natural € estimavel: “A amizade atinge sus irradiagao total na maturidade da dude € do espirieo™? 8, Em suma, iss0 4 que chamamos comumente amigo ¢ amizade nao passam de ligagtics fami liares, teavadas ao sabor da oportunidade edo interesse © por meio dis quaiy nossas almas se entretém. Na amizade a que me refiro®*", as almas entrosam-se © se confundem em ums iinica alma, tio unidas uma Q outra que nao se distinguem, nao se thes perecendo sequer a linha de demarcagao. Se insistirem pura que ov diga por que o amava, simto que o nao suberia expressar send respondendo: porque era ele; porque ¢ra eu, E mais do que poderia dizer, de uma mane; ra goral eno caso om aprego, imervém em liga ges dessa ratureza uma forga inexplicivel ¢ fatal que eu nlio saberia definir. Nas nos procuravamos antes de nos termox wisi, pelo que ouviamos um acerca do outro, e nascia em bs uma afeigdo em verdade fora de propor gies com o que nos era refatada, no qué vejo Como que um deereto da Providéneia. Adraga- vamio-nos pelos nossos nomes e em noswo pri meiro encontre casual em Bordéus, por oc. sido de uma festa publica ¢ em numerosa companhia, séntimo-nos Lio airaldos um pelo ‘outro, ja 180 prOximos, ja 120 imumos que desde éntio nfo se viram outros tio intimos ‘como nds: La Boétic escreves em Jatim uma sétira que se publicou, na qual justifica ¢ expli: ‘ea como nossa amizade tio cepemtina alcangou Go rapidamente esse grau de perfeicdo. Devia durar Go poueo, formara-se tho tarde ramos ambos homens feitos ¢ ele um poueo mais 39° Cicero. 31 Cicero. 11) Aamizade com La Bostic. ‘velho do que eu) que no havia tempo a perder ¢ nfo podia essa amizade tomar por modelo ‘outras amizades banais © moles que sio nebes- sariamente precedidas de freqientacao m ‘ou menos prolongada. A nossa foi iniea no pé- nero ¢ deve-sc ti0-tomente a si priprin. Nao ‘ogorreu em conseqiéncia de um fate especi fico, ou de dois, de trés ou de mil; a ela fomos levados por nao sei que atragao total, a qual vem se astenhateands de nossas vontades as impeliu a um impulso sinaultineo, ¢-irresistivel de ye perderem uma na ouira, de:se fundirem cm uma 56. E digo “perderem-se” porque ma Yerdade essa associagao de nossas almay se afeluow sem reserva de espécie alguma; nada tinhamoy mais que nos pertencesse pessoul ‘mente, que fosse dete ou meu. Quando. apos. a condlenagao de Tibérid Graco. cm presenga dos cénsules romanos que intencavam process contra as que 0 haviar acompanhada, perguntow Lélio « Caiy Bibs: . 0 mais intitd amigo do condenado, até que ponto teria acedido as solicitagdes de Graco, respondeu Ihe Bidssio: — *At6 9 firm.” “Como até o fim? E se houvesse mandado incendiar os templos?” — “Jamais o houvera feito,” — “Mas se 0 fizesse?” — “Eu obedece ria.” Amigo de Graco em wda a forga do termo. como no-lo dizem os historiadores, nao temia ofender 05 cdnsules com uma resposta ouisada © nije queria que peasassem nao ter ele absoluta eertezn da vontade de sew amigo, ‘Os que consideram essa respasta sediciosa nao Compreendem 0 ascendente que ele exercia sobre tal voniade, @ conhecimento que dela tinha ¢ a Seguranga do que podia ser. Nao con: seguem entender esse mistério: Graco ¢ ele éram amigos ¢ mais amigos do que eidadiios, ¢ mais do que amigos ou inimigos de seu pais, Sua ambig3o, seus projets. subversivas nham depois dx amizade; tinham-se dado inieiramente um ag outro, suas vontades mar ehavam Indo a lado. Imaginai-os guiados pela ude © a razio — nfo poderia ser de outro jeito — e convireisem que a resposta de Bl6s- sio foi a que dovia ser. Se tivesscm divergido em sua agdes, nao teriam sido amigos um do outro, da maneira por que comprecndo a ami- zade, Ademais, eta resposta nao significa muito mais do que se eu afirmasse que, em me vindo a mim mesmo vontade de matar minha fillva, eu o Faria, Tss0 no quer dizer que seme Thante idéia esteja Has minhas intengdes, pois ngo duvide um sé instante de meu dominio sobre 4 minha vontade, como nao ponko em livida a deste meu amigo. Todos os argumen tos do mundo nao me tirardo a certeza que tenho de suas intengies ¢ de sua maneira de pensar, Nenhuma de suas ages poderia ser-me ENSAIOS— 1 33 apresentada sem que de imediato lhe perce- besse 0 mévcl. Nossas almas Caminharam (30 completamente unidas, tomadas uma pela ‘outra de tao ardente altigao, essa afeigio que penetra é 1é no fundo de nés mesmos. cue nao somente eu conhecia a'sua como a minha, mas teria, nas questies de meu interesse pessoal, ‘mais confianga neie do que em mim mesmo. Naa se ponham no mesmo plano as amiza- des comuns; conhego-as tio bem quanto qual quer outro ¢ algumas das mais perfeitas no se nero, mas seria um erro confundir-lhes as regras. Nessas outras amizades ha sempre que segurar as rédeas c caminhar com prudéncia: 0 nd da uniao nao é de tal salidez que no 5 deva desconfiar dele. “Amai”, dizia Quilon, “como se tivésseis urn dia que odiar, odiai como se tivésseis de amar.” Este principio, aborinavel no caso de uma amizade exclusiva ‘que fos possua por inteira, & salutar quando se trata descas amizades verificavels no cu habitual da existéncia © as quais s¢ aplicam eslas palavras de Aristoteles: “O meus amigos, um. amigo € coisa que nao existe, Fnire amigos, unidos por ve nobre sent mento, 08 servigos ¢ favores, elementos essen ciais ds outras amizudes, mao enteam er linha de conta & isso porque as vontades intima mente fundidas so uma %. vontade. Assim some a afeigéio que tenho por mim nao se am plia com um servigo que preste a mim nesmo fembora os estdicos stfirmem 0 contririo); ASKIM COMG N&O sou grate a mim mesmo do ‘servigo prestado por mim mesmo, assim tam- bém a unio de inis amigos atinge tal perfeigao. gue os leva a perder a idgia de se deverem al guma coisa, ¢ odiar ¢ rechayar toda: eoiay pulavras que tendem a estabelecer uma divisio ou diferenga, como 0 favor, obrigagio, reco: nhecimento, pedido, agradecimento ¢ outrax Efetivamence, sm tudo Thes sendy eomum, vor tade, pensamento, mancira de ver, bens, mu- theres, filhos, honra c até a vida, € em procu- rando ser apenas uma alma em dois corpos, na expressio muito certa de AristGteles, nada se podem pedir ou dar, Eis por que os legistado: revs som o fito de emprestar ao cusamen.9 uma ‘aga semethanga.com essa ligagio de esséncia diving, proibem as. doagies entee. marido ¢ mulher, tentando assim levar-nos..a entender que © que ¢ de cada um deve ser de ambos: e gue nada do que thes pertence se pode dividir bu atibuir pessoalmente a um dos cdnjuges. Se nessa amizade a que me retire, um pides st dar alguma coisa a0 outta, o benfeitor & que seria o fsvorecide, Colocando ambos acima de tudo a [elicidade de obscquiar © outro, quem da a seu amigo a oportunidade de faré-lo & quem se mostra mals generoso, pois Ihe outor- Ba a satisfagdo de realizar © que mais the apraz. Quando © filGsofo Didgenes precisava de dinheito dizia que ia reclama-Io dos amigos. = ndo que Ihes ia pedir. A fim de exemplificar som um fato ese estado de alma, vou apelar para 05 antigos.\O corintiano Eudamidas tinha dois amigos: Charixénio de Licion e Areteu de Corinto. Era pobre e eles ricos. As vésperas de morrer, assim redigiu seu testamento: “Lego 2 Arcicu o cwidado de tomar conta de minha mie © suprirthe as necessidades durante a velhice: a Charixénio a obrigagao de desposar minha filha e constituir-the um dote tao eleva- do quanto possivel. No caso em que um defes venha @ morrer, lego sua parte a0 outro.” Os Primsiros que viram_o-tcstamento._ muito gagoaram dele, mas os hetdeiros o aceitaram om, uma alegria espantosa, Vindo a falecer Charixénio cinco dius depois, Areteu. substi (wit-@ ma parte que the cabia e tratou cuidado samente do sustento da mie; ¢, clevando-se seu Patrimonio a cinco (alentos, deu dois © meio & sug propria fitha, que era filha Gs a € dois meio de dote it fiiha de Eudimidas. Eas easou ‘iumbax no mesmo dia. Este excmplo seria perfeito sem o niimero de amigos, pois cssa perfeita amizade ¢ indivisi- vel, Cada qual se entrega tao inteiramnente a0 outro que nada resta por dividir. Ao conteatio, Jamcnta nao ser duplo. ou no tor Viitiaa almas para as entregar todas a0 mesmo, As amizades comuns podem dividir-~ se: pode-se apreciar a beleza cm certo. amigo. ¢ outro 0 bom genio, Num a liberalidade, now fro 9 modo por que se conduz como pai, ¢ cm outro ainda sua afeigio fraternal, etc. Mas 95a amizade que nos cnche a alma ca domina no pode subdividir-se. Se temos dois amigos ambos ao mesmo tempo pedem socorro, a ‘quem ascudiremos? Se solicitam favores anta- gOnicos, qual deles atenderemos? Se um nos exige siléncio accrca de alguma coisa que inte ressa ao outro, que faremos? Com um amigo nico que ocupe em nossa vida lugar prepon derante estamos desobrigados de tudo. O segredo que jurei no comunicar a ninguém, OSs, Sem ser perjuro, comunica-lo a quem nao € outro sendo cu mesmo. J € grande mila gre dobrar-se assim, Os qué falam de triplicar xe nao Ihe percebem a grandeza. Nada que possuil seu semethante & extrema. Quem supe que, tendo dois amigos ama tanto um quanto 0 outro, ¢ tanto quanto sc amam entre sie quan. walmente, imagina ser possivel multiplicar ¢ tcansformar ém confraria essa coisa Giniea © homogénes (30 difieil de encon rar no mundo. A hisiéria de Eudamidas 0 confirma: emprega seus amigos segundo suns necessidades ¢ com isso thes outorga um favor 96 MONTAIGNE qye testemunhs sua amizade para com cles; da-lhes generosamente os meios de lhe serem fiteis ea afeieao que thes dedica & muito maior ainda quea de Arete, Em suma, trata-se-de sensagdes incompreen- siveis a quem nao as sentiu € que faze com que eu aprecie tanto a resposta daquele jovem soldado 4 quem Ciro perguntava quante que- rin pelo cavalo com 0 qual acabara de ganhar uma corrida, ¢ seo trocaria por um teino: “Seguramente nao. senhor, ¢ no entanto eu 0 daria de hom grado se com isso obtivesse a amizade de um homem gue eu sousiderasve digno de ser meu amigo.” E estava certo a0 dizer “se, pois se encontramos facilmenie ho- mens aptos a ttavar conosco relagdes superfi- ciais, 0 mesmo no se verifica quando procura- mos uma intimidade sem reservas. E preciso entdio que tudo seje limpido ¢ oferega segu- Fanga (otal. No que concerne as ligagées qué se susten- tam por um %6 ponto. basta atentar para 9 que & suscetivel de comprometer a solider desse ponto. Nao me importa a religifio de meu mé- digo ou de meu advogado, porquanto nada tem a Ver com os servigos que deles espero. Assim ponso em relacio 4 minha criadagem. No me informo acerca da castidade de um lecaio, quero saber somente se ¢ eficlente; se precise de um palafreneito nlio me preocupo em verifi- car se € jogador e sim se nao é imbecil: pouco se me da seja meu cozinheizo um desborado, conquanto saiba cozinhar; alids; nfio me meto ensinar as genies © que devem fazer; outros s€ encarregam disso, Digo simplesmenie 0 que fago: “Assim procedo: quanto a és, Fazel como entendercles”? 2 A fainiliaridade da mesa associo # pessoa Sgradavel, nao © sabio; para o leito procuro a beleza e no a bondade; para conversar. 0 hemem competente, ainda que careca “de nobreza de alma, E em tudo penso da mesma maneira. Assim COMO aquele que foi encontrado montado a cavalo numa vassoura brineando com os filhos, pedia a quem o surpreendera que nada dissesse a ninguém antes de ser pai, Ha convicgia de que os sentimentos, que uma tal qualidade faria nascer nele, 0 tornariam mais apto a.entender a infantilidade, gostaria de me dirigir aqui somentc a pessoas que te nham conhecido aquilo de que falo, na igno. rando eu, embora, que uma tal amicade & rara © ndo esperando portanto deparar com um bom juiz. Ax proprias obras que a csse respeit os legou a antiguidade parecem-me insossas, Se comparadas com os sentimentos que experi Mento € cujos efeitos ultrapassam alé os pre- 218 Teréncio, ceitos dos filésofos:“‘Enquanto for clarividente, ndo cneontrarci nada comparvel a um terno imo" Dizia Menandro que podia estimar-s¢ feliz quem tivesse encontrads a sombra de um amigo. E tinha por certo razto de o dizer mesmo que houvesse conhecido tal felividade. Se. com efeito, comparo o resto de minha vida, a qual gragas a Deus me fot suave e facil, isen’ ‘ta de alligoes penosas (a excegdo da perda de meu amigo), cheia de teanqiilidade de espirito, tendo-me comtentado com as vantagens que devo a natureza ¢ a minha condi¢Aosocial sem procurar outras: se comparo minha vida intei- fa aos quatro anos durante os quais me foi dado gozar a companhia tio amena de La Boétie, ela no passa de fumaga. E uma noite escura © aborrecida. Desde o din em que 0 perdi, “dia infeliz, mas que honrarei sempre. porquanto tal foi a vontade dos Deuses”2* *, nao faco senio me arrastar melancolicamente, ‘Os proprios prazeres que se me oferecem, em ver de me consolar ampliam a tristeza que sinto da perda, pois éramos de metade em tudo © parece, hoje, que Ihe sonego a sua parte: “assim decidi nat mais participar de nenbum Prazer, agora que ja ndo tenho squele com quem tudo dividia"§, Ji me acostumara tao hem a ser sempre dois gue me parece no ser mais senio meio: “como uma morte prematura roubou-me a me thor parte de minha alma, que fazer com a ‘outra? Um 36 € mesmo dia eausou a perda de ambo: Nada fazia, nem um 86 pensa- mento tinha que nao the percebsesse a auséncia, como certamenie, em caso semelhante, eu the faltaria. Porque se me ulisapassava em méritos de twdn espécie © em virtude, também me Sobreexcedia nos deveres da amizade: “Por que se envergonhar? Por que deixar de chorar {go querida alma irmio, como sou infeliz por te haver perdido! Contigo perece Fam de um s6 golpe todas as nossas alegrias ¢ esse encanto que tua suave amizade deitava em minha vida, AO morrer, irmio. desnedagaste toda a minha felicidade; minha alma desceu ao timulo com a tua, Desde que nao és mais, disse adeus ao estudo © a todas as coisas da inteligencia”**. “Nao podere| mais falar-te ouvir‘te? Nunca mais te verei, entio, 6 irm&o mais caro do que a vida! Ah, 20 menos amar- te-ci sempre"?*®, 2"? Horicia, 24 Vigiio. 335 Teréncie, *"* Horacio, m7 Wg. ENSAIOS— I oT Projetara ineluir aqui seu “Discurso sokre a Servidao Voluntaria”; mas esse escrito foi Posteriormente publicado. Os que 0 publica. ram, individuos que procuram perturbar nassa situagao politica atval, ¢ modilicé-la, sem saber se a melhorarao, fizeram-no de ma fe, intercalando-o entre outros eseritos de autoria alheiae concebidos dentro de um mau espirita, Fazio pela qual desisti de mew intento, Nao querendo entretante que sobre a meméria do autor pese a opiniae desfaverdvel de quemmndo © viii de perto nas suas opinibes e dgdes, advir to que este ensaio, que foi compost na sua juventude © tio-somente a titulo de exercicio, Ventila um tema freqientemente tratado nos livros, Nao ponho em divvida que La Boétie pensasse @ qué escrevia, pois era demasiado Consciencioso para mentir, mesmo em se diver. tindo. E sei também que se pudesse escether teria preferide nascer em Veieza a nascer em Sarlac; © com tazio, May obedever & subme- terse as leis sob as quais vivia era um pringi- pio que, para ele, primava entre os demais. Nunca houve melhor cidadio: ninguém dese jou mais a tranquilidade de seu pais. nem foi mais inimigo das perturbagdes © das idéias hovas que ocorreram em scu tempo. Muito mais sedcvotaraa extingui-ias do que afornecer argumantos gue thes favorecessem a propaga- cio. Seu espirito era moidado sobre 0 modelo de séeulos diferentes dos nossos. Em troca dessa obra apresentarei outra, mais livre e leve, elaborada nessa mesma fase de sua vida???, 28 Os sonetow de La Boétie, que Montaigne apee send no capitulo seguinte, podem ser ides em alza- mas edigdes dos “Ensaias". Nio os reproduz a edi- io de La Pleiude. (. da T Capituco XXIX Este capitulo comporta os vinte e nove sone- tos de La Boétie, que Montaigne dedica a Mme de Grammont, Condesa de Guiche, Nao figu- ra — salvo a dedicatGria, de neohum interssse sein 08 sonelos — na edigdo de La Pléiade, corganizada ¢ anotatla por Thibaudet, ¢ de cujo texto, por sero mais fiel, nos vimos valendo esta tradugio, Deixamos, portanto, igual mente, de inclui-lo, Nido T. CapiruLo XXX Da moderagao ‘Como se tivéssemos infeccioso 0 tato, ocor- Te-NOs Corromper:em as manuseando, as coisas que, em si, sao belas ¢ boas. A viriude pode tomar-se vicio se ao seu exercicio nos dedica- mos com demasiada avides ¢ violéncia. E Jogam com as palayras.os que dizem niio haver excesso na virlude porque no ha virtude onde ha excesso: “Nao € sabio o sibio, nem jusio 0 justo, se seu amor Avirtude € exagerado??", ‘Trata-se de uma suuileza flosifica, Pods-se dedicar imoderado amor a virtude ¢ ser exces- Sivo €m wine causa justa. Preconiza o apdsto- 38) Horieio: Jo. a esse respeito, um equilibrio razodvel: **Niio sejais mais comportados do que o neces- sirio; ponde alguma sobriedade no bom comportamento”?**, Vi um dos grandes deste ‘mundo prejudicar a religiao por se entregar Priticas religiosas incompativeis com a sua Condigto social, Aprecio os earacteres mode- rados © prudems: ultrapassar 2 medida, ainda tido. do bem, é coisa que me espanta, me incomoda, ¢ a que nao; chamar. Mais estranha do que justa se me afi- gura a conduta da mae de Pausanias que foi a 322 Sio Paulo. 98 MONTAIGNE primeira a denuncii-lo © a contribuir com a primeira pedra para a morte do fllio"?3; nem tampoueo aprovo a altitude do ditador Pusti- mio mandando mater o filho que, no entu siasmo da mocidade, saira das fileiras para atacar o inimigo, com felicidade alias. Nao me sinto propenso nem a aconsellar nem a imitar '@o barbara virlude, © tio cara. Falha o archeiro que ulttapassa 0 alvo da mesma maneira que aquele que 0 nio alcangs. Minha vista se perturba se de repente enfrenta uma luz violenta, © entio veo tdo pouso como na escuridBo, Calicles diz, em Platiio, que a filosofia leva. da ao extremo & prejudicial ¢ aconsslia que no nos dediquemos a ela além dos limites de sua utilidade, Praticada com moderapao ¢ agradavel ¢ cOmoda; mas se ultrapassa lais imites, ela acaba tornando 0 homem inso- vel ¢ viciado, desdenhoso da religiio © das que nos governam, inimigo da boa conver sagio, dos prazeres permitidos, incapaz de exercer fungdes piblicas, de prestar sacorro a alguém © a si proprio. bom para ser impune mente esbofeteado. Calicles tem raze: levada ao cxagero, a filosofia cscraviza nossa fran queza natural ¢, mediante sutilezas importu- nas, nos desvia do belo caminhe que a natu Teza nos traca. A amizade que dedicamos as nossas muthe res. ¢ Jegitima. Nao deixa entretanto a teologia de fred-la ¢ de restringi-ta, Creio ter lido outro Fa em Santo Tomés um trecho em que, entre outras razdes alegadas contra © casarmento de parentes proximos, havia esta: s possibilidade de ser_a amizade, por uma mulher nessas sondigdes, imoderada, Porque sc i afcigio inteira, perfeita ¢ natural do maride pela mu- Iber se acrescenta ainda a do parentesea, ¢ de se temer que a sobrecargn atraste 0 homem ara além do razoave), AS clencias que regem os costumes, como a teologia ¢ 9 filosofia, tudo controlam. Nao ha alo privado e secret que nio conhegan © que escape A sua jurisdigao. Errados os que ihe censuram tal ingeréncia, pois nisso se asseme- tham as mulheres que se entregam a todas as fantasias mas se envergonham de se mostrar ap médica. Que os maridos — se ainda exis tom demasiado propentos as relagdes conju gais — saibam que esses prazeres sao reprova- dos quando nao hit moderaco © que assim tambem podem pecar por licenciosidade ¢ désregramento tal qual nos casos de relagdes 323 A mie de Pausinins depositara um tjoto dian- te do tomplo de Mincrva onde se refugisra o rei seu filho, Os lavedeminies, aprovando-Ine o julzamento simbslice, ergueram muros em torno do refiigio ¢ assim forgaram o prisioneiro « morrer de fone, ilegitimas. As caricins vergonhosas a que a Paixdo pode impelir no ardor dos primeiros transportes, em se tratando de nossas mulhe- Fes, $40 dO apenas indecentes mas ainda prejudiciais. Que nfo seja, a0 menos, por osso intermédio que aprendam o despudor. Para as nossas nevessidades nao precisam scr mais sabidas do que sto. Quanto a mim, nunca agi senao de maneira mais simples natural, ‘© casamento é uma ligagio consageada pela religizo © 0 respeito; cis por que o prazer que cle aufcrimos deve ser um prazer recatado, ério, até Certo ponto austero; deve scr um ato de volipia particularmente discreto e conseien 0. Sendo o seu objetivo essencial a procria- ‘gio, hé quem duvide de sua legitimidade se nao. tivermos @ esperanga de um fruto, como no caso de estar a mulher grdvida ou ser dema- siado idesa. Trata-se entio de um homicidio, segundo Plat Em eérios povos, em particular entre os muguimanos, € abomindvel ter relagdex xe xuais com uma mulher gravida. E ha quem reprove igualmente qualquer aproximagio com a mulher nas épocas de suas regras. Zend bia somente dave satisfagdio ao maride em vista da concepgiio. Deixava-o cm seguida divertir-se com outras durante a gravider @ 36 © aceitava novamente depois do parto. Eis um helo excmplo de casamento. E provavel que Plato tenha eolhida em algum poeta esfiimado de prazeres a seguinte historia: Jupiter, de uma fetta, andava em tal estado de excitacio que, sem esperar que sua mulher alcangasse 0 leito, a possuiu no chao mesmo, ¢ com a violéncia do prazer esqueccu ay grandes & importantes resolugdes que aca- bara de tomar em sua corte veleste, de acordo com 0s outros deuses: ¢ vangloriava-se do Fato dizendo que a xensagio de entio fora tio gran de quanto 9 que tivern ao deavingind-la tix escondidas dos pis. Os reis da Pérsia ncmitiam que suas mulhe res Ihes fizessem companhia nos festins, mas quando ¢ vinho comegava a esquentar ox espi- Fitos ¢ que nao podiam mais conter-se, manda ‘vam-nas de volta 4 seus apartamentos a fim de que 120 compartilhassem dos apetites imode- rados, ¢ determinavam que fossem substituidas por cortesiis, as quais nao deviam 0 mesmo respeito. Nao so decentes para todas as pessoas os mesmos prazeres. Epaminondas mandara en- carcerar um jovem debochado; pediu-Ihe Peld- pidas que o soltasse. Epaminondas recusou-o; sedeu entcctanto & solicitagiio da joven aman: te do rapaz, dizendo que tal satisiagao xe dava @ uma amiga € ndo a um capita. Séfocles, quando pretor juntamente com Péricles, disse ENSAIOS — ‘90 ver passar um belo rapaz: Oh! que lindo jevem! Ao que Péricles atslhou: uma tal exclamagao seria permitida a qualquer um Tenos a um pretor, pois o magistrado deve ser casto € nao 33 nas ages come nos alhares. © Imperador Elio Vero respondeu & sua mulher, que se queixava de que cle a abando. nasse para ter relagées alhures: que o fazia porque era consciencioso, porquanto 0 casa mento é ato digno ¢ honroso ¢ nao de lasciva concupiseéncia. Nossa historia eclesiistica conservou ¢ honrdu a meméria daquela mullier que repudiow 9 marido nao querendo.prestar se a suas caricias insolentes ¢ deseegradat. Em suma, nao ba prazer. por mais te ja censuravel cm seus exces “bem dizer hamem € um pobre animal, apenas um prazer, um iinico cujo gozo pleno © puro anatureza Ihe concede, ¢ sua razio teeo- menda que nao xbuse dele. Nao se acha b: ‘ante mi serdvel, & preciso | ainda et lo racio- ‘Cini _¢_o csiudo aumente— 3 i:

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