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Georg Lukécs, flésofo e critico literdrio hiingaro de origem judaica, nasceu em 13 de abril de 1885 em Budapeste, onde morreu em 1970. Apés 0 doutorado em letras em 1909, vai para Heidelberg, onde prossegue suas pesquisas. Em 1917, volta & Hungria, Adere 20 partido comunista em 1918, tornando-se comissério do povo pa- ra Educacéo Nacional na Comuna de 1918. Depois de emigrar para Viena e Moscou, volta & Hungria em 1945, onde € nomeado pro- fessor da Universidade de Budapeste e membro da Academia de Ciéncias. Violentamente criticado em 1949 em razdo de suas posi- Ges ideol6gicas, abandona toda atividade publica até outubro de 1956, quando assume o Ministério da Educagao Nacional no go: verno revolucionério de Imre Nagy. Deportado para a Roménia, autorizado, alguns meses mais tarde, a voltar para a Hungria, onde se dedica até sua morte a atividade cientifica. Lukacs é geralmente considerado o fundador da estética marxista. Ele aplicou suas teo- rias ao estudo da obra de escritores como Balzac, Stendhal, Zola, Goethe, Thomas Mann, Tolsti, Dickens etc. Suas obras mais impor- tantes so: A alma e suas formas (1910), A teoria do romance (1920), Historia e consciéncia de classe (1923), O romance istérico (1947), Ba 226, Stendhal, Zola (1949), A destituigo da razio (1954), Especifici dade da estética (1965). Georg Lukacs Hist6ria e Consciéncia de Classe Estudos sobre a dialética marxista Tradugéo RODNEINASCIMENTO Revisio da tradugio KARINA JANNINI Martins Fontes SGo Paulo 2003 an obs fo pica oan om sei com tle Coppin © 2003, Lara Mari Fontes Era Lala ‘So Pal, pr presen eae, sae de 008 Acompantamento eter Leia Aare dos Sater Revises eafices Produ grea ak Goa. se Georg Laks! eo Redes Nine vi Big ISHN 336192541 1. Clues wis 2. Coneiéec de cle 3 Metin Indies para cate Stemi 1. Const dec Socal Secioog 308.5 Todos os dveits desta edicdo paraalngua portuguesa reservados Livraria Martins Fontes Bdiora Lida. ‘ua Consethero Ramalho, £30340 01325.000 Sao Paulo SP Brast Tel. (11) 32413677 Fax (1) 31086867 mail: infoemartinsfontescom.br hipww-martnsfontes com br SUMARIO Nota a esta edigfo vil Prefitcio (1967) 1 Preficio (1922). 51 O que & marxismo ortodoxo?. 63 Rosa Luxemburgo como marxista ... 105 Consciéncia de classe . 133 A reificacao e a consciéncia do proletariado....... 193 1. O fendmeno da reificagao 194 I. As antinomias do pensamento burgués....... 240 IML. C ponto de vista do proletariado.. 308 A mudanca de fungio do materialismo histérico. 413 465 Legalidade e ilegalidade Notas criticas sobre a Critica da Revolugio Russa, de Rosa Luxemburgo Observagdes metodolégicas sobre a questéo da organizacai eens?) Indice onoméstico .... 595 A Gertrud Borstieber NOTA A ESTA EDICAO A edicao original em que se baseia esta traducéo segue o texto da edicdo Georg Lukacs, Obras Completas, vol. 2, Hist6ria e consciéncia de classe, Primeiros escritos II, Newwied: Hermann Luchterhand Verlag, 1968. Ambas as edicdes permanecem inalteradas em relacao a primei- 1a, publicada pela Malik Verlag, Berlim, 1923 Para esta edicéo (da colecéo Luchterhand), as re- feréncias de Lukacs, em notas de rodapé, aos textos de Marx e Engels foram organizadas pela primeira vez de acordo com a edigao Kar! Marx und Friedrich Engels, Werke [Karl Marx e Friedrich Engels, Obras], organi- zada pelo Instituto de marxismo-leninismo junto ao Co- mité Central (ZK) do Partido Socialista Unificado da Alemanha (SED), Berlim, 1957 ss. PREFACIO (1967) Num antigo esboco autobiogréfico de 1933! cha- mei o meu primeiro percurso intelectual de “Meu cami- nho para Marx”. Os escritos reunidos neste volume? 1m: Georg Luis 2um siebzigsten Geburtstag, Aufbau, Berlim, 1958, pp. 225-31; reimpresso emG. Lukscs, Schriften zu Ideologie und Politik, P. Lid (org.), Luchterhand, Neuwied, 1967, pp. 323-9. 2. Frdhschrifien II, Werkausgabe, Neuwied, 1968, vol. 2. Esse volume, para o qual o prefécio foi redigido, contém ainda, além de “Historia e con ciéncia ce classe”, 08 seguintes ensaios: “Tatik und Ethik” ["Ttica e ét ca] “Rede auf dem Kongress der Jungarbeiter” {"Discurso por ocasio do congresso de jovens operdrios"I, “Rechtsordnung und Gewalt” [“Or- dem juridica e poder’|, “Die Rolle der Moral in der kommunistische Pro- duktion’ ("O papel da moral na produgéo comunista”], “Zur Frage des Parlamentarismus” ("Sobre a questo do parlamentarismo”|, “Die mora- lische Sendung der kommunistischen Partei” (“A missio moral do Parti- ‘do Comunista”], "Opportunismas und Putschismus” [“Oportunismo € golpismo”], “Die Krise des Syndikalismus in Italien” [“A crise do sindica~ lismo ne Itélia” “Zur Frage der Bildungsarbeit” ["Sobre a questdo do tra~ balho de formagio"|, “Spontaneitat der Massen - Aktivitit der Partei” ['Esportaneidade das massas ~ Atividade do partido"l, “Onganisatoris- che Fragen der revolutionaren Initiative” ["Questdes organizacionais da iniciativa revolucionéria”, “Noch einmal Ilusionspolitik” ("Mais uma 2 GEORG LUKACS abrangem meus anos de aprendizado do marxismo. Ao publicar os documentos mais importantes dessa época (1918-1930), minha intencdo é justamente enfatizar seu carater experimental, e de modo algum conferir-lhes um significado atual na disputa presente em torno do autén- tico marxismo. Pois, diante da grande incerteza que rei- na hoje quanto compreensao do seu contetido essencial e duradouro e do seu método permanente, essa clara delimitagao é um mandamento da integridade intelec- tual. Por outro lado, as tentativas de compreender corre- tamente a esséncia do marxismo podem, ainda hoje, ter uma certa importancia documental, se se adotar um com- portamento suficientemente critico tanto em relagao a essas tentativas como em relacdo a situagao presente. Por isso, os escritos aqui reunidos iluminam nao ape- nas os estagios intelectuais do meu desenvolvimento pessoal, mas mostram, ao mesmo tempo, as etapas do iti- nerério geral, que nao devem ser de todo sem impor- tancia, tomando-se a devida distancia critica, inclusive em relacao ao entendimento da situagao presente e 20 avanco a partir da base fornecida por elas. vez a politica da ilusdo” ,“Lenin~Studie iber den Zusammenhang seiner Gedanker" [“Lénin ~ estudo sobre a coeréncia dos seus pensamentos'” I, “Der Triumph Bersteins” ["O triunfo de Bernstein’), "N. Bucharin Theorie des historischen Materialismus” YN, Bukharin: teoria do materia- lismo hist6rico’l, “Die neue Ausgabe von Lassalles Briefen” “A nova edi- co dascartas de Lassale’I,"K. A. Witfogel: Die Wissenschaft der birger- lichen Gesellschaft” 'K. A. Wittfogel: a céncia da sociedade burguesa’1, “Moses Hess und die Probleme der idealistischen Dialektik” [Moses Hess € 0 problema da dialética idealista”|, “O. Spann: kategorienlehre” [“O. Spann: doutrina das categorias’|, “C. Schmitt: Politische Romantik” (°C. Schmitt: romantismo politico”, “Blum-Thesen” ("Teses de Blum’), HISTORIA F CONSCIENCIA DE CLASSE 3 Naturalmente é impossivel, para mim, caracteri- zar corretamente minha posicao a respeito do marxismo por volta de 1918, sem remeter brevemente a sua pré- historia, Conforme destaquei no esboco autobiografico citado acima, ja no colégio havia lido alguma coisa de Marx. Mais tarde, por volta de 1908, ocupei-me inclu- sive de O capital, a fim de encontrar um fundamento sociol6gico para minha monografia sobre o drama mo- derno®, Nessa época, meu interesse estava voltado para 0 Marx “sociélogo”, visto em grande medida pelas len- tes metodolégicas de Simmel e Max Weber. No periodo da Primeira Guerra Mundial, iniciei novamente os es- tudos sobre Marx, desta vez, porém, guiado por inte- esses filos6ficos gerais e influenciado predominante- mente por Hegel, e nao mais pelos pensadores contem- poraneos. Por certo, esse efeito de Hegel também era con- flitante. Por um lado, Kierkegaard havia desempenhado em minha juventude um papel consideravel; nos anos que antecederam imediatamente a guerra, em Heidel- berg, quis até mesmo tratar em ensaio monografico sua critica a Hegel. Por outro, as contradides das minhas concepcées politicas e sociais levavam-me a uma rela- cao intelectual com 0 sindicalismo, sobretudo com a fi- losofia de G. Sorel. Eu aspirava a ultrapassar o radica- lismo burgués, mas repugnava-me a teoria socialde- mocraia (sobretudo a de Kautsky). Ervin Szabé, lider intelectual da oposicdo hiingara de esquerda no inte- rior da socialdemocracia, despertou meu interesse por Sorel. Durante a guerra, entrei em contato com as obras 3. Entureklungsgeschichte des moderuen Dramas, Budapeste, 1911 (em. ‘ndingare), 2 volumes. 4 GEORG LUKAcs de Rosa Luxemburgo. Disso tudo surgiu um amalga- ma de teorias internamente contraditério que foi deci- sivo para o meu pensamento no perfodo de guerra e nos primeiros anos do pés-guerra. Creio que nos afastarfamos da verdade dos fatos se reduzissemos, “A maneira das ciéncias do espfrito”, as contradigées flagrantes desse periodo a um tinico denominador e construissemos um desenvolvimento in- telectual imanente e organico. Se a Fausto é permitido abrigar duas almas em seu peito, por que uma pessoa normal nao pode apresentar o funcionamento simulta- neo e contraditério de tendéncias intelectuais opostas quando muda de uma classe para outraem meio a uma crise mundial? Pelo menos no que me concerne e até onde posso me recordar desses anos, em meu universo intelectual relativo a esse periodo, encontro, de um lado, tendéncias simultaneas de apropriacao do marxismo e ativismo politico e, de outro, uma intensificagao cons- tante de problematicas éticas puramente idealistas. Aoler os artigos que escrevi nessa época, vejo con- firmada essa simultaneidade de oposigées abruptas. Quando penso, por exemplo, nos ensaios de carter li- terdrio desse perfodo, pouco numerosos e pouco signi- ficativos, considero que muitas vezes excedem em idea- lismo agressivo e paradoxal meus trabalhos anteriores. Mas, ao mesmo tempo, seguem também o processo irre- sistivel de assisnilacdo do marxisio. Se agora veju nesse dualismo desarmonioso a linha fundamental que ca- racteriza minhas idéias nesses anos, nao se deve, a par- tir disso, concluir o extremo oposto, um quadro em pre- to-e-branco, como se um bem revolucionério em luta contra 0s resfduos do mal burgués esgotasse a dinamica HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 5 dessa oposicdo. A passagem de uma classe para uma outra, especificamente para a sua inimiga, é um pro- cesso muito mais complicado. Nele, posso constatar em mim mesmo, retrospectivamente, que a atitude em re- lagio a Hegel, 0 idealismo ético com todos os seus ele- mentos romanticos anticapitalistas também traziam consigo algo de positivo para minha concepgio de mun- do, tal como nasceu dessa crise. Mas isso, naturalmente, apenas depois que esses elementos foram superados como tendéncias dominantes ou simplesmente co-do- minantes e se tornaram — modificados varias vezes em seu fundamento — elementos de uma nova concepgéo do mundo doravante unitdria. Talvez seja este 0 mo- mento de constatar que até mesmo meu conhecimento intimo do mundo capitalista entrou na nova sintese como elemento parcialmente positivo. Nunca incorri no erro de me deixar impressionar pelo mundo capi- talista, o que diversas vezes pude observar em muitos operatios ¢ intelectuais pequeno-burgueses. O édio cheio de desprezo que sentia desde os tempos de in- fancia pela vida no capitalismo preservou-me disso. A confusdo, porém, nem sempre é caos. Ela con- tém tendéncias que, embora algumas vezes possam reforcar temporariamente as contradigées internas, mo- vem-na, em tiltima andlise, para a sua resolugao. A ética, por exemplo, impele a pratica, ao ato e, assim, a politi- ca, Esla, por sua vez, impele & economia, o que leva a um aprofundamento te6rico e, por fim, a filosofia do marxismo. Trata-se, naturalmente, de tendéncias que se desdobram apenas de maneira lenta e irregular. Tal orientagao comecou a se manifestar jé no decorrer da guerre, apés a eclos4o da Revolugdo Russa. A teoria do 6 GEORG LUKACS romance nasceu ainda num estado de desespero geral, tal como descrevi no prefacio a nova edicdot. Nao é de admirar, portanto, que o presente se manifeste nele como 0 estado fichteano do pecado consumado, e a perspectiva de uma safda assuma um caréter pura- mente utdpico e vazio. Somente com a Revolucao Rus- sa inaugurou-se, inclusive para mim, uma perspectiva de futuro na propria realidade; jé com a derrocada do czarismo e ainda mais com a do capitalismo. Nosso co- nhecimento dos fatos e principios era entéo muito re- duzido e pouco confidvel, mas, apesar disso, vislum- bravamos que — finalmente! finalmente! — um caminho para a humanidade sair da guerra e do capitalismo ha- via sido aberto. Obviamente, embora nos lembremos desse entusiasmo, nao devemos embelezar o passado. Eu também vivenciei ~ ¢ refiro-me exclusivamente a mim mesmo —uma curta transic4o: minha tiltima hesi- taco diante da decisdo definitiva e irrevogével levou- me, temporariamente, a uma apologia intelectual fra- cassada, adornada de argumentos abstratos e de mau gosto. A decisao, no entanto, ndo podia ser adiada. O pequeno ensaio Tética e ética revela suas motivacdes humanas internas. Sobre os poucos ensaios do periodo da Republica Soviética htingara e dos seus preparativos nao ha mui- to. que dizer. Estavamos todos muito pouco prepara- dos intelectualmente — inchisive en, talvez. menos ainda do que todos - para dar conta das grandes tarefas que se impunham; procurévamos substituir com entusias- 4.2%ed., Luchterhand, Neuwied, 1963, p.5;como também a3* ed, 1965, HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 7 mo 0 conhecimento e a experiéncia. Menciono apenas um fato muito importante a titulo de ilustracéo: mal conhecfamos a teoria da revolugio de Lénin e os desen- volvimentos essenciais que fizera nessa 4rea do mar- xismo. Nessa época, apenas poucos artigos e panfletos eram traduzidos e acessiveis para nés, e, daqueles que haviam participado da Revolugao Russa, alguns se mos- travam pouco dotados teoricamente (como Szamuely), outros se encontravam fortemente influenciados pela oposicio russa de esquerda (como Béla Kun). Somente quando emigrei para Viena pude tomar conhecimento mais profundo das teorias de Lénin. Desse modo, nes- sa época meu pensamento era permeado por um dua- lismo antitético. Por um lado, nao fui capaz de tomar uma posicdo a principio correta contra os erros opor- tunistas graves e funestos da politica de entdo, por exemplo, contra a solugdo puramente socialdemocrata da questao agraria. Por outro, minhas préprias ten- déncias intelectuais empurravam-me numa direcéo utépica e abstrata no campo da politica cultural. Hoje, quase meio século depois, fico surpreso ao constatar que conseguimos criar nesse dominio coisas relativa- mente duradouras. (Para ficar no campo da teoria, gos- taria de ressaltar que os dois ensaios “O que é marxis- mo ortodoxo?” e “A mudanga de fungao do materialis- mo histérico” ganharam sua primeira versio jé nesse periodo. Embora tenham sido reelaborados para His- toria e consciéncia de classe, mantive sua orientagao fun- damental.) Minha emigracdo para Viena marcou sobretudo inicio de um periodo de estudo, principalmente no que se refere ao contato com as obras de Lénin. Um apren- 8 GEORG LuKAcs dizado que, por certo, nao se desligava em nenhum instante da atividade revolucionéria. Tratava-se, aci- ma de tudo, de revigorar a continuidade do movimen- to operdrio revolucionario na Hungria: era preciso en- contrar palavras de ordem e medidas que parecessem apropriadas para conservar e reforgar sua fisionomia mesmo durante o Terror Branco; refutar as caltinias da ditadura (fossem elas puramente reacionérias ou so- cialdemocratas) e, simultaneamente, encetar uma au- tocritica marxista da ditadura proletéria. Paralelamen- te, fomos levados em Viena pela corrente do movi- mento revolucionrio internacional. Naquele periodo, a imigracdo hingara era talvez a mais numerosa e a mais dividida, mas nao a tinica. Muitos emigrantes dos Balcas e da Poldnia viviam provisoriamente, ou defi- nitivamente, em Viena, que, além disso, era um lugar de passagem internacional, onde tinhamos contatos constantes com comunistas alemdes, franceses, italia- nos etc. Nessas circunstancias, nao é de estranhar que tenha nascido a revista Kommunismus, que durante al- gum tempo se tornou o principal érgéo das correntes de extrema-esquerda na III Internacional. Ao lado de comunistas austriacos, imigrantes htingaros e polacos que constitufam o micleo interno de colaboradores per- manentes, simpatizavam com os seus esforcos a extre- ma-esquerda italiana, como Bordiga e Terracini, e ho- landeses, como Pannekoek e Roland Holst etc. Odualismo das minhas atitudes nao somente atin- giul o seu apogeu nessas circunstancias como também. se cristalizou numa estranha diade de teoria e pratica. Enquanto membro do coletivo interno de Kommunis- mus, participei ativamente da elaboracao de uma linha HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 9 te6rica e politica de “esquerda”. Esta se baseava na conviccdo, ainda muito viva na época, de que a grande onda revoluciondria que em breve deveria conduzir 0 mundo inteiro, ou pelo menos a Europa inteira, ao so- cialismo de maneira alguma passaria por um refluxo apés as derrotas da Finlandia, da Hungria e de Muni que. Acontecimentos como o golpe de estado de Kapp, as ocupagdes de fabricas na Itélia, a guerra entre Unido Soviética e Polénia e até a Agdo de Marco na Alema- nha reforgavam-nos a convicgio de que a revolugéo mundial se aproximava rapidamente, de que em bre- ve todo 0 mundo civilizado se remodelaria totalmen- te. Nacuralmente, quando se fala do sectarismo nos anos 20, nao se deve pensar naquela espécie desenvol- vida pela prética estalinista. Esta pretende, acima de tudo, proteger as relagdes de forca estabelecidas con- tra qualquer reforma. E conservadora nas suas finali- dades e burocratica nos seus métodos. O sectarismo dos anos 20 tinha, pelo contrério, objetivos messiani- cos e utdpicos, e os seus métodos baseavam-se em ten- déncias fortemente antiburocraticas. As duas orienta- Ges s6 tem em comum o nome pelo qual sao designa- das e internamente representam oposigées hostis. (Por certo é verdade que jé na III Internacional Zinoviev e seus discfpulos tinham introduzido habitos burocrati cos, como também é verdade que, durante os seus tl- timos anos de duenga, Lenin estava muito preocupado em encontrar um modo para combater a burocratiza- do crescente e espontinea da Repiiblica Soviética com base na democracia proletéria. Mas nisso também se vé a oposicio entre o sectarismo de hoje e o de entao. Meu ensaio sobre as questdes de organizacio no Parti. 10 GEORG LuKAcs do Hiingaro dirigia-se contra a teoria e a pratica do discipulo de Zinoviev, Béla Kun.) Nossa revista queria servir ao sectarismo messia- nico, elaborando os métodos mais radicais sobre to- das as questdes, proclamando uma ruptura total, em todos os dominios, com todas as instituigées, formas de vida, entre outras coisas, do mundo burgués. Isso con- tribuiria para fomentar na vanguarda, nos partidos co- munistas e nas organizagdes comunistas juvenis uma consciéncia de classe auténtica. Meu ensaio polémico contra a participacao nos parlamentos burgueses é um exemplo tfpico dessa tendéncia. Seu destino — a critica de Lénin — fez com que eu pudesse dar o primeiro pas- 50 na superacio do sectarismo. Lénin apontava para a distingao decisiva, ou melhor, para 0 paradoxo de que uma instituicao pode ser considerada obsoleta do pon- to de vista da hist6ria universal - como 0 Parlamento, que se tornou obsoleto nas maos dos sovietes -, mas nada a impede de participar taticamente da historia; pelo contrario. Essa critica, cujo acerto reconheci ime- diatamente, obrigou-me a vincular minhas perspecti- vas hist6ricas de maneira mais sutil e menos direta & tatica momenténea. Nessa medida, ela significa o int- cio da mudanga nas minhas concepcées, todavia no interior de uma visio de mundo que ainda permanece essencialmente sectéria. Isso se revela um ano depois, quando, embora entrevendo algumas falhas taticas na Acao de Marco, continuei a aprové-la de maneira acri- tica e sectéria como um todo £ precisamente nesse instante que 0 dualismo con- flitante irrompe, tanto objetiva como internamente, em minhas antigas concepgdes politicas e filos6ficas. En- HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE u quanto na vida internacional eu podia experimentar livremente toda a paixio intelectual do meu messia- nismo revolucionario, o movimento comunista que se organizava progressivamente na Hungria me coloca- va diante de decisdes cujas conseqiiéncias gerais e pes- soais, futuras ¢ imediatas, eu tinha de conhecer em pouco tempo e transformar em fundamento de deci- sdes subseqiientes. Obviamente, essa era a minha si- tuagao na Republica Sovistica htingara. E a necessidade de direcionar 0 pensamento nao somente para pers- pectivas messiénicas impunha também algumas deci- ses realistas, tanto no Conselho Popular para Educa- do como na divisdo, por cuja direcdo politica eu era responsdvel. A confrontagdo com os fatos, a obrigacao de examinar aquilo que Lénin chamava de “o proximo elo da corrente”, passaram a ser incomparavelmente mais imediatas e intensas do que antes em minha vida. A aparéncia puramente empirica do contetido de tais decisdes foi 0 que acabou por provocar vastas conse- giiéncias para minha posicdo tedrica. Esta tinha de se apoiar em situacées ¢ tendéncias objetivas. Se a inten- Gio era chegar a uma decisdo essencialmente bem fun- damen‘ada, nunca se poderia permanecer na reflexao dos fatos imediatos; antes, seria preciso esforgar-se sem- pre para descobrir aquelas mediagdes, muitas vezes ocultas, que conduziram a tal situacao e, sobretudo, tentar orever aquelas que provavelmente nasceriam dela e determinariam a praxis posterior. A vida me im- pingia, portanto, uma conduta intelectual que muitas vezes se opunha ao meu messianismo revolucionério, idealista e ut6pico. Odilema se intensifica ainda mais pelo fato de que, na lideranca de oposicao dentro do Partido Hungaro, 12 GEORG LuKAcs encontrava-se um sectarismo de tipo moderno e bu- rocratico, dirigido pelo grupo de Béla Kun, discfpulo de Zinoviev. No plano puramente te6rico, eu poderia ter refutado suas concepgdes como as de uma pseudo- esquerda. Na pratica, porém, suas propostas sé podiam ser combatidas por um apelo a realidade cotidiana, mui- tas vezes extremamente prosaica e vinculada apenas por mediacées muito distantes as grandes perspec- tivas da revolugéo mundial. Como em tantas ocasides da minha vida, tive dessa vez mais uma felicidade pessoal: & frente da oposicéo contra Kun estava Eugen Landler, um homem nao apenas de elevada inteligén- cia, sobretudo pratica, mas também com muita incli- nacdo para problemas teéricos que estivessem real- mente ligados a praxis revoluciondria, mesmo que por mediacées muito distantes; um homem cuja atitude interna mais profunda era determinada por sua liga- Ao intima com a vida das massas. Seu protesto contra 08 projetos burocraticos e aventureiros de Kun conven- ceram-me logo no primeiro momento, e quando eclo- diu a luta entre as faccdes estive sempre ao seu lado. Sem poder entrar aqui nos detalhes dessas lutas inter- nas do partido, nem mesmo nas mais importantes e, muitas vezes, também teoricamente interessantes, que- ro apenas chamar a atenco para o fato de que a ciséo metodolégica no meu pensamento se agravou numa cisio pratica e tedrica: nas grandes questdes interna- cionais da revolusao, eu permanecia adepto das ten- déncias de extrema-esquerda, ao passo que, como mem- bro da diredo do Partido Hingaro, tornei-me um ad- versario obstinado do sectarismo de Kun. Isso ficou particularmente flagrante na primavera de 1921. Inter- HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 13 namente, como seguidor de Landler, eu defendia uma politica energicamente anti-sectaria e, ao mesmo tem- po, no plano internacional, era um adepto tedrico da Acao de Marco. Dessa maneira, a simultaneidade de tendéncias opostas atingia seu ponto culminante.Com © aprofundamento das diferencas dentro do Partido Hiingaro e com o inicio de uma mobilizagéo propria do operariado radical na Htingria, naturalmente cres- ceu também em meu pensamento a influéncia das ten- déncias teéricas resultantes desses acontecimentos, sem, contudo, alcangar uma superioridade que fosse deter- minante em relagdo as demais, embora a critica de Lé- nin tivesse abalado fortemente minhas convicgdes so- bre a Ago de Margo. Historia e consciéncia de classe surgiu nesse perfodo de transigéo profundamente critico. A redacao é do ano de 1922 e consiste, em parte, na reelaboracao de textos mais antigos; além daqueles ja mencionados, faz parte do volume o texto sobre “Consciéncia de classe” (es- crito em 1920). Os dois ensaios sobre Rosa Luxembur- go, assim como “Legalidade e ilegalidade”, foram i cluidos na selecdo sem nenhuma modificagéo essen- cial. To:almente inéditos so, portanto, os dois impor- tantes estudos e sem diivida decisivos: “A reificacao e a consciéncia do proletariado” e “Observacées metodo- logicas sobre a questao da organizacao”. (A este tiltimo serviu como estudo prévio 0 ensaio “Questoes organi- zacionais da iniciativa revolucionéria”, publicado em 1921, imediatamente apés a Acdo de Marco, na revista Die Internationale.) De maneira que Historia e consci cia de classe, em relagao ao conjunto da obra, é 0 desfe- cho que resume meu desenvolvimento desde os tilti- 14 GEORG LUKACS mos anos da guerra. Um desfecho, no entanto, que pelo menos em parte j continha tendéncias de um estagio de transicao para uma clareza maior, embora esas ten- déncias nao pudessem se manifestar efetivamente. Essa luta nao resolvida de orientagGes intelectuais opostas, das quais nem sempre se pode falar em vito- riosos ou derrotados, ainda hoje torna dificil uma ca~ racterizacao e avaliagao unitarias desse livro. Nao obs- tante, 6 preciso destacar brevemente pelo menos os seus motivos dominantes. O que se nota, sobretudo, 6 que Histéria e consciéncia de classe representa objetiva~ mente — contra as intengGes subjetivas do seu autor — uma tendéncia no interior da hist6ria do marxismo que, embora revele fortes diferencas tanto no que diz respeito a fundamentacio filos6fica quanto nas conse- qiiéncias politicas, volta-se, voluntéria ou involuntaria- mente, contra os fundamentos da ontologia do marxis- mo. Tenho em vista aquelas tendéncias que compreen- dem o marxismo exclusivamente como teoria social ou como filosofia social e rejeitam ou ignoram a tomada de posigao nele contida sobre a natureza. Jé antes da Primeira Guerra, marxistas de orientacdes bastante dis- tintas, como Max Adler e Lunatscharski, defendiam essa tendéncia. Em nossos dias, deparamos com ela ~ provavelmente nao sem a influéncia de Histéria e cons- ciéncia de classe - sobretudo no existencialismo francés em seu ambiente intelectual. Meu livro assume uma posicao muito firme nessa questdo; em diversas passa- gens, a natureza 6 considerada como uma categoria social, e a concepsio geral consiste no fato de que so- mente 0 conhecimento da sociedade e dos homens que vivem nela é filosoficamente relevante. Os nomes dos HISTORIA E ‘CIENCIA DE CLASSE 15 representantes dessa tendéncia ja indicam que nao se trata propriamente de uma orientacdo; eu mesmo, nes- sa época, 56 conhecia Lunatscharski de nome e rejeita- va Max Adler sempre como kantiano e socialdemocrata. Contudo, uma observacao mais atenta revela certos tracos em comum. Isso demonstra, por um lado, que 6 precisamente a concepcao materialista da natureza a separar de maneira radical a visdo socialista do mun- do da visio burguesa; que se esquivar desse complexo mitiga a discussio filos6fica e impede, por exemplo, a elaboracdo precisa do conceito marxista de praxis. Por outro lado, essa aparente elevagao metodolégica das categorias sociais atua desfavoravelmente as suas au- ténticas fungdes cognitivas; sua caracteristica especifi- camente marxista é enfraquecida, e, muitas vezes, seu real avango para além do pensamento é inconsciente- mente anulado. ‘Ao fazer tal critica, limito-me, naturalmente, a His- t6ria e consciéncia de classe, mas no quero de modo al- gum afirmar com isso que esse desvio do marxismo fosse menos decisivo em outros autores com uma ati- tude semelhante. Em meu livro, esse desvio exerce uma reacdo imediata sobre o conceito de economia jé elabo- rado e que, sob 0 aspecto metodolégico, devia natu- ralmerte constituir 0 ponto central. Como conseqiién- cia, aquilo que havia sido dado por definitive assume uma conotag&o confusa. Procura-se, é verdade, tornar compreensiveis todos os fendmenos ideol6gicos a par- tir de sua base econémica, mas a economia torna-se es- treita quando se elimina dela a categoria marxista fun- damental: o trabalho como mediador do metabolismo da sociedade com a natureza. Mas isso € o resultado na- 16 GEORG LUKACS tural dessa posicdo metodolégica fundamental. Como conseqiiéncia, os pilares reais e mais importantes da vi- so marxista do mundo desaparecem, e a tentativa de tirar, com extrema radicalidade, as tiltimas conclusdes revoluciondrias do marxismo permanece sem sua au- téntica justificacao econdmica. E evidente que a objeti- vidade ontolégica da natureza, que constitui o funda- mento Ontico desse metabolismo, tem de desaparecer. Mas com isso desaparece também, ao mesmo tempo, aquela aco recfproca existente entre o trabalho consi- derado de maneira autenticamente materialista e 0 de- senvolvimento dos homens que trabalham. A grande idéia de Marx, segundo a qual até mesmo a “producao pela producao significa tao-somente o desenvolvimen- 0 das forcas produtivas do homem, isto é, 0 desenvolvimento da riqueza da natureza humana como fim em si”, coloca-se fora daquele dominio que Histéria e consciéncia de clas- se esta em condigdes de examinar. A exploragio capi- talista perde esse lado objetivamente revoluciondrio, e nao se compreende o fato de que, “embora esse desen- volvimento das capacidades do género homem se efe- tue, de inicio, & custa da maioria dos individuos e de certas classes, ele acaba por romper esse antagonismo e coincidir com 0 desenvolvimento de cada individuo”. Nao se compreende, portanto, que “o desenvolvimen- to superior da individualidade é conquistado apenas por um processo histérico em que os individuos so sacrificados”S. Desse modo, tanto a exposigéo das con- tradigdes do capitalismo como a da revolugio do pro- 5. Theorien ber den Mehrwert, Il, MEW 26, 2, p. 1. HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 17 letariado adquirem uma énfase involuntéria de subje- tivismo dominante. Isso também influencia 0 conceito de praxis, cen- tral nesse livro, deformando-0 e estreitando-o. Também a respeito desse problema, minha intencdo era partir de Marx, purificar seus conceitos de todas as deforma- Ges burguesas posteriores e torné-los apropriados no presente para as necessidades da grande guinada re- volucionria. Acima de tudo, nessa época eu tinha ab- soluta certeza de que o caréter meramente contempla- tivo do pensamento burgués tinha de ser superado de modo radical. Com isso, a concepgio da praxis revolu- cionéria adquire, neste livro, um carater excessivo, 0 que correspondia A utopia messianica propria do co- munismo de esquerda da época, mas nao a auténtica doutrina de Marx. f compreensivel, entéo, que, no con- texto daquele perfodo, eu atacasse as concepgdes bur- guesas e oportunistas do movimento operario, que exaltavam um conhecimento isolado da praxis, supos- tamente objetivo, mas na realidade destacado de toda praxis. Minha polémica era dirigida com acerto relati- vamenie grande contra 0 exagero e a sobrevalorizagéo da contemplagio. A critica de Marx a Feuerbach refor- cava ainda mais minha atitude. $6 que eu nao perce- bia que, sem uma base na praxis efetiva, no trabalho como sua protoforma e seu modelo, o caréter exagera- do do conceito de praxis acabaria se convertendo num conceito de contemplacdo idealista. Eu queria, portanto, separar a verdadeira e auténtica consciéncia de classe de toda “pesquisa de opiniao” empirica (nessa época, evidentemente, a expressdo ainda nao estava em cir- culagio), conferir-Ihe uma objetividade pratica incon- 18 GEORG LUKACS test4vel. Porém, consegui chegar apenas a formulagio de uma consciéncia de classe “atribuida”. ‘Tinha em mente com isso aquilo que Lénin, em O que fazer?, de- signava da seguinte maneira: em oposicdo a consciéncia trade-unionista que surge espontaneamente, a conscién- cia de classe socialista é trazida “de fora” ao operdrio, “sto 6, de fora da luta econémica, de fora da esfera das relagbes entre operdrios e patroes”*. Portanto, aquilo que para mim correspondia a uma intengdo subjetiva e que para Lénin era o resultado da auténtica andlise marxista de um movimento pratico dentro da totali- dade da sociedade tornou-se em minha exposiggo um resultado puramente tedrico e, portanto, algo essencial- mente contemplativo. A conversio da consciéncia “atri- bufda” em praxis revoluciondria aparecia entao ~ con- siderada objetivamente - como simples milagre. A inversao de uma intencao em si correta é conse- qiiéncia da prépria concep¢ao abstrata idealista ja mencionada. Isso se mostra claramente na polémica — mais uma vez nao inteiramente equivocada — contra Engels, que via no experimento e na industria os casos tipicos de demonstragao da praxis como critério da teo- ria. Desde entao, ficou claro para mim, como funda- mento tedrico da insuficiéncia da tese de Engels, que o terreno da praxis (sem modificagao de sua estrutura ba- sica) se tornou, no curso do seu desenvolvimento, mais extenso, complexo e mediado do que no simples tra- balho, motivo pelo qual o simples ato de produzir 0 ob- jeto pode tornar-se o fundamento da efetivagio imedia- ta everdadeira de uma hipétese te6rica e, nessa medida, 6. Lenin, Werke, Viena-Berlim, IV, Il, pp.216 s HISTORIA & CONSCIENCIA DE CLASSE 19 servir como critério de sua corregéo ou incorregao. No entanto, a tarefa que Engels atribui aqui a praxis ime- diata, isto 6, de por fim a doutrina kantiana da “coisa inapreens{vel em si”, permanece por muito tempo sem solucdo. Afinal, 0 proprio trabalho pode muito facil- mente permanecer no ambito da mera manipulagio e passar ao largo — de modo espontaneo ou consciente~_da solucdo da questdo a respeito do em-si, ignoré-la total ou parcialmente. A historia mostra-nos casos de acées corretas na pratica, mas baseadas em teorias totalmente erradas que implicam 0 desconhecimento do em-si no sentide de Engels. £ claro que a propria teoria de Kant nao nega, de modo algum, o valor cognitivo, a objeti- vidade de experimentos desse tipo, s6 que os remete ao reino dos simples fendmenos ao manter o caréter in- cognoscivel do em-si. E 0 atual neopositivismo quer eli- minar da ciéncia toda questao acerca da realidade (do em-si); ele rejeita toda questao acerca do em-si como “nao cientifica” e, ao mesmo tempo, reconhece todos os resultados da tecnologia e da ciéncia natural. Portanto, para que a praxis possa exercer a fungdo corretamen- te exigida por Engels, ela tem de elevar-se acima desse imediatismo, permanecendo praxis e tornando-se cada vez mais abrangente. Sendo assim, minhas reservas em relagéo a solu- cdo de Engels no era injustificadas, por mais err6- nea, nc entanto, que fosse minha argumentacdo. Era to- talmente incorreto afirmar que “o experimento é 0 mais puro modo de comportamento contemplativo”. Mi- nha propria descrigéo refuta essa demonstracio. Pois produzir uma situacdo em que as forgas naturais a se- rem investigadas possam atuar “de maneira pura”, li- 20 GEORG LUKACS vres das interferéncias do mundo objetivo ou das ob- servagées parciais do sujeito, é - tanto quanto o pré- prio trabalho - uma posicao teleolégica, de tipo eviden- temente particular, mas por esséncia uma préxis pura. Era igualmente incorreto negar a praxis na industria e enxergar nela, “no sentido dialético-histérico, apenas um objeto, e ndo o sujeito das leis naturais da socieda- de”, Essa frase esta em parte correta - mas apenas em parte —no que se refere somente a totalidade econdmi- ca da producao capitalista. No entanto, isso nao con- tradiz, de modo algum, o fato de cada ato da produgéo industrial ser ndo apenas a sintese de atos teleolégicos de trabalho, mas, ao mesmo tempo e especialmente nessa sintese, um ato teleol6gico e, portanto, pratico. Tais imprecisdes filos6ficas servem de punicdo para a Hist6ria e consciéncia de classe que, ao analisar os fend- menos econdmicos, busca seu ponto de partida nao no trabalho, mas simplesmente em estruturas complexas da economia mercantil desenvolvida. Com isso, perde- se de antem4o a perspectiva de um salto filos6fico em dirego a questées decisivas, como a da relacdo entre teoria e pratica, ou sujeito e objeto. Nesses pontos de partida e em outros igualmente problematicos, manifesta-se a influéncia da heranca he- geliana, que nao foi elaborada de modo coerente pelo materialismo e, por isso, também nao foi suprimida nem prescrvada. Hé ainda outro problema central a ser mencionado e que se refere aos principios. Sem dtivi- da, um dos grandes méritos da Histéria e consciéncia de classe foi ter restituido a categoria da totalidade, que a “cientificidade” do oportunismo socialdemocrata em- purrara totalmente para o esquecimento, a posicdo me- HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 2 todologica central que sempre ocupou na obra de Marx. Nessa época, eu ignorava que tendéncias semelhantes também estavam presentes em Lénin. (Os seus frag- mentos filos6ficos foram publicados nove anos apés Histéria e consciéncia de classe.) Mas, ao passo que Lé- nin, também nessa questdo, renovava efetivamente 0 método marxista, surgia em mim um exagero hegelia- no, porquanto opunha a posicéo metodolégica central da totalidade a prioridade da economia: “Nao € 0 pre- dominio de motivos econémicos na explicagao da his- téria que distingue decisivamente o marxismo da cién- cia burguesa, mas o ponto de vista da totalidade.” Esse paradoxo metodolégico acentua-se ainda mais porque a totalidade era vista como a portadora categorial do principio revoluciondrio da ciéncia: “A primazia da ca- tegoria da totalidade é portadora do principio revolu- ciondrio da ciéncia.”? ' Sem duivida, esses paradoxos metodolégicos de- semperharam um papel relevante e muitas vezes até progressista na influéncia exercida pela Histéria ¢ cons- ciéncia de classe. Afinal, o recurso a dialética de Hegel significa, por um lado, um duro golpe contra a tradicao revisionista; jé Bernstein queria eliminar do marxismo, em nome da “cientificidade”, tudo aquilo que lembras- se principalmente a dialética hegeliana. E mesmo seus adversirios tebricos, sobretudo Kautsky, nao estavam muito longe de defender essa tradicdo. Para o retorno revolucionario ao marxismo, era um dever dbvio, por- tanto, renovar a tradicao hegeliana do marxismo. His- 7. Georg Lukas, Geschichte und Klassenbeurisstsein, Malik, Berlim, 1923, p. 3. 2 GEORG LUKAcS t6ria e consciéncia de classe significou talvez a tentativa mais radical daquela época de tornar novamente atual © aspecto revolucionério do marxismo por meio da re- novagao e do desenvolvimento da dialética hegeliana e de seu método. Essa empresa tornou-se ainda mais atual, pois, na mesma época, penetraram na filosofia burguesa certas correntes que procuravam renovar Hegel. E claro que, por um lado, estas nunca tomaram como fundamento a ruptura filos6fica de Hegel e Kant €, por outro, sob a influéncia de Dilthey, visavam a construgao de uma ponte tedrica entre a dialética de Hegel e 0 irracionalismo moderno. Logo depois do apa- recimento de Historia e consciéncia de classe, Kroner ca~ racterizou Hegel como 0 maior irracionalista de todos os tempos e, na exposicao posterior de Lowith, a partir de Marx e Kierkegaard originam-se fendmenos parale- los, surgidos da dissolucao do hegelianismo. O contras- te com todas essas correntes mostra o quanto era atual a problematica da Historia e consciéncia de classe. Do ponto de vista da ideologia do movimento operdrio radical, também era atual porque o papel de mediador desem- penhado por Feuerbach entre Hegel e Marx, muito va- lorizado por Plekhanov e outros, aparecia aqui apenas em segundo plano. Expressei abertamente apenas um pouco mais tarde, no ensaio sobre Moses Hess ~ ante- cipando em alguns anos a publicagao dos estudos filo- séficos de Lénin -, que Marx se ligara dirctamente a Hegel, mas essa posicio jé est4 objetivamente na base de muitas discussdes da Histéria e consciéncia de classe. Nesse esquema, necessariamente sumério, 6 impos- sivel efetuar uma critica concreta aos pormenores con- tidos no livro, isto é, mostrar qual interpretacao de He- HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 23 gel apontava para frente e qual levava a confusdo. O leitor de hoje, se for capaz de critica, certamente en- contraré alguns exemplos de ambos os tipos de inter- pretagao. Mas, para compreender tanto 0 efeito que 0 livro causou na época quanto sua eventual atualidade, é preciso considerar um problema de importancia de- cisiva, que ultrapassa todas as observagées de detalhe: trata-se do problema da alienacao, que, pela primeira vez, desde Marx, foi tratado como questao central da cri- tica revolucionéria do capitalismo, e cujas raizes hist6- rico-teéricas e metodolégicas remontam a dialética de Hegel. Naturalmente, o problema pairava no ar. Alguns anos mais tarde, deslocava-se para o centro das discus sdes filos6ficas com 0 Ser e tempo (1927), de Heidegger, mantendo essa posicao ainda hoje, sobretudo em con- seqiiéncia da influéncia exercida por Sartre, assim como por seus discipulos e oponentes. Podemos renunciar, portanto, & questao filolégica levantada principalmen- te por Lucien Goldman ao identificar em algumas pas- sagens da obra de Heidegger uma réplica ao meu livro, ainda que este nao seja mencionado. Hoje, a constata- so de que o problema pairava no ar é perfeitamente suficiente, sobretudo quando os fundamentos ontolé- gicos dessa situacao sao analisados com atengio (o que nao é possivel fazer aqui), a fim de esclarecer a influén- cia posterior, a mescla de motivacdes marxistas e exis- tencialistas especialmente na Franca, logo apés a Segun- da Guerra Mundial. Prioridades, “influéncias”, dentre || Outras coisas, néo vém ao caso. O que continua sendo importante, afinal, 6 que a alienagdo do homem foi co- | nhecida e reconhecida como problema central da épo- | caem que vivems, tanto pelos pensadores burgueses 24 GEORG LUKACS como pelos proletérios, por aqueles social e politica~ mente de direita como pelos de esquerda. Histéria e cons- ciéncia de classe exerceu, assim, uma profunda influén- cia nos cfrculos dos jovens intelectuais; conheco toda uma série de bons comunistas que foram conquistados para o movimento exatamente por esse motivo. Sem di- vida, a nova acolhida desse problema hegeliano-mar- xista por parte de um comunista também foi decisiva para que este livro exercesse uma influéncia muito além das fronteiras do partido. No que concerne ao tratamento do problema, hoje nao 6 dificil perceber que ele se dé inteiramente no espi- rito hegeliano. Sobretudo porque o fundamento filos6- fico Ultimo desse tratamento € constitufdo pelo sujeito- objeto idéntico, que se realiza no processo histérico. E claro que, para o proprio Hegel, o surgimento desse su- jeito-objeto ¢ de tipo l6gico-filoséfico: ao atingir-se a etapa superior do espirito absoluto na filosofia com a retomada da exteriorizacao e com o retorno da cons- ciéncia de si a si mesma, realiza-se o sujeito-objeto idén- tico. Na Histdria e consciéncia de classe, ao contrario, esse 6 um processo histérico-social que culmina no fato de que o proletariado realiza essa etapa na sua conscién- cia de classe, tornando-se 0 sujeito-objeto idéntico da hist6ria. Isso deu a impressio de que Hegel estava, de fato, “caminhando com as proprias pernas”, como se a construgao logico-metafisica da Fenomenologia do espi- rito tivesse encontrado uma auténtica efetivagéo onto- logica no ser e na consciéncia do proletariado, o que, por sua vez, parecia oferecer uma justificativa filosdfica A transformagao hist6rica do proletariado, que visava a fundar a sociedade sem classes por meio da revolucao e HISTORIA F CONSCIENCIA DE CLASSE 25 concluir a “pré-histéria” da humanidade. Mas ser que © sujeito-objeto idéntico é mais do que uma construgao puramente metafisica? Serd que um sujeito-objeto idén- tico é efetivamente produzido por um autoconhecimen- to, por mais adequado que seja, mesmo que tenha como base um conhecimento adequado do mundo social, ou seja, serd que ele é produzido numa consciéncia de si, por mais completa que seja? Basta formular a questao com preciso para respondé-la negativamente. Pois, mesmc que 0 contetido do conhecimento possa ser re- ferido ao sujeito do conhecimento, o ato do conheci- mento nao perde com isso seu cardter alienado. Foi jus- tamente na Fenomenologia do espirito que Hegel rejeitou, com razo, a realizacao mistico-irracional do sujeito- objeto idéntico, a “intuigao intelectual” de Schelling, e exigiu uma solugio filosoficamente racional do proble- ma. Seu forte sentido de realidade manteve essa exigén- cia; sua construcéo universal mais geral culmina, é ver- dade, na perspectiva de sua realizacao efetiva, mas ele nunca mostra concretamente como essa exigéncia pode cumprir-se no interior do seu sistema. Portanto, 0 pro- letariado como sujeito-objeto idéntico da verdadeira hist6ria da humanidade nao é uma realizacao materia- lista que supera as construcdes de pensamento idealis- tas, mas muito mais um hegelianismo exacerbado, uma construgao que tem a intencéo de ultrapassar objetiva- mente o proprio mestre, elevando-se acima de toda rea- lidade de maneira audaciosa. Essa precaugao de Hegel tem como base teérica 0 caréter temerério de sua concepcao fundamental. Afi- nal, em Hegel, o problema da alienacdo aparece pela primeira vez como a questao fundamental da posicéo 26 GEORG LuKAcs do homem no mundo, para com o mundo. Sob o ter mo exteriorizagdo [Entiusserung], o conceito de aliena- do inclui para ele todo tipo de objetivagao. Sendo as- sim, como conclusio, a alienaao mostra-se idéntica 4 objetivacdo. Por isso, 0 sujeito-objeto idéntico, ao supe- rar a alienacdo, também supera simultaneamente a ob- jetivacao. No entanto, como para Hegel o objeto, a coi- sa, s6 existem como exteriorizacao da consciéncia de si, a retomada da exteriorizacao no sujeito seria o fim da realidade objetiva, ou seja, da realidade em geral. Historia e consciéncia de classe segue Hegel na medida em que nele também a alienacao é equiparada a objeti- ficacao (para utilizar a terminologia dos Manuscritos eco- némico-filosdfices, de Marx). Esse equivoco fundamen- tal e grosseiro certamente contribuiu em muito para o éxito de Histéria e consciéncia de classe. O desmascara- mento te6rico da alienacao, como jé foi mencionado, pairava no ar e em pouco tempo se tornaria a questo central da critica da civilizacao, que investigava a situa- ao do homem no capitalismo atual. Para a critica filo- s6fico-burguesa da civilizacao - basta pensar em Hei- degger -, era muito dbvio sublimar a critica social nu- ma critica puramente filoséfica, fazer da alienagao, so- cial em sua esséncia, uma condition humaine eterna, para utilizar um termo que surgiré s6 mais tarde. £ claro que esse modo de exposicao da Histéria e consciéncia de classe ia na direcao de tais posicionamentos, muito em- bora o livro tivesse outra intenc&o, exatamente oposta aessa. A alienacdo, identificada com a objetificagio, po- dia muito bem ser vista como uma categoria social ~ 0 socialismo devia, com efeito, superar a alienagio -, nao HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 7 obstante, sua existéncia insuperdvel nas sociedades de classes e principalmente sua fundamentacio filoséfica aproximava-se da condition humaine, Isso resulta diretamente da falsa identificacdo, tan- tas vezes ressaltada, de conceitos basicos que s4o opos- tos. A objetificagao é, de fato, um modo de exterioriza- do insuperdvel na vida social dos homens. Quando se considera que na praxis tudo é objetificacao, principal- mente o trabalho, que toda forma humana de expres- sao, inclusive a linguagem, objetiva os pensamentos e sentimentos humanos, entao torna-se evidente que i: damos aqui com uma forma humana universal de in- tercambio dos homens entre si. Enquanto tal, a objeti- ficacdo nao é, por certo, nem boa nem ma: 0 correto 6 uma objetificacdo tanto quanto o incorreto; a liberda- de, tanto quanto a escravidao. Somente quando as for- mas objetificadas assumem tais fungdes na sociedade, que colocam a esséncia do homem em oposigao ao seu ser, sudjugam, deturpam e desfiguram a esséncia hu- mana pelo ser social, surgem a relacao objetivamente social da alienacao e, como conseqiiéncia necessaria, to- dos ossinais subjetivos de alienacao interna. Essa dua- lidade foi ignorada na Histdria e consciéncia de classe. Iss0 explica o erro e 0 equivoco de sua concepgio histérico- filos6fica fundamental. (Deve-se notar, de passagem, que o fendmeno da reificacdo, estreitamente relaciona- do com a alienacao, porém sem ser idéntico a ela no Ambito social ou conceitual, também foi empregado co- mo seu sindnimo.) Essa critica dos conceitos fundamentais nao preten- de ser completa. Mas é preciso mencionar rapidamente, 28 GEORG LuKAcs mesmo limitando-se as questdes centrais, a rejeigao ao cardter de reflexo do conhecimento, Essa critica tem duas fontes: a primeira era a profunda aversio ao fatalis- mo mecdnico que costumava acompanhar o materia- lismo mecanico e contra o qual protestavam apaixona- damente meu utopismo messianico da época e o pre- dominio da praxis em meu pensamento ~ mais uma vez, nao inteiramente sem razao. O segundo motivo de- corria, por sua vez, do reconhecimento da origem e do ancoramento da praxis no trabalho. O mais primitivo dos trabalhos, como 0 que o homem pré-histérico fa- zia, recolhendo pedras, pressupde que a realidade em questo é refletida corretamente. Pois nenhuma posi- do teleolégica se efetua com éxito sem uma represen- tagdo, mesmo que primitiva, da realidade, visada pela \pratica. A praxis s6 pode ser a realizacao e o critério da teoria porque tem como fundamento ontolégico, como pressuposto real de toda posico teleolégica real, uma reflexdo da realidade considerada correta. Nao vale a pena aqui entrar nos detalhes da polémica decorrente dessa questdo, nem na justificagao de uma recusa do ca- rater fotografico das teorias correntes do espelhamento, Nao creio que seja uma contradigao falar exclusi- vamente do aspecto negativo da Histéria e consciéncia de classe e, apesar disso, julgar que a sua época e ao seu modo tenha sido uma obra importante. O simples fato de que todas as deficiéncias aqui enumeradas tenham suas fontes nao tanto na particularidade do autor, mas em grandes tendéncias do perfodo, ainda que muitas vezes objetivamente erréneas, confere ao livro um cer- to caréter representativo. Um poderoso momento his- HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 29 torico de transicaio debatia-se entdo por sua expresso tedrica, Mesmo quando uma teoria nao expressava a esséncia objetiva da grande crise, mas apenas uma to- mada de posicao tipica diante dos seus problemas fundareniais, ela ainda podia adquirir um certo signi- ficado histérico. Esse era 0 caso, creio hoje, da Histéria e consciéncia de classe. A presente exposicéo nao significa que todas as idéias expressas neste livro sejam, sem excesio, defi- cientes. Sem divida, nao se trata disso. As observacies introdutérias ao primeiro ensaio jé oferecem uma defi- nicéo da ortodoxia no marxismo que, segundo minhas convicgdes atuais, esta ndo apenas objetivamente corre- ta, como poderia ter mesmo hoje, as vésperas de um re- nascimento do marxismo, uma importancia conside- ravel. enso nas seguintes observacées: “Embora néo 0 admitamos, suponhamos que pesquisas recentes ti vessem demonstrado incontestavelmente a falsidade objetiva de cada uma das afirmacées particulares de Marx, Todo marxista ‘ortodoxo’ sério poderia reconhe- cer incondicionalmente todos esses novos resultados, rejeitar cada uma das teses de Marx, sem ter de renun- ciar por um minuto sequer a sua ortodoxia marxista. Marxismo ortodoxo nao significa, portanto, um reco- nhecimento acritico dos resultados da investigagio de Marx, nao significa uma ‘crenga’ nesta ou naquela tese nem a exegese de um livro ‘sagrado’. A ortodoxia, em questdo de marxismo, refere-se, antes, exclusivamente ao método. Ea convicgao cientifica de que o método cor- reto de investigacao foi encontrado no marxismo dia- Iético, de que esse método s6 pode ser complementa- 30 GEORG LUKACS do, desenvolvido e aprofundado no sentido dos seus fundadores. No entanto, é também a convicgéo de que todas as tentativas de suplanté-lo ou de ‘melhoré-lo’ conduziram a superficialidade, a trivialidade e ao ecle- tismo, e tinham necessariamente de conduzir a isso.”® Sem querer parecer pretensioso, creio que se pode encontrar ainda varias idéias igualmente corretas. Men- ciono apenas incluso das obras de juventude de Marx no quadro geral de sua concepgdo de mundo, numa poca em que a maioria dos marxistas a viam somente como documento histérico do desenvolvimento inte- lectual de Marx. Hist6ria e consciéncia de classe nao pode ser responsabilizada se, décadas mais tarde, essa relagéo acabou por se inverter, apresentando o jovem Marx muitas vezes como 0 verdadeiro fildsofo e desprezando, em grande medida, sua obra madura. Com razio ou ndo, em meu livro sempre tratei a concepgéo marxista do mundo como essencialmente unitaria. ‘Também nao se pode negar que muitas passagens procuram mostrar as categorias dialéticas em sua ob- jetividade e seu movimento ontoldgicos efetivos e que, por isso, apontam na diregéo de uma ontologia auten- ticamente marxista do ser social. A categoria de media ao, por exemplo, é apresentada da seguinte maneira: “A categoria de mediagéo como alavanca metédica para a superacio do simples imediatismo da experién- cia nao 6, portanto, introduzir algo de fora (subjetiva- mente) nos objetos, nao é um juizo de valor ou um de- ver que se contrapée ao seu ser, mas a abertura de sua 8. Ibid, p. 13, HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 31 propria estrutura, objetion e verdadeira.”® Numa relagao ainda mais estreita com essa idéia est a conexao entre genese e histéria: “Génese e historia s6 podem coinci- dir ou, mais exatamente, s6 podem constituir momen- tos do mesmo processo quando, por um lado, todas as categorias sobre as quais se edifica a existéncia huma- na aparecerem como determinagSes dessa mesma exis- téncia (e nao apenas da descricéo dessa existéncia), e, por outro, quando sua sucesso, sua conexao e sua li- gacao se mostrarem como aspectos do proprio proces- so hist6rico, como caracteristicas estruturais do presen- te. A sucessdo e a conexdo interna das categorias néo constituem, portanto, uma série puramente légica, nem se ordenam conforme a facticidade puramente hist6ri- ca.’ Esse raciocinio conduz, de maneira coerente, a uma ditacdo da célebre observagao metodolégica de Marx nos anos 1850. Nao sao raras as passagens que, de modo semelhante, antecipam uma interpretagao e uma renovacao dialético-materialista de Marx. Porém, se concentrei-me aqui na critica das defi- ciéncies, foi por motivos essencialmente praticos. £ um fato que Histdria e consciéncia de classe causou uma for- te impressio em muitos leitores, e 0 faz ainda hoje. Se sio as linhas corretas do raciocinio a produzir esse efei- to, entio esté tudo resolvido, e minha atitude como au- tor é inteiramente irrelevante e desprovida de interes- se. Mas infelizmente sei que, por razbes ligadas ao de- senvolvimento social e pelos posicionamentos teéricos por ele produzidos, aquilo que hoje reputo como teori- 9. (bid. pp. 178s. 10 Ibid, p. 175. 32 GEORG LUKACS camente errado pertence aos momentos mais atuantes e influentes da recepcio deste livro. Por isso, conside- ro-me obrigado, ao reedité-lo depois de mais de quaren- ta anos, a expor sobretudo suas tendéncias negativas ¢ a alertar os leitores para as decisdes equivocadas que, na época, talvez fossem muito dificeis de ser evitadas, mas que hoje e ha muito tempo nao sio mais. JAmencionei que, em certo sentido, Histdria econs- ciéncia de classe representou a sintese e o termo do meu periodo de desenvolvimento, que comecou em 1918-19. Os anos seguintes mostraram isso de maneira cada vez mais evidente. Sobretudo 0 utopismo messianico desse periodo perdia progressivamente sua real influéncia (in- clusive a que parecia ser real). Em 1924 morre Lénin e, apés sua morte, as disputas partidarias concentram-se de modo cada vez mais intenso na possibilidade de construir o socialismo num sé pais. Naturalmente, 0 proprio Lénin jé havia se manifestado ha muito tempo sobre essa possibilidade te6rica e abstrata. Todavia, a perspectiva da revolugio mundial, que parecia proxi- ma, destacava naquela época o seu cardter meramente te6rico e abstrato. O fato de que doravante a discussio passasse a girar em torno dessa possibilidade real e concreta mostrava que nesses anos quase nao se podia contar seriamente com a perspectiva de uma revolu- do mundial. (Esta ressurgiu, por algum tempo, com a crise econémica de 1929.) Além disso, apés 1924, a IIT Internacional estava certa em conceber a situagéo do mundo capitalista como uma “estabilizacao relativa”. Para mim, esses acontecimentos também significavam a necessidade de uma nova orientacao te6rica. Minha po- sigdo a favor de Stélin nas discussdes do Partido Russo HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 33 pelo socialismo num tinico pais mostrava muito clara mente 0 inicio de uma mudanca decisiva. Essa mudanga foi determinada de modo imedia- to mas essencial pelas experiéncias no Partido Hunga- ro. A politica correta da faccéo liderada por Landler comegava a render frutos. O partido, que trabalhava de maneira estritamente ilegal, conquistava uma influén- cia cada vez maior sobre a ala esquerda da socialde- mocracia, de modo que, por volta de 1924-25, uma di- visdo no partido tornou posstvel a fundagéo de um par- tido operério radical, mas voltado para a legalidade. Esse partido, dirigido na ilegalidade pelos comunis- tas, colocava-se como tarefa estratégica a consolidacao da democracia na Hungria, que culminaria com a exi- géncia da repuiblica, ao passo que o proprio Partido Co- munisia, na ilegalidade, permanecia preso a antiga pa- lavra de ordem, estratégica da ditadura do proletariado. Embora nessa época eu estivesse de acordo com a tati- ca dessa decisao, cada vez mais me preocupava com uma série de problemas nao resolvidos, relacionados justificagao tebrica daquela situagao. Essas reflexdes j& comecavam a minar os funda- ‘mentos intelectuais do periodo entre 1917 e 1924. Acres- cente-se a isso 0 fato de que a desaceleragio do ritmo de desenvolvimento da revolucao mundial impelia ne- cessariamente na direcéo de uma cooperacao entre ele- mentos sociais, em certa medida orientados a esquerda, contra a reagao crescente e mais forte. Para um parti- do operdrio legal de extrema-esquerda, na Hungria de Horthy, tratava-se de uma evidéncia cristalina. Mas 0 ‘movimento internacional também mostrava tendéncias que apontavam nessa direcdo. Jé em 1922 ocorria a mar- 34 GEORG LUKAS cha sobre Roma, e os anos seguintes trariam um re- forgo ao nacional-socialismo na Alemanha, uma reu- nido crescente de todas as forcas reacionérias. Assim, os problemas da frente nica e da frente popular fo- ram colocados na ordem do dia e submetidos a um exame profundo, tanto do ponto de vista teérico quanto estratégico. Nesse momento, dificilmente se podia es- perar alguma orientagao da III Internacional, que se encontrava fortemente influenciada pela tatica stalinis- ta, Ela oscilava taticamente entre a esquerda e a direita. O préprio Stalin interveio nessa situacdo de incerteza de maneira extremamente funesta quando declarou, em 1928, que os socialdemocratas eram “irmaos gémeos” dos fascistas. Com isso, fechavam-se de vez as por- tas para qualquer frente tinica de esquerda. Embora me posicionasse a favor de Stalin na questao central da Riissia, repugnou-me profundamente essa tomada de posigao. Ela nao interferiu na minha decisdo de aban- donar gradualmente as tendéncias de extrema-esquer- da dos primeiros anos da revolucao, tanto mais que a maioria dos agrupamentos de esquerda nos parti- dos europeus se convertia ao trotskismo, posicéo que sempre recusei. Por certo, no que concerne a Alemanha, cuja politica me interessava acima de tudo, se fui con- tra Ruth Fischer e Massloy, isso nao significa que sen- tisse alguma simpatia por Brandler ou Thalheimer. Na- quela época, para esclarecer minhas préprias diividas e compreender as idéias te6ricas e politicas, eu buscava um programa de esquerda “auténtico”, que opusesse ‘uma terceira alternativa a essas correntes de oposicao na Alemanha. Porém, a idéia de uma solugio tedrico-po- litica para as contradigées num periodo de transicéo HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 35 como aquele nao passou de um sonho. Nunca logrei encontrar uma solucdo satisfatéria, mesmo que ape- nas pata mim, e, por isso, nunca me manifestei publi- camente no plano da pratica ou da teoria durante esse perfodo. No movimento hiingaro, a situacao era diferente. Landler morreu em 1928, e em 1929 0 partido prepara- va seu segundo congresso. Coube a mim a tarefa de es- crever 9 projeto para as teses politicas. Vi-me confron- tado com meu antigo problema na questéo héngara: pode um partido estabelecer dois objetivos estraté; cos diferentes ao mesmo tempo (no plano legal, a re- ptiblica; no ilegal, a repuiblica soviética)? Ou, de outro Angulo: a posigao do partido em relacdo a forma de Estado pode ser objeto de conveniéncia puramente t4- tica (ou seja: a perspectiva do movimento comunista ilegal considerada como meta auténtica, ea do partido legal, como medida meramente tatica)? Uma andlise detalhada da situagao econémica e social da Hungria convencia-me cada vez mais de que, a sua época, Lan- dler tocava instintivamente na questo central de uma perspectiva revolucionaria correta para a Hungria com a palavra de ordem estratégica da repuiblica: ainda que uma crise to profunda do regime de Horthy provocas- se as condigGes objetivas de uma transformagao fun- damental, uma transicao direta @ republica soviética nao era possivel para a Hungria. Eis por que a palavra de ordem legal da reptiblica precisava ser concretiza- da no sentido que Lénin atribuia em 1905 a ditadura | democratica dos operdrios e camponeses. Hoje é dif’ Gil para a maioria das pessoas compreender 0 quanto essa palavra de ordem tinha um efeito paradoxal na- Se) GEORG LUKACS quela época. Embora 0 VI Congresso da III Internacio- nal mencionasse isso como possibilidade, julgava-se, em geral, que tal retrocesso seria historicamente im- possivel, visto que a Hungria jé havia sido uma repi- blica soviética em 1919, Nao cabe aqui considerar essa diversidade de opi- nides. Tanto mais que o texto dessas teses, por mais que tenha abalado todo o meu desenvolvimento posterior, hoje pode apenas ser considerado como um documento teoricamente importante. Minha exposicao era insufi: ciente, tanto do ponto de vista dos principios como con- cretamente, 0 que, em parte, também era causado pelo fato de que, para tornar plausivel o contetido princi- pal, eu atenuava muitos detalhes, tratando-os de ma- neira demasiadamente genérica. Mesmo assim, origi- nou-se um grande escdndalo no Partido Htingaro. O grupo que apoiava Kun via nas teses o mais puro opor- tunismo; além disso, o apoio da minha propria facco cra bastante morno. Quando soube de fontes confidveis que Béla Kun preparava minha exclusao do partido na condigéo de “liquidador”, decidi renunciar a prosse- guira luta, pois sabia da influéncia de Kun na Interna- cional, e publiquei uma “autocritica”. Embora naquela 6poca eu estivesse profundamente convencido de es- tar defendendo um ponto de vista correto, sabia tam- bém - pelo destino de Karl Korsch, por exemplo - que a exclusdo do partido significava a impossibilidade de participar ativamente da luta contra o fascismo iminen- te. Como “bilhete de entrada” para tal atividade, redi- gi essa autocritica, j que, sob tais circunstancias, eu nao podia e no queria mais trabalhar no movimento hiingaro. HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 37 Era evidente que essa autocritica nao podia ser le- vada a sério: a mudanca da opiniao fundamental que sustentava as teses ~ mas que nem de longe conseguia expressé-las adequadamente— passou a ser doravante 0 fio condutor para minha atividade teérica e pratica. Obviamente ndo convém fazer aqui um esboco, mes- mo que resumido, dessas observacées. Apenas como prova de que ndo se trata da imaginagio subjetiva de um autor, mas de fatos objetivos, menciono aqui algu- mas notas de J6szef Révai (de 1950), referindo-se jus- tamente as teses de Blum, nas quais, como principal ideGlogo do partido, apresenta minhas concepcées li- terérias da época como conseqiiéncia direta das teses de Blum: “Quem conhece a histéria do movimento co- munista htingaro sabe que as concepcées literdrias de- fendicas pelo camarada Lukacs de 1945 até 1949 esto ligadas as concepcdes politicas, muito mais antigas, que ele defendia no final dos anos 20 com respeito ao de- senvolvimento politico na Hungria e a estratégia do partido comunista.”" Essa questo tem também um outro aspecto, para mim mais importante, e no qual a mudanca efetuada adquire uma fisionomia muito evidente. O leitor des- ses escritos deve ter percebido que minha decisao de aderir ativamente ao movimento comunista foi pro- fundamente influenciada por motivos éticos. Quando assim o fiz, nao tinha idéia de que me tornaria politico pelo periodo de uma década. Foram as circunstancias que o determinaram. Quando, em fevereiro de 1919, 0 1. Jose Reva, Literarische Studien, Dietz, Berlim, 1956, p. 235. 38 GEORG LUKACS ‘Comité Central do partido foi preso, considerei como dever aceitar 0 posto que me ofereciam no semi-ilegal comité substitutivo. Numa seqiiéncia dramitica, vie- ram: 0 comissariado popular para o ensino na reptibli- ca soviética e 0 comissariado popular de politica no Exército Vermelho, trabalho ilegal em Budapeste, con- flito entre faccées em Viena etc. Somente entdo fui co- locado novamente diante de uma alternativa real. Mi- nha autocritica interna e privada chegou a seguinte conclusio: se ea tao evidente que eu tinha razdo, como tinha de fato, e, no entanto, nao podia evitar uma der- rota téo estrondosa, era porque, de algum modo, mi- nhas habilidades praticas e politicas demonstravam uma séria deficiéncia, Por isso, a partir desse momen- to, pude retirar-me com a consciéncia tranqiiila da car- reira politica e concentrar-me novamente na atividade tedrica. Nunca me arrependi dessa decisao. (A aceita- ao de um posto de ministro em 1956 nao significa ne- nhuma contradicao. Antes de aceité-lo, esclareci que se- ria somente por um periodo de transicéo, relativo a cri- se mais aguda; t4o logo ocorresse uma consolidacao, renunciaria imediatamente.) ‘No que se refere a anélise da minha atividade te6- rica em sentido estrito apés Histéria e consciéncia de classe, saltei meia década e somente agora posso ocu- par-me mais de perto desses escritos. O afastamento da cronologia justifica-se pelo fato de que o contetdo tedrico das teses de Blum, naturalmente sem que eu pudesse sequer imaginar, constituiu o terminus secreto ad quem do meu desenvolvimento. Meu anos de aprendi- zado do marxismo s6 podem ser considerados como con- clufdos quando comecei a superar, numa questo concre- HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE a 39 tae importante, na qual esto concentrados os mais di- versos problemas e definigdes, aquele conjunto compos- to por um dualismo contraditério, que caracterizava meu pensamento desde os tiltimos anos da guerra. E esse desenvolvimento, do qual as teses de Blum cons- tituem uma conclusdo, que deve ser retracado neste momento com 0 auxilio da minha produgéo teérica daquele periodo. Creio que, uma vez determinado 0 objetivo preciso dessa evolugao, seré mais facil apre- senté-la, especialmente se considerarmos que nessa época minha energia estava concentrada sobretudo nas, tarefas praticas do movimento hiingaro, e que minha producio teérica consistia predominantemente em tra- balhos de circunstancia. Seado assim, o primeiro e mais extenso desses es- critos, uma tentativa de desenhar um retrato intelectual de Lenin, é literalmente uma obra de circunstancia. Lo- go apés a morte de Lénin, meu editor pediu-me uma monografia em versao resumida sobre ele; segui seu es- timulo e completei o pequeno texto em poucas sema- nas. Ele significou uma avanco em relagao a Histéria e consciéncia de classe, visto que o grande modelo em que eu estava concentrado ajudava-me a compreender mais, claramente o conceito de praxis em sua relacao mais au- téntica, ontolégica e dialética com a teoria. Naturalmen- te, a perspectiva da revolugio mundial nesse caso é a mesma dos anos 20. No entanto, em parte como conse- qiiéncia das experiéncias do curto periodo transcorri- do, e em parte por concentrar-se na personalidade in- telectual de Lénin, os tragos sectarios mais pronunciados de Histéria e consciéncia de classe comegavamn a esmae- cer ea dar lugar a outros mais préximos da realidade. 40 GEORG LukAcs Num posfécio que escrevi recentemente para uma ree- digao em separado desse pequeno estudo, procurei res- saltar, de maneira mais detalhada do que anteriormente, © que ainda considero saudavel e atual em sua posigo fundamental. Trata-se principalmente de compreender a auténtica especificidade intelectual de Lénin, em vez de concebé-lo como simples sucessor tedrico em linha rela de Marx e Engels ou como o genial e pragmatico “politico realista”. Em poucas palavras, essa imagem de Lénin poderia ser formulada da seguinte maneira: sua forca tedrica baseia-se no fato de ele relacionar toda ca- tegoria - por mais abstrata e filoséfica que seja - com sua atuacao na praxis humana e, ao mesmo tempo, com respeito A acdo, que para ele se apdia sempre na anéli- se concreta da respectiva situacdo concreta, relacionar essa andlise de maneira organica e dialética com os prin- cipios do marxismo. Sendo assim, ele nao é, no sentido estrito da palavra, nem um teérico, nem um politico, mas um profundo pensador da praxis, aquele que ver- te apaixonadamente a teoria em praxis, alguém cuja viséo aguda est sempre voltada para os momentos de inflexdo, em que a teoria transpde-se na prética ea pré- tica, na teoria, O fato de o quadro hist6rico e intelec- tual do meu antigo estudo, em que desenvolvo essa dialética, ainda conter os tracos tipicos dos anos 20 pro- duz falsas impresses a respeito da fisionomia intelec- tual de Lénin, jé que, principalmente em seus tiltimos anos de vida, levou a critica do presente muito mais adiante do que seu bidgrafo; no entanto, reproduz cor retamente seus tracos principais, pois a obra tedrica 12. Georg Lukes, Lenin, Luchterhand, Neuwied, 1967, pp. 87 ss. HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 41 pratica de Lénin também esta ligada objetiva e indis- soluvelmente aos preparativos de 1917 e as suas con- seqiiéncias necessérias. Hoje creio que a luz,lancada por essa mentalidade dos anos 20 oferece, portanto, apenas um matiz, nao totalmente idéntico, mas também nao completamente estranho, a tentativa de apreender ade- quadamente a particularidade especifica dessa grande personalidade. Todos os outros textos que escrevi nos anos poste- riores so trabalhos de circunsténcia nao apenas apa- rentemente (em sua maior parte recensGes de livros), mas também quanto ao contetido, na medida em que, procurando espontaneamente uma nova orientacao, eu tentava clarear meu caminho futuro com a demar- cacao de concepcées distintas. Em termos praticos, a recensao sobre Bukharin é talvez a mais importante de- las (seja dito de passagem ao leitor atual que, na época de sua publicag4o, em 1925, Bukharin era, ao lado de StAlin, a figura mais importante do grupo dirigente do Partido Russo; somente trés anos depois ocorreu a rup- tura entre eles). O traco mais positivo dessa recensao € a concretizagio das minhas concepcées no dominio da economia; ela se mostra principalmente na polémica contra a concepgio que via na técnica o princfpio ob- jetivamente motor e decisivo do desenvolvimento das forcas produtivas. Tal concepcio, além de amplamente disseminada, era defendida tanto pelo materialismo co- munista vulgar como pelo positivismo burgués. Evi- dentemente, isso conduz a um fatalismo hist6rico, & eliminacao do homem e da praxis social e a atuacao da ‘técnica como “forga natural” social, como “legalidade natural”. Minha critica néo se move apenas num plano a2 GEORG LUKACS historicamente concreto, como a maior parte do tempo na Histdria e consciéncia de classe; também no oponho a0 fatalismo mecanizante as contraforcas de voluntaris- mo ideol6gico, Tento, antes, demonstrar nas proprias for- Gas econémicas 0 momento socialmente decisive, que determina a propria técnica. A pequena recensao sobre olivro de Wittfogel apresenta uma posicéo semelhante. Teoricamente, ambas exposicdes padecem pelo fato de tratar de modo indiferenciado o materialismo vulgar me- canicista e 0 positivismo como tendéncias iguais, e mui- tas vezes este chega a ser assimilado por aquele. De grande importancia sao as recensdes mais deta- Ihadas das novas edig6es das cartas de Lassalle e dos escritos de Moses Hess. Em ambos domina uma tendén- cia para dar a critica e ao desenvolvimento social uma base econémica mais concreta do que aquela que con- seguia oferecer na Histéria e consciéncia de classe, e para colocar a critica do idealismo e 0 aprimoramento da dia lética hegeliana a servico do conhecimento das relacies, assim adquiridas. Aproveito para retomar a critica do jovem Marx, na Sagrada familia, aqueles idealistas que tinham a pretensao de superar Hegel. Para Marx, es- ses idealistas acreditavam ultrapassar Hegel subjetiva- mente, porém, objetivamente, nao representavam na- da além da simples renovacao do idealismo subjetivo de Fichte. E préprio também dos aspectos conservado- res no pensamento de Hegel o fato de sua filosofia da historia se limitar a revelar o presente em sua necessi- dade, e certamente foram molas subjetivamente revo- lucionérias que situaram o presente na filosofia da his- toria de Fichte como uma “era da degradacao total”, entre o passado e um futuro supostamente cognoscivel HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 43 do ponto de vista filos6fico. J4 na critica feita por Las- salle esse radicalismo apresenta-se como puramente imagindrio ea filosofia de Hegel representa uma etapa superior a de Fichte no conhecimento do verdadeiro movimento histérico, uma vez que a dinamica de me- diacao histérico-social, objetivamente intencionada e que preduz o presente, é construfda de maneira mais, real emenos abstrata do que a orientacéo de Fichte, vol- tada para o futuro. A simpatia de Lassalle por tais ten- déncias de pensamento esté ancorada numa visao geral puramente idealista do mundo; repugna-lhe aquela ima- néncia que resulta da conclusio de uma evolugio hist6- rica baszada na economia. A esse respeito e para salien- tara distancia entre Marx e Lassalle,a recensao cita uma declaragao deste em conversa com Marx: “Se vocé nao acredita na eternidade das categorias, tem de acredi- tar em Deus.” Naquela época, esse esforco para real- car com veeméncia os tracos filosoficamente retrégra- dos do pensamento de Lassalle era, ao mesmo tempo, uma polémica tedrica contra as correntes na socialde- mocracia que, em oposicao a critica que Marx dirigi: a Lassalle, pretendia fazer deste um fundador de igual plana da concepgao socialista do mundo. Sem referir- me diretamente a ela, combati tal tendéncia como um aburguesamento. Em determinadas questdes, essa in- tengo também contribuiu para que minha abordagem sobre 0 verdadeiro Marx fosse mais proxima do que aquela feita em Histéria e consciéncia de classe. A recensio sobre a primeira reunido dos escritos de Moses Hess nao tinha a mesma atualidade politica. Devido justamente a minha retomada das idéias do jo- vem Marx, havia uma necessidade cada vez mais forte 44 GEORG LUKACS de demarcar minha posicao em relagéo aos seus con- temporaneos tedricos, que se situavam na ala esquerda do processo de dissolugao da filosofia hegeliana e do “socialismo verdadeiro”, freqiientemente ligado a ela. Essa intencao também contribuiu para que as tendén- cias de concretizacao filos6fica do problema econémi- co e do seu desenvolvimento social surgissem ainda mais energicamente em primeiro plano. Na verdade, 0 exame acritico de Hegel nao é de modo algum supera- do, ea critica contra Hess parte, tal como Histéria e cons- ciéncia de classe, da suposta identidade entre objetiva- cdo e alienacao. O progresso em relagio 4 concepgio anterior assume agora uma forma paradoxal: por um lado, contra Lassalle e os jovens hegelianos radicais, s0 colocadas em primeiro plano aquelas tendéncias de He- gel para apresentar as categorias econ6micas como rea- lidades sociais e, por outro, ha uma veemente tomada de posicao contra o cardter ndo-dialético da critica de Feuerbach a Hegel. O Gltimo ponto de vista leva a constatagio jé sa- lientada de que Marx parte diretamente de Hegel, en- quanto o primeiro refere-se a tentativa de uma defini- do mais precisa da relagdo entre economia e dialética. Assim, por exemplo, partindo da Fenomenologia, acen- tua-se a énfase da imanéncia na dialética econdmico- social de Hegel, em contraposicéo a transcendéncia de todo idealismo subjetivo. Em igual medida, a alienagao é apreendida de tal maneira que nao é “nem um pro- duto do pensamento, nem uma realidade ‘reprovavel’, mas a forma de existéncia imediatamente dada do pre- sente como transicao para sua auto-superacdo no pro- cesso histérico”. A isso se junta um desenvolvimento HISTORIA £ CONSCIENCIA DE CLASSE 45 dirigido para a objetividade que se origina na Histéria e consciéncia de classe e diz respeito ao imediatismo e 4 me- diagao no processo de evolucéo da sociedade. O mais importante nessas idéias é que elas culminam na exi- géncia de um novo tipo de critica, que busca ja expres- samente uma conexao direta com a Critica da economia politica de Marx. Depois que compreendi, de modo de- cisivo ¢ fundamental, a falha de toda a estrutura de Hist6ria e consciéncia de classe, esse empenho assumia a forma de um plano com vistas a investigar os nexos fi- loséficos entre economia e dialética. Jé no inicio dos anos 30,em Moscou e em Berlim, fiz.a primeira tentativa de realizé-lo: a primeira versao do meu livro sobre 0 jovem Hegel (concluido somente no outono de 1937)". Trinta anos depois, tento dominar de fato esse conjunto de problemas numa ontologia do ser social, com a qual me ocupo no momento. Em que medida essas tendéncias progrediram nos trés anos que separam o ensaio sobre Hess das teses de Blum, hoje nao posso precisar, jé que nao existem do- cumentos. Creio somente que é muito improvavel que 0 trabalho pratico para o partido, que sempre exigia andlises econdmicas concretas, ndo me tenha trazido nenhum incentivo também do ponto de vista te6rico e econémico. Em todo caso, em 1929 ocorreu a grande vi- rada com as teses de Blum e, apés tal transformagao em minhas concepgées, em 1930 tornei-me colaborador cientifico do Instituto Marx-Engels de Moscou. Nesse 13, Georg Lukics, "Der junge Hegel", Werke, Luchterhand, wied, 1967, vol. 8. 46 GEORG LUKACS periodo, vieram em meu socorro dois felizes acasos: ti- ve a ocasido de ler o original, ja completamente decifra- do, dos Manuscritos econdmico-filoséficos e travei conhe- cimento com M. Lifschitz, dando inicio a uma amizade que duraria a vida inteira. A leitura dos textos de Marx rompeu todos os preconceitos idealistas da Histdria e consciéncia de classe. E certo que eu poderia ter encon- trado em seus outros textos, lidos anteriormente, idéias semelhantes para essa transformacao tedrica. Mas o fato é que isso nao aconteceu, obviamente porque os lia desde 0 infcio com base em minha prépria interpre- tagio hegeliana, e somente um texto completamente no- vo poderia provocar esse choque. (Acrescente-se a isso, naturalmente, o fato de que, nessa época, eu jé havia superado 0 fundamento politico-social desse idealis- mo nas teses de Blum.) De qualquer modo, ainda con- sigo me lembrar do efeito transformador que produ- ziu em mim as palavras de Marx sobre a objetificacéo como propriedade material priméria de todas as coisas errelagdes. A isso se somava a compreensao, jé mencio- nada, de que a objetificacao é um tipo natural - positi- vo ou negativo, conforme o caso ~do dominio humano sobre o mundo, ao passo que a alienagao representa uma variante especial que se realiza sob determinadas circunstancias sociais. Com isso, desmoronavam defi- nitivamente os fundamentos tedricos daquilo que fize- ra a particularidade da Histéria e consciéncia de classe. O livro se tornou inteiramente alheio a mim, do mes- mo modo que meus escritos de 1918-19. Isso ficou cla- ro de uma s6 vez: se quero realizar o que tenho teori- camente em mente, entao tenho de recomesar tudo des- de o principio. HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE a7 Quis entdo registrar por escrito e para 0 ptiblico minha nova posicao. Essa tentativa, contudo, nao pode ser condlufda, pois nesse interim 0 manuscrito se per- deu. Nao me preocupei muito na época: encontrava-me ébrio de entusiasmo pelo novo comeco. Mas via tam- bém que isso s6 podia fazer sentido com base em novos estudos bastante amplos, que seriam necessarios mui- tos desvios para me colocar em condigéo de apresentar adequadamente, de maneira cientifica e marxista, aqui- lo que na Histdria e consciéncia de classe seguia por uma trilha equivocada, Jé mencionei um desses desvios: aquele que partia do estudo de Hegel, pasando pelo projeto de obra sobre economia e dialética, até chegar 4 minha atual tentativa de uma ontologia do ser social. Paralelamente, quis aproveitar meus conhecimentos nos dominios da literatura, da arte e da sua teoria para construir uma estética marxista. Nesse contexto surgiu © primeiro trabalho com M. Lifschitz. Depois de mui- las conversas, tornou-se claro para ambos que mesmo os melhores e mais capacitados marxistas, como Plekhanov e Mehring, ndo haviam apreendido com suficiente pro- fundidade o cardter universal da concepcao de mundo, do marxismo e, por isso, nado compreenderam que Ma também nos coloca a tarefa de edificar uma estética sis-| temética sobre um fundamento dialético-materialista. Nao cabe aqui descrever os grandes méritos filoséfi- cos € [ilol6gicos de Lifschitz nesse dominio. Quanto a mim, fo: nessa 6poca que escrevi o ensaio sobre o deba- te de Sickingen entre Marx-Engels e Lasalle", no qual 14, In: Internationale Litteratur, Moscou, 1933, ano 3, nsimero 2, PP. 95-126. 48 GEORG LUKACS ja se tornam claramente visiveis os contornos dessa con- cepgao, limitados naturalmente a um problema parti- cular. Apés uma resisténcia inicial muito forte, princi- palmente por parte da sociologia vulgar, essa concepcéo impés-se, nesse interim, em amplos circulos do marxis mo. Nao vém ao caso maiores indicacdes a esse respei- to. Quero apenas indicar rapidamente que a virada filo- séfica geral em meu pensamento exprimiu-se de manei- ra inequivoca durante minha atividade como critico em Berlim (1931-33). Ao criticar sobretudo as tendéncias na- turalistas, néo era apenas o problema da mimese que se colocava no centro dos meus interesses, mas também a aplicacao da dialética sobre a teoria do reflexo. Pois, de fato, a todo naturalismo subjaz teoricamente o espe- Ihamento “fotogréfico” da realidade. A énfase aguda da oposigéo entre realismo ¢ naturalismo, que falta tanto ao marxismo vulgar como s teorias burguesas, é um pres- suposto insubstituivel da teoria dialética do reflexo e, conseqiientemente, também de uma estética no espiri- to de Marx. Embora essas observag6es nao facam parte estri- tamente do tema aqui tratado, elas eram necessérias para indicar a direcao e os motivos daquela virada que significou para minha producéo 0 reconhecimento da falsidade dos fundamentos da Histéria e consciéncia de classe. Isso me da o direito de ver neles o ponto de che- gada dos meus anos de aprendizado e, com eles, o meu desenvolvimento de juventude. Neste momento, tra- ta-se apenas de fazer algumas observagées minha fa- migerada autocritica a respeito da Histdria e consciéncia de classe. Preciso iniciar com uma confissdo: sempre fui extremamente indiferente em relagio aos meus traba- HISTORIAE CONSCIENCIA DE CLASSE 49 Thos intelectualmente ultrapassados. Assim, um ano apés a publicacdo de A alma ¢ as formas, escrevi, numa carta de agradecimento a Margarethe Susmann pela recensio do livro, que “o todo e sua forma haviam se tornado estranhos para mim”. Foi assim com a Teoria do romance e com a Histdria e consciéncia de classe. Ora, quando voltei a Unido Soviética, em 1933, com a perspectiva de uma atividade frutifera - 0 papel de oposigéo, no campo teérico ¢ literério, da revista Lite- raturni Xritik, entre 1934-39, € conhecido por todos -, senti uma necessidade tatica de manter abertamente certa distancia em relacdo a Historia e consciéncia de clas- se, para que a verdadeira luta dos resistentes contra as teorias oficiais e semi-oficiais da literatura nao fosse prejudicada por contra-ataques, nos quais, segundo minha propria conviccao, o adversdrio teria tido efeti- vamente razao, por mais limitada que fosse sua capa- cidade de argumentacao. Naturalmente, tive de subme- ter-me as regras de linguagem em vigor na época para poder publicar uma autocritica. Mas este foi o tinico elemento de adaptagao nessa declaragao. Mais uma vez, era o preco a ser pago para prosseguir com a luta de resisténcia. A diferenca em relagdo a autocritica ante- rior a respeito das teses de Blum 6, “apenas”, a de que eu considerava entdo, e considero ainda hoje, franca e efetivamente, a Histdria e consciéncia de classe como um livro ersneo. Do mesmo modo, continuo a crer que tive razdo em combater posteriormente aqueles que tenta- ram se identificar com minhas auténticas aspiracées, quando fizeram dos defeitos desse livro novas pala- vras de ordem. As quatro décadas que se passaram des- de o aparecimento da Histéria e consciéncia de classe, a 50 GEORG LUKACS mudanga nas condigdes de luta pelo auténtico método marxista, além de minha propria producdo nesse perio- do talvez permitam, doravante, uma tomada de posigao menos abrupta e unilateral. Nao é minha tarefa, eviden- temente, estabelecer em que grau certas tendéncias da Histéria e consciéncia de classe, justas em sua intencao, produziram um resultado correto e orientado para o fu- turo, na minha atividade e, eventualmente, na de outros. Hé nisso todo um conjunto de questées, cuja decisio posso entregar tranqiiilamente ao juizo da historia. Budapeste, marco de 1967. PREFACIO (1922) A reunio e a publicacao desses ensaios sob a for- ma de livro nao pretende lhes atribuir uma importan- cia maior do que teriam isoladamente. Com excecao dos textos “A reificacéo e a consciéncia do proletariado” e “Observagies metodolégicas sobre a questdo da orga- nizagio”, que foram escritos especialmente para este livro numa época de écio involuntério, ainda que tra- balhos de circunstancia Ihes tenham servido de funda- mento, esses estudos nasceram em sua maior parte em meio ao trabalho partidério, como tentativa de escla- recer para o proprio autor e para seus leitores questdes tedricas do movimento revolucionério. Embora tenham sido reescritos, nada perderam em relagio ao seu caré- ter de trabalhos de circunsténcia. No caso de certos en- saias, s° sua reformulacdo tivesse sido radical, isso te- ria sigrificado a destruicao do seu niicleo essencial, a meu ver correto. E assim, por exemplo, que no ensaio sobre “A mudanga de fungao do materialismo hist6ri- 0”, ressoam aquelas esperangas exageradas e otimistas que muitos de nés tivemos a época quanto & duracao e oe GEORG LUKACS ao ritmo da revolugio etc. Portanto, 0 leitor nao deve esperar desses ensaios um sistema cientifico completo. De todo modo, existe uma certa coesao objetiva, que também se expressa na seqiiéncia dos ensaios, Por essa razio, é melhor que sejam lidos na ordem em que aparecem. No entanto, 0 autor aconselharia aos leitores desprovidos de conhecimentos filos6ficos a saltar, por enquanto, 0 ensaio sobre a reificacao e a lé-lo somente depois da leitura de todo o livro. E preciso explicar aqui, em algumas palavras, o que talvez seja supérfluo para muitos leitores, por que a ex- posicao e a interpretacao da doutrina de Rosa Luxem- burgo ea sua discussao ocupam um espaco tio amplo nessas paginas. Nao é somente porque Rosa Luxem- burgo foi, a meu ver, a tinica discipula de Marx a pro- longar realmente a obra de sua vida tanto no sentido dos fatos econémicos quanto no do método econémico e, desse ponto de vista, a se colocar concretamente no ni- vel atual do desenvolvimento social. Naturalmente, conforme o objetivo fixado, nessas paginas o peso deci- sivo 6 colocado sobre o aspecto metodoldgico das ques tes. A exatidao econdmica factual da teoria da acumu- ago, assim como as teorias econémicas de Marx, ndo sao discutidas, mas somente examinadas em seus pre supostos e suas conseqiiéncias metodolégicas. De qual- quer maneira, ficard claro a todo leitor que o autor tam- bém esta de acordo com seu contetido de fato. Por ou- tro lado, essas questdes também tinham de ser tratadas em detalhe, porque a orientacao de Rosa foi, e ainda 6, em parte, teoricamente determinante, tanto em suas con- seqiiéncias fecundas como em seus erros, para mui- tos marxistas revolucionérios ndo-russos, sobretudo HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 53 na Alemanha. Para quem partiu desse ponto, uma ati- tude realmente comunista, revolucionaria e marxista 86 pode ser adquirida mediante uma discussio critica da obra teGrica de Rosa Luxemburgo. Se seguirmos por essa via, veremos que 0s escritos e discursos de Lénin tornam-se decisivos no que diz res- peito ao método, Nao é nossa intengao entrar na obra po- Iitica de Lenin, Porém, justamente por causa da unilate- ralidade e da limitacdo conscientes da sua tarefa, estas paginas devem lembrar com insisténcia o que significa © Lénin iedrico para o desenvolvimento do marxismo. Sua forga dominante como politico oculta hoje para mui: tos o papel que teve como tedrico. Pois a importancia prética eatual de cada uma de suas afirmagées sobre 0 instante dado 6 sempre muito grande para que todos possam ver claramente que a condigéo prévia de tal efi- cécia reside, em dltima andlise, na profundidade, na grandeza e na fecundidade de Lénin como teérico. Essa eficdcia decorre do fato de que ele elevou a esséncia pra: tica do marxismo a um nivel de clareza e concregéo nun- ca antes atingido; e também do fato de que ele salvou ‘essa dimensao de um esquecimento quase total e, por esse alo tedrico, nos entregou a chave para uma com- preensao do método marxista. Trata-se, pois - e essa é a convicgao fundamental destas paginas -, de compreender corretamente a essén- cia do método de Marx e de aplicd-lo corretamente, sem nunca “corrigi-lo”, em qualquer sentido que seja. Se algumas paginas contém uma polémica contra cer- tas declarages de Engels, como deve notar todo leitor compreensivo, é em nome do espirito de conjunto do sistema, partindo da concepcao, correta ou nao, de que 54 (GEORG LuKAcs a respeito desses pontos particulares o autor representa, contra Engels, 0 ponto de vista do marxismo ortodoxo. Se, portanto, nos atemos aqui a doutrina de Marx, sem tentar desvid-la, aperfeicod-la ou corrigi-la; se es- ses comentérios tém, como mais alta ambicao, consti- tuir uma interpretagio, uma explicacao da doutrina de Marx no sentido de Marx, essa “ortodoxia” nao implica absolutamente que se tenha a intencao, segundo as pa~ lavras do senhor Von Struve, de preservar a “integr dade estética” do sistema de Marx. Nossa meta é de- terminada, antes de mais nada, pela conviccao de que a doutrina eo método de Marx trazem, enfim, o método correto para o conhecimento da sociedade e da historia. Esse método, em sua esséncia mais intima, é hist6rico. Por conseguinte, é preciso aplica-lo continuamente a si mesmo, e esse é um dos pontos essenciais desses en- saios. Mas isso implica, ao mesmo tempo, uma toma- da de posicao efetiva em relagao ao contetido dos pro- blemas atuais, visto que, em conseqiiéncia dessa con- cepgéo do método marxista, sua meta mais eminente © corthecimento do presente. A postura metodolégica des- ses ensaios permitiu entrar no detalhe de questées con- cretas da atualidade apenas parcimoniosamente. Por isso, 0 autor faz questdo de explicar aqui que, em sua opiniao, as experiéncias dos anos da revolugao confir- maram brilhantemente todos os momentos essenciais do marxismy ortodoxo (e, portanto, comunista); que a guerra, a crise ea revolucao, inclusive o ritmo mais len- - to, por assim dizer, do desenvolvimento da revolugéo a nova politica econdmica da Russia soviética, ndo co- locaram um tinico problema que nao possa ser resolvi- do justamente pelo método dialético assim compreen- HISTORIA & CONSCIENCIA DE CLASSE 55 dido e por ele somente. As respostas concretas as ques- tes praticas particulares estdo fora do ambito desses ensaios. Sua tarefa é tornar compreensivel para nés 0 método de Marx e de trazer a plena luz sua fecundida- de infinita para a solugdo de problemas que, do con- trério, seriam insoliveis. ‘Aessa finalidade devem servir as citagées das obras de Marx e Engels, sem diivida bastante abundantes aos olhos de certos leitores. Mas toda citagao 6, a0 mesmo tempo, uma interpretacdo. E parece ao autor que muitos aspectos absolutamente essenciais do método de Marx, e justamente aqueles que importam de modo mais de- cisivo para a compreensao do método em sua coesdo efetiva e sistemdtica, cairam indevidamente no esque- cimento, e que a compreensao do centro vital desse mé- todo, da dialétioa, tornou-se dificil e quase impossivel. Todavia, é impossivel tratar o problema da dialé- tica concreta e histérica sem estudar de perto 0 funda- dor desse método, Hegel, e suas relagdes com Marx. A adverténcia de Marx para ndo tratar Hegel como um “cachorro morto” foi em vao, mesmo para muitos bons marxistas. (Os esforcos de Engels e de Plekhanov tam- bém tiveram pouquissimos resultados.) No entanto, fre- qiientemente Marx sublinha com acuidade esse perigo; assim escreve a propésito de Dietzgen: “E uma pena para ele que nao tenha estudado justo Hegel” (carta a Engels, 7/11/1868). E em outra carta (11/1/1868): “Es- ses senhores na Alemanha (...] acreditam que a dialéti- ca de Hegel seja um ‘cachorro morto’. Feuerbach tem a consciéncia pesada quanto a esse aspecto.” Ao folhear novamente a logica de Hegel, Marx ressalta (14/1/1858) s “grandes servicos” que a obra prestou ao método de 56 GEORG LUKACS seu trabalho sobre a critica da economia politica. Nao se trata aqui, todavia, do aspecto filolégico das relagoes, entre Marx e Hegel; ndo se trata das idéias de Marx so- brea importancia da dialética hegeliana para o seu pré- prio método, mas do que esse método significa de fato para o marxismo. Essas declaragées, que poderiam ser multiplicadas a vontade, foram citadas apenas porque a passagem conhecida do “Prefécio” de O capital, em que Marx se explicou pela tiltima vez sobre suas relacoes com Hegel, contribuiram muito para subestimar a im- portancia efetiva dessas relacdes, mesmo pelos marxis- tas. Nao me refiro absolutamente a caracterizagao prag- mitica dessas relagées, com a qual estou inteiramente de acordo e que tentei concretizar metodologicamente nessas paginas. Refiro-me apenas palavra “flerte” com “o modo de expresso” de Hegel. Isso induziu freqiiente- mente a considerar a dialética em Marx como um acrés- cimo estilistico superficial que, no interesse do cardter cientifico, deveria ser eliminado do método do mate- rialismo hist6rico do modo mais enérgico possivel. Tan- to que mesmo pesquisadores bastante conscienciosos, como o professor Vorlander, imaginaram poder provar que Marx havia “flertado” com os conceitos hegelia- nos, “a dizer a verdade, somente em duas passagens”, ¢ depois ainda numa “terceira”, sem notar que toda uma série de categorias decisioas continuamente empregadas provém direlamente da l6gica de Hegel. Visto que mes- mo a origem hegeliana e a importancia metodolégica efetiva de uma distincao tao fundamental para Marx quanto aquela entre imediatismo e mediagao puderam passar despercebidas, pode-se infelizmente dizer com azo, ainda hoje, que Hegel (ainda que seja novamen- HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 57 te “recebido na Universidade” e esteja quase na moda) continua sendo tratado como um “cachorro morto”. 0 que diria o professor Vorlinder a um historiador de filosofia que ndo percebesse, nos trabalhos de um seguidor do método kantiano, por mais original e critico que fos- se, que, por exemplo, a “unidade sintética da apercep- ao” tem sua origem na Critica da razdo pura? O autor destas paginas gostaria de romper com tais concepgoes. Ele acredita que hoje também é importan- te, do ponto de vista pritico, retornar, a esse respeito, as tradigoes de interpretagio de Marx dadas por Engels (que coasiderava “o movimento operario alemao” como © “herdeiro da filosofia classica alema) e por Plekha- nov. Acredita ainda que todos os bons marxistas deve- riam, segundo a palavra de Lénin, constituir “uma es- pécie de sociedade dos amigos materialistas da dialé- tica hegeliana”. Todavia, a situacdo de Hegel hoje é inteiramente inversa daquela do proprio Marx. Trata-se, neste tilti- |mo caso, de compreender o sistema e 0 método — fal \ como eles nos sfo dados ~ em sua unidade coerente e de reservar essa unidade, No primeiro caso, ao contrario, a tarefa consiste em proceder a uma discriminagao entre as tendéncias multiplas que se entrecruzam e que, em parte, se contradizem violentamente, e em salvar, en- quanto poténcia intelectual viva para o presente, o que ha de metodologicamente fecundo em seu pensamento. Essa fecundidade e essa poténcia sdo bem maiores do que muitos acreditam. E parece-me que quanto mais esti- vermos em condicao de concretizar energicamente essa questao— 0 que por certo exige o conhecimento dos es- critos de Hegel (é uma vergonha que seja preciso dizé- 58 GEORG LUKACS o explicitamente, mas é preciso fazé-lo) -, mais eviden- tes serdo essa fecundidade e essa poténcia. Contudo, nao sera mais sob a forma de um sistema fechado. O sistema de Hegel, tal qual nos é dado, é um fato hist6- rico. E mesmo nesse caso, penso que uma critica real- mente penetrante seria obrigada a constatar que nao se trata de um sistema com uma verdadeira unidade in- terior, mas varios sistemas imbricados uns nos outros. (As contradicdes do método entre a fenomenologia ¢ 0 proprio sistema sdo apenas um exemplo desses des- vios.) Se, portanto, Hegel néo deve mais ser tratado como um “cachorro morto”, é preciso que a arquitetu- ra morta do sistema historicamente dado seja desman- telada para que as tendéncias ainda muito atuais do seu pensamento possam voltar a ser eficazes e vives. £ universalmente conhecido que Marx alimenta- va o projeto de escrever uma dialética. “As justas leis da dialética”, escrevia a Dietzgen, “jé estdo contidas em Hegel; porém, sob uma forma mistica. Trata-se de despojé-las dessa forma.” Em nenhum instante estas paginas tem a pretensao —e espero que nao haja neces- sidade de insistir nisso particularmente ~ de oferecer sequer o esboco de tal dialética. Sua intengao 6, antes, suscitar uma discussio nessa diregio, recolocando essa questo na ordem do dia do ponto de vista do método. Por isso, todas as ocasiées foram utilizadas para cha- mar a atengo sobre essas conexées metodolégicas, para poder indicar, da forma mais concreta possfvel, os pon- tos em que as categorias do método hegeliano torna- ram-se decisivas para o materialismo histérico, bem como aqueles em que as vias de Hegel e de Marx se se- param claramente. Desse modo, espera-se fornecer um HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 59 material e, se possfvel, uma orientagdo a necesséria dis- cussiio dessa questao. Em certa medida, essa intengio foi responsavel pela abordagem detalhada da filosofia clés- sica na segunda parte do ensaio sobre a reificagao. (Mas apenas em certa medida, pois pareceu-me igualmente necessdrio estudar as contradigGes do pensamento bur- gués nos casos em que esse pensamento encontrou sua mais alia expressao filos6fica.) Desenvolvimentos como os que estado contidos nessas paginas tém o inevitavel defeito de nao respon- der a exigéncia, justificada, de serem cientificamente compleios e sistematicos, sem todavia servirem, em tro- ca, pare a vulgarizacao. Estou perfeitamente conscien- te desse defeito. Mas a descricao da maneira como es- ses ensaios nasceram e do seu objetivo deve servir, no tanto como desculpa, mas para incitar - 0 que 6 a meta real desses trabalhos ~ a fazer da questo do mé- todo dialético - enquanto questdo viva e atual - 0 ob- jeto de uma discussio. Se esses ensaios fornecerem 0 comeco, ou mesmo somente a ocasiao, de uma discus- sio realmente frutffera sobre 0 método dialético, de ‘uma discussio que faca com que todos voltem a se cons- cientizer da esséncia desse método, terao cumprido in- teiramente sua tarefa. JA que € feita mencao a tais defeitos, que seja tam- bém chamada a atengao do leitor nao habituado a dia- lética para a dificuldade inevitavel ¢ inerente a esséncia do método dialético, Trata-se da questdo da definicao dos conceitos e da terminologia. £ préprio da esséncia do método dialético que nele os conceitos falsos sejam superados em sua unilateralidade abstrata. No entanto, esse processo de superagao obriga, ao mesmo tempo, 60 GEORG LUKACS a operar constantemente com conceitos unilaterais, abs- tratos e falsos, e a dar aos conceitos sua significagao correta, menos por definicao que pela funcéo metodo- l6gica que recebem na totalidade enquanto momentos jsuperados. Contudo, é mais dificil fixar terminologica- |mente essa transformacao de significagdes na dialética |corrigida por Marx do que na propria dialética hegelia- Pois, se os conceitos sdo apenas representagées inte- lectuais de realidades hist6ricas, sua forma unilateral, abstrata e falsa também faz parte, enquanto momento da unidade verdadeira, desta unidade verdadeira. Os desenvolvimentos de Hegel sobre essa dificuldade de terminologia no “Prefacio” & Fenomenologia sao, portan- to, ainda mais justos do que o proprio Hegel pensa quan- do diz: “Da mesma maneira, a expressao unidade do sujeito e do objeto, do finito e do infinito, do ser e do pen- samento etc., apresenta o inconveniente de que os ter- mos objeto e sujeito, entre outros, designam o que eles so fora de sua unidade; em sua unidade nao tém mais 0 sentido que sua expressao enuncia; é justamente assim que o falso, enquanto falso, deixa de ser um momento da verdade.” Na pura historicizacao da dialética, essa constatagdo se dialetiza mais uma vez: 0 “falso” é, a0 mesmo tempo, um momento do “verdadeiro” enquan- to “falso” e enquanto “ndo-falso”. Quando, portanto, aqueles que se profissionalizam em “ultrapassar Marx” falam de uma “falta de precisdo conccitual” cm Marx, de “simples imagens” em vez de “definigdes” etc., ofe- recem um espetdculo téo desolador quanto a “critica de Hegel” por Schopenhauer e a tentativa de apontar nele “erros l6gicos”: apresentam o espetdculo de sua to- tal incapacidade para compreender pelo menos 0 abc HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 61 do méiodo dialético. Mas um dialético conseqiiente perceberd nessa incapacidade nao tanto a oposigéo en- tre métodos cientificos diferentes, mas um fenémeno social, que ele refutou e superou dialeticamente, com- preendendo-o como fenémeno social e hist6rico. Viena, Natal de 1922. O QUE £ MARXISMO ORTODOXO? 3s filésofos apenas interpretaram o mundo de di- ferentes maneiras, trata-se, porém, de transformé-lo. MARX, Thesen iiber Feuerbach ITeses sobre Feuerbach} Essa questo, na verdade bastante simples, trans- formou-se, tanto nos meios burgueses quanto nos meios proletérios, objeto de miiltiplas discussdes. No entan- to, passou a ser de bom tom cientifico ridicularizar toda profissdo de f6 do marxismo ortodoxo. A falta de acordo parecia reinar no campo “socialista” quanto questao de saber quais so as teses que constituem a quintesséncia do marxismo e, por conseguinte, quais so aquelas que “podem” ser contestadas ou até mes- mo rejeitadas, sem que percamos o direito ao titulo de “marxistas ortodoxos”. Como conseqiiéncia, a interpre- tacdo escoldstica de frases e citagSes de obras antigas, em parte “ultrapassadas” pela pesquisa moderna, pas- sou a ser considerada cada vez mais como “nao-cienti- fica”, Além de atribuir a essas frases um caréter biblico e de ver nelas uma fonte de verdade, tal interpretacao nao se entregava “imparcialmente” aos estudos dos “fa- tos”. Se a questo fosse realmente colocada desse modo, a resposta mais apropriada seria, por certo, um sorriso 64 GEORG LUKAcS de piedade. Mas a questo nao ¢ tao simples e jamais 0 foi. Suponhamos, pois, mesmo sem admitir, que a in- vestigacéo contemporanea tenha provado a inexati- dao pratica de cada afirmagao de Marx. Um marxista “ortodoxo” sério poderia reconhecer incondicionalmen- te todos esses novos resultados, rejeitar todas as te particulares de Marx, sem, no entanto, ser obrigado, por um tinico instante, a renunciar A sua ortodoxia marxis- ta. O marxismo ortodoxo nao significa, portanto, um reconhecimento sem critica dos resultados da investi- gacdo de Marx, ndo significa uma “fé” numa ou nou- tra tese, nem a exegese de um livro “sagrado”. Em ma- téria de marxismo, a ortodoxia se refere antes e exclu- sivamente ao método. Ela implica a convicgao cientitfica de que, com 0 marxismo dialético, foi encontrado 0 método de investigacdo correto, que esse método s6 pode ser desenvolvido, aperfeigoado e aprofundado no sentido dos seus fundadores, mas que todas as ten- tativas para superé-lo ou “aperfeicod-lo” conduziram somente a banalizacao, a fazer dele um ecletismo - e tinham necessariamente de conduzir a isso. A dialética materialista 6 uma dialética revolucio- néria. Essa determinagao € tao importante e de um eso tao decisivo para a compreensdo de sua esséncia, que, antes mesmo de discorrermos sobre © método dialético em si, temos de entendé-la para abordarmos 0 problema de forma correta. Trata-se aqui da questo da teoria e da prética, e ndo somente no sentido em HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 65 que Mazx! a entendia em sua primeira critica hegeliana, quando dizia que a “teoria torna-se forca material des- de que se apodere das massas”. Trata-se, antes, de inves- tigar, tanto na teoria como na maneira como ela penetra nas massas, esses momentos e essas determinacdes que fazem éa teoria, do método dialético, 0 veiculo da revo- lucdo; trata-se, por fim, de desenvolver a esséncia prati- cada teoria a partir da teoria e da relagdo que estabele- ce com seu objeto. Pois, sem isso, esse “apoderar-se das massas” poderia parecer vazio. & possivel que as mas- sas, movidas por impulsos muito diferentes, buscassem também objetivos muito diferentes, e que a teoria re- presentasse, para seu movimento, um contetido pura- mente contingente, uma forma pela qual as massas ele- vassem a consciéncia sua agio socialmente necesséria ou casual, sem que essa conscientizagio estivesse liga da, de maneira essencial ou real, a propria acao. Marx? exprimiu claramente no mesmo ensaio as condiges de possibilidade dessa relagio entre a teoria ea praxis: “Nao basta que o pensamento tenda para a realidade; 6 a propria realidade que deve tender para © pensamento.” Ou, num ensaio anterior®: “Ver-se-A en- tdo que hd muito o mundo sonha com uma coisa da qual basta que ela possua a consciéncia para possui-la real- mente.” Apenas tal relacao da consciéncia com a reali dade torna posstvel a unidade entre a teoria ea praxis. Para tanto, a conscientizagéo precisa se transformar no passo decisivo a ser dado pelo processo histérico em di- 1 Einleitung zur Kritk derHegelschen Rechisphilosophie, MEW 1, p. 385 2. id, p. 386. 3, Cartas dos Anais franco-alemies, MEW 1, p. 346. 66 GEORG LUKACS rego ao seu proprio objetivo (objetivo este constitui- do pela vontade humana, mas que n4o depende do li- vre-arbitrio humano e nao é um produto da invencéo intelectual). Somente quando a funcdo histérica da teo- ria consistir no fato de tornar esse passo possivel na prética; quando for dada uma situagio histérica, na qual © conhecimento exato da sociedade tornar-se, para uma classe, a condicao imediata de sua auto-afirmacao na luta; quando, para essa classe, seu autoconhecimento significar, ao mesmo tempo, 0 conhecimento correto de toda a sociedade; quando, por conseqiiéncia, para tal conhecimento, essa classe for, ao mesmo tempo, sujeito e objeto do conhecimento e, portanto, a teoria interferir de modo imediato e adequado no processo de revolugéo social, somente entao a unidade da teoria e da pratica, enquanto condicao prévia da fungéo revolucionaria da teoria, seré possivel. Essa situacao surgiu com o aparecimento do prole- tariado na hist6ria. “Quando o proletariado”, diz Marx‘, ““preconiza a dissolugao da ordem do mundo existente até hoje, ele se refere apenas ao segredo de sua propria existéncia, pois constitui a dissolugio efetiva dessa or- dem do mundo.” A teoria que anuncia isso nao se vin- cula a revolugéo de uma maneira mais ou menos con- tingente, por relagdes interligadas e “mal interpretadas”. Ela 6 essencialmente apenas a expresso pensada do proprio processo revolucionério. Cada etapa desse pro- cesso se fixa na teoria para assim se tornar generalizé- 4. Eimleitung zur Kritik der Hegelschen Rechtsphilosophie, MEW I, p. 391. Cf. também sobre essa questdo o ensaio “Consciéncia de classe”, HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE o7 vel e comunicavel, para ser aproveitada e continuada. Uma vez que € apenas a fixacao e a consciéncia de um asso necessario, ela se torna, ao mesmo tempo, a con- digo prévia e necessdria do passo seguinte. O esclarecimento dessa funcao da teoria constitui também a via para o conhecimento de sua esséncia teGrica, isto é, para o método dialético. O fato de se ter negligenciado esse ponto simplesmente decisivo trou- xe muita confusdo para as discussdes sobre 0 método dialético. Pois, mesmo que se critiquem as exposigoes de Engels no Antidithring (decisivas para a evolugéo ulterior da teoria), que se as considere incompletas, talvez.até insuficientes ou classicas, € preciso reconhe- cer que lhes falta justamente essa dimensio. Com efei- to, Engels descreve a conceitualizacao do método dia- ético opondo-o & conceitualizagéo “metafisica” ; subli- nha de maneira penetrante o fato de que, no método dialético, a rigidez dos conceitos (e dos objetos que Ihes correspondem) é dissolvida, que a dialética é um processo constante da passagem fluida de uma deter- minacéo para a outra, uma superagio permanente dos contrarios, que ela é sua passagem de um para dentro do outzo; que, por conseqiiéncia, a causalidade unila- teral e rigida deve ser substituida pela agéo reciproca. Mas 0 aspecto mais essencial dessa agio reciproca, a relagio dialética do sujeito e do objeto no processo da hist6- ria, nao chega a ser mencionady, ¢ muito menos colo- cado no centro (como deveria sé-lo) das consideracdes metodolégicas. Ora, privado dessa determinagio, 0 método dialético (malgrado a manutengdo, puramen- te aparente, é verdade, dos conceitos “fluidos”) deixa de ser um método revolucionério. A diferenga em re- 68 GEORG LUKACS lago & “metafisica” ndo 6 mais procurada no fato de que em todo estudo “metafisico” o objeto de estudo deve permanecer intocado e imodificado e que, por conseguinte, 0 estudo permanece numa perspectiva puramente contemplatioa, sem se tornar pratico, enquan- to para o método dialético a transformacao da realidade constitui o problema central. Se negligenciarmos essa fungio central da teoria, a vantagem da conceitualiza- do “fluida” torna-se bastante problematica ou, por as- sim dizer, um assunto puramente “cientifico”. O méto- do pode ser rejeitado ou aceito, segundo o estado da ciéncia, sem que a atitude fundamental diante da rea- lidade e do seu carter modificdvel ou imutdvel so- fra a menor mudanga. A impenetrabilidade, o cardter fatalista e imutével da realidade, sua “legalidade” no sentido do materialismo burgués e contemplativo eda economia classica que Ihe esta intimamente relaciona- da, podem até ser reforcados, do mesmo modo como ocorreu aos adeptos do marxismo, discfpulos de Mach. O fato de que o pensamento de Mach possa engendrar um voluntarismo ~ igualmente burgués ~ ndo contra- diz inteiramente essa afirmacao. Fatalismo e volunta- rismo so contraditérios apenas numa perspectiva ndo-dialética e anist6rica. Para a concepsio dialética da histéria, eles provam ser pélos que se complementam necessariamente, reflexos intelectuais em que o anta- gonismo da ordem social capitalista e a impossibilida- de de resolver seus problemas em seu proprio dominio se exprimem claramente. Sendo assim, toda tentativa de aprofundar o mé- todo dialético de maneira “critica” conduz necessaria- mente a uma banalizacao. Com efeito, o ponto de parti- HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 6 da metédico de toda tomada de posi¢ao critica consiste justamente na separacao entre método e realidade, en- tre pensamento e ser. Ela vé justamente nessa separacao © progresso que lhe deve ser atribufdo como um méri- to, no sentido de uma ciéncia de caréter autenticamen- te cientifico, por oposicao ao materialismo grosseiro e acritico do método marxista. Naturalmente, esté livre para fazé-lo, mas é preciso constatar que ela ndo se move ra diregéo que constitui a esséncia mais intima do método dialético. Marx e Engels exprimiram-se a esse respeito de maneira inequivoca: “Desse modo, a dialética reduziu-se a ciéncia das leis gerais do movi- mento, tanto do mundo exterior quanto do pensamen- to humano ~ duas séries de leis, que no fundo sao idén- ticas ...1”, diz Engels’. Ou ainda, como Marx® escreveu com muito mais exatidao: “Como em toda ciéncia social hist6rica, no estudo do movimento das categorias eco- némicas |[...] 6 preciso ter sempre em vista que as cate- gorias exprimem formas e condicdes de existéncia (..1” Quando esse sentido do método dialético ¢ obscu- recido, ele aparece necessariamente como um suple- 5, Feuerbach, MEW 21, p. 293 (grifado por mim). 6, 2ur Kritik der poltischen Okonomie, MEW 13, p. 637 (grifado por ‘mim). Esta restrigio do método & realidade histérico-social é muito im- ‘portante. Os equivocos surgidos a partir da exposicio de Engels sobrea dialética baseiam-se essencialmente no fato de que Engels - seguindo o ‘mau exemplo de Hegel —estende o método dialético também para 0 co: mhecimento da natureza. No entanto, as determinagies decisivas da dialética (interago entre sujeito e objeto, unidade de teoria e pratica, ‘modificagio hist6rica do substrato das categorias como fundamento de ‘sua modificagio no pensamento etc) no estdo presentes no conheci- mento da natureza. Infelizmente néo é possivel discutirmos aqui em detalles essas questées. 70 GEORG LuKACS mento inttil, um simples ornamento da “sociologia” ou da “economia” marxistas, Surge mesmo como um obs- téculo ao estudo “sébrio e imparcial” dos “fatos”, como uma construcdo vazia, por meio da qual o marxismo violenta os fatos. Bernstein exprimiu com mais clareza ¢ formulou com maior precisao essa objecdo ao método dialético, em parte devido a sua “imparcialidade” que no chegava a ser inibida por nenhum conhecimento fi- loséfico. Todavia, as conseqiiéncias reais, politicas e eco- nomicas que ele deduz de seu desejo de libertar 0 méto- do das “ciladas dialéticas” do hegelianismo mostram claramente aonde leva esse caminho. Mostram que & preciso justamente separar a dialética e 0 método do materialismo hist6rico se se quiser fundar uma teoria conseqiiente do oportunismo, da “evolugéo” sem revo- lucdo, da "passagem natural” e sem luta ao socialismo. 2 Nesse caso, no entanto, logo nos vemos diante de uma questo: 0 que significam, do ponto de vista me- tédico, esses fatos que toda a literatura revisionista idolatra? Em que medida pode-se ver neles fatores de orientacao para a ago do proletariado revolucionario? Evidentemente, todo conhecimento da realidade parte de fatos. Trata-se de saber quais dados da vida e em que contexto metddico merecem ser considerados como fatos importantes para o conhecimento. O empirismo limita- do contesta, na verdade, que os fatos s6 se tornam fa- tos por meio da elaboracdo de um metédo - que varia conforme a finalidade do conhecimento. Acredita po- HISTORIAE CONSCIENCIA DE CLASSE nm der encontrar em todo dado, em toda cifra estatisti- ca, em todo factum brutum da vida econémica um fato importante para si. Nao vé que a mais simples enume- ragao de “fatos”, a justaposicéo mais despojada de co- mentério ja é uma “interpretacdo”, que nesse nivel os fatos jé foram apreendidos a partir de uma teoria, de um método, que eles sao abstraidos do contexto da vida no qual se encontravam originariamente e introduzi- dos no contexto de uma teoria. Os oportunistas mais refinados, malgrado sua repugnancia instintiva e pro- funda por toda teoria, ndo o contestam de modo algum, mas invocam o método das ciéncias naturais, a manei- ra como estas so capazes de mediar os fatos “puros” pela observacao, abstracdo e experimentagio e so capa- zes de fundamentar suas relac6es. Além disso, opdem as construgdes violentas do método dialético esse ideal de conkecimento. O carter enganoso de tal método reside no fato de que o proprio desenvolvimento do capitalismo ten- de a produzir uma estrutura da sociedade que vai ao encontro dessas opinides. No entanto, é justamente nes- se sentido e por ele que precisamos do método dialético para no sucumbirmos a ilusdo social assim produzi- da e podermos entrever a esséncia por trés dessa ilu- so. Com efeito, os fatos “puros” das ciéncias naturais surgem da seguinte maneira: um fenémeno da vida é transpertado, realmente ou cm pensamento, para um contexto que permite estudar as leis as quais ele obe- dece sem a intervengio perturbadora de outros fend- menos. Esse processo é reforcado pelo fato de que os fenémenos sao reduzidos 4 sua pura esséncia quanti- tativa, a sua expresso em mtimero e em relagdes de ni- 72 GEORG LUKACS mero. Os oportunistas jamais se dao conta de que faz parte da esséncia do capitalismo produzir os fenémenos dessa maneira. Marx’ oferece uma descricao bastante convincente desse “processo de abstragao” da vida quan- do aborda o trabalho, mas nao se esquece de insistir, de maneira igualmente convincente, no fato de que se trata aqui de uma caracteristica histérica da socieda- de capitalista. “Desse modo, as abstracées mais gerais surgem somente na evolugao mais concreta, em que uma coisa aparece como sendo comum para muitos, comum a todos. Entdo ela ndo pode mais ser pensada unicamente sob sua forma particular.” Essa tendéncia da evolucao capitalista, todavia, vai ainda mais longe. O cardter fetichista da forma econdmica, a reificagao de todas as relacdes humanas, a extensao sempre cres- cente de uma divisdo do trabalho, que atomiza abstra- tamente e racionalmente o proceso de producdo, sem se preocupar com as possibilidades e capacidades hu- manas dos produtores imediatos, transformam os fe- némenos da sociedade e, com eles, sua apercepcao. Sur- gem fatos “isolados”, conjuntos de fatos isolados, se- tores particulares com leis proprias (teoria econémica, direito etc.) que, em sua aparéncia imediata, mostram- se largamente elaborados para esse estudo cientifico. Sendo assim, pode parecer particularmente “cientifi- co” levar até o fim e elevar ao nivel de uma ciéncia essa tendéncia ja inerente aos proprios fatos. Por outro lado, em oposicio a esses fatos e sistemas parciais isolados e isolantes, a dialética, além de insistir na unidade con- 7.Zur Krk der politischen Okonomie, MEW 13, p. 635. HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 73 creta de todo e desmascarar essa iluso enquanto ilu- so, produzida necessariamente pelo capitalismo, atua como uma simples construcio. ‘A natureza nao-cientifica desse método aparente- mente tio cientifico reside, portanto, na sua incapaci- dade de perceber o cardter histérico dos fatos que lhe servem de base e de levé-lo em conta. Mas nao hé aqui somente uma fonte de erro (que sempre escapa a essa investigacao), para a qual Engels* chamou explicita- mente a atencdo. A esséncia dessa fonte de erro reside no fato de que a estatistica e a teoria econdmica “exa- ta” construida sobre ela se arrastam claudicantes atras da evolucio, “Para a hist6ria contemporanea em cur- 80, seremos muitas vezes obrigados a tratar esse fator, © mais decisivo, como constante, a considerar a situa- gao econdmica encontrada no principio do perfodo em questa como dada para todo o periodo e invaridvel, oua levar em conta somente as modificacdes dessa si- tuagdo, que resultam de acontecimentos evidentes e, por conseguinte, também se mostram evidentes.” Por essa consideraao, percebe-se que existe algo muito problemitico no fato de a estrutura da sociedade capita- lista mostrar-se disponivel em relago ao método das Giéncias naturais, pois nisso reside a condigéo social prévia da sua exatidao. Se, com efeito, a estrutura in- terna dos “fatos” ¢ de suas rclagécs é apreendida na 8, Klassenktimpfe, Introdugéo, MEW 22, pp. 509-10: Mas no se deve esquecer que a “exatidao da citncia da natureza” pressupde justa- mente a “constincia” dos elementos. Essa exigencia metédica foi colo- cada jé por Galileu 74 GEORG LUKACS sua propria esséncia de maneira histérica, isto 6, como implicadas num processo de revolucao ininterrupta, 6 preciso se perguntar sinceramente quando é cometida a maior inexatidao cientifica: quando apreendo os “fa- tos” numa forma de objetividade dominada por leis que me dao a certeza metédica (ou, pelo menos, a pro- babilidade) de que jé nao sao validas para esses fatos? Ou, antes, quanto tiro conscientemente as conseqiién- cias dessa situagio, quando adoto, desde o principio, uma atitude critica diante da “exatidao” assim atingi- da, e quando dirijo minha atenc&o para os momentos em que essa esséncia histérica, essa modificagao deci- siva, se manifesta realmente? O carter histérico dos “fatos” que a ciéncia acredi- ta aprender em tal “pureza” aparece, todavia, de ma- neira ainda mais nefasta. Esses fatos estao, com efeito (enquanto produtos da evolugdo histérica), nao so- mente implicados numa mudanga continua, mas tam- bém sio ~ precisamente na estrutura de sua objetividade — produtos de uma época histérica determinada: a do capita- lismo. Por conseguinte, aquela “ciéncia” que reconhece como fundamento do valor cientifico a maneira como 0s fatos sao imediatamente dados, e como ponto de partida da conceitualizagao cientifica sua forma de ob- jetividade, coloca-se simples e dogmaticamente no ter- reno da sociedade capitalista, aceitando sem critica sua esséncia, sua estrutura de objeto e suas leis como um fundamento imutdvel da “ciéncia”. Para passar desses “fatos” Aqueles no verdadeiro sentido da palavra, é preciso descobrir seu condicionamento histérico como tal e abandonar o ponto de vista a partir do qual eles so dados como imediatos: é preciso submeté-los a um HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE vey tratamento hist6rico-dialético, pois, como diz Marx’: “A forma acabada das relacdes econémicas, tal como elas se mostram em sua superficie, em sua existéncia real e, por conseguinte, também nas representagdes pelas quais os portadores e os agentes dessas relacdes procuram fazer dela uma idéia clara, é bastante dife- rente e, de fato, contraria ao seu nticleo interior e es- sencial, mas oculto, e ao conceit que a ele correspon- de.” Quando, portanto, os fatos devem ser compreen- didos corretamente, convém de inicio esclarecer com preciso essa diferenca entre sua existéncia real e seu nticleo interior, entre as representacdes que formamos a seu respeito e seus conceitos. Essa distincdo é a pri- meira condicao prévia de um estudo verdadeiramen- te cientifico que, segundo as palavras de Marx"®, “se- ria supérfluo se a manifestacao e a esséncia das coisas coincidissem imediatamente”. Por um lado, trata-se, portanto, de destacar os fenémenos de sua forma dada como imediata, de encontrar as mediacdes pelas quais eles podem ser relacionados ao seu miicleo e a sua e: séncia enela compreendidos; por outro, trata-se de com- preender o seu cardter e a sua aparéncia de fendmeno, considerada como sua manifestacao necesséria. Essa forma énecessaria em razdo de sua esséncia hist6rica, do seu desenvolvimento no campo da sociedade capi- 9. Kapital IIL, I, MEW 25, p. 219. Ibid, p. 53, p. 324 etc. Essa distin- ‘go entre existéncia (que se decompde nos aspectos dialéticos da apa- rncia, fendmeno e esséncia) e realidade decorre da Légioa de Hegel. In- felizmente ndo podemos discutir aqui o quanto toda a constituiglo con- cceitual de O capital baseia-se nessa distingio. A diferenciagao entre Re- presentacéo e conceito também tem origem em Hegel. 10. Kapital I 1, NEW 25, p. 825. 76 GEORG LuKAcs talista. Essa dupla determinacdo, esse reconhecimento € essa superacdo simultanea do ser imediato constitui justamente a relacao dialética. A estrutura interna de O capital foi o que mais causou dificuldades ao leitor su- perficial que aceita sem criticas as categorias de pensa- mento, proprias do desenvolvimento capitalista; pois, por um lado, a exposicdo leva a seu limite extremo 0 carter capitalista de todas as formas econdmicas e cons- titui um meio de pensamento em que essas formas ca- pitalistas agem em estado puro, descrevendo uma so- ciedade que “corresponde a teoria” — portanto, uma sociedade inteiramente capitalizada, constituida ape- nas por proletarios e capitalistas. Mas, por outro lado, tao logo essa concepgio produz um resultado, tao logo esse mundo de fendmenos da mostras de se cristalizar no plano te6rico, no mesmo instante, o resultado obti- do € dissolvido como simples aparéncia, como reflexo invertido de relacdes invertidas, reflexo que é apenas “a expresso consciente do movimento aparente”. Somente nesse contexto, que integra os diferentes fatos da vida social (enquanto elementos do desenvol- vimento hist6rico) numa totalidade, é que o conhecimen- to dos fatos se torna possivel enquanto conhecimento da realidade. Esse conhecimento parte daquelas determina- Ges simples, puras, imediatas e naturais (no mundo ca- pitalista) que acabamos de caracterizar, para alcangar ‘© conhecimento da totalidade concreta enquanto re- producao intelectual da realidade. Essa totalidade con- creta no é de modo algum dada imediatamente ao pensamento. “O concreto é concreto”, diz Marx", “por- 11, Zur Kitt der politischen Okonomie, MEW 13, p. 632. HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 7 que éa sintese de varias determinagées, portanto, a uni- dade do miltiplo.” O idealismo cai entao na ilusdo que consiste em confundir essa reprodugao da realidade com © proceso de construcdo da prépria realidade. Pois, “no pensamento, o concreto aparece como processo de sintese, como um resultado, e nao como ponto de par- tida, ainda que seja o ponto de partida real e também, por conseguinte, o ponto de partida da intuigéo e da representacao”. O materialismo vulgar, ao contrério — mesmo quando adquire, em Bernstein e em outros, um. aspecto mais moderno -, contenta-se em reproduzir as determinacoes imediatas e simples da vida social. Acre- dita ser particularmente “exato” ao aceitar essas deter- minagdes sem nenhuma andlise desenvolvida, sem as reportar a totalidade concreta, abandonando-as ao seu isolamento abstrato e tentando explicé-las por leis cien- tificas abstratas, nao ligadas a uma totalidade concreta. “A grosseria e 0 vazio intelectual”, diz Marx”, “resi- dem justamente na tendéncia de unir de maneira con- tingente 0 que esté reunido de maneira organica, e de fazer dessa relacao algo puramente reflexivo.” ‘A grosseria e 0 vazio conceitual de tais relagdes re- flexivas consistem sobretudo no fato de que, por meio delas, o caréter hist6rico e passageiro da sociedade ca- pitalista fica obscurecido, e essas determinagées se ma- nifestam como categorias intemporais, eternas, comuns a todas as formas de vida social. Isso se revelou da maneira mais flagrante na economia vulgar burguesa; mas, pouco tempo depois, o marxismo vulgar tomou 0 12. Ihid.,p. 620. A categoria de nexo reflexivo tem origem na Légi- ca de Hegel 78 GEORG LUKAS mesmo caminho. Tao logo 0 método dialético e, com ele, 0 predominio metédico da totalidade sobre cada aspec- to foram abalados; tao logo as partes deixaram de en- contrar no conjunto seu conceito e sua verdade e, em vez disso, o todo passou a ser eliminado da investigaco como nao-cientifico ou reduzido a uma simples “idéia” ou auma “soma” das partes, a relacio reflexiva das par- tes isoladas apareceu como uma lei intemporal de toda a sociedade humana. Pois a afirmagéo de Marx”, “as relagdes de producéo de toda sociedade formam um. conjunto”, € 0 ponto de partida met6dico e a chave do conhecimento histérico das relag6es sociais. Toda cate- goria parcial isolada pode, de fato, ser tratada e pensa- da (nesse isolamento) como se estivesse sempre pre- sente durante toda a evolugio da sociedade humana. (Ge nao a encontramos numa sociedade, é entdo 0 “aca~ so” que confirma a regra.) A distincdo real das etapas da evolugao social se exprime de maneira muito menos dlara e inequivoca nas mudancas as quais esti sub- metidos os elementos parciais isolados do que nas mu- dangas sofridas por sua fungao no proceso total da his- téria e por suas relagées com conjunto da sociedade. Essa concepgao dialética da totalidade, que parece se distanciar em larga medida da realidade imediata e construf-la de maneira “ndo-cientifica’, na verdade é 0 13, Elend der Philosophie, MEW 4, pp. 190+. HISTORIA & CONSCIENCIA DE CLASSE 79 ‘nico método capaz de compreender e reproduzir a realidade no plano do pensamento. A totalidade con- creta é, portanto, a categoria fundamental da realida- de", A validade dessa perspectiva se revela, no en- tanto, em toda sua clareza quando focalizamos nossa atengao no substrato material e real do nosso método, a sociedade capitalista com seu antagonismo interno entre as forcas e a relacéo de producao. O método das ciéncias da natureza, que constitui o ideal metédico de toda ciéncia fetichista e de todo revisionismo, nao co- nhece contradicéo nem antagonismos em seu material; se, no entanto, houver alguma contradicao entre as di- ferentes teorias, isso é somente um indicio do cardter inacabado do grau de conhecimento atingido até entao. ‘As teorias que parecem se contradizer devem encon- trar seus limites nessas proprias contradiq&es; devem, portanto, ser modificadas e subsumidas a teorias mais gerais, ras quais as contradigdes desaparecam defini- tivamente. Em contrapartida, no caso da realidade so- cial, esses contradigoes nao sao indicios de uma imper- feita compreensao cientifica da realidade, mas perten- com, de maneira indissoliivel, a esséncia da prépria realidade, a esséncia da sociedade capitalista. Sua superacdo no co- nhecimento da totalidade nao faz com que deixem de ser contradicées. Pelo contrério, elas s4o compreendidas 14 Gostariamos aqui de chamar a atencio do leitor interessado em questdes metodolégicas para o fato de que também na Légica de He- gel a relagio do todo com as partes constitui a transiglo dialética da existéncia para a realidade. Deve-se observar que, nesse contexto, a questo acerca da relagio do interno e do externo também é tratada ‘como um problema de totalidade. Werke IV, pp. 156 ss. (As citagBes da Légica sto todas retiradas da 2* ed.) 80 GEORG LUKACS como contradigées necessérias, como fundamento anta- gOnico dessa ordem de producio. Quando a teoria, en- quanto conhecimento da totalidade, abre caminho para a superagao dessas contradigées, para sua supressao, ela o faz mostrando as fendéncias reais do proceso de desenvolvimento da sociedade, que sao chamadas a su- perar realmente essas contradigées na realidade social, no curso do desenvolvimento social. Nessa perspectiva, a oposicio entre o método dia- Iético e o método “critico” (ou o método materialista vul- gar, ou o método de Mach etc.) é um problema social. Quando o ideal de conhecimento das ciéncias naturais € aplicado a natureza, ele serve somente ao progresso da ciéncia. Porém, quando € aplicado a evolugao da so- ciedade, revela-se um instrumento de combate ideol6- gico da burguesia. Para esta tiltima, é uma questo vi- tal, por um lado, conceber sua propria ordem de pro- dugao como constitufda por categorias intemporalmen- te validas e destinadas a existir sempre gracas as leis, eternas da natureza e da razio e, por outro, julgar as contradigSes que se impéem ao pensamento de manei- ra inevitével néo como fenémenos pertencentes a es- séncia dessa ordem de producao, mas como simples fe- nOmenos de superficie. O método da economia politica classica é derivado dessa necessidade ideolégica, mas também encontrou seus limites, enquanto conhecimen- to cientifico, nessa estrutura da realidade social e no ca- rater antagénico da producao capitalista. Quando um pensador da importancia de Ricardo nega “a neces: dade de expandir 0 mercado com a expansao da produ- do e 0 crescimento do capital”, é porque (de maneira inconsciente, naturalmente) nao quer ser obrigado a re- HISTORIA CONSCIENCIA DE CLASSE 81 conhece: a necessidade das crises, nas quais 0 antago- nismo fundamental da producdo capitalista se revela da maneira mais flagrante; néo quer admitir 0 fato de que “o modo de producao burgués implica uma limita- 40 ao livre desenvolvimento das forgas produtivas”! O que em Ricardo ainda se faz de boa-fé, na economia vulgar torna-se, todavia, uma apologia conscientemen- te mentirosa da sociedade burguesa. Esforgando-se tan- to para eliminar sistematicamente 0 método dialético da ciéncia proletéria, tanto, ao menos, para refiné-la de maneira “critica”, o marxismo vulgar chega, querendo ou nio, a resultados iguais. Desse modo - talvez de maneira mais grotesca ~, Max Adler quis fazer uma distingao critica entre a dialética enquanto método, en- quanto movimento de pensamento, ea dialética do ser, enquanto metafisica. Sua “critica” culmina com a nitida separacio da dialética de ambos os precedentes, des- crevendo-a como “elemento de ciéncia positiva” a que “se faz referéncia quando se fala de uma dialética real no marxismo”. Essa dialética, que ele preferia chamar de “antegonismo, constata simplesmente uma oposi¢ao existente entre o interesse proprio do individuo ¢ as formas sociais, nas quais este se encontra inserido”'s. Desse modo, o antagonismo econdmico objetivo, que se exprime na luta de classes, dissolve-se num conflito entre 0 indivfduo e a sociedade. Esse conflito nos impede de compreender como necessérios tanto o surgimento quanto a problematica e 0 declinio da sociedade capi- talista. O resultado disso, querendo ou nao, é uma filo- 15. Marx, Theorien ther den Mehrwert, Il, MEW 26, 2, pp. 525, 528. 16. Marsistische Probleme, p.77. 82 GEORG LuKAcs sofia kantiana da histéria. E, por outro lado, fixa-se também a estrutura da sociedade burguesa como for- ma universal da sociedade em geral, pois o problema central ao qual Max Adler se prende, o da “dialética, ou melhor, do antagonismo”, 6 apenas uma das for- mas tpicas nas quais o carater antagénico da ordem social capitalista se exprime no plano ideolégico. No entanto, se essa eternizacao do capitalismo se efetua a partir do fundamento econémico ou das formacoes ideol6gicas, se ela ocorre de maneira ingénua e inocen- te ou mesmo com um refinamento critico, na verdade é irrelevante Desse modo, com a recusa ou a obnubilagao do método dialético, perde-se a inteligibilidade da historia. Nao se trata, naturalmente, de afirmar que certas per- sonalidades ou épocas hist6ricas nao poderiam ser des- ctitas de maneira mais ou menos exata fora do método dialético. Trata-se, antes, da impossibilidade de com- preender nessa perspectiva a historia enquanto proceso unitdrio, (Essa impossibilidade se manifesta na ciéncia burguesa, de um lado, pelas construcGes abstratas e so- ciolégicas da evolugio histérica, do tipo de Spencer ou Augusto Comte ~ cujas contradicdes internas foram trazidas a luz pela moderna teoria burguesa da hist6- ria e notadamente por Rickert ~, e, de outro, pela exi- géncia de uma “filosofia da hist6ria”, cuja relacao com a realidade hist6rica aparece novamente como um pro blema insoltivel quanto ao método.) A oposicéo entre a descrigéo de uma parte da hist6ria e a histéria como processo unitério nao se baseia numa simples diferen- ca de amplitude, como é 0 caso da distingao entre as historias particulares e a hist6ria universal, mas numa HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 83 oposicao entre métodos, uma oposigio entre pontos de vista. A questo da compreensio unitéria do processo histérico surge necessariamente com o estudo de cada 6poca e de cada setor parcial, entre outras coisas. E é aqui que se revela a importncia decisiva da concep- cao dialética da totalidade, pois ¢ inteiramente possivel que alguém compreenda ¢ descreva de forma correta 08 principais pontos de um acontecimento histérico, sem que por isso seja capaz de compreender esse mes- mo acontecimento naquilo que ele realmente represen- ta, em sua verdadeira funcao no interior do conjunto histérico ao qual pertence, isto é, sem compreendé- lo no interior da unidade do processo histérico. Um exemple caracteristico disso se encontra na posicao de Sismondi em relago a questéo da crise’”. Sismondi fracassou, em ultima andlise, porque, embora tenha compreendido muito bem as tendéncias evolutivas e imanentes tanto da produgio quanto da distribuigio, permaneceu prisioneiro das formas de objetividade ca- pitalistas, a despeito de sua critica perspicaz ao capita- lismo. Sendo assim, concebeu essas tendéncias imanen- tes como processos independentes um do outro, “nao compreendendo que as relac6es de distribuicéo séo ape- nas as relagdes de producao sub alia specie”. Sucumnbe A mesma fatalidade A qual sucumbiu a falsa dialética de Proudhon: ele “transforma os diferentes membros da sociedade em outras tantas sociedades isoladas”*. Vale a pena repetir que a categoria da totalidade nao reduz, portanto, seus elementos a uma uniformi- 17, Theorien iber den Melrwvert, Ill, MEW, 26,3, pp. 51,79. 18, Elend der Philosophie, MEW 4, p. 131 84 GEORG LUKAS dade indiferenciada, a uma identidade; a manifestagao de sua independéncia, de sua autonomia - autonomia que eles possuem na ordem de produgao capitalista ~ 86 se revela como pura aparéncia na medida em que eles chegam a uma inter-relacio dialética e dinamica e passam a ser compreendidos como aspectos dialéticos dinamicos de um todo igualmente dialético e dinamico. ‘“Chegamos a conclusao”, diz Marx"®, “que producdo, distribuicdo, troca e consumo nao sao idénticos, mas que juntos constituem membros de uma totalidade, di- ferencas no seio de uma unidade [...] Uma forma deter- minada da producao determina, portanto, as formas determinadas do consumo, da distribuigio, da troca, bem como determinadas relacdes desses diferentes momen- tos entre si [...] Ha uma acdo reciproca entre esses dife- rentes momentos; é assim em todo conjunto organico.” Contudo, nado podemos nos deter na categoria da ago reciproca. Se concebéssemos essa aco reciproca como uma simples aco causal de dois objetos imuté- veis, ndo avancariamos um s6 passo em direcao ao co- nhecimento da realidade social, como é 0 caso das séries causais inequivocas do materialismo (ou das relacoes funcionais de Mach etc.). Pois existe uma ago recipro- ca também quando, por exemplo, uma bola de bilhar imével é atingida por outra em movimento; a primeira se poe em movimento; a segunda modificard sua pro- pria direco em conseqiiéncia do choque, e assim suces- sivamente. A acdo recfproca da qual falamos aqui deve ir além da influéncia reciproca de objetos imutdveis. De 19. Zur Kritk der poitischen Okonomie, MEW 13, p. 630 HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 85 fato, ela vai além em sua relacao com 0 todo; tal relacao torna-se @ determinagao que condiciona a forma de objeti- vidade de todo objeto; toda mudanga essencial e impor- tante para o conhecimento se manifesta como mudanca da relagéo com 0 todo e, por isso mesmo, como mudan- ada propria forma de objetividade®®. Marx exprimiu esse pensamento em intimeras passagens. Cito somen- te um dos trechos mais conhecidos®:: “Um negro é um negro. Somente em certas condigdes torna-se um es- cravo. Uma maquina de tecer algodao é uma maquina de tecer algodao. Somente em certas condigdes ela se torna capital. Separada dessas condigées, ela ¢ tio pou- co capital quanto 0 ouro em si é dinheiro ou o acticar, o preco do aguicar.” Essa mudanca continua das formas de objetividade de todos os fenémenos sociais em sua agio reciproca, dialética e continua, e o surgimento da inteligibilidade de um objeto a partir de sua funcdo na totalidace determinada na qual ele funciona fazem com que a concepcao dialética da totalidade seja a tnica a compreender a realidade como devir social. E somente nessa perspectiva que as formas fetichistas de objeti- vidade, engendradas necessariamente pela producao capitalista, nos permitem vé-las como meras ilusdes, que nao so menos ilusérias por serem vistas como neces- sérias. As relagGes reflexivas dessas formas fetichistas, suas “leis”, surgidas inevitavelmente da sociedade capi- 20, Ooportunisme particularmente refinado de Cunow mostra-se no fato de que, apesar do seu conhecimento minucioso da obra de ‘Marx, transforma inesperadamente 0 conceito de todo (totalidade) no de “soma’, através do qual é suprimida toda relacéo dialética. Cf. Die _Marxsche Geschichts ~ Gesellschafts~ und Staatstheorie Il, pp. 155-7. 21. Laknarbeit und Kapital, MEW 6, p. 407. 86 GEORG LUKACS talista, mas dissimulando as relagGes reais entre os obje- tos, mostram-se como as representagdes necessérias que se fazem os agentes da producao capitalista. Elas so, portanto, objetos do conhecimento, mas o objeto conhe- cido nessas formas fetichistas e através delas nao éa pro- pria ordem capitalista de producao, mas a ideologia da classe dominante. E preciso romper esse véu para se chegar ao co- nhecimento hist6rico. Pois as determinacGes reflexivas das formas fetichistas de objetividade tém por fungao justamente fazer aparecer os fendmenos da sociedade capitalista como esséncias supra-histéricas. O conheci- mento da verdadeira objetividade de um fendmeno, 0 conhecimento de seu carater histérico e o conhecimen- tode sua fungao real na totalidade social formam, por- tanto, um ato indiviso do conhecimento, Essa unidade € quebrada pelo método pseudocientifico. Assim, por exemplo, o conhecimento da disting4o — fundamental para a ciéncia econémica ~ entre capital constante e ca- pital variavel s6 se tornou possivel pelo método dialé- tico; a ciéncia econémica cléssica nao era capaz de ir além da distingio entre capital fixo e capital circulan- te; e isso ndo era um acaso. Pois “o capital varidvel ¢ apenas uma manifestagio hist6rica particular dos fun- dos de subsisténcia ou dos fundos de trabalho, que 0 trabalhador precisa para sustentar a si mesmo e sua familia ¢ sua reprodugfo e que ele mesmo deve pro- duzir e reproduzir em todos os sistemas da producao social. Os fundos de trabalho retornam sempre a ele somente sob a forma de pagamento do seu trabalho, pois seu proprio produto sempre se distancia dele mes- mo sob a forma de capital [...] A forma mercantil do HISTORIA CONSCIENCIA DE CLASSE 87 produto ea forma monetéria da mercadoria mascaram a transagao”22. Essa ilusio fetichista, cuja funcao consiste em ocultar a realidade e envolver todos os fenémenos da sociedade capitalista, ndo se limita a mascarar seu ca- rater hist6rico, isto 6, transitério. Mais exatamente, essa ocultacéo se torna possivel somente pelo fato de que todas as formas de objetividade, nas quais 0 mundo aparece necesséria ¢ imediatamente ao homem na so- ciedade capitalista, ocultam igualmente, em primeiro lugar, as categorias econémicas, sua esséncia profun- da, como formas de objetividade, como categorias de relagdes entre os homens; as formas de objetividade apa- recem como coisas e relagoes entre coisas. Por isso, 0 método dialético, ao mesmo tempo em que rompe 0 véu da eternidade das categorias, deve também rom- per seu caréter reificado para abrir caminho ao conhe- cimento da realidade. “A economia", diz Engels em co- mentario a Critica da economia politica, de Marx, “nao trata de coisas, mas de relacdes entre pessoas e, em til- tima instancia, entre classes; mas essas relacdes esto sempre ligadas a coisas e aparecem como coisas.” Com esse conhecimento, o método dialético, e sua concep¢ao da totalidade, manifestam-se como conhecimento real do que ocorre na sociedade. A relagio dialética das partes com 0 todo podia ainda aparecer como simples determinagéo mental e metédica, em que as catego- rias verdadeiramente constitutivas da realidade social nao aparecem mais do que nas determinagées reflexi- 2 Kapital 1, MEW 23, p. 593. 23. Cf. ensaio “A reificagio e a consciéncia do proletariado” 88 GEORG LUKACS vas da economia burguesa, e cuja superioridade sobre estas tiltimas seria, por conseguinte, apenas um assun- to metodolégico. No entanto, a diferenca é bem mais, profunda ¢ fundamental. Pois o fato de que em toda categoria econémica se revela uma determinada rela- do entre os homens num determinado nivel de sua evolugio social e de que essa relagdo se torna conscien- te e conceitual faz. com que o movimento da sociedade humana possa, enfim, ser compreendido em suas leis internas e, ao mesmo tempo, como produto dos prd- prios homens e das forcas que surgiram de suas rela- g6es e escaparam do seu controle. As categorias eco- ndmicas tornam-se, portanto, dinamicas e dialéticas em duplo sentido. Elas interagem constantemente como categorias “puramente” econdmicas e nos ajudam a compreender todo corte temporal feito na evolucao so- cial. No entanto, como elas tém sua origem em relagoes humanas e funcionam nos processos de transformacéo das relagées humanas, a marcha da evolugao torna-se visivel em sua relacdo recfproca com o substrato real de sua aco. Dito de outro modo, a producao ea reprodu- go de uma determinada totalidade econdmica, que a ciéncia tem por tarefa conhecer, transformam-se necessa- riamente (na verdade, transcendendo a economia “pu- ra”, mas sem apelar a qualquer forca transcendente que seja) em processo de produgao e de reprodugéo de uma sociedade global determinada. Marx insistiu com freqiiéncia nesse caréter do conhecimento dialético de maneira clara e precisa. Desse modo, escreve™: “O pro- cesso de producio capitalista, considerado em sua con- 24 Kapital , MEW 23, p. 604. HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 89 tinuidade ou como proceso de reprodugio nao pro- duz, portanto, somente mercadorias ou a mais-valia; produze reproduz.a propria relacao capitalista: de um Jado o capitalista, de outro, o assalariado.” 4. Essa atitude de colocar-se, produzir e reproduzir por si mesmo é a propria realidade. Hegel ja a reconhe- ceu claramente e exprimiu de forma muito préxima da- quela de Marx, ainda que muito abstrata, compreen- dendo mal a si mesmo e abrindo caminho para equi- vocos. “O que é real 6 em si necessario”, diz em sua Fi- losofia do direito?S. “A necessidade consiste no fato de que a totalidade é cindida nas distingSes de conceitos ¢ essa cisdo atinge uma determinacio sélida e resisten- te, que ndo é uma solidez morta, mas engendra a si mesma sem cessar na dissolugao.” E justamente nesse aspecto, em que o profundo parentesco do materialis- mo his:6rico com a filosofia de Hegel aparece no pro- blema da realidade, na fungao da teoria como autoconhe- cimento da realidade, é preciso, mesmo que em poucas palavras, chamar a atencdo para 0 nao menos decisivo ponto de ruptura que os separa. Esse ponto de ruptu- ra se encontra igualmente no nivel do problema da rea- lidade, do problema da unidade do processo histérico. Marx reprova Hegel (e sobretudo seus sucessores, que retornam cada vez mais claramente a Fichte e a Kant) por ndo ter superado efetivamente a dualidade do pen- 25. Adendo ao § 270, Philosophische Bibliothek, p. 354. 90 GEORG LUKACS samento e do ser, da teoria e da praxis, do sujeito e do objeto; sustenta que a dialética de Hegel, que se propde como dialética interior e real do processo hist6rico, nao passa de mera ilusdo; reprova-lhe por nao ter superado Kant justamente a respeito desse ponto decisivo: criti- ca 0 conhecimento hegeliano por ser simplesmente um conhecimento sobre uma matéria ~ por si s6 de na- tureza estranha -, e nao o préprio conhecimento dessa matéria, que é a sociedade humana. “Jé em Hegel”, di- zem as frases decisivas dessa critica*, “o espirito ab- soluto da hist6ria tem seu material na massa, mas sua expresso adequada apenas na filosofia. O fildsofo apa- rece somente como o érgao pelo qual o espirito abso- luto que faz a histéria se eleva a consciéncia, depois que o movimento hist6rico 6 desencadeado. A partici- pacdo do fildsofo na hist6ria se reduz a essa conscién- cia tardia, pois o espirito cumpre inconscientemente 0 movimento do real. 0 filésofo chega, portanto, post fes- tum.” Hegel deixa entio “o espirito absoluto enquanto espirito absoluto fazer a histéria apenas aparentemen- te [... Com efeito, como o espirito absoluto sé se eleva tardiamente a consciéncia do filésofo como espirito criador do mundo sua fabricagio da historia s6 existe na consciéncia, na opiniao e na representagio dos fild- sofos, na imaginacao especulativa’. Essa mitologia conceitual do hegelianismo foi definitivamente elimi- nada pela atividade critica do jovem Marx. Nao € um acaso se a filosofia que permitiu a Marx “compreender a si mesmo” constituiu um movimento 26. Die heilige Familie oder Kritik der kritischen Kritik. Gegen Bruno Bawer und Konsorten. MEW 2, p. 90. HISTORIA £ CONSCIENCIA DE CLASSE n de recuo do hegelianismo, voltado a Kant, um movi- mento que utilizou as obscuridades e as incertezas in- ternas de Hegel para eliminar do método 0s elementos revolucionarios e conciliar os contetidos reacionarios, a mitologia conceitual reacionéria e os vestigios da dua- lidade contemplativa do pensamento e do ser com a fi- losofia igualmente reaciondria da Alemanha de entao. ‘Tomando a parte progressista do método hegeliano, a dialética como conhecimento da realidade, Marx nao somente se separou nitidamente dos sucessores de He- gel, como também operou uma cisao na filosofia hege- Tiana. Ele levou a tend@ncia historica que se encontra na filosofia hegeliana A sua logica extrema. Transfor- mou radicalmente todos os fendmenos da sociedade e do homem socializado em problemas histéricos, mos- trando concretamente o substrato real da evolucao his- t6rica e tornando-a fecunda em seu método. Foi nessa balanga, descoberta por Marx e experimentada meto- dicamente por ele, que se pesou a filosofia hegeliana e se notou a sua leveza. Os vestigios mitologizantes dos “valores eternos”, eliminados da dialética por Marx, situam-se no nivel da filosofia da reflexao, que Hegel combateu com obstinacio e tenacidade durante toda sua vida, e contra a qual mobilizou todo seu método filoséfico, 0 proceso e a realidade concreta, a dialéti- ca ea hist6ria. A critica de Marx a Hegel é, portanto, a seqiiéncia e a continuacio direta da critica que Hegel exerceu contra Kant ¢ Fichte”. Assim, 0 método dialé- 27, Nao é de admirar que Cunow, exatamente nesse ponto em {que Marx superou radicalmente Hegel, tente corrigit Marx apelando a ‘um Hegel de orientacao kantiana. Fle opde & concepcao puramente his- trica do Estado em Marx o Estado hegeliano “como valor eterno”, cujas 92 GEORG LUKACS tico de Marx nasceu como a continuacao conseqiien- te do que Hegel havia almejado, mas que nao obtivera concretamente; por outro lado, 0 corpo morto do siste- ma escrito permaneceu presa dos fildlogos e dos fabri- cantes de sistemas. Contudo, ponto de ruptura reside na realidade. Hegel nao foi capaz de chegar até as forcas verdadei- ramente motrizes da historia. Em parte porque, na €poca em que seu sistema foi criado, essas forcas ainda nao eram bastante visiveis; ele foi, entdo, obrigado a ver nos povos e em sua consciéncia os verdadeiros portado- es do desenvolvimento hist6rico (mas ele nao conseguia distinguir o substrato real da sua consciéncia devido a sua composigio heterogénea. Desse modo, transformou- ‘omitologicamente em “espirito do povo”). Em parte por- que continuaria preso as formas do pensamento platé- nico-kantiano, a dualidade do pensamento e do ser, a forma e matéria nao obstante seus esforcos bastante enérgicos em sentido contrario, Ainda que tenha sido 0 verdadeiro descobridor do significado da totalidade concreta, ainda que seu pensamento tenha tido sem- pre por fim superar todas as abstracées, a matéria per- “alhas’, pelas quais se entendem suas fungSes como instrumento da ‘opressio de classe, so consideradas apenas “circunstincias histricas, ‘mas que no determinam a natureza, a definicfo e o sentido do Esta 0”. Quanto a esse aspecto, Marx fica alrés de Hegel porque “conside- a.3sa questdo politicamente ndo do ponto de vista do socislogo", lc. cit1,p. 308. Vé-se que a total superacio da flosofiahegeliana ndo exis- te para os oportunistas; quando ndo recuam ao materialismo vulgar ou 2 Kant, utilizam 0s contetidos reacionarios da flosofia politica de He- gel para eliminar a dialética revolucionéria do marxismo, paraaeterni- 2acio intelectual da saciedade burguess. HISTORIA CONSCIENCIA DE CLASSE 93 maneceu para ele (e nisso é bastante platénica) man- chada pela “nédoa da determinacao”. F essas tendéncias contraditérias e conflitantes nao puderam ser esclareci- das em seu sistema. Com freqiiéncia, elas sao justapos- tas sem mediacio, apresentam-se contraditoriamente e nao se equilibram; o equilibrio final (aparente) que elas encontram no sistema devia, por conseguinte, es- tar mais voltado para o passado que para o futuro Nao é de estranhar que a ciéncia burguesa tenha real- cado e desenvolvido, com bastante antecedéncia, esses aspectos de Hegel como um fator essencial. Justamen- te por i350, 0 niicleo ~ revolucionario ~ do seu pensa- mento tornou-se quase completamente obscuro até para os marxistas. ‘A mitologia conceitual limita-se a exprimir em pensamento um fato fundamental da existéncia dos homens, incompreensfvel para eles, e cujas conseqiién- cias Ihes 6 impossivel evitar. A incapacidade de pene- trar o proprio objeto se exprime intelectualmente nas forcas motrizes transcendentes que, de maneira mito- logica, constroem e estruturam a realidade, a relacdo entre os objetos, nossas relacdes com eles e suas modi ficagdes no proceso hist6rico. Ao reconhecerem que 28. Bastante caracteristico disso 6 a posicdo de Hegel em relagio a economia politica (Rechtsphilosophie, § 189). Ele reconhece muito clara- ‘mente que 0 problema de acaso e da necessidade é importante para essa economia politica do ponto de vista do método (de modo muito parect- do com Engels: Ursprung der Familie, MEW 21, p. 169, Feuerbach, MEW 21, pp. 256-7). Mas ele ndo é capaz de percebero significado fundamen- tal do substrato material da economia, a relagao dos homens entre si; isso permanece para ele um “pulular de arbitrios”, e suas leis guardam. “ama semelhanga com o sistema planetario”, loc. cit, p. 336. 94 GEORG LUKACS “o fator determinante na historia é, em tiltima instan- cia, a producao e a reprodugdo da vida real”, Marx e Engels adquiriram o ponto de vista que permitia liqui- dar toda mitologia. O espfrito absoluto de Hegel foi a Ultima dessas grandiosas formas mitolégicas — uma forma na qual totalidade e seu movimento jé se expri- miam, ainda que sem ter consciéncia de sua esséncia real. No materialismo hist6rico, a razdo, “que sempre existiu, mas nem sempre de forma racional”®, conse- gue alcangar sua forma “racional” com a descoberta de seu verdadeiro substrato e da base a partir da qual a vida humana pode de fato tornar-se consciente de si mesma. E é justamente isso que efetua o programa da filosofia da histria hegeliana, ainda que a custa do aniquilamento da doutrina hegeliana. Em oposigo & natureza, na qual, como sublinha Hegel", “a mudanca 6 circular, é a repeticdo do mesmo”, a mudanga na his- t6ria nao se produz “simplesmente na superficie, mas no conceito. E 0 proprio conceito que é corrigido”. 5. Retomemos a premissa do materialismo: “Nao éa consciéncia dos homens que determina seu ser, mas, ao contrario, é seu ser social que determina sua cons- ciéncia.” Somente nesse contexto tal premissa pode superar o plano puramente te6rico e tornar-se proble- 29. Engels: Carta a. Bloch, 21/9/1890. MEW 37, p. 463. 30. Cartas dos Anais franco-alemes, MEW 1, p. 345. 31. Die Vernunft in der Geschichte. Philosophische Bibliothek I, pp. 133-4 HISTORIAE CONSCIENCIA DE CLASSE 95 ma da pratica. Pois é somente depois que o nticleo do ser se revela como devir social que o ser pode aparecer ‘como um produto até entao inconsciente da atividade humane, e essa atividade, por sua vez, como elemento decisivo da transformacio do ser. Por um lado, tém-se as relagdes puramente naturais ou as formas sociais mistificadas em relagdes naturais que se opéem ao ho- mem como dados fixos, acabados e imutdveis em sua esséncia, cujas leis ele pode, no maximo, utilizar, com- preendendo a estrutura do objeto sem jamais ser ca- paz de transformé-la; por outro, tal concepcao do ser rejeita a possibilidade da préxis na consciéncia indivi- dual. A praxis torna-se uma forma de atividade do in- divfduo isolado, uma ética. A tentativa de Feuerbach de superar Hegel fracassou no seguinte obstéculo: Feuerbach se deteve, como o idealismo alemao e mais do que o proprio Hegel, no individuo isolado da “so- ciedade civil”. A exigéncia de Marx, segundo a qual se deve cap- tar a “sensibilidade”, 0 objeto, a realidade como ativi- dade humana sensivel®, implica que 0 homem toma consciéncia de si mesmo como ser social, como simulta- neamente sujeito e objeto do devir histérico e social. O homem da sociedade feudal nao podia tomar conscién- cia de si mesmo como ser social, porque suas relagées sociais ainda tinham, sob muitos aspectos, um cardter natural, porque a sociedade em seu conjunto ainda es- tava desorganizada e tinha pouquissimo controle sobre a totalidade das relagées entre os homens, para apare- 32. Mhesen ber Feuerbasch, MEW 3, pp. 5-7 9% GEORG LuKAcs cer A consciéncia como @ realidade do homem. (Nao cabe considerar aqui a questo da estrutura e da uni- dade da sociedade feudal.) A sociedade civil cumpre esse processo de socializacao da sociedade. O capita- lismo derruba todas as barreiras espaciais e temporais entre os diferentes paises e dominios, do mesmo mo- do que os muros de separacao juridica entre os esta mentos. Em seu universo de igualdade formal entre to- dos os homens, desaparecem cada vez mais aquelas relagdes econdmicas que regularam as trocas materiais imediatas entre o homem ea natureza. O homem tor- na-se — no verdadeiro sentido da palavra ~ ser social. A sociedade torna-se a realidade para o homem. Desse modo, somente no terreno do capitalismo, da sociedade civil, ¢ possivel reconhecer a sociedade como realidade. Contudo, a classe que se apresenta como agente histérico dessa revolucao — a burguesia ~ cumpre ainda inconscientemente essa funcdo; as for- gas sociais desencadeadas por ela e que a levaram & supremacia parecem opor-se a ela como uma segunda natureza, porém, mais desprovida de alma e mais im- penetravel do que aquela do feudalismo®. E somente com a entrada em cena do proletariado que o conheci- mento da realidade social encontra seu termo: com a perspectiva da classe do proletariado, encontra-se um ponto a partir do qual a totalidade da sociedade torna- se visivel. Com o advent do materialismo histérica surge, ao mesmo tempo, a doutrina “das condicoes da libertagéo do proletariado” e a doutrina da realidade 33. Sobre as razdes dessa situagio, cf. 0 ensaio “Consciéncia de classe”. HISTORIAE CONSCIENCIA DE CLASSE 97 do processo total do desenvolvimento histérico. Isso s6 foi possivel porque, para o proletariado, conhecer com a maxima clareza sua situacao de classe é uma necessi- dade vital, uma questo de vida ou morte; porque sua situagac de classe s6 € compreensivel quando toda a sociedade pode ser compreendida; porque seus atos tém essa compreensio como condigéo prévia, inelutd- vel. A unidade da teoria e da praxis 6, portanto, apenas a outra face da situacio social e histérica do proleta- riado. Do ponto de vista do proletariado, o autoconhe- cimento coincide com o conhecimento da totalidade; ele 6, a0 mesmo tempo, sujeito e objeto do seu préprio conhecimento. Pois a misao de conduzir a humanidade a uma etapa mais elevada do seu desenvolvimento baseia-se, ‘como Hegel notou com razao ~ mas aplicando-a ain- da aos povos -, no fato de que essas “etapas da evolu- cdo se apresentam como princfpios naturais imediatos” eque 0 povo (isto 6, a classe), “que recebe tal elemento como principio natural, tem por misso aplicé-lo”. ‘Marx®s concretiza essa idéia com muita clareza ao apli- cé-la A evolucao social: “Quando os escritores socia- listas atribuem ao proletariado esse papel na hist6ria mundial, nao é de modo algum [...] porque consideram 08 proletérios como deuses. Pelo contrario. O proleta- tiado pode e deve se libertar porque, depois de forma- do, a akstracio de toda a humanidade e até da aparén- cia de humanidade se realiza nele quase por completo; porque, nas condicées de vida do proletariado, todas as, 34, Rechtsphilosophie, §§ 346-7, lo. cit, p. 273. 235. Die helige Familie, MEW 2, p. 38. 98 GEORG LuKAcs condigdes da vida da sociedade atual encontram-se re- sumidas em seu paroxismo mais inumano; porque ne- leo homem perdeu a si mesmo, mas, ao mesmo tempo, adquiriu a consciéncia tedrica dessa perda e foi ime- diatamente obrigado pela miséria, que ndo pode mais ser rejeitada nem embelezada e que se tornou absoluta- mente imperiosa ~ expresso pratica da necessidade -, a revolta contra essa inumanidade. No entanto, ele nao pode se libertar sem suprimir suas proprias condicdes de vida. Nao pode, todavia, suprimir suas condicdes de vida sem suprimir todas as condigdes de vida inuma- nas da sociedade atual, que se resumem em sua situa- do.” A esséncia do método do materialismo hist6rico nao pode, portanto, ser separada da “atividade critica ¢ pratica” do proletariado: ambos sao momentos do mesmo processo de evolucao da sociedade. Assim, 0 conhecimento da realidade produzido pelo método dialético é igualmente inseparavel da perspectiva de classe do proletariado, A questdo posta pelo “austro- marxismo” a respeito da separagdo metddica entre a ciéncia “pura” do marxismo e o socialismo*, 6, como todas as questées semelhantes, um falso problema. Pois © método marxista e a dialética materialista enquanto conhecimento da realidade s6 sdo possiveis do ponto de vista de classe, do ponto de vista da luta do proleta- tiado. Abandonar essa perspectiv ica distanciar- se do materialismo histérico, do mesmo modo como adoté-la implica diretamente a participagdo na luta do proletariado. 36. Hilferding, Finanzkapital, VIILIX. HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 99 O fato de o materialismo hist6rico emergir do prin- cipio vital “imediato e natural” do proletariado, e de o conhecimento total da realidade se abrir a partir da sua perspectiva de classe nao significa, contudo, que esse conhecimento ou essa atitude metédica em rela- Gao a ele sejam dados de modo imediato e natural ao proletaciado enquanto classe (menos ainda ao prolet- rio individual); pelo contrério. Certamente, 0 proletaria~ do é 0 sujeito cognoscente desse conhecimento da rea- lidade social total. Mas nao é um sujeito do conheci- mento no sentido do método kantiano, em que o sujeito 6 definido como 0 que nao pode jamais tornar-se obje- to. Nao é um espectador imparcial desse proceso. O proletariado nao 6 somente a parte ativa e passiva des- sa totalidade; a ascensao e a evolugao de seu conheci- mento, de um lado, e sua ascensdo e evolugao no curso da historia, de outro, sAo apenas dois aspectos do mes- mo processo real. Nao somente porque a propria clas- se “se transformou em classe” aos poucos, numa luta social incessante, comecando pelos atos espontaneos e inconscientes de defesa desesperada e imediata (a des- truigéo de mquinas é um exemplo flagrante desses primérdios). A consciéncia do proletariado a respeito da realidade social, de sua propria posigao de classe e de sua vocacao hist6rica, e 0 método da concepcao materialista da histéria também so produtos desse mesmo processo de evolugav histérica, que o materia~ lismo hist6rico - pela primeira vez — reconhece ade- quadamente e em sua realidade. A possibilidade do método marxista é, por conse- guinte, um produto da luta de classes, tanto quanto outro resultado de natureza politica ou econémica. A 100 GEORG LUKAcS evolucdo do proletariado também reflete a estrutura interna da historia da sociedade, que ele foi o primeiro areconhecer. “Seu resultado aparece, portanto, sempre como pressuposto por ele, ao mesmo tempo em que suas pressuposig&es aparecem como seus resultados.”3? © ponto de vista metédico da totalidade, que apren- demos. reconhecer como problema central, como con- digdo primordial do conhecimento da realidade, é um produto da historia num duplo sentido. Em primeiro lugar, somente com a evolugao econémica que produ- ziu o proletariado, com 0 nascimento do préprio pro- Ietariado (portanto, numa etapa determinada da evo- lugGo social), com a transformacao assim surgida do sujeito e do objeto relativos ao conhecimento da reali- dade social, que a possibilidade objetiva e formal do materialismo histérico péde surgir como conhecimen- to. Em segundo lugar, é somente no curso da evolugéo do proletariado que essa possibilidade formal tornou- se uma possibilidade real. Pois a possibilidade de com- preender o sentido do processo hist6rico como imanen- te a esse processo, deixando de ver nele um sentido transcendente, mitolégico ou ético, a ser relacionado com um material despojado de sentido, pressupde que 0 proletariado tenha uma consciéncia altamente evolui- da a respeito de sua propria situagao, portanto, que seja um proletariado em certa medida altamente avan- cado na seqiiéncia de uma longa evolugao. O caminho tomado por essa evolucao conduz da utopia ao conhe- cimento da realidade, dos objetivos transcendentes, es- 37. Kapital Ul I, MEW 25, p. 879. HISTORIA CONSCIENCIA DE CLASSE 101 tabelecidos pelos primeiros grandes pensadores do mo- vimento operdrio, até a nitida percepcao da Comuna de 1871 de que a classe operéria “nao tem de realizar ideais”, mas “somente libertar os elementos da nova sociedade”; é 0 caminho que vai da classe “contra 0 capital” classe “por si mesma”. Nessa perspectiva, a separacéo revisionista do mo- vimento e da meta final se manifesta como um retro- cesso ao nivel mais primitivo do movimento operério. Pois a meta final nao é um estado que aguarda o pro- letariado ao termo do movimento, independente deste edo caminho que ele percorre, como um “estado futu- ro”; nao é um estado que se possa, por conseguinte, esquecer trangiiilamente nas lutas cotidianas e, quan- do muito, invocar nos sermdes de domingo, como um momento de elevagao oposto aos cuidados cotidianos; nao é um “dever”, uma “idéia”, designada a regular 0 ptocesso “real”, A meta final é, antes, essa relagio com a fotalidade (com a totalidade da sociedade considerada como processo), pela qual cada momento da luta ad- quire seu sentido revolucionario. Essa relagio € ine- rente a cada momento exatamente no que concerne sua trivilidade simples e prosaica, mas torna-se real so- mente quando tomamos consciéncia dela, o que confere realidade ao momento da luta cotidiana, manifestando sua relagao com a totalidade. Dessa maneira, esse mo- mento da luta cutidiana ¢ elevado do nivel da facticida~ de, da mera existéncia, ao da realidade. Também nao podemos esquecer que todo esforgo para preservar a “meta final” ou a “esséncia” do proletariado de toda nédoa na relaao com a existéncia capitalista e por meio dela conduz, em tiltima instancia, a distanciar-se da 102 GEORG LUKACS compreensao da realidade, da “atividade critica e pra- tica”, a recair na dualidade utépica do sujeito e do ob- jeto, da teoria e da praxis, tio seguramente quanto 0 revisionismo havia conduzidoa isso* O perigo pratico de toda concepgio dualista desse género é que ela faz desaparecer 0 momento que da a acdo sua diregio. Com efeito, téo logo o terreno da rea- lidade, que somente o materialismo dialético pode con- quistar (mas que deve ser incessantemente reconquis- tado), é abandonado, e tao logo permanecemos, portan- to, no terreno “natural” da existéncia, do empirismo puro, simples e grosseiro, 0 sujeito da acéo e 0 meio dos “fatos”, onde sua acao deve se desenrolar, opdem-se sem transicao possfvel como principios separados. E é to pouco possivel impor a vontade subjetiva, o dese- jo ow a decisao ao estado de fato objetivo quanto des- cobrir nos préprios fatos um momento que da aos atos uma diregdo. Uma situagao em que os “fatos” falam sem ambigiiidade a favor ou contra uma determinada diregio da acao jamais existiu, no pode existir, jamais existira. Quanto mais os fatos so escrupulosamente examinados em seu isolamento (isto 6, em suas rela- Ges diretas), menos podem indicar, sem ambigitida- de, uma diregao determinada. Por outro lado, é eviden- te que uma decisio puramente subjetiva deva se chocar contra o poder dos fatos ndo compreendidos e que ajem automaticamente “segundo as leis”. No que concerne 38. A esse respeito, cf. a poleémica de Zinoviev contra Guesde e ‘seu procedimento em relacéo guerra em Stuttgart. Gegen den Strom, pp. 470-1. Assim como o livro de Lénin, Der Radikalismus als Kinderkrank- eit des Kommunismus HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 103 ao problema da acéo, a maneira como 0 método dialé- tico aborda a realidade se revela justamente como a tanica capaz de indicar as agdes uma orientagio. O auto- conhecimento subjetivo e objetivo do proletariado nu- ma determinada etapa de sua evolucao é, ao mesmo tempo, 0 conhecimento do nivel atingido nessa mes- ma €poca pela evolucao social. Na coeréncia da reali- dade, nz relacdo de todos os momentos parciais com suas raizes na totalidade, raizes que lhe s4o imanentes, mas que nao foram elucidadas, 6 suprimido o carter de exterioridade desses fatos que agora compreende- mos. Neles, tornam-se vistveis aquelas tendéncias que visam ao centro da realidade - aquilo que se tem 0 cos- tume de chamar de meta final. Todavia, essa meta final no se opde como ideal abstrato ao processo; como mo- mento da verdade e da realidade, como o sentido con- creto de cada etapa atingida, ela é imanente ao momento concreto; seu conhecimento é justamente aquele da dire- ao que tomam (inconscientemente) as tendéncias dirigi- das para totalidade, da diregéo que é chamada a deter- minar concretamente a ago correta no momento dado, do ponto de vista e no interesse do proceso total e da emancipagio do proletariado. No entanto, a evolucio social incrementa sem ces- sar a tensdo entre os momentos parciais e a totalidade. Justamente pelo fato de o sentido imanente da realida- de irradiar com um brilho cada vez mais forte, o senti do do devir tem uma ligacdo cada vez mais profunda com a vida cotidiana, e a totalidade afunda-se nos as- pectos momentaneos, espaciais e temporais dos fend- menos. O caminho da consciéncia no processo histérico nao se aplana, pelo contrério, torna-se sempre mais 4r- 104 GEORG LuKAcs duo e apela a uma responsabilidade sempre maior. A fungao do marxismo ortodoxo - a superacéo do revi- sionismo e do utopismo - nao é, portanto, uma liquida- ao definitiva de falsas tendéncias, mas uma luta inces- santemente renovada contra a influéncia perversora das formas de pensamento burgués sobre o pensamento do proletariado. Essa ortodoxia nao é a guardia de tra- dicdes, mas a anunciadora sempre em vigflia da rela- cdo entre o instante presente e suas tarefas em relagdo a totalidade do processo hist6rico. E assim, as palavras do Manifesto comunista sobre as tarefas da ortodoxia e dos seus portadores, os comunistas, ndo envelheceram e continuam vélidas: “Os comunistas distinguem-se dos outros partidos proletarios somente em dois pontos: por um lado, nas diversas lutas nacionais dos proleté- rios, acentuam e fazem valer os interesses comuns a fodo 0 proletariado e independentes da nacionalidade; por outro, nas diversas fases de desenvolvimento que a luta entre o proletariado e a burguesia precisa atravessar, representam sempre 0 interesse do movimento total.” Marco de 1919. ROSA LUXEMBURGO COMO MARXISTA. Os economistas nos explicam como se produz nas relagées mencionadas anteriormente, mas 0 que eles nao nos explicam é como essas relagées se produ- zem, isto €,0 movimento hist6rico que as faz nascer. Maxx, Elend der Philosophie [Miséria da filosofia] Nao é © predominio de motivos econémicos na explicacéo da histéria que distingue de maneira deci- siva o marxismo da ciéncia burguesa, mas o ponto de vista da totalidade. A categoria da totalidade, o dominio universel e determinante do todo sobre as partes cons- tituem a esséncia do método que Marx recebeu de He- gel e transformou de maneira original no fundamento de uma ciéncia inteiramente nova. A separacdo capita- lista entre 0 produtor e o processo global da producio, a fragmentacao do proceso de trabalho em partes que deixam de lado cardter humano do trabalhador, a atomizagio da sociedade em individuos que produ- zem irrefletidainente, sem planejamento nem coeréncia, tudo isso devia ter também uma influéncia profunda sobre o pensamento, a ciéncia e a filosofia do capitalis- mo. A céncia proletaria é revolucionaria néo somente pelo fato de contrapor & sociedade burguesa contet- dos revolucionérios, mas, em primeiro lugar, devido 106 GEORG LuKAcS esséncia revolucionaria do seu método. O dominio da categoria da totalidade é 0 portador do principio revolucio- ndrio na ciéncia. Esse principio revolucionario da dialética hegelia~ na-ndo obstante todos os contetidos conservadores de Hegel — havia sido freqiientemente reconhecido antes de Marx, sem que se tenha podido desenvolver, a par- tir desse conhecimento, uma ciéncia revolucionaria. So- mente com Marx a dialética hegeliana tornou-se, segun- doa expresso de Herzen, uma “Algebra da revolucao”. Mas ela no se tornou isso simplesmente por uma in- versio materialista. Pelo contrario, o principio revolu- cionério da dialética hegeliana s6 péde se manifestar nessa inverséo e por meio dela porque a esséncia do método, isto é, o ponto de vista da totalidade, a conside- Taco de todos os fenémenos parciais como elementos do todo, do processo dialético, que é apreendido como unidade do pensamento e da hist6ria, foi salvaguarda- do. O método dialético em Marx visa ao conhecimento da sociedade como totalidade. Enquanto a ciéncia bur- guesa confere uma “realidade” com realismo ingénuo, ou certa autonomia com espirito “critico”, Aquelas abs- tragdes que, para uma ciéncia nao pertence ao ambito da filosofia, so necessérias e titeis do ponto de vista metodolégico e resultam, de um lado, da separagao pré- tica dos objetos da investigacao e, de outro, da divisao do trabalho e da especializacao cientfficas, o marxismo supera essas separacdes elevando-as ¢ rebaixando-as categoria de aspectos dialéticos. O isolamento ~ por abstragao — dos elementos, tanto de um dominio de in- vestigacdo quanto de conjuntos especificos de proble- mas ou de conceitos no interior de uma drea de pesqui- HISTORIA © CONSCIENCIA DE CLASSE 107 sa, 6 certamente inevitavel. O que permanece decisivo, no entanto, é saber se esse isolamento é somente um meio para o conhecimento do todo, isto é, se ele se in- tegra sempre no contexto correto de conjunto que ele pressupée e ao qual apela, ou ainda se o conhecimento abstrato do dominio parcial isolado conserva sua “au- tonomia”, e permanece um fim “em si”. Para o marxis- ‘mo, em tiltima andlise, nao h4, portanto, uma ciéncia juridica, uma economia politica e uma historia etc. au- ténomas, mas somente uma ciéncia histérico-dialéti- ca, tinica e unitaria, do desenvolvimento da sociedade como totalidade. O ponto de vista da totalidade nao determina, to- davia, somente o objeto, determina também o sujeito do conhecimento. A ciéncia burguesa - de maneira cons- Gente ou inconsciente, ingénua ou sublimada - consi- dera os fenémenos sociais sempre do ponto de vista do individuo!. E 0 ponto de vista do individuo nao pode levar a nenhuma totalidade, quando muito pode evar a aspectos de um dominio parcial, mas na maio- ia das vezes somente a algo fragmentério: a “fatos” desconexos ou a leis parciais abstratas. A totalidade s6 pode ser determinada seo sujeito que a determina é ele mesmo uma totalidade; e se o sujeito deseja compreen- der a si mesmo, ele tem de pensar o objeto como totalida- de. Somente as classes representam esse ponto de vista da totalidade como sujeito na sociedade moderna. Aa con- 1. Isso nfo 6 casual, mas resulta da esséncia da sociedade burgue- sa, conforme Marx comprovou de maneira convincente no que concerne as “robinsonadas” econémicas. Zur Kritk der poitischen Okonomie,In- trodugdo, MEW 13, pp. 615 ss. 108 GEORG LUKAcs siderar todo problema por essa ética, particularmente em O capital, Marx corrigiu Hegel, que ainda hesitava entre o ponto de vista do “grande homem’” e o do espi- ito abstrato do povo. Ainda que seus sucessores 0 com- preendessem menos nessa questao do que naquela re- ferente ao “idealismo” ou ao “materialismo”, essa corre- fo se mostrou mais decisiva e fecunda. A economia classica e sobretudo seus vulgarizado- res sempre consideraram a evolucao capitalista do pon- to de vista do capitalista individual e se envolveram, por conseguinte, numa série de contradicGes insoliveis e de falsos problemas. Em O capital, Marx rompe radical- mente com esse método. Nao que ele considere- como um agitador - cada momento direta e exclusivamente do ponto de vista do proletariado. Uma atitude tao uni- lateral poderia dar origem apenas a uma nova economia vulgar com um sinal de mais e menos invertido. Antes, considera os problemas de toda a sociedade capitalista como problemas das classes que a constituem, sendo a dos capitalistas e a dos proletérios apreendidas como conjuntos. Meu objetivo neste estudo é simplesmente demonstrar 0 problema relativo ao método, ¢ nao in- vestigar 0 modo como toda uma série de questées aca- ba sendo considerada de um ponto de vista totalmente novo. Também nao é minha intengéo descobrir como surgem novos problemas que a economia classica nao foi capaz de perceber e menos ainda de resolver, nem como muitos desses falsos problemas sao eliminados. Trata-se aqui somente de chamar a atencdo para duas premissas de uma aplicagao verdadeira — e nao hidica, como nos epigonos de Hegel - do método dialético so- brea exigéncia da totalidade tanto como objeto deter- minado quanto como sujeito que determina. HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 109 2. Apés décadas de vulgarizagao do marxismo, a obra principal de Rosa Luxemburgo, A acumulagao do capital, retoma o problema a partir desse ponto. Essa banali- zagao de marxismo, sua inflex4o num sentido “cienti- fico” burgués encontraram sua primeira expressao cla- rae aberta nos Pressupostos do socialismo, de Bernstein. Nao é absolutamente um acaso se 0 mesmo capitulo desse livro, que comeca com um ataque ao método dia lético em nome da “ciéncia” exata, termina com uma acusacao de blanquismo langada contra Marx. Nao é um acaso, pois tao logo se abandonam o ponto de vis- ta da totalidade, o ponto de partida e o termo, a condi- Go ea exigéncia do método dialético, to logo a revo- lugio deixa de ser compreendida como um momento do processo para ser vista como ato isolado, separado da evolucdo global, o aspecto revolucionério de Marx deve necessariamente aparecer como uma recaida no periodo primitivo do movimento operario, no blan- quismo. E todo o sistema do marxismo se desfaz. com 0 principio de que a revolugao é 0 resultado de um pon- to de vista em que a categoria da totalidade é dominan- te. Mesmo em seu oportunismo, a critica de Bernstein 6 oportunista demais para que todas as reivindicagdes dessa posicdo possam se manifestar?. No entanto, 0 curso dialética da histéria, que os oportunistas buscavam antes tudo expurgar do mar- 2. Alls, proprio Bernstein admite isso. “De fato”, dizele, “devido as exigncias de propaganda do partido, nem sempre tirei conclusées dos meus prineipios criticos.” Voraussetzugen des Sozialismus, 9 ed, p. 260, 110 GEORG LUKACS xismo, impés-lhes mesmo assim outras conseqiiéncias inevitaveis. O desenvolvimento econémico da época imperialista tornou cada vez mais dificil acreditar nos simulacros de ataque contra o sistema capitalista e a andlise “cientifica” dos seus fendmenos considerados isoladamente, no interesse da “ciéncia exata e objetiva”. Seria preciso tomar partido, ndo apenas politicamente, a favor ou contra o capitalismo. Quanto a teoria, tam- ‘bém seria preciso fazer uma escolha: ou considerar to- daa evolugao da sociedade de um ponto de vista mar- xista e ent4o dominar o fendmeno do imperialismo de modo tedrico e pratico, ou furtar-se a esse encontro, li- mitando-se ao estudo de aspectos isolados de alguma ciéncia especifica. O ponto de vista monogréfico é0 que limita, de uma maneira mais segura, 0 horizortte do problema que toda a socialdemocracia tornada opor- tunista teme enfrentar. Encontrando nos dominios par- ticulares descrigdes “exatas”, “leis vélidas intemporal- mente” para casos especificos, ela apagou a separacao entre o imperialismo e o perfodo anterior. Estavamos no capitalismo “em geral” — cuja persisténcia Ihes pa- recia t4o conforme a tazdo humana, “as leis da nature- za", como a Ricardo e a seus sucessores, economistas vulgares burgueses. Seria contra o marxismo e a dialética querer saber se essa recaida teérica na metodologia dos economistas vulgares foi a causa ou o efeito do oportunismo prag- ‘miatico. Pela maneira como o materialismo histérico considera as coisas, ambas as tendéncias estdo relacio- nadas: formam o meio social da socialdemocracia antes da guerra. Os conflitos te6ricos em torno da Acumula- fo do capital, de Rosa Luxemburgo, s6 podem ser com- preendidos a partir desse meio. HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE au Pois o debate conduzido por Bauer, Eckstein, entre outros, nao girava em torno da questao de saber se a so- lugdo do problema da acumulagio do capital, proposta por Rosa Luxemburgo, era objetivamente correta ou in- corteta. Discutia-se, ao contrario, se existia realmente um problema e contestava-se com extrema energia a existéncia de um problema efetivo. No que se refere ao método da economia vulgar, isso é perfeitamente com- preensivel e até necessério. Pois, se a questéo da acumu- ago, por um lado, é tratada como um problema par- ticular da economia politica, por outro, do ponto de vis- ta do capitalista individual, percebe-se que nao existe um verdadeiro problema’, Essa recusa de todo o problema esté estreitamente ligada ao fato de que os criticos de Rosa Luxemburgo ignoraram a parte decisiva do livro (“As condigdes historicas da acumulag4o”) e, por conseguinte, formu- laram a questao da seguinte forma: sao corretas as {6r- mulas de Marx, que se baseiam no fundamento de uma hipotese metodologicamente isolante de uma socieda- de composta apenas de capitalistas e proletérios? Qual a melhor maneira de interpreté-las? Os criticos ignora- vam por completo o fato de que essa hipétese, em Marx, era apenas uma hipétese metodologica para compreen- der o problema de maneira mais clara, antes de avancar para a questdo mais abrangente, que situava 0 proble- ma em relagio a totalidade da sociedade. Ignoraram o fato de que o proprio Marx deu esse passu no’ primei- ro volume de O capital, a propésito do que se chama a 3, Em sua anticritica, Rosa Luxemburgo demonstra isso de man +a irrefutével, especialmente em relacio ao seu critico mais sério, Otto Bauer, pp. 66 8. 112 GEORG LUKACS acumulagao primitiva. Ocultaram — consciente ou in- conscientemente — 0 fato de que, justamente em relacdo. a essa questo, todo O capital é apenas um fragmento incompleto, que se interrompe no momento em que esse problema deveria ser solucionado. Nesse sentido, 0 que Rosa Luxemburgo fez foi retomar o fragmento de Marx e completé-lo conforme seu espitito. No entanto, ao ignorarem esses fatores, os oportu- nistas agiram de maneira totalmente coerente. Pois, do ponto de vista do capitalista individual, do ponto de vista da economia vulgar, esse problema, com efeito, nao deve ser colocado. Do ponto de vista do capitalis- ta individual, a realidade econémica aparece como go- vernada por leis eternas da natureza, As quais ele deve adaptar sua atividade. A realizagao da mais-valia e a acumulagio se realizam para ele sob a forma de uma troca com outros capitalistas individuais (na verdade, nao é 0 que sempre ocorre; trata-se apenas do caso mais freqiiente). E todo o problema da acumulacio refere-se apenas a uma das formas das miltiplas transforma- Ges que sofrem as f6rmulas D-M-D (dinheiro-merca- doria-dinheiro) e M-D-M (mercadoria-dinheiro-mer- cadoria) no curso da producio, da circulagio etc. As sim, para a economia vulgar, a questdo da acumulagéo torna-se um detalhe isolado, ndo relacionado ao desti- no do capitalismo em seu conjunto; sua solugdo garante suficientemente a exatidao das “formulas” marxistas, que precisam apenas ser atualizadas, como realizado por Otto Bauer. Tal como, em sua época, os alunos de Ricardo nao haviam compreendido a problemética mar- xista, Otto Bauer e seus colegas ndo compreenderam que com essas f6rmulas a realidade econdmica, por principio, nunca pode ser abarcada, visto que essas f6r- E CLASSE 113 HISTORIA ECONSCIENCIA mulas pressupdem uma abstracio (a sociedade consi- derada como composta unicamente de capitalistas e proletérios) da realidade em seu todo, portanto, esas f6rmulas podem servir apenas ao esclarecimento do problema, como um trampolim para colocar 0 proble- ma verdadeiro. ‘A acamulagao do capital retoma 0 método e a pro- blemética do jovem Marx, da Miséria da filosofia. Do mesmo modo como na primeira obra so analisadas as condigées historicas que tornaram possivel e valida a economia politica de Ricardo, nesta tltima o mesmo método é aplicado a pesquisas fragmentarias do se- gundo e terceiro volumes de O capital. Os economistas burgueses, enquanto representantes ideolégicos do ca- pitalismo ascendente, identificavam as “leis naturais” descobertas por Smith e Ricardo com a realidade so- ial, para encontrar na sociedade capitalista a tinica sociedade possivel conforme a “natureza” do homem ea razao, Do mesmo modo, a socialdemocracia - ex- pressao ideolégica dessa aristocracia operéria tornada pequenc-burguesa, que tem sua parte de interesse na exploragio imperialista do mundo inteiro durante a tl- tima fase do capitalismo, mas tenta escapar do seu des- tino necessario, a guerra mundial ~ devia obrigatoria- mente conceber a evolugao como se a acumulacao ca- pitalista estivesse a ponto de ser realizada nesse espago vazio das formulas mateméticas (isto é, sem problema e, portanto, sem guerra mundial). Assim, em relagao & compreensio e a capacidade de previsao politicas, eles ficaram muito aquém das camadas capitalistas da gran- de burguesia, que estavam interessadas na exploracio imperialista e nas suas conseqiiéncias militares. No en- tanto, jé nessa época puderam assumir no plano te6ri- 14 GEORG LuKAcs co seu papel atual: 0 de guardides da eterna ordem econémica capitalist, guardides contra as conseqiién- Gias catastr6ficas e fatais a que os verdadeiros repre- sentantes do capitalismo imperialista levavam com olhos videntes e cegos ao mesmo tempo. Do mesmo modo como a identificacao das “leis naturais” de Ri- cardo com a realidade social era um meio de autodefesa ideolégica para o capitalismo ascendente, a interpreta- do de Marx pela escola austriaca, a identificagdo das abstragées de Marx com a totalidade da sociedade, tam- bém constituem um meio de autodefesa para a “racio- nalidade” do capitalismo decadente. E do mesmo modo ‘como a concepsao da totalidade pelo jovem Marx havia iluminado nitidamente os sintomas patol6gicos do capi- talismo ainda florescente, 0 tiltimo brilho do capitalismo adquire na perspectiva de Rosa Luxemburgo, pela inte- gracao do seu problema fundamental na totalidade do processo histérico, o caréter de uma danga macabra, de ‘uma marcha de Edipo para seu inelutavel destino. 3. Rosa Luxemburgo dedicou a refutagéo da econo- mia vulgar “marxista” uma brochura especial, publi- cada apés a sua morte. No entanto, essa refutagdo teria seu lugar mais adequado, do ponto de vista da exposi- a0 e do método, no fim da segunda parte de A acumu- lagio do capital, como quarta investida no estudo da questo crucial da evolugao capitalista. Pois a origina- lidade desse livro decorre do fato de ele ser consagrado principalmente a um estudo histérico dos problemas. Isso nao significa somente que a andlise, feita por Marx, HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE us da reproducdo simples e da ampliada forma com isso 0 ponto de partida da investigacdo e o preltidio ao es- tudo efetivo e definitivo do problema. O néicleo do vro é constituido por uma andlise histérico-literdria das grandes discussdes sobre o problema da acumula- ao: a discussdo de Sismondi com Ricardo e sua escola, ade Rodbertus com Kirchman, e a de Narodniki com os marxistas russos. Mesmo nesse método de exposigao, Rosa Luxem- burgo nao abandona a tradicao de Marx. Seu modo de composicio significa, antes, um retorno ao marxismo original e auténtico: ao procedimento de exposicéo do proprio Marx. Pois sua primeira obra, acabada, com- pleta e madura, Miséria da filosofia, refuta Proudhon re- montandb as fontes verdadeiras de suas concepcoes: a Ricardo, de um lado, a Hegel, de outro. A andlise de onde, como e sobretudo por que Proudhon tinka de compreender mal Ricardo e Hegel é a fonte de luz que nao apenas expde sem piedade as contradigées inter- nas de Proudhon, como também penetra nas razdes obscuras, desconhecidas do proprio Proudhon, que ali- mentam esses erros: as relagdes de classe, das quais suas concepgies sao a expresso tedrica. Ora, “as categorias econdmicas so apenas as expressées tedricas, as abs- traces das relagies sociais de produgéo”, diz Marx'. E se sua principal obra tedrica adotou apenas parcial- mente esse método de exposigiio hist6rica dos problemas devido as suas dimensoes e a abundancia dos proble- mas particulares que sao tratados nessa exposicao, isso nao deve mascarar a similitude real na maneira de tratar 4, Elend der Philosophie, MEW 4, p. 130. 116 GEORG LUKACS problemas. O capital e as Teorias sobre a mais-valia sao, pela esséncia do seu objeto, obras cuja estrutura interna sig- nifica, no fundo, uma solugio do problema que a Misé- ria da filosofia colocava e esbocava brilhantemente e de modo abrangente. Essa forma interna da estruturacao do problema remete ao problema central do método dialético, 4 com- preensao exata da posicdo dominante que ocupa a ca- tegoria da totalidade e, assim, a filosofia hegeliana. O método filoséfico de Hegel, que sempre foi - de ma- neira mais convincente na Fenomenologia do espirito — historia da filosofia e filosofia da histéria ao mesmo tempo, jamais foi abandonado por Marx em relacdo a esse ponto essencial. Pois a unificagao hegeliana ~ dia- Iética - do pensamento e do ser, a concepcao de sua unidade como unidade e totalidade de um processo, formam também a esséncia da filosofia da historia do materialismo hist6rico. Mesmo a polémica materialis- ta contra a concepgio “ideolégica” da historia é dirigi- da bem mais contra os epigonos de Hegel do que con- tra o proprio mestre que, a esse respeito, estava muito mais proximo de Marx do que este péde imaginar em sua luta contra a esclerose “idealista” do método dia- lético. O idealismo “absoluto” dos epigonos de Hegel chega, com efeito, a dissolver a totalidade primitiva do sistema’, a separar a dialética da histéria viva e, por 5. Sobre a relagdo de Hegel com seus discipulos, cf. 0 excelente trabalho do hegeliano Lassale, “Die Hegelsche und die Rosenkranzsche Logik”, Werke. Cassirer, vol. VI Para saber até que ponto Hegel faz um ‘mau uso do seu proprio sistema, cf. 0 ensaio "O que é marxismo orto doxo?". Marx o corrige em vérios aspectos e d& continuidade ao seu trabalho de maneira decisiva. HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE u7 fim, a suprimir a unidade dialética do pensamento e do ser. Contudo, o materialismo dogmitico dos epigo- nos de Marx repete a mesma dissolugio da totalidade concreta da realidade histérica. Se o método dos epigo- nos de Marx nao degenera como o dos epigonos de He- gel num esquematismo intelectual vazio, ele se esclero- sa, numa ciéncia especifica e mecanicista, em economia vulgar. Se os primeiros acabaram perdendo a capaci- dade de combinar os acontecimentos histéricos com suas construgdes puramente ideolégicas, os segundos se mostram igualmente incapazes de compreender tan- to 0 elo das formas ditas “ideol6gicas” da sociedade com seu fundamento econdmico, como a propria eco- nomia como totalidade, como realidade social. Seja qual for o tema em discussao, ométodo dialé- tico trata sempre do mesmo problema: 0 conhecimen- to da totalidade do processo histérico. Sendo assim, os problemes “ideolégicos” e “econémicos” perdem para ele sua estranheza matua e inflexivel e se confundem um com 0 outro. A histéria de um determinado problema torna-se efetivamente uma hist6ria dos problemas. A expres- so literdria ou cientifica de um problema aparece como expresso de uma totalidade social, como expresso de suas possibilidades, de seus limites e de seus proble- mas. O estudo hist6rico-literario do problema acaba sendo 0 mais apto a exprimir a problemética do pro- cesso his:6rico. A histéria da filosofia torna-se filosofia da hist6ria. Por isso, nao é simplesmente um acaso que as duas obras fardamentais com as quais omega o renascimen- to tedrico do marxismo, A acumulagio do capital, de Rosa Luxemburgo, e O Estado e a revolugao, de Lénin, recor- ram tamdém ao modo de abordagem adotado pelo jo- 18 GEORG LUKACS vem Marx. Para fazer com que o problema real de suas obras surja dialeticamente diante dos nossos olhos, ofere- cem uma exposicao de certo modo hist6rico-literéria da sua génese. Ao analisarem a mudanca e a reverséo das concepcées que precederam sua maneira de colocar 0 problema, ao considerarem cada uma dessas etapas do esclarecimento ou da confusio intelectuais no conjun- to hist6rico de suas condigdes e de suas conseqiiéncias, fazem surgir o préprio processo histérico cujo resultado constitui sua abordagem e sua solucdo, com uma in- tensidade que nao pode ser atingida de outro modo. Nao hé maior contraste do que o existente entre esse método e aquele que consiste em “tomar em conside- racdo os predecessores” na ciéncia burguesa (a qual também pertencem os tedricos da socialdemocracia). Pois, ao distinguir metodicamente teoria e histéria, a0 separar os problemas particulares uns dos outros por principio e por método, ao climinar, portanto, o pro- blema da totalidade por razdes de exatidao cientifica, a ciéncia burguesa faz da historia do problema um peso morto na exposigao e no estudo do proprio problema, algo que s6 pode ter interesse para os especialistas, cujo caréter indefinidamente extensivel abafa cada vez mais o sentido verdadeiro dos problemas reais, favorecendo 0 desenvolvimento de uma especializacdo insensata. Devido a essa relacdo com as tradicdes de método ede exposicao referentes a Marx ea Hegel, Lénin fez da historia do problema uma historia interna das revolu- ‘ges européias do século XIX; a abordagem hist6rico- literéria dos textos por Rosa Luxemburgo se desenvolve numa histéria das lutas em torno da possibilidade e da expansao do sistema capitalista. Os primeiros grandes abalos sofridos pelo capitalismo ascendente e ainda néo HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 19 desenvelvido e as grandes crises de 1815 e de 1818-19 introduzem o debate com os Nouveaux principes d’écono- mie politique, de Sismondi. Trata-se do primeiro conhe- cimento- reacionario sem divida — da problemética do capitalismo. A forma nao desenvolvida do capitalismo se exprime ideologicamente nos pontos de vista igual- mente unilaterais ¢ falsos dos adversarios. Enquanto 0 ceticismo reacionério de Sismondi vé nas crises um si- nal da impossibilidade da acumulacao, 0 otimismo ain- da intacio dos porta-vozes da nova ordem de producao nega que as crises s4o inevitaveis e a existéncia de uma problematica. Ao fim da série, a reparticao social da- queles cue se interrogam e a significagao social de sua resposta ja esto completamente invertidas; o tema da discussio, ainda que sem a devida consciéncia, jé é 0 destino da revolugao, o declinio do capitalismo. O fato dea anilise de Marx ter desempenhado no plano ted- rico um papel decisivo nessa transformacao de sentido serve para indicar que mesmo a lideranga ideol6gica da sociedade comeca a escapar cada vez mais A burgue- sia. Mas enquanto a esséncia pequeno-burguesa e rea- cionéria de Narodniki se manifesta abertamente em sua tomada de posicao tedrica, é interessante observar como os “marxistas” russos se transformam cada vez mais claramente em campedes da evolugao capitalista. ‘Tomamse, quanto as possibilidades de evolugao do ca- pitalismo, os herdeiros ideol6gicos do otimismo social de Say, de MacCulloch etc, “Os marxistas russos ‘le- galistas”, diz Rosa Luxemburgos, “triunfaram, sem dui- vida nenhuma, sobre seus contraditores ‘populistas’, 6. Ackumulation des Kapitals, p.296. 1° ed. 120 GEORG LUKAcS mas triunfaram demais [...] Tratava-se de saber se 0 capitalismo em geral, e na Riissia em particular, seria capaz de evoluir, ¢ os ditos marxistas deram uma de- monstracdo tao completa dessa atitude que chegaram até mesmo a provar teoricamente a possibilidade de 0 capitalismo durar eternamente. E claro que quando se admite a acumulacio ilimitada do capital, demostra- se também sua viabilidade ilimitada [...] Se o modo de produgio capitalista esta em condigo de assegurar sem limites o crescimento das forgas de produgao, 0 pro- Bresso econémico, entao ele é invencivel.” ‘Aqui se coloca a quarta e tiltima investida contra © problema da acumulacio, a investida de Otto Bauer contra Rosa Luxemburgo. A questdo do otimismo social sofreu uma nova mudanga de funcao. Em Rosa Luxem- burgo, a dtivida quanto & possibilidade da acumulagio se livra da sua forma absolutista. Ela se transforma na questao histdrica das condigdes da acumulacao e, assim, na certeza de que uma acumulacao ilimitada impos- sivel. Pelo fato de ser tratada em seu meio social como um todo, a acumulagio torna-se dialética. Ela se desen- volve em dialética de todo o sistema capitalista. “No mo- mento em que o esquema de Marx sobre a reproducao ampliada corresponde a realidade”, diz Rosa Luxem- burgo’, “ele indica o fim, o limite hist6rico do movimen- to de acumulacao, portanto, o fim da produgio capita- lista. A impossibilidade da acumulacio significa, no plano capitalista, a impossibilidade do desenvolvimen- to ulterior das forcas produtivas e, com isso, a necessi- dade hist6rica objetiva do declinio do capitalismo. Dis- HISTORIAE CONSCIENCIA DE CLASSE 121 so resulta 0 movimento pleno de contradicées da tilti- ma fase, aquela imperialista, enquanto perfodo con- clusivo na carreira hist6rica do capital.” Ao se trans- formar em certeza dialética, a diivida deixa para tras e sem vestigios todo o carter pequeno-burgués e rea- cionério do seu passado: torna-se otimtismo, certeza te6ri cada recolugao social vindoura. ‘A mesma mudanga de funcao imprime & tomada de posicéo oposta, a afirmagio da acumulagao sem li- mites, um cardter pequeno-burgués oscilante, hesitante, cético. A afirmagao de Otto Bauer nao tem o otimismo radiante de um Say ou de um Tugan-Baranovski. Ain- da que usando de uma terminologia marxista, Bauer e aqueles que partilham de suas opinides so proudho- nianos quanto a esséncia de sua teoria. Suas tentativas para resolver o problema da acumulacio, ou antes, para nao ver nela um problema, levam, no fim das contas, 0s esforgos de Proudhon para conservar o “lado bom” da evolucao capitalista, desviando de seu “lado ruim’”®, Reconhecer a questéo da acumulacdo significa reco- nhecer que esse “lado ruim” esté inseparavelmente gado a esséncia mais intima do capitalismo. Significa, por conseguinte, que o imperialismo, a guerra e a re- volugao mundiais devem ser entendidas como neces- sidades da evolugéo. Contudo, como se sublinhou, isso contradiz o interesse imediato daquelas camadas que tiveram nos marxistas do centro seus porta-vozes ideo- logicus, camadas yue desejam um capilalismo altamente desenvolvido, sem “excrescéncias” imperialistas, uma producio “bem regrada’, sem as “pertubacées” da 8. Eiend der Philosophie, MEW 4, pp. 131-3. 122 GEORG LUKACS guerra etc. “Essa concepcao”, diz Rosa Luxemburgo’, “visa a persuadir a burguesia de que o imperialismo e o militarismo seriam prejudiciais do ponto de vista dos seus proprios interesses capitalistas. Espera-se, com isso, poder isolar o punhado de aproveitadores, por as- sim dizer, desse imperialismo e formar um bloco com o proletariado e as largas camadas da burguesia para ‘atenuar’ 0 imperialismo, [...] para ‘retirar dele o seu espinho’. Do mesmo modo como, na época de sua de- cadéncia, 0 liberalismo transferiu seu apelo da monar- quia mal-informada aquela que precisava de mais in- formagao, o ‘centro marxista’ transfere seu apelo da burguesia mal-aconselhada a burguesia que precisa ser instruida.” Bauer e seus camaradas capitularam diante do capitalismo, tanto econémica como ideologicamen- te. Essa capitulagao se exprime teoricamente em seu fatalismo econémico, em sua crenca no capitalismo que teria a duracao eterna das “leis da natureza”. No entan- to — enquanto auténticos pequeno-burgueses —, como sfo apenas apéndices ideol6gicos e econdmicos do ca- pitalismo, como seus desejos se dirigem a um capitalis- mosem o “lado ruim”, sem “excrescéncias”, encontram- se numa “oposigéo” — também autenticamente peque- no-burguesa ~ ao capitalismo: numa oposicéo ética. 4. Fatalismo econémico e nova fundamentagio ética do socialismo estao estreitamente ligados. Nao é por 9, Antikritik, p18. HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 123 acaso que os reencontramos da mesma maneira em Bernstein, Tugan-Baranovski e Otto Bauer. E ndo é so- mente pela necessidade de encontrar um sucedaneo subjetivo a via objetiva para a revolucio, via obstruida por eles mesmos. £ também uma conseqiiéncia met6- dica do seu ponto de vista econdmico-vulgar, uma conseqiiéncia do seu individualismo metodolégico. A nova fundamentacao “ética” do socialismo é o aspecto subjetivo da auséncia da categoria da totalidade, a tini ca capaz de sintese. Para o individuo — seja ele capitalis- ta ou proletério -, o mundo ao seu redor, o meio social (ea natureza, enquanto seu reflexo e projecio tedrica) devem aparecer como submetidos a um destino brutal e absurdo, como sendo para ele eternamente estranhos. isse mundo s6 pode ser compreendido por ele se as- sumir, na teoria, a forma de “leis eternas da natureza”, isto é, se adquirir uma racionalidade estranha ao ho- mem, incapaz de ser influenciada ou penetrada pelas possibilidades da aco do individuo; se o homem ado- tar a seu respeito uma atitude puramente contemplati- va fatalista. Num mundo como esse, a possibilidade de aco oferece apenas dois caminhos, que, no entan- to, so dois modos aparentes de mudar 0 mundo. Em primeiro lugar, a utilizacao para fins humanos deter- minados (a técnica, por exemplo) das “leis” imutaveis, aceitas com fatalismo e conhecidas segundo 0 modo ja indicado, Em segundo, a acao dirigida apenas para 0 interior,a tentativa de realizar a transformagao do mun- do no tinico ponto do mundo que permaneceu livre, © homem (ética). Mas como a mecanizacao do mundo mecaniza necessariamente também seu sujeito (0 ho- mem), essa ética permanece igualmente abstrata, ape- 124 GEORG LUKACS nas normativa, ¢ ndo realmente ativa e criadora de ob- jetos, mesmo em relagio a totalidade do homem isola- do do mundo. Ela simplesmente permanece prescriti- va, com um carter imperativo. O elo metédico entre a Critica da razdo pura e a Critica da razdo pritica, de Kant, 6 obrigatério e inelutavel. E todo “marxista” que aban- donou a consideracao da totalidade do proceso hist6- rico, o método de Hegel e Marx, no estudo da realidade econémica e social, para se reaproximar de algum modo da consideracio “critica” do método nao-histérico de uma ciéncia especifica que busca “leis”, deve necessa- riamente - desde que se ataque o problema da acao—re- tornar a ética imperativa abstrata da escola kantiana. Afinal, o rompimento com a consideracao da tota- lidade rompe também a unidade da teoria e pritica. A aco, a praxis — nas quais Marx faz culminar suas Teses sobre Feuerbach — implicam, por esséncia, uma penetra- do, uma transformacao da realidade. Mas a realidade 86 pode ser compreendida e penetrada como totalida- de, e somente um sujeito que é ele mesmo uma totali- dade é capaz dessa penetracao. Nao 6 a toa que o jovem Hegel!” poe como primeira exigéncia de sua filosofia 0 principio segundo o qual “o verdadeiro deve ser cor preendido e exprimido no somente como substancia, mas igualmente como sujeito”. Ele desmascarou, as- sim, a falha mais grave, o limite ultimo da filosofia clas- sica alema, ainda que o cumprimento real dessa exi- gencia tenha sido recusado a sua prépria filosofia; esta permaneceu, sob varios aspectos, prisioneira dos mes- mos limites que a dos seus predecessores. Somente a 10. Phinomenologie des Geistes. Prefécio. HISTORIAE CONSCIENCIA DE CLASSE 125 Marx estava reservado descobrir concretamente essa “verdade enquanto sujeito” e estabelecer, assim, a uni- dade da teoria e da praxis, ao centrar na realidade do processo hist6rico ¢ limitar a ela a realizacao da total dade reconhecida e ao determinar, portanto, a totalid: de cognoscivel e aquela a ser conhecida. A superio dade metédica e cientifica do ponto de vista da classe (em oposicéo ao do individuo) jé foi esclarecida no que precede. Agora é também o fundamento dessa su- perioridade que se torna claro: somente a classe, por sua acio, pode penetrar a realidade social ¢ transformd-la em sua totalidade. Por isso, por ser a consideracao da tota- lidade, a “critica” que se exerce a partir desse ponto de vista € a unidade dialética da teoria e da praxis. Ela é, numa unidade dialética indissoliivel, ao mesmo tem- po fundamento e conseqiiéncia, reflexo e motor do pro- cesso hist6rico-dialético. O proletariado, como sujeito do pensamento da sociedade, rompe de um s6 golpe 0 dilema da impoténcia, isto é, 0 dilema do fatalismo das leis puras e da ética das intengdes puras. Se, portanto, para o marxismo, o conhecimento do caréter historicamente limitado do capitalismo (0 pro- blema da acumulacao) torna-se uma questao vital, 6 porque somente esse elo, a unidade da teoria e da pré- tica, pode fazer manifestar como fundamentado a ne- cessidade da revolucao social, da transformagao total da totalidade da sociedade. E somente no caso de 0 ca- rater cognoscivel e o proprio conhecimento desse elo poderem ser concebidos como produtos do processo que 0 circulo do método dialético - essa determinacao da dialética que também vem de Hegel - pode se fechar. Rosa Luxemburgo, jé em suas primeiras polémicas com Bernstein, sublinha a diferenca essencial entre uma con- 126 GEORG LukAcs sideracdo total e uma consideracao parcial, uma consi- deragao dialética e uma consideracao mecanicista da historia (seja esta alids oportunista ou terrorista). “Nis- soreside”, explica ela"!, “a principal diferenca entre os gol- pes de estado blanquistas de uma ‘minoria resoluta’ que estouram sempre como tiros de pistolas e, por isso, sem- pre a contratempo, ¢ a conquista do poder de Estado pela grande massa do povo, consciente do seu interes- se de classe. Essa conquista s6 pode ser o produto de um inicio de desmoronamento da sociedade burguesa e, portanto, traz em si mesma, assim, a legitimacao econd- mica e politica do seu aparecimento propicio.” E, em seu tiltimo escrito, explica de maneira semelhante!2: “A tendéncia objetiva da evolugao do capitalismo para 0 seu termo basta para agravar de tal maneira e com tan- ta antecedéncia os conffitos sociais e politicos na socieda- de, que eles devem, necessariamente, preparar o fim do sistema reinante. Esses conflitos sociais e politicos, no entanto, sao por si s6s, em tiltima andlise, apenas 0 pro- duto do cardter economicamente insustentavel do siste- ma capitalista e tiram justamente dessa fonte seu agra- vamento crescente, na medida exata em que esse caré- ter insustentavel torna-se sensivel.” Sendo assim, o proletariado 6, ao mesmo tempo, 0 produto da crise permanente do capitalismo e 0 exe- cutor das tend@ncias que impelem o capitalismo para a cise. “O proletariado”, diz Marx, “execula v julga- mento que a propriedade privada inflige a si mesma 1, Soziaheform oder Revolution?, p. 47. 12. Antikritik, p.37. 13, Die heilige Familie, MEW 2, p. 37. HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 127 ao produzir 0 proletariado.” Ao reconhecer sua situa- Gao, ele age. Ao combater o capitalismo, reconhece sua situagio na sociedade. No entanto, a consciéncia de classe do proletaria- do, a verdade do processo como “sujeito”, esta longe de ser estavel, ou de progredir segundo “leis” mecani- cas. Fla é a consciéncia do préprio processo dialético; ela é igualmente um conceito dialético. Pois 0 aspecto prético e ativo da consciéncia de classe, sua esséncia verdadeira, s6 pode se tornar visfvel em sua forma au- téntica quando 0 processo histérico exige imperiosa- mente sua entrada em vigor, quando uma crise aguda da economia a leva a aco. Do contrério, corresponden- doa crise permanente e latente, ela permanece tedrica e latente! confronta as questdes e os conflitos indivi- duais da atualidade com suas exigéncias como “mera” consciéncia, como “soma ideal”, segundo as palavras de Rosa Luxemburgo. No entanto, na unidade dialética da teoria e da praxis, que Marx reconheceu e descreveu na luta eman- cipatoria do proletariado, nao pode haver uma simples consciéncia, nem como “pura” teoria, nem como sim- ples exigéncia, como simples dever ou norma de acio. A exigéncia também tem sua realidade. Isto 6, o nivel do processo histérico que imprime a consciéncia de clas- se do proletariado um cardter de exigéncia, um caréter “latente e tedrico”, deve se transformar em realidade cor- respondente e, enquanto tal, intervir de maneira ativa na tota'idade do proceso. Essa forma da consciéncia de classe proletaria 0 partido. Rosa Luxemburgo reco- A, Massenstreik, 2 ed., p48. 128 GEORG LuKAcs nheceu antes e mais claramente que muitos outros 0 cardter essencialmente espontaneo das acdes da massa revolucionaria (sublinhando, assim, outro aspecto des- sa constatagéo anterior, segundo a qual essas aces so © produto necessario de um proceso econémico neces- sirio). Nao é um acaso, portanto, 0 fato de ela ter com- preendido, igualmente muito antes de outros, o papel do partido na revolucao®. Para os vulgarizadores me- canicistas, o partido era uma simples forma de organi: zagio, eo movimento de massa, bem como a revolucio, nao passavam de um problema de organizacao. Rosa Luxemburgo reconheceu cedo que a organizacao é, an- tes, uma conseqiiéncia do que uma condicao prévia do processo revolucionério, do mesmo modo como o pro- letariado s6 pode se constituir em classe no processo por ele. Nesse proceso, que o partido ndo pode nem provocar, nem evitar, cabe, portanto, ao partido o pa- pel elevado de ser o portador da consciéncia de classe do proletariado, a consciéncia de sua missdo histdrica. Enquanto aatitude aparentemente mais ativa e mais “real” para um observador superficial - que atribui ao partido, antes de tudo ou exclusivamente, as tarefas de organizacao = € reduzida a uma posicao de fatalismo inconsistente quando confrontada com a realidade da revolucao, a concepgio de Rosa Luxemburgo torna-se a fonte da ver- dadeira atividade revolucionaria. Se o partido tiver a preocupagao “de realizar, em cada fase e em cada mo- mento da luta, a soma total do poder existente, j& exer- cido eativo, do proletariado, exprimindo-a na sua posi- 15. Sobre 0s limites da sua visao, cf. 08 ensaios “Notas criticas L..I” e “Observagdes metodologicas sobre a questio da organizacio” Contentamo-nos por ora em apresentar seu ponto de vista HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 129 go de combate; de nunca deixar que a tatica da social- democracia, em termos de decisao e rigor, fique abaixo do nivel efetivo da relacdo de forgas, mas de fazer com que caminhe a frente dessa relagdo”*, no momento agudo da revolucio, o partido transformaré seu caré- ter de exigéncia em realidade ativa, pois faré penetrar no movimento de massa espontaneo a verdade que lhe 6 imanente, elevar-se-d da necessidade econdmica de sua origem a liberdade da acao consciente. E essa pas- sagem Ga exigéncia a realidade acaba se tornando a alavanca da organizacéo verdadeiramente revolucio- naria e conforme a classe do proletariado. O conheci- mento torna-se aco, a teoria torna-se palavra de ordem, a massa ativa, seguindo as palavras de ordem, incor- pora-se de forma cada vez mais forte, consciente e es- tavel no nivel da vanguarda organizada. As palavras de ordem corretas dao origem organicamente as con- dicdes ¢ as possibilidades da organizagio técnica do proletariado em luta. ‘A consciéncia de classe é a “ética” do proletaria- do, a unidade de sua teoria e de sua praxis, o ponto em que a necessidade econdmica de sua luta emancipado- ra se transforma dialeticamente em liberdade. Uma vez reconhecido o partido como forma hist6rica e portador ativo daconsciéncia de classe, ele se torna, a0 mesmo tem- po, 0 portador da ética do proletariado em luta. Essa funcao deve determinar sua politica. Nem sempre essa politica estard de acordo com a realidade empirica mo- mentanea; em tais momentos, suas palavras de ordem podem ser ignoradas; a marcha necesséria da historia 16. Massenstrei, p. 38. 130 GEORG LUKACS Ihe renderé nao somente justica, mas a forca moral de uma consciéncia de classe correta e de uma acao tam- bém correta e conforme a classe trard igualmente seus frutos ~ no plano da politica pratica e real’”, Pois a forga do partido é uma fora moral: ela é alimentada pela confianga das massas espontanea- mente revolucionarias, coagidas pela evolugdo econé- mica a sublevar-se, pelo sentimento das massas de que 0 partido € a objetivacao de sua vontade mais intima, ainda que nado inteiramente clara para si mesmas, a for- ma visivel e organizada de sua consciéncia de classe. Somente depois que o partido lutar por essa confianca e merecé-la poderd tornar-se um lider da revolucio. Pois somente entao o impulso espontaneo das massas tenderé, com toda a sua energia e cada vez mais ins- tintivamente, na direcéo do partido e de sua prépria tomada de consciéncia. Ao separar 0 que é indivisivel, os oportunistas fe- charam-se a esse conhecimento, ou seja, a um autoco- nhecimento ativo do proletariado. Desse modo, seus defensores ~ na verdade, livres-pensadores pequeno- burgueses ~ também falam ironicamente da “crenga religiosa” que estaria na base do bolchevismo, do mar- xismo revoluciondrio. Essa acusacao encerra a declara- go de sua propria impoténcia. Esse ceticismo interior- mente minado e corro{do se envolve em véo com 0 no- bre manto de um “método cientifico” frio e objetivo. Ca- da palavra e cada gesto denunciam o desespero dos melhores ¢ 0 vazio interior dos piores, que se esconde atrés desse ceticismo: o isolamento total em relagao ao proletariado, as suas vias ea sua vocacao. O que eles cha- 17.Cf.a bela passagem na brochura de Junius, Futurus-Verlag, p.92. HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 131 mam de crenca e procuram rebaixar, qualificando de “re- ligido”, 6 somente a certeza do declinio do capitalismo, a certeza da vit6ria final da revolugéo proletéria. Nao pode haver garantia “material” para essa certeza. Ela est garantida somente metodicamente ~ pelo método dialético. E essa garantia também s6 pode ser provada e adquirida pela acdo, pela propria revolucao, pela vida e pela morte para a revolucao. Um marxista que cultive a objetividade do estudo académico é tao repreensivel quanto aiguém que acredite que a vitdria da revolucao mundial pode ser garantida pelas “leis da natureza”. A unidade da teoria e da pratica nao existe somen- tena teoria mas também para a préxis. Do mesmo modo como o proletariado enquanto classe s6 pode conquis- tar e conservar sua consciéncia de classe e elevar-se a0 nivel de sua tarefa hist6rica ~ objetivamente dada - no combate e na acdo, o partido e o militante individual também s6 podem se apropriar realmente de sua teo- ria se estiverem em condigio de fazer passar essa uni- dade para sua praxis. A chamada crenga religiosa é sim- plesmente a certeza metodolégica de que, a despeito dos fracassos e recuos momentaneos, 0 processo hist6- rico pessegue seu caminho até o fim em nossas acées e por meio delas. Para os oportunistas, hé aqui também 0 velho dilema da impoténcia; ele dizem: se 0s comunis- tas prevéem a “derrota”, devem abster-se de toda acéo ou ser aventureiros sem consci¢ncia, politicos da ca- tastrofe e terroristas. Em sua inferioridade intelectual e moral, so incapazes de perceber a si mesmos e 0 insan- te de sua acdo como um aspecto da totalidade e do processo, de vera “derrota” como etapa necesséria para a vitéria. uma caracteristica da unidade da teoria e da prati- cana obra de Rosa Luxemburgo o fato de essa unidade 132 GEORG LUKACS de vitoria e derrota, de destino individual e processo to- tal constituirem o fio condutor de sua teoria e de sua vida. Em sua primeira polémica contra Bernstein'8, ela jé afirmava que a tomada “prematura” do poder pelo proletariado seria inevitavel. Desmascarou o ceticismo resultante, oportunista e amedrontado em relagao a re- volugio “como um absurdo politico que parte de uma evolugéo mecanica da sociedade e pressupée como condicao prévia a vit6ria da luta de classes um ponto determinado no tempo, externo a luta de classes e inde- pendente dela”. Fssa certeza sem ilusdes inspira Rosa Luxemburgo em suas lutas pela emancipacao do prole- tariado: sua emancipacéo econdmica e politica da servi- dao material do capitalismo, sua emancipagio ideolégica da servidao intelectual do oportunismo. Como grande lider intelectual do proletariado, conduziu sua luta prin- cipal contra esse tiltimo adversario ~ bem mais perigo- $0 porque bem mais dificil de vencer. Sua morte, obra dos seus contraditores mais reais e obstinados, Scheide- manne Noske, é 0 coroamento légico do seu pensamen- to e da sua vida. Teoricamente, ela previu a derrota da insurreigao de janeiro muitos anos antes de seu aconteci- mento; taticamente, ela a previu no instante da ago. O fato de ter apoiado as massas e partilhado de sua sorte nessas condigdes é uma consequiéncia totalmente logi- ca da unidade da teoria e da praxis na sua acao, tanto quanto o édio que Ihe haviam declarado a justo titulo seus assassinos, os oportunistas da socialdemocracia. Janeiro de 1921. 18, Soziale Reform oder Revolution?, pp. 47-8, CONSCIENCIA DE CLASSE Nao se trata do que este ou aquele proletariado, ‘ou mesmo todo o proletariado, imagina em dado mo- mento como fim. Trata-se do que ele ée do que, de acor- do com esse ser, serd historicamente coagido a fazer. MARx, Die Heilige Familie IA sagrada famflial ~ Deuma maneira funesta, tanto para a teoria como para o proletariado, a principal obra de Marx interrom- pe-se justamente no momento em que aborda a defini- Gao das classes. Quanto a esse ponto decisivo, o movi- mento posterior estava, portanto, orientado a interpretar, a confrontar as declaragées ocasionais de Marx e En- gels, a elaborar e aplicar o método. No espirito do mar- xismo, a divisdo da sociedade em classes deve ser de- terminada segundo a posicéo no proceso de producio. O que significa entao a consciéncia de classe? A ques- tdo se ramifica imediatamente numa série de questdes parciais, estreitamente ligadas entre si. Em primeiro lu- gar, o que se deve entender (teoricamente) por conscién- cia de classe? Em segundo, qual é a fungi da cons- ciéncia de classe assim entendida (na prética) na pr6- pria luta de classes? Tal pergunta leva a seguinte: a questo da consciéncia de classe é uma questo socio- logica “geral” ou tem para o proletariado um significa- do inteiramente diferente daquele que teve para todas 134 GEORG LUKACS as outras classes surgidas até entao na historia? E, por fim: a esséncia e a funcao da consciéncia de classe for- mam uma unidade ou comportam diferentes gradacées e camadas? Se for assim, qual o seu significado pratico na luta de classes do proletariado? Em sua famosa exposigéo do materialismo hist6- rico, Engels! parte do principio de que, embora a es- séncia da hist6ria consista no fato de que “nada ocorre sem intengéo consciente, sem fim desejado”,é preciso ir além disso para compreender a hist6ria. Por um lado, porque “as numerosas vontades individuais que ope- ram na histéria produzem, na maior parte do tempo, resultados completamente diferentes daqueles deseja- dos — freqiientemente até opostos ~e, por conseguinte, seus motivos tém igualmente uma importéncia apenas se- cunddria para 0 resultado do conjunto. Por outro, restaria saber quais forcas motrizes se escondem, por sua vez, atriis desses motivos, quais s4o as causas histéricas que, agin- do na mente dos sujeitos agentes, transformam-se em tais motivos”. A seqiiéncia da exposicao de Engels de- termina o problema: sao essas proprias forcas motrizes que devem ser definidas, a saber, as forcas que “poem em movimento povos inteiros e, em cada povo, por sua vez, classes inteiras; e isso [...] acaba criando uma agio durtvel e que resulta numa grande transformagao hist6rica” . A esséncia do marxismo cientifico consiste, portanto, 1. Feuerbach, MEW 21, pp. 296 ss. HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 135 ‘em reconhecer a independéncia das forgas motrizes reais, da histéria em relagio consciéncia (psicolégica) que os homens tém delas. No nfvel mais primitivo do conhecimento, essa in- dependéncia se exprime, inicialmente, no fato de que os homens véem nessas poténcias uma espécie de nature- za, de que percebem nelas e nas suas legitimas relacoes leis naturais “eternas”. “A reflexdo sobreas formas da vi- da humana”, diz. Marx a propésito do pensamento bur- gués?, “portanto, também sua anélise cientifica, tomam, em geral, um caminho oposto ao da evolugao real. Co- meca post festum e, por isso, com os resultados acaba- dos do processo de desenvolvimento. As formas [...1j4 possuem a estabilidade das formas naturais da vida so- cial, antes que os homens procurem dar conta, nao do cardter hist6rico dessas formas, que lhes parecem imu- taveis, mas do seu contevido”. A esse dogmatismo, que encontrava seus mais significativos representantes, de um lado, na teoria politica da filosofia clssica alema e, de outro, na economia de Smith e Ricardo, Marx opée uma filosofia critica, uma teoria da teoria, uma cons- ciéncia da consciéncia. Essa filosofia critica significa — em muitos aspectos ~ uma critica hist6rica. Ela dissol- ve sobretudo o carter fixo, natural e nao realizado das formagées sociais; ela as desvela como surgidas histo- ricamente e, como tal, submetidas ao devir hist6rico em todos os aspectos, portanto, como formacées predeter- minadas ao declinio histérico. Por conseguinte, a his- t6ria nao ocorre somente dentro do dominio de validade 2. Kavita! I, MEW 23, pp. 89's 136 GEORG LUKAS dessas formas, segundo o qual a hist6ria significaria ape- nas a mudanga de contetidos, de homens, de situagdes etc., com principios sociais eternamente validos. Essas formas sao ainda o objetivo ao qual aspira toda historia e, depois de realizadas, a historia chegaria a um fim, pois jé teria cumprido sua missio. Mas ela é, antes, jus- tamente a histéria dessas formas, sua transformacao como formas da reunido dos homens em sociedade, como for- mas que, iniciadas a partir de relacdes econémicas ob- jetivas, dominam todas as relagdes dos homens entre si (assim também as relagdes dos homens consigo mes- mo, com a natureza etc.). O pensamento burgués, contudo, deve deparar aqui com uma barreira intransponivel, visto que seu ponto de partida e sua meta so, embora nem sempre cons- ciente, a apologia da ordem existente das coisas ou, pe- Jo menos, a demonstracao de sua imutabilidade’. “As- sim, houve uma hist6ria, mas nao ha mais”, diz Marx* a respeito da economia burguesa. Tal frase vale, porém, para toda tentativa do pensamento burgués de domi- nar o processo histérico pelo pensamento. (Aqui se en- contra também um dos limites muito freqiientemente assinalado da filosofia hegeliana da histéria.) Desse modo, a historia é entregue como tarefa ao pensamen- to burgués, mas como tarefa insoltivel. Pois ele deve su- primir completamente o proceso hist6rico e apreender, 3. O “pessimismo”, que eterniza a estado presente exatamente como 0 “otimismo”, também apresenta tal estado como barreira in transponivel do desenvolvimento humano. Sob esse aspecto (mas so- ‘mente nele), Hegel e Schopenhauer encontram-se no mesmo nivel. 4 Elend der Philosophie, MEW 4, p. 139. HISTORIA & CONSCIENCIA DE CLASSE 137 nas formas de organizagao do presente, as leis eternas, da natureza que, no passado — por razbes “misterio- sas” e de uma maneira que € incompativel com os prin- cipios da ciéncia racional na procura de leis -, nao se es- tabeleceram por completo ou de modo algum (socio- logia burguesa). Ou ainda, deve eliminar do proceso da histéria tudo 0 que tem um sentido, que visa a um fim; deve deter-se na mera “individualidade” das épo- cas histéricas e de seus portadores sociais e humano: Com Ranke, a ciéncia da hist6ria deve insistir no fato de que cada época historica “est igualmente proxima de Deus’, isto é, alcancou o mesmo grau de perfeicao e que, portanto — por motivos opostos -, nao h4, por sua vez, um desenvolvimento histérico. No primeiro caso, desaparece toda possibilidade de compreender a origem das configuragées sociais®. Os objetos da hist6- ria aparecem como objetos de leis naturais e imut4- veis, eternas. A histéria se fixa num formalismo incapaz de conceber as formagées sécio-histéricas em sua es- sencia verdadeira como relacées entre homens; elas so, antes, afastadas por uma disténcia intransponivel des- sas mais auténticas fontes de compreensao da histéria. “Nao se compreende”, como diz Marx’, “que essas re- lagées sociais determinadas sdo produtos humanos tanto quanto toalhas, linhos etc.” No segundo caso, a historia se torna ~ em tiltima anélise - 0 reino irracio- nal de poténcias cgas, que no mdximo incorpora o “espirito do povo” ou os “grandes homens”. Por isso, esse reino s6 pode ser descrito pragmaticamente, mas 5. Ibid, p. 126. 6. Ibid, p. 130. 138 GEORG LUKACS nao concebido racionalmente. £ passfvel apenas de or- ganizacao estética, como uma espécie de obra de arte. Ou tem de ser apreendido, como na filosofia da historia dos kantianos, como material, sem sentido em si mes- mo, da realizagio dos princfpios atemporais, supra- hist6ricos e éticos. Marx soluciona esse dilema ao demonstrar que nao existe aqui um verdadeiro dilema. O dilema revela sim- plesmente que 0 antagonismo proprio da ordem da pro- ducio capitalista se reflete nessas concepgées opostas e excludentes a propésito de um mesmo objeto. Pois, na consideracao “sociolégica” conforme a lei e naquela formalista-racional da hist6ria, exprime-se justamen- te o abandono dos homens da sociedade burguesa as forcas produtivas. “O seu préprio movimento social”, diz Marx’, “possui para eles a forma de um movimento de coisas, ao controle das quais se encontram submetidos em vez de controlé-las.” A essa concepgao, que encon- trou sua expresso mais clara e coerente nas leis pura- mente naturais e racionais da economia classica, Marx opie a critica histérica da economia, a dissolugéo de todas as objetividades reificadas da vida econdmica e social nas relacdes entre os homens. O capital (e, com ele, toda forma de objetividade da economia politica) nao & para Marxt, “uma coisa, mas uma relacéo social en- tre pessoas, mediada por coisas”. No entanto, ao redu- 7. Kapital 1, MEW 23, p. 89 (geifado por mim). Cf. também Engels, Ursprung der Familie, MEW 21, pp. 169 s. 8. Ibid. I, MEW 23, p. 793. Cf. também Lolmarbeit und Kapital, MEW 6, pp. 407-8; sobre as maquinas, Elend der Philosophie, MEW 4, p. 149; 80- bre dinheiro, ibid, p. 107 ete, HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 139 zir essa objetividade das formacées sociais, tao hostil aos homens, as relacdes entre os homens, abole-se, a0 mesmo tempo, a falsa importancia atribufda ao principio irracional e individualist, dito de outro modo, 0 outro aspecto do dilema. Pois a eliminacao dessa objetividade hostil ao homem, atribuida as formagGes sociais e ao seu movimento histérico, simplesmente a reduz a relagio dos homens entre si enquanto seu fundamento, sem com isso abolir sua conformidade com as leis e sua objetivida- de, independentes da vontade humana e, em particular, da vontade e do pensamento dos individuos. Essa objeti- vidade ¢ a mera auto-objetivacao da sociedade humana numa etapa determinada de sua evolugao, e essa confor- midade com as leis é valida somente no ambito do con- texto historic que ela, por sua vez, produz.e determina. Parece que, com a eliminacao desse dilema, todo papel decisivo no proceso histérico estaria sendo sub- traido da consciéncia. Certamente, os reflexos conscien- tes das diversas etapas do desenvolvimento econémico permanecem fatos hist6ricos de grande importancia; certamente, o materialismo dialético, assim constituido, no contesta de modo algum que os homens cumprem e executam conscientemente seus atos histéricos. Mas, como destaca Engels numa carta a Mehring®, trata-se de uma falsa consciéncia. Aqui também, no entanto, 0 método dialético ndo permite que nos detenhamos nu- ma simples constatacao da “falsidade” dessa conscién- cia, numa oposicao fixa do verdadeiro e do falso. Ele exi- ge, antes, que essa “falsa consciéncia” seja estudada con- 9. MEW 39, p.97, 140 GEORG LUKACS cretamente como aspecto da totalidade histérica & qual pertence, como etapa do processo histérico em que age. A ciéncia historica burguesa também visa, é ver- dade, a estudos concretos. Censura 0 materialismo por violar a unicidade concreta dos eventos histéricos. Seu erro reside em acreditar que é possivel encontrar 0 con- creto no individuo empirico e histérico (quer se trate de uma pessoa, de uma classe ou de um povo) e em sua consciéncia dada empiricamente (isto €, psicolégica ou psicolégica de massas). Mas é justamente quando acre- dita ter encontrado o que hé de mais concreto que ela est mais longe do concreto: a sociedade como totalidade concreta, a organizagao da producao num determinado nivel do desenvolvimento social e a divisio de classes que opera na sociedade. Ao passar ao largo disso, ela apreende como concreto algo de completamente abs- trato. “Essas relacSes”, diz Marx'®, “nao sao relaces en- tre individuos, mas entre o operario e o capitalista, entre © agricultor e o proprietério fundidrio etc. Apaguem es- sas relagdes e terao aniquilado toda a sociedade; seu Prometeu sera apenas um fantasma sem bragos nem pernas...” Estudo concreto significa, portanto: relagdo com a sociedade como totalidade. Pois 6 somente nessa rela- do que se revela a consciéncia que os homens tém de sua existéncia, em todas as suas determinagées essen- ciais. De um lado, aparece como algo subjetivamente jus- tificado na situacio social e histérica, como algo que pode e deve ser compreendido enquanto “correto”. Ao mesmo tempo, aparece como algo que, objetivamente, 6 10. Elend der Philosophie, MEW 4, p. 123. HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 141 passageiro em relacdo a esséncia do desenvolvimento social, nao se conhece e nao se exprime adequadamen- te, portanto, como “falsa consciéncia”. Por outro lado, na mesma relacdo, essa consciéncia revela nao ter con- seguido alcancar subjetioamente os fins que atribuiu a si mesma, enquanto promoveu e atingiu os fins objeti- vos do desenvolvimento social, que ela nao conhecia e nao desejou. Essa determinacao duplamente dialética da “false consciéncia” permite nao traté-la mais como uma anélise que se limita a descrever o que os homens pensaram, sentiram e desejaram efetivamente sob con- dices hist6ricas determinadas, em situagdes de classe determinadas etc. Temos, entdo, apenas o material - mui- to importante, é verdade ~ dos estudos hist6ricos pro- priamente ditos. A relagio com a totalidade concreta e as determinac6es dialéticas dela resultantes superam a simples descricao e chega-se A categoria da possibili- dade objetiva. Ao se relacionar a consciéncia com a to- talidade da sociedade, torna-se possivel reconhecer os pensamentos e os sentimentos que os homens teriam tido numa determinada situacao da sua vida, se tives- sem sido capazes de compreender perfeitamente essa situa- ao e os interesses dela decorrentes, tanto em relagdo a acao imediata, quanto em relacao a estrutura de toda a sociedade conforme esses interesses. Reconhece, por- tanto, entre outras coisas, os pensamentos que esto em conformidade com sua situagio objetiva. Em nenhuma sociedade, o némero de tais situacdes ¢ ilimitado. Mes- mo que sua tipologia seja aperfeicoada por pesquisas detalhadas, chega-se a alguns tipos fundamentais cla- ramente distintos uns dos outros e cujo carter essencial 6 determinado pela tipologia da posicdo dos homens 142 GEORG LUKACS no proceso de producao. Ora, a reagio racional ade- quada, que deve ser adjudicada a uma situagao tipica de- terminada no processo de produgao, 6a consciéncia de classe!'. Essa consciéncia nao é, portanto, nem a soma, nem a média do que cada um dos individuos que for- mam a classe pensam, sentem etc. E, no entanto, a agio historicamente decisiva da classe como totalidade é de- terminada, em iiltima andlise, por essa consciéncia e nao pelo pensamento do individuo; essa acéo s6 pode ser conhecida a partir dessa consciéncia. Essa determinagio estabelece, de imediato, a dis- tancia que separa a consciéncia de classe das idéias em- piricas efetivas e daquelas psicologicamente descri veis e explicdveis que os homens fazem de sua situagao na vida. Nao se deve, no entanto, permanecer na sim- ples constatacao dessa distancia, ou mesmo se limitar a fixar, de maneira geral e formal, as conexdes resul- tantes. E preciso, antes, investigar: em primeiro lugar, se nas diferentes classes essa distancia varia conforme suas diversas relagdes com a totalidade econémica e social da qual so membros e em que medida essa diferenciagéo é tao grande para produzir diferencas qualitatioas; em segundo, o que significam na prdtica, para o desenvol- viento da sociedade, essas diferentes relagdes entre totalidade econémica objetiva, consciéncia de classe ad- judicada e pensamentos psicolégicos reais dos homens 11. Infelizmente ¢ impossivel aprofundar nesse contexto as for- ‘mas particulares desses pensamentos no marxismo, como a categoria muito importante do “mascaramento econ6mico”. Menos ainda indicar a relagio do materialismo hist6rico com esforcos similares da ciéncia Durguesa (como os tipos ideais de Max Weber). HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 143 sobre sua situagao de vida e, portanto, qual é a fungao historica pratica da consciéncia de classe. Somente tais constatagdes tornam possivel a utili- zacao met6dica da categoria da possibilidade objetiva. Pois é preciso perguntar-se, antes de tudo, em que me- dida a tolalidade da economia de uma sociedade pode, em quaisquer circunstancias, ser percebida dentro de uma determinada sociedade, a partir de uma determinada posicao no processo de producdo. Pois tanto quanto é preciso superar as limitagdes reais dos individuos na estreiteza e nos preconceitos de sua condigio, tanto me- nos podem ser superados aqueles limites que lhes impoe a estrutura econdmica da sociedade de sua época e sua posicdo nessa sociedade'2. Portanto, do ponto de vista abstrato e formal, a consciéncia de classe é, a0 mesmo tempo, uma inconsciéncia, determinada conforme a clas- se, de sua propria situago econémica, hist6rica e so- cial, Essa situagdo é dada como uma relacéo estratural determinada, como um nexo formal definido, que pare- ce dominar todos os objetos da vida. Conseqiientemente, a “falsidade” e a “ilusao” contidas em tal situacao real néo so arbitrarias, mas, ao contrario, a expresso mental da estrutura econdmica e objetiva. Assim", por exem- plo, “o valor ou o prego da forca de trabalho toma a apa- 12, Ease 6 0 ponto a partir do qual grandes ponsadores ut6picos, ‘como Plato e Thomas More, podem ser compreendidos corretamente ‘em termos histéricos. Cf. também Marx sobre Aristételes, Kapital I, MEW 23, pp. 73-4 13. "Diz mesmo aquilo que nio sabe", comenta Marx a respeito de Franklin, Kapital 1, MEW 23, p. 65. Também em outras passagens: ““Bles ndo sabem, porém o fazem.” Ibid. I, p. 8 etc 4. Leh, Preis und Profit, MEW 16, pp. 134-5. 144 GEORG LUKACS réncia do prego ou do valor do proprio trabalho [...I” e “L.] cria-se a ilusao de que a totalidade seria 0 trabalho pago [...] Inversamente, no escravismo, mesmo a parte do trabalho que é paga aparece como nao o sendo”. Ora, a tarefa de uma anédlise hist6rica muito meticulo- sa é mostrar claramente, mediante a categoria da pos- ibilidade objetiva, em que condic6es se torna possivel desmascarar realmente a ilusio e estabelecer uma co- nexao real com a totalidade. Pois, se a sociedade atual nao pode ser percebida de modo algum na sua totali- dade a partir de uma situacao de classe determinada, se a propria reflexao consciente, levada até o extremo e incidindo sobre os interesses da classe, reflexao essa que se pode atribuir a uma classe, nao disser respeito totalidade da sociedade, entéo essa classe s6 poderé de- sempenhar um papel subordinado e nunca poder in- tervir na marcha da hist6ria como fator de conservacio ou de progresso. Tais classes esto, em geral, predesti- nadas a passividade, a uma oscilacao inconsegiiente entre as classes dominantes e aquelas revolucionarias, e suas explosdes eventuais revestem-se necessariamen- te de um caréter elementar, vazio e sem finalidade e, mesmo em caso de vit6ria acidental, esto condenadas auma derrota final. ‘A vocacao de uma classe para a dominacao signi- fica que é possivel, a partir dos seus interesses eda sua consciéncia de classe, organizar 0 conjunto da socieda- de conforme esses interesses. E a questo que em tilti- ma andlise decide toda a luta a classes é a seguinte: qual classe dispde, no momento determinado, dessa capaci- dade e dessa consciéncia de classe? Isso nao elimina o papel da violéncia na histéria, nem garante uma vité- HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 145 ria automatica aos interesses de classes destinados a prevalecer e que, nesse caso, so portadores dos inte- esses do desenvolvimento social. Pelo contrario, em primeiro lugar, as proprias condicées para que os inte- esses de uma classe possam se afirmar so muito fre- qiientemente criados por intermédio da violéncia mais brutal (por exemplo, a acumulacao primitiva do capi: tal). Em segundo, é justamente nas questdes da violén- Gia, nas situagées em que as classes se enfrentam na luta pela existéncia, que os problemas da consciéncia de clas- se constituem os momentos finalmente decisivos. Quan- do 0 importante marxista hingaro, Erwin Szabé, ar- gumenta contra a concepcao de Engels sobre a grande guerra camponesa, como sendo um movimento essen- cialmente reacionério, e opse a essa concepgao a tese de que a revolta camponesa foi vencida somente pela forca bruta e de que sua derrota nfo estava fundada em sua natureza econémica e social, na consciéncia de classe dos camponeses, ele ignora que a razdo tiltima da su- perioridade dos principes e da fraqueza dos campone- ses, portanto, a possibilidade da violéncia por parte dos principes, deve ser procurada justamente nesses pro- blemas de consciéncia de classe, cujo estudo estratégico mais superficial da guerra dos camponeses pode facil- mente convencer a todos. ‘Mesmo as classes capazes de dominagio, no entan- to, no devem ser colocadas todas no mesmo plano, no que concerne & estrutura interna de sua consciéncia de classe. O que importa aqui 6 saber em que medida elas estéo em condicdes de se conscientizar das agées que devem executar e executam efetivamente para con- quistar e organizar sua posicao dominante. Portanto, 0 146 GEORG LuKAcs que importa é saber até que ponto a classe em questao realiza “conscientemente” ou “inconscientemente” as tarefas que Ihe sao impostas pela historia, e até que ponto essa consciéncia é verdadeira ou falsa. Nao se trata de distingdes puramente académicas. Pois, inde- pendentemente dos problemas da cultura, em que as dissondncias resultantes dessas questdes sio de uma importancia decisiva, o destino de uma classe depende da sua capacidade de esclarecer e resolver, em todas suas decisées praticas, os problemas que lhe impoe a evolugio hist6rica. Vé-se de novo, de maneira inteira- mente clara, que com a consciéncia de classe nao se tra- ta do pensamento de individuos, por mais evoluidos que sejam, muito menos do conhecimento cientifico. Nao ha diivida nos dias de hoje que a economia fun- dada no escravismo devia, por seus préprios limites, causar a ruina da sociedade antiga. Mas também é evi- dente que, na Antiguidade, nem a classe dominante, nem as classes que se rebelavam contra ela, de manei- ra revolucionaria ou reformista, podiam chegar a tal concepcao. Por conseguinte, com o surgimento desses problemas na pratica, o declinio dessa sociedade era inevitavel e sem esperanca de salvacao. Essa situagéo se manifesta com uma evidéncia ainda maior na bur- guesia de hoje, que na origem partiu em luta contra a sociedade absolutista e feudal com 0 conhecimento das interdependéncias econémicas, mas que era absoluta- mente incapaz de concluir sua ciéncia especifica, sua propria ciéncia de classe. Ela também tinha de fracas- sar teoricamente em relacéo a teoria das crises. E, nesse caso, ndo lhe serve de nada que a solucao teérica este- ja cientificamente a sua altura. Porque aceitar, mesmo HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 147 teoricamente, essa solugéo equivaleria a mio mais con- siderar os fendmenos da sociedade do ponto de vista da burguesia. E disso nenhuma classe é capaz, ou melhor, seria preciso que renunciasse voluntariamente & sua dominagio. Portanto, a barreira que faz da consciéncia de classe da burguesia uma “falsa” consciéncia é obje- tiva; é a situagéo da propria classe. E a conseqiiéncia objetiva da estrutura econdmica da sociedade, e nao algo arbi:rario, subjetivo ou psicolégico. Pois a cons- ciéncia de classe da burguesia, embora possa refletir com clareza sobre todos os problemas da organizacao dessa dominacéo, da revolugao capitalista e de sua pene- tracdo no conjunto da producdo, deve necessariamente se obscurecer no momento em que surgem problemas, cuja solugéo remete para além do capitalismo, mesmo no interior da experiéncia da burguesia. Sua descober- ta das “leis naturais” da economia, que representa uma consciéncia clara em comparagéo com a Idade Média feudal ou mesmo com o periodo de transigéo do mer- cantilismo, torna-se de maneira imanente e dialética uma “Iei natural que se baseia na auséncia de conscién- cia daqueles que nela tomam parte”, A partir dos pontos de vista indicados aqui, nao se pode dar uma tipologia hist6rica e sistematica dos possiveis graus de consciéncia de classe. Para tanto, se- ria preciso, em primeiro lugar, estudar exatamente qual momento do processo global da producao refere-se da maneira mais imediata e vital avs inleresses de cada classe; em segundo, em que medida é do interesse de cada classe transcender esse imediatismo, compreender 15, Engels, Umrisse2u einer Kritik der Nationalokonomie, MEW 1, p.518. uo GEORG LUKAcS © momento imediatamente importante como um sim- ples aspecto da totalidade e, assim, superé-lo; e, final- mente, de qual natureza é a totalidade assim alcanca- da e em que medida é a apreensao verdadeira da tota~ lidade real da producao. Pois nao ha diivida de que a qualidade e a estrutura da consciéncia de classe deve variar se, por exemplo, ela permanecer limitada aos in- teresses do consumo separados da producao (lumpem- proletariado romano), ou representar a formacao cate- gorial dos interesses da circulacao (capital mercantil) etc. Embora nao seja nosso objetivo entrar na tipologia sistematica dessas possiveis decisbes, podemos consta- tar, a partir do que ja foi indicado até agora, que os dife- rentes casos de “falsa” consciéncia se distinguem entre si qualitativamente, estruturalmente e de uma maneira que influencia decisivamente o papel social das classes. 2. Como resultado para as épocas pré-capitalistas para 0 comportamento no capitalismo de numerosas camadas sociais, cujas origens econdmicas se encon- tram no pré-capitalismo, consciéncia de classe nao é ca- paz, por sua prdpria natureza, de assumir uma forma plenamente clara nem de influenciar conscientemente ‘os acontecimentos histéricos. Isso ocorre sobretudo porque os interesses de clas- se na sociedade pré-capitalista nunca conseguem se dis- tinguir claramente no que concerne ao aspecto econd- mico. A divisdo da sociedade em castas, em estamentos etc. implica que, na estrutura econdmica objetiva da so- HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 149 ciedade, os elementos econdmicos se unem inextricavel- mente aos elementos politicos, religiosos etc. E somen- te com a hegemonia da burguesia, cuja vitoria signifi- ca a supressio da organizacao em estamentos, que se torna possivel uma ordem social em que a estratificagdo da sociedade tende a pura estratificacao em classes. (O fato de que em mais de um pais vestigios de organiza- So feudal tenham subsistido nao muda em absoluta- mente nada a correo fundamental dessa constatacao.) Essa situacdo de fato tem seu fundamento na dife- renga profunda entre a organizagéo econémica do ca- pitalismo ea das sociedades pré-capitalistas. A diferen- a muito surpreendente que mais nos importa agora € que toda sociedade pré-capitalista forma uma unidade incomparavelmente menos coerente, do ponto de vista econémico, do que a capitalista. Na primeira, a auto- nomia das partes é muito maior, e suas interdependén- cias econémicas so muito mais limitadas e menos de- senvolvidas do que no capitalismo. Quanto mais frgil © papel da circulacéo das mercadorias na vida da so- ciedade como um todo, quanto mais cada uma das par- tes da sociedade vive praticamente em autarquia eco- némica (comunas aldeas) ou ndo desempenha nenhum papel na vida propriamente econdmica da sociedade e no processo de produgio em geral (como era 0 caso de importantes fracdes de cidadaos nas vilas gregas e em Roma), tanto menos a forma unitéria, a coesdo organi- zacional da sociedade e do Estado tém fundamento real na vida real da sociedade. Uma parte da sociedade leva uma existéncia “natural”, praticamente indepen- dente do destino do Estado. “O organismo produtivo simples das coletividades autérquicas, que se reprodu- 150 GEORG LuKAcs zem constantemente sob a mesma forma e, caso sejam acidentalmente destruidas, reconstroem-se no mesmo lugar e com 0 mesmo nome, fornece a chave do misté- rio da imutabilidade das sociedades asiticas, imutabi- lidade que contrasta de maneira surpreendente com a dissolucdo e a renovacao constantes dos Estados asi- ticos e com as incessantes mudangas dinésticas. A es- trutura dos elementos econdmicos fundamentais da so- ciedade nao é atingida pelas tempestades que agitam © céu da politica.’ Outra parte da sociedade leva, por sua vez, um vida econémica inteiramente parasité- ria. O Estado, 0 aparelho do poder politico, nao so para ela, como para as classes dominantes na socieda- de capitalista, um meio de impor, se necessadrio pela violencia, os principios de sua dominac&o econdmica ou proporcionar pela violéncia as condicées de sua dominacao econémica (como é 0 caso da colonizagio moderna); nao s4o, portanto, uma mediagiio da domina- Go econémica da sociedade, mas imediatamente essa prépria dominagio. E néo somente nos casos de simples toubos de terras, escravos etc., mas também nas rela Ges “econémicas” ditas pacificas. Marx expressa-se da seguinte maneira ao falar da renda do trabalho: “Nes- sas condigdes, 0 excedente de trabalho s6 Ihes pode ser subtraido em beneficio de proprietarios nominais de terrenos por uma obrigagio extra-econdmica.” Na Asia, “a renda e 0s impostos sto a mesma coisa, ou melhor, nao existem impostos distintos dessa forma de renda fundidria”. E mesmo a forma assumida pela circula- 16, Kapital, MEW 23, p. 379. 17. Kapital Ii, Il, MEW 25, p. 799 (grifado por mim) HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 151 do de mercadorias nas sociedades pré-capitalistas nao Ihe permite exercer uma influéncia decisiva sobre a es- trutura fundamental da sociedade; ela permanece na superficie, sem poder dominar o proprio processo de produgio, em particular suas relagdes com 0 trabalho. “© comerciante podia comprar todas as mercadorias, com excecio do trabalho como mercadoria. Ele era tole- rado apenas como fornecedor de produtos artesanais”, disse Marx's, Nao obstante, semelhante sociedade também for- ma uma unidade econémica. A questao é saber se essa unidade chega a permitir que cada grupo que compoe a sociedade se relacione com ela como um todo, de tal modo que a consciéncia que Ihe é atribuida possa as- sumir uma forma econémica. Marx" ressalta, por um lado, que a luta de classes dos antigos desenvolvia-se “principalmente sob a forma de uma luta entre credo- res e devedores”. Mas tem plena razo ao acrescentar: “No entanto a forma monetaria — ea relacao do credor com 0 devedor possui a forma de uma relagao mone- taria —reflete apenas 0 antagonismo das condigdes eco- némicas de vida mais profundas.” Esse reflexo pode desvelar-se como simples reflexo para o materialismo hist6rico. Porém, temos de nos perguntar: Por acaso as classes dessa sociedade chegavam a ter a possibilida- de objetiva de se conscientizar do fundamento econé- 18. Kapital 1, MEW 23, p. 380. Isso provavelmente explica o papel politicamente reacionério desempenhado pelo capital comercial em ‘oposigio 20 capital industrial no inicio do capitalismo. Cf. Kapital II, 1, MEW 25, p. 335. 19. Kapital I, MEW 23, pp. 149-50. 152 GEORG LUKACS mico de suas lutas, da problematica econémica da so- ciedade de que eram vitimas? Essas lutas e esses pro- blemas nao deviam necessariamente assumir para elas = de acordo com suas condigdes de vida formas quer naturais ¢ religiosas®, quer politicas e juridicas? A di- visdo da sociedade em estamentos, castas etc. signifi- ca justamente que o estabelecimento tanto conceitual quanto organizacional dessas posigdes “naturais” per- manece economicamente inconsciente, que 0 carter puramente tradicional de seu simples crescimento deve ser imediatamente vertido em moldes juridicos**. Pois, em relagdo ao caréter mais frouxo da coesdo econémi- ca da sociedade, as formas politicas ¢ juridicas, que messe caso constituem as estratificacGes em estamentos, 05 privilégios etc, possuem fungdes totalmente dife- rentes do que no capitalismo, tanto do ponto de vista objetivo quanto do subjetivo. Na sociedade capitalista, essas formas sao simplesmente uma fixacdo de inter- conexées, cujo funcionamento é puramente econdmi- co, de modo que - como Karner jé mostrou de manei- ra pertinente”? — as formas juridicas podem freqiiente- mente levar em consideracao estruturas econémicas 20, Marx e Engels enfatizam repetidas vezes 0 cardter natural des- sas formas sociais. Kapital , MEW 23, pp. 359-60, pp. 371-2 etc. Toda a estrutura da evolugdo na obra Ursprung der Familie, de Engels, baseia-se nesse pensamento, Nao é possivel aprofundar aqui a diversidade de opinides sobre essa questo, que envolve inclusive os marxistas; gosta- ria apenas de enfatizar que também nesse caso considero o ponto de vista de Marx e Engels como historicamente mais correlo do que o dos seus “aperfcicoadores". 21. CE. Kapital I, MEW 23, pp. 359-60. 22. Die soziale Funktion der Rechtsinstitute, Marx-Studien, vol. HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 153 modificadas, sem modificar sua forma ou seu contet- do. Nas sociedades pré-capitalistas, ao contrario, as for- mas juridicas devem necessariamente intervir de ma- neira constitutiva nas conexGes econdmicas. Nao ha aqui categorias puramente econémicas - ¢ as categorias eco- némicas, segundo Marx’, sao “formas de vida, deter- minacées da existéncia” — aparecendo ou sendo verti: das em formas juridicas. As categorias econdmicas juridices so objetiva e substancialmente insepartveis e entrelagadas umas nas outras. (Que se pense nos exemplos dados acima, a renda fundiéria e o imposto, o escravis- mo etc,) Em termos hegelianos, a economia ainda nao atingiu objetivamente o nivel do ser para si. Por isso, no interior de tal sociedade, nao ha posicao possivel que viabilize a compreenséo do fundamento econémico de todas as relagoes sociais. Certamente, isso de modo algum suprime o funda- mento econdmico objetivo de todas as formas da socie- dade. Pelo contrério, a histria das estratificages em estamentos mostra claramente que estas, ap6s terem vertido uma existéncia econdmica “natural” em formas sélidas, decompuseram-se pouco a pouco no curso da evolugio econémica que se desenvolvia subterranea- mente, “inconscientemente”, isto 6, deixaram de cons- tituir uma verdadeira unidade. Seu contetido econd- mico rompeu sua unidade juridica formal. (A andlise feita por Engels das relacdes de classes na época da Re- forma, assim como aquela feita por Cunow das relacdes de classe da Revolucao Francesa, sao prova suficiente desse fato.) No entanto, a despeito dessa rivalidade en- 2B. Zur Kritik der poltschen Okonomie, MEW 13, p. 637. 154 GEORG LuKAcs tre forma juridica e contetido econdmico, a forma juri- dica (criadora de privilégios) conserva uma importan- cia muito grande, freqiientemente decisiva para a cons- ciéncia desses estamentos em via de decomposicao. Pois a forma da divisdo em estamentos dissimula a co nexdo entre a existéncia econémica do estamento —exis- téncia real ainda que “inconsciente” - ¢ a totalidade econémica da sociedade. Ela fixa a consciéncia seja no nivel do puro imediatismo dos seus privilégios (cave leiros da época da Reforma), seja no nivel da particula- ridade — igualmente imediato ~ daquela parte da so- ciedade & qual se referem os privilégios (corporagées). Mesmo quando o estamento ja se encontra completa- mente desagregado economicamente e seus membros pertencem a classes economicamente diferentes, ele preser- va esse elo ideolégico (objetivamente irreal). Pois a re- lagao com o todo, criada pela “consciéncia do proprio status", ndo se dirige a totalidade da unidade econd- mica real e viva, mas a fixagdo passada da sociedade que constituiu em sua época os privilégios dos esta- mentos. A consciéncia do proprio status, como fator historico real, mascara a consciéncia de classe, impede que esta tiltima possa mesmo se manifestar. Um fend- meno semelhante também pode ser observado na so- ciedade capitalista, em todos os grupos “privilegiados”, cuja situacdo de classe nao tem um fundamento econd- mico imediato. A capacidade de adaptagao de tal cama- da a evolucao econémica real cresce com sua capacidade de “capitalizar-se”, de transformar seus “privilégios” em relagdes de dominacao econémicas e capitalistas (por exemplo, os grandes proprietadrios fundiarios). Por conseguinte, a relagio entre a consciéncia de classe e a historia 6 totalmente diferente nas épocas pré- HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 155 capitalistas e na capitalista. Pois, nas primeiras, as clas- ses s6 podiam ser retiradas da realidade hist6rica ime- diatamente dada por intermédio da interpretagdo da hist6- ria operada pelo materialismo histérico, enquanto no capitalismo as classes sao essa realidade imediata e his- torica. Portanto - como Engels aliés ja ressaltou -, nao 6 absolutamente por acaso que esse conhecimento da hist6ria s6 tenha se tornado possivel na época capita- lista. E no somente ~ como pensa Engels ~ devido maior simplicidade dessa estrutura em contraste com as “conexdes complicadas e ocultas” de épocas passa- das, mas antes de tudo porque o interesse econdmico de classe, como motor da histéria, apareceu em toda sua pureza somente no capitalismo. Sendo assim, em periodos pré-capitalistas, o homem nunca conseguiu se conscientizar (nern mesmo por meio de uma conscién- cia adjudicada) das verdadeiras “forcas motrizes que se escondem por trés dos motivos das ages humanas na histéria’. Na verdade, elas permaneceram ocultas como forcas cegas da evolucéo histérica por tras dos motivos. Os fatores ideolégicos nao “recobrem” somen- te os in:eresses econdmicos, nao sao bandeiras e pala- vras de ordem, mas parte integrante e elementos da propria luta real. Certamente, quando o sentido sociolé- ¢gico dessas lutas é procurado por meio do materialismo hist6rico, entdo esses interesses podem, sem nenhuma diivida, ser descobertos como momentos de explicagao fi- nalmente decisivos. Mas a diferenca intransponivel em relaco ao capitalismo é o fato de que, na época capita- lista, os aspectos econdmicos nao estdo mais escondidos “por trés” da consciéncia, mas encontram-se presentes 1na propria consciéncia (embora inconscientes ou recalca- 156 GEORG LUKAcS dos etc.). Com o capitalismo, com o desaparecimento das estruturas estamentais e com a constituicéo de uma sociedade com articulacées puramente econémicas, a cons- ciéncia de classe chegou ao estagio em que péde se tor- nar consciente. Agora a luta social se reflete numa luta ideoldgica pela consciéncia, pelo desvelamento ou dis- simulaggo do carater de classe da sociedade. Mas a pos- sibilidade dessa luta jé anuncia as contradigbes dialéti- cas, a dissolucéo interna da pura sociedade de classes. “Quando a filosofia”, diz Hegel, “se mostra pessimista 6sinal de que uma forma de vida envelheceu e ela nao pode ser rejuvenescida, apenas reconhecida; a coruja de Minerva s6 levanta v6o ao entardecer.” A burguesia e 0 proletariado sdo as tinicas classes puras da sociedade, isto é, sdo as tinicas cuja existéncia ¢ evolugao baseiam-se exclusivamente no desenvolvi- mento do processo moderno de produao. Além disso, somente suas condigdes de existéncia permite imagi- nar um plano para a organizacao de toda a sociedade. O caréter incerto ou estéril da atitude das outras clas- ses (pequena burguesia, campesinato) justifica-se pelo fato de sua existéncia nao ser fundada exclusivamente subre sua situagay 110 processu de produgao capitalis- ta, mas estar indissoluvelmente ligada a vestigios da sociedade dividida em estamentos. Flas nao procuram, portanto, promover a evolucao capitalista ou superar a simesmas, mas, em geral, reverter essa situacdo ou, pelo menos, impedi-la de chegar ao seu pleno florescimento. HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 157 Seu interesse de classe orienta-se somente em fungao de sintomas da evolugio, e néo da prépria evolucao, somen- teem fungdo de manifestagdes parciais da sociedade, nao da construgdo da sociedade como um todo. Essa questao da consciéncia pode aparecer enquan- toacées ou determinacao de objetivos, como no caso da pequera burguesia, que vive pelo menos parcialmente na grande cidade capitalista e tem todos os aspectos da sua existéncia diretamente submetidos as influéncias do capitalismo. Sendo assim, ndo pode ficar inteiramente indiferente ao fato da luta de classes entre burguesia ¢ proletariado. Mas a pequena burguesia, como “classe de transicdo em que os interesses das duas outras clas- ses se enfraquecem simultaneamente”, se sentir “aci- ma da oposigio das classes em geral”*, Como conse- qiiéncia, ela buscar “nao os meios de suprimir os dois extremos, capital e salério, mas de atenuar sua oposi- 40 e transformé-la em harmonia”®5. Em sua aco, pas- saré, portanto, ao largo de todas as decisées cruciais da sociedade e deverd lutar alternativamente, e sempre de modo inconsciente, por uma ou outra das direcdes das lutas de classes. Seus proprios fins, que existem ex- clusivamente em sua consciéncia, assumem formas ca- da vez mais enfraquecidas e destacadas da agio social, puramente “ideoldgicas”. A pequena burguesia 86 po- de desempenhar um papel ativo na histéria enquanto esses objetivos almejados coincidirem com os interes- ses econdmicos das classes reais do capitalismo, como ‘no momento de abolicao dos estamentos durante a Re- 24, Brumaire, MEW 8, p. 144. 25. Ibid, p. 141. 158 GEORG LUKACS volugéo Francesa. Uma vez cumprida essa missdo, suas manifestagées — que permanecem na maior parte as mesmas — tornam-se cada vez mais distantes da evolu- so real, cada vez mais caricaturais (0 jacobinismo da Montanha em 1848-51). Mas essa auséncia de lacos com a sociedade como totalidade também pode repercutir na estrutura interna e na capacidade de organizacao da classe. E na evolugao dos camponeses que isso se ma- nifesta de maneira mais clara. “Os pequenos proprie- tarios camponeses”, diz Marx**, “formam uma massa enorme, cujos membros vive numa mesma situacao, mas sem entrar em contato miiltiplo reciprocamente. Seu modo de producdo os isola uns dos outros em vez de colocé-los em contato [...] Cada familia de campone- ses [.. tira assim seus meios de vida mais da troca com anatureza do que do comércio com a sociedade [...] Na medida em que milhdes de familias vivem em condi- Bes econdmicas de existéncia que separam seu mo- do de vida, seus interesses e sua cultura dos de outras classes e os opdem como inimigos a elas, tais familias formam uma classe. Na medida em que existe entre os pequenos proprietarios camponeses um elo apenas lo- cal, em que a identidade dos seus interesses nao engen- dra uma comunidade, nem uma ligacdo no plano na- cional ou uma organizacao politica, eles nado formam uma classe”. Por isso, abalos externos, como guerras, re- volugées na cidade etc., sao necessdrios para que 0 mo- vimento dessas massas possa se unificar, e mesmo as- sim no estarao em condig6es de organizar esse movi- mento com palavras de ordem préprias e lhe dar uma 26. Ibid, p. 198, HISTORIA £ CONSCIENCIA DE CLASSE 159 direcao positiva conforme seus proprios interesses. De- pendera da situacao das outras classes em luta, do ni- vel de consciéncia dos partidos que os dirigem para que esses movimentos tomem um sentido progressista (Revolugao Francesa de 1789, Revolucao Russa de 1917) ou reacionério (império napoleénico). Por isso também a “consciéncia de classe” dos camponeses reveste uma forma ideolégica mais mutante no contetido do que a de outras classes; com efeito, é sempre uma forma empres- tada. Sendo assim, os partidos que se fundam parcial ou inteiramente sobre essa “consciéncia de classe” nunca podem receber um apoio firme e seguro (os socialistas revolucionarios russos em 1917-18). Por isso, é possi- vel queas lutas camponesas sejam conduzidas sob ban- deiras ideolégicas opostas. E muito caracteristico, por exemplo, tanto para o anarquismo como teoria quanto para a “consciéncia de classe” dos camponeses, que al- guns dos levantes contra-revolucionérios dos ricos e médios camponeses na Rtissia tenham encontrado 0 elo ideolégico com essa concepsao da sociedade que eles tém como fim. Desse modo, nao se pode falar propria- mente de consciéncia de classe em relacdo a estas classes (e é que se pode chamé-las de classe no sentido mar- xista rigoroso): uma plena consciéncia de sua situacao Ihes revelaria a auséncia de perspectivas de suas tenta- tivas perticularistas diante da necessidade da evolugio. Consciéncia e interesse se encontram, portanto, numa relagao reciproca de oposicao contraditoria. E uma vez que a consciéncia de classe foi definida como um pro- blema de imputabilidade que se refere aos interesses, de classe, isso também torna filosoficamente compreen- sivel a impossibilidade de sua evolucao na realidade hist6rica imediatamente dada. 160 (GEORG LuKAcs Consciéncia de classe e interesse de classe encon- tram-se, também na burguesia, numa relagao de opo- icdo, de objecdo. Esse antagonismo nao é contradité- rio, mas dialético. A diferenga entre essas duas oposigées pode ser expressa da seguinte maneira: enquanto para as outras, classes sua situagao no proceso de producio e os inte- resses dele decorrentes impedem o nascimento de qual- quer consciéncia de classe, para a burguesia, esses fa- tores estimulam o desenvolvimento da consciéncia de classe, porém esta vé pesar sobre si - desde o inicio e por sua esséncia ~ a maldigao tragica que a condena a entrar em contradicao insohivel consigo mesma e, portanto, a suprimir a si mesma no auge do seu desenvolvimento. Essa situagao tragica da burguesia se reflete histo- ricamente no fato de ela ainda nao ter vencido seu pre- decessor, 0 feudalismo, quando o novo inimigo jé ha- via aparecido, 0 proletariado. Politicamente, isso ficou evidente quando se deu inicio ao combate contra a or- ganizacao estamental da sociedade em nome de uma “liberdade” que, no momento da vitéria, teve de con- verter-se numa nova opressAo. Sociologicamente, é uma contradigao a burguesia se ver obrigada a acionar todos ‘0s meios, tebricos e praticos, para fazer desaparecer da consciéncia social o fato da luta de classes, embora sua forma social tenha feito aparecer pela primeira vez a luta de classes de maneira pura e embora ela tenha pela primeira vez estabelecido historicamente essa luta como um fato; ideologicamente, vemos a mesma cisio quando o desenvolvimento da burguesia confere, por um lado, uma importancia inteiramente nova a indivi- dualidade e, por outro, suprime toda individualidade HISTORIAE CONSCIENCIA DE CLASSE 161 por meio das condicées econdmicas desse individua- lismo, da reificacao criada pela produgao de mercado- rias, Todas essas coniradiqes, cuja série ndo se esgota com esses exemplos, ao contrério, poderia ser persegui- da ao infinito, sao apenas um reflexo das contradioes mais profundas do proprio capitalismo tal como se re- fletem na consciéncia da classe burguesa, conforme sua situacao no processo da produgao como um todo. Por isso, essas contradicdes surgem na consciéncia de classe da burguesia como contradicdes dialéticas, e nao sim- plesmente como mera incapacidade de compreender as contradig6es de sua propria ordem social. Pois, por um lado, 0 capitalismo é a primeira organizagéo produ- tiva que, conforme a tendéncia, impde-se economica- mente em toda a sociedade”, de modo que, por conse- guinte, a burguesia deveria estar capacitada a possuir, a partir desse ponto central, uma consciéncia (adjudica- da) da totalidade do processo de producio. Por outro ado, no entanto, a posicao que a classe dos capitalistas ocupa na produgao e os interesses que determinam sua aco fazem com que lhe seja impossivel dominar, mes- ‘mo teoricamente, sua propria organizaco produtiva. Os motivos para isso s4o muito diversos. Em primeiro lugar, quanto ao capitalismo, a produgao é apenas apa- rentemente o ponto central da consciéncia de classe e, 27. Mas apenas segundo sua tendéncia, O grande mérito de Rosa Luxemburgo foi ter demonstrado que nisso no esté presente um fato ‘eventualmente passageiro, mas que, do ponto de vista econdmico, ocapi- talismo sé pode subsistir enquanto penetrar na sociedade exclusivamen- teno sentdo do capitalismo, embora ainda no o tena feito. Essa auto- contradigio econémica da sociedade puramente capitalista 6, por certo, uma das 1az5es das contradigbes na consciéncia de classe da burguesia. 162 GEORG LuKAcs por isso, apenas aparentemente o ponto de vista te6ri- co da compreensao. Com referéncia a Ricardo, “que é censurado por ter em vista apenas a producao”, Marx’ ressalta que ele “define exclusivamente a distribuicao como objeto da economia”. E a andlise detalhada do proceso concreto de realizacéo do capital mostra, em cada questo isolada, que o interesse do capitalista, pro- dutor de mercadorias e nao de bens, deve se prender necessariamente a questdes secundérias (do ponto de vista da producao); que, envolvido no processo da uti- lizagdo, decisivo para ele, deve ter uma perspectiva para a consideragao dos fenémenos econémicos a par- tir da qual os fendmenos mais importantes tornam-se imperceptiveis®. Essa inadequacao intensifica-se ainda mais com 0 conflito dialético insohivel entre o princf- pio individual e o principio social, ou seja, entre a fungao do capital como propriedade privada e sua fungao eco- n6mica objetiva dentro da estrutura interna do capitalis- mo. “O capital”, diz. o Manifesto comunista, “néo é um po- der pessoal, é um poder social.” Mas um poder social, cujos movimentos sao dirigidos pelos interesses indivi- duais dos proprietérios de capital, que nao visualizam a fungao social da sua atividade e nao se preocupam com ela, de modo que o principio e a funcao social do capi- tal sé podem ser realizados de maneira inconsciente, sem a sua decisio ¢ contra a sua vontade. Por causa 28, Zur Kritk der politschen Okonomie, MEW 13, p. 267, 29. Kapital I 1, MEW 25, pp. 147, 324, 335 ete. F evidente que os diversos grupos de capitalistas, como 0 capital industrial, comercial ete, esteiam colocados aqui de maneira diferente; as diferengas, porém, nao tém importdncia decisiva para 0 nosso problema, HISTORIA £ CONSCIENCIA DE CLASSE 163 desse conflito entre principio social e principio indivi- dual, Marx® ja chamava, com razao, as sociedades ané- nimas de uma “negacao do modo capitalista de produ- ao dentro do proprio modo capitalista de produgio”. Do ponto de vista puramente econdmico, a sociedade andnima distingue-se apenas de modo secundério dos capitalistas individuais, e mesmo a chamada abolicao da anarquia de produgio por cartéis, trustes etc. apenas afasta essa contradicao, sem, contudo, elimind-la. Essa situacéo é um dos fatores de determinacao mais deci- sivos para a consciéncia de classe da burguesia: esta age como classe no desenvolvimento econémico obje- tivo da sociedade, mas s6 pode tornar-se consciente do desenvolvimento desse processo que ela mesma efetua como um processo que Ihe € exterior, submetido a leis € que cla s6 pode experimentar de modo passivo. O pensamento burgués considera sempre e necessaria- mente a vida econ6mica do ponto de vista do capitalis- {a individual, e isso acaba provocando um confronto agudo entre 0 individuo ea “lei da natureza”, poderosa, impessoal, que move todo o social*!. Como conseqiién- cia, ocorre nao apenas o embate entre o interesse indi- vidual e o interesse de classe em caso de conflito (que, contudo, raramente se agrava nas classes dominantes como na burguesia), mas também a impossibilidade 16- gica dedominar na teoria e na pratica os problemas que necesszriamente surgem a partir do desenvolvimento da producao capitalista. “Essa transformacdo repenti- na do sistema de crédito em sistema monetério faz do 30. bid, I, p. 454, 31. Cf. aesse respeito 0 ensaio “Rosa Luxemburgo como marxista”. 164 GEORG LUKACS pavor te6rico um panico pratico, e os agentes da cir- culagao estremecem diante do mistério impenetravel de suas proprias relagées”, diz Marx®. F esse pavor nao é infundado, ou seja, é bem mais do que a mera per- plexidade do capitalista individual diante de seu des- tino pessoal. E que os fatos e situagdes que provocam esse pavor impdem A consciéncia da burguesia algo que ela mesma nao esté em condigao de tornar cons- ciente, muito embora nao possa negé-lo totalmente nem repeli-lo como fato bruto. Pois, por tras de tais acontecimentos e situagées, deixa-se reconhecer como fundamento 0 fato de que “o verdadeiro limite da pro- dugao capitalista é 0 préprio capital”’8, Um conhecimen- to, contudo, que significaria a autonegagao da classe capitalista, caso se tornasse consciente. Assim, 0s limites objetivos da produgdo capitalis- ta tornam-se os limites da consciéncia de classe da bur- guesia, Ao contrério das antigas formas “naturais e con- servadoras” de dominacao, que deixaram intocadas™ as formas de produgio de largas camadas dos domi- nados e por isso atuaram de maneira predominante- mente tradicional e ndo revolucionéria, o capitalismo 6 uma forma de produgio revolucionéria por excelén- cia. Sendo assim, essa necessidade de os limites econémticos abjetivos do sistema permanecerem inconscientes manifes- 32. ur Krk er poitischen Okonomie, MEW 13, p. 123, 33, Kapital I, 1, MEW 25, p. 260, também ibid, pp. 268-9, 34 Isso sereere, por exemplo, a formas primitivas de entesoura- mento (ef. Kapital, MEW 23, p. Lt) e mesmo a certs formas de mani- festagéo do capital comercial (relativamente) “pré-capitalsta’. CE. a respeito Kapital, 1, MEW 25, p. 335 HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 165 ta-se como uma contradigio interna e dialética na consciéncia de classe, Dito de outra forma, a consciéncia de classe da burguesia esta formalmente preparada para uma cons- ciéncia econémica. Com efeito, o grau mais elevado de inconsciéncia, a forma mais crassa da “falsa conscién- cia” manifesta-se sempre na ilusao exacerbada de do- minar conscientemente os fendmenos econdmicos. Do ponto de vista da relacdo da consciéncia com o conjunto dos fendmenos sociais, essa contradicéo se exprime na oposigac insupervel entre ideologia e fundamento econdmi- co. A dialética dessa consciéncia de classe baseia-se na oposicao insuperavel entre o individuo (capitalista), 0 individuo segundo o esquema do capitalista individual eo processo “natural” e inevitavel de desenvolvimento, isto , néo passivel por principio de ser dominado pela consciéncia; essa dialética leva, assim, teoria e praxis a uma oposico intransponivel. De uma maneira, contu- do, que néo admite dualidade pacifica, mas tende cons- tantemente a unificagio de princfpios divergentes, pro- vocando sem cessar uma oscilagio entre a “falsa” uniao € 0 dilaceramento catastréfico. Essa autocontradicao dialética interna a conscién- cia de dasse da burguesia intensifica-se ainda mais, vis- to que o limite objetivo da organizacio capitalista da producéo nao permanece no estado de simples negati- vidade. Ele ndo somente faz nascer, segundo “leis na- turais”, as crises inapreensfveis pela consciéncia, mas também adquire uma forma histérica propria, cons- ciente e ativa: o proletariado. J4 a maioria dos desloca- mentos “normais” de perspectiva na visdo da estrutura econdmica da sociedade, que resultam do ponto de vis- ta dos capitalistas, tendia a “obscurecer e mistificar a 166 (GEORG LuKACS verdadeira origem da mais-valia’8’. Mas, enquanto no comportamento “normal”, simplesmente teérico, e obscurecimento concerne apenas 4 composigio organi- ca do capital, A posicao do empresario no proceso de producdo, fungéo econémica do juro etc., ou seja, mostra simplesmente a incapacidade de enxergar por tras da superficie dos fendmenos as verdadeiras forcas motrizes, ao passar para a pratica, refere-se ao fato cen- tral da sociedade capitalista: a luta de classes. Nela, po- rém, todas essas forcas normalmente ocultas por tras da superficie da vida econdmica, as quais se prendem fascinados os olhares dos capitalistas e dos seus porta- vozes tedricos, apresentam-se de tal modo que nao po- dem ser ignoradas. Tanto mais que ainda na fase ascen- dente do capitalismo, quando a luta de classe do pro- letariado se exprimia apenas sob a forma de intensas explosdes espontaneas, 0 fato da luta de classes foi re- conhecido mesmo pelos representantes ideoldgicos da classe ascendente como acontecimento fundamental da vida histérica (Marat e também historiadores posterio- res como Mignet etc.). Mas, quando esse principio in- conscientemente revoluciondrio do desenvolvimento capitalista € elevado pela teoria e pela praxis do pro- letariado a consciéncia social, a burguesia é impelida ideologicamente para uma posicao defensiva conscien- te. A contradigao dialética na “falsa” consciéncia da burguesia intensifica-se: a “falsa” consciéncia torna-se uma falsidade da consciéncia. A contradigio, presente de inicio apenas objetivamente, torna-se também sub- jetiva: o problema teérico transforma-se em comporta- 35. Kapital I, 1, MEW 25, p. 177, e ibd, pp. 162, 398-6, 403 HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 167 mento moral que influencia decisivamente todas as de- cisdes praticas da classe em todas as situagdes e ques- tdes da vida. Essa situagdo da burguesia determina a fungéo da consciéncia de classe em sua luta pela dominagio da sociedade. Como a dominacao da burguesia esten- de-se efetivamente para toda a sociedade, como ela as- pira realmente a organizar toda a sociedade de acordo com seus interesses, e em parte o realizou, era necess4- rio tanto criar uma doutrina fechada da economia, do Estado, da sociedade etc. (o que ja pressupée e signifi- ca, em sie por si, uma “visio do mundo”), como am- pliar e tornar consciente em si a crenga em sua propria vocago para essa dominacao e organizacio. O tragico 0 dialético da situacao de classe da burguesia revela- se no fato de que nado somente é do seu interesse, mas 6 até mesmo uma necessidade imprescindivel para ela adquiris, sobre cada questdo particular, uma consciéncia tao clara quanto possivel dos seus interesses de classe, mas que se torna fatal para ela, se essa mesma cons- ciéncia se estender a questdo da totalidade. A razao disso 6 sobretudo o fato de que a dominacao da burguesia s6 pode ser a dominacao de uma minoria. Como sua do- minagio nao é exercida apenas por, mas também ro in- teresse de uma minoria, resta a ilusao das outras classes, sua permanéncia numa consciéncia de classe confusa como pressuposto indispensével para a manutengio do regime burgués. (Basta pensar na doutrina do Estado que paira “acima” das oposigdes de classes, na justica “imparcial” etc.) Mas, para a propria burguesia, a dissi- mulacio da esséncia da sociedade burguesa também é uma necessidade vital. Pois as contradigées internas in- 168 GEORG LUKACS soltiveis dessa organizacao social desvelam-se com cla- reza cada vez maior e colocam seus partidarios diante da seguinte escolha: fechar-se conscientemente a uma compreensao crescente ou reprimir em si todos os ins- tintos morais para poder aprovar inclusive moralmente a ordem social afirmada em vista dos seus interesses. Sem querer subestimar a eficdcia de tais fatores ideolégicos, é preciso constatar, no entanto, que a com- batividade de uma classe € tanto maior quanto melhor for a consciéncia que ela puder ter na crenca de sua pré- pria vocag4o, quanto mais indomado for o instinto com que é capaz de penetrar todos fendmenos conforme seu interesse, Ora, a historia ideolégica da burguesia desde as primeiras etapas do seu desenvolvimento, quando se pode pensar, por exemplo, na critica da eco- nomia classica feita por Sismondi, na critica alema do direito natural, no jovem Carlyle etc. - 6 apenas a luta desesperada contra o discernimento na verdadeira esséncia da sociedade criada por ela, contra a consciéncia real da sua situagio de classe. Quando o Manifesto comunista salien- ta que a burguesia produz seus proprios coveiros, isso & correto nao apenas no plano econdmico, mas também no plano ideolégico. Toda a ciéncia burguesa do século XIX fez. 05 maiores esforcos para dissimular os funda- mentos da sociedade burguesa; desde as maiores fal ficagdes dos fatos até teorias “sublimes” sobre a “essén- cia’” da hist6ria, do Estado etc. Tentou-se de tudo nes- se sentido. Em vao. O fim do século ja formulou o seu juizo na ciéncia mais avangada (e, conseqiientemente, na consciéncia das camadas dirigentes do capitalismo). Isso se mostra claramente na aceitacao crescente pela consciéncia burguesa da idéia de organizacao cons- HISTORIA CONSCIENCIA DE CLASSE 169 ciente. Inicialmente, realizou-se uma concentracéo cada vez maior nas sociedades anénimas, nos cartéis, nos trustes etc. Essa concentracéo demonstrou cada vez mais claramente no plano organizacional o caréter so- cial do capital, sem, contudo, abalar a realidade da anar- quia na producao. Seu tnico intuito era dar aos capita- listas individuais, que se tornaram gigantescos, posigoes de monopélio relativo. Objetivamente, portanto, foi bas- tante enérgica ao fazer valer o caréter social do capital, mas manteve-o, completamente inconsciente para a clas- se dos capitalistas; com essa aparéncia de superacao da anarquia na producdo, chegou mesmo a desviar ainda mais a sua consciéncia da verdadeira capacidade de co- nhecer a situacao. Mas as crises da guerra e do pés-guer- ra impeliram esse desenvolvimento para mais adian- te: a “economia planificada” penetrou na consciéncia da burguesia ou, pelo menos, dos seus elementos mais avancados. No inicio, obviamente, em camadas muito restritas e mesmo nestas mais como experiéncia terica do que como via pratica para sair do impasse da crise. Contudo, se compararmos esse nivel de consciéncia, em queé buscado um equilibrio entre a “economia pla- nificada” e os interesses de classe da burguesia, com aquele do capitalismo ascendente, que considerava to- do tipo de organizacao social “como um atentado aos direitos imprescritiveis da propriedade, a liberdade, a ‘genialidade’ autodeterminante do capitalista indivi- dual”, entio a capitulagao da consciéncia de classe da bur- ‘guesia diante da consciéncia do proletariado salta aos olhos. Eviden:emente, mesmo a parte da burguesia que acei 36, Kapital I, MEW 23, p. 371. 170 GEORG LUKACS ta a economia planificada nao a concebe da mesma for- ma que o proletariado: compreende-a como a tiltima tentativa de salvar o capitalismo através do acirramento extremo de sua contradicéo interna. No entanto, mes- ‘mo assim abandona sua tiltima posigao tedrica, (E é uma estranha reacdo que certas fracdes do proletariado capitu- lem, por sua vez, diante da burguesia justamente nesse instan- fe, apropriando-se dessa forma problematica de organi- zacao.) Assim, toda a existéncia da classe burguesa ea cultura burguesa como sua expresso entram numa cri- se muito grave. De um lado, a esterilidade sem fim de uma ideologia apartada da vida, de uma tentativa mais ou menos consciente de falsificacao; de outro, o ermo igualmente assustador de um cinismo que jé esta his- toricamente convencido do nada interior de sua pré- pria existéncia e defende apenas sua existéncia bruta, seu puro interesse egofsta. Essa crise ideol6gica é um si- nal inequivoco da decadéncia. A classe jé esté acuada numa posicao defensiva, uta apenas por sua subsis- téncia (por mais agressivos que possam ser seus meios de luta); perdeu irremediavelmente a forca de condugiio. 4, Nesse combate pela consciéncia, cabe ao materia lismo histérico um papel decisivo. Tanto no plano ideo- l6gico quanto no econémico, proletariado e burguesia sdo classes necessariamente correlatas. O mesmo pro- cesso que, do ponto de vista da burguesia, aparece como um processo de dissolucao, como uma crise permanen- te, para o proletariado significa uma acumulacdo de HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 17 forcas, 0 trampolim para a vit6ria, embora também as- suma, sem duvida, a forma de uma crise. Ideologica- mente, isso significa que a mesma compreensao cres- cente da esséncia da sociedade, em que se reflete a lenta agonia da burguesia, tem para o proletariado o sentido de um crescimento continuo de poder. Para o proleti riado, a verdade é uma arma portadora da vitéria eo € tanto mais quanto mais audaciosa for. A raiva deses- perada com que a ciéncia burguesa combate o materia- lismo histérico ¢ compreensivel: tao logo se vé obrigada a colocar-se ideologicamente nesse terreno, esté perdi- da. Isso também permite compreender por que, para 0 proletariado, e somente para o proletariado, uma nocaéo correta da esséncia da sociedade 6 um fator de poder de primeirissima ordem, talvez até a arma decisiva. Os marxistas vulgares sempre ignoraram essa fun- cdo tinica da consciéncia na luta de classe do proleta- riado e, em vez da grande luta pelos princpios que re- metem as questées iltimas do processo econémico ob- jetivo, colocaram um “realismo politico” mesquinho, Certamente, o proletariado deve partir dos dados da situagéo momentanea. Mas ele se distingue das outras classes por nao se ater as particularidades dos aconte- cimentes histéricos, por nao ser simplesmente movido por eles, mas por constituir ele préprio a esséncia das forcas motrizes e, agindo de maneira centralizada, por influenciar o centro do processo social de desenvolvi mento, Na medida em que se afastam desse ponto de vista central, do que é metodologicamente a origem da consciéncia de classe proletaria, os marxistas vulgares colocam-se no nivel da consciéncia da burguesia. E somente a um marxista vulgar pode surpreender 0 fato de que, 172 GEORG LUKACS nesse nivel, em seu proprio terreno de combate, a bur- guesia seja necessariamente superior ao proletariado, tanto econdmica como ideologicamente. Além disso, so- mente ele pode concluir desse fato, que deriva exclu: vamente da sua atitude, que a burguesia em geral ocupa uma posiao de superioridade. Pois é evidente que, nes- se terreno, a burguesia — excetuando-se aqui todos os seus meios reais de poder ~ tem mais conhecimento e expe- riéncia a sua disposigéo; ndo hé nada de surpreendente também no fato de encontrar-se numa posicao de su- perioridade sem nenhum mérito préprio, se sua con- cepcio fundamental é aceita pelo seu adversario. A su- perioridade do proletariado em relacio a burguesia, que, alids, 6 superior ao primeiro sob todos os pontos de vis- ta (intelectual, organizacional etc.), reside exclusiva- mente no fato de ser capaz de considerar a sociedade a partir do seu centro, como um todo coerente e, por isso, agir de maneira centralizada, modificando a realida- de; no fato de, para sua consciéncia de classe, teoria e praxis coincidirem e também, por conseguinte, de po- der lancar conscientemente sua propria agao na balanca do desenvolvimento social como fator decisive. Quan- do os marxistas vulgares rompem essa unidade, cortam © nervo que liga a teoria proletdria 4 ago proletéria numa unidade. Reduzem a teoria ao tratamento “cien- tifico” dos sintomas do desenvolvimento social e fa- zem da préxis uma engrenagem fixa e sem objetivo dos acontecimentos de um processo que renunciam domi- nar metodicamente pelo pensamento. Acconsciéncia de classe que nasce dessa posicao de- ve demonstrar a mesma estrutura interna que a da bur- guesia. Mas quando, por fora do desenvolvimento, as, HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 173 mesmas contradicées dialéticas sio levadas a superfi- cie da consciéncia, sua conseqiténcia para o proletaria- do 6 ainda mais fatal do que para a burguesia. Pois a auto-ilusio da “falsa consciéncia” que nasce na burgue- sia pelo menos esta de acordo com sua situacao de clas- se, apesar de todas as contradi¢des dialéticas e toda fal- sidade objetiva. Embora a falsa consciéncia néo possa salvé-la do declinio e da intensificagao continua des- sas contradic&es, pode lhe dar possibilidades internas de continuar a luta, condigdes internas para 0 éxito, mesmo cue passageiro. No proletariado, porém, seme- Thante consciéncia ndo somente esté maculada por es- sas contradigées internas (burguesas), como também contradiz. as necessidades daquela aco para a qual impele sua situacao econdmica, independentemente do que seja capaz de pensar a esse respeito. O proletario deve agir de maneira proletéria, mas sua prépria teoria marxista vulgar Ihe obstrui a visdo do caminho corre- to. E essa contradigao dialética entre a acao objetiva e economicamente necessaria do proletariado e a teo- ria marxista vulgar (burguesa) est4 em constante cres- cimento. Isto é, 0 papel de estimulador ou inibidor da teoria correta ou incorreta cresce com a aproximacao das lutas decisivas na guerra de classes. O “reino da | berdade”, o fim da “pré-historia da humanidade” sig- nifica precisamente que as relacdes objetificadas entre us homens, que as reificagdes comegam a restituir seu poder ao homem. Quanto mais esse processo se aproxi- ma do seu fim, tanto maior é a importancia da cons- ciéncia do proletariado sobre sua misao hist6rica, isto 6, da sua consciéncia de classe; tanto mais forte e mais diretamente essa consciéncia de classe tem de determi- 174 GEORG LUKAcS nar cada uma de suas aces. Pois o poder cego das for- as motrizes s6 conduz “automaticamente” ao seu fim, em direcao ao auto-aniquilamento, enquanto esse pon- to estiver ao seu alcance. Quando o instante da passa- gem ao “reino da liberdade” é dado de modo objetivo, isso se manifesta com mais precisdo no fato de as for- cas cegas impelirem para o abismo de uma forma real- mente cega, com uma violéncia cada vez maior e apa- rentemente irresistivel, e apenas a vontade consciente do proletariado pode proteger a humanidade de uma catastrofe. Em outros termos, desde que a crise econé- mica final do capitalismo entrou em cena, 0 destino da revolugao (e com ela o da humanidade) depende da maturi- dade ideolégica do proletariado, da sua consciéncia de classe. Assim é definida a funcao tinica da consciéncia de classe para o proletariado, em oposigéo & sua fungéo para outras classes. Justamente porque é impossivel pa- rao proletariado libertar-se como classe sem suprimir a sociedade de classes em geral, sua consciéncia, que é a tiltima consciéncia de classe na hist6ria da humanida- de, deve coincidir, de um lado, com o desvendamento da esséncia da sociedade e, de outro, tornar-se uma uni- dade cada vez mais intima da teoria e da praxis. Para 0 proletariado, sua ideologia nao é uma “bandeira” de luta, nem um pretexto para as proprias finalidades, mas é a finalidade e a arma por exceléncia. Toda tatica proletéria sem princfpios rebaixa o materialisino hist6- rico a mera “ideologia’, impée ao proletariado um mé- todo de luta burgués (ou pequeno-burgués); despoja-o de suas melhores forcas ao atribuir & sua consciéncia de classe o papel de uma consciéncia burguesa, papel de simples acompanhamento ou de inibicdo (isto 6, de ini- HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 175 bicdo apenas para o proletariado), em vez da funcao motriz determinada a consciéncia proletaria. No entanto, pela propria esséncia das coisas, para © proletariado a relagdo entre a consciéncia de classe e a situacdo de classe é tanto mais simples quanto maio- res forem os obstculos que se opdem a realizacao des- sa consciéncia na realidade. Quanto a esse aspecto, in- teressa primeiramente a falta de unidade na propria consciéncia. Embora a sociedade represente em si uma unidade rigorosa e seu processo de desenvolvimento seja homogéneo, ambos ndo so dados consciéncia do homem como unidade, especialmente ao homem nasci- do em meio a reificagao capitalista das relagdes enquan- to um meio natural, mas Ihe sio dados como multiplici dade de coisas e forcas independentes umas das outras. A ciséo mais impressionante e repleta de conse- qiiéncias na consciéncia de classe do proletariado se revela na separagao entre a luta econémica e a luta po- litica. Mar? apontou repetidas vezes para 0 carater inadmissivel dessa separacéo e mostrou que é natural a toda luta econdmica converter-se em luta politica (e vice-versa); nao obstante, foi impossivel eliminar essa concepcio da teoria do proletariado. Esse desvio da consciéncia de classe tem seu fundamento na diviséo 37, Elond der Philosophie, MEW 4, p. 182. “Cartas e excertos de car- tas de Joh. Phil. Becker, Jos. Dietzgen, Friedrich Engels, Karl Marx e ou- tros.a F. A.Sorge e outros”, Stuttgart, 1906. 176 GEORG LUKACS dialética entre 0 objetivo individual e aquele final, em tiltima andlise, portanto, na divisio dialética da revolu- Ao proletéria. Pois as classes que eram chamadas a dominar nas sociedades anteriores e que, por isso, eram capazes de realizar revolugoes vitoriosas encontravam-se subjeti- vamente diante de uma tarefa mais fécil, justamente em virtude da inadequagao de sua consciéncia de clas- se a estrutura econdmica objetiva, em virtude, portan- to, da inconsciéncia de sua propria fungéo no processo de desenvolvimento social. Tinham apenas de impor seus interesses imediatos com a violencia de que dispu- nham; 0 sentido social de suas agdes permanecia-Ihes oculto e confiado a “astvicia da razio” do processo de desenvolvimento. No entanto, como o proletariado é colocado pela historia diante da tarefa de uma transfor- ‘magio consciente da sociedade, surge necessariamente em sua consciéncia de classe a contradigao dialética entre o interesse imediato eo fim tiltimo, entre o fator indivi- dual ea totalidade. Pois 0 fator individual do proceso, a situacdo concreta com suas exigéncias concretas sao, por sua propria esséncia, imanentes a sociedade capi- talista presente, encontram-se sob suas leis, estdo sub- metidos a sua estrutura econémica. Somente quando inseridos na visio geral do processo e relacionados 4 meta final, esses fatores apontam de maneira concreta e consciente para além da sociedade capitalista e se lor- nam revolucionérios. Para a consciéncia de classe do proletariado, porém, subjetivamente isso significa que a relagio dialética entre o interesse imediato ea influén- cia objetiva sobre a totalidade da sociedade é transferi- da para a prépria consciéncia do proletariado, em vez de HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 17 desenrolar-se - como para todas as classes anteriores — como um processo puramente objetivo para além da consciéncia (adjudicada). A vit6ria revolucionéria do proletariado nao é, portanto, como para as classes ante- iores, a realizagao imediata do ser socialmente dado da clas- se, mas, como ja reconhecera e enfatizara vivamente 0 jovem Marx, € seu auto-aniquilamento. O Manifesto comu- nista formula essa diferenca da seguinte maneira: “To- das as classes anteriores que tomaram o poder busca~ vam assegurar sua posigto jd conquistada, submetendo toda a sociedade as condigdes de sua conquista. Os pro- letérios s6 podem tomar para si as forgas produtivas da sociedade abolindo o modo de apropriagao que utiliza- ‘vam até entio e, assim, todo o antigo modo de apropria- go” (grifo meu). Por um lado, essa dialética intema da situagao de classe dificulta o desenvolvimento da cons- ciéncia de classe proletaria em oposigéo a da burguesia, que podia prender-se a superficie dos fenémenos, deter- se no nivel do empirismo mais grosseiro e mais abstra- to ao desenvolver sua consciéncia de classe, ao passo que, para o proletariado, j4 nas etapas muito primitivas de seu desenvolvimento, ir além do dado imediato era um imperativo elementar da sua luta de classe. (E 0 que Marx** jé enfatiza em suas observacées sobre o levante dos tecelbes da Silésia.) Pois a situacio de classe do pro- letariado inscreve a contradigaéo diretamente em sua propria consciéncia, enquanto as contradicées resultan- tes para a burguesia da sua situacdo de classe tinham de aparecer como limites externos de sua consciéncia. No entanto, por outro lado, essa contradigao significa 38. MEW 1, pp. 392, 404s. 178 GEORG LUKACS que a “falsa” consciéncia tem uma fungio totalmente diferente no desenvolvimento do proletariado do que em todas as classes anteriores. Enquanto na consciéncia de classe da burguesia até mesmo as constatagdes cor- retas de fatos particulares ou de aspectos do desenvol- vimento revelavam, por sua relagdo com a totalidade da sociedade, os limites da consciéncia e se desmasca- ravam como “falsa” consciéncia, na “falsa”’ consciéncia do proletariado e nos seus erros reais, ha uma intengiio orientada para o verdadeiro. Basta reportar-se a critica so- cial dos utopistas ou ao aperfeigoamento proletario e revolucionério da teoria de Ricardo. A propésito dessa teoria, Engels® enfatiza energicamente que ela é “econd- mica e formalmente incorreta”, no entanto, logo acres- centa: “Mas 0 que é incorreto de um ponto de vista eco- nomico formal pode ser correto do ponto de vista da historia universal (...] Por tras da inexatidéo econdmi- ca formal pode, portanto, ocultar-se um contetido eco- nomico muito verdadeiro.” Somente dessa maneira a contradigéo na consciéncia de classe do proletariado pode ser solucionada e, a0 mesmo tempo, tornar-se um fator consciente da historia. Pois a intencao objetiva, orientada para o verdadeiro, que é inerente até mesmo a “falsa” consciéncia do proletariado, nao significa de modo algum que ela possa vir a luz por si mesma, sem a aco ativa do proletariado. Pelo contrario, somente pela intensificacdo do seu caréter consciente, pela agio e pela autocritica conscientes, surge, a partir da mera in- tencdo dirigida para o verdadeiro e despindo-o de suas méscaras, 0 conhecimento efetivamente verdadeiro, his- 39, Preficio a Elend der Philosophie, MEW 4, p. 561 HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 179 toricamente significativo e socialmente revolucionario Certamente, esse conhecimento seria impossivel se essa intengio objetiva nao estivesse em seu fundamento, e aqui que se confirmam as palavras de Marx‘, segundo as quais “a humanidade s6 se coloca tarefas que pode resolver”. Mas aqui é dada somente a possibilidade, A propria solucdo s6 pode ser o fruto da agao consciente do proletariado, Essa mesma estrutura da consciéncia, so- bre a quel repousa a missao histérica do proletariado, © fato de apontar para além da sociedade existente pro- voca nela a cisao dialética. O que nas outras classes apa- recia como oposicao entre o interesse de classe eo inte- resse da sociedade, entre a acao individual e suas con- seqiiéncias sociais etc., ou seja, como limite externo da consciéncia, transfere-se agora para o interior da pré- pria consciéncia de classe proletdria como oposigio en- tre o interesse momentaneo eo fim ultimo. Portanto, é a superacdo interna dessa cisdo dialética que possibili- taa vitoria exterior do proletariado na luta de classes. No entanto, é justamente essa cisdo que oferece uma via para compreender — como foi sublinhado na citagao - que a consciéncia de classe nao é a conscién- cia psicoldgica de cada proletario ou a consciéncia psi- colégica de massa do seu conjunto, mas o serttido, que se tornou consciente, da situagao hist6rica da classe. O interes- se individual momentaneo, no qual esse sentido se ob- jetiva aos poucos, s6 pode ser omitido ao prego de se fa- zer a luta de classes do proletariado retroceder ao nivel mais primitivo do utopismo. Com efeito, esse interesse pode ter uma dupla funcdo: ser um passo em diregéo & 40, Zar Keil der politischen Okonomie, MEW 13, p.9. 180 GEORG LUKACS meta ou encobrir a meta. Qual dos dois ser, depende ex- clusioamente da consciéncia de classe do proletariado,e ndo da vitdria ou fracasso de cada Iuta, HA muito tempo Marx! chamou a atengdo para esse perigo, que reside parti- cularmente na luta “econdmica” dos sindicatos. “Ao mesmo tempo, os trabalhadores [...] no devem exage- rar para si mesmos o resultado dessas lutas. Nao de- vem esquecer que lutam contra os efeitos e nao contra as causas desses efeitos [...], que aplicam paliativos e nao curam a propria doenca. Por isso, nao deveriam se consumir apenas nessas inevitaveis lutas de guerrilha [..., mas trabalhar simultaneamente para a transforma- ao radical e usar sua forca organizada como uma ala~ vanca para a emancipacao definitiva das classes traba- Ihadoras, isto é, para a abolicao definitiva do sistema de assalariamento.” ‘A origem de todo oportunismo esta justamente em partir dos efeitos e nao das causas, das partes e no do todo, dos sintomas e nao do fato em si; em ver no inte- resse particular e na luta por sua realizacio nao um meio de educacao em vista do combate final, cujo resul- tado depende da aproximacao da consciéncia psicolé- gica em relacao a consciéncia adjudicada, mas algo va- lioso em si e por si ou, pelo menos, algo que em sie por si caminha em diregio ao objetivo; numa palavra, est em confundir o verdadeiro estado de consciéncia psicoldgica dos proletérios com a consciéncia de classe do proletariado. O cardter funesto que essa confuséo tem na prati- ca comprova-se pelo fato de o proletariado demonstrar freqiientemente, como conseqiiéncia dessa confusdo, 41, Lohn, Preis und Profit, MEW 16, p. 152. HISTORIA ECONSCIENCIA DE CLASSE 181 uma unidade e coesdo muito menores em sua acao do que aquelas que corresponderiam & unidade das ten- déncias econdmicas objetivas. A forca ea superioridade da verdadeira consciéncia pratica de classe reside jus- tamente na capacidade de perceber, por tras dos sinto- mas dissociadores do processo econémico, sua unida- de como desenvolvimento total da sociedade. Porém, tal movimento de conjunto ainda nao é capaz de de- monstrar, na época do capitalismo, uma unidade ime- diata em suas manifestagdes exteriores. O fundamento econémico de uma crise mundial, por exemplo, cons- titui seguramente uma unidade e, como tal, pode ser compreendido economicamente como uma unidade. Mas sua manifestac4o espaciotemporal seré uma su- cessio e uma justaposicao de fendmenos separados nao somente em diferentes paises, mas também em dife- rentes ramos da produgao de cada pais. Quando entéo © pensamento burgués “transforma as diferentes par- tes da sociedade em outras tantas diferentes socieda- des”, comete na verdade um grave erro tedrico, mas as conseqiiéncias praticas imediatas dessa teoria errd- nea correspondem inteiramente aos interesses da clas- se capitalista. Por um lado, embora a classe burguesa seja, em teoria, incapaz de ter uma compreensao maior dos detalhes e dos sintomas do processo econdmico (in- capacidade que, em iiltima andlise, também a condena ao fracasso na pratica), por outro, interessa-lhe sobretu- do impor, no que concerne a atividade pratica imedia- ta da vida cotidiana, esse seu tipo de agéo também ao proletariado. E justamente nesse caso e somente nele 42. Elend der Philosophie, MEW 4, p. 131 182 GEORG LUKAS quea superioridade organizacional da burguesia se ex- prime claramente entre outras coisas, ao passo que a or- ganizacao do proletariado, modelada de maneira total- mente diferente, sua capacidade de organizar-se como clas- se, nao pode impor-se na pratica. Sendo assim, quanto maisa crise econdmica do capitalismo avanga, mais cla- ramente se manifesta essa unidade do processo econ6- mico, apreenstvel também na prética. Embora ela tenha existido nas 6pocas ditas normais e, portanto, tenha sido percebida do ponto de vista de classe do proletariado, a distancia entre a manifestacdo e o fundamento ilti- ‘mo era muito grande para poder conduzir a conseqiién- cias praticas na ago do proletariado. Isso muda nos periodos decisivos de crises. A unidade do processo em seu conjunto é trazida para uma distancia palpavel. A tal ponto, que mesmo a teoria do capitalismo nao con- segue esquivar-se totalmente dela, mesmo que jamais possa apreendé-la adequadamente. Nessa situacéo, o destino do proletariado, e com ele o destino de toda evo- lugdo da humanidade, depende de ele dar ou nao esse Xinico passo, que desde entido se tornou objetivamente posst- vel. Pois, mesmo que os sintomas se manifestem sepa- radamente (segundo o pafs, 0 ramo da produgio, en- quanto crises “econémicas” ou “politicas” etc.), mesmo que o reflexo correspondente na consciéncia psicolégi- ca imediata dos trabalhadores tenha um cardter isola- do, hoje j4 6 possivel e necessério ir além dessa cons- ciéncia; e essa necessidade é sentida instintivamente por camadas cada vez mais amplas do proletariado. A teo- tia do oportunismo, cuja funcao foi aparentemente de mero entrave ao desenvolvimento objetivo até a crise aguda, toma agora uma diregao diretamente oposta. Ela HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 183 visa a impedir que a consciéncia de classe do proleta- riado avance do simples dado psicolégico a adequacao a0 desenvolvimento objetivo em seu conjunto, visa a re- duzir a consciéncia de classe do proletariado ao nivel de um dado psicolégico e, assim, dar uma orientago contréria a0 movimento dessa consciéncia de classe, até entao ape- nas instintivamente existente. Essa teoria, que, com cer- ta indulgéncia, ainda podia ser considerada como equi- voco durante 0 tempo em que a possibilidade pratica de unificagéo da consciéncia de classe proletdria nao es- tava dada econémica e objetivamente, assume nessa si- tuacdo 0 carater de um engano consciente (pouco im- porta se seus porta-vozes estdo ou nao psicologicamen- te conscientes dele). Em relacdo aos instintos corretos do proletariado, ela cumpre a mesma fungao que sem- pre exerceu a teoria capitalista: denuncia a concepcao correta da situagao econdmica geral, a consciéncia de classe correta do proletariado e sua forma organizacio- nal (0 partido comunista) como algo irreal, como um principio contrério aos “verdadeiros” interesses dos operdrios (interesses imediatos, nacionais ou profissio- nais tomados isoladamente), como estranho a sua cons ciéncia de classe “auténtica” (dada psicologicamente). Porém, ainda que a consciéncia de classe ndo tenha realidade psicolégica, ela nao é mera ficgao. O caminho infinitamente penoso e cheio de revezes da revolucao proletaria, seu eterno retorno ao ponto de partida, sua autocritica constante, da qual fala Marx na célebre pas- sagem do Dezoito brumario, encontra sua explicacao jus- tamente na realidade dessa consciéncia. Somente a consciéncia do proletariado pode mostrar a sata para a crise do capitalismo. Enquanto nao existir essa 184 GEORG LuKAcS consciéncia, a crise ser permanente, retornaré ao seu ponto de partida, repetira essa situacao até que, final- mente, apés infinitos sofrimentos e terriveis atalhos, a ligdo pedagégica da hist6ria conclui o processo da consciéncia no proletariado e coloca-lhe nas maos a con- ducao da histéria. Nesse momento, o proletariado nao tem escolha. Ele tem de se tornar uma classe, como dis- se Marx, néo somente “em relacao ao capital” mas “para si mesmo” isto 6, elevar a necessidade econdmi- ca de sua luta de classe ao nivel de uma vontade cons- ciente, de uma consciéncia de classe ativa. Os pacifis- tas e humanitaristas da luta de classes, que trabalham voluntéria ou involuntariamente para retardar esse pro- cesso de crise jé tao longo e doloroso, ficariam apavo- rados se compreendessem quanto sofrimento infligem ao proletariado prolongando essa licdo. Pois o proleta- riado nao pode furtar-se a sua vocacéo. Trata-se de sa- ber apenas quanto deve sofrer ainda antes de alcancar a maturidade ideolégica, o conhecimento correto de sua situaco de classe, a consciéncia de classe. Certamente, essas hesitacdes e mesmo essa obscuri- dade sao um sintoma de crise da sociedade burguesa. Como produto do capitalismo, o proletariado esta ne- cessariamente submetido as formas de existéncia do seu produtor. Essa forma de existéncia é a inumanidade, a reificacao. Decerto, por sua simples existéncia, 0 prole- tariado é a critica, a negacao dessas formas de existén- cia. No entanto, até que a crise objetiva do capitalismo se complete, até que o proprio proletariado tenha ad- quirido uma visdo completa dessa crise e a verdadeira 49. Elend der Philosophie, MEW 4, p. 181 HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 185 consciéncia de classe, ele é mera critica da reificacao e, como tal, eleva-se apenas negativamente acima do que nega. De fato, quando a critica ndo é capaz. de ir além da simples negacao de uma parte, quando nao é sequer capaz de aspirar a totalidade, entdo ela ndo consegue de modo algum ultrapassar 0 que nega, como o de- monstra, por exemplo, o carater pequeno-burgués da maior parte dos sindicalistas. Essa simples critica, feita do ponio de vista do capitalismo, mostra-se da manei- ra mais marcante na separacdo dos diferentes ambitos de luta. A mera ocorréncia da separacao ja indica que a consciéncia do proletariado ainda se encontra proviso- riamenie sujeita a reificacdo. Ainda que lhe seja eviden- temente mais facil discernir o caréter inumano de sua situagio de classe no plano econémico do que no pla- no politico, e no plano politico mais facil do que no plano cultural, todas essas separacies demonstram jus- tamente 0 poder nao superado das formas de vida ca- pilalistas sobre o préprio proletariado. ‘A consciéncia reificada deve permanecer prisionei- ra, na mesma medida ¢ igualmente sem esperanga, nos extremos do empirismo grosseiro e do utopismo abs- trato. Desse modo, ou a consciéncia se torna um espec- tador inteiramente passive do movimento das coisas conforme a lei, no qual nao pode intervir sob nenhuma circunstancia, ou se considera como um poder capaz de dominar ao seu bel-prazer — subjetivamente — 0 movi- mento das coisas, em si destituido de sentido. Ja reco- nhecerios 0 empirismo grosseiro dos oportunistas na sua relacdo com a consciéncia de classe do proletariado, ‘Trata-se agora de compreender a fungdo do utopismo como caracteristica da gradacao interna da consciéncia 186 GEORG LUKACS de classe. (A separagdo puramente metodoldgica efe- tuada aqui entre empirismo e utopismo nao significa de modo algum que eles nao possam se reunir em ten- déncias particulares e até mesmo em individuos. Pelo contrério, freqiientemente eles aparecem juntos ¢ es- tao inclusive ligados internamente.) O empenho filos6fico do jovem Marx orientava- se, em grande medida, no sentido de refutar as diver- sas teorias equivocadas da consciéncia (tanto a teoria “{dealista” da escola hegeliana quanto a “materialis- ta” de Feuerbach) e alcangar uma concepgo correta sobre o papel da consciéncia na historia. Ja a Corres- pondéncia de 1843 concebe a consciéncia como imanen- te ao desenvolvimento. A consciéncia nao esté além do desenvolvimento historico real. Nao deve ser intro- duzida no mundo somente pelo fil6sofo; 0 filésofo nao tem, portanto, o direito de lancar um olhar arrogante sobre as pequenas lutas do mundo e de desprez4-las. “Mostramos-lhe simplesmente [ao mundo] o porqué da sua luta na realidade, e a consciéncia é algo que ele tem de adquirir, mesmo que nao queira.” ‘Trata-se entdo somente de “explicar-lhes suas pr6- prias agdes”**, A grande polémica contra Hegel’, na Sagrada familia, concentra-se principalmente nesse pon- to. A insuficiéncia de Hegel consiste no fato de ele dei- xar apenas aparentemente que o espirito absoluto com- ponha de fato a histéria. Em relagao aos processos his- t6ricos, a transcendéncia da consciéncia resultante des- sa insuficiéncia torna-se, nos discfpulos de Hegel, uma 44, Cartas dos Anais franco-alemies, MEW I, p. 345. 45. 0 ensaio “O que é marxismo ortodoxo?”. HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 187 oposicao arrogante e reacionaria entre 0 “espfrito” ea “massa”, oposigo cujas debilidades, cujos absurdos e retrocessos a um nivel jé superado por Hegel sao criti- cados impiedosamente por Marx. A critica aforistica a Feuerbach serve como complemento disso. Por outro lado, a idéia alcancada pelo materialismo de quea cons- ciéncia € algo que pertence a este mundo passa a ser vista como uma simples fase do desenvolvimento, como a fase da “sociedade burguesa’, ¢ a isso se opse “a ati- vidade pratico-critica”, a “transformacao do mundo” como tarefa da consciéncia. Assim estava dado o fun- damento filoséfico para o ajuste de contas com os uto- pistas. Com efeito, no pensamento destes mostra-se a mesma dualidade de movimento social e consciéncia. ‘A consciéncia aparece na sociedade como sendo de outro mundo e a retira do falso caminho até entao percorri- do para o caminho correto. O carter ndo desenvolvido do movimento proletério ainda nao Ihes permite per- ceber na propria historia, na maneira pela qual o prole- tariado se organiza em classe, ou seja, na consciéncia de classe co proletariado, a portadora do desenvolvimen- to. Ainda nao estdo em condicao de “prestar contas do que se desenrola diante dos seus olhos e de se tornar o seu porta-voz’4, No entanto, seria uma ilusdo acreditar que, com essa critica ao utopismo, com o conhecimento hist6rico de que uma atitude nao mais utépica em relagéo ao de- senvolvimento hist6rico tornou-se objetivamente possi vel, 0 utopismo estaria efetivamente acabado para a luta 46. Elend der Philosophie, MEW 4, p. 143. Cf. também IIl,3, de Das kommunistische Manifest, MEW 4, pp. 489 ss. 188 GEORG LUKACS de emancipagao do proletariado. Isso vale apenas pa- ra aquelas etapas da consciéncia de classe que de fato atingiram a unidade real de teoria e pratica descrita por Marx, a intervencao pratica e real da consciéncia de clas- se na marcha da historia e, com isso, o discernimento pratico da reificacdo. Porém, isso ndo ocorreu absoluta- mente de maneira uniforme e de uma s6 vez. Na ver- dade, revelam-se nesse momento nao somente grada- Ges nacionais ou “sociais”, mas também gradacées na consciéncia de classe das proprias camadas operarias. A separagao entre economia e politica é 0 caso mais caracteristico e, a0 mesmo tempo, o mais importante a esse respeito. Sabemos que ha camadas do proletaria- do que tém um instinto de classe inteiramente correto para a luta econémica, podendo inclusive elevé-lo consciéncia de classe, mas que, ao mesmo tempo, em questdes politicas, por exemplo, perseveram num pon- to de vista utépico. £ evidente que isso ndo significa uma dicotomia mecanica. A visio ut6pica da fungio da politica deve reagir dialeticamente sobre as visdes a res- peito do desenvolvimento econémico, particularmen- te sobre as visdes a respeito da totalidade da economia (por exemplo, a teoria da revolucao propria do sindi- calismo). Pois, uma luta contra o conjunto do sistema econémico e, a partir disso, uma reorganizacéo do con- junto da economia sao impossiveis sem um conheci- mento real da agao reciproca entre politica e economia. A influéncia que possuem ainda hoje teorias comple- tamente utdpicas, como as de Ballod ou do socialismo de guilda, mostram quao pouco o pensamento utdpi co est superado, mesmo nessa fase que é a mais pré- xima dos interesses vitais imediatos do proletariado e ondea crise atual torna perceptivel a agio corretaa par- HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 189 tir da marcha da hist6ria. Essa estrutura revela-se de maneira ainda mais flagrante em todos 0s dominios em que o desenvolvimento social ainda nao se expandiu 0 suficiente para produzir a partir de si mesmo a possi bilidade objetiva de uma visdo da totalidade. Isso pode ser observado em sua maxima clareza na atitude tanto tedrica como pratica do proletariado diante de ques toes puramente ideol6gicas e culturais. Tais questées ocupam ainda hoje uma posicao quase isolada na cons- ciéncia do proletariado; sua conexao orgdnica tanto com os interesses vitais imediatos da classe quanto com a totalidade da sociedade ainda nao penetrou na cons- ciéncia, Por isso, as realizagdes nesse ambito se elevam muito raramente acima de uma autocritica do capita~ lismo exercida pelo proletariado. Por isso, o que é te6- rica e praticamente positivo nesse dominio tem um ca- rater quase inteiramente ut6pico. Por um lado, essas gradacOes sdo, portanto, necessi- dades historicas objetivas, distingdes da possibilidade objetiva do tornar-se consciente (como a relagao entre eco- nomia e politica em comparagao com as questdes cultu- rais), mas, por outro, nos casos em que a possibilidade objetiva da consciéncia est presente, assinalam os de- graus de distancia entre a consciéncia de classe psicol6- gica e 0 conhecimento adequado do conjunto da situa- Gao. Essas gradagées, porém, ndo podem mais ser redu- Zidas a causas sociais e econdmicas. A teoria objetion da consciéncia de classe é a teoria da sua possibiliduile objetivn. ‘Até onde vai a estratificagéo dos problemas e dos interes- ses econdmicos no interior do proletariado ¢ algo infeliz~ mente muito pouco investigado, mas que certamente poderia levar a resultados muito importantes. Porém, no interior de uma tipologia das estratificages no proleta- 190 (GEORG LuKACS riado, por mais aprofundada que seja, assim como dos problemas da luta de classes, levanta-se sempre a ques- tao da realizagao efetiva da possibilidade objetiva da consciéncia de classe. Se antes essa era uma questao ape- nas para individuos extraordinarios (basta pensar na previsdo totalmente nao-utdpica dos problemas da di- tadura feita por Marx), hoje ela é uma questo real e atual para toda a classe: ¢ a questao da transformacio interna do proletariado, do seu desenvolvimento em di- rego ao nivel de sua propria missao histérica e objet va. Uma crise ideolégica, cuja solucao 6 sera possivel com a solugao prtica da crise econémica mundial. Seria desastroso alimentar ilusdes a respeito da ex- tensao do caminho que o proletariado tem de percor- rer ideologicamente. Seria igualmente desastroso, po- rém, ignorar as forcas que atuam no proletariado no sentido de uma superagao ideolégica do capitalismo. Osimples fato de cada revolugao proletaria ter produ- zido ~ de maneira cada vez mais intensa e consciente — 0 6rgao de luta de todo o proletariado, que evolui em 6rgao estatal, o conselho operdrio, é um sinal, por exem- plo, de que a consciéncia de classe do proletariado esta prestes a superar vitoriosamente o cardter burgués de sua camada dirigente. O conselho operdrio revolucionério, que nunca de- ve ser confundido com sua caricatura oportunista, é uma das formas pelas quais a consciéncia da classe pro- letéria lutou incessantemente desde seu nascimento. Sua existéncia, seu desenvolvimento permanente mos- tram que o proletariado jé est no limiar de sua pré- pria consciéncia e, assim, no limiar da vit6ria. Com efei- to, o conselho operario é a superagao econémica e po- HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 191 Iitica da reificagao capitalista. Assim como, na situagio posterior a ditadura, ele deve superar a diviséo burgue- sa de legislacdo, administracao e jurisdicio, na luta pelo poder ele é chamado a reunir, de um lado, a fragmen- taco espacial e temporal do proletariado e, de outro, a economia e a politica, numa unidade verdadeira da acao proletéria, ajudando entdo a reconciliar a cisio dialética entre interesse imediato e objetivo final. Portanto, nunca se deve ignorar a distancia que se- para o nivel de consciéncia dos operérios mais revolu- cionérios da verdadeira consciéncia de classe do prole- tariado. Mas essa situagao objetiva também é explicada a partir da doutrina marxista da luta de classes e da consciéncia de classe. O proletariado se realiza somente ao negar asi mesmo, ao criar a sociedade sem classes levando até 0 fima luta de classes. A luta por essa sociedade, em que a ditadura do proletariado nao passa de uma fase, nao uma luta somente contra o inimigo exterior, a burgue- sia; é também, ao mesmo tempo, a luta do proletaria- do consigo mesmo: contra 0s efeitos devastadores e avil- tantes do sistema capitalista sobre sua consciéncia de classe. 0 proletariado somente alcangaré a vitoria quan- do superar em si mesmo esses efeitos. A separacao de dominios isolados, que deveriam estar reunidos, os di- ferentes niveis de consciéncia que o proletariado atingiu até entao nas diferentes 4reas sio uma medida precisa do que cle alcangou ¢ do que resta a conquistar. O pro- letariado nao deve temer nenhuma autocritica, pois so- mentea verdade pode trazer sua vit6ria, e a autocritica deve ser, por isso, seu elemento vital. Marco de 1920. A REIFICAGAO E A CONSCIBNCIA DO PROLETARIADO Ser radical é tomar as coisas pela raiz. Mas, para ohomem, a raiz é 0 proprio homem. Manx, Zur Kritik der Hegelschen Rechtsphilosophie [Critica da Filosofia do direito de Hegell. Nao 6 de modo algum casual que as duas grandes obras da maturidade de Marx, que expdem o conjunto da sociedade capitalista e revelam seu cardter funda- ‘mental, comecem com a anilise da mercadoria. Pois nao ha prodlema nessa etapa de desenvolvimento da hu- manidade que, em tiltima andlise, nao se reporte a essa questo e cuja solugéo nao tenha de ser buscada na so- lugdo Go enigma da estrutura da mercadoria. Certamen- te, esse universalidade do problema s6 pode ser alcan- cada quando a formulacao do problema atinge aquela amplitude e a profundidade que possui nas andlises do préprio Marx; quando o problema da mercadoria nio aparece apenas como um problema isolado, tampouco como problema central da economia enquanto ciéncia particular, mas como problema central ¢ estrutural da sociedade capitalista em todas as suas manifestacdes vitais. Pois somente nesse caso pode-se descobrir na es- trutura da relacao mercantil o prototipo de todas as for- mas de objetividade e de todas as suas formas corres- pondentes de subjetividade na sociedade burguesa. 194 GEORG LUKACS I. O fendmeno da reificagio 1 A esséncia da estrutura da mercadoria j foi res- saltada varias vezes. Ela se baseia no fato de uma rela- ao entre pessoas tomar o caréter de uma coisa e, dessa maneira, o de uma “objetividade fantasmagérica” que, em sua legalidade propria, rigorosa, aparentemente ra- cional ¢ inteiramente fechada, oculta todo traco de sua esséncia fundamental: a relagao entre os homens. Nao pertence ao ambito deste estudo analisar o quanto essa problemética tornou-se central para a propria econo- mia e quais conseqiiéncias o abandono desse ponto de partida metédico trouxe para as concep¢des econémi- cas do marxismo vulgar. Nosso objetivo 6 somente cha- mar a atengao ~ pressupondo as andlises econémicas de Marx — para aqueles problemas fundamentais que re- sultam do carater fetichista da mercadoria como forma de objetividade, de um lado, e do comportamento do sujeito submetido a ela, de outro. Apenas quando com- preendemos essa dualidade conseguimos ter uma vi- so clara dos problemas ideol6gicos do capitalismo e do seu dectinio. Contudo, antes que o problema propriamente dito possa ser examinado, temos de esclarecer que a questo do fetichismo da mercadoria € especffica da nossa épo- ca, do capitalismo modemo. Como se sabe, a troca de mer- cadorias e as relagdes mercantis subjetivas e objetivas correspondentes jé existiam em etapas muito primitivas do desenvolvimento da sociedade. Mas 0 que importa aqui é saber em que medida a troca de mercadorias e suas HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 195 conseqiiéncias estruturais sao capazes de influenciar toda a vida exterior e interior da sociedade. Portanto, a extensao da troca mercantil como forma dominante do metabolismo de uma sociedade nao pode ser tratada como uma simples questao quantitativa - conforme os habitos modernos de pensamento, j reificados sob a influéncia da forma mercantil dominante. A diferenca entre uma sociedade em que a forma mercantil é a do- minante que influencia decisivamente todas as mani- festacdes da vida e uma sociedade em que ela aparece apenas episodicamente é, antes, uma diferenca quali- tativa, Pois 0 conjunto dos fenémenos, subjetivos e ob- jetivos, das sociedades em questio adquire, de acordo com essa diferenca, formas de objetividade qualitativa- mente diferentes. Max enfatiza com muita precisao esse carter epis6dico da forma mercantil na sociedade pri- mitiva': “A troca direta, forma natural do processo de intercAmbio, representa muito mais a transformacao ini- cial dos valores de uso em mercadorias do que a trans- formagio das mercadorias em dinheiro. O valor de troca no tem uma forma independente, mas ainda esté liga- do diretamente ao valor de uso. Isso se mostra de duas maneitas. Em toda sua organizacio, a prépria produ- do esti voltada para o valor de uso, endo para o valor de troca; e 6 somente por exceder a quantidade neces- séria ao consumo que os valores de uso deixam de ser valores de uso e se tornam meios de troca, mercadorias. Por outro lado, eles s6 se tornam mercadorias dentro dos limites do valor de uso imediato, ainda que separa- 1. Zur Kite der poitischen Okonomie, MEW 13, pp. 35-6. 196 GEORG LuKAcS dos em pélos, de tal maneira que as mercadorias a serem trocadas devem ser valores de uso para 0s dois possui- dores, e cada uma valor de uso para quem nao a pos- sui. De fato, o proceso de troca de mercadorias nao aparece originalmente no seio das comunidades natu- rais, mas sim onde elas cessam de existir, em suas fron- teiras, nos poucos pontos em que entram em contato com outras comunidades. Aqui comega a troca que, em seguida, repercute no interior da comunidade, na qual ela atua de maneira desagregadora.” A constatagio da acdo desagregadora da troca de mercadorias voltada para o interior aponta claramente para a mudanca qua- litativa que nasce da dominacao da mercadoria. Con- tudo, essa ago exercida no interior da estrutura social também nao basta para fazer da forma mercantil a for- ma constitutiva de uma sociedade. Para tanto, ela tem de penetrar ~ como foi enfatizado acima ~ no conjunto das manifestagies vitais da sociedade e remodelar tais, manifestagoes 4 sua propria imagem, e nao simples- mente ligar-se exteriormente a processos voltados para a produgao de valores de uso e em si mesmos indepen- dentes dela. Mas a diferenca qualitativa entre a merca- doria como uma forma (entre muitas outras) do meta- ‘olismo social dos homens e a mercadoria como forma universal de conformacao da sociedade nao se mostra somente no fato de a relagéo mercantil como fendme- no isolado exercer no maximo uma influéncia negati- va sobre a estrutura e a articulagao da sociedade, mas no fato de essa diferenca reagir sobre o tipo e a valida- de da propria categoria. A forma mercantil como forma universal, mesmo quando considerada por si s6, exibe uma imagem diferente do que como fendmeno parti- HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 197 cular, isolado endo dominante. Aqui as passagens tam- bém sio fluidas, mas isso ndo deve encobrir 0 cardter qualitativo da diferenga decisiva. Marx destaca da se- guinte maneira a situacéo em que a troca de mercado- rias nao é dominante?: “A relacdo quantitativa, segundo a qual os produtos sao trocados, é totalmente contin- gente de inicio. Eles assumem a forma de mercadorias a0 logo sejam passiveis de troca em geral, isto é, tao lo- {go sejam expresses de um terceiro elemento. O prosse- guimento da troca e a reproducio regular para a troca reduzem cada vez mais esse cardter contingente. Ini- cialmente, no para os produtores e consumidores, mas para o intermediério entre os dois, o comerciante que compara 0s precos monetérios e embolsa a diferenca. Com esse movimento, ele estabelece a equivaléncia. No inicio, o capital comercial é apenas o movimento de me- diacao entre extremos que néo domina e condigées que no cria.” E esse desenvolvimento da forma mercantil em forma de dominagio efetiva sobre 0 conjunto da sociedade surgiu somente com o capitalismo moderno. Por isso, nao é mais de admirar que o cardter pessoal das relagdes econdmicas tenha sido percebido ainda no inicio do desenvolvimento capitalista e, as vezes, de maneita relativamente clara; no entanto, quanto mais avangava 0 desenvolvimento, mais complicadas e in- termediadas surgiam as formas, cada vez mais raro e di- ficil tomava-se penetrar nesse invélucto reificado. Marx via a questéo da seguinte maneira’: “Nas formas de 2. Kapital I, 1, MEW 25, p. 342. 3. Kapital, Il, MEW 198 GEORG LUKAS sociedade primitiva, essa mistificacao econdmica inter- ‘vém sobretudo no que concerne ao dinheiro e ao capital lucrativo. Pela propria natureza das coisas, ela esté ex- clufda, em primeiro lugar, do sistema em que predomi- naa producao em vista do valor de uso e das necessida- des préprias e imediatas; em segundo, do sistema em que, como na Antiguidade e na Idade Média, a escravi- dao ea servidao constituem a larga base da producao social: a dominagio das condigdes de producio sobre os produtores ¢ ocultada aqui pelas relagdes de domina- Gio e de servidao, que aparecem e sao vistveis como mo- tores imediatos do processo de producéo.” Pois é somente como categoria universal de todo © ser social que a mercadoria pode ser compreendida om sua esséncia auténtica. Apenas nesse contexto a rei- ficagao surgida da relacéo mercantil adquire uma im- porlancia decisiva, tanto para o desenvolvimento obje- tivo da sociedade quanto para a atitude dos homens a seu respeito, para a submissio de sua consciéncia as for- mas nas quais essa reificago se exprime, para as ten- tativas de compreender esse processo ou de se dirigir contra seus efeitos destruidores, para se libertar da ser- vidao da “segunda natureza” que surge dese modo. Marx descreve o fenémeno fundamental da reificagio da seguinte maneira‘: “O caréter misterioso da forma mercantil consiste, portanto, simplesmente em revelar para os homens os caracteres sociais do seu proprio tra- 4, Kapital I, MEW 23, p.85. A respeito dessa oposicdo, cf. a distin- ‘glo puramente econdmica entrea troca das mercadorias por seu valor e 1 troca das mercadorias por seu prego de produgéo. Kapital, 11, I, MEW p. 186, HISTORIAE CONSCIENCIA DE CLASSE 199 balho como caracteres objetives do produto do traba- Tho, como qualidades sociais naturais dessas coisas ¢, conseqiientemente, também a relacdo social dos produ- tores com 0 conjunto do trabalho como uma relacao so- cial de objetos que existe exteriormente a eles. Com esse qiiiproqu6, os produtos do trabalho se tornam mercado- rias, coisas que podem ser percebidas ou ndo pelos senti- dos ou serem coisas sociais |...] E apenas a relago social determinada dos proprios homens que assume para eles a forma fantasmagérica de uma relagio entre coisas.” Desse fato basico e estrutural é preciso reter sobre- tudo que, por meio dele, o homem é confrontado com sua propria atividade, com seu proprio trabalho como algo obetivo, independente dele e que o domina por leis proprias, que Ihes sao estranhas. E isso ocorre tanto sob 0 aspecto objetivo quanto sob o subjetivo. Objetiva- mente, quando surge um mundo de coisas acabadas e de relagSes entre coisas (0 mundo das mercadorias e de sua circulagao no mercado), cujas leis, embora se tor- nem gradualmente conhecidas pelos homens, mesmo nesse caso se Ihes opdem como poderes intransponi- veis, que se exercem a partir de si mesmos. O individuo pode, portanto, utilizar seu conhecimento sobre essas leis a seu favor, sem que Ihe seja dado exercer, mesmo nesse caso, uma influéncia transformadora sobre o pro- cesso real por meio de sua atividade. Subjetivamente, numa cconomia mercantil desenvolvida, quando a ati- vidade do homem se objetiva em relagio a ele, torna-se uma mercadoria que é submetida a objetividade estra- nha aos homens, de leis sociais naturais, e deve executar seus movimentos de maneira tao independente dos ho- ‘mens como qualquer bem destinado a satisfacdo de ne- 200 (GEORG LUKACS cessidades que se tornou artigo de consumo. “O que ca~ racteriza, portanto, a época capitalista”, diz Marx’, “6 que a forga de trabalho [...] assume para o proprio tra- balhador a forma de uma mercadoria que Ihe perten- ce. Por outro lado, é somente nesse momento que se ge- neraliza a forma mercantil dos produtos do trabalho.” A universalidade da forma mercantil condiciona, portanto, tanto sob o aspecto objetivo quanto sob o sub- jetivo, uma abstragio do trabalho humano que se obje- tiva nas mercadorias. (Por outro lado, sua possibilidade hist6rica é mais vez condicionada pela realizacdo real desse processo de abstragao.) Objetivamente, a forma mercantil s6 se torna possivel como forma da igualda- de, da permutabilidade de objetos qualitativamente di- ferentes pelo fato de esses objetos — nessa relacao que 6 a tinica a lhes conferir sua natureza de mercadorias — serem vistos como formalmente iguais. Desse modo, 0 principio de sua igualdade formal s6 pode ser funda- do em sua esséncia como produto do trabalho humano abstrato (portanto, formalmente igual). Subjetivamen- te, essa igualdade formal do trabalho humano abstrato nao é somente o denominador comum ao qual os dife- rentes objetos so reduzidos na relagao mercantil, mas torna-se também o princfpio real do processo efetivo de producéo de mercadorias. Nossa intengio aqui nao po- de ser, evidentemente, a de descrever, mesmo como es boco, esse processo, 0 nascimento do processo moder- no do trabalho, do trabalhador “livre” e isolado, da di- visio do trabalho etc. Trata-se somente de constatar que o trabalho abstrato, igual, compardvel, mensurdvel com 5, Kapital I, MEW 23, p. 184, nota 41 HISTORIAE CONSCIENCIA DE CLASSE 201 uma precisio crescente em relagao ao tempo de traba- Iho socialmente necessario, o trabalho da diviséo capi- talista do trabalho, que existe ao mesmo tempo como produto e condigo da producao capitalista, surge ape- nas no curso do desenvolvimento desta e, portanto, $o- mente no curso dessa evolugao ele se torna uma cate- goria social que influencia de maneira decisiva a forma de objetivacdo tanto dos objetos como dos sujeitos da sociedade emergente, de sua relacao com a natureza, das relagées dos homens entre si que nela séo possi- veis*, Se perseguirmos 0 caminho percorrido pelo de- senvolvimento do processo de trabalho desde o arte- sanato, passando pela cooperagio e pela manufatura, até a inddistria mecanica, descobriremos uma racionali- zacio continuamente crescente, uma eliminacao cada vez maior das propriedades qualitativas, humanas ¢ in- dividuais do trabalhador. Por um lado, o processo de trabalho é fragmentado, numa proporcéo continuamen- te crescente, em operagées parciais abstratamente racio- nais, 0 que interrompe a relacéo do trabalhador com 0 produto acabado e reduz seu trabalho a uma fungio e: pecial que se repete mecanicamente. Por outro, a med da que a racionalizacdo e a mecanizacao se intensificam, 0 periodo de trabalho socialmente necessério, que for- maa base do célculo racional, deixa de ser considerado como tempo médio e empirico para figurar como uma quantidade de trabalho objetivamente calculavel, que se opée ao trabalhador sob a forma de uma objetivida- de prota e estabelecida. Com a moderna andlise “psi- colégica” do processo de trabalho (sistema de Taylor), 6. CE Kapital l, MEW 23, pp. 341-2ete, 202 GEORG LUKACS essa mecanizacdo racional penetra até na “alma” do tra- balhador: inclusive suas qualidades psicolégicas sao se- paradas do conjunto de sua personalidade e sao obje- tivadas em relagdo a esta tiltima, para poderem ser in- tegradas em sistemas especiais e racionais e recondu- zidas ao conceito calculador?. Para nés, o mais importante é o principio que assim se impée: 0 principio da racionalizacao baseada no cAlculo, na possibilidade do oflculo. As modificacoes deci- sivas que assim s4o operadas sobre o sujeito e 0 objeto do processo econémico sao as seguintes: em primeiro lugar, para poder calcular o proceso de trabalho, € pre- ciso romper com a unidade organica irracional, sempre qualitativamente condicionada, do proprio produto. S6 se pode alcancar a racionalizacao, no sentido de uma previsdo e de um célculo cada vez mais exatos de todos 0s resultados a atingir, pela andlise mais precisa de cada conjunto complexo em seus elementos, pelo estudo de leis parciais especificas de sua producao. Portanto, a ra- cionalizago deve, por um lado, romper com a unida- de organica de produtos acabados, baseados na ligagio tradicional de experiéncias concretas do trabalho: a racio- nalizacdo é impensével sem a especializacéo®. O produ- to que forma uma unidade, como objeto do processo de trabalho, desaparece, O processo torna-se a reunifo ob- 7, Todo esse processo esté exposto histbrica e sistematicamente no primeiro volume de O capital. Os proprios fatos — evidentemente sem relagio, na maioria das vezes, com o problema da reificagdo ~ encon- tram-se também na economia politica burguesa, em Biicher, Sombart, ‘A. Weber, Gottl etc. 8, Kepital I, MEW 23, pp. 497-8. HISTORIAE CONSCIENCIA DE CLASSE 203 jetiva de sistemas parciais racionalizados, cuja unidade € determinada pelo puro célculo, que por sua vez de- vem aparecer arbitrariamente ligados uns aos outros. A anilise racional e por célculo do processo de trabalho aniquila a necessidade organica das operagGes parciais que se relacionam umas com as outtras e que se ligam ao produto formando uma unidade. A unidade do produ- to como mercadoria nao coincide mais com sua unida- de como valor de uso. A autonomizacio técnica das manipulagées parciais exprime-se também economica- mente na capitalizacao radical da sociedade, pelo aces- 0 A autonomia das operacées parciais, pela relativiza- cdo crescente do cardter mercantil de um produto nas diferentes etapas de sua producao’. Sendo assim, é pos- sivel separar a producao de um valor de uso no espaco € no tempo. Isso costuma ocorrer concomitantemente com a unido no tempo e no espaco das manipulagdes parciais que, por sua vez, encontram-se relacionadas a valores de uso inteiramente heterogéneos. Em segundo lugar, essa fragmentacao do objeto da producio implica necessariamente a fragmentacao do seu sujeito. Como conseqiiéncia do processo de raciona- lizacdo do trabalho, as propriedades e particularidades humanas do trabalhador aparecem cada vez mais como simples jontes do erro quando comparadas com o funcio- namento dessas leis parciais abstratas, calculado pre- viamente. O homem nao aparece, nem objetivamente, nem em seu comportamento em relagao ao proceso de trabalho, como o verdadeiro portador desse processo; em vez disso, ele é incorporado como parte mecanizada 9. Ibid, p. 376, nota 204 GEORG LUKAcS num sistema mecanico que jé encontra pronto e funcio- nando de modo totalmente independente dele, ea cujas leis ele deve se submeter"®, Como 0 proceso de trabalho é progressivamente ra- cionalizado e mecanizado, a falta de vontade é reforga- da pelo fato de a atividade do trabalhador perder cada vez mais seu cardter ativo para tornar-se uma atitude contemplativa'', A atitude contemplativa diante de um processo mecanicamente conforme as leis e que se de- senrola independentemente da consciéncia e sem a in- fluéncia possivel de uma atividade humana, ou seja, que se manifesta como um sistema acabado e fechado, transforma também as categorias fundamentais da ati- tude imediata dos homens em relagéo ao mundo: re- duzo espaco e o tempo a um mesmo denominador eo tempo ao nivel do espago. “Com a subordinagao do ho- mem a maquina”, diz Marx” a situacio chega ao ponto de que “os homens acabam sendo apagados pelo tra- balho, o péndulo do reldgio torna-se a medida exata da atividade relativa de dois operdrios, tal como a medida da velocidade de duas locomotivas. Sendo assim, nao se pode dizer que uma hora [de trabalho] de um homem vale a mesma hora de outro, mas que, durante uma ho- 10, Do ponto de vista da consciéncia individual, essa aparéncia ¢ intiramonte justficada. No que dir respito A class, & precisn molar aque essa submissio foto produto de uma longa futa que recomera — ‘hum nivel mais elevado ¢ com novas armas ~ com a organizagio do proletariado em classe 11, Kapital, MEW 23, pp. 94-5, 41-2, 483 et. Eevidente que essa “contemplagio” pode ser mais desgastante e enervante do que a “ativi- dade” artesanal. Mas isso est fora de nosss consideracbes. 12 Elend der Philosophie, MEW 4, p. 85 HISTORIA £ CONSCIENCIA DE CLASSE 205 ra, um homem vale tanto quanto outro. O tempo é tudo, o homem nao é mais nada; quando muito, é a personi- ficagao do tempo. A qualidade nao esté mais em ques- to. Somente a quantidade decide tudo: hora por hora, jornada por jomada”. O tempo perde, assim, o seu caré- ter qualitativo, mutavel e fluido: ele se fixa num conti- nuum delimitado com preciséo, quantitativamente men- suravel, pleno de “coisas” quantitativamente mensu- raveis (es “trabalhos realizados” pelo trabalhador, rei- ficados, mecanicamente objetivados, minuciosamen- te separados do conjunto da personalidade humana); torna-seum espaco!3. Nesse ambiente em que o tempo abstrato, minuciosamente mensurvel e transforma- do em espaco fisico, um ambiente que constitui, ao mes- mo tempo, a condiggo e a conseqiiéncia da produgéo especializada e fragmentada, no mbito cientifico e me- cAnico, do objeto de trabalho, os sujeitos do trabalho devem ser igualmente fragmentados de modo racio- nal. Por um lado, seu trabalho fragmentado e mecani- co, ou seja, a objetivacao de sua forga de trabalho em relagdo a0 conjunto de sua personalidade - que jé era realizada pela venda dessa forca de trabalho como mercadoria -, é transformado em realidade cotidiana durdvele intransponivel, de modo que, também nesse caso, a personalidade torna-se o espectador impotente de tudo o que ocorre com sua propria existéncia, par- cela isolada e integrada a um sistema estranho. Por ou- tro, a desintegracao mecanica do processo de producao também rompe os elos que, na producao “organica”, religavam a uma comunidade cada sujeito do trabalho. 13, Kapital I, MEW 23, pp. 365-6. 206 GEORG LuKAcs Também a esse respeito, a mecanizagio da producao faz deles dtomos isolados e abstratos, que a realizacao do seu trabalho nao retine mais de maneira imediata € organica e cuja coesao é, antes, numa medida conti- nuamente crescente, mediada exclusivamente pelas leis abstratas do mecanismo ao qual estdo integrados. Mas a forma interior de organizagéo da empresa industrial nao poderia ter semelhante efeito - mesmo no seio da empresa —, se nao se revelasse nela, de ma- neira concentrada, a estrutura de toda a sociedade capi- talista. Pois as sociedades pré-capitalistas conheceram igualmente a opressdo, a exploracao extrema que escar- nece de toda dignidade humana; conheceram até as em- presas de massa com um trabalho mecanicamente ho- mogeneizado, como a construcao de canais no Egito e to Oriente Médio, ou as minas de Roma etc."4. Todavia, em parte alguma o trabalho de massa poderia tornar- se um trabalho racionalmente mecanizado; as empresas de massa permaneceriam fendmenos isolados no seio de uma coletividade, produzindo de maneira diferen- te (“naturalmente”) e, portanto, vivendo de maneira di- ferente, Sendo assim, os escravos explorados dessa ma- neira estavam a margem do que era considerado como sociedade “humana”; seus contemporaneos e mesmo 0s maiores e mais nobres pensadores no eram capazes de julgar o destino desses homens como o destino da humanidade. Com a universalidade da categoria mer- cantil, essa relacao muda radical e qualitativamente. O destino do operdrio torna-se 0 destino geral de toda a 14. CE. a esse respeito Gottl, Wirtschaft und Technik. Grundriss der Sozialtkonomie Il, pp. 234 ss. HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 207 sociedade, visto que a generalizacao desse destino é a condico necessaria para que o processo de trabalho nas empreses se modele segundo essa norma. Pois a meca- nizacdo racional do processo de trabalho s6 se torna possivel com 0 aparecimento do “trabalhador livre”, em condigées de vender livremente no mercado sua forca de trabalho como uma mercadoria “que lhe per- tence”, como uma coisa que “possui”. Enquanto esse processo ainda ¢ incipiente, os meios para extrair 0 ex- cedente de trabalho sao, por certo, ainda mais brutais e evidentes que nos estagios ulteriores e mais evolui- dos, mas 0 processo de reificacao do préprio trabalho e, portanto, também da consciéncia do operdrio sio muito menos adiantados. Desse modo, é absolutamen- te necessario que a sociedade aprenda a satisfazer to- das as suas necessidades sob a forma de troca de mer- cadorias. A separacao do produtor dos seus meios de producio, a dissolucdo e a desagregacao de todas as unidades originais de produgao etc,, todas as con ges econdmicas ¢ sociais do nascimento do capitalis- mo moderno agem nesse sentido: substituir por rela- Ges racionalmente reificadas as relacdes originais em que eram mais transparentes as relagdes humanas. “As relagées sociais das pessoas em seu trabalho”, diz Marx!5 a propésito das sociedades pré-capitalistas, “aparecem de todo modo como suas proprias relagées pessoais, e ndo disfarcadas em relacdes sociais entre coi- sas, entre produtos do trabalho.” Mas isso significa que 0 principio da mecanizacao racional e da calculabilida- de deve abarcar todos os aspectos da vida. Os objetos 15, Kapital I, MEW 23, pp. 91s. 208 GEORG LUKACS que satisfazem as necessidades nao aparecem mais como 05 produtos do processo organico da vida de uma co- munidade (por exemplo, numa comunidade aldea). Por um lado, sao vistos como exemplares abstratos da es- pécie, que por princfpio sio idénticos aos seus outros exemplares e, por outro, como objetos isolados, cuja pos- se ou auséncia dela depende de célculos racionais. So- mente quando toda a vida da sociedade é pulverizada dessa maneira em atos isolados de troca de mercado- rias, pode surgir 0 trabalhador “livre”; ao mesmo tem- Po, oseu destino deve tomar-se o destino tipico de toda a sociedade. No entanto, 0 isolamento ea atomizacao assim nas- centes so uma mera aparéncia. O movimento das mer- cadorias no mercado, o surgimento do seu valor, numa palavra, a margem real de todo célculo racional nao so- mente é submetida a leis rigorosas, mas pressupde, como fundamento do célculo, uma legalidade rigorosa de todo acontecimento. Essa atomizacao do individuo 6, portanto, apenas o reflexo na consciéncia de que as “leis naturais” da producao capitalista abarcaram 0 con- junto das manifestagdes vitais da sociedade, de que ~ pela primeira vez na hist6ria ~ toda a sociedade esta submetida, ou pelo menos tende, a um proceso eco- nOmico uniforme, e de que o destino de todos os mem- bros da sociedade ¢ movido por leis também uniformes, (Em contrapartida, as unidades organicas das socieda- des pré-capitalistas efetuaram o seu metabolismo com muita independéncia umas das outras.) Mas essa apa- réncia é necesséria enquanto aparéncia. Dito de outra maneira, a confrontacao imediata, tanto pratica quanto intelectual, do individuo com a sociedade, a producéo ea reproducao imediatas da vida - em que, para o in- HISTORIA £ CONSCIENCIA DE CLASSE 209 dividuo, a estrutura mercantil de todas as “coisas” ea conformidade de suas relagdes com “leis naturais” ja existe enquanto forma acabada, como algo que nao po- de ser suprimido -, s6 poderiam desenrolar-se sob essa forma de atos isolados e racionais de troca entre pro- prietarios isolados de mercadorias. Conforme enfatiza- do anteriormente, o trabalhador deve necessariamente apresentar-se como o “proprietario” de sua forca de tra- balho, como se esta fosse uma mercadoria. Sua posicéo specifica reside no fato de essa forca de trabalho ser a sua tinica propriedade. Em seu destino, € tipico da es- trutura de toda a sociedade que essa auto-objetivacao, esse tornar-se mercadoria de uma funcao do homem re- velem com vigor extremo o carter desumanizado e de- sumanizante da relacdo mercantil. 2 Essa objetivacio racional encobre sobretudo 0 ca- rater imediato, concreto, qualitativo e material de todas as coisas. Quando os valores de uso aparecem, sem ex- cegio, como mercadorias, eles adquirem uma nova ob- jetividade, uma nova substancialidade que nao tinham na época da troca meramente ocasional, em que sua substancialidade origindria e propria é destruida, de- saparece. “A propriedade privada”, diz Marx's, “alie- 16. Marx visa sobretudo a propriedade privada capitaista. Dewische deologie, Sankt Max, MEW 3, p.212. Na seqiéncia dessa observacio encon- tram-se as belas notas sobre a inclusio da estrutura da retificagio na lin- .guagem. Do ponto de vista do materialismo hist6rico, um estudo filos6fico «que partsse dessa premissa poderia conduzira resultados interessantes. 210 (GEORG LUKACS na ndo somente a individualidade dos homens, mas também a das coisas, O solo nao tem nada a ver com a renda fundidria, nem a maquina com o lucro. Para 0 proprietério fundidrio, o solo é sindnimo de renda; ele aluga suas terras e recebe a renda, uma qualidade que 0 solo pode perder sem perder nenhuma de suas pro- priedades inerentes, como uma parte de sua fertilida- de, por exemplo, que é uma qualidade cuja medida, ou seja, existéncia, depende de condicées sociais, que sA0 criadas e destruidas sem intervengao do proprietario fundiério individual. O mesmo ocorre com a maqui- na.” Se, portanto, o proprio objeto particular que o ho- mem enfrenta diretamente, enquanto produtor ou con- sumidor, 6 desfigurado em sua objetivagao por seu ca- rater de mercadoria, é evidente que esse proceso deve entio intensificar-se na proporgdo em que as relacdes que o homem estabelece com os objetos enquanto ob- jetos do processo vital em sua atividade social forem mediadas. Obviamente, é impossivel analisar aqui toda a estrutura econdmica do capitalismo. Temos de nos contentar com a constatagéo de que o desenvolvimen- to do capitalismo moderno nao somente transforma as relacdes de produgao conforme sua necessidade, mas também integra no conjunto do seu sistema as formas do capitalismo primitivo que, nas sociedades pré-ca- pitalistas, levavam uma existéncia isolada e separada da produgio, ¢ as converte em membros do processo doravante unificado de capitalizacdo radical de toda a sociedade (capital mercantil, fungao do dinheiro como tesouro ou como capital financeiro etc.). Embora essas formas do capital estejam objetivamente submetidas a0 processo vital proprio do capital, a extracao da mais- HISTORIAE CONSCIENCIA DE CLASSE 211 valia na propria produgio, elas s6 podem ser compreen- didas, portanto, a partir da esséncia do capitalismo in- dustrial, mas aparecem, na consciéncia do homem e da sociedade burguesa, como formas puras, verdadeiras e auténticas do capital. Para a consciéncia reificada, es- sas formas do capital se transformam necessariamente nos verdadeiros representantes da sua vida social, jus- tamente porque nelas se esfumam, a ponto de se torna- rem completamente imperceptiveis e irreconheciveis, as relacées dos homens entre si e com os objetos reais, destinados a satisfacdo real de suas necessidades. Tais, relagGes so ocultas na relacéo mercantil imediata. O caréter mercantil da mercadoria, 0 modo quantitativo e abstrato da calculabilidade aparecem aqui sob sua forma mais pura. Sendo assim, para a consciéncia rei- ficada, esta se torna, necessariamente, a forma de mai festacao do seu proprio imediatismo, que ela, enquanto consciéncia reificada, ndo tenta superar. Ao contrério, tal forma tenta estabelecer e eternizar esse imediatis- mo por meio de um “aprofundamento cientifico” dos sistemas de leis apreensiveis. Do mesmo modo que 0 sistema capitalista produz e reproduz a si mesmo eco- némica e incessantemente num nivel mais elevado, a estrutura da reificacao, no curso do desenvolvimento capitalista, penetra na consciéncia dos homens de ma- neira ceda vez mais profunda, fatal e definitiva. Marx descreve freqiientemente essa elevacio do poder da reificacio com argiicia. Contentemo-nos com um exem- plo”: “No capital portador de juro, esse fetiche automé- tico esti, portanto, em evidéncia em sua forma mais ‘V7. Kapital 11,1, MEW 25, p. 405. 212 GEORG LUKACS pura, valor que valoriza a si mesmo, dinheiro que gera filhos e nao traz mais, sob essa forma, nenhuma marca de nascenga. A relacdo social é completada como rela- ao de uma coisa, do dinheiro, consigo mesma. Em vez da transformacao real do dinheiro em capital, vemos aqui apenas sua forma desprovida de contetido (...] Sendo assim, criar valor, dar juros como a macieira da macs, tornou-se inteiramente uma propriedade do di- nheiro. E aquele que empresta seu dinheiro o vende como algo que traz rendimento. Isso ndo basta. O capi- tal efetivamente ativo, como vimos, apresenta-se de tal modo que faz render o juro nao como capital ativo, mas como capital em si, como capital financeiro. Isso tam- bém se inverte: enquanto o juro é apenas uma parte do lucro, isto €, da mais-valia que 0 capital ativo extrai do trabalhador, 0 juro aparece desta vez, inversamente, como 0 verdadeiro fruto do capital, como a realidade primitiva, eo lucro, transformado entao em forma de ga- nho do empresério, aparece como um simples acess6rio esuplemento que se adiciona no decorrer do processo de reprodugio. Nesse caso, a forma fetichista do capital e a representacao do fetiche do capital sao completadas. Na formula D-D?, temos a forma nao-conceitual do ca- pital, a inversao e a coisificacao das relagoes de produ- cao na mais alta poténcia: a forma portadora de juro, forma simples do capital que tem como condicéo de sua pr6pria reproducav a capacidade do dinheiro, ow seja, da mercadoria, de valorizar seu proprio valor, in- dependentemente da reprodugao — mistificacao do ca- pital sob sua forma mais gritante. Para a economia vul- gar, que quer representar o capital como fonte auto- noma e de criagdo do valor, essa forma é naturalmente HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 213 abencoada, pois nela a fonte do juro nao é mais reco- nhecida, nela o resultado do processo capitalista de pro- dugao - separado do préprio proceso ~ adquire uma existéncia auténoma.” E, do mesmo modo como a teoria econdmica do capitalismo se mantém nesse imediatismo que ela pro- pria criou, nela também se mantém as tentativas bur- guesas de tomar consciéncia do fenémeno ideolégico da reificacdo. Até mesmo os pensadores que nao que- rem negar ou camuflar o fenémeno e que, de certo mo- do, esto cientes de suas conseqiiéncias humanas de- sastrosas, permanecem na andlise do imediatismo da reificacao e nao fazem nenhuma tentativa para superar s formas objetivamente mais derivadas, mais distan- ciadas do proceso vital proprio do capitalismo, por- tanto, mais exteriorizadas e vazias, para penetrar no fenémeno originario da reificagao. Além do mais, des- tacam essas forcas de manifestacao vazias do seu terre- no natural capitalista, tornando-as autonomas e eternas, como um tipo intemporal de possibilidades humanas de relagies. (Essa tendéncia se manifesta mais clara- mente no livro de Simmel, A filosofia do dinheiro, um tra- balho muito perspicaz e interessante em seus detalhes.) Dao uma simples descricao desse “mundo enfeitica- do, invertido e as avessas, em que Monsieur le Capital e ‘Madame la Terre assombram como caracteres sociais e, ao mesmo tempo, como simples objetos”'8. Mas, des- se modo, nao vao além da simples descricdo, e seu “aprofundamento” do problema gira em torno de for- mas exteriores de manifestacdo da reificacao. 18, Ibid. IM, 1, MEW 25, p. 838. 24 GEORG LUKACS Essa separacdo entre os fendmenos da reificagéo ¢ © fundamento econémico de sua existéncia, a base que permite compreendé-los, ainda é facilitada pelo fato de que esse processo de transformacao deve necessa- riamente englobar o conjunto das formas de manifesta- do da vida social, para que sejam preenchidas as con- digdes de uma produgio capitalista com pleno rendi mento. Assim, 0 desenvolvimento capitalista criou um sistema de leis que atendesse suas necessidades e se adaptasse A sua estrutura, um Estado correspondente, entre outras coisas. A semelhanca estrutural é, de fato, lao grande que nenhum historiador realmente perspi- az do capitalismo moderno poderia deixar de consta- tala. Max Weber"? descreve o principio fundamental desse desenvolvimento da seguinte maneira: “Ambos sio, antes, bastante similares em sua esséncia funda- mental. O Estado moderno, de um ponto de vista socio- l6gico, é uma ‘empresa’ tal como uma fabrica; é justa- mente o que tem de especifico no ambito histérico. E as relagdes de dominacao na empresa também estao, nos dois casos, submetidas a condigdes da mesma espé- cie. Do mesmo modo como a relativa autonomia do ar- tesdo ou industrial domiciliar, do camponés proprieté- rio, do comandatério, do cavaleiro e do vassalo baseava- se no fato de que eram proprietérios dos instrumentos, das reservas, dos meios financeiros, das armas, com 0 19. Gesammelte politische Schriften, Miinchen, 1921, pp. 140-2. We- ber remete & evolucio do direito inglés, mas isso nao diz respeito ao ‘nosso problema, Sobre o estabelecimento gradual do principio do céleu: Jo econdmico, ef. também Alfred Weber, Standort der Industrie, especial- mente p. 216. HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 215 auxilio dos quais realizavam sua fungao econdmica, po- litica e militar, e da qual viviam enquanto a cumpriam, a dependéncia hierarquica do operario, do balconista, do empregado técnico, do assistente de um instituto uni- versitario e do funciondrio do Estado e de um soldado tem o mesmo fundamento, a saber: os instrumentos, as reservas e os meios financeiros, indispensaveis tanto A empresa quanto a vida econdmica, estéo nas maos do empresério, num caso, e do chefe politico, no outro.” Max Weber também acrescenta a essa descrigéo, muito justamente, a razdo e o significado social desse fendme- no: “A empresa capitalista moderna baseia-se interna- mente sobretudo no cilculo, Para existir, ela precisa de uma justica e de uma administracao, cujo funcionamen- to também possa ser, pelo menos em principio, calcula- do racionalmente segundo regras gerais sélidas, tal como se calcula 0 trabalho previsivel efetuado por uma md- quina. Sua capacidade de tolerar ...] um julgamento mi- nistrado pelo juiz conforme seu senso de justica nos ca- 50s parliculares ou conforme outros meios e principios irracionais de criagao juridica [...] 6 tao fraca quanto a de suportar uma administragdo patriarcal que procede a seu bel-prazer e por misericérdia e, quanto ao resto, conforme uma tradigio inviolavelmente sagrada mas irracional [...]. Em oposicdo as formas muito antigas da aquisigio capitalista, é espectfico do capitalismo moder- no 0 falo de que organizagao estrilamente racional do trabalho, no ambito de uma técnica racional, nao surgiu nem poderia surgir em parte alguma no seio de siste- mas politicos construidos também de forma irracional. Pois essas formas modernas de empresa, com seu capi- tal fixo e seus cdlculos exatos, sao muito sensiveis as ir- 216 GEORG LUKACS racionalidades do direito e da administracao para que tornem possiveis. S6 poderiam surgir onde o juiz, .] como no Estado burocratico, com suas leis racio- nais, fosse mais ou menos distribuidor automatico de pardgrafos, nos quais os documentos com os custos € 08 honorérios fossem inseridos por cima, para que ele vomite por baixo a sentenca com consideragdes mais ‘ou menos sélidas, e cujo funcionamento, portanto, fos- se em geral calculdvel.” Desse modo, 0 processo que ocorre aqui é muito semelhante ao desenvolvimento econémico mencio- nado acima, tanto em seus motivos como em seus efe tos. Aqui se efetua igualmente uma ruptura com os mé- todos empiricos, irracionais, que se baseiam na tradigio ¢ sio talhados subjetivamente na medida do homem que atua, e objetivamente na medida da matéria con- creta, na jurisprudéncia, na administracéo etc. Surge uma sistematizagao racional de todas as regulamenta- 6es juridicas da vida, sistematizacao que representa, pelo menos em sua tendéncia, um sistema fechado e que pode se relacionar com todos os casos possiveis e imaginaveis. Resta saber se esse sistema se encadeia internamente segundo vias puramente légicas, de uma dogmética puramente juridica, de acordo com a inter- pretagio do direito, ou sea pratica do juiz est destina- da a preencher as “lacunas” das leis. Mas isso nao faz: nenhuma diferenga para © nosso esforgo, que ¢ o de re- conhecer essa estrutura da objetivacdo juridica moderna. Pois, nos dois casos, o sistema juridico é formalmente capaz de ser generalizado, bem como de se relacionar com todos os acontecimentos possiveis da vida e, nessa relacio, ser previsivel e calculével. Mesmo 0 direito ro- HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 217 mano, enquanto desenvolvimento juridico que mais se assemelha a essa evolugao, mas que no sentido moderno é pré-capitalista, permaneceu, sob esse aspecto, ligado a0 empiico, ao concreto, ao tradicional. As categorias puramente sisteméticas, que eram necessdrias para que a regulamentacéo juridica pudesse ser aplicada univer- salmente ¢ sem disting4o, surgiu somente no desenvol- vimento moderno®. E é claro que essa necessidade de sistematizacao, de abandono do empirismo, da tradi- 40, da dependéncia material, foi uma necessidade do cAlculo exato?!. No entanto, essa mesma necessidade exige que o sistema juridico se oponha aos aconteci- mentos particulares da vida social como algo sempre acabado, estabelecido com precisao e, portanto, como sistema rigido. Certamente isso produz conflitos inin- terruptos entre a economia capitalista, que se desen- volve continuamente de modo revolucionario, e 0 sis- tema juridico rigido. Mas isso tem como conseqiiéncia apenas novas codificagées: 0 novo sistema tem, contu- do, de conservar em sua estrutura o carater acabado e rigido do antigo sistema. Surge, portanto, essa situa- do — aparentemente — paradoxal de que o “direito” das formas primitivas de sociedade, quase nao altera- do durante séculos e por vezes milénios, tem um caré- ter fluido, irracional, que sempre renasce nas decisbes juridicas, enquanto o direito moderno, subvertido de maneira tempestuosa e realmente constante, mostra uma esséncia rigida, estatica e acabada. Todavia, o pa radoxo demonstra ser aparente, quando consideramos 20. Max Weber, Wirtschaft und Gesellschaft, p. 491. 21. bid, p.129, 218 GEORG LUKACS que resulta simplesmente do fato dea mesma situagio ser examinada uma vez. do ponto de vista do historiador (cujo ponto de vista situa-se sistematicamente “fora” do proprio desenvolvimento), ¢ outra do ponto de vis- ta do sujeito participante, do ponto de vista da influén- cia da ordem social em questao sobre sua consciéncia. Com esse discernimento, podemos ver claramente que a oposicao entre o artesanato tradicionalmente empirico ea fabrica cientificamente racional se repete em outro dominio: a técnica de produgio moderna em transfor- maco ininterrupta confronta-se, em cada etapa particu- lar de seu funcionamento, como sistema fixo e acabado, com cada produtor, enquanto a producfo artesanal tra- dicional, relativamente estével de um ponto de vista ob- jetivo, preserva na consciéncia de cada individuo que o exerce um carater fluido, continuamente renovador € produzido pelos produtores. Isso nos permite constatar com evidéncia o cardter contemplativo da atitude capita- lista do sujeito. Pois a esséncia do célculo racional se ba- seia, em tiltima andlise, no reconhecimento e na previ- so do curso inevitavel a ser tomado por determinados fendmenos de acordo com as leis ¢ independentemente do “arbitrio individual”. O comportamento do homem esgota-se, portanto, no célculo correto das oportunida- des desse curso (cujas “leis” ele ja encontra “prontas”), na habilidade de evitar os “acasos” perturbadores por meio da aplicagao de dispositivos de protecdo e medi- das defensivas (que se baseiam igualmente na conscién- cia e na aplicacao de “leis” semelhantes); muitas vezes, chega até mesmo a se deter no célculo das probabilida- des dos possiveis efeitos de tais “leis”, sem sequer ten- tar intervir no proprio processo pela aplicagao de outras HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 219 “Meis” (como nos esquemas de seguranga etc.). Quanto mais se considera essa situacao em profundidade e in- dependentemente das lendas burguesas sobre o cardter “criador” dos expoentes da época capitalista, tanto mais claramente aparece, em tal comportamento, a analogia estrutural com 0 comportamento do operério em rela- do a maquina que ele serve e observa, e cujo funciona- mento ele controla enquanto a contempla. O elemento “criador” 86 6 reconhecivel pelo grau de autonomia relativa ou de subserviéncia completa com que as “leis” sio aplicadas, isto é, até que ponto o comportamento puramente contemplativo é rejeitado. Mas a diferenca do trabalhador em relacao a cada maquina, do empre- sério em relacdo ao tipo dado de evolugéo mecanica, e do técnico em relagao ao nivel da ciéncia e da rentabi- lidade de suas aplicacdes técnicas, é uma variagéo pu- ramente quantitativa, e nao uma diferenca qualitativa na estrutura da consciéncia. Oproblema da burocracia moderna sé se torna ple- namente compreensfvel nesse contexto. A burocracia implica uma adaptacao do modo de vida e do trabalho e paralelamente também da consciéncia aos pressupos- tos socioecondmicos gerais da economia capitalista, tal como constatamos no caso do operario na empresa particular. A racionalizacao formal do direito, do Esta- do, da administracao etc. implica, objetiva e realmente, uma decomposicio semelhante de todas as fungdes so- ciais em seus elementos, uma pesquisa semelhante das leis racionais e formais que regem esses sistemas par- Giais, separados com exatidao uns dos outros, e subjeti- vamente implica, por conseguinte, repercussdes seme- Ihantes para a consciéncia, devidas a separagao entre 0 220 GEORG LUKACS trabalho e as capacidades e necessidades individuais daquele que o realiza; implica, portanto, uma divisto semelhante, racional e humana, do trabalho em relacao a técnica e ao mecanismo tal como encontramos na em- presa®. Trata-se nao somente do modo de trabalho in- teiramente mecanizado e “insensato” da burocracia subalterna, que se encontra extraordinariamente prd- xima do simples setvico da maquina e, muitas vezes, chegaa superé-la em vacuidade e uniformidade. De um lado, trata-se também da maneira cada vez mais for- mal e racionalista de lidar objetivamente com todas as questées de uma separagao continuamente crescente da esséncia qualitativa e material das “coisas” as quais se refere a atividade burocratica. Por outro, trata-se de uma intensificagdo ainda mais monstruosa da especia- lizagao unilateral na divisio do trabalho, que viola a esséncia humana do homem. A constatagéo de Marx acerca do trabalho na fabrica, segundo a qual “o pré- prio individuo é dividido, transformado em engrena- gem automitica de um trabalho fragmentado” e, des se modo, “atrofiado até se tornar uma anomalia”, veri- fica-se aqui de modo tanto mais evidente quanto mais elevados, avancados e “intelectuais” forem os resulta- dos exigidos por essa diviséo do trabalho. A separagéo da forca de trabalho e da personalidade do operério, sua metamorfose numa coisa, num objeto que o operd- 22, Se nesse contexto nto ressaltamos o cardter de classe do Esta do etc. i980 decorre de nossa intencio de conceber a reificago como fe- némeno fundamental, geal e estrutural de fada a sociedade burguesa. O ponto de vista de classe j interviera alifs no estudo da maquina. Cl ‘a esse respeito a terceira Sesto. HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 221 rio verde no mercado, repete-se igualmente aqui. Po- rém, coma diferenca de que nem toda faculdade men- tal 6 suprimida pela mecanizacao; apenas uma facul- dade ou um complexo de faculdades destaca-se do con- junto da personalidade e se coloca em oposigio a ela, tornando-se uma coisa, uma mercadoria. Ainda que os meios da selegdo social de tais faculdades e seu valor de troca material e “moral” sejam fundamentalmente diferentes daqueles da forca de trabalho (nao se deve esquecer, alids, a grande série de elos intermediérios, de transigies insensiveis), 0 fendmeno fundamental per- manece o mesmo. O género especifico de “probidade” ¢ objetividade burocraticas, a submissao necesséria e total do burocrata individual a um sistema de relagdes entre coisas, a idéia de que sao precisamente a sua “hon- ra” e 0 seu “senso de responsabilidade” que exigem dele semelhante submissac%, tudo isso mostra que a divisio do trabalho penetrou na “ética” ~ tal como, no taylorismo, penetrou no "psiquico”. Isso nao é, todavia, um abrandamento, mas, ao contrério, um reforgo da estrutura reificada da consciéncia como categoria fun- damental para toda a sociedade. Pois, enquanto 0 des- tino daquele que trabalha aparece como um destino iso- lado (como o destino do escravo na Antiguidade), a vida das classes dominantes pode desenrolar-se sob formas totalmente distintas. Foi o capitalismo a produzir pela primeira vez, com uma estrutura econ6mica unificada para toda a sociedade, uma estrutura de consciéncia ~ formalmente - unitéria para 0 conjunto dessa socieda- de. E essa estrutura unitéria exprime-se justamente pelo 23, Cf. a esse respeito Max Weber, Politische Schriften, p. 154. 222 GEORG LuKACS fato de que os problemas de consciéncia relacionados ao trabalhador assalariado se repetem na classe domi- nante de forma refinada, espiritualizada, mas, por ou- tro lado, intensificada. E 0 “virtuose” especialista, 0 vendedor de suas faculdades espirituais objetivadas e coisificadas, ndo somente se torna um espectador do devir social (ndo 6 possivel indicar aqui, mesmo que alusivamente, 0 quanto a administracao e a jurispru- déncia modernas revestem, em oposicao ao artesanato, 08 caracteres ja evocados da fabrica), mas também as- sume uma atitude contemplativa em relacdo ao funcio- namento de suas préprias faculdades objetivadas e coi- sificadas. Essa estrutura mostra-se em seus tragos mais grotescos no jornalismo, em que justamente a propria subjetividade, o saber, o temperamento ea faculdade de expresso tornam-se um mecanismo abstrato, indepen- dente tanto da personalidade do “proprietério” como da esséncia material e concreta dos objetos em ques- tdo, e que é colocado em movimento segundo leis prd- prias. A “auséncia de conviccdo” dos jornalistas, a pros- tituigdo de suas experiéncias e convicgdes sé podem ser compreendidas como ponto culminante da reificacao capitalista®. A metamorfose da relagéo mercantil num objeto dotado de uma “objetivacao fantasmética” nao pode, portanto, limitar-se A transformacao em mercadoria de todos os objetos destinados a satisfagao das necessida- des. Fla imprime sua estrutura em toda a consciéncia do homem; as propriedades e as faculdades dessa cons- 24. Cl. a esse respeito o ensaio de A. Fogarasi, Kommunismus. Ano U, n° 25/26, HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 223 ciéncia néo se ligam mais somente a unidade organica da pessoa, mas aparecem como “coisas” que o homem pode “possuir” ou “vender”, assim como os diversos ob- jetos do mundo exterior. Endo hd nenhuma forma natu- ral de relacao humana, tampouco alguma possibilidade para o homem fazer valer suas “propriedades” fisicas e psicoldgicas que nao se submetam, numa proporcao crescente, a essa forma de objetivagao. Basta pensar no casamento: é desnecessério remeter sua evolucio a0 século XIX, visto que Kant, por exemplo, exprimiu com clareza essa situago com a franqueza ingenuamente ci- nica dos grandes pensadores. “A comunidade sexual”, diz2®, “6 0 uso reciproco que um ser humano faz dos Orgaos e das faculdades sexuais de outro ser humano [..]. O casamento [...] a unido de duas pessoas de se- x0s diferentes em vista da posse recfproca de suas pro- priedades sexuais durante toda sua vida.” No entanto, essa racionalizagao do mundo, apa- rentemente integral e penetrando até o ser fisico e psi- quico mais profundo do homem, encontra seu limite no carter formal de sua propria racionalidade. Isto é, embora a racionalizacéo dos elementos isolados da vida eo conjunto de leis formais dela resultante se adaptem facilmente ao que parece constituir um sistema unitério de “leis” gerais para o observador superficial, o despre- zo pelo elemento concreto na matéria das leis, desprezo em que se baseia seu cardter de lei, surge na incoerén- cia efetiva do sistema de lei, no carter contingente da relacdo dos sistemas parciais entre si e na autonomia relativamente grande que esses sistemas parciais pos- 25. Metaphysik der Sitten, Parte I, § 24. 224 GEORG LUKAS suem uns em relacdo aos outros. Essa incoeréncia ma- nifesta-se de maneira bastante flagrante nas épocas de crise, cuja esséncia — vista do Angulo de nossas presen- tes consideragdes — consiste justamente no fato de que a continuidade imediata da passagem de um sistema parcial a outro se rompe, e de que sua interdependén- cia e o cardter contingente de suas inter-relag6es se im- poem subitamente a consciéncia de todos os homens. Por isso, Engels pode definir as “leis naturais” da economia capitalista como leis da contingéncia. No entanto, considerada mais de perto, a estrutu- ra da crise aparece como uma simples intensificacao, quantitativa e qualitativa, da vida cotidiana da socieda- de burguesa. Se a coesao das “leis naturais” dessa vida = que, no imediatismo cotidiano, desprovido de pen- samento, parece solidamente fechada~ pode sofrer uma ruptura repentina, isso 56 é possivel porque, mesmo no caso do funcionamento mais normal, a relagao dos seus elementos e dos seus sistemas parciais entre si é algo de contingente. Do mesmo moda, a ilusdo segundo a qual toda a vida social estaria submetida a leis “eter- nas e inflexiveis”, que certamente se diferenciam em di- versas leis especiais nos dominios particulares, deve ne- cessariamente revelar-se como o que realmente é, ou seja, contingente. A verdadeira estrutura da sociedade aparece, antes, nas leis parciais, independentes, racio- nalizadas ¢ formais, que s6 formalmente esto associa- das (isto é, suas interdependéncias formais podem ser sistematizadas formalmente); porém, quando se trata de uma realidade concreta, s6 podem estabelecer cone- 26. Ursprung der Familie, MEW 21, pp. 169 ss. HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 225 x6es. Os fendmenos econdmicos jé mostram essa inter- dependéncia quando so examinados um pouco mais de perto. Marx, por exemplo, ressalta ~e 0s casos men- cionados aqui devem, evidentemente, servir apenas pa- ra esclarecer metodologicamente a situagao, e ndo para representar uma tentativa, mesmo que superficial, de tratar a questdo em seu contetido ~ que “as condides de exploracao imediata e as de sua realizagio nao séo idénticas. Diferem nao somente em relagao ao tempo ¢ a0 lugar, mas também conceitualmente”””. Desse mo- do, nao ha “nenhum elo necessario, mas somente con- tingente, entre a quantidade global de trabalho social, que é aplicada a um artigo social”, e “a amplitude em que a sociedade procura satisfazer a necessidade apla- cada por esse artigo determinado”™, Evidentemente, estes so apenas alguns exemplos tomados ao acaso. Pois € claro que toda a estrutura da produgio capita- lista repousa sobre essa interacao entre uma necessi dade submetida a leis estritas em todos os fenémenos isolados e uma irracionalidade relativa do proceso como um todo. “A divisao do trabalho, tal como existe na manufatura, implica a autoridade absoluta do capi- talista sobre homens que constituem simples membros de um mecanismo de conjunto que lhes pertence; a di- visio social do trabalho opée produtores independen- tes de mercadorias, que nao reconhecem outra autori- dade 2lém daquela da concorréncia, da coergio exercida pela pressio dos seus interesses muituos.’® Isso por- 22. Kapital IH, 1, MEW 25, p. 254. 28. Ibid, pp. 196-7. 29. Ibid, 1, 1V, MEW 23, p. 377. 226 GEORG LuKAcs que a racionalizacdo capitalista, que se baseia no cél- culo econdmico privado, reclama em toda manifestagéo da vida essa relacdo mtitua entre o pormenor submeti- doa leis ea totalidade contingente; cla pressupde uma sociedade assim estruturada; produz e reproduz essa estrutura na medida em que se apossa da sociedade. Isso tem seu fundamento jé na esséncia do célculo es- peculador, da pratica econdmica dos possuidores de mercadorias, no estégio em que a troca de mercadorias se tornou universal. A concorréncia entre os diversos proprietarios de mercadorias seria impossivel se 8 ra- cionalidade dos fenémenos isolados correspondesse também uma configuracao exata, racional e funcional das leis para toda a sociedade. Para que um célculo racional seja possfvel, os sistemas de leis que regulam todas as particularidades de sua produgéo devem ser dominados por completo pelo proprietério de merca- dorias. As oportunidades de exploracio, as leis do “mer- cado” devem ser igualmente racionais, no sentido de que elas devem ser calculaveis e avaliadas segundo suas possibilidades. No entanto, ndo podem ser dominadas por uma “lei” como o sdo os fendmenos isolados, nao podem de modo algum ser organizadas racionalmente por inteiro. Por si s6, isso nao exclui, evidentemente, 0 predominio de uma “lei” sobre a totalidade. Contudo, essa “lei” deveria ser, de um lado, o produto “incons- ciente” da atividade autonoma dos proprietarios de mercadorias, que atuam sem depender uns dos outros, ou seja, uma lei das “contingéncias” que reagisse umas sobre as outras e nao a de uma organizac’o realmente racional. De outro, esse sistema de leis deve nao somen- te se impor aos individuos, mas ainda jamais ser inteira- HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 227 mente e adequadamente cognosctvel. Pois 0 conhecimento comple:o da totalidade asseguraria 20 sujeito desse co- nhecimento tal monopélio, que acabaria suprimindo a economia politica. Essa irracionalidade, esse “sistema de leis” ~ extre- mamente problematico — que regula a totalidade, que por principio e qualitativamente é diferente daquele que regu- Ta.as partes, é mais do que um postulado, do que uma condicéo de funcionamento para a economia capitalis- ta nessa problematica; 6, ao mesmo tempo, um produto da divisao capitalista do trabalho. Jé se ressaltou que essa divisio do trabalho desloca todo proceso organi- camente unitdrio da vida e do trabalho, decompde-no em seus elementos, para fazer com que essas fungdes parciais e artificialmente isoladas sejam executadas por “especialistas” adaptados a elas psiquica e fisicamente. No entanto, essa racionalizagio e esse isolamento das fungées parciais tm como conseqiiéncia necessaria 0 fato de cada uma delas se tornar auténoma e tender a perseguir por conta propria seu desenvolvimento e se- gundo a logica de sua especialidade, independente- mente das outras fungdes parciais da sociedade (ou dessa parte A qual ela pertence). Naturalmente, essa tendércia aumenta com a divisdo crescente do traba- Tho, cada vez mais racionalizada. Pois, quanto mais ela se desenvolve, mais se intensificam os interesses pro- fissionais e de status dos “especialistas’, que se tor- nam os portadores de tais tendéncias. E esse movimen- to divergente nao se limita as partes de um setor deter- minado. E ainda mais claramente perceptivel quando consideramos os grandes setores produzidos pela di- 228 GEORG LUKACS viséo social do trabalho. Engels® descreve da seguinte maneira esse processo na relacdo entre o direito e a eco- nomia: “O mesmo se passa com o direit sidade da nova diviséo do trabalho, que cria juristas profissionais, abre-se um novo setor auténomo que, nao obstante toda sua dependéncia geral em relagio a pro- dugao e ao comércio, possui também uma capacidade particular de reagir nesses setores. Num Estado moder- no, 0 direito deve nao somente corresponder a situacéo econémica geral e ser sua expresso, mas também ser uma expressio coerente em si mesma, que nao se deixa abalar por contradicées internas. E, para consegui-lo, reflete de maneira cada vez mais infiel as condices econémicas [...].” Sem diivida, ndo é necessério dar aqui outros exemplos de cruzamentos ¢ rivalidades en- tre os diversos “departamentos” da administracao (que se pense apenas na autonomia dos aparatos militares em relacao a administracao civil), das faculdades etc. com a neces 3. Com a especializacao do trabalho, perdeu-se toda imagem da totalidade. E como a necessidade de apreen- der a totalidade — ao menos cognitivamente - nao pode desaparecer, tem-se a impressao (e formula-se essa re- provacdo) de que a ciéncia, que trabalha igualmente dessa maneira, isto €, que permanece igualmente nes- se imediatismo, teria despedacado a totalidade da rea- 30, Carta a Konrad Schmidt, 27/10/1890. MEW 37, p. 491 HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 229 lidade, teria perdido o sentido da totalidade por forga da especializacao. Em resposta as afirmagies de que “os varios aspectos nao sao tratados em sua unidade”, Marx®* enfatiza com razao que essa critica é concebida “como se fossem os manuais a imprimir essa separa- cao na realidade, e ndo a realidade a imprimi-la nos manuais”. Embora essa censura mereca ser rejeitada em sua forma ingénua, ela se torna inteligivel quando, por um momento, consideramos a partir do exterior, nao do ponto de vista da consciéncia reificada, a ativi- dade da ciéncia moderna, cujo método é, tanto socio- l6gica quanto imanentemente, necessério e, portanto, “comp:eensivel”. Tal consideracao revelard, sem cons- tituir uma “critica”, que quanto mais uma ciéncia mo- derna for desenvolvida, quanto mais ela alcangar uma visdo met6dica ¢ clara de si mesma, tanto mais voltard as costas aos problemas ontolégicos de sua esfera e os eliminaré resolutamente do dominio de conceitualiza- Gao que forjou. ‘Quanto mais desenvolvida e cientifica ela for, maior 6 sua probabilidade de se tornar um sistema formal- mente fechado de leis parciais e especiais, para o qual o mundo que se encontra fora do seu dominio sobretu- do a matéria que ela tem por tarefa conhecer, ou seja, seu provrio substrato concreto de realidade, passa sistema- tica e fundamentalmente por inapreensivel. Marx’? for- mulow essa questo com acuidade para a economia, a0 explicer que “o valor de uso, enquanto valor de uso, es- td além da esfera de investigagao da economia politica”. 31. Zur Kritik der pottscken Okonomie, MEW 13, p. 621 32. [bid p16. 230 GEORG LUKACS E seria um erro acreditar que certas maneiras de colo- car a questo, como aquela da “teoria da utilidade mar- ginal”, sio capazes de transpor essa barreira. Quando se tenta partir de comportamentos “subjetivos” no mer- cado, ¢ nao de leis objetivas da producao e do movi- mento de mercadorias, que determinam o proprio mer- cado e os modos “subjetivos” de comportamento no mercado, apenas se desloca a questao para niveis ain- da mais derivados, mais reificados, sem suprimix 0 ca- réter formal do método, que, por principio, elimina os materiais concretos. O ato da troca em sua generalida- de formal, que para a “teoria da utilidade da marginal” permanece precisamente o fato fundamental, suprime igualmente o valor de uso enquanto valor de uso e cria, assim, essa relacdo de igualdade abstrata entre mate- riais concretamente desiguais e até mesmo inigualé- veis, dos quais nasce essa barreira. Desse modo, o su- jeito da troca é tao abstrato, formal e reificado quanto seu objeto. E os limites desse método abstrato e formal se revelam justamente pelo objetivo que ele se propde atingir: um “sistema de leis” abstrato, que a teoria da utilidade marginal coloca no centro de tudo, exata- menie como fizera a economia classica. A abstragao for- mal desse sistema de leis transforma continuamente a economia num sistema parcial fechado que, por um lado, nao € capaz nem de penetrar em seu proprio subs- trato material, nem de encontrar a partir dele a via para © conhecimento da totalidade social, e, por outro, com- preende essa matéria como um “dado” imutével e eter- no. Com isso, a ciéncia perde a capacidade de com- preender o nascimento e o desaparecimento, o carater social de sua propria matéria, bem como o das possi: HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 231 veis atitudes a seu respeito e a respeito do seu proprio sistema de formas. Novamente podemos observar com clareza a inti- ma interacéo entre 0 método cientifico, que nasce do ser social de uma classe, de suas caréncias e de sua ne- cessidade de dominar conceitualmente esse ser, e 0 pr6 prio ser dessa classe. J4 ressaltamos varias vezes, nes- tas e em outras paginas, que a crise é o problema que impée ao pensamento econdmico da burguesia uma barreira intransponivel. Se entdo considerarmos - cons- Gientes de nossa parcialidade ~ essa questo de um pon- to de vista puramente met6dico, veremos que quando consegiimos racionalizar integralmente a economia, metamorfosed-la num sistema de “leis” formal, abs- trato e matematizado ao extremo, constituimos a bar- reira metodolégica para a compreensio da crise. Nos perfodos de crise, 0 ser qualitativo das “coisas”, que Jeva sua vida extra-econdmica como coisa em si, in- compreendida e eliminada, ¢ como valor de uso que jul- gamos poder tranqiiilamente negligenciar durante 0 funcionamento normal das leis econdmicas, torna-se subitamente (para o pensamento racional e reificado) 0 fator decisivo. Ou melhor: seus efeitos se manifestam sob a forma de uma paralisacdo no funcionamento des- sas leis, sem que 0 entendimento reificado esteja em condigSes de encontrar um sentido nesse “caos”. E essa insuficiéncia ndo concerne apenas a economia clissica, (que s6 conseguiu perceber nas crises perturbagies “pas- sageiras” e “contingentes”, mas também ao conjunto da economia burguesa. O cardter incompreensfvel da cri- se e sua irracionalidade s4o, por certo, uma conseqiién- cia da situagao e dos interesses da classe burguesa, mas séo também, formalmente, a conseqiiéncia necesséria 232 GEORG LUKACs do seu método econémico. (Nao é necessario explicar detalhadamente que estes constituem para nés dois as- pectos de uma unidade dialética.) Essa necessidade re- lativa ao método ¢ tao forte que a teoria de Tugan-Ba- ranovski, por exemplo, ao resumir um século de expe- rigncias com as crises, tenta eliminar completamente da economia o consumo e fundar uma economia “pura”, ‘aseada somente na produgio. Em vista de tais tentati vas, que pensam entéo encontrar a causa das crises, cuja existéncia nao pode ser negada, na desproporcao dos elementos da produgio, isto é, nos aspectos puramen- te quantitativos, Hilferding® tem toda razao ao ressal- tar que “elas operam somente com os conceitos econd- micos de capital, de lucro, de acumulagio ete. e créem possuir a solucio do problema com a divulgagdo das relagdes quantitativas, com base nas quais é possivel a reprodugao simples e ampliada ou o aparecimento de perturbagoes. No entanto, elas ignoram 0 fato de que a essas relacdes quantitativas correspondem, ao mesmo tempo, condigdes qualitativas, de que a elas se opdem nao apenas somas de valores simplesmente comensu- raveis entre si, mas também valores de uso de uma es- pécie determinada e que devem preencher na produgéo eno consumo papéis determinados; ignoram também 0 fato de que, na andlise do processo de reprodugio, ha mais do que a oposicao entre partes de capital em geral, de modo que um excesso ou uma falta de capital indus- trial, por exemplo, possa ser ‘compensado’ por uma parte correspondente de capital financeiro, Também no se trata apenas de um capital fixo ou circulante, mas, 38, Finanzkapital, 2 edigdo, pp. 378-9. HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 233 a0 mesmo tempo, de maquinas, de matérias-primas, de forca de trabalho de um tipo inteiramente determi- nado (tecnicamente determinado), que devem estar disponiveis enquanto valores de uso desse tipo especi- fico, para evitar perturbagdes”. Marx* descreveu va- rias vezes, de maneira convincente, quao inadequados so esses movimentos de fendmenos econdmicos, que se exprimem nos conceitos de “lei” da economia bur- guesa, para explicar 0 movimento real do conjunto da vida econémica; essa barreira reside na impossibilida- de - inevitével quanto ao método - de compreender 0 valor de uso e 0 consumo real. “No interior de certos limites, 0 processo de reprodugio pode ter lugar no mesmo nivel ou num nivel ampliado, ainda que as mercadorias rejeitadas por ele néo tenham entrado realmente no consumo individual ou produtivo. O consumo de mercadorias nao esta inclufdo no circuito do capital de onde sairam. Tao logo o fio, por exem- plo, é vendido, o circuito do valor de capital represen- tado no fio pode recomecar, seja qual for o destino do fio vendido. Enquanto 0 produto se vende, tudo segue seu curso regular do ponto de vista do produtor capi- talista. O circuito do valor de capital que ele represen- ta ndo 6 interrompido. E se esse processo é ampliado — © que implica um consumo produtivo maior dos meios de produgio -, essa reproducao do capital pode vir acompanhada do consumo (portanto, de uma deman- da) individual maior dos trabalhadores, visto que esse processo é conduzido e mediado por um consumo produtivo. Sendo assim, a produgao da mais-valia e 0 34, Kapital TI, MEW 24, pp. 80-1 234 GEORG LUKAS consumo individual do capitalista crescem, todo 0 pro- cesso de producao encontra-se no estado de maior flo- rescimento e, no entanto, uma grande parte das merca- dorias passa apenas aparentemente para 0 consumo, enquanto, na realidade, nao é vendida pelos revende- dores e, de fato, ainda se encontra, portanto, no merca- do.” E preciso chamar a atencdo particularmente para © fato de essa incapacidade de penetrar no substrato material real da ciéncia nao ser imputével a indivi- duos. Ela 6, antes, algo que se torna cada vez mais evi- dente na medida em que a ciéncia evolui e trabalha com maior coeréncia a partir de suas proprias premis- sas. Nao , portanto, por acaso, como descreveu de ma- neira convincente Rosa Luxemburgo®, que a grandiosa concep¢ao de conjunto, embora bastante primitiva, de- ficiente e inexata, que ainda existia no Tableau économi- gue de Quesnay, sobre a totalidade da vida econdmica, desaparece cada vez mais no desenvolvimento que leva de Smith a Ricardo, com a exatidao crescente na elabo- ragao formal de conceitos. Para Ricardo, o processo de reproducdo total do capital nao é mais um problema central, ainda que esse problema nao possa ser evitado. Essa situacdo aparece ainda com mais clareza ¢ simplicidade na jurisprudéncia devido a sua atitude mais conscientemente reificada. Isso ocorre porque aqui a impossibilidade de conhecer o contetido qualitativo a partir da forma do célculo racionalizado nao adquintu a forma de uma concorréncia entre dois principios de “Akkumulation des Kapitals, 8 edigao, pp. 78-9, Seria urn traba: Iho fascinante elaborar a relagio entre o método desse desenvolvimen- to eodos grandes sistemas racionalistas. HISTORIAE CONSCIENCIA DE CLASSE 235 organizago no mesmo dominio (como 0 valor de uso eo valor de troca na economia politica), mas apareceu desde 0 inicio como um problema de forma e de con- tetido. A luta pelo direito natural e o periodo revolucio- nario de classe burguesa partem justamente do princi- pio de que a igualdade formal e a universalidade do di reito (sua racionalidade, portanto) esto em condigéo de determinar, ao mesmo tempo, seu contetido. Com- bate-se assim, de um lado, 0 direito diversificado, he- ter6clito e derivado da Idade Média, que se apéia nos privilégios, e, de outro, o monarca que se coloca além do direito. A classe burguesa revolucionaria recusa ver na existéncia de uma relacao juridica, em sua facticida- de, 0 fundamento de sua validade. “Queimai vossas leis e fazei leis novas”, aconselhava Voltaire. “De onde tirar novas leis? Da razio.”% Em sua maior parte, a Tuta cortra a burguesia revolucionéria na época da Re- volugac Francesa, por exemplo, encontrava-se tao for- temente dominada por esse pensamento, que esse di- reito natural s6 poderia se opor a outro direito natural (Burke e Stahl), Somente apés a vit6ria ao menos par- cial da Surguesia é que se manifesta nos dois campos uma concepgio “critica” e “hist6rica”, cuja esséncia pode ser resumida pela idéia de que o contetido do direito é algo puramente factual e nao pode, portanto, ser com- preendido pelas categorias formais do proprio direito. Das exigéncias do direito natural nao subsiste mais do que a idéia da continuidade completa do sistema formal do direito; significativamente, Bergbohm” nomeia tudo 36. Apud Bergbohm, jurisprudenz und Reckisphilosophie, p.170. 37. bid, p.375. 236 GEORG LUKAS 0 que nao é regulamentado juridicamente como “um v- cuo juridico”, usando um empréstimo da terminologia da fisica, Porém, a coesdo dessas leis ¢ puramente for- mal: 0 que exprimem, “o contetido das instituigdes ju- ridicas nunca é de natureza juridica, mas sempre de natureza politica e econdmica”**, Assim, a luta primi- tiva, cinicamente cética, levada contra o direito natural, que comega com o “kantiano” Hugo no fim do século XVIII, adquire uma forma “cientifica”. Entre outras coi- sas, Hugo® fundou com isso o carater juridico da es cravidao: “Durante séculos, ela foi realmente de direito entre milhdes de pessoas cultivadas.” Mas nessa fran- queza ingenuamente cinica transparece com clareza a estrutura que se torna cada vez mais caracteristica do direito na sociedade burguesa. Quando Jellinek desig- na 0 contetido do direito como metajuridico, quando os juristas “criticos” situam 0 estudo do contetido do direi- to na hist6ria, na sociologia, na politica etc. fazem ape- nas, em iiltima anélise, o que Hugo jé havia reclamado: renunciam metodicamente a possibilidade de fundar 0 direito na razao e de dar-lhe contetido racional; perce- bem no direito nada mais do que um sistema formal de célculo, com auxilio do qual podem ser calculadas as conseqiiéncias juridicas necessdrias de ages determi- nadas (rebus sic stantibus) com a maxima exatidao. Ora, essa concepgao do direito transforma o surgi- mento e o desaparecimento do direito em algo juridi- 38, Preuss, Zur Methode der juristischen Begrifsbildung. Schmollers Jakrbuck, 1900, p. 370. 39, Lehrbuch des Naturrechts. Berlim, 1799, § 141. A polémica de Marx contra Hugo (MEW I, pp.788s) coloca-se ainda de um ponto de vis- ta hegeliano. HISTORIAE CONSCIENCIA DE CLASSE 237 camente téo incompreensivel quanto a crise para a eco- nomia politica. Com efeito, Kelsen®, jurista “critico” e perspicaz, diz o seguinte a propésito do surgimento do direito: “E 0 grande mistério do direito edo Estado que se realiza no ato legislativo, e por isso se justifica o fato de que a esséncia desse ato se torna sensivel por ima- gens insuficientes.” Ou ainda, em outros termos: “ um fato caracteristico da esséncia do direito que mesmo uma norma nascida de maneira contréria a ele possa ser uma norma jurfdica; ou seja, a origem legitima de uma lei ndo pode ser inscrita no conceito de direito como uma de suas condigdes.”*! Esse esclarecimento epistemol6gico poderia ser factual e, por conseguinte, significar um progresso do conhecimento se, por um lado, o problema do surgimento do direito, deslocado para outras disciplinas, encontrasse nelas uma solucao e se, por outro, a esséncia do direito, que surge desse modo eserve simplesmente para calcular as conseqiién- cias de uma ago e para impor racionalmente modos de acdc derivados de uma classe, pudesse, ao mesmo tempo, ser realmente revelada. Pois, nesse caso, 0 subs- trato material e real do direito apareceria de um tinico golpe de maneira visivel e compreensfvel. Mas nenhum dos dois é possivel. O direito continua em ligacao es- treita com os “valores eternos”, o que da origem, sob a forma de uma filosofia do direito, a uma nova edicao, formalista e mais pobre, do direito natural (Stammler). Eo fundamento real da origem do direito, a modifica~ do das relades de poder entre as classes, tornam-se 40. Hauptprobleme der Stagtsreckisehre, p. 411 (itélico do autor). 41. F, Somlo, Juristische Grundlehre, p.177. 238 GEORG LUKACS confusos e desaparecem nas ciéncias que tratam do di- reito, nas quais - de acordo com as formas de pensa- mento da sociedade burguesa - nascem os mesmos pro- blemas da transcendéncia do substrato material que na jurisprudéncia e na economia politica A maneira como ¢ concebida essa transcendéncia mostra que seria vao alimentar a esperanca de que a coesdo da totalidade - a cujo conhecimento as ciéncias particulares renunciaram conscientemente ao se dis- tanciarem do substrato material do seu aparato con- ceitual — pudesse ser adquirida por uma ciéncia que, pela filosofia, incluisse todas. Isso seria possivel somen- te se a filosofia rompesse as barreiras desse formalis- mo mergulhado na fragmentagao, colocando a ques- to segundo uma orientacao radicalmente diferente e orientando-se para a totalidade material e concreta do que pode ser conhecido, do que é dado a conhecer. Para isso, no entanto, seria preciso revelar os fundamentos, a génese e a necessidade desse formalismo; desse mo- do, as ciéncias particulares especializadas nao pode- riam estar ligadas mecanicamente numa unidade, mas ser remodeladas, inclusive interiormente, pelo método filos6fico interiormente unificador. E claro que a filo- sofia da sociedade burguesa ¢ incapaz disso. Ndo que nao haja um desejo de sintese, nem pelo fato de os me- Ihores terem aceitado com alegria a existéncia mecani- vada ¢ hostil a vida e a ciéncia formalizada e estranha a vida. Mas uma modificagdo radical do ponto de vista é imposstvel no terreno da sociedade burguesa. Pode surgir como tarefa da filosofia (ver Wundt) uma tentativa para abarcar de maneira enciclopédica todo o saber. O va- lor do conhecimento formal em relacdo a “vida viva” HISTORIAE CONSCIENCIA DE CLASSE 239 pode, em geral, ser colocado em diivida (é 0 caso da fi- Josofia irracionalista, de Hamann até Bergson). Mas, a0 lado dessas correntes episédicas, o desenvolvimen- to filoséfico continua a ter como tendéncia fundamen- tal reconhecer 0s resultados e os métodos das ciéncias particulares como necessérios, como dados, e atribuir A filosofia a tarefa de desvendar e justificar a base da validade dos conceitos assim formados. A filosofia toma, assim, em relacio as ciéncias particulares, exata- mente a mesma posi¢do que estas em relagio a realida- de empirica. Na medida em que a conceituagao forma- lista das ciéncias particulares torna-se para a filosofia um substrato imutavelmente dado, afasta-se, definiti- vamente e sem esperanca, toda possibilidade de revelar a reificagio que esté na base desse formalismo. O mun- do reificado aparece doravante de maneira definitiva =e se exprime filosoficamente, elevado a segunda po- téncia, num exame “critico” — como o tinico mundo possivel, conceitualmente acessivel e compreensivel, que 6 dado a nés, os homens. Se isso suscita a transfigu- ragdo, a resignacdo ou o desespero, se eventualmente busca um caminho que leve a “vida” por meio de uma experiéncia mistica e irracional, em nada muda a natu- reza dessa situagao. Ao limitar-se a estudar as “posst- veis condicdes” da validade das formas nas quais se manifesta seu ser subjacente, o pensamento burgués fe- cha a via que leva a uma maneira de colocar os proble mas claramente, as questdes relativas ao surgimento e a0 desaparecimento, relativas a esséncia real e ao subs- trato dessas formas. Sua perspicdcia encontra-se cada ‘vez mais na situacdo dessa “critica” lendéria na india que, diante da antiga representagéo segundo a qual 0 240 GEORG LUKACS mundo repousa sobre um elefante, lancava a seguinte questo “critica”: sobre o que repousa o elefante? Mas, apés ter encontrado a resposta de que o elefante repou- sa sobre uma tartaruga, a “critica” sentiu-se satisfeita. E claro que, mesmo insistindo em semelhante questao “critica”, teria encontrado, quando muito, um terceiro animal maravilhoso, mas ndo teria feito aparecer a so- lugao da questdo real. IL. As antinomias do pensamento burgués A filosofia critica moderna nasceu da estrutura rei- ficada da consciéncia. Nessa estrutura, tém origem os problemas especificos dessa filosofia, que se distin- guem da problemdtica das filosofias anteriores. A filo- sofia grega constitui uma excegao, e nao é por acaso, pois 0 fendmeno da reificacao também desempenhou um papel na sociedade grega desenvolvida. Mas, cor- respondendo a um ser social totalmente diferente, a problematica e as solucdes da filosofia antiga s4o qua- litativamente diferentes daquelas da filosofia moder- na. Portanto, do ponto de vista de uma interpretacao adequada, é téo arbitrério imaginar descobrir em Pla- tao um precursor de Kant (como o faz Natorp, por exemplo), quanto empreender (tal qual Tomas de Aqui- no) a construgao de uma filosofia sobre Aristoteles, Se as duas empresas foram possiveis — ainda que de ma- neira arbitraria e inadequada -, isso se deve, de um lado, ao uso que fazem habitualmente épocas ulterio- res da heranca hist6rica transmitida, respondendo sem- prea objetivos préprios. De outro, essa dupla interpre- HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 241 tagio se explica precisamente pelo fato de que a filoso- fia grega, embora tenha conhecido os fendmenos da rei- ficacao, nao chegou a vivencid-los como formas uni- versais da totalidade do ser; pelo fato de que tinha um pé nessa e outro numa sociedade de estrutura “natu- ral”. Sendo assim, seus problemas podem ser utiliza- dos nas duas orientacdes da evolucao ~ ainda que com © auxilio de reinterpretagdes enérgicas. 1 Em que consiste essa diferenca fundamental? Kant? formulou-a claramente no preficio a segunda edicao da Critica da razio pura, ao empregar a célebre expres- so “revolucao copernicana”, que deve ser aplicada ao problema do conhecimento: “Até agora, admitiu-se que todo o nosso conhecimento deveria orientar-se de acor- do comos objetos [...] Tentemos, pois, por um momen- to, ver se nao progrediriamos melhor nas tarefas da metafisica, admitindo que os objetos devem orientar-se de acordo com o nosso conhecimentof...|.” Em outros termos, a filosofia moderna coloca-se 0 seguinte pro- blema: no mais aceitar 0 mundo como algo que sur- giu incependentemente do sujeito cognoscitivo (por exemplo, algo criado por Deus), mas concebé-lo, an- tes, como 0 préprio produto do sujeito. Pois essa revolu- co, que consiste em aprender 0 conhecimento racio- nal como um produto do espirito, nao vem de Kant, que se limitou a tirar suas conclusdes de maneira mais 42. Reclam, p.17 242 GEORG LUKACS radical que os seus predecessores. Marx} recordou, num contexto totalmente diferente, as palavras de Vico, segundo as quais “a histéria humana se distingue da hist6ria da natureza pelo fato de que uma foi feita por és, a outra, ndo”. Mas, por vias diferentes das de Vico, que sob varios aspectos somente mais tarde foi com- preendido e tornou-se influente, toda a filosofia mo- derna formulou esse problema. Do ceticismo relativo a0 método e do cogito ergo sum de Descartes, passando por Hobbes, Espinosa e Leibniz, 0 desenvolvimento segue um linha direta, cujo motivo decisivo e rico em variagdes 6 idéia de que 0 objeto do conhecimento s6 pode ser conhecido por nés porque e na medida em que é criado por nés mesmos*, Os métodos da mate- matica, da geometria, da construcao, da criagéo do ob- jeto a partir de condicdes formais de uma objetividade em geral e, depois, os métodos da fisica matemética, tornam-se, assim, os guias e as medidas da filosofia, do conhecimento do mundo como totalidade. ‘A razio ¢ 0 direito que levaram o entendimento hu- mano a compreender precisamente tais sistemas das for- mas como sua propria esséncia (em oposicao ao cardter "dado", estranho e incognoscivel dos contetidos des- sas formas) no emergem. Sao aceitos como evidentes. E 43. Kapital 1, MEW 23, p. 393, nota 89. 44, Cf. Tonnies, Hobbes, Leben und Lehre, e especialmente Ernst Cossirer, Das Erkenntnisproblem in der Philosophie und Wissenschaft der neueren Zeit. As constatagdes deste livro, is quais ainda voltaremos, 530 ppreciosas para nés, porque foram obtidas a partir de um ponto de vista, totalmente diferente e, no entanto, descrevem a mesma marcha de de- senvolvimento, a influéncia do racionalismo da matemética e das cién- cas “exatas” sobre a origem do pensamento moderno. HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 243, se essa aceitagéo se manifesta (como em Berkeley ou Hume) enquanto ceticismo, divida a respeito da ca- pacidade do “nosso” conhecimento em atingir resulta- dos universalmente validos, ou (como em Espinosa e Leibniz) enquanto uma confianga irrestrita na capaci- dade dessas formas de compreender a esséncia “ver- dadeira” de todas as coisas, isso tem importancia se- cundiria. Pois nao se trata para nés de tracar - nem mesmo em seu esboco mais grosseiro - uma histéria da filosofia moderna, mas simplesmente de descobrir de maneira indicativa 0 elo entre os problemas fundamen- tais dessa filosofia e 0 fundamento ontolégico do qual se destacam suas questdes e ao qual se esforcam por voltar para compreendé-los. No entanto, o carater desse ser se revela com igual clareza tanto naquilo que, para 0 pensamento cultivado nesse terreno, ndo constitui um problema, quanto no que representa um problema e na maneira como o representa; seja como for, 6 recomen- davel considerar esses dois momentos em sua intera- go. Se formulamos assim a questo, a equivaléncia ingénua e dogmatica (mesmo nos filésofos “mais criti- cos”) entre o conhecimento racional, formal e matemati- coe 0 conhecimento em geral, de um lado, ¢ 0 “nosso” conhecimento, de outro, aparece como o sinal caracte- ristico de toda essa época. Até mesmo o olhar mais su- perficial sobre a histria do pensamento humano ensi- na que nenhuma das duas equivaléncias é evidente em quaisquer circunstancias. Isso é ainda mais claro sobre- tudo nas origens do pensamento moderno, em que os combates intelectuais mais encarnigados deveriam ser travados contra o pensamento medieval, constituido de maneira totalmente diferente, até que o novo méto- 244 GEORG LUKAcs do eanova concepcao da esséncia do pensamento fos- sem efetivamente impostas. Esse combate nao pode, evidentemente, ser descrito aqui. Podemos, em todo caso, dar como sabido que seus temas foram a unifica- Gao de todos os fendmenos (em oposigao, por exemplo, a separacao medieval entre 0 mundo “sublunar” eo mundo “supralunar”), a exigéncia de uma ligacao cau- sal imanente em oposigio as concepgdes que procura- vam o fundamento dos fendmenos e seus elos fora de sua ligacdo imanente (astronomia contra astrologia etc.), a exigéncia de aplicagio de categorias racionais e ma- teméticas na explicagéo de todos os fenémenos (em oposicao a filosofia qualitativa da natureza, que conhe- ceu, ainda durante o Renascimento - Béhme, Fludd etc. -, um novo impulso e constituiu o fundamento do método de Bacon). Podemos igualmente dar como sa- bido que todo esse desenvolvimento filos6fico efetuou- se em constante interacdo com o desenvolvimento das Giéncias exatas, e este, por sua vez, interagia produtiva- mente com uma técnica que se racionalizava cada vez mais e com a experiéncia do trabalho na produgao®. Essas interdependéncias sao de uma importéncia decisiva para a questao que formulamos. Pois 0 “racio- nalismo” existiu nas mais diferentes épocas sob as mais diversas formas, no sentido de um sistema formal, cuja 45. Kapital I, MEW 23, p. 498. Cf. também Gott, particularmente quanto A oposigio em relacio & antiguidade, op. cit, pp. 238-45. Por isso, no se pode estender abstrata e anistoricamente 0 conceito de “raciona- lismo”, mas deve-se sempre determinar com precisio 0 objeto (o domi nio da vida) ao qual se refere e sobretudo aqueles objetos aos quais nao serrefere. HISTORIA © CONSCIENCIA DE CLASSE 245 unidadese orientava na diregio daquele aspecto do fend- meno que pode ser apreendido, produzido e, portanto, dominado, previsto e calculado pelo entendimento. Mas diferencas fundamentais intervém conforme os materiais a que esse racionalismo se aplica, conforme o papel que Ihe é atribuido no conjunto do sistema de conheci- mentos e objetivos humanos. O que hd de novo no racio- nalismo moderno € que ele reivindica para si - e sua rei- vindicagao vai crescendo ao longo do desenvolvimen- to ~a descoberta do principio da ligacao entre todos os fenémenos que se opdem a vida do homem na nature- zae na sociedade. Em contrapartida, todos os raciona- lismos enteriores nunca passaram de sistemas parciais. Os problemas “tiltimos” da existéncia humana persis- tem numa irracionalidade que escapa ao entendimento humano. Quanto mais tal sistema racional e parcial é ligado a essas questdes “iiltimas” da existéncia, mais, cruamente revela-se seu caréter simplesmente parcial de auxiliar e que ndo apreende a “esséncia”. £ o que se passa, por exemplo, com o método da ascese hindu's, minuciosamente racionalizado, capaz de calcular com precisio todos os efeitos e cuja “racionalidade” reside num elo direto e imediato do meio com o fim, com a experiéncia vivida, relativa a esséncia do mundo, in- teiramente além do entendimento. 46, Max Weber, Gesammelte Aufstze zur Religionssexologi I PP 165-70, Uma estrutura correspondents também pode ser encoatrada no desenvolvimento de todas a8 “ciéncas especializadas” na fndia: uma técnica muito desenvolvida no detathe, sem rlagSo com ume totalida- de raciona, sem tentatioa ce empreender a racionalizagto do todo eele- var as categorias raionais a categoriasuniversais Ibid, p. 527, 246 GEORG LuKAcS Vernos, portanto, que nao convém compreender 0 racionalismo de maneira abstrata e formal e fazer dele um principio supra-histérico, decorrente da esséncia do pensamento humano. Vemos, antes, que a diferenca entre uma forma que figura como categoria universal e outra aplicada simplesmente na organizagio de sis- temas parciais isolados com exatidao é uma diferenca 4qualitatioa. Ainda assim, a delimitagao puramente for- mal desse tipo de pensamento jé esclarece a correlagio necessaria entre racionalidade e irracionalidade, a ne- cessidade absoluta, para todo sistema racional formal, de confrontar-se com um limite ou com uma barreira de irracionalidade. No entanto, como no exemplo da ascese hindu, quando o sistema racional é pensado, desde o inicio e pela sua propria esséncia, como um sis- tema parcial, quando o mundo da irracionalidade que o envolve, que o delimita (isto é, nesse caso, a existén- cia humana terrestre e empfrica, indigna da racionali- zacao, por um lado, e 0 além inacess{vel aos conceitos racionais humanos, o mundo da redencao por outro), € representado como independente dele, como incon- dicionalmente inferior ou superior a ele, isso nao origi- na nenhum problema de método para 0 proprio siste- ma racional. Trata-se apenas de um meio para atingir um fim ndo racional. A situagio é totalmente diferente se 0 racionalismo reivindica a representagio do méto- do universal para o conhecimento da totalidade do ser. Nesse caso, a questao da correlagao necesséria com 0 principio irracional adquire uma importancia decisi- va, que dissolve e desintegra todo o sistema, £ 0 caso do racionalismo (burgués) moderno. HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 247 Essa problematica surge com mais clareza no sig- nificado curioso, multiplo e variegado que assume para o sistema de Kant o conceito todavia indispensavel da coisa em si. Tentou-se com freqiiéncia provar que a coi- sa em si preenche no sistema de Kant funges inteira- mente diferentes umas das outras. O que todas elas tem em comum é 0 fato de que cada uma representa um li- mite ou uma barreira a faculdade “humana”, abstrata, ¢ formal e racionalista da cognigao. Contudo, esses li- mites eessas barreiras parecem ser to diferentes entre si, que sua unificagao sob 0 conceito - certamente abs- trato e negativo ~ de coisa em si torna-se de fato com- preensfvel somente quando fica claro que o fundamen- to em iiltima andlise decisivo desses limites e dessas barreiras que se opdem a faculdade “humana’ de cog- nicdo é, a despeito da multiplicidade dos seus efeitos, um furdamento unitério. Em suma, esses problemas reduzem-se a dois grandes complexos que sio, aparen- temente, totalmente independentes um do outro e até mesmo opostos: em primeiro lugar, ao problema da ma- téria (no sentido l6gico e met6dico), & questdo do con- tetido dessas formas, com as quais “nés” conhecemos 0 mundo e podemos conhecé-lo porque nés mesmos 0 criamos; em segundo, ao problema da totalidade e ao da substancia tiltima do conhecimento, a questo dos objetos “iiltimos” do conhecimento, que séo necessé- rios para completar os diversos sistemas parciais numa totalidade, num sistema do mundo perfeitamente com- preendido. Sabemos que a Critica da razio pura nega re- solutamente a possibilidade de uma resposta ao segun- do grupo de questdes, que, na Dialética transcendental, chega a eliminé-las da ciéncia como questes falsamen- 248 GEORG LUKACS te formuladas”, Por certo nao é necessario explicar mais amplamente que a dialética transcendental gira sem- preem torno da questo da totalidade. Deus, a alma etc. jo apenas expresses mitol6gicas para o sujeito unité- rio, ou para o objeto unitario, da totalidade dos objetos do conkecimento, pensado como acabado (e completa- mente conhecido). A dialética transcendental, com sua separacio radical dos fenémenos e dos mimeros, rejei- ta toda pretensdo de “nossa” razao ao conhecimento do segundo grupo de objetos. Eles so compreendidos como coisas em si, em oposicao aos fendmenos cognosciveis. Sendo assim, 6 como se o primeiro complexo de questées, o problema do contetido das formas, nao tives- se nada a ver com esses temas. Sobretudo na versio que as vezes Kant oferece dela e segundo a qual “a faculdade de intuicdo sensorial (que fornece seus contetidos as formas do entendimento) é, propriamente falando, ape- nas uma receptividade, uma capacidade de ser afeta- da de certa maneira por idéias [...] A causa ndo senso- rial dessas idéias é totalmente desconhecida para nés, € por isso néo podemos intuf-la como objeto [...]” No entanto, podemos nomear a causa puramente inteligi- vel dos fenémenos em geral como objeto transcenden- tal, para “termos algo que corresponda a sensibilidade como receptividade”. Desse objeto € dito entdo “que ele 6 dado em si mesmo antes de toda experiéncia”. Con- 47. Kant encerra aqui a filosofia do século XVIII, Tanto 0 desen- vvolvimento que vai de Locke a Berkeley ea Hume quanto 0 do materia lismo francés, que se move na mesma diregio. Esté fora dos limites do nosso trabalho esbocar as etapas particulares das diversas diregGes as divergencias decisivas entre estes iltimos. 48, Kritik der reinen Vernunft, pp. 403-4. Cf. também pp. 330 ss HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 249 tudo, o problema do contetido dos conceitos vai muito mais longe que o da sensibilidade, ainda que nao seja necessério negar (como fazem de costume certos kan- tianos particularmente “criticos” e distintos) a estreita relacio existente entre esses dois problemas. Pois a irra- cionalidade, a impossibilidade, para 0 racionalismo, de desligar racionalmente o contetido dos conceitos, que reconheceremos logo em seguida como o problema ab- solutamente geral da légica moderna, mostra-se da ma- neira mais crua na questdo da relacdo entre o contetido sensorial e a forma racional e calculadora do entendi- mento. Enquanto a irracionalidade de outros conteti- dos é relativa e local, a existéncia, o modo de ser dos contetidos sensoriais permanecem um dado inextricé- vel”, Mas se o problema da irracionalidade se conclui na impossibilidade de penetrar em qualquer dado com © auxilio dos conceitos do entendimento ou de derivar de tais conceitos, esse aspecto da questao da coisa em si, que de inicio parecia se aproximar do problema me- tafisico das relaqdes entre “espirito” e “matéria”, assu- me um cariter totalmente diferente e decisivo do pon- to de vista l6gico e metédico®. A questdo é formulada 49, Feuerbach também assaciou o problema da transcendéncia absoluta da sensibilidade (pelo entendimento) & contradigao na existén- cia de Deus. “A prova da existéncia de Deus ultrapassa os limites da ra- Zio; isso §correto, mas no mesmo sentido em que a visio, a audigio eo olfato ultrapassam os limites da razao.” Das Wesen des Christentums, Re- clam p. 303. A respeito de semelhantes desenvolvimentos de pensa- mento em Kant e Hume, cl. Cassirer, op. ct, Il, p. 608, 50. A formulagao mais clara desse problema encontra-se em Lask: “Para a sabjetividade” (isto 6, para a subjetividade logica do julgamen- to), “a categoria em que a forma logica em geral se diferencia quando se trata de epreender pelas categorias algum material particular determi- 250 GEORG LuKAcs da seguinte maneira: 0s fatos empiricos (nao importa se eles sdo puramente “sensoriais” ou se seu cardter sen- sorial constitui simplesmente o ultimo substrato mate- rial de sua esséncia como “fatos”) devem ser aceitos como “dados” em sua facticidade ou esse cardter de dado se dissolve em formas racionais, isto é, deixa-se pensar como produzido pelo “nosso” entendimento? Mas, nesse caso, o problema torna-se crucial para a pos- sibilidade do sistema em geral. Kant ja havia colocado explicitamente o problema nessa direcao. Quando enfatiza varias vezes que a ra- zo pura nao tem condig6es de efetuar uma tinica pro- posicdo sintética e constitutiva do objeto, que, portanto, seus principios ndo podem ser obtidos “diretamente a partir de conceitos, mas sempre de modo indireto pela ligacao desses conceitos com algo de inteiramente con- tingente, a saber, a experiéncia possivel>”; quando essa idéia da “contingéncia inteligivel” , nao somente dos ele- mentos da experiéncia possivel, mas também de todas as leis que se referem a eles e os ordenam, é elevada, na Critica do jutzo, & categoria de problema central da sis- tematizacao, vemos, por um lado, que as duas funcdes limitadoras e aparentemente distintas da coisa em si (impossibilidade de apreender a totalidade a partir dos conceitos formados nos sistemas racionais parciais e a inracionalidade dos contetidos particulares dos concei- nado - ou, dito de outro modo, o material que constitui em toda parte 0 dominio material das categorias particulares — ndo é vidente, mas cons- titul, pelo contrrio, o objetivo de suas investigagbes.” Die Lehre vom Ur. teil, p. 162. BI. Op. cit, p. 56. HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 251 tos) representam apenas dois aspectos de um mesmoe iinico problema; por outro, que esse problema é efeti- vamente a questao central de um pensamento que ten- ta dar as categorias racionais um significado universal. Desse modo, 0 racionalismo como método universal faz nascer, necessariamente, a exigéncia do sistema, mas, a0 mesmo tempo, a reflexao sobre as condigées da pos- sibilidade de um sistema universal. Dito de outro mo- do, a questdo do sistema, se formulada conscientemen- te, mostra a impossibilidade de satisfazer a exigéncia assim colocada®. Pois 0 sistema no sentido do raciona- lismo - ¢ outro sistema seria uma contradigao em si - 56 pode ser 0 de uma coordenagao, ou antes, uma supra-or- denacao e uma subordinacao dos diversos sisternas par- Giais das formas (e no interior desses sistemas parciais, das formas particulares), onde essas relagdes podem sem- pre ser pensadas como “necessdrias”, isto é, como sendo visiveis a partir das préprias formas, ou pelo menos a partir do seu principio de constituicio, como “produzi- das” por elas; onde, portanto, o posicionamento correto do princfpio implica - tendencialmente — 0 posiciona- mento de todo o sistema determinado por ele, onde as conseqiiéncias esto contidas no principio e podem ser suscitadas, previstas e calculadas a partir deles. O desen- 52. Nao se pode discutir aqui o fato de que nem a filosofia grega (talvez com excecdo dos pensadores posteriores, como Proclo), mem a filosofia medieval chegaram a conhecer um sistema no sentido dado por nés; somente a interpretagdo moderna o compreendenesse sentido. (Oproblema do sistema surge na época moderna, com Descartes ¢ Espi- ‘nose, po: exemplo, , @ partir de Leibniz e Kant, torna-se cada vez mais ‘uma exigéncia metodolégica consciente 252 GEORG LuKAcs volvimento real do conjunto de conseqiiéncias pode mes- mo aparecer como um “processo infinito”, todavia essa limitagéo significa somente que nao estamos em condi- Go de contemplar de uma s6 vez o sistema em sua tota- lidade desdobrada; essa restrigéo nao muda em nada o principio da sistematizacao®. A idéia do sistema permite somente compreender por que a matemitica pura e apli- cada desempenhou constantemente para toda a filosofia moderna o papel de guia e de modelo de método. Pois a relagdo metédica de seus axiomas com os sistemas par- diais e os resultados desenvolvidos a partir deles corres- ponde exatamente a exigéncia que o sistema do raciona- lismo coloca para si mesmo, ou seja, a de que cada as- pecto do sistema possa ser produzido, previsto e calcula~ do exatamente a partir de seu princfpio fundamental. E claro que esse principio da sistematizacao nao po- de ser conciliado com o reconhecimento de uma “exis- téncia” qualquer, de um “contetido” que nao possa, por principio, ser derivado do principio da posigao da forma e deva, conseqiientemente, ser aceito tal como facticida- de. Ora, a grandeza, 0 paradoxo e a tragédia da filoso- fia classica alema consistem no fato de que ela nao faz desaparecer — como Espinosa ~ todo dado como ine- xistente por trés da arquitetura monumental das for- mas racionais criadas pelo entendimento, mas, pelo contrario, preserva no conceito o caréter irracional do dado inerente ao contetido desse conceito e se esforga, 53. A idéia de “entendimento infinito”, da intuigio intelectual ete, serve em parte para solucionar a dificuldade em termos epistemol6gi- ‘0s. No entanto, Kant jé havia percebido claramente que esse problema conduz aquele que vamos tratar. HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 253 todavia, superando essa constatacéo, para erigir 0 sis- tema. Mas jé se vé claramente, a partir do que foi ex- posto até aqui, o que significa o problema do dado para o sistema do racionalismo: é impossivel que o dado seja deixado em sua existéncia e em seu modo de ser, pois, nesse caso, permaneceria inelutavelmente “contingen- te’; ele tem de ser incorporado integralmente ao siste- ma racional dos conceitos do entendimento. A primeira vista, temos a impressdo de estar diante de um dilema totalmente insoliivel. A primeira alternativa é 0 conteti- do “irracional” se integrar totalmente ao sistema de conceitos. Este é fechado e deve ser construido para ser aplicavel a tudo, como se nao houvesse irracionalidade do contetido, do dado (se ela existir, seré no maximo enquanto tarefa no sentido indicado acima). Sendo as- sim, 0 pensamento recai no nivel do racionalismo dog- mitico e ingénuo: de qualquer maneira, ele considera a facticidade do contetido irracional do conceito como ndo-existente (mesmo que essa metafisica se cubra com a formula segundo a qual esse contetido é “irrelevante” para o conhecimento). A segunda alternativa é o siste- ma ser obrigado a reconhecer que 0 dado, o contetido, a matéria, penetram na elaboracao, na estrutura e nas re- lagbes das formas entre si; penetram, portanto, na estrutu- ado préprio sistema de maneira determinante®. Com isso, preciso renunciar ao sistema como sistema, ele 6 apenas um registro tao completo e uma descrigo tao bem or- 54, Mais uma vez, 6 Lask quem faz tal observagio com mais clare- za. CE. Logik der Philosophie, pp. 60-2. Mas ele ndo tira todas as conchi- shes de suas observacées, especialmente a da impossibilidade por prin- cipio do sistema racional, 254 GEORG LUKACS denada quanto possivel dos fatos, cuja coesdo, contudo, nao é mais racional, nao pode mais, portanto, ser siste- matizada, mesmo que as formas de seus elementos se- jam racionais’, Seria, porém, superficial permanecer nesse dilema abstrato, 0 que nao foi feito pela filosofia cléssica por nenhum instante. Ao levar ao extremo a oposigio 16- gica de forma e contetido, onde se encontram todas as oposicdes subjacentes a filosofia, ao manté-la como opo- sigdo e ao tentar, nao obstante, transpé-la sistematica- mente, a filosofia classica conseguiu superar suas prede- cessoras e derrubar os fundamentos do método dialéti- co. Sua persisténcia em construir um sistema racional, a despeito da irracionalidade, claramente reconhecida emantida como tal, do contetido do conceito (do dado), devia necessariamente agir de maneira met6dica no sentido de uma relativizagéo dinamica dessas oposi- Ges. Aqui também, ela foi por certo precedida pela ma- temdtica moderna como modelo de método. Os siste- mas influenciados pela matematica (particularmente © de Leibniz) apreendem a irracionalidade do dado como uma tarefa. Efetivamente, para o método da ma- temética, toda irracionalidade do contetido preexisten- te parece um estimulo para modificar e reinterpretar 0 sistema das formas, com 0 qual foram criadas as cor- relacGes até esse momento, de tal modo que o contet- 55. Pense-se, por exemplo, no método fenomenolégico de Hus- serl, em que, em tltima andlise, todo o dominio da logica 6 transforma- do numa “facticidade” de ordem superior. O proprio Husserl também. cchama esse método de puramente descritivo, Cf. Ideen zu einer reinen Phinomenologie, vol. 1do seu anuario, p. 113. HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 255 do, que a primeira vista aparecia como “dado”, mostra- se doravante como “produzido”. Com isso, a facticidade se resolve em necessidade, Por maior que seja o progres- so alcancado por essa concepsao da realidade em rela- ao ao periodo dogmitico (da “sagrada matemética”), nao se pode ignorar o fato de que o método da matema- tica trabalha com um conceito da irracionalidade espe- cialmente adaptado as suas exigéncias e homogéneo a elas (ac ser mediado por esse conceito, ele emprega uma nogao semelhante da facticidade e do ser). Seguramente, a irracionalidade (de posigao) do contetido conceitual também pode ser encontrada nesse caso, mas destina- se, desde o inicio - pelo método escolhido e pela manei- ra como € colocada =, a uma posicao téo pura quanto possivel e, portanto, a ser passivel de relativizagao™ Mas com isso é encontrado apenas 0 modelo de método, e nao o proprio método. Pois é claro que a irra- cionalidade do ser (tanto como totalidade quanto como substrato material “éltimo” das formas), a irracionalida- de da matéria 6 qualitativamente diferente daquilo que, com Maimon, chamamos de matéria inteligivel. Eviden- temente, isso nao poderia impedir a filosofia de tentar dominar também essa matéria com suas formas, segun- do 0 modelo do método matematico (método de cons- truco, de produgao). Porém, jamais se deve esquecer 56, Essa tendéncia fundamental da filosofia leibniziana assume juma forma acabada na filosofia de Maimon como dissolugio do pro- blema dé coisa em si e da “contingéncia inteligivel”, o que tera uma in- fluencia decisiva sobre Fichte e, por intermédio dele, nos desenvolvi ‘mentos posteriores. © problema da irracionalidade da matematica é ‘tratado da maneira perspicaz no ensaio de Rickert, ‘Das Fine, die Finheit ‘und das Eins”, Logos, III. 256 GEORG LUKACS que essa “producio” ininterrupta do contetido tem para a matéria do ser um significado bastante diferente do que para o mundo da matematica, que se baseia comple- tamente na construgio; que a “produgéo” significa aqui apenas a possibilidade de compreender os fatos racional- mente, enquanto na matemética a producio e a possi bilidade de compreensao coincidem por completo. Em sua fase intermediéria, Fichte viu esse problema com mais nitidez, do que todos os representantes da filoso- fia classica e foi quem o formulou com mais clareza. Trata-se, diz ele”, “da projecao absoluta de um objeto, de cujo surgimento néo se pode prestar conta, e que con- tém, por conseguinte, uma obscuridade e um vazio no cen- tro entre a projegdo e o projetado, conforme ja expressei de maneira um pouco escoléstica mas, acredito, muito sig- nificativamente, com a projectio per hiatum irrationalem’” Somente essa problematica permite compreender a divergéncia dos caminhos tomados pela filosofia mo- derna e as épocas mais importantes de seu desenvol- vimento. Antes dessa doutrina da irracionalidade, a época do “dogmatismo” filoséfico ou, em termos de hist6ria social, a época em que o pensamento da classe burguesa equiparava ingenuamente suas formas de pensamento, as formas com as quais ela devia pensar © mundo conforme seu ser social, com a realidade e o 57. “Die Wissenshaltsichre von 1804", XV. Vortrag, Werke (Nova dicho) IV, p. 28, grifado por mim, Essa maneira de formular a proble- ‘mitica permanece, mais ou menos claramente, a mesma da filosofia “cri tica” posterior. Ela se exprime com a méxima clareza e em Windelband, quando cle determina o ser como “independéncia do contetido em rel ‘io A forma”. Na minha opinido, seus criticos apenas embaralharam seu paradoxo, sem contudo resolver o problema que nele se encontra. HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 257 ser. O reconhecimento incondicional desse problema e a remincia em superé-lo conduziram diretamente as di- versas formas da doutrina da ficgdo: recusar toda “me- tafisica’ (no sentido de ciéncia do ser), fixar como ob- jetivo a compreensao dos fendmenos de setores par- ciais, particularizados e altamente especializados, com © auxilio de sistemas parciais, abstratos e de célculo que Ihes sejam perfeitamente adaptados, sem, a partir disso, tentar sequer dominar de maneira unitéria a to- talidade do saber possivel (na verdade, tal tentativa é rejeitada por ser considerada “nao cientifica”). Essa re- niincia exprime-se claramente em certas orientacdes (Mach e Avenarius, Poincaré, Vaihinger etc.); em mui- tas outras, aparece de forma velada. Mas nao se deve esquecer que o surgimento das ciéncias particulares, se- paradas com precisdo umas das outras, especializadas ¢ inteixamente independentes entre si, tanto por seu objeto como por seu método, jé significa — como mos- tramos no fim da primeira parte — 0 reconhecimento do carater insoltivel desse problema. Cada ciéncia parti- cular busca sua “exatidao” precisamente nessa fonte. Ela deixa repousar em si mesma, numa irracionalida- de intocada (“néo-criagao”, “dado”, 0 substrato mate- rial que subjaz em seu fundamento tiltimo, para poder operar, sem obstculos, num mundo fechado - torna- do metodologicamente puro — com categorias racio- nais de facil aplicagio e que nao s4o mais empregadas no substrato realmente material (mesmo no da ciéncia particular), mas numa matéria “inteligivel”. A filoso- fia, de maneira consciente, nao interfere nesse traba- tho das ciéncias particulares. Ela chega até a considerar essa rentincia como um progresso critico. Seu papel se limita, assim, ao estudo 258 GEORG LUKACS das condig6es formais de validade das ciéncias parti- culares, que nao sofrem interferéncias nem corregies. E 0 problema contornado por esas ciéncias no pode mais encontrar solucao na filosofia, nem mesmo ser for- mulado por ela. Quando ela remonta aos pressupos- tos estruturais da relacdo entre forma e contetdo, ou cla transfigura o método “matematizante” das ciéncias particulares em método da filosofia (Escola de Marbur- 0°), ou destaca a irracionalidade do contetido mate- rial, no sentido légico, como fatos “iiltimos” (Windel- band, Rickert, Lask). Mas, em ambos os casos, assim que 6 feita a tentativa de uma sistematizacdo, o problema nao resolvido da irracionalidade manifesta-se no proble- ma da totalidade. O horizonte que encerra a totalidade aqui criada e suscetivel de ser criada é, no melhor dos casos, a cultura (isto é, a cultura da sociedade burgue- sa) como algo que nao pode ser derivado, que deve ser aceito como tal, como “facticidade” no sentido da filo- sofia classica®. Seria ir muito além dos limites deste trabalho in- vestigar em detalhes as diferentes formas dessa rentin- cia a conceber a realidade efetiva como um todo e como 58. A critica das orientagées filoséficas particulares ndo 6 tratada aqui. Portanto, cito apenas como exemplo da exatiddo desse esbogo a reincidéncia (que em termos de método pertence ao periodo pré-critico) no direito natural, que pode ser observada - em sua esséncia, ndo na terminologia ~ em Cohen e em Stammler, cujo pensamento esta rela- cionado ao da Escola de Marburgo. 59, Richert, um dos representantes mais coerentes dessa orienta ‘gio, atribui aos valores culturais que fundamentam a historiografia um. ‘ariter puramente formal, e éjustamente o que esclarece toda a situacéo. A esse respeito, cf. terceira seco. HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 259 ser, Nosso objetivo é apenas mostrar 0 ponto em que essa dupla tendéncia do seu desenvolvimento se impée filosoficamente o pensamento da sociedade burguesa: ela domina cada vez mais os detalhes da sua existén- cia social, submete-os as formas das suas necessidades, mas, ao mesmo tempo, perde, de maneira igualmente progressiva, possibilidade de dominar intelectualmen- te a sociedade como totalidade e, desse modo, a sua vocacao para lideré-la. A filosofia classica alema marca uma transicdo original nessa evolucio: ela surge numa etapa co desenvolvimento da classe em que esse pro- cesso jé progrediu de tal modo que todos esses proble- mas podem ser elevados ao nivel da consciéncia en- quanto problemas. No entanto, ao mesmo tempo, ela surge rum meio em que os problemas s6 podem inter- vir na consciéncia como problemas puramente intelec- tuais e filos6ficos, Por um lado, é verdade, isso impede de ver 0s problemas concretos da situagao historica e 0 meio concreto de sair deles, mas, por outro, isso per- mite a ‘ilosofia classica pensar exaustivamente nos pro- Dlemas mais significativos do desenvolvimento da so- ciedade burguesa no plano filos6fico; permite-Ihe ain- da completar ~ em pensamento ~ 0 desenvolvimento da classe, impelir - em pensamento — ao seu ponto mais, agudoo conjunto de paradoxos da sua situacao e, dessa mancira, perceber, pelo menos como problema, o pon- to em que a superacao dessa etapa hist6rica no desen- volvimento da humanidade se revela necessdria quan- to ao método. 260 GEORG LUKACS 2 No entanto, esse estreitamento do problema no plano do puro pensamento, ao qual a filosofia classica deve sua riqueza, sua profundidade, sua audédcia e sua fecundidade para 0 futuro do pensamento, significa, a0 mesmo tempo, uma barreira intransponivel, mesmo no plano do puro pensamento. Em outros termos, a filo- sofia classica, que dissipou impiedosamente todas as ilusdes metafisicas da época precedente, tinha de proce- der em relagio a alguns dos seus préprios pressupostos com a mesma falta de critica e de maneira t4o metafisi- ca e dogmiatica como suas predecessoras. Jé fizemos alusio a este ponto: a aceitacéo dogmatica do modo de conhecimento racional e formalista como a vinica ma- neira possivel (ou, para expressar-se a maneira critica, tinica possivel para “nés”) de aprender a realidade, em oposicao aos dados estranhos a “nds” que so os fatos. Como demonstramos, em seu esforgo para domi- nara totalidade do mundo como autoproducao, a con- cepgio grandiosa, segundo a qual o pensamento pode compreender apenas 0 que ele mesmo produziu, esbar- rou contra a barreira intransponivel do dado, da coisa em si. Se ndo quisesse renunciar 4 apreensao da totali- dade, deveria tomar o caminho da interioridade. De- veria tentar descobrir um sujeito do pensamento, cuja existéncia pudesse ser pensada — sem hiatus irrationa- lis, sem a coisa transcedental em si~ como algo que é seu produto. O dogmatismo ao qual se fez alusdo tor- nou-se, simultaneamente, um guia e uma fonte de des- vios. Um guia porque o pensamento foi impelido a su- perar a simples aceitacdo da realidade dada, a simples HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 261 reflexdo, as condicdes de sua possibilidade de ser pen- sado, e foi conduzido a orientar-se na diregéo de uma superacdo da simples contemplagio, da simples intuicao. Uma fonte de desvios porque esse mesmo dogma! mo interditou a descoberta do principio verdadeira- mente oposto e que suplanta de fato a contemplacao, 0 principio da prética. (Veremos logo em seguida, na se- giiéncia da exposicao, que é precisamente por essa razifo que o dado reaparece constantemente nessa problem4- tica de maneira irracional, como nao superdvel.) Em sua tiltima obra légica e importante, Fichte formula da seguinte maneira a situacao da qual a filo- sofia deve necessariamente partir: “Entendemos todo o sabe: efetivo como necessario, exceto a forma do é, na hipstese de que ha um fendmeno, que sem diivida de- ve permanecer um pressuposto absoluto para o pensa- mento ea propésito do qual a dtivida pode ser resolvi- da apenas pela intuicao efetiva. Porém, coma distincao de que conseguimos compreender a lei determinada e qualitativa no contetido de uma parte desse fato, a sa- ber, a egoidade. Em contrapartida, para o contetido efe- tivo dessa intuigio de si, compreendemos apenas que é preciso que haja um contetido, mas nao temos uma lei que garanta a existéncia desse contetido em particular. ‘Ao mesmo tempo, vemos com acuidade que nao pode existir tal lei, que, portanto, a lei qualitativa para essa definigdo é justamente a auséncia de lei. E se o que € 60, “Transzendentale Logik”, XXIII. Vortrag, Werke VI, p. 335 ‘Acs leitores no versados na terminologia da filosofia cléssica, chama- ‘mos insistentemente a atengio para 0 fato de que o conceito fichteano de egoidade nao tem nada a ver com 0 eu empiric. 262 GEORG LUKAcs necessério 6 chamado de a priori, nesse sentido, com- preendemos a priori toda a facticidade e até mesmo a experiéncia, porque a deduzimos como ndo-deduzi- vel.” Para o nosso problema, o que importa nesse caso 6 que o sujeito do conhecimento, a egoidade, deve ser apreendido como conhecido também em seu contetido e, portanto, como ponto de partida e guia ao método. Assim nasce na filosofia, da maneira mais genérica, a tendéncia a uma concepgao em que o sujeito possa ser pensado como produtor da totalidade de contetidos. E de maneira igualmente genérica, em termos puramen- te programéticos, surge a seguinte exigéncia: descobrir edemonstrar um nivel da objetividade, da posicéo dos objetos, em que a dualidade do sujeito e do objeto (a dualidade do pensamento ¢ do ser 6 somente um caso particular dessa estrutura) seja superada, em que sujei- to e objeto coincidam, sejam idénticos. Nao é preciso dizer que os grandes representantes da filosofia clés- sica eram muito perspicazes e criticos para ignorar a dualidade do sujeito e do objeto no plano empirico; na verdade, é nessa estrutura dividida que perceberam a estrutura fundamental da objetividade empirica. A exigéncia, o programa, visava antes de tudo a descobrir © ponto nodal a partir do qual essa dualidade do sujei- to e do objeto no plano empirico, ou a forma da objeti- vidade do plano empirico, pudesse ser compreendida, deduzida e “produzida”. Em oposicao a aceitacao dog- mitica de uma realidade simplesmente dada e estranha ao sujeito, nasce a exigéncia de compreender, a partir do sujeito-objeto idéntico, todo dado como produto des- se sujeito-objeto idéntico, toda dualidade como caso particular derivado dessa unidade primitiva. HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 263 No entanto, essa unidade é atividade. Apés Kant ter tentado mostrar, na Critica da razio prdtica ~ muitas vezes malcompreendida em termos de método e fal- samente oposta a Critica da razdo pura -, que os obsté- culos teoricamente (contemplativamente) insuperaveis, podem encontrar uma solugao na pratica, Fichte poe a pratica, a acdo, a atividade no centro metodolégico do conjun‘o da filosofia unificada: “Portanto”, diz eles', “nao é de modo algum indiferente, como créem al- guns, se a filosofia parte de um fato ou de um ato (isto 6, da atividade pura que nao pressupde nenhum objeto, mas 0 cria ela mesma, e onde, por conseguinte, a ago forna-se imediatamente um ato). Se ela parte de um fato, coloca-se no mundo do ser e da finitude, e ser-lhe-4 di- ficil encontrar, a partir desse mundo, o caminho do in- finito € do supra-sensivel; se parte do ato, esté justa- mente no ponto que retine os dois mundos e a partir do qual pode abarcé-los com tinico golpe de vista.” Trata-se, portanto, de mostrar o sujeito do “ato” e, partindo de sua identidade com seu objeto, compreen- der todas as formas dualistas do sujeito-objeto como derivadas desse “ato”, como seus produtos. Repete-se aqui, contudo, num nivel filosoficamente mais elevado, a impossibilidade de resolver a questdo colocada pela filosofia classica alema. Com efeito, desde que surge a questao da esséncia concreta desse sujeito-objeto idéntico, © pensamnento depara com o seguinte dilema: por um 61."Zweite Finleitung in die Wissenschaftslehre”, Werke Ill, p. 52 Embora a terminologia de Fichte mude de uma obra para outra, no ros deve esconder o fato de que se trata efetivamente Sempre do mes- ‘mo probiema. 264 GEORG LuKAcs lado, é somente no ato ético, na relagio do sujeito (indivi- dual) —agindo moralmente — consigo mesmo que essa es- trutura da consciéncia, essa relagéo com seu objeto pode ser descoberta de modo real e concreto; por outro, a dua- lidade intransponivel entre a forma autoproduzida, mas totalmente voltada para o interior (forma da maxima éti- caem Kant), € a realidade estranha ao entendimento e ao sentido, o dado, a experiéncia, impéem-se de maneira ainda mais abrupta A consciéncia ética do individuo que age do que ao sujeito contemplativo do conhecimento. E sabido que Kant permaneceu no nivel de inter- pretagao filoséfica critica dos fatos éticos na conscién- cia individual. Como primeira conseqiiéncia, esse fato se metamorfoseou numa simples facticidade® encon- trada e que nao pode mais ser pensada como “produ- zida”. A segunda conseqiiéncia refere-se ao aumento da “contingéncia inteligivel” do “mundo exterior”, submetido as leis da natureza. O dilema da liberdade e da necessidade, do voluntarismo e do fatalismo, em vez de ser resolvido concreta e realmente, foi desviado para um contratrilho do método, ou seja, a necessidade im- piedosa das leis* 6 mantida para o “mundo exterior”, para a natureza, enquanto a liberdade e a autonomia, que supostamente derivam da descoberta da esfera éti- ca, reduzem-se a liberdade do ponto de vista de que se parte para julgar os fatos interiores. Esses fatos, em to- dos os seus fundamentos e em todas as suas conse- (62. CE. Kritk der praktishen Vernunft, Philosophische Bibliothek, p-72. Trad. bras. Critia da raxfo prétien, Sko Paulo, Martins Fontes, 2002 63. “Ora, para o entendimento comum, a natureza é a existéncia das coisas submetidasa leis.” bid, p. 7. HISTORIA £ CONSCIENCIA DE CLASSE 265 giiéncias, mesmo no que concerne a seus elementos psicoldgicos e constitutivos, encontram-se integralmen- te submetidos ao mecanismo fatalista da necessidade objetivat, A terceira conseqiiéncia 6 que a separacao entre fenémeno e esséncia (que em Kant coincide com aquela entre necessidade e liberdade) é transportada para o proprio sujeito em vez. de ser superada e de auxi- liar, em sua unidade produzida, a estabelecer a unidade do murdo: o sujeito também é dividido em fendmeno e em ntmeno, e a dualidade nao resolvida, insolivel e eternizada em seu cardter insolivel, da liberdade e da necessidade penetra até a sua estrutura mais intima. Em quarto lugar, a ética fundamentada dessa maneira torna-se puramente formal, oazia de qualquer contetido. Vis- to que todos os contetidos que nos sio dados perten- cem ao mundo da natureza e, por conseguinte, estdo submetidos incondicionalmente as leis objetivas do mundo fenoménico, a validade das normas praticas s6 pode se referir As formas da acao interior em geral. No momento em que essa ética tenta concretizar-se, isto é, colocar sua validade a prova dos problemas concretos, 6 constrangida a fomar emprestado os contetidos deter- minadcs, relativos as acoes particulares, do mundo dos fenémenos e dos sistemas de conceitos que elaboram esses fendmenos e absorvem sua “contingéncia”. O prin- cipio da producdo entra em colapso a partir do momen- to em que é preciso criar o primeiro contetido concreto a partir dele. E a ética de Kant nao pode, de modo al- gum, subtrair-se a essa tentativa. Na verdade, ela ten- ta encontrar, pelo menos negativamente, no principio 64. Bid, pp. 125-6, 266 GEORG LuKAcs da nao-contradicio, esse principio formal e, ao mesmo tempo, determinante e produtor do contetido. Toda acéo contréria As normas éticas encerraria em si uma contra- dico; por exemplo, a um depésito caberia a qualidade essencial de nao ser desviado. Todavia, j4 Hegel per guntava com razao: “Se nao houvesse nenhum depési- to, qual contradigao haveria nisso? A falta de depésito contradiria outras determinacoes necessérias; do mes mo modo quea existéncia de um depésito esta ligada a outras determinagGes necessarias e serd, assim, ela mes- ma necessaria. Mas nao devemos evocar outros fins e outras razées materiais; somente a forma imediata do conceito pode decidir qual das duas hipoteses é a cor- reta. No entanto, cada uma das determinacées opostas 6 tao indiferente para a forma quanto a outra; ambas po- dem ser compreendidas como qualidade, e essa com- preensio pode exprimir-se como lei.” A problemética ética de Kant nos reconduz, assim, ao problema metodolégico da coisa em si, ainda nao su- perado. Ja definimos 0 aspecto filosoficamente signi- ficativo desse problema, seu lado metodolégico, como a relagao entre forma e contetido, como problema da irredutibilidade da facticidade e da irracionalidade da matéria, A ética formal de Kant, talhada a medida da consciéncia individual, pode certamente abrir uma pers pectiva metafisica para a solucao do problema da coi- 65. “Uber die wissenschaftlichen Behandlungsarten des Natur- rechts”. Werke I, pp. 3523. ibid, p. 351, “Pois ela é a abstragao abso- lta de toda matéria do querer; todo contetido propde uma heterono- mia do livre-arbitrio.” Ou, ainda mais claramente na Feromenologia: “Pois o puro dever é |. simplesmente indiferentea qualquer contedido ce suporta qualquer conteido.” HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 267 sa em si, ao fazer aparecer no horizonte, sob a forma de postulados da razao pratica, todos 0s conceitos, de- compostos pela dialética transcendental, de um mun- do compreendido como totalidade; porém, do ponto de vista do método, essa solugio subjetiva e pratica per- ‘manece encerrada nos mesmos limites da problematica objetiva e contemplativa da critica da razao. Desse modo, passamos a conhecer um novo e sig- nificativo aspecto estrutural desse conjunto de proble- ‘mas: para resolver a irracionalidade na questo da coisa em si, no basta a tentativa de ir além da atitude con- templativa. Quando a questo é formulada de maneira concreta, a esséncia da pratica parece residir na supres- so da indiferenca da forma em relagdo ao contetido, indife- renga em que se reflete metodologicamente o problema da coisa em si. O prinefpio da pratica como principio da filosofia s6 é encontrado realmente, portanto, quando se indica ao mesmo tempo um conceito de forma, cuja validade nao tenha mais como fundamento e condigéo metodolégica essa pureza em relaao a toda determi- nacao de contetido, essa pura racionalidade. O princi- pio da pratica, enquanto principio de transformacao da realidade, deve entdo ser talhado na medida do subs- trato material e concreto da aco, para poder agir so- bre ele quando entrar em vigor. Somente essa maneira de formular o problema per- inite, por umn lado, a separagao clara entre a atitude in- tuitiva, tedrico-contemplativa, e a praxis e, por outro, compreender esses dois tipos de atitude que se referem uma A outra e como se péde tentar resolver as antino- mias da contemplacéo com 0 auxilio do principio prati- co. Teoria e praxis referem-se, efetivamente, aos mes- 268 GEORG LUKACs mos objetos, pois todo objeto é dado como complexo espontaneamente indissoltivel de forma e contetido. Masa diversidade das atitudes do sujeito orienta a pré- tica para 0 que ha de qualitativamente tinico, para 0 contetido e o substrato material de cada objeto. A con- templacao teGrica — como tentamos mostrar até agora ~afasta-nos desse aspecto. Pois a clarificagéo e a domi- nagao te6ricas do objeto atingem seu apice justamen- te quando elas fazem surgir cada vez mais claramente 0s elementos formais, destacados de todo contetido (de toda “facticidade contingente”). Esse problema nao surge enquanto o pensamento procede “ingenuamen- te”, isto é, enquanto nao reflete sobre essa funcao e acre- dita poder extrair os contetidos a partir das proprias formas, atribuindo-lhes fung6es metafisicas ativas, ou ainda enquanto apreende o material estranho as for- mas ~ de maneira igualmente metafisica — como ine- xistente. A praxis aparece inteiramente subordinada 4 teoria e A contemplacao®. Porém, no momento em que essa situagao, ou seja, a ligacdo indissolivel entre a ati- tude contemplativa do sujeito e o carater puramente for- mal do objeto do conhecimento tona-se consciente, ¢ preciso ou renunciar a solugao do problema da irra- cionalidade (questéo do conteido, do dado etc.), ou buscar a solucdo na praxis. E£ mais uma vez em Kant que essa tendéncia en- contra sua formulagio mais clara. Quando Kant? diz 66, Isso 6 totalmente claro entre 0s gregos. Contudo, também os {grandes sistemas do comego dos tempos modernos, sobretudo ode Es- pinosa, mostram essa estrutura. 67. Kritik der reinen Vernunft, pp. 472-3. HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 269 que “o ser nao é manifestamente um predicado real, isto 6, um conceito de algo que poderia acrescentar ao conceito de uma coisa”, exprime essa tendéncia e todas as suas conseqiiéncias com tal forca, que é obrigado a colocar, como a tinica perspectiva possivel para sua estrutura conceitual, a dialética dos conceitos em mo- vimento. “Pois, caso contrario, nao existiria no concei- to exatamente aquilo que pensei, mas algo a mais, e eu nao poderia dizer que 6 o mesmo objeto do meu concei- to que existe.” Escapou tanto ao proprio Kant quanto aos criticos de sua critica a respeito da prova ontolégica 0 fato de o primeiro descrever - de modo evidente- mente negativo e deformado, resultante do ponto de vista de pura contemplacao — a estrutura da verdadeira praxis enquanto superacao das antinomias do concei- to do ser. Acabamos de mostrar que, a despeito de to- dos os seus esforcos em sentido contrario, sua ética nos reconduz aos limites da contemplacao abstrata. Hegel revela o fundamento metodol6gico dessa teoria ao cri- ticar a seguinte passagem‘*: “Para esse contetido con- siderado como isolado, é de fato indiferente ser ou nao ser; essa diferenca nao lhe diz respeito [...] De manei- ra mais geral, as abstraqdes do ser e do nao ser deixam de ser abstracdes ao adquirirem um contetdo determi- nado. O ser é entdo realidade [..."; em outros termos, © fim que Kant fixa para a consciéncia é o de descre- ver a estrutura do conhecimento que manipula os “puros sistemas de leis”, isolados sistematicamente, num meio também sistematicamente isolado e homo- geneizado. (Na fisica, a hipétese da vibragao do éter, 68. Werke II, pp. 78 s. 270 GEORG LuKAcs por exemplo, o “ser” do éter nao traria nada de novo a0 seu conceito.) Mas no momento em que 0 objeto é apreendido como parte de uma totalidade concreta e que se torna claro que, ao lado do conceito formal e limi- tado do ser inerente a essa pura contemplagio, é possi- vel ¢ até necessario conceber outros niveis da realida- de (ser, existéncia, realidade etc. em Hegel), a prova de Kant fracassa: ela nao é mais do que a delimitacao do pensamento puramente formal. Em sua tese de douto- ramento®, Marx fez pasar, aliés de maneira mais con- creta e mais coerente do que Hegel, a questao do ser e das gradagdes do seu significado para o dominio da realidade historica, da praxis concreta. "O antigo Mo- loch nao reinou? O Apolo de Delfos nao era um poder efetivo na vida dos gregos? Aqui a critica de Kant tam- bém nada significa.” Infelizmente, esse pensamento nao foi levado por Marx até as suas tiltimas conclusdes logicas, ainda que o método das obras de maturidade tra- balhasse constantemente com esses conceitos do ser, si- tuados em varios niveis da pratica. Ora, quanto mais essa tendéncia kantiana torna-se consciente, mais o dilema é inevitdvel. Pois o conceito formal do objeto do conhecimento, derivado de manei- ra inteiramente pura, a coesdo matemitica e a necessi- dade de leis da natureza como ideal de conhecimento transformam este tiltimo cada vez mais numa contem- plagao metédica e consciente dos puros conjuntos for- mais, das “leis” que funcionam na realidade objetiva, sem intervengio do sujeito. Portanto, a tentativa de elimi- nar o elemento irracional inerente ao contetido nao € 69. MEW Erginzungsband. Parte I, p. 371 HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 2” mais dirigida somente para o objeto, mas, de maneira crescen‘e, também para o sujeito. A elucidacao critica da contemplagao esforca-se de modo cada vez mais enérgico para suprimir integralmente de sua propria atitude todos os aspectos subjetivos e irracionais, todo elemento antropomérfico; busca destacar com vigor crescenie 0 sujeito do conhecimento do “homem” e transformé-lo num sujeito puro, puramente formal. Aparentemente, essa definicéo da contemplagao contradiz nossa exposicao anterior do problema do co- nhecimento como conhecimento do que é produzido por “nés”. Ela a contradiz efetivamente. Mas essa con- tradicao serve para langar uma nova luz sobre as difi- culdades da questao e sobre as possiveis vias para uma solucao, Pois a contradicéo nao reside na incapacida- de dos filésofos em analisar de maneira univoca os fa- tos diante dos quais eles se encontram; é, antes de tudo, a expressao intelectual da propria situacio objetiva que eles tém como tarefa compreender. Em outros termos, a contradigdo que nesse caso vem A luz entre a subjeti- vidade ea objetividade dos sistemas formais modernos e racionalistas, os emaranhados e equivocos que se condem em seus conceitos de sujeito e de objeto, a in- compatibilidade entre sua esséncia de sistemas “produ- zidos” por “nés” e sua necessidade fatalista, estranha ao homem e distanciada dele, sdo apenas a formulacéo légica e metodolégica da situacao da sociedade moder- na. Pois, de um lado, os homens quebram, dissolvem e abandonam constantemente os elos “naturais”, irracio- nais e “efetivos”, mas, por outro ¢ ao mesmo tempo, erguem em toro de si, nessa realidade criada por eles, mesmos, “produzida por eles mesmos”, uma espécie 272 GEORG LUKACS de segunda natureza, cujo desdobramento se lhes opde com a mesma regularidade impiedosa que o faziam outrora os poderes naturais irracionais (mais precisa mente: as relacdes sociais que Ihes apareciam sob es- sa forma). “Seu proprio movimento social”, diz Marx, “possui para eles a forma de um movimento de coi- sas que 0s controla em vez de ser controlado por eles.” Segue-se que a inexorabilidade dos poderes nao dominados adquire um carter totalmente novo. Ou- trora, era 0 poder cego de um destino irracional em seu fundamento 0 ponto em que cessa toda possibilidade de uma faculdade humana de conhecer, em que come- aa transcendéncia absoluta, o reino da fé etc.”". Ago- ra, em contrapartida, essa inexorabilidade aparece como a conseqiiéncia inevitavel de sistemas de leis conheci- das, cognosciveis e racionais, como uma necessidade que nao pode ser compreendida em seu fundamento ‘iltimo nem em sua ampla totalidade, como o faz.clara- mente a filosofia critica ao contrério dos seus prede- cessores dogmiticos. No entanto, as partes dessa tota- lidade ~ 0 circulo vital no qual 0 homem vive ~ so cada vez mais penetradas, calculadas e previstas. Nao € absolutamente por acaso que logo no inicio do de- senvolvimento filosdfico moderno a matematica uni- 70, A partir desse fundamento ontolégico. pode-se compreender 0 ponto de partida, to estranho ao pensamento modemo, do pensamen- tonosestados “naturais”, como 0 credo ut intelligam, de Anselmo de Can- tufria ou o do pensamento hindu (“apenas aquilo que ele elege 6 conce- bido", teria dito Atman). A diivida metédica de Descartes, ponto de partida do pensamento exato, ésomente a formulagao mais aguda dessa oposicdo to conscientemente sentida no infcio da Idade Moderna. Ela retorna em todos os pensadores importantes, de Galileu a Bacon. HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 273 versal surge como ideal de conhecimento, como tentati- va de criar um sistema racional de relagdes que englo- be todas as possibilidades formais, todas as proporges ¢ relacées de existéncia racionalizada, com auxilio do qual todo fendmeno pode tornar-se objeto de um cél- culo exato, independentemente de sua diferenciacdo material e real”. Nessa concepgio tao nitida e, por conseguinte, tio caracteristica do ideal moderno de conhecimento, a con- tradicao indicada mais acima mostra-se em toda a sua evidéncia. Pois o fundamento desse célculo universal, por um lado, nao pode ser outro sendo a certeza de que somente uma realidade revestida de tais conceitos pode ser efetivamente dominada por nés. Por outro, mesmo quando supde uma realizacao completa e sem lacunas dessa matematica universal, essa “dominagio” da rea- lidade s6 pode ser a contemplacao objetivamente cor- reta do que resulta — necessariamente e sem nossa inter- vencdo ~ da combinatéria abstrata dessas relacdes e proporcées. Essa contemplacao parece, é verdade, es- tar préxima do ideal filos6fico e universal de conheci- mento (Grécia, india). O caréter particular da filosofia moderna 6 vem plenamente a luz se considerarmos de maneira critica as condigdes que permitem realizar essa combinat6ria universal. Pois somente pela descoberta da “contingéncia inteligivel” dessas leis nasce a possi- bilidade de um movimento “livre” no interior do cam- 71. A respeito da histéria dessa maternética universal, cf.Cassirer, op. cit, , pp. 446, 363; I, pp. 138, 156 ss. Sobre a ligagao dessa matema- tizaglo da realidade com a “praxis” burguesa do célculo dos resultados cesperados das “leis”, cf. Lange, Geschichte des Meterialisrus (Reclam) I, pp. 321-32, sobre Hobbes, Descartes, Bacon etc. 274 GEORG LUKACS po de aco de tais sistemas de leis coincidentes ou ain- da nao conhecidos completamente. Vale entéo notar que se tomarmos a aco no sentido jé indicado de transfor- macio da realidade, de orientago para o que € essen- cialmente qualitativo, para o substrato material da aco, essa atitude ainda seré bem mais comtemplativa do que, por exemplo, o ideal de conhecimento da filoso- fia grega”, Pois essa “aco” consiste em calcular com a maior antecedéncia possivel 0 efeito provavel dessas leis e no fato de o sujeito da “aco” adotar uma posicao em que esses efeitos oferecam as melhores oportunida- des para seus fins. E claro, portanto, que, por um lado, a possibilidade de tal previsdo é tanto maior quanto mais a realidade for racionalizada, quanto mais cada um dos seus fenémenos puder ser considerado como integrado no sistema dessas leis. Mas, por outro, é igual- mente claro que quanto mais a realidade e a atitude em relago ao sujeito “agente” se aproxima desse tipo, mais também 0 sujeito se transforma num 6rgao pronto para compreender as oportunidades criadas pelos sis- temas de leis conhecidos, e sua “atividade” se limita adotar o ponto de vista a partir do qual essas leis (por si mesmas e sem intervengao) atuam a seu favor, confor- me seus interesses. A atitude do sujeito torna-se - no sentido filos6fico ~ puramente contemplativa. 72. Pois a teoria platonica das idéias encontrava-se numa ligacso Indissolivel nao se sabe com que direito ~ tanto com a totalidade ‘quanto com a existéncia qualitativa do dado. A contemplacio significa ‘no ménimo desatar os lagos que mantém a “alma” presa as limitagBes, empiricas. O ideal estsico de ataraxia mostra muito melhor essa con- templagao totalmente pura, sem, no entanto, a ligagéo paradoxal com uma “atividade” fervorosa e ininterrupta. HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 275 Aqui, contudo, mostra-se em segundo lugar que todas as relacdes foram conduzidas no nivel dos siste- mas de leis naturais assim concebidos. Foi enfatizado varias vezes nessas paginas que a natureza 6 uma ca- tegoria social. Certamente, para o homem moderno, que parte imediatamente das formas ideolégicas aca- badas, de seus efeitos diante dos quais ele se encontra e que influenciam profundamente toda sua evolugéo mental, uma concepsao como a que acabamos de esbo- car consistiria simplesmente em ampliar a sociedade os conceitos formados e adquiridos nas ciéncias naturais. Hegel”? ja dizia, em sua polémica de juventude contra Fichte, que o Estado deste é “uma maquina”, seu subs- trato, “uma pluralidade [...] atomistica, cujos elementos [...] sio uma quantidade de pontos [...] Essa substan- cialidade absoluta de pontos funda na filosofia pratica um sistema de atomismo em que, como no atomismo da natureza, um entendimento estranho aos 4tomos torna-se lei”. Essas descricdes da sociedade moderna e as tentativas de dominé-la intelectualmente retornam constantemente no curso do desenvolvimento posterior; isso é um fato bastante conhecido para que seja neces- sdrio confirmé-lo com exemplos. O mais importante 6 que nao faltou a visio de uma relagio inversa. Apés Hegel’, que jé reconhecera claramente o caréter bur- 73. “Differenz des Fichteschen und Schellingschen System”. Wer- ke, p. 242, Toda teoria “atomista” da sociedade representa apenas o re- flexo ideclogico dessa sociedade do ponto de vista puremente burgués; 60 que Marx demonstrou claramente contra Bruno Bauer. Die helige Familie, MEW 2, pp. 127-5, Essa constatacdo nao supera, contudo, a “ob- jetividade” de tais concepsbes: elas sZo, de fato, as formas necessérias que o homem reificado tem da sua atitude para coma sociedade, 7A. Nerke IX, p. 528. 276 GEORG LuKAcs gués de luta das “leis da natureza”, Marx’> mostra que “Descartes, com sua definicéo dos animais como me- ras maquinas, vé com os olhos do periodo manufatu- reiro, em contraste com a Idade Média, para a qual o animal era considerado como auxiliar do homem’; e acrescenta a esse respeito algumas indicagdes sobre a historia intelectual dessas relagdes. Essa mesma rela- do assume um cardter ainda mais nitido e importante em Tonnies’: “A razao abstrata, sob um certo angulo, 6 a razao cientifica, e seu sujeito é 0 homem objetivo que conhece relaces, isto é, o homem que pensa con- ceitualmente. E, portanto, os conceitos cientificos, que, por sua origem ordinéria e suas qualidades reais, sio juizos por meio dos quais nomes sdo dados aos conjun- tos de sensagdes, comportam-se no interior da ciéncia ‘como as mercadorias no seio da sociedade. Eles se rett- nem no sistema como as mercadorias no mercado. O conceito cientifico supremo, que ndo encerra mais 0 nome de alguma coisa de real, equivale ao dinheiro; 0 conceito de étomo, ou o de energia.” Nao é nossa tare- fa aqui estudar mais de perto a prioridade conceitual cessdo causal e hist6rica entre sistema de leis naturais e capitalismo. (Entretanto, 0 autor destas li- nhas nao pretende esconder sua opinido de que se deve dar prioridade ao desenvolvimento econdmico capita- lista.) Trata-se somente de compreender claramente que, por um lado, todas as relagées humanas (como objetos da atividade social) adquirem cada vez mais as formas de objetividade dos elementos abstratos dos conceitos ouas 17. Kapital , MEW 23, p. 411, nota Il 76. Gemeinschaft und Gesellschfal. Terceira ediglo, p. 38. HISTORIA 2 CONSCIENCIA DE CLASSE 277 formades pelas ciéncias naturais, de substratos abstra- tos das leis da natureza e que, por outro, 0 sujeito dessa “atividade” também adota, em medida crescente, uma atitude de puro observador desses processos artificial- mente abstratos, de experimentador etc. Seja-me permitido dizer aqui algumas palavras sob a forma de excurso sobre as observacdes de Friedrich Engels a respeito do problema da coisa em si, jé que, embora nao se refiram diretamente ao nosso problema, elas influenciaram a concepcao desse conceito em am- plos circulos marxistas, e ignorar sua correta interpre- taco poderia facilmente deixar subsistir mal-entendi- dos. Diz Engels”: “A refutacdo mais flagrante dessa mania, como de todas as manias filos6ficas, é a praxis, isto é, o experimento e a industria. Se pudermos pro- var a validade de nossa concepcéo de um proceso na- tural fazendo-o nés mesmos, produzindo-o a partir de suas condicées e, além disso, colocando-o a servigo dos nossos cbjetivos, damos um fim a inapreensivel ‘coisa em si’ kantiana. As substancias quimicas produzidas nos organismos vegetais e animais permaneceram como ‘coisas em si’ até. 0 momento em que a quimica organi- ca comesou a preparé-las uma apés a outra; dese mo- do, a ‘coisa em si’ tornou-se uma coisa para nés, como a matéria corante da ruiva, a alizarina, que nao culti- vamos nos campos sob a forma de raizes da ruiva, mas preduzimos de maneira muito mais simples a melhor preco a partir do alcatrao da hulha.” E preciso 77. Feuerbach, MEW 21, p. 276. 278 GEORG LUKACS antes de tudo corrigir uma inexatidao de terminologia quase incompreensivel para um conhecedor de Hegel como Engels. Para Hegel, “em si” e “para nés” nao sao de modo algum contrarios, mas correlatos necessérios. Se alguma coisa é dada simplesmente “em si”, isso sig- nifica para Hegel que é dada somente “para nés”. O contrario do “para nés ou em si””8 é, antes, o “para si”, essa espécie de posigéio em que o ser-pensado do obje- to significa, ao mesmo tempo, a consciéncia que o objeto tem de si mesmo”, Nesse caso, supor que o problema da coisa em si implica um limite A possibilidade de um alargamento concreto dos nossos conhecimentos seria desconhecer totalmente a teoria kantiana do conheci- mento. Pelo contrario, Kant, que partia metodicamente da ciéncia da natureza mais avancada da época, a as- tronomia de Newton, e moldara sua teoria do conheci- mento justamente medida desta e de suas possibilida- des de progresso, admite, portanto, necessariamente a possibilidade ilimitada de alargamento desse método. Sua “critica” incide apenas no seguinte: mesmo o conheci- mento acabado do conjunto dos fenémenos seria ape- nas um conhecimento dos fenémenos (em oposicao A coisa em si); pois, mesmo 0 conhecimento acabado do conjunto dos fendmenos jamais poderia superar as bar- reiras estruturais desse conhecimento — isto &, segundo 78. Por exempio, Phinomenologie, Prefacio, Werke Il, p. 20; ibd. pp. 67-8, 451 etc 79. Marx emprega essa terminologia na importante passagem so- bre o proletariado, também freqiientemente citada nessas paginas Elend der Philosophie, MEW 4, p. 181. Sobre a questo como um todo, cf as passagens correspondentes da Légica, particularmente Ill, pp. 127 5, 166 s, eV, pp. 120. ea critica a Kant em diferentes passagens. HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 279 a nossa formulagéo, as antinomias da totalidade e as, antinomias do contetido. Kant resolveu de maneira su- ficientemente clara a questdo do agnosticismo e da re- lagao com Hume (e com Berkeley, em quem ele pensa particularmente sem nomear), na parte que trata da Re- futacfo do idealismo®. O mal-entendido mais profundo de Engels consiste, porém, no fato de ele designar como praxis - no sentido da filosofia dialética -'a atitude propria da industria e do experimento. O experimento 6 justamente o comportamento contemplativo em sua forma mais pura. Aquele que faz a experiéncia cria um meio artificial e abstrato para poder observar com tran- qiiilidade e sem obstaculos o jogo das leis, eliminando todos os elementos irracionais e incémodos, tanto do lado do sujeito quanto do lado do objeto. Esforga-se em. reduzir, tanto quanto possivel, o substrato material de sua observacao ao “produto” puramente racional, & “matéria inteligivel” da matemdtica. E quando Engels diz, a propésito da industria, que o que é assim “pro- duzido" acaba se tornando util aos “nossos fins”, ele parece esquecer por um momento a estrutura funda- mental da sociedade capitalista que ele mesmo jé ha- via descrito com clareza insuperdvel em seu genial en- saio de juventude, Esquece, com efeito, que se trata na sociedade capitalista de “uma lei natural que se baseia na auséncia de consciéncia dos participantes”®!. Na medida em que a indiistria estabelece “metas” — no sentido decisivo, ou melhor, histérico € dialético do ter- mo -, ela é apenas objeto e nao sujeito das leis naturais, sociais. Marx enfatizou por varias vezes que 0 capita- 80. Kritk der reinen Vernunft, pp. 208 ss. 81. Linrisse 2u einer Kritik der Nationald&onomie, MEW I, p.515. 280 GEORG LUKACS lista (e quando falamos de “indtistria” no passado ou no presente 86 podemos estar pensando nele) nao pas- sa de uma mascara. E quando compara, por exemplo, sua tendéncia a enriquecer com a do entesourador, nao deixa de ressaltar*: “O que neste aparece como uma mania individual, no capitalista constitui um efei- to do mecanismo social de que é apenas uma engre- nagem. Além disso, o desenvolvimento da produgéo capitalista faz do crescimento continuo do capital in- vestido numa empresa industrial uma necessidade, a concorréncia impde a todo capitalista individual as leis imanentes do modo de produgio capitalista como leis exteriores obrigatérias.” E evidente, portanto, no espirito do marxismo - ordinariamente também inter- pretado por Engels nesse sentido -, que a “industria”, isto 6, o capitalista como portador do progresso econd- mico, técnico etc., ndo age, mas sofre a agao, e que sua “atividade” se esgota na observacio e no célculo exa- tos do efeito objetivo das leis sociais naturais. Para voltar ao nosso problema, de tudo isso fica evidente que a virada da filosofia critica em direcdo a pratica fracassou ao tentar resolver as antinomias cons- tatadas na teoria e acabou tornando-as eternas*. Pois, 82, Kapital 1, MEW 23, p. 618 etc. Sobre a “alsa consciéncia” da Durguesia cf. o ensaio “Consciéncia de classe”. 83. A isso se refere a critica aguda e reiterada de Hegel. A recusa

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