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REGINE PERNOUD O Mito oo PUBLICACOES EUROPA-AMERICA Titulo original: Pour en finir avec le Moyen Age Tradugdo de Maria do Carmo Santos Capa: estidios P. B.A. © Editions du Seuil, 1977 Direitos para Portugal reservados por Publicagées Europa-América, Lda. Nenhuma parte desta publicagdo pode ser re- produzida ou transmitida por qualquer forma ou por qualquer processo, electronico, mecénico ou fotogrifico, incluindo fotocdpia, xerocépia ou gravacdo, sem autorizagdo prévia e escrita do editor. Exceptua-se naturalmente a iranscri- ¢do de pequenos textos ou passagens para apre- seniacao ou critica do livro. Esta excepgdo nao deve de modo nenhum ser interpretada como sendo extensiva @ transcric¢do de textos em re- cothas antolégicas ou similares donde resuiie prejuizo para a interesse pela obra. Os trans- gressores sdo passiveis de procedimento judicial Editor: Francisco Lyon de Casiro PUBLICACOES EUROPA-AMERICA, LDA. Apartado 8 2726 MEM MARTINS CODEX PORTUGAL Edigdo n.° 10112574980 Execugdo técnica: Grdfica Europam, Lda., Mira-Sintra — Mem Martins Depdiito legal n.° 30189789 «IDADE MEDIA» Estava eu, havia pouco tempo, encarregada dg Museu de Historia de Franca nos arquivos nacionais quando me foi enviada uma carta que pedia: «Podia dizer-me a data exacta do tratado.que.pés fim A Idade Média?» Com uma pergunta subsidiéria:. «Em. que cidade se reuniram os plenipotenciarios que, prepararam esse tratado?» Como nao conservei esta missiva, nao posso dar seniio a sua substancia, mas garamto que ela ¢ exacta; o seu autor solicitava uma resposta r4pida, dizia ele, porque tinha necessidade desses dados para uma conferéncia que contava fazer em data bastante proxima. Dei por mim varias vezes a imaginar essa conferéncia, para meu divertimento pessoal. Sem dificuldade, afinal: bastava juntar o que se lé, o que se vé, 0 que se ouve quotidianamente sobre a «Idade Média» + Ora, se o medie- vista meter na cabeca produzir uma série de disparates sobre o assunto, verifica que eles abundam na vida quo- tidiana, Nao hd dia em que ele nao ouca algunia reflexiio no género: «Nés ja nao estamos na ‘Idade Média’», ou «Isto é 0 regresso & ‘Idade Média’», ou «E uma mentali- dade medieval». E isto em todas as circunstincias: para lembrar as reivindicacées do M.I.M.’ ou pata deplorar 1 «Idade Médian devia estar sempre entre aspas; nés adopta- mos aqui a expressio apenas pata nos sujeitarmos ao uso cor- rente. 2 Movimento de Libertacio da Mulher, (N. do E.) REGINH PHRNOUD as consequéncias duma greve ou quando se é levado a emitit ideias gerais sobre a demografia, o analfabetismo, a educagio.., . Isto comeca cedo; recordo-me de ter tido ocasiao de acompanhar um sobrinho a um desses cursos em que os pais sio admitidos para poderem depois obrigar os filhos a trabalhar. Ele devia ter sete ou oito anos. Quando chegou a altura da chamada a Histéria, eis aqui, reproduzido tex- tualmente, o que eu ouvi; - A projessora: — Como se chamavam os camponeses na Idade Média? A classe (em coro): — Chamavam-se servos, A professora: -—E que é que eles faziam? Que € que eles tinham? A classe; —'Tinham doencas. A. professoras —Que doengas, Jérdme? Jéréme (grave). — A peste. —E mais, Emmanuel? Emmanuel (entusiasta): — A cdlera. —Vocés sabem muito bem a licdo de Histéria, con- cluiu placidamente a professora. Passemos a Geografia.... Como isto se passou ha varios anos e o sobrinho em questao ja atingiu hoje a maioridade, segundo o Cédigo Civil, eu julgava que as coisas tinham mudado desde entio. Mas eis que ha alguns meses (Julho de 1975), passeando com a neta de uma das minhas amigas (Amélia, de 7 anos). esta me diz de repente, alegremente: —Sabes, na escola, estou a estudar a Idade Média. —Ah!, muito bem! E como era a Idade Média? Conta 1a! —Ent&o, havia senhores (ela procura um pouco, antes de encontrar a palavra dificil...), senhores feudais. Entao eles estavam sempre a fazer guertas e com os seus cavalos iam para os campos dos camponeses ¢ destrufam tudo. Depois um sorvete captou-lhe a atengio, pondo fim 4 sua descrigio entusiasta. Isto fez-me compreender que em 1975 se ensinava a Histéria exactamente como ma tinham 0 MITO DA IDADH MEDIA 7 ensinado a mim ha meio século ou mais. Assim vai 0 progresso. a E no mesmo instante isso fez-me lamentar a garga- thada—- muito pouco caridosa, temos de o reconhecer — que eu dera alguns dias antes ao receber uma chamada telefénica de uma locutora da TV —para mais especiali- vada nas emiss6es histéricas! «Patece», dizia ela, «que a senhora tem diapositivos. Tem alguns que representem a Idade Média?» —?? —Sim, que déem uma ideia da Idade Média em geral mortes, massacres, cenas de violéncia, fomes, epidemias... Nao pude impediz-me de comegar a rir a garcgalhada, e era injusta: visivelmente, esta documentalista nao ultra- passara o nivel de Amélia no ponto particular da histéria da Idade Média. Mas como a teria ela ultrapassado? Onde poderia aprender mais do que isso? Até ha muito pouco tempo, era apenas por erro OU, * digamos, por acaso que se tomava contacto com a Idade Média, Era preciso uma curiosidade pessoal e, para suscitar essa curiosidade, era preciso um choque, wm encontio. Era um portal romano, uma flecha gética, no curso duma viagem; um quadro, uma tapegaria, no acaso dos museus ‘ou das exposigées; supunha-se entZo a existéncia de um universo até af ignorado. Mas, passado o choque, como reconhecé-lo mais? As enciclopédias ou os diciondrios que se consultavam nao continham senao coisas insignificances ou desdenhosas sobre esse periodo; os trabalhos eram ainda raros @ os seus dados conttaditérios. Falamos aqui das obras de vulgarizagéo acessiveis ao publico médio, porque é evidente que os trabalhos de erudigio abundavam desde ha muito, Mas, para os atingir, havia toda uma série de obstaculos. a transpor: primeiro, o acesso as bibliotecas que os.encerram; depois, a barreira da linguagem de ini- ciados em que a maior parte é redigida. Se bem que 0 nivel getal possa ser fornecido pela pesgunta que serviu de hase a um encontro do Circulo Catdlico dos inteleccuais REGINE PHRNOUD franceses de 1964: «A Idade Média seria civilizada?» Sem a menor ponta de humor; podemos estar certos de que se tratava de intelectuais na sua maior parte universitarios, ¢ de universitérios na maior parte com responsabilidades, Os debates realizavam-se em Paris, na Rue Madame. Dese- jamos, para conforto moral dos participantes, que nenhum tenha tido, ao voltar pata o seu domicilio, de passar diante da Notre-Dame de Paris. Podia ter sentido um certo mal- ~estar. Mas no, estejamos tranquilos: de qualquer modo, 0 universitrio com responsabilidade apresenta uma inca- pacidade fisica em ver o que nao esté de acordo com as nogdes que o seu cérebro segregou. De qualquer maneira ele no terd, pois, visto a Notre-Dame, mesmo que o seu caminho o levasse 4 Place du Parvis, Hoje tudo ¢ diferente. A propria Place du Parvis esta cercada, todos os domingos, e no Verio todos os dias, por uma multidao de jovens e de menos jovens que escutam cantores ou muisicos, e que, as vezes, dancam ao escut4-los; ou que, sentados na relva, contemplam simplesmente a catedral,; a maior parte nfo se contenta em admirar o exterior: Notre-Dame de Paris encontrou as multiddes da Idade Média, todos os domingos, quando as suas portas se abrem de par em par & hora do concerto. Multidées reco- Ihidas, admirativas, a quem 9 intelectual de 1964 faria o efeito dum animal do Jardim Zoolégico (A moda antiga, bem entendido). As raz6es desta mudanga? Elas sto miltiplas, A pri- meita ¢ a mais imediata € que hoje toda a gente se desloca. Ciscula-se muito e por toda a parte, O medievista. nao pode impedir-se de acrescentar: «como na Idade Média», porque, tendo em conta os modernos meios de locomogSo, © turismo ocupa o lugar do que foram as: peregrinacdes noutros tempos. Pusemo-nos de novo a viajar precisamente como nos tempos medidvais. Ora acontece que em Franga, principalmente, apesar dos vandalismos mais graves, mais metédicos do que em qualquer oucra parte, os vestigios da época medieval con- O MITO DA IDADH MBDIA 9 cinuam a ser mais numerosos do que os de todas as outras épocas reunidas. Impossivel circular nesse pais sem ver surgir um campandrio, que basta para evocar o século KIL ou o século XITL Impossivel transpor um cume sem encon- trar uma capelinha que leva a perguntar muita vez por que milagre ela péde nascer num fecanto tio selvagem, tio afastado. Uma regio como o Auvergne nao possui um tinico museu importante, mas, em contrapartida, quan- tas riquezas entre Orcival e Saint-Nectaire, 0 Puy e Notre- -Dame-du-Port, em Clermont-Ferrand! Estas regides, que no século XVII intendentes ou governadores consideravam desagraddveis desterros, foram, pois, noutros tempos habi- tadas por uma populagéo bastante numerosa para poder realizar tais maravilhas, suficientemente sabedoras pata as conceber? Obra dos mosteiros ou cultura. popular, pouco importa. Onde se recrutavam, pois, os monges, senao 20 povo em geral.e.em.todas as camadas.sociais, para falar a lingua do século XX? E, alias, se Aubazine foi um con- vento cisterciense, nao se véem simples pardquias rurais, como Brinay ou Vicq (hoje Nohant-Vicq), revestidas de frescos roméanicos cuja audacia ainda hoje nos parece desconcertante? O afluxo de turistas é hoje habitual nos edificios da Idade Média. O Mont-Saint-Michel recebe mais visitantes do que o Louvre. Os Baux-de-Provence véem alongar-se as filas de autocarros donde se sai aos cachos para subir a0 assalto da velha fortaleza. Fontevrault, hd pouco tornada acessivel aos visitantes, nao é ja suficiente para os acolher a todos; a abadia de Sénanque, se bem que nao se ouca ja li o canto dos monges senio através de um espectaculo audiovisual (not4vel), conhece uma afluéncia ininterrupta. lim poueas palavras, poder-se-ia enumerar todas as regides de Franga, desde as festas medievais de Beauvais, nos con- fins da Picardia, até as de Saint-Savin, nos confins dos Pirenéus: em toda a parte é 0 mesmo entusiasmo pela redescoberta, recente sem divida, mas geral. REGINE PERNOUD Pelo simples facto de viajar, o Francés, que, no entanto, foi ultrapassado nesse dominio pelo Inglés, pelo Alemio, pelo Belga e pelo Holandés,—sem falar, bem entendido, nos Americanos —, toma consciéncia do que o cerca, E de que aquilo que 0 cerca nio se limita & natureza. Ou, melhor, a matureza, por pouco que ele abra os olhos, aparece-lhe j4 consideravelmente transformada ¢ valorizada pela utiliza- gao que o homem dela fez noutros tempos: pedras, tijolos, madeiras de construcéo, que, uma vez reunidos ¢ realizados, desempenharam na paisagem o papel da imagem no livro. Aa mesmo tempo ele toma consciéncia do valor de tudo o que faz parte daquilo que o cerca. Ja passou o tempo em que os proprietarios de Linguadoque vendiam ao desbarato os capitéis de Saint-Michel-de-Cuxa, que hoje se dispéem a mandar vir da América. Jé passou o tempo em que um tal mestre-de-obras podia, sem levantar protestos, separar em pedagos o claustro de Saint-Guilhem-le-Désert, para vender a retalho as pedras esculpidas. Se é preciso hoje ir a Nova Jorque para reencontrar, tratados, alids, com um respeito admirdvel, esses claustros, com os quais se péde fazer um museu (Serrabone, Bonnefont-en-Comminges, Trie-en-Bigorre, e os dois j4 citados de Saint-Guilhem-le- -Désert e Saint-Michel-de-Cuxa, assim como a casa capi- tular de Pontaut, nas Landes), acabou-se por compreender que o responsdvel por tais transferéncias ndo era o com- prador, mas sim o vendedor. E a venda nao constituiu ainda senao um meio mal: sempre se pode ir a Filadélfia, pata ver a claustro de Saint-Genis-lés-Fontaines, ou 2 Toledo, pata admirar o de Saint-Pons-de-Thomiéres, mas que dizer de tudo o que desapareceu irremediavelmente durante 0 Império, como, por exemplo, em Cluny, onde se fez saltar a dinamite 0 que fora a maior igteja romanica da cristandade, ou em Tolosa, que foi, sabe-se, denominada a «capital do vandalismo», € onde nao se pode salvar fenio alguns fragmentos dos claustros de Saint-Etienne, de Siint-Sernin ou da Daurade? O MITO DA IDADE MEDIA i Um passado que ja 4 vai, mas que suscita a indignacio Como suscita 0 espanto essa estranha mania que trans- formou em pris6es ou casernas os mosteitos que nao se destrufam, E a relativa rapidez com que esse movimento se realizou permite avaliar da sua extenséo, Porque, enfim, foi ha pouco mais de cem anos que Vitor Hugo, ao visitar © Mont-Saint-Michel transformado em prisdo, exclamou: «Temos a impressaio de estar a ver um sapo num relicario! » Ei eu, que estou a escrever, ainda pude ver na minha infan- cla, no momento em_que se comecava a fazé-las desapa- recer, as janelinhas regulares abertas na parede que havia transformado ém Avinhdo a grande sala do Palacio dos Papas em caserna, Hoje, em que até Fontevraule foi final- mente restituidg a si proprio, quem admitiria que o Mont- Saint-Michel ou 0 Palacio dos Papas pudessem tornar-se caserna ou prisio? Continua ainda, é verdade, uma certa caserna dos bombeitos da Rue de Poissy, em Paris, mas todos sabem que Paris estar4 sempre atrasada em relacao «i provincias! Embora o movimento que leva a redescobrir, restaurar © reavivar os monumentos do passado se tenha manifestado tardiamente em Franga, no entanto, ele existe. Ele penetrou em profundidade; ele acaba mesm6 por submergir e inquie- tar as autoridades que tinbam tido o cuidado disso até agora. Por toda a patte se abriram clubes arqueoldgicos, obras de restauragio, campanhas de pesquisas. Véem-se admiraveis edificios rom4nicos, mesmo escondidos em cam- por pouco acessiveis, encontrar de novo a sua forma ¢ vida, gracas a associagGes ptiblicas ou privadas de defesa, mantidas, controladas e por vezes até suscitadas pela admi- nistragéo departamental. Estou a pensar em Saint-Donat, mas também na rotunda de Simiane, na Alta-Provenga, ou ainda, nfo longe dai, na capela da Madalena, Assim, nesta regiao, o proprictario que insiste em guardar o feno numa capela romanica ou gdtica — como se viu durante século ¢ meio — faz figura de ignorante e de atrasado, E em toda A parte se podia assim citar restauragdes de monumentos: 12 E&GINE PERNOUD castelo dos Rohan, em. Pontivy, igreja do Lieu Restauré, na Picardia, Chateau-Rocher, em Auvergne, capela dos Templirios de Fourches, na regifio parisiense, castelo de Blanquefort, na Gironda—restaurados e€ restituidos a si proprios—, muitas vezes por grupos de jovens que agiram espontaneamente. Compreendeu-se, finalmente, que neste dominio tudo devia partir da iniciativa privada, sendo esta seguida, controlada, encorajada, pelos poderes ptiblicos — pois, para a restauragao e para as pesquisas propriamente ditas, a boa vontade pode nfo bastar; elas necessitam de educacio € enquadramento; além disso, sem ela nada se pode fazer de sério, Mas quem imaginaria isto ha cimquenta anos? Quem © teria previsto apenas ha dez anos (1965), quando a revista Archeologia, na sua estreia, abria uma tubrica: «Onde ira vocé pesquisar este Verio?» Agora é preciso apresentd-la todos os anos em varios nuimeros, pois um sé ja nfo chegava. A televiséo desempenhou o seu papel no desenvolvi- mento desta curiosidade. Aa atrair a atencio sobre o8 monumentos abandonados, ao encorajar certas realizagdes, ela estimulou o interesse que o grande piblico comegava a manifestar pelos testemunhos do passado. Nés estamos a pensar em certas emissdes como as «Obras-primas em perigon ou «A Franga desfigurada», que contribuiram poderosamente para sensibilizar um maior publico a esses tesouros, que acotovela sem sempre poder reconhecé-los. Pondo-os ao alcance de todos os espectadores, ela tornou, dum sé golpe, frutuoso 0 trabalho feito anteriormente: o das colecgSes de histéria, trabalhos ou revistas de alta vul- garizacao. Nao iremos cita-los todos. Bastard tomar como exemplo a colecgio «Zodiaco», que tentava ha vinte e cinco anos dar a conhecer melhor a arte romanica ¢ cujo sucesso hoje se inpés. Numerosas foram também as socie- dades que terio trabalhado no mesmo sentido, como o Centto Internacional de Estudos Romfnicos. Ou ainda, mais recentemente, as Comunidades de Acolhimento nos Sitios O MITO DA IDADE MEDIA 13 Artisticos (C. A. S. A.), compostas de jovens, estudantes na sua maior parte, que tomam a tarefa de comunicar o que em geral s6 saber os historiadores de arte e que per- mitem a todos os que aparecerem apreciar a visita de monumentos dos séculos XM ou XIE, Deve dizer-se que o francés médio, hoje, ja nao aceita que se qualifiquem de «desajeitadas ¢ inabeis» as escultu- ms dum portal romanico, ou de gritantes» as cores dos vitrais de Chartres. O seu sentido artistico esta suficiente- mente desperto para que juizos que nem sequer se teriam discutido ha trinta anos Ihe parecam, a ele, definitivamente caducos. Entretanto, ha ainda um certo desfasamento, que talyez venha, sobretudo, de habitos de espirito ou de voca- buldrio, entre a Idade Média, que ele admira todas as vezes que tem ocasiio pata isso e 0 que encerta para ele esse termo de Idade Média?, Desfasamento que marca a solu; gilo de continuidade entre 0 que ele pode constatar direc- tamente e o gue lhe escapa pela forga das coisas, porque é preciso uma cultura que ninguém ainda lhe concedeu, ¢ que sé um estudo inteligente da histéria, durante os anos de escola, proporciona, A Idade Média significa sempre: época de ignorancia, de embrutecimento,. de. subdesenvelvimento generalizado, muito embora tenha sido a nica época de subdesenvol- vimento durante a-qual se construfram catedrais! Isto porque as pesquisas de erudigao feitas ha cento e cinquenta nos, no seu -conjunto, ainda nao atingiram o. grande publico Um exemplo é evidente. Nag ha ainda muito tempo, wn programa de televisio dava como histérica a famosa frase: «Matem-nos todos, Deus reconhecerd os seus». * @Execucées duma selvajaria quase medieval», escrevia re- centemente um jornalista. Saboreemos este «quase». Certamente, no século dos campos de concentracdo, dos fornos crematdérios e do Goulag, como nao ficas horrorizado com a selvajaria dos tem- po# em que se esculpia o portal. de Reims ou o de Amiens!. REGINE PHRNOUD quando do massacre de Béziers, em 1209, Ora, hi mais de cem anos (foi exactamente em 1866) que um erndito demonstrou, alids sem nenhuma dificuldade, que a frase nfo podia ter sido pronunciada, pois nfo se encontra em nenhuma das fontes histéricas da época, mas apenas no Livro dos Milagres (Dialogus Miraculorum), cujo titulo diz suficientemente o que ele quer dizer, composto, uns sessenta anos apdés os acontecimentos, pela monge alemaio Cesario de Heisterbach, autor provide duma imaginacao atdente e pouco escrupuloso da autenticidade histdrica. Desde 1866, nenhum historiador, é inutil dizé-lo, se re- feriu ag famoso «Matem-nos todos»; mas 0s que escrevem sobre histéria, esses, utilizam-no ainda, e isso basta para provar quanto as aquisicSes cientificas na matéria sao lentas em penetrar no dominio piiblico. Porqué esta diferenca entre ciéncia e saber comum? Como € em que circunstancias se escavou o fosso? Isso vale a pena ser examinado. i DESAJEITADOS E INABEIS wO Renascimento é¢ a decadéncia», dizia Henri Ma- tise. O termo Renascimento (Ripascita) foi utilizade pela primeira vez-por Vasari nos meados do século XVI. Ile dizia bem o que pretendia dizer, o que ainda significa para o grande numero. «As artes e as letras, que pareciam ter socobrado no mesmo naufragio que a sociedade. ro‘ mana, pareceram reflorir e, apéds dez séculos de trevas, brilhar com novo clarao.» Assim se exprime em 1872 0 Dictionnaire général des lettres’, uma enciclopédia, entre muitas outras, dos fins do século XIX, através das «uais se percebe perfeitamente a opiniao geral da época € 9 seu ofvel cultural. O que «renasce», pois, no século XVI sao as artes e as letras cl4ssicas. Na visio, na mentalidade, desse tempo (e nao s5 da século XVI, mas dos trés séculos. seguintes) teria havido duas épocas de brilho: Antiguidade e Re- nascimento — os tempos. classicos. E, entre eles, uma aidade média» — periodo intermediario, bloco. uniforme, aséculos grosseiross, «tempos obscuros». Na nossa época de andlise estrutural, nao deixa de (er imteresse determo-nos um pouco sobre as razGes que puderam conduzir a esta visio global do nosso passado ‘ Bachelet e Dzobry, publicado no Delagrave, 1872. Os au- tores citados tinham-se rodeado, pata a publicaciéo dos seus ar- tigos, duma larga colaboracio: a énielligenrsia do tempo. 16 REGINE PERNOUD Nos estamos bem colocados para o fazer, porque o pres- tigio dos tempos classicos esté hoje largamente dissipado. Qs iiltimos fragmentos nfo resistiram a Maio de 68. Se alguma confuséo reina hoje nessa nova anilise dos valores classics, isso fornece-nos, pelo menos, um retro- cesso proveitoso, uma certa liberdade de espirito para com eles. O que caracterizou, pois, o Renascimento foi — toda a gente esta de acordo em o teconhecer — a -redescoberta da antiguidade, Tudo 9 que conta entéo no mundo das artes, das letras, do pensamento, manifesta esse entu- siasmo pelo mundo antigo. Recordemos que, em Florenga, Lourengo de Médicis celebrava todos os anos com um banquete 9 aniversério do nascimento de Platio, que Dante tomara Virgilio por guia nos Infernos, que Erasmo venerava Cicero como um santo. O movimento comegara ma Italia, antes mesmo do século KV; propagara-se a Franga, principalmente no século seguinte, e atingia mais ou menos o Ocidente, a Europa inteira: basta evocar, numa palavra, a Florenca dos Médicis, onde todos. os mo- numentos sio decorados com frontées, colunatas, cupulas ——como na arquitectura antiga—-, 0 Colégio de Franga, onde todos os humanistas se aplicavam a estudar com ardor sem igual as letras antigas, o manifesto da Pléiade, que proclama a necessidade de enriquecer a lingua fran- cesa recorrendo ao vocabuldrie grego ¢ latino... Ora, se examinarmos em que consistie 20 certo este Renascimento do pensamento e da expresso antigos, pa- rece, a principio, que nao se tratava senao, duma certa antiguidade, a de Péticles, para a Grécia, e, pata: Roma, aquela que se inspira no século de Péricles. Em resumo, © pensamento, a expressao classicas, e sé eles: os Romanos de César e de Augusto, nao os Etruscos: o Partenon, mas nio Creta ou Micenas; alids, a arquitectura era Vitravio, a esculcura Praxfteles. Estamos a esquematizar, certamente, mas nao mais do que aqueles que empregam a palavra: Renascimento, Ora, toda a gente a emprega. 0 MITO DA IDADE MEDIA Ay Usam-na_mesmo.a--propésito. de tudo. Porque, com © ptogresso da histéria, ndo deixou de se aperceber que, tle facto, na Idade Média, os autores latinos, ¢ até os (legos, eram ja muito conhecidos; que o.contributo do. mundo antigo, classico ou nao, estava longe de ser des- prexado ou rejeitado, Basta recordar que um. autor mistico ‘omo Bernard de Clairvaux emprega uma prosa toda techeada de citag6es antigas e que, quando quer trogar ili vaidade dum. saber..unicamente. intelectual, fa-lo_ ci- (wido um autor antigo, Pérsio; nfo se ousaria afirmar (le este autor tenha feito, parte da bagagem de todos 0) ineelectuais nos tempos mais classicos. Por isso, alguns eruditos do nosso século deram um tiovd sentido ao termo renascimento. Constatando que 4 volta de Carlos Magno se falava assiduamente dos witores latinos e gregos, falaram de «Renascimento, caro-_ \Ingeo», e o termo é comummente aceite. Outros, ainda init Ousados, falaram de «Renascimento do século XII», ou mesmo «de humanismo medieval» — sem conseguirem li muito, parece, impor-uma-—ou outra expressio, dis- sonunte em. relagéoao uso. corrente, Vai-se assim de jenascimento em renascimento, 9 que nao deixa de pa- (ecer suspeico. Consultando as fontes do tempo, textos ou monu- (Mentos, reconhece-se que o que caracteriza o Renasci- iento, o do século XVI, e torna esta época diferente (lis que a precederam é que ela pGe como principio \ imitagio do. mundo classico, O conhecimento. desse iwundo ja se cultivava. Como no recordar aqui a im- portincia que teve, nas artes, A Arte de Amar, de Ovidio, | partir do século XI, ou ainda, no pensamento, a filo- olin aristotélica no século XIU. Basta o simples bom senso para Jevar a compreender que o Renascimento nao feria podido dar-se se os textos antigos nao tivessem silo conservados em manuscritos recopiados dusante os wculox medievais, Tem-se evocado muita vez, é verdade, para explicar esta «redescoberta» de autores antigos, a Heh — 2 18 REGINE PHRNOUD pilhagem de Constantinopla pelos Turcos em 1453, que teria especialmente tido como resultado trazer para a Eu- ropa bibliotecas de autores antigos conservadas em Bi- z4ncio, mas, quando se examinam os factos, vé-se que isso nao desempenhou senio uma etapa minima, nfo sendo de forma alguma determinante. Os catdlogos de bibliotecas que nos foram conservados, anteriores ao sé- culo XV, provam-no abundantemente. Para darmos um exemplo, a biblioteca do Mont-Saint-Michel,.no.século. KH, possuia textos de Catéo, o Timex de Platio (em tradugio Jatina), diversas obras de Aristételes ¢ de Cicero, ex- tractos de Virgilio e-de- Horacio... © que era novo era o uso que se fazia, se se pode dizer, da _antiguidade classica. Em vez de ver ai, como anteriormente, um tesouro a explorar (tesouro de sabe- doria, de ciéncia, de processos artisticos ou literarios, no qual se podia indefinidamente colher), comecava-se a con- siderar as obras antigas como modelos a imitar. Os an- tigos tinham realizado obras. perfeitas; tinham alcangado a propria beleza, Entio, quanto mais se imitassem as suas obras, mais se estaria certo de alcancar a beleza. Hoje parece-nos impossivel admitir que a admiracao, em arte, deva conduzir a imitar formalmente o que se admira, a considerar como lei a imitagio. Todavia, foi © que se produziu no século XVI. Para exprimir a admi- tagéo que sentia pelos filésofos antigos, um Bernard de Chartres, no século XI, exclamou: «Nés somos andes erguidos aos ombros de gigantes.» Ele nao concluia daf senfo que, levado pelos antigos, podia aver mais longe do que cles». Mas é a propria maneira de ver que muda na época do Renascimento. Repelindo até a ideia de «ver mais Jonge» do que os antigos, recusam-se a considerd-los de outro modo sen’o como modelos de toda a beleza pas- sada, presente ¢ futura, Fendmeno alids curioso na_his- téria da humanidade: cle dé-se no momento em que s¢ 0 MITO DA IDADE M&DIA 19 ilescobrem imensas terras desconhecidas, outros oceanos, ui novo continente. Ora, na mesma época, em Franga jobretudo, longe de se virarem pata esses horizontes novos, viram-se para o que ha de mais antigo no antigo mundo. I! imaginam de boa-fé que descobrem um autor como Vitrlivio, por exemplo, ao qual se vao buscar as leis da arquitectura cldssica, quando, sabe-se hoje, os manuscritos de Vitriyio eram relativamente numerosos nas biblio- tecas medievais, dos quais ainda hoje subsistem uns cin- quenta exemplares, todos.anteriores ao século XVI. Sim- plesmente, quando, na Idade Média, se copiava Vitrivio, estudavami-se os principios sem sentir a necessidade de os aplicar exactamente*, Veremos mais longe a lei da imitagéo enunciada no dominio das letras. No que se refere & arquitectura e as artes plasticas, é suficiente constatar a separagio, bem visivel ainda hoje, entre monumentos medievais e os que nos deixaram o século XVI e os tempos classicos. Quase nfo h4_uma.cidade-em Franga em que nfo possam ver-se tantas vezes, lado a lado, os testemunhos dessas duas épocas, tio bem marcados nos seus contrastes e na sua sucessio mo tempo como nos estratos arqueoldégicos que se destacam ao longo das pesquisas. O exemplo mais simples existe em Paris, q contraste que apresenta dum lado e do outro do Sena, dum lado 2 Sainte-Chapelle e as torres da Conciergerie, de outro o patio do Louvre. A di- ferenca é tio evidente como a que se produziu sob os olhos dos Parisienses quando, em 1549, por ocasido da entrada de Henrique I] em Paris, se decidiu acabar com ? Recordemos aqui a histéria que conta Bertrand Gille, historiador das técnicas. Quandc, em 1527-1526, 0 Senado de Veneza quis mandar corstruis um tipo de barco adaprado 4 lua contra os piratas, desenharam-se os planos dum mestre operitio para se adoptar entusiasticamente o projecto duma quinquerreme imitada dos modelos antigos € apresentada por um humanista chamado Faustus. Techniques et Civilisations, HM, n° 5 © 6, p. 121, 1953. 20 BMINE i BENOUE 0 MITO DA IDADH MAaDIA 21 os bateleiges* de outros tempos. Todo esse conjunto, simultaneamente cortejo e arraial, que precedentemente acolhia o rei no local que se tornara a sua capital, foi sactificado para ser substituido por decoragées 4 antiga, colunas, frontées, capitéis déricos, jénicos ou corintios, nos quais se nao deixavam manobrar senao ninfas ou satiros que pareciam estituas gregas ou romanas. A fa- chada da igreja de Saint-Etienne-du-Mont, que data desse tempo, mostra, em toda a sua ingenuidade, o desejo de copiar fielmente as trés ordens antigas, amontoadas umas sobre as outras, enquanto o Panthéon, mais tardio, esse, reproduz, com toda a fidelidade, os tempos classicos. Hoje, o que nos parece injustificavel ¢ © préprio prin- ctpio da imitacio, 0 gosto do modelo, a cdpia. E Colbert incumbindo os jovens que enviava a Roma para apren- derem belas-artes de «copiarem exactamente as obras-pri- mas antigas sem lhes acrescentarem nada», Ter-se-4 vi- vido dentro deste principio de imitagdo, pelo menos nos meios oficiais, até uma época muito proéxima da nossa, Em Franga, sobretudo, onde a cultura classica foi até ao nosso tempo considerada como a Gnica forma de cultura. Recordemos que, muito recentemente ainda, nfo se podia pretender ser culto sem conhecer o latim, ou até o grego; € que, até a uma data muito préxima de nés, o essencial do trabalho dos alunos de Belas-Artes em todas as secgdes, incluindo a arquitectura, consistia em desenhar gessos gregos ou romanos. Os tempos cldssicos nfio concederam algum valor artistico senZo a certas obras —que nao eram as melhor ‘escolhidas nem as mais auténticas— da arte chinesa, objecto duma moda passageita no sé- culo XVII; ou ainda, a seguir As campanhas napolednicas, a arte clissica egipcia. Fora estas duas concessies 20 «exotismon, toda a beleza se resumia no Parthénon, em arquitectura, e na Vénws de Milo, em escultura. © que surpreende hoje —sem nada titar 4 admiracio que o Parthénon e a Vénws de Milo podem provocar — 6 que semelhante estreiteza de vistas tenha podido fazer lei durante quatro séculos, aproximadamente. No entanto, assim foi: a visio classica, a que se impés ao Ocidente mais ow menos uniformemente, nao admitia outro es- quema, outro critério, senao a antiguidade classica. Mais uma vez se pusera como principio que a beleza perfeita fora atingida durante o século de Péricles e que, por convequéncia, quanto mais se aproximasse das obras desse tempo, melhor se atingiria a perfeigi im si, se se admitir em arte definigées e modelos, outa estética teria sido tao valida como muitas outras Nilo a minima necessidade, alias, de demonstrar que oli o foi: basta considerar 0 que ela nos deixou, mansGes (tistocrdticas da ilha de Saint-Louis em Paris, as de (wntas cidades como Dijon, Montpellier ou Aix-la-Pro- vence, O que é estranho é 0 seu cardcter exclusivo e abso lito, provocando o anftema sobre a Idade Média, Tudo 0 que nao estava conforme a plastica grega ou latina eta impiedosamente.. rejeitado. Era .«o deslavado gosto jielos ornamentos géticos», de que fala Moliére. «A me- lida que as artes se foram. aperfeigoando», escrevia. um worlco, o abade Laugier, nas suas Observagbes sobre a Ar- yuilectura, quis-se-substituir nas nossas..igrejas goticas os \lilleulos enfeites que as desfiguravam por ornamentos lim gosto mais requintado e mais ‘puro.» E ele’ felicita- viiwe por ver, no coro da igreja de Saint-Germain-lAu- verrols, os pilares: géticos «metamorfoseados em colunas caneladasy, A imitagéo da antiguidade votava a destruigio 6) testemunhos dos tempos. «géticosn. (desde. Rabelais. que © fermo era empregado-com o significado de «barbaro») Havas Obras eram demasiado numerosas ¢ teria sido muito iypendioso destrui-las todas, por isso um grande mimero sibsintiu, valha-nos isso; mas sabe-se que se editou um _' A palavea vem de batslewr: saltimbanco, apresentador di tiahalho no século XVIL para guiar e aconselhar utilmente Petey, chegada doves era ocasiao, de: fewrjps novia fijiieley que quisessem -destruir-os edificios géticos, que. 22 REGINE PERNOUD nas cidades vistas agora ao gosto do tempo, prejudicavam demasiadas vezes a perspectiva: era necessdrio que tudo fosse repensado, ordenado, cortigido, segundo as leis ¢ as tegtas que as tornariam de acordo com Vitriivio ¢ Vasari Nio deixarao de se espantar perante este enunciado da lei da imitagéo; falarao de simplismo e Protestario em nome do génio triunfante, pelo seu génio precisa- mente, contra a lei da imitagao e dos seus corolarios, cénones académicos e outros, Nao nos daremos ao trabalho de refutar esses pro- testos: evidentemente que seria absurdo negar a beleza ea grandiosidade desses monumentos dos séculos classicos nascidos duma vontade de imitagio, que o génio dos seus autores soube efectivamente assimilar. E esse absurdo seria tanto mais flagrante que nao faria semfio renovar 0 ex- clusivo que caracterizou justamente os séculos académicos. N&o serd um dos beneficios da histéria o~ensindr-nos a mo renovar os erros do passado, na ocorréncia essa estreiteza de vista que impedia de accitar o que nag era conforme a estética do momento, isto é.a da antiguidade? A verdade é que a histéria da arte se elaborou no tempo €m que reinava, sem contestacio, esta visdo clas- sica, Parecia entio tio normal identificar-o belo absoluto com as obras da antiguidade, com o Apolo de Belvedere ou o Avgasto do Vaticano, que muito naturalmente se submetiam 4s mesmas normas as obras da Idade Média. Como escreveu André Malraux: «Tinha-se a ideia precon- cebida de que o escultor gético desejara esculpir uma estatua classica, ¢ que, se nfo o fizera, era porque nao tinha sabido.» E que dizer do escultor romano? Ele bem gostaria de ter feito estatuas como a Vitéria de Samotrdcia, mas, muito infeliz por nfo o conseguir, tivera de se contentar, a bem ou a mal, em esculpir os capitéis de Vézelay ou o portal de Moissac; ele teria gostado tanto de fazer, segundo a expressio do tal historiador de. arte, «uma verdadeita estétua que se pudesse admirar...», ele O MITO DA IDADE MEDIA 23 teria gostado tanto de imitar o friso do Parthenon ou a coluna de Trajano... Mas nao, na sua «falta de jeiton e na sua «falta de habilidadey — sao os dois termos consagrados que se usava na nossa juventude, e nfo estou certa de que nao sejam ainda utilizados, pelo menos na escola, para qualificar os artistas romanos—, eles nao conseguiam senao rodear o Cristo de Autun duma criagio vertiginosa e gravar a histéria da Salvacaéo no portal real de Chartres... Nés nig evocamos aqui senio a esculcura, porque a pintura, essa —ou, melhor, a cor—, fazia a tal ponto horror aos séculos classicos que nao se encontrara outra solugéo senao cobrir os frescos romanos dum revestimento ou quebrar os vitrais, para os substituir por vidros brancos. Foi 0 que se passou um pouco por toda a parte. Podemos considerar que em Chartres, em Mans, em Estrasburgo, em Bruges, apenas felizes esquecimentos nos permitem hoje ter uma ideia do que foi o conjunto de cores da época; as rosas do transepto da Notre-Dame de Paris foram preservadas — se abstrairmos dos estragos da época revoluciondria — apenas porque se receava nao se poder tecnicamente refazé-las — o que, aqui entre nds, era render uma bela homenagem aos edificadores da Idade Média! A grande arte dos tempos classicos era a escultura, 0 alto-releyo, de que existe precisamente muito pouco nos séculos. medievais, e isto por. toda a espécie de razGes, mas -principalmente porque se prefere animar uma super- ficie a executar um objecto em trés dimensées, Por isso, uma quest&o crucial para.a histéria da arte da Idade Média foi:. como. é.que.os. escultores puderam «te-aprendery a esculpir? Partia-se do principio de que a escultura fora uma arte «esquecidan, Todas as vezes que se tenta fazé-lo, séo «desajeitados ensaios, dignos duma criangay (o termo é de desdém, ¢ nao de admiragio, como seria sem divida © caso hoje), Daf os juizos de valor feitos pelos historia- dores de arte: estétua eduma fealdade selvagem» (tra- ta-se da famosa Sainte-Foy do tesouro de Conques), «ilus- 24 REGINE PHRNOUD tragdes muito grosseirasy (trata-se da famosa Biblia de Amiens), «uma horrorosa imitacio do rosto humano ‘»... A éptica classica teve uma outra consequéncia, de que ainda nao nos libertémos na hora actual: o método que consiste em nao estudar numa obra senfo as sori- gens» e as «influéncias» de que ela procede, Evidentemente que, como nao ha nada que nasga de nada, o estudo das fontes e das origens é indispensivel em cada disciplina. Mas reduzir a histéria da arte ao estudo das «influénciass que puderam conduzir a esta ou Aquela forma de arte arrastava conclus6es aberrantes. A obra dos tempos clssicos reclama-se da imitagao do mundo antigo; ela submete-se a modelos; reivindicam-nos, alids. Este escultor alcancou a gléria por ter observado perfeicamente os cAnones de Policleto; aquele pintor por se ter rigorosamente submetido as leis da perspectiva Sabe-se 0 entusiasmo que provocava em Leonardo da Vinci o facto de ter visto um cdo ladrar por reconhecer o dono num quadro, de tal modo a semelhanga eta exacta Mas bastava ter percorrido esse cédigo do culto do estilo descolorido que € 0 Essai sur la peinture de Diderot, para compreender como é que a prépria pintura nao era con- cebida senao em relagig a todo um aparelho de leis e de referéncias, gragas ao qual a perfeigéo era garantida: assim, ele enuncia as. leis da «paisagem histéricay e as da «paisagem ordindria», que hoje fariam encolher os ombros ao leitor menos prevenido. Partindd destes mesmos principios, toda uma. coorte de historiadores de arte suou sangue pata encontrar na arte da Idade Média origens, influéncias, fontes, a partir das quais se teria exercido a imitagio. Porque, enfim, era preciso mesmo que eles tivessem imitado alguma coisa, * Nao daremos aqui seferéncias nossas: estas citagGes sfo ex- traidas de obras devidas a historiadores, alias, cheios de méritos, mas mais dotados no aspecto da erudi¢io do que da sensibilidade artistica, O MiTO DA IDADE MEDIA pois a arte consistia em imitar ou a matureza, ou os mestres antigos, os quais tinham imitado a natureza. Dai singulares equivocos. No século XVIN ninguém duvidava de que toda a nossa arte gética tivesse sido implantada pelos Arabes! No século seguinte a histéria da arte, tor- nada mais cientifica, nao. admitia menos & partida.o prin- c{pio da imitagZ0. Mas, como as diferengas entre a obra ¢ 0 «modelo» eram demasiado evidentes, iam procurar noutra parte. No principio do século KIX o historiador Strzygowki intitulava a sua obra: Oriente on Roma? A pergunta parecia perturbante; hoje ela parece-nos um tanto ingénua.Na-impossibilidade- de se encontrar em Roma o modelo pretendido, procurava-se na banda do Oriente, termo..cuja bem-aventurada incertéza alargava, pelo menos, o campo. das investigacdes. E chegava-se a flagrantes parvoices, como este comentario que nds ja tivemos ocasio de referir a propdsito do capitel da igreja de Saint-Andoche de Saulieu, ao mostrar folhagens esti- lizadas: «Folhas de amieiro. Arvore sagrada dos Persas. Influéncia perso-sassinida.» A imagem do escultorzinho burgonhés que se aplicava a imitat os Petsas.sassinidas ‘pode resumir suficieatemente os erros a que conduzia a atitude dos -historiadores de arte que se obstinavam em estudar, nZo as obras em si, na sociedade que as vira nascer, respondendo. & sua’ mentalidade, mas nas relagdes que elas podiam ter como arquétipos supostos, que por vezes se ia procurar muito longe... Paralelamente, a visio classica levava a nao dar inte- resse seno as cenas figuradas, aquelas que, pelo menos, representassem alguma coisa (desajeitadamente, diga-se). Podia-se entéo encontrar textos, identificar os assuntos evocados, estabelecer filiagdes, verificar influéncias, entre- gar-se, enfim, a todos os exercicios necessdrios ao histo- riador de arte, segundo as normas em uso. Se bem que a arte romana tenha apresentado uma notvel resisténcia a filiacgSes e influéncias (e compreende-se que a Sorbonne as tenha-recebido com frieza), tendéncias deste género 26 REGINE PRRNOUD terio viciado a arte medieval, até 4 sua descoberta pelos romanticos, cujos méritos nunca serio demasiado afir- mados, Recordemos que é a Vitor Hugo que se deve © podermos contemplar hoje a Notre-Dame de Paris, assim como a Viollet-le-Duc. N&o obstante, na sua época o prin- cipio de imitagio continuava a reinar, tio bem, ai de mim, que se imitou a «Idade Média» como ‘se tinha imitado a antiguidade. O resultado foi a igreja de Sainte- -Clotilde, em Paris, cépia fiel duma catedral gética — tio fiel que nao apresentava nenhuma espécie de interesse, nZo mais do que a igreja da Madeleine, copia fiel do Partenon. Ora, a atencfo prestada aos testemunhos «desses cem- pos a que se chamam obscuros», no dominio artistico como nas letras, leva a compreender até que ponto toda a arte na Idade Média € invencao. Testemunho precioso, porque se apoia no valor e no interesse dos esforgos rea- lizados muito mais tarde, num século de revolugio ar- tistica. Um Monet, um Cézanne, estavam mais perto dos pintores de Saint-Savin e de Berzé-la-Ville do que de, Poussin ou de Greuze; um Matisse viveu tempo bastante para se dar conta disso: «Se eu os tivesse conhecido, isso ter-me-ia evitado vinte anos de trabalho», dizia ele, ao sa. da primeisa exposigz0 de frescos comanos feita em. Franca, pouco depois da guerra de i940. E é bem evi- dente que o génio de um Matisse se exprimia de forma diferente -do dos pintores romanos, mas ¢ conkecimento dos pintores romanos ter-lhe-ia teazido precisamente essa liberdade interior que ele s6 pudera conquistar pouco a pouco, e contra aquilo que Ihe tinham ensinado. As discussées de escola sobte a «arte-invengio» ou a @arte-imitagZo» sao certamente totalmente ultrapassadas hoje. No entanto, era necessario fazer-lhe mengio, porque até 4 mossa geracao; inclusive, elas apresentaram uma grande importancia, quer se trate da expressio plastica ou poética, O nome do poeta nos tempos feudais foi: O MITO DA IDADE MEDIA 27 0 troveiro®, 0 que encontra, 0 encontrador, trevador — por outras palavras:..oinventor. O termo imventar toma aqui o seu sentido forte, o que ele reveste quando se fala do inventor dum tesouro, ou da festa da Invengio da Santa Cruz. Inventar é pdr em jogo, simultaneamente, a ima- ginagao e a busca, e é 0 comeco de toda a criag&o artis- tica ou poética. As geragdes de hoje isso parece evidente. Acontece que, durante quatrocentos. anos, é 0 postulado contrario. que_se.imp6e com uma evidéncia semelhante. Quase nZo nos podemos espantar se uma certa confusio se manifesta no. nosso.tempo. quanto as formas nas quais se exprime a invengéo e a capacidade de. criagao. Deste ponto de vista, o estudo do passado pode ser muito instrutivo: é espantoso, com efeito, que o amador de arte romana, ao percorrer a Europa e o Préximo Oriente, possa encontrar por toda a parte os mesmos tipos de arquitectura, as mesmas abdbodas em arco de volta inteira que sustém os mesmos pilares, os mesmos vaos de janela em semicirculo, em resumo, monumentos todos resultantes da mesma inspiragio. Poderiam fazer-se a propésito da época romana as mesmas objeccGes que a propésito dos tempos mais modernos e aplicar-lhes as mesmas criticas que a uniformidade fatigante dos «grandes conjuntos», idéaticos, dum extremo ag outro dos cinco continentes, suscita. Basta dizer que o estudo da atte romana podia levar 0 criador do nosso tempo a perguntar a si préprio’ onde se situa actualmente a invencZo. Com efeito, nds assis- timos hoje a uma busca de originalidade que, em pintura, por exemplo, chega ao frenesim, enquanto, paralelamente, 0 arquitecto do H.L.M.* e outras equipas populares renunciam e pedem a demissiio, fazendo da cidade um universo.de coelheiras, no momento em que, repentina- * Em francés, trozvere, de trouver (encontrar). (N. do T.) * Habitation & Loyer Modéré — Casas de renda moderada. (N. do E,) 28 REGINE PEHRNOUD mente, a juventude toma consciéncia de que o homem nao. pode viver como-um-coelho: A formagio do arquitecto nfo seria aqui a causa disso? Os arquitectos do tempo classico, e o ensino da arquitec- tura até ao nosso tempo, consideraram os problemas do exterior; 0 efeito produzido, aspecto das fachadas, o ali- nhamento regular das construgées, os frontées, as decora- gGes 4 antiga... Nao lembrava a ninguém, em Franca sobretudo, comegar por examinar quais podiam ser as necessidades dos utentes, Num tempo em que se realizavam progressos decisivos nas técnicas da construgao, nfo estava longe o momento em que se compreenderia que se podia passar sem arqui- tecto, que os problemas essenciais da construgao eram os do engenheiro: problemas de resist€ncia dos. materiais, de disposigdes interiores, etc. Mas as primeicas grandes realizagdes duma arquitec- tura realmente moderna surgiram 4 luz bem longe de nés, na Finlandia, com um Saarinen, nos Estados Unidos, com um Frank Lloyd Weight, etc. Porque € em Franca que os cAanones da arquitectura classica pesarém~ mais tempo e mais forte sobre a formagio do arquitecto. O unico construtor que, entre nés, inovou mais~resoluta- mente, ou que, pelo menos, adoprou, alguns .principios tendo em conta o homem que. ia viver nos seus edificios € um estrangeiro, Le Corbusier, que nao frequentow a escola das Belas-Artes. E artificialmente que se tenta hoje manter um lugar a0 atquitecto; o papel para que ele foi preparado ja nio é admissivel; nascida com os tempos clissicos, ele morreu provavelmente com eles; as lucubracées a que se entregam alguns de entre eles j4 quase n’o podem tepresentat senfo dispendiosas fantasias. Os arquitectos a quem foi confiada a construg¢io duma nova basilica em Lurdes tiveram, pelo menos, a humildade de confessar antecipadamente a sua incompeténcia, preferindo um edi- ficio puramente funcional, e, em qualquer caso, subter- QO MITO DA IDADE MEDIA 29 rineo (o que valia mais). O contraste é surpreendente entre esta espécie de impoténcia confessa que se cons- tata no dominio da construgfo e os éxitos seguros noutros dominios, como os das estradas, pavimentos, aviagio: éxitos técnicos, que sio também, a maior parte das vezes, éxitos estéticos, O drama nfo teria sido o querer primeiro «fazer esté- tican? Nig se deixara de objectar aqui esses sucessos in- compardveis que séo as habitacdes e palacios dos sé- culos XVII e XVII, os castelos dos grandes financeiros ou dos grandes parlamentarios do tempo, sem falar em Ver- salhes, Nao se trata, evidentemente, de os contestar. Eles pertencem a uma época e a concepcGes que j4 néo podem ter curso hoje; alias, elas implicavam um gosto do fausto e mais ainda, das tradigdes manuais nos construtotes, que, com o decorrer do tempo, se foram esgotando, A igreja da Madeleine esté exactamente na linha do Palais-Bourbon; apenas a elegancia desapareceu, A comparagio leva a pdr a questio da arte e do luxo. O século XIX nao duvidou um instante da interdepen- déneia deles. O imefavel Thiers, ao fazer a apologia do burgués, nfo deixava de dar a entender que era o rico que produzia a arte, pela sua magnificéncia. Toda a con- cepgao classica Ihe dava raz@o, mas faltava-lhe compreender a diferenga entre arte'e 0 objectivo da arte, eo resultado era. a-sua- coleccao. pessoal, terrivel. bricabraque de gessos antigos-e-de-cépias-de valor de Roma num ambiente de estilo Lufs-Filipe. 5 Por esse mesmo tempo, aqueles em quem vivia um ver- dadeiro fervor artistico viam-se repelidos duma sociedade tornada decididamente incapaz de discernir uma qualidade de arte fora de conceitos académicos. Dai o fenémeno que marca fo profundamente a época e que faz da histéria da arte, nos fins do século XIX e comegos do XX, um verdadeito martirolégio: miséria, loucura, sui- cidios, basta evocar os nomes de Soutine, Gauguin, Mo- digliani, Van Gogh, etc. Artifices duma revolugio pic- 30 REGINE PERNOUD tural que nos libertava da visio classica, que em breve ia permitir a um maior nimero ver de modo diferente dos cinones académicos, eram banidos. duma_sociedade estagnada nos seus hdbitos de espitito; todo o sentimento de admiragio pelas suas obras, que nos parece natural, era taxado de extravagincia. Esta atitude domina até ao momento em que o burgués francés teve de repente a au- dacia de pensar que petdera excelentes negécios e que a atte podia ser também riqueza. Daf o movimento inverso, que fez que, em hasta ptblica, um Gauguin tivesse custado mais caro de que uma catedral gética’, mas trata-se, para dizer a verdade, dum capitulo muito marginal da histéria da arte verdadeira. As geracdes vin- douras (o movimento j4 est4 iniciado) nfo ficario sem divida pouco escandalizadas ao constatar que a nossa tinha conduzido a arte para o dominio da especulagao, manifestando até nesse campo a confianga ingénua nos algatismos que parece caracterizar © nosso século XX; a sua gloria nfo serd aumentada por isso. E pode perguntat-se se esses jovens que viam na obra de arte um momento de éxtase, um Aappewing, que se provoca e se destrdi, se for necessdrio, uma vez. pas- sada a emocio, nio estavam, no fim de contas, mais prd- ximos das concepgGes pré-classicas — conrando, todavia, que cles confundiam o presente com o instante, Durante todo o periodg medieval, com efeito, a arte nao € sepa- rada das suas origens. Queremos dizer que ela exprime © sagrado. E esta ligagfo entre a arte ¢ 0 sagrado_existe nas proprias fibras do homem em todas as civilizagbes; os especialistas da pré-histéria confirmam-nos o facto, e isso desde a apari¢go da arte das cavernas".. Todas as * Uma igreja gética em Senlis foi posta em venda pelo preco de 13 milhdes de antigos francos; quantos quadros ulwapassaram esse valor, na mesma altura. T Contentemo-nos em aconselhar a consulta da obra de André Leroi-Gouthan, entre outras, a Préhistoire de l'art occidental, Paris, Mazenod, 1965. O MITO DA IDADE MEDIA 31 ragas, sob todos os climas, atestaram -sucessivamente esta intima comunhfio, esta tendéncia inerente.ao homem que © leva a exprimir o sagrado, o transcendente, nessa lin- guagem auxiliar que é a arte, sob todas as suas formas. Assim, cada gerac&o teve, através dos tempos e do espaco, © seu prdprio rosto, e as facilidades actuais de desloca- mento e de reprodugag permitem-nos reencontrar esse rosto. Ora, é muito significativo constatar que a falha, a queda, da actividade artistica corresponde a0 momento em que aparece, no século XIX, uma concep¢ao mercan- tilista do «do objecto de arte». E nao é menos revelador que surja, na mesma época, o «objecto de piedaden, pie- doso decalque do sagrado para uso do negociante. Ainda hoje é impressionante ver-a-que-ponto a impoténcia artis- tica estd ligada & auséncia do sagrado. Alguns paises, algumas seitas, algumas igrejas também, alguns edificios religiosos até, fazem gala no seu afastamento do sagrado, sob todas as formas, pela sua cruel indigéncia artistica. E isso n&o est& de maneira nenhuma ligado, como ainda se podia crer no século passado, a riqueza ou a pobreza, Porque ha uma pobreza verdadeira que muitas vezes é magnifica: a da pintura das catacumbas, a de tantas das nossas igrejas do campo. Pelo contrrio, a beleza original de muitos edificios tera sido destruida hoje por padres fervorosos, animados dum louvavel desejo de pobreza, mas que confundiam o que é pobre com o que é apenas sdrdido. Talvez seja nesta direccZo que seja preciso procurar 0 segredo dessa capacidade de criag&o que faz do menor capitel romano, tao semelhante nas suas linhas a todos os outros, tao obediente na sua forma 4 arquitectura geral do ediffcio, uma obra de invencio; uma obra de arte tio pessoal que a cépia mais fiel, o molde mais exacto, criario 4 traig#o. O seu_caracter.funcional, a sua_utilidade técnica, longe de prejudicar a qualidade artistica, sio os seus sus- (enticulos mais ou menos obrigatérios, porque a arte nao 32 REGINE PHRNOUD pode ser «acrescentadan ao objecto util, contrariamente a0 que acreditavam. Ruskin e a sua escola: ela nasce com ele; ela é 0. préprio espirita que da vida ou entio nao existe. Tal é, pelo. menos, .o ensinamento que se tira da arte gética, como da romana, e, esse ensinamento, 0 nosso tempo encontra-se singularmente preparado para o admitir. Para retomar a questo no seu conjunto, no ¢ exa- gerado dizer que na época romana, como na época mo- derna, a arquitectura foi concebida segundo as normas mais ou menos semelhantes em toda a parte, que um certo acordo parece estar feito, conscientemente ou nao, sobre medidas ou nédulos de base, segundo planos mais ou menos delibetados. O mais claro exemplo é o das abadias, nas quais a disposigéo das construgdes é por toda a parte a mesma, respondendo 4s necessidades da vida em comum: capela, dormitério, refeitério, claustro e sala capitular, com variantes que correspondem aos modos das diversas ordens: pequenas celas dos Cartuxos, granjas e «fabricas» cistercienses, etc. Sem diivida, a arquitectura jamais ter4 respondido tanto a esquemas comuns através da variedade das populag6es; nunca o seu caracter funcio- nal tera sido mais fortemente marcado, quer se trate de construgées religiosas quer de fortalezas; sio as meces- sidades da liturgia, num caso, da defesa, no outro, que ditam as formas arquitecténicas, Por isso se véem através de toda a Europa e do Pré- ximo Oriente edificios romanos semelhantes. Desde o mais humilde — igrejinhas de campo ou capelas dos Tem- plarios construfdas sobre um simples plano rectangular, com uma abside semicircular que fixa o coro, ou mesmo uma abside plana, é o esquema inicial, que corresponde.a uma dupla necessidade de lugar de culto e de lugar de reuniao—, até A vasta igreja de peregrinacio, que comporta, & yolta do coro, o deambulatério, que pez- mite a circulagio e sobre 9 qual se inserem as capelas O MITO DA IDADE MEDIA 83 resplandecentes onde os padres de passagem dirio a sua missa, a tripla nave, & qual corresponde o triplo Pportio, as tribunas que permitem alojar a multidio, etc. Do mesmo modo que as diferenciagées que surgirig com a arquitec- tura gética nasceram de desenvolvimentos técnicos como a invengio da janela com ogiva e a do arcobotante. Tal como a arquitectura dos castelos esta ligada & evoluga0 da tactica dos cercos e ao progresso do armamento. Como se explica que todos os edificios se apresentem numa singularidade que impede absolutamente que o con- fundamos com um outro do mesmo tipo? Comp se explica que a abadia de Fontenay seja téo diferente da do Tho- ronet, quando tanto num como noutro caso se trata de abadias cistercianas se responde 4s mesmas necessidades originais, &% mesmas normas de fundacio e ao mesmo plano? Em que é que esses cambiantes so suficientemente marcados para que nao se possam confundir trés abadias- -itmas e pertencendg & mesma regido, como o Thoronet, Silvacane ¢ Sénanque? Noutros lugares poderiam explicar-se as particularidades pela escultura, pelos ornatos, Mas este, precisamente nas igrejas cistercienses, é quase inexis- tente—o que continua a ser um imperativo de fungao, pois a auséncia.de escultura, de cor, de ornatos, é ditada pelo desejo de ascese que caracteriza a reforma cisterciense. Ora, de monumento pata monumento, é toda a arte romana que se encontra reinventada. O construtor soube por © seu sentido criador ao servigo das formas necessérias. Digamos melhor: fungOes necessarias, donde nasciam for- mas simultaneamente semelhantes e sem cessar renovadas. bia-se enta que o homem nao concebe formas, para falar com propriedade, mas que pode imaginar inesgota- velmente combinag6es de fo-mas, Tudo Ihe setvia de pre- fexto A criagao; tudo o que a sua visio The sugeria se tornava para ele tema de ornamento. Porque © ornamento é inseparavel do edificio € cresce com ele, num acordo quase organico, Entendamo-nos: nao se trata nem de embelezamento nem de enfeites, mas sim 5-12 —8 34 REGINE PERNOUD O MITO DA. IDADE MEDIA 35 daquilo que exprime este tempo de ornamento no sentido em que a espada é 9 ornamento do cavaleito, segundo © exemplo apresentado. pelo historiador de arte Coomaras- wamy *. Pode-se compreender, por ornamento, esse aspecto necessario da obra util, que co-move-—o que, no sentido etimoldgico, significa: pér em movimento. Sabia-se entio que tudo o que o homem concebe ele tem 0 dever de o conceber em esplendor. Dai o tempo passado a esculpir a chave duma abébada ou dum capitel,. conforme o que a imaginacéo sugeria ao talhador de pedra—sem sair do lugar destinado a uma ou a outro no edificio. Dai, mais ainda a cor que antigamente animava toda a obra, tanto no interior como no exterior, mesmo que se tratasse duma catedral. As limpézas recentes permitiram, sabe-se, desco- brir muitos vestigios dessa pintura, que levava certo pre- Jado atménio de visita a Paris no fim do século KI a dizer que a fachada da Notre-Dame parecia uma bela pagina de manuscrito. iluminado. Os ornatos‘, na arte romana sobretudo, nao sio, de resto, usados senao com uma extrema economia, nas. jun- des de linhas ou de volumes, nos vaos (janelas, portais...), nas cornijas, Eaz pensar nas sequéncias decoradas que se intrometem por vezes no cantochao, exprimindo como elas um arrebatamento que entiquece o conjunto da melo- ® No seu estudo muito sugestivo intitulado Why exhibit works of art, Londres, Luzac, 1943. A. K. Coomaraswamy, con- gervador da secgéo medieval do museu de Béston, Mass. exerceu por meio dos seus esctitos uma influéncia certa sobre os pintores do nosso tempo, sobretudo em Albert Gleizes. Este, sabe-se, des- cobria com deleite a arte romana numa altura em que se fazia ainda gala, se se era um homem de gosto, no mais completo des- prezo para com ela. * Sera proveitosa a leicura, a esse respeito, da obra de J. Bal- uusaitis, Le Stylistique ornementale dans la sculpture romane, Paris, E. Lerroux, 1931, e também, bem entendido, as obras do genial H. Focillon, em particular a At @’Occident, Paris, A. Col- lin, 1938. dia. Finalmente, inspirou-se em alguns-temas~muito sim- ples, . Alias, nés j& mostramos ou tent4mos mostrar a impor- tancia destes temas de ornato, que sio para a expressio plastica o que as notas da escala so para a expressio musical ©, Alguns motives, sempte os mesmos, que em suma se encontram noutras civilizagées, parecem ter cons- tituido uma espécie de alfabeto pldstico duma época em que ninguém se interessava de maneira nenhuma em «re- “ptesentary a natureza, o Homem, a vida quotidiana em si préprios, mas onde_o mais humilde trago, 9 mais modesto toque de cor, significavam uma realidade também, e, a0 animar uma superficie util, comunicavam-lhe um_ certo reflexo da beleza do universo, visivel ou invisivel. Estes motivos percorrem toda a criagio romana, indefinidamente renovados, por vezes semelhantes a si préprios, como essas vigas ou «fitas plissadas» que sublinham incansavelmente as arcadas, 3s vezes tio desenvolvidas que dio origem a aberrantes vegetacSes ¢ a. seres monstruosos, As tnicas representagdes que chamam a atengéo do pintor ou do escultor sao as da Biblia, ela propria o mais vasto reper- trio de imagens que jamais foi fornecido ao homem, com 0 universo visivel. (tanto.a Sagrada Escritura como o Génesis, que eram ent&o considerados como «os dois trajos da-divindadew), E quase sé a partir do século XMM que a visio muda e que, sob a influéncia renovada de Aristételes, se desenvolve uma estética. das formas e. das proporgdes”. Por isso podemos admirar, um a um, todos os portais romanos, de Santiago de Compostela a Bamberg, ou todos os capitéis reunidos no museu de Augustins de Toulouse, > * Sources et Clés de Vert roman, j , pac R. Pernoud, M. Per- noud ¢ MM. Davy, Paris, Berg International, 1974. - i Ver Bruyne (Edgar de), Esudes d'esthétique médiévaie, Bruges, De Teepe AG 2 vols. Rijksuniversiteit te Gent, erken uigegeven door lteii ij Roce, ee iene ‘aculteit van de Wijsbegeerte en 36 REGINE PERNOUD ou ainda campandrios como os de Chapaize ou de Tournus, para tentar compreender o que marca estas obras perfeitas duma tio forte singularidade. Mas podemos também, muito simplesmente, ilustrar esse sentido de ornamento, renovado sempre a partir do mesmo tema, a propésito dum detalhe de vida quotidiana, bem caracteristico de toda uma mentalidade. Trata-se do capuz. E o toucado habitual da época. Ele remonta 4 noite dos tempos, pois 0 capuz medieval nao é mais do que a romeira com capucho dos Celtas, nossos antepassados, Esta humilde romeira que cobria a cabeca e os ombros deu origem A «tunica» dos monges, ¢ ainda 4 maioria dos toucados de mulher e de homem entre o século VI ¢ o século XV. Continuou sem- pte e em toda a parte a usat-se 4 maneira de romeira, com capucho, como as dos pastores do piilpito de Chartres ou dos camponeses de Jean Bourdichon, Mas este mesmo capuz, disposto de maneira a enquadrar j4 nfo o rosto, mas a cabeca, embora composto dos mesmos elementos, acha-se continuamente renovado quer pela matéria de que é feito (14, veludo, seda), quer pela maneira como o usam (as pontas puxadas para a frente, enrolado como um tur- bante, alargado em chapéu de dois bicos..., de tal forma que da origem a todos os toucados, os que se véem ainda nos frescos, nas miniaturas e até nos quadros de Fouquet. Este capuz, cuja forma inicial nao ¢ modificada, mas sempre reinventada, ¢ bem caracteristico do homem que o usa, pela sua extrema simplicidade e seu catacter fun- cional e, 20 mesmo tempo, por essa perpétua invengao, onde se exprime a personalidade do seu possuidor, Deste modo, na época, o proprio trajo € também «tema de ornamento»! Para voltar a histéria da arte, basta folhear qualquer manuscrito, ou mesmo um simples documento do tempo, para constatar a mesma capacidade de criagSo; a perfeicéo da escrita, da paginacio, do selo que o autentica, fazem- -nos ver claramente o que pode ser uma obta perfeita. Perfeita, porque ela foi verdadeiramente criagdo, Aquele O MITO DA IDADE MEDIA 37 que a fez identificava-se com a sua obra, tio bem que entre os seus dedos ela transformava-se numa obra-prima. Nunca se lamentard o suficiente que a maior patte dos manuscritos continuem ignorados do grande publico: que proveito haveria, no entanto, em da-los mais a conhecer utilizando os meios actuais de reprodugio! Uma carta decorada chega para revelar o que pode ser a criagdo artistica da época romana. Nao falemos j4 daquelas que contam toda uma cena, biblica ou histérica, por exemplo. Uma inicial muito sim- ples na sua forma essencial, legivel, reconhecivel, encon- ta-se retcomada por cada copista, cada iluminador, que: a faz sua e a desenvolve, para assim dizer as possibilidades internas. Isto pode ir até uma espécie de vertigem; esta torna-se um verdadeiro matagal de folhagens e entrelaga- mentos, aquela outra da origem a um animal que termina um rosto de homem, um homem que se transforma em monstro, anjo ou demdnio, no entanto a letra nao foi taida; ela continua 14, mas sem cessar recriada, E é isto, sem divida, o que caracteriza a atte romana (a arte gética também, a despeito de certas exageragdes que assinalam o seu fim): 0 respeito da. funciio. essencial moma perpétua redescoberta das possibilidades que ela encerra. i GROSSEIROS E IGNORANTES No século XVI, tal como as artes, as letras nao esca- pavam ao postulado da imitacao,; 14 ainda era preciso adap- tar-se as regras fixas do género greco-romano. Uma tragé- dia tinha necessariamente de obedecer as trés unidades, de tempo, de lugar e de accao; tudo o que disto se afas- tasse era severamente julgado. De resto, passava-se nas letras 0 que se passava nas artes, quer dizer, do mundo antigo nao se admitia senao os séculos classicos: o de Péricles para a civilizagio grega. o de Augusto para a civilizagio romana. O estudo da lingua e das letras em geral reduzia-se, pois, de facto, a uma certa expressao escrita, a de dois a trés séculos, de que se faziam, como na escultura, modelos. Nada além das formas literarias da antiguidade: odes, elegias... Tolerara-se 0 soneto na medida em que era uma aquisigao do século XV que obtivera as suas cartas de nobreza na Itélia, pais venerado em virtude da Urbs antiga. Mantinha-se uma separacgao rigorosa entre os géneros: comédia dum lado, tragédia do outro. E para esta, consi- derada «nobre», era obrigatério ir procurar assuntos na antiguidade. Devia ser custoso a Corneille ter escrito O Cid ¢ Polyeucte. E s6 ter conseguido respeitar a sacros- santa wregra das trés unidades», com acrobacias perfeita- mente inverosimeis: no Cid, Quanto a Racine, mais respei- tador dos principios académicos, os seus prefacios sfo expressamente compostos para se desculpar de ligeiras O MITO DA IDADE MEDIA faltas & lei da imitagZo, Na poesia mais corrente, pastores da Arcadia, ninfas, sAticos e outra fauna evoluiram a partir dai, como nos quadros de Poussin. Pensara-se mesmo, no século XVI, em reduzir o verso francés ds regras da prosédia e da métrica antigas, fundadas ni acentuagao, que, precisamente, nfo existe na lingua francesa. Um imperativo de tal estreiteza, tendo tho pouco em conta © génio proprio da lingua, nio podia manter-se muito tempo; em contrapartida, o alexandrino, filho do hex&imetro antigo, manteve-se, impondo a sua tirania até As revoltas romanticas e bem mais tarde ainda. A imitag&o do latim classico estendeu-se até ao estudo da lingua, Tentou-se reduzir a frase francesa 4s normas da frase latina; daf as extravagantes regras de gramatica c de andlise légica que foram impostas aos alunos, com 0 «conjuntivos de sestrigéon e outras ninharias nascidas no cérebro de gramiticos animados dum sombrio pedan- tismo. Dai também a nossa ortografia, uma das mais extra- vagantes que existem. I para imitar a antiguidade que a palavra homme foi munida de um 4, que se multiplicaram os ph, os dois mm eos dois wn... E a tendéncia estava tao arreigada que se chegou ao ponto — bastante tardiamente, é verdade, pois isto nao se deu senZo quase no século XIX — de julgar acerca da cultura duma pessoa pela sua ortogra- fia! Certamente que a regra se instaurara ao mesmo tempo que a imprensa, que impusera uma certa fixidez no uso. Mas foi uma grande desgraca para geragdes de alunos que suportaram, e devem ainda softer, essa fantasia dos pedan- tes do Renascimento, decalcada, como todo o resto, sobre o que thes ditavam as inscrigées antigas. Assistimos hoje ao desmoronar deste aparelho. Alguns sentem-se inconso- laveis com isso. Pode-se, todavia, pergut tar em que é que semelhante tendéncia, reacciondria na sua esséncia, era justificada; ela surgird as geragdes que sc seguit&io cada vez menos justificavel. Repitamos: a admiragiio que se pode sentir pelo mundo antigo nfo est4 aqui posta em causa. Nas letras como nas 40 : REGINE PERNOUD artes — para adoptar as classificagées sempre em uso — nig se deixara, na Idade Média, de procurar inspiragio na anti- guidade, sem todavia se considerar as:suas obras como atquétipos, como modelos. Foi no século XVI que se impés. nesse dominio também, a lei da imitagio. Ora os nossos programas escolares até agora nao deram lugar senfo & literatura classica’, a que comeca no século XVI. Esta mutilagig voluntiria, pela qual se faz cret que as letras ¢ a poesia nfo existiram em Franca antes do século XVI, é, na realidade, admissivel, de facto e de direits? Nés temos hoje um atraso consider4vel no conhecimento do nosso préprio passado literdrio, ao con- tratio de outros paises, como, por exemplo, a Escandindvia, a Alemanha, os Estados Unidos e a Suica alema. Isto por causa do capricho de alguns universitirios ¢ porque assim © deciditam algumas geragées de inspectores-gerais. Um pequeno facto muito simples me parecera, ha alguns anos, significativo a esse respeito: era na altura em que eu estudaya as cartas de Heloisa e Abelardo, por volta de 1965. Eu resolvera ir & sala dos impressos na Biblioteca Nacional, para verificar a citagio da Pharsale, de Lucain, contida na Carta 2 Um Amigo. Ora, 20 procurar entre os Usuels, vi que havia nada menos de seis exemplares da Pharsale, de Lucain, na sala dos impressos, & minha dispo- sigao: cinco exemplares diferentes do texto latino, mais uma traducio. Para uma obra que, reconhegamo-lo, ‘nao faz necessariamente parte da bagagem dum homem, mesmo culto, era muito, Veio-meentéo a ideia de ver se havia nos Usuels um exemplar de Tristéo e Isolda, ou mesmo uma ou outra das obras de Chrétien de Troyes, Procurei muito tempo... Toda a antiguidade classica, mas nem uma obra do periodo da nossa histéria que se estende do século V até ao * Que nao me venham objectar com os retalhos de histéria ou de literatura medieval aflorados aqui e além, no quinto ou no terceiro: nao seria a sé. O MITO DA iDADH MEDIA 41 fim do século XV; isso nao é admitido. A Pharsale, de Lucain, mas nao Tristéo ¢ Isolda®. Em contrapartida, varios anos antes— era exactamente em 1950—, durante uma permanéncia nos Estados Uni- dos, eu tive de tedigir um artigo sobre Bertran de Born.’ Eu estava entéo em Detroit; rendo-me dirigido & Biblioteca da cidade, encontrei eu prépria, com a maior facilidade deste mundo, nas prateleiras —segunde o notavel sistema de classificagio que as nossas bibliotecas comegaram a adoptar posteriormente—-, a obra de que necessitava. © que do outro Jado do Atlantico é acessivel a todo o leitor nfo o é em Paris ao leitor privilegiado (visto que, em principio, é possuidor de diplomas universitarios) da Biblioteca Nacional. Nada dé melhor ideia da estreiteza das nossas concepgGes culturais, nés, que somos tio orgu- Ihosos da nossa reputagéo de povo de alta cultura. Pode conceber-se mil anos sem produgio. poética ou literaria digna desse nome? Mil anos vivides pelo homem sem que ele nada tenha exprimido de belo, de profundo, de grande sobre si préprio? A quem se faria acreditar isto? No entanto, fez-se cré-lo a estas pessoas inteligentes que nds somos, nés, os Franceses, e durante perto de tre- xentos ou quatrocentos anos, Bastara Boileau escrever: Villon fos o primeiro, nesses séculos grossetros, 41 esclarecer a arte confusa dos nossos velhos, romanceiros * Outra anedota (1976): uma tradutora que se queria refe- ric X obra de André Le Chapelain, tedrico do amor cortés que viveu ‘na corte de Leonor de Aquitania e de sua filha Maria de Champagne, no século XUL, dirige-se candidamente a uma biblio- teclria da Biblioteca Nacional; esta indica-lhe:.. a edicZo-incund- bulo de André Le Chapelain —obra rarissima, impressa no sé- culo XV em caracteres géticos—, ignorando que esse autor foi por duas vezes publicado, em 1892 e em 1941; a verdade é que \) $e primeiro editor era dinamarqués e o segundo americano 42 REGINE PERNOUD para que toda a gente ficasse convencida disso. Villon foi u «primeiro em datay dos poetas franceses. Isto encon- tra-se relatado em todos os manuais escolares. Ora, os mil anos em questao viram a aparigao e 0 desenvolvimento da epopeia francesa (aquele que disse que os Franceses nao tinham «espirito épico» cometia simplesmente um erto, tanto histérico como literario), a invengéo dum género novo, o do romance, desconhecido na antiguidade cldssica; e, finalmente, o nascimento da lirica cortés que enriqueceu com uma nova tinta o tesouro poético da humanidade. Esta Ifrica cortés foi estudada nas suas origens e na sua evolucgio por um eminente romanista de Zurique. autor de Des Origines et de la Formation de la tradition courtoise en Occident, que a Sorbonne prudentemente ignorou. Todavia, nao é facil manter completamente G siléncio sobre uma obra que contém cinco volumes in- -quarto, como a de Reto Bezzola, aparecida de 1949 a 1962%, cheia de citagdes e de’ referéncias que fazem dela uma espécie de panorama, de condensado do conjunto da Irica até ao fim do século XII; ela comega a ser conhecida iqui e além, para fora dos meios universitarios, O autor revela-nos a evolugio das letras medievais, primeizo em latim, depois nas duas linguas, oc e ofl, do nosso antigo. francés. Seguindo esta evoluc&o, verifica-se que esta poesia, na sua expressao e no seu desenvolvimento, esta intima- mente ligada 4 das artes em geral. E no fim do século VI que se manifesta a primeira expresso dessa lirica cortés com Fortunat‘’, que dirige a Radegonde, fundadora do mosteiro de Saince-Croix de Poitiers, assim como 4 abadessa Agnés, versos latinos onde ja se exptimem os sentimentos que irao animar a poesia dos trovadores e dos jograis do século XIL Este sopro desconhecido provém essencialmente de um olhar novo posto sobre a mulher, a quem se dirigem * Paris, Ed. Champion, * Serd mais tarde bispo de Poitiers. O MiITO DA IDADE MEDIA 43 dai em diante.com uma ternura cheia de respeito. Assim, nesse mundo, que nos descrevem como um campo fechado em que a barbaria se defronta com a tirania e reciproca- mente, masce esse sentimento, duma extrema delicadeza, que faré da mulher, para todos os poetas, uma suserana. Um tnico esctitor teve a honra de sobreviver nas nossas recordag6es, o historiador Grégoire de Tours, cujo nome evoca para nés a alta Idade Média; o que conduz a com- paar todos os homens desse tempo com os filhos de Clovis, os quais, semelhantes a muitos jovens de hoje, receavam mais do que tudo, como todos sabem, ter de cortar os cabelos; todas as mulheres, com a rainha Frédé- gonde, cuja distracg’o favorita era, todos o sabem também, prender as suas rivais & cauda de um cavalo a galope. Isto permite-nos etiquetar trés séculos, aproximadamente, como uns tempos barbaros, sem mais nada. No entanto, a mesma época da alta Idade Média viu expandir-se o livro na forma-em-que ele se apresenta ainda nos nossos dias, o codex, instrumento que, embora do dominio da cultura, substirui daf em diante o volamen ¢ © rolo antigo; a imprensa nao poderia prestar os servicos que prestou sendo gragas a essa inyengao do livro. E igualmente nesta época que foi elaborada a linguagem musical que sera a de todo o Ocidente, até aos nossos tem- pos. Com efeito, a actividade poética e musical é entao intensa com a criagio de miltiplos hinos e cantos littr- gicos, e sabe-se que o cantochéo, ou canto gregoriano, atribuido durante muito tempo ao papa Gregério, o Grande, data do século Vil. Os préprios nomes das notas da escala foram tirados dum hing do século VIII em honra de Sio JoSo Baptista, Ur queant laxis, pelo italiano Guy d’ Arezzo. Apenas alguns especialistas conhecem os grandes nomes que ilustram as letras durante a alta Idade Média, mas isso nao significa que elas nfo oferegam nenhum interesse. Alguma curiosidade na matéria permitiria, todavia, reco- nhecer a expanséo duma inspira¢iio original e surpreen- 44 REGINE PERNOUD dentes capacidades de inven¢ao nesses autores, tais como Virgile, 0 Gramatico, ou Isidoro de Sevilha, no século VI, Aldhelm, no VII, e Béde, 9 Venerdvel, no Vi. Os que se debrucaram sobre estas obras, -escritas-num. latim dificil, certamente, mas muito menos dificil para nds do que o Jatim cldssico, apreciaram a sua intensa ri- queza de pensamento e de poesia e a sua surpreendente liberdade de expressio* Parece que as populagées, libertas do jugo romano, tornam a encontrar espontaneamente, tanto nas artes como nas letras, a originalidade que verdadeitamente elas jamais tinham perdido, A cultura classica, desaparecida com 0 ensino, a magistratura, resumindo, com os quadros roma- nos, sucede uma cultura nova que nao deve nada aos cAnones académicos. E rato que os historiadores se tenham tesignado a descobrir af a veia céltica e a sua prodigiosa faculdade de inveng&o verbal ou formal: todavia, parece- -nos dificil negar, quer na Galia e em Espanha quer na Irlanda ou na Gra-Bretanha, a origem dessa inspiracio, que por toda a parte suscita © renovamento: gosto pelo enigma, jogo de palavras e de assonancias, cuja afinidade com esses ornatos de folhagens, esses entrelacamentos, essa profuséo lirica, que se encontra também na arte da mesma época, é inegdvel. Os manuscritos onde desabrocha 0 genio celta (aqueles que se encontram principalmente nas biblio- tecas da Irlanda) sfo aparentados com aquelas obras-primas de esmaltes contornados que ainda se podem admirar (bastava visitar o gabinete das medalhas na Biblioteca Nacional, no Louvre, ou no museu de Cluny), e que, a falta de melhor, se chamam, em Franca, merovingias ¢, em Espanha, visigéticas. Sera preciso um dia qualquer decidirmo-nos a admitir a origem comum dessas diversas formas de expressio no Ocidente dessé tempo. Vai haver certamente um mar de preconceitos a enfrentar, uma = Aconselhamos a consulta dos trés volumes de Esthétique médiévale, obta ji citada de E. de Beuyne. 0 MITO DA IDADE Mépia 45 Weniwoha de inctria a transpor, mas pode-se considerar ile © passo decisive j4 foi dado; porque tem sido a for- Wiajio classica, a Gptica classica, que, até uma época muito frente, nos impediam de ver as obras da alta Idade Média ilerentes de produgGes «grosseiras ¢ barbaras». Na impossibilidade de nos podermos alargar sobre estas uhiws, cujo estudo exigiria volumes, contentamo-nos em Waldilivlas aqueles que procuram um assunto para tese fiwa do século de Péricles ou dos imperadores de Bizan- tio) hi ai uma fonte praticamente inexplorada, que se fiodia acolher no nosso tempo com um interesse certo. Allis, nds no podemos aqui senao apagar-nos perante os tialalhos admirdveis de Pierre Riché®, que foram deter- Minantes ¢ deviam estar ao alcance dum maior ntimero de pessoas. Um outro trabalho importante foi feito sobre Isidoro de Sevilha, que exerceu uma profunda. influéncia sobre’ © pensamento medieval. Pode-se dizer que a sua obra, a em Espanha no século VII’, contém em germe a eséncia da cultura dos séculos romanos e géticos. Ora, © suas incuigdes mereciam interessar o pensamento de vanguarda; a principal obra de Isidoro de Sevilha, as suas Niymologies, esta baseada nas significacdes potenciais de ‘ada termo da linguagem (para além de toda a preocupa- (ilo psicolégica, bem entendido). Isidoro de Sevilha, génio enciclopédico, manifesta na exegese da palavra uma longa cléncia feica de aproximagGes, ou mesmo por vezes de tocadilhos, através dos quais elabora j4 toda uma sintese simultaneamente cientifica, poética e teoldgica. O facto the ele citar intimeros autores antigos implica que ele conhecia as suas obras; isto da uma ideia do imenso siber do -qual-Sevilha foi.o centro nessa alta Idade Média. " Education et Cultere dans POccident burbare, Paris, Ed Seuil, 1962. " Consultar os trabalhos de Jacques Fontaine, especialmente liidore de Séville et la Culture Classique dans !'Espagne wistogo- thiquo, Bordéus, Féret, 1959... 48 eco oe REGINE PERNOUD Esquecem-se muitas vezes estes detalhes quando se trata das tradugGes de Aristételes, em consequéncia das quais surgirao, em Espanha, os fildsofos Arabes: eles nao po- deriam jamais ter empreendido semelhante tatefa em Sevilha, como, alias, na Siria e em outras regides do Préximo Oriente, se nado tivessem 14 encontrado biblio- tecas que haviam conservado as obras de Axistételes, e isto muito antes da invasio deles, isto é, para a Espanha, antes do século Vill. A ciéncia e¢ g pensamento drabes nao fizeram mais do que beber em fontes preexistentes, em manuscritos que permitiram este conhecimento de Aristételes e de outros autores antigos. Seria um per- feito absurdo supor o contririo, como nio faltow quem o fizesse, todavia; a falta est4 nos nossos manuais esco- lares, que mencionam Avicena ou Averrdis, mas passam completamente em siléncio Isidoro de Sevilha, Jacques Fontaine chamou mesmo a aten¢ao pata a existéncia, em arquitectura, do arco em ferradura, que se atribui geral- mente aos Arabes, mais de cem anos antes da invasao deles nesta Espanha «visigética» que ele tio bem estudou. * Bastante curiosamente, uma espécie de travagem ia ser dada a este impulso —sensivel, pelo menos, em Franga e nos paises germinicos—- nos séculos VIII-IX; isto, evidentemente, sob o efcito dos acontecimentos ex- teriores: as invasGes drabes, ao Sui (e nao esquecamos que as suas devastagGes se estenderam aré Poitiers e Au- tun), e as normandas, ao Norte, paralisaram a vida numa grande parte do nosso Ocidente. A Provenca, até uma data recuada do século K (972) viveu no terror dos ataques «sarracends», o bispo de Marselha nfo pdde até essa data residir na sua diocese ¢ as abadias do litoral tiveram depois de erguer as suas ruinas e reconstituir os seus. efectivos. O MITO DA IDADE M&DIA 47 Mas ha um outro factor que vai intervir e que, em contrapartida, teve um lado incontestavelmente positivo: a restauracgio do Império do Ocidente. Ao reconstituir o Império. Romano, Carlos Magno, quando empreende reavivar o ensino e a cultura, f4-lo segundo as normas romanas. Funda uma academia, doa-nos uma escrita da qual the podemos estar agradecidos, escrita que ele foi buscar aos caracteres epigrificos romanos. Houve, sob 0 seu impulso, aquilo que numerosos universitarios, agra- davelmente surpreendidos, qualificaram de «primeito re- nascimento»: uma tentativa de regresso as-formas antigas. ‘Tivesse sobrevivido o Império e nds teriamos talvez conhecide desde entZo essa civilizagao de inspiragao clas- sica que acaba por se impor no século XVI. Na corte de Carlos Magno, a veia lirica, os rebuscos de linguagem, as tentativas um pouco herméticas desses poetas que, a felta de melhor, chamaram.. «hispéricos», do nome duma antologia que os revine, Hisperica Famina, submetem-se a uma literatura mais ponderada, na qual se tenta um regresso 4 cultura antiga. Os poetas desse tempo celebram a pléria, os actos notiveis e também amizade; mas, como nota Bezzola*, «o amor pela mu- lher nfo desempenha neles um grande papel». Praticam uma poesia palaciana, ao adoptarem de novo os géneros antigos, 0 idilio, a elegia, o epitalamio... e tentam fazer reviver as letras clissicas. Carlos Magno, que tenta, ele proprio, fazer reviver o Império Romano, funda, em Aix-la-Chapelle, a Academia Palatina, que, reagrupa poe- (as, gramaticos, letrados, vindos de todos os horizontes dessa Europa durante algum tempo unida sob o seu po- deroso. magistério, romam cognomes evocadores: 0 poeta Angilbert, um. franco,. atribui-se o nome de Homero, enquanto 0. visigodo Théodulfe se nomeia Pindaro ¢ o inglés Alcuin se faz passar por Flaccus. ” Let Ovigines et la Formation de la sradition cosrtoise, op. ity OE pe OL REGINE PERNOUD Alids, nesta mesma época as artes inspitam-se também nas formas classicas; procura-se a semelhanca com os modelos, com a natureza, ¢ alguns manuscritos carolingios oferecem-nos retratos tio individualizados como os bustos romanos do tempo de Augusto, Entre as obras desta época — principalmente em relacio as miniaturas — reco- nhece-se sem dificuldade a dupla fonte de inspiragao: a veia original (entrelagamentos celtas, exuberfncia de ornatos de folhagens, riqueza de combinacio de formas) eo estetismo «dirigido» (colunas de capitéis corintios, preocupacio de exactidao nas paisagens ¢ na perspectiva, respeito pela anatomia na representagiio de personagens). Alguns centros monisticos, como o de Saint-Gall tradu- zem fielmente os esforcos de reformas impetiais que vao reavivar a cultura antiga, na sua expressiio mais classica. Alids, esta ceforma ¢ interessante para nds na medida em que faz apelo a todos os recursos do imenso império, e principalmente a esses centros de cultura privilegiados que sio os mosteitos da Inlanda, os quais nao’ foram. atingidos pelas invas6es, E na Irlanda que se encontram entio os mais eruditos gramaticos, e entre eles os..me- lhores helenistas. Existiam, todavia, outeas tendéncias, que esta ressur- goncia bastante artificial do academismo antigo pouco atingia. Encontra-se a sua expressio num poema de «Théo- dulfe (Pindare); ele descreve os membros da Academia Palatina escutando um poema cuja forma perfeita, imi- tada de Ovidio, é aprovada por cada um; compée-se de disticos cuja sdbia versificagio ¢ apreciada por todos os assistentes. Todos, 4 excepcao dum sé, pouco sensivel a estas deleitacdes de estetas; é um guerreiro franco cha- mado Wibode; quando, terminado o poema, a assisténcia s2 expande em aclamagoes, ele ergue a sua cabega hirsuta, emite uns grunhidos que-fazem rir os membros da ilustre Academia e finalmente, furioso, abandona a sala, sob as trocas: deles. O MIT0 DA IDADE MRDIA 49 Nio haveria aqui uma comparac&o a fazer entre este Wibode, o membrosus heros, como the chama Théodulfe, homem de guerra a quem os disticos inspirados de Ovidio deixam, frio, €.tantos jovens (cabeludos também!) que ja hilo querem tradigGes classicas, ou ainda entre tantos tdenicos que, conhecendo o valor, o interesse, a urgéncia, \antas vezes, dos desenvolvimentos técnicos, achariam vao « fastidioso demorar-se em processos académicos? Wibode, nu Academia Palatina, faz pensar num cosmonauta per- dido na Academia das inscriges. Ora, menos de duzentos anos depois da morte de Carlos Magno, 0 gosto das letras pode espalhar-se de novo num Ocidente tornado de novo mais estavel, resta- helecido finalmente das invas6es. E nfo é¢ a imitagio da intiguidade que renasce, mas sim a veia celta original, enriquecida com tudo o que varios povos puderam tra- ver-lhe, So os Wibode que triunfam e que elaboram ja uma literatura nascida da sua histéria e da sud inspi- io, liberta de todo o academismo, independente das «influéncias antigas». A epopeia em lingua francesa masce nesse século XI, propagada pot via oral e em breve fixada em alguns ma- nuscritos, Os nomes de Rolando e de Oliveiros, que se encontram mos codices desse tempo, mostram que a Chan- son de Roland era desde entio espalhada, transmitida pelos jograis e pelos recicantes. Os comentadores esgo- (aram-se a procurar-lhe uma origem «historican; a des- graca quis que uma passagem de Eginhard parecesse dar- Ihes razéo, tanto que se esforgaram por ver na histéria de Rolando a fonte duma epopeia cuja matéria é, antes de mais nada, épica, precisamente: obra de imaginacio, construgéo do poeta, ela nao invoca um Carlos Magno lendario senio pata opor, 4 derrota perante o Islao, do qual o Império de Bizincio é entio o teatro*, a alta ° Recordemos @ batalha de Mantzikert, que em 1071 entrega literalmente a Asia Menor aos ‘Turcos seljicidas, $-125—4 50 2 Sire REGINE PERNOUD figura do Defensor da Cristandade, do Protector dos lu gares sagrados, que, no século XI, foram destruidos por duas vezes. Por outras palavras, é na prépria sociedade do sé- culo KI —e Bezzola“ mostrou-o perfeitamente, apoian- do-se em textos do tempo— que é preciso procurar as sazOes ¢ a inspiracio da Chanson de Roland, como dou- tras epopeias, e no numa «origem histérican, a qual 0S poetas nao procuravam de forma alguma. referir-se. Os historiadores da literatura cometeram 9 mesmo erro que os historiadores da arte; eles transpuseram para a época feudal um imperativo que sé se fez sentir na época classica: a preocupagio obcecante, nas suas obras, das origens e dos modelos (antigos, de preferéncia). E também na sociedade do tempo que é preciso pro- curar a origem da lirica cortés, que torna a florir —de- pois do seu eclipse — nas letras carolingias. Renasce pri- meiro em latim, nas obras dum Baudri de Bourgueil, dum Marbode e de tantos outros, ignorados ou desconhe- cidos. Depois ela desenvolve-se em lingua de oc, onde © extraordindrio poeta que foi Guilherme de Aquitdnia, conde de Poitiers, Ihe vai dar uma inspiragio incompa- ravel, assegurando o seu prestigio através dos tempos. Seguindo os seus passos, um’ Bernard de Ventadour, um Jaufre Rudel, fortemente pessoais, que, cultivando uma forma semelhante de lirismo, desenvolveram o leque das possibilidades dum sentimento ‘fechado nas cortes senho- riais, donde tirara o seu nome de Ifrica cortés. Poesia profundamente ligada & sociedade feudal, onde todas as relagSes assentam em lagos pessoais pelos quais se com- prometem reciprocamente senhor e vassalo, prometendo, um, proteccéo e¢, o outro, fidelidade. A mulher torna-se *° No seu estudo intitulado «De Roland 4 Raoul de Cam. brai», aparecido em Mélanges de philologie romane et de litté- rature médiévale offerts d Ernest Hoepjfner, Paris, Les Belles Lettres, 1949. MITO DA IDADE MEDIA 51 40 jenhor» do poeta, a suserana; a fidelidade exige-a ela; ela suscita um.amor-que-imp6e também o respeito: amor de lonb, amor longinquo, que cria uma tensio exaltante etre sentimentos contrarios, e é, paradoxalmente, ‘a joy, 4 legria do poeta; & Dama ele vora uma espécie de culto fervoroso, constante; ela é, em relacio a ele, todo-pode- fowl; 0 amor que vive entre eles mantém-se como um alto segredo que ele nao saberia trair, e é com um senhal, lm sobrenome, que-ele-a~designa. B, alias, um trago taricteristico desta época o fazer grande uso do simbolo, ilo indicio, do senbal; os brasGes e as atmas que Os cava- Jelros usam mos escudos, € que toda a personalidade fisica » moral manda gravar no seu simete, participam desta mesma tendéncia. Quis-se —e pergunta-se se a ignorancia tera sido ver- dadeiramente a tnica causa— dar a esta lirica cortés origens estranhas a si propria, ver af, por exemplo, a ex- pressio duma «doutrina secretas.— a dos c&taros, bem entendido, pois o catarismo tomou proporgées epidémicas assim que as pessoas da Sorbonne tiveram conhecimento da sua existéncia: Néo nos deteremos sobre este ponto, pois o erro foi demonstrado, com uma preocupagio de verdade histérica que devemos saudar de passagem, por um dos préprios adeptos da causa catarista, René Nelli®. Para penetrar a lirica cortés é preciso, primeiro, conhecer a época que a viu nascer, € isso é 0 que nao faz a maior parte dos comentadores. Ela exprime-se ainda, para além dos camsos de tr0- vadores e cangdes de jograis, nos romances de cavalaria. O romance: ainda uma invengio da época feudal, e que naio pode ser compreendida fora do contexto. Embora a maioria das personagens nos venham de lendas celtas através da obra genial de Geoffrey de Monmouth, veri- ™ Les Trowbadours, Paris, Desclée de Brouwer, col, «Biblio- théque européenne», 2 vols., 1960-1966. Cf. as instrugdes do t. 1, p. 9, e dot. 1, p. 22. 52 EBGINE PHRNOU, i} fica-se que n&o se pode compreender o Rei Artur, a Ti vola Redonda e a Busca do Graal se nao substituirem aa vida concreta as proprias instituigGes dos tempos feu. dais, a comegar pela da. cavalaria. Histérias fantdsticas, mas cujos detalhes nos vém recordar que elas nascer duma sociedade para a qual contam, em Primeiro lugar, os lagos pessoais, que exalta o ideal do cavaleiro culto € cortés, que enaltece a fidelidade & palavra dada ¢ que, finalmente, faz da mulher uma suserana, 4 Se teflectirmos bem nisto, achamos extraordindrio que obras tao ricas, duma inspiracio to otiginal e dum contetido tao denso, tenham assim passado em siléncio, ignoradas de todos, incluindo educadores, Desde ha alguns anos, todavia, elas suscitam uma aparéncia de interesse: viram-se edicdcs de bolso de Erec et Enide, de Tristao e Isolde. Alguns realizadores foram atraidos pela perso- nagem de Lancelot; uma faculdade de letras criou uma cadeia de iconografia medieval; uma outra pés no pro- grama A Demuanda do Graal, Mas pode-se realmente. tirat proveito destas obras e apreciar o seu alcance poético sem um conhecimento mais ou menos elementar da so- ciedade que as fez nascer? * _ «Tanto os empresérios como os actores sio pessoas ignorantes, artifices mecdnicos, que nag sabem nem A nem B, que nunca forami instruidos e, mais ainda, que nao tém linguagem eloquente, nem conveniente, nem os acentos de prontincia decente... essas pessoas nfo cultas nem entendidas em tais assuntos, de condigéo indigna, como um marceneiro, um beleguim, um estofador, um vendedor de peixe, representaram os Actos dos Apésto- Jos...» E preciso meditar um pouco nestes textos para com- preender o seu contetido, Sao extraidos das sentencas do Parlamento que, em 1542, proibiram aos Confrades da 1) MITO DA IDADE MEDIA s 53 Muiwlo continuarem a representar no Paldcio de Borgonha, | representavam sempre para a multidao os Mis- Hrile el tyeloy medicvais, Sentengas renovadas em 1548, enquanto, wlio mais tarde ainda, em 1615, os comediantes do memo Palacio de Borgonha, obstinados na petda desses fontrades da Paixdo, que, por sua vez, se obstinavam ei continuar a sua actividade teatral, declaravam: «Esta eoifravin jamais recebeu nem produziu senao grosseiros ajiifices [...], que, consequentemente, so incapazes das hwoniis e dos cargos publicos e indignos do titulo de Huguesia, pela razao dos antigos que mandavam caminhar 4 escravos a par com os artifices.» Véese do que se tratava: os comediantes do Palacio ile Borgonha, que acabarao por conseguir que lhes .seja itibuido o edificio para as suas préprias representag6es, vivuvam destruir o que subsistia do: teatro medieval. Por- ud? Porque se tratava dum espectaculo popular. E porque \ confraria n&o-era“constituida por profissionais, Muitos motivos estio aqui em causa: a gente do teatro tendia formar, como em geral os mestres em qualquer pro- {iuslio, uma corporagio, ou, antes, para empregar o voca- hulirio da época, um mestrado, ou jarande, o qual pos- tulava o monopélio do exercicio duma dada profissio ‘uma dada regiZo. Porque, contrariamente ao que se cria outrora e que alguns repetem, desprezando o resultado duma centena de anos de pesquisas cientificas, a «cor- poragio» (palavra do século XVIII) conhece a sua idade de ouro, nZo no século XH, em que nao ¢ enconirada senio excepcionalmente em Paris, por exemplo, mas sin ho século XV e principalmente no século XVI". E o qué se passa com a gente de teatro. Vemo-los, a esse titulo. perseguir 0 teatro, popular com auténtico furor; de tal mods que na feira de Saint-Germain os infelizes que 2B, até mesmo onde ela nao é explicitamente constituida, © exemplo do monopélio que Ihe ¢ conferido determina a procura de monopdlios serethantes. 54 REGINE PERNOUD represéntavam pantomimas, ao ver que lhes proibiam, falar, se puseram a cantar! Alguns viram aqui a origem) da Opera Cémica. Mas é bom apreciar em todo o seu sabor as razGes enumeradas nas sentengas do Parlamento: elas atestam que os Confrades da Paixaio, que representam os Acros dos Apéstolos ou qualquer cena evangélica, ou os antigos Mistérios, sio simples, humildes; marceneiros, estofadores, etc. Sio «artifices mecinicos» — os que praticam o que entdo se chama «artes mecdnicas», isto é, os Of{cios ma nuais. Ora, estas pessoas, no fim do século XVI, ja nao vém direitco & cultura; devem «caminhar a par com os escravos», porque era assim na antiguidade: razio” pe remptéria. E, como todas as formas. artisticas, 0 teatro, género «nobre, nao pode ser dai em diante senio o apa- nagio dos espiritos cultivados, letrados, capazes de apre- ciat a regra das trés unidades e a separagao dos géneros (que é ignorada no teatro popular!). Os comediantes do Palacio de Borgonha conseguirao os seus fins. Sabe-se como, transformados em comediantes do rei, eles faro que Luis XIV lhes atribua o mono- pdlio do teatro. Isto ira permitir a Boileau escrever, com uma soberba ignorincia, estes versos, que infelizmente toda a gente fixou: Pelos mossos devotos antepassados o teatro abominado Foi muito tempo em Franca um prazer ignorado. Na realidade, 0 que morreu com o ‘Renascimento- foi © teatro que nao era separado do povo, que mobilizava multid6es, entre as quais recrutava os seus actores ¢ es+ pectadores. Todavia, apesar desta. vontade encarnigada de Ihe acabat com a tradicio, esta era tio viva que ela sobrevive ainda nos nossos dias, aqui e além: quando os artistas da aldeia de Oberammergau representam a Paixiio, cada um no seu papel eradicional, eles revivem a xecor- dagio de um fendmeno essencial da vida medieval; ao 0 MITO DA IDADE MEDIA y age 55 {ynord-lo privamo-nos de cinco séculos de expressio dra- mltlen extremamente variada, de que apenas se reteve \ Turce de matere Pathelin, o que é divertido, mas um PHUCO curto. © teatro foi muito..cedo- praticado. em. toda.a_parte 1) [dade Média, Vemo-lo nascer num contexto litirgico: dlepressa as cenas da Biblia, do Evangelho sobretudo, foram dramatizadas. Temos uma referéncia a ele num texto datado de 933, logo da primeira metade do sé- culo X: durante a noite de PAscoa, travava-se_um didlogo entre O anjo e as santas mulheres que tinham vindo ao timulo de Cristo — uns e€ outros apresentados sem du- vidi por clétigos ou monges, que representavam a cena em didlogos alternados. Estas paraliturgias desenvolveram-se em seguida (noite de Pdscoa, noite de Natal...), come- morando, em geral, todas as festas do ano. O teatro estas pois, ligado a uma fancio sagrada, a uma celebragio pela qual se exprime a vida. interior. Mas ele tem ainda valor educativo, por isso se acha largamente praticado nas escolas e nas Universidades. Os statuts dum colégio parisiense, 0 colégio de Hubant, eontém varias paginas ilustradas que descrevem a vida yuotidiana dos estudantes. Ora, pouco mais ou menos metade dessas ilustragSes —semelhantes a bandas dese- nhadas— mostram-nos ocupados em jogos dramaticos. A nossa época reencontrou largamente esse papel do teatro ma vida; os grupos de animagéo cultural, certas empresas, mesmo, utilizam a actividade teatral e fazem-se aplicagdes dele até em psiquiatria ou em diversos casos de reeducagio mental, Nés estamos, evidentemente, mais perto do estado de espfrito que fez surgir os Miéstérios nv coragio das cidades medievais do que daquele que os mandou proibir. Um mestre como Gustave Cohen com- preendera, alias, a importancia e o interesse desse teatro medieval — e compreendeu também que nao se pode estuda-lo senaio representando-o. REGINE PERNOUD De qualquer modo, ninguém contestaria hoje a im- portancia que apresenta para os jovens, e até para os menos jovens, essa ocasiao de expressio pelo verbo e tam- bém pelo gesto. A palavra «gesto» é, alids, uma. das palavras-chave da Idade Média. Seria preciso evocar também a miisica, pela qual co- mega toda a educagéo, Vimos como. a. nossa. civilizagio, do ponto de vista musical, continua sempre devedora aos «tempos obscuros» que inventaram a escala! Deixando aqui o assunto aos especialistas, arriscamo-nos apenas a recordar que existe uma diferenca essencial entre a mt- sica baseada no ritmo e a miisica baseada no compasso, que, essa, sé é introduzida no século XVI (é.a «musica compassada 4 antiga»). Parece-me que, deste ponto. de. vista também, talvez estejamos actualmente mais perto dos tempos medievais do que da época que viu nascer a.«misica de cimaran. Com efeito, vocal ou instrumental, a musica medieval era mais considerada como uma «musica de atmosferay do que, como um espectaculo propriamente dito, Até a0 século XII nao se .separou, alias, 2 linguagem musical da linguagem poética: sem melodia nao ha poesia; o poeta é miisicg ao mesmo tempo. Interessa recordar que. nesse” tempo, embora mem toda a gente. aprendesse a ler, toda a gente aprendia a- cantar, Iv INDOLENCIA E BARBARIA Nos manuais escolares, os senhores feudais esto exclu- vamente ocupados em acalcar aos pés as seatas douradas dos camponeses». Em estilo jornalistico, fala-se & vontade ile «feudalidade» a propésito de monopdlios financeiros (was grandes feudalidades do dinheiro»), duma poténcia jutoritaria, econémica on politica, Na época revolucio- niria falava-se em abolir os cdiseitos feudaisy. Os termos foram interpretados, segundo as épocas, vom implicagdes muito diferentes. E assim que, para os historiadores do século XIX, feudalidade significava: anar- quia, Nao se admitia entéo poder que nfo fosse centsa- lizado, promulgando leis gerais aplicaveis por toda a parte, no interior das fronteiras nacionais, seguindo. as mesmas normas e em quadros administrativos sigorosamente uni- formes; foi neste sentido que a revolucio de 1789 tinha posto fim ao que subsistia da «anarquia feudal», Hoje, um historiador falara do «sistema do feudalismo». Ora, se nos reportarmos aos trabalhos de erudigio mais re- de Ganshof a Lucien Febvre, constata-se que nada csta mais afastado.de qualquer «sistema», nada mais em- pirico do que o regime da feudalidade — além. disso. com tudo 9 que comporta de arbitrario, o que nasce do acaso, da experiéncia quotidiana, dos usos e dos costumes Dito isto, nada”de menos anarquico do que a sociedade feudal, que foi, pelo contrario, fortemente hierarquizada. REGINE PERNOUD O estudo dessa sociedade parecera, todavia, interes- sante, a mais dum titulo, num tempo em que alguns reivindicam para a «tegiao», se nfo a autonomia, pelo menos capacidades de desenvolvimento auténomo, em qué cada um experimenta a necessidade de divisdes admi- nistrativas menos parcelares do que os departamentos e que respondam melhor as realidades profundas de terras t@o diversas como aquelas que constituem 0 solo do nosso pais. Nao deixaria de ser til recordar hoje que uma forma de Estado diferente das que ndés conhecemos pode existir, que as relacdes entre os homens puderam estabe- lecer-se sobre outras bases diferentes da duma adminis- tragdo centralizada, que a autoridade péde residir noutro lado sem ser na cidade... A otdem feudal, com efeito, foi muito diferente da ordem monérquica, que a substituiu, e & qual sucedeu, sob uma forma mais centralizada ainda, a ordem estatal, que é actualmente a de diversas nagGes europeias. Se se quiser compreender 0 que encetra o termo, o melhor é exa- minar-lhe a origem. * Um poder centralizado 20 ultimo ponto, o do Império Romano, desmorona-se no decurso do século V. Na con- fusiio que se segue, os poderes locais manifestam-se; é por vezes um chefe de. grupo que retine 4 sua volta os seus companheiros de aventuras; outras vezes também o senhor dum dominio que tenta assegurar A sua sociedade € a si proprio uma seguranga que oO Estado j4 nfo garante. Com efeito, as trocas tornam-se dificeis, pois o exército ja 14 nfo esta para conservar nem fiscatizar as estradas; por isso, mais do que nunca, a terra é a Unica fonte de riqueza. Essa terra é preciso protegé-la. Nao se vé mascer hoje em alguns paises, onde os pacificos habitantes. s¢ consideram ameacados pelo aumento da. delinquéncia, po- licias semelhantes? Isso. pode fazer compreender 9: que O MITO DA IDADE MEDIA 59 ve produziu..entio: um_ pequeno cultivador, impotente para assegurar sozinho.a sua seguranga ¢ a da sua fa tuilia, dirige-se. a um vizinho poder0so que tem a possi- hilidade de manter homens armados, este consente em defendé-lo, em troca’ do que este Ihe dara uma parte das suas colheitas. Um beneficiaré duma garantia, o outro, © senhor, senior, 0 ancido,.o.patrao ao qual se dirigiu, ichar-se-A. mais rico; mais poderoso e, portanto,. mais cupaz de exercer.2 proteccao que se espera dele. Final- mente, mesmo que se trate da pior das hipdteses, imposta pelas circunstancias _dificeis,..em. principio, o. mercado \proveitaré tanto. de-um.como de outro. E um acto de homem. pata. homem,.um--contrato.miitug. que “a auto- ridade superior nao. sanciona, e.ndo.sem motivo,.mas que se conclui sob-juramento,. numa.altura em que o jura- mento, sacramentum, acto sagrado, tem um valor religioso. Tal é, em geral, 0 esquema das relacdes que se criam nos séculos V e VI; certamente que as modalidades: s4o muito diversas, segundo as circunstincias de tempo ¢ de lugar; elas conduzem, em definitivo, a esse estado que se chama, muito justamente, fewdal. Baseia-se, com efeito, no fief, feodwm. O termo, de origem germanica ou. celta, designa o direito que se desfruta sobre qualquer. bem, geralmente uma terra: nfo se trata. duma propriedade, mas dum usufruto, dum direito de uso. A evolugao precipita-se devido & mistura de popula- ges que se faz na época, O movimento de migragao, que se chama as grandes invasdes, nos séculos V e VI, nem sempre teve 9 aspecto de. conquista violenta que lhe supdem; muitos pevos — pensemos, por exemplo, no dos Burgiindios — instalaram-se nas terras na qualidade de trabalhadores agricolas. Dentro de um milhar de anos, com o recuo do tempo, o historiador que estudar 0 sé- culo XX nfo deixard de estabelecer comparagbes com a alta Idade Média. N&o conhece 0 nosso. século--movi- rentos de migracio que fazem que,em--Franga, por cxemplo, mais de trés milhdes ¢ meio de trabalhadores 60 REGINE PERNOUD sejam algerianos, marroquinos, espanhdis e porcugueses, que se encontrem na Holanda ou na Alemanha turcos, jugoslavos?... A vinica diferenca esta nas facilidades' de transporte, que a alta Idade Média nao. conheceu. Em- con® séquéncia disso; uma vez fixado, era, em. principio, para toda a vida que o trabalhador estrangeiro se. estabelecia com a mulher e os filhos na quinta que o proprietario, que se chama «galo-romano», nfo queria trabalhar. O movimento nao se processava sem trazer problemas, que foram resolvidos de forma muito mais liberal da que se seria levado a crer. Assim, a primeira pergunta a fazer aquele que, perseguido por um delito, comparecia perante um tribunal é: «Qual é a tua lei?» Com efeito, ele é julgado segundo a sua lei, e nfo sob a da regiao em que se encontra. Daf a extrema complexidade desse Estado feudal ¢ a diversidade dos costumes que ai. se instauram. Aogs historiadores instrufdos no direito romano, com as suas bases uniformes e uniformemente aplicaveis, isso pode parecer 0 ciimulo do arbitrario; na época as distorgSes sip certamente muito grandes duma regifo para a outra, mas, ai ainda, ndés aproximamo-nos dessas concepgées, pois hoje compreendemos. melhor que a jus- tiga, ‘a verdade, consiste em julgar cada. um segundo a sua lei. De qualquer modo, é uma ordem diferente da ordem imperial que se instaura durante esses séculos conside- rados os mais tenebrosos duma idade de trevas — os que vio aproximadamente da queda do Império Romano (sé- culo V) a restauragag do Império do Ocidente por Carlos Magno, trezentos anos mais tarde. Nessa época, e a des- peito das transformaces, das quais a mais importante fci o grande abalo sofrido em todo o mundo conhecido pela icrupgéo do Islao —o «terror sarraceno», muitas vezes evocado nos cédices—, a ordem feudal substitui por toda a parte, na Europa, a ordem imperial. antiga. A autoridade que Carlos Magno tenta restaurar mio pode senao sancionar efectivamente um. estado: isto é,. que MITO DA IDADE MEDIA 61 » poder concentrado num lugar preciso, expressio_ duma vontuide determinada, ja nZo existe. Apenas, isoladamente, felnam os poderes locais; .o .que..se.chamava. autoridade publica fragmentou-se.e disseminou-se numa. multidio ile células que.se.poderia dizer independentes, se esse lelmo nao. significasse-para.nds.a faculdade. de agit. se- yindo .o.-capricho. individual. Ora, precisamente, toda \ vontade individual se encontra limitada e determinada por aquilo que foi.a grande forga da idade feudal: o cos- jwme, No se compreenderd nunca 0 que foi essa socie- ilade se se desconhecer o costume, isto é, esse conjunto de usos mascidos de factos concretos ¢ que tiram o. poder ilo tempo que os consagra; a sua dindmica é a da tra- iligio: um dado, mas um dado vivo, nao estagnado, sempre jusceptivel de evolugdo, sem nunca ser submetido a uma vontade particular *. Nao h4 ainda muito tempo que se podia observar-lhe 4 sobrevivéncia nos paises anglo-saxénicos, por exemplo. Assim, para nos referirmos a um pequeno facto sem muita importancia da vida quotidiana, quando os estran- jieitos, antes da guerra, se espantavam por ver em Londres 08 passeios-cobertos-de-desenhos’ feitos a giz (isto espa- |hou-se depois um pouco por toda a parte) e perguntavam porque é que, nas ruas de circulagao densa, essa pratica illo era proibida: (um simples decreto do° Ministério do Interior ou da Prefeitura da Policia teria bastado entre nds), eles ouviam responder-lhes que isso nao era possivel: porque aqueles que. primeiramente. se .tinhami~“entregue a esse género de~arte popular (ou-demendicidade dis- fargada, como quisermos) tinham ‘sido admitidos durante * Ouvi uma vez esta maravilha num estudo dum assistente de Historia: «Na Idade Média as leis sio chamadas costumes.» I} nado perceber nada dessa época, mio compreender a diferenga entre a lei que emana do poder central, e por matureza fixa ¢ (efinida, € 0 costume, conjunto de usos nascidos da terra e sem- pre em evolugdo. \\ dalle il 62 REGINE PERNOUD um tempo bastante longo e j4 nao era possivel voltar atras com essa: tolerancia, E disto que é feito o costume medieval: os usos intro- duzem-se sob a pressio das circunstancias; entre eles alguns caem imediatamente em desuso; outros sao. ime: diatamente combatidos, finalmente, outros sfo aceites ou somente tolerados pelo conjunto do grupo e em breve itZo adquirir a sua forga de costume, Foi assim que os foros, por exemplo, se viram muito cedo fixados de ma- neiras muito diversas, segundo os dominios. Ora, uma vez aceites de parte a parte e cobrados durante um certo tempo, ja no havia possibilidade de os abolir: era preciso esperar que desaparecessem por si proéprios. O costume, © uso vivido ¢ tacitamente aprovado, regulava a vida do grupo humano e opunha as suas barreiras aos capri- chos individuais. Certamente que houve sempre individuos para tentar transpor as barreiras que 0 grupo ou a socie- dade lhe opdem, mas entZo cle entra em estado de infracgao, como nos nossos dias o delinquente; e, embora nfo exista poder publico para sancionar o infractor, estes sfio repelidos do grupo, o que vem a dar no mesmo, sobretudo num tempo em que a vida é dificil, se for isolada, So estas, muito sumariamente esbocadas, as bases desta sociedade feudal, radicalmente diferente daquilo que depois se conheceu no que respeita a formas sociais. Deste modo se admite o direito de guerra privada, que é « direito dado ao grupo de vingar a ofensa sofrida por um dos seus mem- bros e de obter uma reparacéo. Do mesmo modo, quando se evoca a sociedade feudal, deve-se ter o hdbito de pensar antes em classe, familia, gente da casa, do que em voz individual. Todavia, essa mesma sociedade assenta em lacos pessoais, de homem para homem; um individuo compro- mete-se perante um semhor. Se qualquer incidente sobre- viver, é preciso renovar 0 contrato que se fez, Assim se... desenrola a histéria dos tempos feudais, feita de jogos de aliangas que se atami e desatam; aqui é um vassalo—-termo ) MITO DA IDADE MEDIA 63 ile origem celta;- notemo-lode--passagem — que prestou. Homenagem 2 um senhor, mas que se torna depois culpado ile infidelidade;.ali.um. outro, que, tendo prestado. home- fuyem ao pai, recusa fazer 0 mesmo em -elacio ao. filho... Ay guerras feudais, que nZo se parecem nada com as guer- fia do nosso tempo, tém a sua origem nessa trama extre- mamente complexa de compromissos pessoais e de tradicdes COmunitarias que constituem a sociedade de entio. Nos nossos dias, em que se véem, aqui e além, desenvolver-se tendéncias para a comunidade, como reacg4o ao poder impessoal da lei e Aquele, mais impessoal ainda, da colec- tividade, seria muito interessante estudar esse «prece- dente»; nfo com ideia preconcebida de imitagio, certa- mente, mas simplesmente por curiosidade histérica ¢ humana, e isto pode. permitir,.entre outras coisas, varrer a censurade utopia que se opGe sempre as tentativas novas. Sociedade com tendéncias comunitérias, se bem: que regida por compromissos pessoais, a sdciedade feudal & também uma sociedade essencialmente terricola, rural. Nés fomos a tal ponto dominados pelas formas de supremacia urbana que admitimos como um axioma que a civilizagéo vem da cidade. Até a palavra «urbanidade» é uma tecor- dagio dé wrbs antiga. Mas este nfio é um termo medieval. loda a histéria dos tempos feudais nos prova o contrario. Houve uma civilizacio saida do castelo, isto é, do domi- nlo logo nascida dos quadros rurais. Esta civilizagao da origem a vida cortés, cujo proprio nome lhe indica a pro- veniéncia, porque ela mascen de court, o patio, isto é, da parce do castelo onde toda a gente se encontra. O castelo feudal: érgao de defesa, lugar viral do domi- nio, asilo natural de toda a populagao rural, em caso de ataque, centro cultural, rico de tradigGes originais, separado de toda a influéncia anciga (ainda que todas as obras lega- das pela antiguidade tenham sido conhecidas ¢ praticadas: um certo monge de passagem em Montreuil-Bellay nio vai encontrar~o--senhor. absorto. na-leitura de Végéce?). ———_ REGINE PERNOU: E muito significativo que a esta dos os termos cortés, cortesia; zagio que nada deve a cidadé e évocam o que se propoe entio como ideal em toda uma sociedade: um cédigo de honra, uma espécie de ritual social, que sio os da cavalariay uma certa facilidade das maneiras também; finalmente, uma atencio cheia de delicadezas, que a mulher exige do homem*. : © castelo nao é 0 tinico a assumir uma fungio educa* tiva: os mosteiros, esses, também espalhados pelos campos; so tanto lares de oragao como centros de estudo; basta, para prova disso, a abundancia € 2 qualidade dos manus- ctitos da biblioteca do Mont-Saint-Michel; apesar da sua posicio isolada, sobre uma ilhota perdida, batido pelos mares (do qual, no fim da Idade Média, se ia fazer uma prisio ou, pelo menos, um convento), esse. mosteiro & como todos 0s outros na época, um centro ‘de saber em meio rural, em estreitas relacGes com as populagdes da localidade, Qs, monges, pelo menos os cistercienses, trabalham geralmente eles proprios uma parte do seu solo, mas tém também rendeiros, servos ou livres; os exemplos de servos que chegaram &s dignidades eclesidsticas ou laicas mostram, ali4s, que as comunidades religiosas nao consideravath os camponeses como uma cémoda reserva de mao-de-obra ou de irmiaos leigos. Desde 0 principio do século XII. que se assiste 4 Criagio, no seio das cidades, dum novo tipo de mosteiros que marcario profundamente a evolugio geral. Se o facto de irmaos pregadores ¢ irmaos menotes se fixa- tem em meio urbano ¢ sinal de que as cidades adquirem importancia, no entanto, passaré muito tempo ainda antes que esse fendmeno se desenvolva ao ponto de suplantar a influéncia dos mosteitos beneditinos, centros, como 0% 2 Mais tarde, nos tempos classicos, 0 termo corte sera fe servado ao séquito do monarca. B espirituoso pensar que dara depois origem as palavras corteséo, cortesd—uma e outra afas- tadas de qualquer cortesia, Uma etimologia, duas civilizacdes. ) miro DA IDADE MEDIA 65 7 Spend = jajelos, duma cultura verdadeixamente terricola, rural, dominial. Pauco a pouco, ver-se-A essa cultura declinaz; 2 partir do século XVI, 6 na cidade que residitio os orgios ile poverno e de administra¢ao, as escolas, numa palavra, os ‘entios do saber e do poder; igualmente no século XVII, jpesr dos esforgos muito Clarividentes dum Sully, nao juverd mais actividade intelectual em meio rural sena0 jim gran muito enfraquecido — esta degenerescéncia patende-se, em breve, a toda a provincia ®, fixando-se em urls, onde existem a Universidade e o Colégio da Franga, ou na Corte, todos aqueles considerados dignos duma ver- iideira vida espiritual, QO ponto final sera a reorganizagao adminisecativa da Franga em 1789, que faz da principal ‘idade de cada departamento 0 centro de toda a actividade lministeativa e de Paris o cérebro que comanda esta. iris, a partir do século XVII, € a capital de todo o saber om Franga; no século XIX € 0 auge, 0 cume da carreira para oy funciondrios do Estado e, praticamente, o vinico lugar onde esta reunido tudo o que faz uma civilizagio digna dayse nome.. Por esquematico que seja, este quadro quase nao parece tontestavel; em contrapartida, o que é contestado hoje € » fundamento duma tal supremacia, duma centralizacao que reune assim, num Ingar nico, nao s6 todos os Orgaos \o Governo, mas ainda os meios de adquirir uma insteugao « uma formagao superiores. fi uma reaccho saudavel que leva hoje & descentraliza- lio, Quando pensamos que Certos dominios, como este j4 ‘indo da expzessdo tearral, da danga e do canto, eram, nao hi muito tempo, o apanagio mais ou menos exclusivo, nao 46 da cidade em geral, mas, entre nds, de Paris ¢ dos seus conservatérios, nao podemos deixar de nos. espantar, 0 * § preciso meditar um pouco sobre uma comddia como Monsieur de Pourceaugadc, pata compreender de quanto desprezo a «provincias é a pactir daf, sobrecarregada, por esse acento wervidor da corte que se chamava Moliére. lal dalle hdd alli 66 REGINE PERNOU () MITO DA IDADE MEDIA 6T monopélio — 0 que a maior parte das vezes era impossivel, pois os acordos eram muitas vezes mais verbais do que éscritos na época feudal, Finalmente, os direitos assim recuperados eram adicionados, muito embora muitas vezes eles nao tivessem feito senfio suceder-se nos factbs. A par- tir daqui compreende-se o furor que leva os camponeses, quando do Terror, em 1789, a queimar os arquivos. se- nhoriais. Mas esses direitos nfo tinham de «feudais» senio o nome. O dizimo é um exemplo tipico da. res- surgéncia desses impostos. Lancado a partir da alta Idade Média em certas regides, extensivel 4 maior parte dos bens rurais durante o periodo carolingio, para prover as necessidades dos clérigos, acaba por fazer parte dos impostos lancados sobre uma terta: se esta for comprada por um burgués, este continua a recebé-lo, mesmo que ele nfo proveja — justificadamente — ag servico de altar que se espera dum padre, Quantas vezes, em quantas terras, sob o antigo regime, o dizimo eclesidstico nfo sofreu esta mutagéo? Nao se sabe com exactiddo, mas o facto devia estar muito espalhado, pois o termo «dizimo burgués» tornara-se corrente nas vésperas da revolucao. 0 eguivoco sobre -o termo «feudal»..era~complero_na mesma_€poca.. Como. era..completo, sobre_o. termo_ «pK ticon-— ou comoseamantém aitida hoje~sobre..o..termo. «ldade. Médian; porque é perfeitamente-absurdo»designar. pela palavra «média», como~se-fosse_um_simples.periodo intermediatio, um periodo de’ mil~anos~de~histérianda humanidade. E_necessfrio. insistir_nisto, por causa dos erros ¢ dos abusos que deram lugar a este.termo-de. feudalidade, pri cipalmente. quando se_opés._.a..esse...cermo,~este; também amb{guo,.de «burguesian, O. Manifesto-de-Marx,..publi- cado_em...1847,..reflecte_o..estado..da_ciéncia..histérica dy seaamil ill, O MITO DA IDADE MEDIA 13 época. Ele fixa o século.XVIL.como.o.,comego, da «luta contra ‘0 absolutismo..feudal»...c..atribui..a.. burguesia.«um papel_ essencialmente .. revoluciondrion, ..na...histéria;...ni0 é ela.-que»vai..arrancar.-os.-camponeses-a.um..«estado de torpor. debarbaria.Jatenten? Tudo -afiemag6es -hoje--ina- ceitaveis—para—o—historiador;—aqueles..que,-na~sua~com- panhia™,-perpetuam-tais_erros.de vocabuldrio, necessdrios intelectualmente, . se., se..quiser..manter..a.todo _o..preco. o esquema feudalidade-burguesia-proletariado, . prolongam um equivoco tao erréneo como se eles. continuassem a. uti- lizar_ 0. termo.«gdtico» como.era empregado..também na época’ de Marx. Por outras palaveas, os historiadores mar- xistas, que. falam. de, feudalidade. destruida. pela -Revolucio Francesa, fazem. lembrar aqueles_.eclesidsticos que véem no. Concilio do. Vaticano L-o «fim do perfodo constan- ino» _—-.como,.se-nada-se“tivesse’ passado, durante’ mais de mil e seiscentos..anos,.entre..Constantino:.(!). eo. Va- ticano IT, come-se”g “comeco’-do- século- XVI, sobretudo; no. tivesse..provocadg. essa mudanga “radical no estado da Igrejay-que* foi (sem™jogos--de...palavras) 0 estabeleci- mento,.da. Igreja-de- Estado. * Citemos, entre tantos outros, esse escritor soviético que vé em Pierre Abélard «um campeio da independéncia das cidades», face a um Sao. Bernardo, que setia um «defensor da feudalida- de»...! Seria bem hdbil quem encontrasse nos escritos de Abé- lard a menor aluséo a qualquer preocupagdo relativa 4 indepen- iéncia das cidades, como, alids, nos de Sao Bernardo a mais pequena preocupagao em relag3o 4 «feudalidade»! Saidos, um e outro, semelhantemente, da pequena nobreza rural (0 que lhes intetessava muito pouco, pois desde a juventude que eles tinham, cada uma por-seu lado, abandonado os seus direitos) tinham em comum © que constituiu todo o seu interesse durante toda a cxistencia: a cidade celeste, o reino de Deus—quaisquer que fejam as diferentes vias que eles tenham escolhido para se apro- kimarem dele. De resto, basta recordar aqui as famosas controvérsias a propédsito de Mendel e de Lyssenko para constatarmos que a Ciincia—e a histéria é€ uma ciéncia—ndo saberia adaprar-se \ sistemas preestabelecidos, 4 . REGINE PERNOUD * Se nos quisermos apoiar em factos histéricos, ¢ nao justificar nog6es a priori, é preciso reconhecer que a ori- gem e expanso da burguesia coincidem exactamente no tempo com a grande expansio do regime feudal. F nos primeiros anos do século XI que aparece nos textos a ptd- pria palavra «burgués»; e é durante o perfodo propria- mente feudal (séculos XI-XU-KII) que tiveram lugar as grandes criagdes de cidades novas, as imstituigdes de co- munas, a redaccio pelas cidades dos seus estatutos, etc. Se houve «luta de classes», elas produziram-se precisa- mente no interior e no seio dessa mesma burguesia das cidades, onde um certo nimezo de comerciantes mais vidos e mais habeis do que outros atravessaram aqui. ¢e ali as barreiras opostas ao acambarcamento, ao mono- polio, a tudo o que da proveitos imoderados, Estas lutas intestinas vo, alids, ter como consequéncia, na maioria dos casos, o fazer perder a autonomia as cidades, e isso no proprio momento (entre o final do século XII e o fim do século XV) em que enfraquecia também a quase auto- nomia do domfnio senhorial. Em Franga, o-grande-ven-— cedor foi o.rei;..ele.torna-se~um.-monatca no come¢o do. século, XVI, no. momento-em que um: pouce.por toda a parte, no Ocidente, se. constituem as. nagGes, onde.o Es- tado, o poder pttblico, torna a encontrar.a importancia que tivera. na antiguidade. romana....Ao. tomar..o. poder, quando da revolugao, a burguesia. destruiu, nao a «feu- dalidade», mas o antigo regime, que ela tinha contribufdo- largamente para criat, mas que a mantém longedo poder politico: Certamente, opondo assim esquema por esquema, nos nao podemos deixar de avaliar o que ha de irreveréncia, quase de sacrilégio, em tomar tais liberdades com os dogmas; talvez os historiadores dos tempos futuros fiquem surpreendidos com~este -valor~dedogma-concedido~indis- criminadamente..a-tudo—o~ que» emana»-da~filosofia~al O MITO DA IDADE M&DIA 1 ~ Marx, Nitasche, Freud’e*tantos outros —* pelav-maioria los -intelectuais-do™nosso~ tempo. No entanto, para nos apoiarmos no nosso dominio, 0 menos que podemos fazer é salientar a inconsequéncia dos historiadores marxistas que pretendem apoiar-se na histéria, mas que negam a esta o direito de ter progredido om século e meio aproximadamente. Afinal de contas, nés j& nfo estamos na época de Galilen... TUTTI MVM Rs aa Vv RAS.E HOMENS A _excravatura.é.o,.trago..d izagio. .que-marca..mais profundamente as sociedades. antigas, Ora, quando se per correm os manuais de hist6ria, € curioso notar.adiscrigao. com que ela é eyocada;..quer.se trate do.desaparecimento _ da ‘escravatura,, no _comeco..da.alta Idade... Média;..ou_ da ‘sua’ brusca reaparigio, no_comego .do..século. XVI, verifi ca-se~a” este” propdsito..uma,.estranhasreserva, Se nos di vertirmos, como temos., feito, ..a., dar uma_ revista. pelos manuais escolares do ensino, secundario,..constata-se que. nenhum deles assinalao. desaparecimento, progressive _d éscravatura a partir do século Iv. Eles.cvocam.a servidao medieval em termos. demasiado. severos,.mas.passam em siléncio. 0 -regresso, bastante... patadoxal,.no. -entanto, da escravatura no -século. XVI. Mesmo, para~umespiritosimples,ha~razZo..para_nos admirarmos;-parece dificil negar que _a_sociedade. antiga tenha considerado a, escravatura como natural e neces- saria. Se, no curso dos titimos téitipos dessa sociedade (que, alias, coincidem com 2 expansfio do cristianismo), um. Séneca-faz-notar que um escravo é um homem (re- flexig absolutamente pessoal, que emana dum clevadis- simo espirito, que foi um ser de excepgio na sua época e€ que, alids, s6 pelo suicidio escapou a sua condenagao & morte pelo poder imperial), no..entanto, verifica-se que,.a_escravatura, nem. por.isso. deixousdesubsistir até A época que se chama alta Idade Média.Os historiadores QO MITO DA IDADE MEDIA TT da antiga Roma ndo viram nisso mais mal do que os proprios Romanos, tanto tempo quanto durou admiracao exclusiva gradacdes pela antiguidade classica, isto €,” 9° século XVI “até aos” nossos” dias, nig. se_encontrou.ninguém para denunciar essa enorme’ fa- tha numa sociedade tao apregoada como exemplo. O préprio Bossuet deu-se ao trabalho“de“demoristrar que a escrava- tura era «de direito natural». E: partida, indigna- ramsé"tOtn- a” servidao..medieval;-tao~caracteristica~desses.. séculos-obscuros~-em-.que-reinava.a.ignorancia ea titania. Ainda=hojey-de--resto; ur -certo-mimero-deuniversitarios, na preocupacio evidente de. simplificar...a,.questho,..tra- duzem,.aspalawraserons-por-escravio..N0S.,textos-do...sé- culowREAi eles estio em contradigao formal com 4 histéria do direito e com os costumes do tempo que eles evocam, mas ganham em conforto moral. Alguns_ empregam_ pracessos-mais-subtis, come; por-exemplo,-falar da escravaturapraticada-no»-mundo»mugulmano;declarando que_03,outros-povos. ribeisinhos. do. Mediterraneo-na.época carolingia.devem ter-também.comprado-.e vendido~escra- vos: Este_«devem também. tery..setd..aceitayel .no plano do_tigor—histérico? Passemos sobre estas fantasias. O facto ¢..que.nio. ha dimensio...comum™€ntre~o~serous antiga,-o--eseravo, e° 0 sérvus medieval,-o-servo, Porque-um-é-uma-coisa-e o-outro ? Tanto menos aceitivel na medida em que alguns vesti- gios —extremamente saros, é verdade— subsistem, com vendas ou compras de escravos no Préximo Oriente muculmiano, de que se encontra eco, por exemplo, nas minutas dos notdrios marselhe- ses em pleno século XIU_ Prova incontestivel de que os comer- ciantes-meridiénais em relaczo.com-os paises barbarestos nao se impediram ..de~ participar...cum.-comércio .expressamenté interdito pela Igreja-e-condenadopelos~costumes»do tempo. Mas é entéo nas mesmas proporcies..e. nas. mesmas~condicées que o comércio déeséravos.-que-se--continuava:a-fazer em” Marselha, no. fim..do século XIX, ou. mesmo-no.-comego..do. século XX, onde.ele era praticado-porsalgunsamadorespoucoesermpulosos,- sem respcito pelas leis civis e muito depois da proibicdo geral da escravatura. 78 RAGINE PERNOUD um_homem. O sentido da pessoa humana. entre.-os tempos antigos e os tempos medievais..conheceu..uma muta¢ao, lenta, porque a escravatura, estava_profundamente enraizada nos costumes da_sociedade_ romana,...ero..par- ticular, mas irreversivel. E, em consequéncia disso;-a~-es- cravatura, que .é .talvez a temtaco...mais.. profunda da humanidade, ja nao_poderd, por isso,..ser--praticada_em boa_consciéneia: A..substituigad “da” sérvidao pela “escravatura é, sem divida, o facto social .que..melhor~sublinha~ 6” désapare-- cimento da. influéncia do. direito romano, da_mentalidade romana. ..nas...sociedades....ocidentais...a..paxtir dos _sécu- los..V-VI...Quando Salvien, 0 padre marselhés, exclamava, quando da queda do império: «Q imico™votoque--os Romanos: (entendamos.os-povos*submietides-aRoma). for: mulam..é..nao -terem-nunca~de~tornar~a~cair~ sob-o~jugo... de_Roma»,..exprimia~um~sentimento~de~libertagio~bem préximo~daquele~-que-sentem” hojé” 0s“ povos “descoloni- zados.Com efeito, as duas situagées so equivalentes (tendo _em_ conta, diferengas»inevitaveis:™ que” historiador ousaria ‘suistentar “que “a ~histéria~se~ pode repetir?), Esta tomada de consciéncia dum povo liberto do imperialismo romano, das suas instituigdes, dos seus funcionatios e¢ dos seus comerciantes, é a que vivem actualmente tantos povos da Africa e da Asia. Apesar_de-beneficios~- muito’ apreciaveis,-mesmo-~assiso justamente... apreciados~-pelas~-vitimas da colonizagao ..10- mana, esta, uma.vez desmoronada,. deu lugar aos costumes originais.dos diversos povos do Ocidente, cujas afinidades ~com..os__«barbaros»eram.evidentes. Estes povos celtas-- e germanicos nao conheciam a escravatura senio sob uma forma muito atenuada, que nao estava em contra- digo com o cristianismo: tanto.mais.que.o.servo medieval ¢_uma..pessoal.. tratada-~-como~tal;~o™seu~seahor..nao_.tem sobre--ele-.0.-direito.de..vida--e-de-morte..que o-direit romano. lhe~reconhecia. Alias, muito mais do que uma categoria juridica determinada, a a-seividao eum estado, OQ MITO DA IDADE MBDIA 79 ligado_a_um.modo..de..vida.essencialmente..rural..e..terri- cola; obedecer aos imperativos agricolas ¢, antes de. tudo, i essa_necessdria. estabilidade que a cultura _duma_ terra implica. Na» sociedade .que.se. vé. nascer .nos..séculos., VI ¢ VU, a. vida organiza-se em. volta do. solo que os _ali- menta e o servo é aquele de quem se exige a estabili- dade: ele deve pérmanecer no ‘seu dominio; ele é obrigado cultiva-lo, a cavar, a exploraz, a semear e também a co- ther; porque, embora saiba que lhe é proibido abandonar cssa..terta,--sabe..também .que teré parte do que nela colher, Em outros termos, senhor do dominio nao pode expulsa-lo,~nx “nao pode «fugit». Ff esta Tigagéo intima entré“o homem ¢ 0 solo em giie ve que COnstit 1 a. ser ao, porque, por outro ‘lado, © servo. tem. todos .s...direitos,.do..homem. livre? pode casar-se, “fundar..uma familia,asua.terta passara para os seus filhos.depois.dasua. morte, assim como os bens que cle _cenha..padido...adquirit.. O senhor, “notemo-lo, “tem, embora noutra escala, evidentemente, as mesmas obri- wages que o. servo, porgue ele’ nao pode vender, alienar i. sua. terra,..nem,.abandona-la, A situagio do servo é, como se vé, radicalmente dife- rente e sem nada de comum com a do escravo, que nao tinha nem direito de se casar, nem de fundar uma fa- milia, nem de tirar partido fosse do que fosse da digni- dade da pessoa humana: ele é um objecto que se pode comprar ou vender e sobre o qual o poder de um outro homem,.o seu senhor, nig. tem. limites, Na meméria das pessoas da minha gerac4o, o servo medieval evoca, por associagSes de ideias, um longo con- certo de ris, Segundo os nossos manuais escolares, com efeito, ele passava o melhor do seu tempo a bater os lagos~ para~fazer’ calar’as*rasqiié impediam o senhor de dormit, Que uma_fbula dum. tal .absurdo-tenha’ podido ia.—e..ela. foi-mencionada”em’ textos 0. comeco,.do..século. XVII —-..prova-uma’-certa” des-~ forra_.do.imaginariovsobre ‘0 racional: nem ‘se procurava 80 REGINE PERNOUD mesmo saber.o..que. poderia fazer. mais barulho, se a m —admitindo que se, pudesse ‘obtiga-la..a. calar-se —~ ou » homem ocupado a bater o lago, 4 Fez-se muita literatura sobre esse homem da terra, esse, sér apagado, andnimo,-.de quem.os..textos. nao falam, | Isto. ndo.é senéo em. parte verdade,..porque. uma verifi- cacao atenta dos nossos..documentos de. arquivos permi- tiria, em. muitos , casos, .reconstituir a prépria ~histéria dos..servos,.que foi~o que fez,com~exactidioe talento, um historiador: como: Jacques»Boussard’, O estudo do car- tuldrio da abadia de Roncetay permitiu-lhe reconstieuir a histéria dum servo, Constant le Roux; um homem bem — da nossa terra da inumerdvel linhagem dos Le Grand, Le Fort, Le Roux, de todas as espécies, cuja vida e acti- vidade, por muito humildes que sejam, ressaltam do estudo de actas de aparéncia muito insignificante, teste- — munhos esses, como censos, contratos, foros de doagées, de trocas, etc, cujas riquezas potenciais estio longe de estar esgotadas. Este Constant Le Roux, servo do senhor de Chanto- ceaux, em Anjou, vive nos tiltimos anos do século XI fun -trabalhador--obstinado, dotado,-alids,.. duma-astucia instintiva, que -no--lhe-permite—negligenciar..nenhuma ocasido de aumentar 0. que. possuis as religosas do mos- teiro de Ronceray..confiam-lhe.a.guarda.dum lagarperto da igrejade-Saint-Evroule--e-umas’ vinhas-no- lugarde Doutre Depois.é. a..condessa..de..Anjou-que: Ihe concede um outro.Jagar, perto-das .muralhas-deAngers, As.monjas do Ronceray,..a-quem: legaram-uma.-casa;unrforno-e- vi- nhas--situades -perto.-do: lagar-de~ Constant, “nas -proximi- dades da: porta- de» Chanzé, pensam.queera.pratico encar- regd-lo..de..todos-.estes: bens, a. titulo. passageizo;... pouco depois. aumentam 0» -quinh&o,~acrescentando-lhe a..terra de Espau, que comportava’ prados“e pastagens. Mas Cons- 2 J, Boussard, in «La vie en Anjou du TX® au XIIT* siecle», le Moyen Age, t. LVI, pp. 29-68, 1950. 0 MITO DA IDADE MEDIA 81 Wnt, que. se,.casata,..em breve se cansa do .seu..cstado ‘le trabalhador a meio proveito; 4 forca de. insistir junto ‘lip _celigiosas,. consegue.. que. Jhe concedam..as. terras..de Arendamento,..o--que. .paraele--é-muito mais. vantajoso. Ile aumenta ainda a sua exploragéo com uma vinha em Heaumont, com duas jeiras de prados na Roche-de-Chanzé. Depois, como nao tivesse tido filhos, consegue das monjas ile aS Silas~teras~-sejam~transferidas ‘para seu sobrinho Gautier, enquanto Sia “sobrinha Yseurt desposara Rohot, «conomo da abadia, Enfim, quando a sua, hist6ria. chega io limite tipico do tempo, entra como monge na abadia de Saint-Aubin, no fim da vida, enquanto a mulher, essa, seri admitida como monja no. Ronceray. Acrescentemos que, pata quem aceitasse debrugar-se jobre os documentos, muitos Constant le Roux aparece- riam dotados da mesma tenacidade ¢ terminando pelo mesmo humilde éxito. Nos mos,..por exemplo,na- quela_acta—-expostaantigamente “no -Museude~ Histéria de Franca na qual se viamduas servas, chamadas-Auberede ¢ Romelde,, que,.no-fim.do século XL (entre 1089..e.1095), compravam _a.,.sua.libertagiio..em--troca -duma...casa..que possufam em Beauvais, na praca do mercado; o que bastou para provar-que»servos (neste--caso, servas). tinham-catao a. possibilidade-de-possuir- bens proprios.- Posto isto, é evidente que a condigéo do servo nao deve ter sido muito invejavel e que foi uma obra pia ter libertado os servos, Os mais antigos cartul4rios contém omiltiplas_actas de-libeftacao, tendo por’ objecto; algumas yezes,cem,~-duzentos, “quinhentos “servos; outras ‘VeEZES, ainda;-uma~tnica familia; ow até um so“ homem A-ser- vidio obtigava~a~todas “as restrig6es” da tiberdade..do homem:_consideradascomo” suportaveis durante o tempo em que elas, s40.,.uma. contrapartida imposta pelas neces- sidades.. vitais,. elas. tornam-se « intoleraveis~ a partir do momento. em que-o" homemy pode -assegurar a sua subsis- téncia por-si-préprio..O camponés pdde considerar como apreciivel 0 factode-viver-num dominio do. qual nie S-15—6 82 2 REGINE PERNOUD podiam expuls4-lo; mas, quando péde ganhar. a, vida sem ser_no. dominio, se_se_sentia_mais..dotado..para percorrer ap estradas e comerciar, preferiu.a.liberdade, Foi o que se passou, principalmente, quando da expanséo urbana, a partir do fim do século X e no século XI; aqueles que | se encontravam reunidos no solo duma nova cidade que’ pertencia a um senhor pediam primeiro a licenga pata it e vir livremente, faculdade recusada aos servos e indis- pensavel aos comerciantes. Tive ocasigo de recolher as confidéncias dum velho operirio agricola a quem a idade jA nao permitia tra- balhar e que ia acabar os dias num hospicio: «Trabalhei esta terra coda a vida sem nunca possuir um metro qua- drado dela»; comparada 4 do servo medieval, a sua sorte parece infinitamente mais infeliz: servo do senhor num dominio, ele teria tido assegurado acabar af calmamente a vida; nada Ihe pertencia como coisa particular, mas © seu uso nao podia ser-lhe retirado, E, desse ponto de vista, ele tinha a mesma relacao com a terra que o pro- prio senhor, este nfo possui nunca em plena propriedade, como 0 entenderiamos hoje; é a sua classe que é proprie- taria; ele nao pode vender ou alienar senZo os bens secundarios que lhe chegaram por heranga pessoal, mas ele nfio tem sobre o dominio principal senao um direito de usufruto. E o trago especifico da época, essa concepcao par- ticular das relacdes do homem e da terta, na qual a nogao de propriedade plena ¢ inteira nfo intervém, Caracter{s- tica do direito romano, a propriedade, direito de «usar e abusar», nfo existe nos costumes medievais, que nao conheciam o uso; além disso, o uso é a maior parte do tempo sobrecarregado de muiltiplas servidGes: direito para o camponés do lugar de poder levar a pastar os seus animais na floresta do dominio, direito de poder ir la buscar madeira para construcgio ou para queimar, etc. O costume todo-poderoso regula assim um jogo de inter- dependéncias que faz da sociedade medieval um tecido O MITO DA IDADE MEDIA 83 exiremamente cerrado. Complexo para os historiadores, nilo para os contemporAneos,; era preciso recorrer aos antigos da regiao para resolver as contestagdes e conhecer de que maneira o costume de tal localidade regulava tal ou tal problema. Ha af aind: oposicao. radical-.entre sociedade antiga~e* jeedade--medieval;~-mas ~ha--também, para nds, que somos modelados pelo dircito romano, uma extrema dificuldade em compreender como se estabeleciam as relagées..do. homem-com..o. homem. edo homem’ com i terra. nos..tempos.medievais. Os restos de direito de usufruto, que em certas regides do campo persistiram muito antes do século XIX e mesmo no comeco do sé- culo XX, nfo deixaram hoje mais recordagio do que na linguagem (assim, os termos baldio, coutada, etc.). O exemplo de Counozouls, no Aude, que citamos na nossa Histoire de la Bourgeoisie*, ilustra perfcitamente a diferenga de nacureza entre uso feudal e propriedade 4a fomana». Nesta aldeia, apesar do Cédigo Civil, em geral, e, mais particularmente, do Cédigo Florestal, que, desde 1827, regula as condigées de exploragao das flo- restas, 08 habitantes tinham conseguido conservar, ainda no principio do século XX, os direitos de uso_que..pos- sufam_de_tempos~imiémoriais“sobre os bosques” circunvi- _da.comuna. Assim, quando..c..novo~proprietirio desses bosques;-um* industrial chamado: Jodot, que os com- prara_aos Rochefoucauld*,-resolveu-.fazer sespeltar..aquilo que .ele-podialegitimamiente’ tratar, segundo a lei, como sua propriedade--particular,-encontrou pela frente @ ‘Opo- sigio~feroz-dos-camponeses,Hoje ainda se pode dizer dos habitantes de Counozouls que vivem em plena Idade Média — desta vez sem abusar do termo! Mas para isso foi-lhes preciso dar provas dum esyirita de umidade * Histoire de la Bourgeoisie en France, t, G, Paris, Ed. Seuil, pp. 588-589, 1962. * Estes..tinharii; “citioalguns--dos~antigos senhores, deixado subsistir-os-direitos de usode que os camponeses tinham. desfru- tado sobre as suas terras°em todos ‘os tempos até a revolucdo. Sst REGINE PHRNOUI he e duma coesio pouco comuns, indo até ao ponto de s¢ declararem «reptiblica livren, enviando um dos seus re. clamarz os seus direitos a Tolosa, para poderem defen: der-se melhor e conservar sobre esses bosques os direitos de uso que asseguram a sua prosperidade. No fim de contas, nos nossos.paises.do-Ocidente, 0 lago da sérvidao “funcionou a favordo camponés.. Nos pafses da Europa central e oriental, o camponés ficou exposto. a todos os acasos, a toda a inseguranca, que é ainda a duma gtande parte dos camponeses da Africa ¢ da Asia (a co- mecar por esse factor-vertivel de expropriagdo que cons- titui o endividamento do. homem da terra em ielagio ao emprestador, ao usurario,..que-o. obriga~-a»-vender--por baixo precg a sua colheita; mas isso-é outta hist6ria!); s6 muito mais tarde, na época do Renascimenta e nos tempos modernos, é que nasceu, por exemplo, nos. palses_ eslavos, uma forma’ de ‘servidao infinitamente. mais dura do que a dos camponeses do Ocidente na, Idade..Média: Estes, no século XIV, com a ajuda do enfraquecimento — da nobreza, possuem. praticamente a terra que.cultivam, Mas,.a partir’ do século, XVI, principalmente em Franca (em Inglaterra,.a_ partir do séculd XVI), 0 modo de transmissio da. terra..evolui, A apropriagio que Jean- -Jacques Rousseau constatava nfo vem, como ele pen- sava, daquilo de que os bens primitivamente comuns tinham sido cercados (ainda que em Inglaterra, por exem- plo, a luta se tenha cristalizado precisamente & volta das vedages), mas~daquilo~que a terra ardvel~- foi.-desde 0 antigo regime:..cbjecto..de.compra.evenda; 9 que “ela no era, sendio numa medida extremamente’ resttita, nos tempos feudais... Assim se vé,. sobretudo. na. proximidade das cidades, aqueles que detém o dinheito — comerciantes, parlamentares, funciondrios’ reais — comprar terras, en- quanto se.vai resttingindo a parte do camponés, dai em diante tig: des; ido. Xposi¢io completa da questio necessitaria dum curso inteiro de Histéria do Direito; sem nos alongarmos ) MITO DA IDADE MEDIA 85 mais, € para voltarmos 4 servidio, assinalemos, entre outros inconvenientes, que numa sociedade muito hierar- quizada, como foi a da Idade Média, a condi¢gao do servo implica uma situagao inferior, um pouco comparavel a do mestigo até uma época préxima da nossa. Para um ho- mem livre, sobretudo se ele for nobre, desposar uma yerva é descer; num tempo em que o grupo social é con- yiderado como tendo direitos sobre 9 individuo e reci- procamente, semelhante casamento desigual é causa de (cns6es, Por isso se procura a libertagdo da servidao, por cxemplo, a: prego dé dinheiro. A Igreja, ela propria fonte de mobilidade social,encorajou.grandemente a libertagio dos.servos. Recordemos o exemplo, entre todos surpreen- dente, de Suger, que, filho de servo, foi nada menos do que condiiéipilo do futuro rei Luis VI..na-abadia de Saint-Denis; entre eles nascera, nos bancos da escola, uma amizade que sd cessaria com a sua morte: € sabe-se como, tornado”abade-de* Saint-Denis, Suger iria, ele proprio, go- vernar”ovreino” durante a cruzada de _Luis.VII,.que no seu regresso © proclamaria «Pai da Patria». Quaisquer que tenham sido as vantagens_¢ os. incon: venientes; "ha timid grande diferenca entre esta servidio medieval~e-o"renascimenito “da escravatura, que se produz bruscamente “no seciilo xX VI1,..nas... coldnias - da»-América. Aqui trata-se bem de escravatura, de pessoas consideradas é tratadas como coisas, vendidas é transbordadas como carga de mercadorias:. ordindrias....E,. mesmo. este regresso A escravatura...determinadg...pela expansao__ colonial...que caracteriza--o--periodo-do~Renaseimento,-E~ nao..se-vé..que o bumanismo, tio considerado na época, tenha_prestado alguma.-ateagao...a,.essa. parcela.da_humanidade que se escravizava.como_na_antiguidade. No entanto, parece fora de diivida que o recrudesci- mento da influéncia da antiguidade contribuiu para jus- tificar esse injustificavel comércio, Quando das controvérsias que opuseram, desde a pri- meira metade do século XVI, dominicanos como Barto- adds Ta eel 86 REGINE PERNOUD lomé de las Casas ou Vitoria aos_juristas-de~Salamanca, estes iltimasapoiavam-se~no exemplo-da-Pax.-Romana para combater..os: argumentos’.dos-religiosos..que-.denun- ciavam--perante~o-tei-de: Espanha~a-iniquidade-das-guerras de_conquista..e-da~politica..escravista”. Os seus. esforcos n@o_iriam impedir.os povos..da..Europa de -submeterem os da América, da Africa e depois, parcialmente, da.Asi para tirarem disso proveitos econémicos e politicos. Com, o tempo, chegar pelo seu poder colonial. Isso: a~custa de: guerras-que’ cada” vez se tornarao mais duras e..gracas..d.organizacao..metd-, dic” do “trafico de negtos de Africa, trazidosem:-cargas macigas para o Novo Continente,~como;por=exemplo, para~acult da..cana-de-agiicar, nasAntilhas, Eo fa- moso «comércio triangular»; os negociantes, ingleses so- bretudo, mas também franceses, espanhdis e portugueses, — que iam comprar negros nas costas de Africa para os tornar a vender aos plantadores das Antilhas, da Guiana, © etc. Seria preciso, ¢ verdade, evocar ainda aqui os grandes genocidios, que”seproduzirio;sebretudo; no “século-XIX,. acomecar: pela- destruicio “metédica dos” {ndios~da~Amé- tica-do,.Norte..E~se;"no fim do nosso século, o aparthe na Africa do Sul ptovoca o efeito dum anacronismo inadmissivel;~nfiodeixaria “de ser interessante recordar que.em.certos.paises,como a Australia e¢ a Nova ~Ze- Mindia, a questio do apartheid j4 nose pode sequer — todos os autéctones foram massacrados. * Para voltarmos & Franca e ao perfodo do Renascimento, bastara evocar Colbert ¢ o Rei Sol, em Versalhes, regu- lando em boa consciéncia as quest6es relativas & condigio dos escravos nas Antilhas e criando ou encorajando as companhias comerciais por meio das quais o trafico se * A pedido dos embaixadotes da Australia e da Nova Zelindia, dei- xamos aqui expressos 05 quantitativos da populacao. Australia: 12 mi- thoes e meio de habitantes, dos quais 150 000 aborigenes, Nova Zclan- dia, segundo o recenseamento de 1961: 2 milhde’ e meio de habitances, dos quais 168 000 aborigenes. Deixamos aos Icitores 0 cuidado de apre- ciatem estes niimeros. e-4 a avaliar a importancia dum. Estado QO MITO DA IDADE MEDIA 87 fazia, O resultado. foi.a,opuléncia de cidades como, Bor- déus, Nantes, Li helle. Ps j é a... Franga..elaboror proteccio. dos. escr: bed uma esp s_negtos — dispo- sigao, de resto, demasiado platénica, pois sabe-se que eram Brancos_ os. encarregados de vigiar a. sua aplicacao. Este estado de coisas, sabe-se, durou, na realidade, até a esse primeiro sobressalto da libertagio que foi a revolucéo de 1848 — 0 de 1793 nfo abolira sendo, muito tempo- rariamente, a escravatura nos textos, sem o minimo efeito pratico...Sabe-se--como, nas: regides -anglo-saxonicas, “2 es- ctavattifa iria persistir até & Guerra da Secessio, e mais tarde“ ainda no” Brasil” e a de M. Mahn-Lot, La Déconverte de V Amérique, Paris, Aerie coleccao «Questions histoire», oy ne a principalmente pigs. 83 € s¢gs. Sera também de utilida oe v tura dos textos traduzidos e apresentados pelo mesmo Cn . de Las Casas, PEvangile et la Force, Patis, Ed. du Cerf, 1964, AA Vi A MULHER SEM ALMA Nesse «ano da mulher» que foi o ano de 1975, a cadéncia das referéncias 2 Idade Média tornou-se can- sativa; a imagem da Idade Média, dos tempos obscuros de que se emerge, como a Verdade do pogo, impunha-se a todos os espiritos e fornecia um tema de base para os discursos, coléquios, simpésios e semindrios de toda a ordem. Como eu evocasse um dia em sociedade 9 nome _ de LeonordeAquitaiia,~obtive imediatamente aproya-. Ges entusiastas: «Que figura admiravel!», exclamou wu das “preventtes.” @Nuima” época “em que .as..mulheres n%o pensavany send em ter filhos...» Eu fiz notar que Leonor” também. parecia* ter ‘penisado nisso, pois que ela teve dez e, dada.a.sua. personalidade, isso” nao “devia-ter-acontecido por simples -inadverténcia....Q. entusiasmo arrefeceu um pouco, O estatuto da mulher em Franca na Idade Média é hoje um assunto mais ou menos novo; poucos estudos sérios Ihe foram consagrados, pode-se mesmo dizer que se podiam contar pelos dedos das mfos. A sociedade Jean Bodin, cujos trabalhos séo tao notaveis, editou em 1959-1962 dois grossos volumes (sespectivamente, 346 e 770 paginas) sobre A Mealher, Todas as civilizac6es sio sucessivamente examinadas. A mulher na sociedade do Sido, ou segundo os varios direitos cuneiformes, ou no direito malikita-magrebiano, é aj magistralmente escu- dada, mas, para o nosso Ocidente medieval, nao se encon- O MITO DA IDADE MEDIA 89 tram senfo dez paginas relativas ao direito candnico, outras dez ao periodo que vai do século XU a0 fim do século XVI, um estudo consagrado aos tempos classicos até ao Cédigo Civil, um outro A monarquia franca ¢ uns trabalhos mais detalhados sobre a Italia, a Bélgica e @ Inglaterra, na Idade Média. E é rigorosamente tudo. O pe- riodo feudal é completamente passado em siléncio. Indtil procurar ai um estudo sobre a mulher nas socie- dades celtas, onde, no entanto, é certo que cla teve um papel que contrasta com aquele a que ela foi confinada nas sociedades de tipo classico greco-romano. No que se refere aos Celtas, o homem e a mulher encontram-se, para os historiadores do nosso tempo, em pé de estrita igual- dade, pois nig se evoca nunca nem um nem outro, Aos Celtas foi recusado, uma vez por todas, o direito a exis- réncia. E, no entanto, uma imagem que eu ja tive noutra ocasifio de evocar se impde (*). Nao é surpreendente,..com. efeito,, pensar. que. nos.tempos-feudais..a-rainha..6.coroada como... rei, geralmente.em. Reims, por-vezes-noutras.-cate- drais do dominic Cem. Sens, para.. Margarida. de. Pro- venga), mas sempre, pelas..maos...do..arcebispo~de~-Reims? Por, outras-palavras, atribui-se.acoroagio-da rainha‘ tanto valor.como.a.do.rei. Ora, a tiltima rainha que foi coroada foi Maria de Médicis; ela foi-o, alids, tatdiamente, em 1610, na prépria véspera do assassinio do esposo Hen- rique IV; a ceriménia teve lugar em Paris, segundo um habito adquirido nos séculos precedentes (atingir Reims representava ent&o uma prova militar, por causa das guer- ras anglo-francesas). B, alias, desde esses tempos medie- vais (o termo tomadg aqui por oposigao aos tempos feu- dais), a coroacio da rainha tomara menos importancia do que a do rei; numa época em que a guerra reinava em Franca no estado endémico (o da famosa Guerra dos Cem ) Histoire de la Bourgeoisie, op cit, t. U, pp. 30-31, / ; 90 REGINE PERNOUD Anos), as necessidades militares comecam a ultrapassar qualquer outra preocupacio, e o rei é, antes de mais nada, o chefe de guerra. A verdade é que no século XVII a rainha desaparece literalmente da cena, em proveito da favorita. Basta evocar 9 que foi o destino de Maria Teresa ou o de Maria Leszcynska para nos convencermos disso. E, quando a titima rainha quis recuperar uma parcela do poder, deram-lhe ocasiao de se arrepender disso, pois ela chamava-se Maria Antonieta (é justo acrescentar que a iltima favorita, a Du Barry, se reuniu no cadafalso & Ultima rainha). Esta r4pida visio do estatuto das rainhas dé bastante bem a ideia do que se passou em relagZo as mulheres; o lugar que elas ocupam na sociedade, a influéncia que exer- cem, seguem um tracado exactamente paralelo. Enquanto uma Leonor de Aquiténia, uma Branca de Castela, domi- nam realmente o seu século, exercendo o poder sem con- testagdo no caso da auséncia, da doenga ou da morte do rei, tendo a sua chancelaria, as suas arras, o seu campo de acti- vidade pessoal (que podia ser reivindicado como um fecundo exemplo pelos movimentos mais feministas do nosso tempo), a mulher nos tempos..cldssicos-é relegada para. segundo plano; ela. nao exerce. j4- influéncia~senao clandestinamente, e principalmente encontra-se~excluida de todas as funcées politicas..ou.administrativas. Ela é mesino tida, e€ isto sobretudo. nos» paises..latines;~como 4neapaz de ceinar, de suceder no feudoou.no. dom{nio, e, finalmente, no nosso Cédigo, de exercer qualquer..di- reito, sobre. os. seus” bens: pessoais. B, como sempre, na histéria do Direite que ¢ preciso procurar os factos e o seu significado, por outras pala- vras, a razio desse declinio, transformado, no século XIX, em desaparicao total do papel da mulher, em Franca sobre- tudo, A_sua_influéncia.diminui, paralelamente..’. -subida de direito. comano.nos.estudos dos juristas, depois nas. ins- tituicdes,.c. por fim~nos costumes. E uma‘ extin¢ao~pro- O MITO DA IDADE MEDIA 21 gressiva,-cujas~principais” étapas se seguém muito” bem, pelo-men6s~em~Franga. Bastante curiosamente, a primeira disposigao que , afasta a.mulher-da.sucessio a0 trono foi tomada por Fili- pe,..0..Belo, E certo que. este..rei--estava~-sob»o~-dominio. dos legistas “meridionais, que. tinham.literalmente. inva- dido“a_corte, da, Franca, no. comego..do..século.. XIV .e que, representantes tipicos da burguesia das cidades, princi- palmenite. das..cidades .muito..comerciais do- Midi,-redesco- briam © direito romano com uma verdadeira avidez inte- lectual, Esse direito concebido por militares, funciona- rios, comerciantes, conferia ao proprietdrio 0 jus utendi et abutendi, direito de usar ¢, abusat;-em-completa con- tradi¢ég. com-o-direito consuetudindrio,. de entio; mas-emi- nentemente.favoravelaqueles que~detinham’ bens, sobre- tudo _mobilfdrios. A esses, esta legislagéo parecia, com razio, infinitamente superior aos costumes existentes para assegurar e gatantir bens, trafegos e negdcios. O direito romano, cuja_ influéncia.se-vé-renascerem Telia, em Bolé:” nha principalmente, foi a grande tentagéo do periodo .me- ieval; ele. foi estudado com entusiasmo, nao 36 pela bur- guesia_ das _cidades, mas..cambém . por todos .aqueles .que af viam_um.instrumento. de centralizacag. .¢..de. autori- dade. Ele ressente-se largamente, com efeito, das suas origens imperialistas e, digamos a palavra, colonialistas. Eo direito por-exceléacia~daqueles..que- querem~afirmar uma...autoridade..central—estatal.-.Por.isso.-ele..foi--reivin= dicado, adoptado, considerado. pelas. autoridades..que-pro- cufavam. entao..a..centralizagdo:. primeiro,. pelo. imperador, depois,-pelo..papade. Em.meados do século_ XII, 0 impe- rador. Frederico.IL, cujas_tendéncias eram.as dum.monarca, fez. dele_a lei. comum-dos- paises. germanicos, A Univer- sidade que funda em Népoles —a tnica que os stibditos do imperador esto, a partir da{, autorizados a frequen- tar— dispensa o estudo do direito romano, visto que foi o dircito romano que regen as instituigGes e os costumes 92 REGINE PERNOUD dos paises germanicos numa época em que o Ocidente ainda nao o admitia*. Sera..apenas.-no-decorrer do s¢- culo XVII que o estudo..do. direito, romano,..precisamente porque era o. direito imperial, sera .admitido..na..Univer- sidade_de..Paris, FE verdade que, muito mais cedo, ele era ensinado em Tolosa e que, favorecido pela admiragio que se sente no século XVI pela antiguidade, ele comegara a impregnar os costumes e a modificar em profundidade os habitos e as mentalidades na prépria Franga. Ora_o..direito-romano- nio-é favoravel -A-mulher;-como também o..nao.é4.ctianca, E um_direito mondrquico.que nao admite sendo um tinico.termo..E o direito do puter familias, pai, proprietario..e,..em. .casa,..sumo.. sacerdote, chefe de familia de poder sagrado, em qualquer. caso ilimitado, no que se refere aos filhos: ele tem sobre eles dircito de vida.e de morte.—. sucedia_o. mesmo em rélagio"& mulher, apesar das limitagdes tardiamence_ intro- du idas_ como. Baixo Império. E baseando-se no direito romano que juristas como Dumoulin, com. os seus. tratados..e-os-- Seus..ensinamentos, contribuem.. simultaneamente., .para~ alargar~-o...poder__do_ Estado. centralizado. e. também.—o- que “nos interessa_ aqui — para..restringir.a. liberdade..da~mulher~e. das..suas capacidades. de accio, sobretudo. no casamento. A influén- cia desse direito. seri. tao forte_que no-século. XVI a idade da_maioridade, que era de doze anos..para.as raparigas é de catorze para_os rapazes, sc encontra modificada para.a” mesma. idade. fixada-em-Romay-isto~é;-vinte-¢..cinco anos (em Roma, a maioridade quase no -contava,..pois.o poder do pai sobre os filhos continuava efectivo enquanto durasse a vida daquele). Era uma nitida regressio..em.relacao.at direito, consuetudinario, que. permitia..ao.. filho..adquir a * Paradoxalmente, os pafses germanicos terdo sido modela- dos, assim, pelo direito romano, enquanto em Franca, embora ele nfo desagradasse Aqueles que continuam agarrados ao mito da «raga latinay, os costumes eram formados por habitos que se créem sgermanicos», mas que se devia antes dizer a«celcasn. O MITO DA IDADE MEDIA 93 muito. jovem.uma-verdadeira.autonomia, sem que, por esse facto, a solidatiedade da_familia Ihe. f izada, Nesta eStrutura, 0 pai tinha uma autoridade de administrador, e nio de proprietario: aZo tinha o poder de deserdar o filho mais velho, e era o costume que, nas familias nobres ou plebeias, regulava a devolugéo dos bens, num sentido que mostra bem, alids, 0 poder que a mulher consetvava sobre © que the pertencia particularmente: no caso de um casal ter mozrido sem herdeiros directos, os bens que provinham do pai iam para a famflia do lado paterno, mas os que provinham da mie voltavam para a familia do lado materno, segundo o adAgio bem conhecido do direito con- suetudinaério: paterna paternis, materna maternis. No século XVU, ja, verifica-se uma profunda evolugio nesse ponto de vista: os filhos, considerados menores até aos vinte cinco anos, continuam sob o poder paterno e 0 caricter da propriedade que tende a tornar-se 9 monopélio do pai continua a afirmar-se. O Cédigo de Napoledo da uma ultima ajuda a este dispositive e concede um sentido imperativo 4s tendéncias que tinham comegado a afir- marsse desde o fim da época medieval. Recardemos que somente no século XVIL_a_mulber.toma obrigatoriamente- o nome do marido; ¢,..também,..que..é.s6.com.o.Concilio de “Trento, portanto_na..segunda-.metade-do século XVI que 0 consentimento..des pais se torna necessario para 0 caSamento .dos..filhos;..assim como. s¢ tornou. indispensavel a sancao da Igreja. Ao velho adagio dos tempos precedentes: Beber, coneer, dormir juntos, Fazem casamento, parece-me acrescenta-se: Mas é preciso que a lgreja 0 sancione. Nao se deixard de fazer notar aqui o ntimero de unides devidamente arranjadas pelas familias nos tempos feudais: rapazes e raparigas noivos desde o berco, prometidos um a ___R#@INE PERNOUD a0 outro; os exemplos abundam, com efeito. Nao se deixou de tirar daqui argumentos quando se pretende demonstra que as"miulherés ‘nfo eram livres na época; ao_que_é facil retorquir que, desse ponto de vista, rapazes e faparigas.se, €ncontram num. pe de igualdade rigorosa, porque.se.dispoe absolutamente tanto do futuro esposo como...da..futuca, esposa, Entretanto, é incontestivel que ent&o se produzia © que se passa ainda hoje em dois tergos do mundo, pois sabe-se que as unides, na sua maioria, eram arranjadas — pelas familias. E_nas familias nobres, ou. mesma, reais, essas_disposicGes faziam de certo modo parte das obriga- gdes de nascimento, porque um casamento entre dois her.” deitos de feudos ou reinos era considerado como a melhor maneira de selar um. tratado. de paz, de assegurar_ uma amizade reciproca, ¢ também de prever.no futuro frutuosas” herangas, Uma autoridade Iutou contra estas, unides impostas; a Igreja; ela multiplicou no direito candnico as. causas de anulacao, nao deixou de reclamar_a liberdade para aqueles que se comprometem em. relacdo. um.ao..outro..e..muitas_ vezes se mostrou bastante indulgente tolerando, de facto a ruptura de lagos impostos — muito. mais do. que mais tarde, notemo-lo, Alids, é uma constatacio que resulta da simples evidéncia que os progressos da livre escolha dos esposos acompanharam em toda a parte os progressos da difusio do cristianismo, Hojeainda,-é-em: paises: cristios gue essa on a liberdade, tio. justamente ,reivindicada, é reconhecida,.pelas leis, enquanto em _ paises muculmanos ou em_paises do Extremo Oriente essa liberdade, que nos parece :essencial, nao..existe ou-sé.foi. muito. recentemente. concedida’ * «A legislacio muculmana interdita 2 mulher o que esta feivindica hoje, e que ela chama os seus direitos, € que nio cons- tui sendo uma agressio aos direitos que foram conferidos apenas aos homens.» Assim se exprimia em 1952, na publicagao intitu- jada Al Misri, o xeque Hasanam Makhluf (ver a Documentation frangaise, n.° 2418, 31 de Maio de 1952, p. 4). O MITO DA IDADH MEDIA 95 Isto_leva-nos..a-discutiz.¢..slogan..da..algreja. hostil a mulhern... Nao.-nos»-deteremosa--retomar.-aqui..o..conjunto duma questio.que.necessitaria.um. volume.’ paste; também nfo discutiremos-.os~-disparates...evidentes. que_tém. sido proferidos»nesse-sentido. «S6 no.século.XV._ é que-a. Igreja admitin que a_mulher-tinha-uma aimay;-afirmava-candida- mente, um. dia,.na.radio, nao. sei, que romancista certamente anitnada_de.. boas..inteagées, .mas- cuja-informagio apresen- tava, ‘algumas “Jacunas!’ Entio, durante séculos,.. terse-ia baptizado,--confessado~-e--admitido a Eucaristia_seres, sem alma!_.Nesse..caso,..porque,n4o os animais? Estranho que os primeitos mértires honrados como santos tenham ido mulheres; ¢ nao homens: Santa Inés, Santa Cecilia, Santa Agata € tantas..outras, Triste, verdadeiramente, que Santa 9 Blandina ¢ Santa..Genoveva tenham sido desprovidas. de almas_imortais, Surpreendente que uma das mais antigas pinturas das Catacumbas (mo cemitério de Priscila) tenha representado a Virgem do Menino, bem. designada pela Estrela e pelo_profera.Isafas. Finalmente, em quem acre- ditar, naqueles _censuram 4 Tgreja~medieval, precisa- mente;-o-culto de Virgem Maria, ou naqueles que afirmam que.a..Virgem..era..entio considerada como uma .criatura sem-alma?”” : Sem nos alongarmos, pois, com frivolidades, recorda- remos aqui que certas mulheres (que nada indicava, par- ticularmente pelas familias ou pelo nascimento, pois vinham, como dirfamos hoje, de todas as camadas sociais, como 0 pftova a pastora de Nanterre), desfrutaram na Igreja;e-devido.a.sua.fungio.na Igreja, dum. extraordindrio poder-na: Idade- Média: Algtimas:abadessas cram auténticos senhores félidais, ctijo poder’ era ‘téspeitado de-modo. igual ao_dos-.outros~senhores;“algumas-usavam: baculo, como 0 bispo;.administravam -muitas: vezes. vastos. tetritori0s. com aldeias,-paréquias::. Um exemplo entre milhares: pelos meados.-do--século~XHy-0s-cartularios permitem-nos, seguir a formagag“do~mosteito “de Paraclet, cuja. superiora .€ Heloisa;- basta” percorré-los para constatar que a vida duma 8. REGINE PERNOUD abadessa na época comporta todo..um. aspecto. adminis- trativo: as doacdes acumulam-se, permitindo, aqui.receber o dizimo sobre, uma. vinha, ali ter. direito..aforos..sobre fenos ou trigos,..aqui.usufruir.duma..granja..ealidum direito de. pastagem.na floresta... A sua actividade é cam- bém a dum explorador, ou mesmo dum senhor. E de dizer, pois, que, pelas suas fung6es religiosas, certas mulheres exefcem, mesmo na vida Jaica, um poder que muitos — homens poderiam invejar-lhes hoje. Por outro ‘lado, constata-se que as religiosas desse tempo —sobre as quais, digamo-lo de passagem, nos fal- tam absolutamente estudos sérios—— so, na sua mai parte, mulheres extremamente instruidas, que. poderiam ter rivalizado em saber com os monges mais. letrados.do tempo, A prdépria Heloisa conhece e ensina as suas monjas o giego e o hebreu. E duma abadia de mulheres, a de Gandersheim, que provém um manuscrito do.século..X, que contém seis comédias em prosa rimada, imitadas de Teréncio; so atribuidas 4 famosa. abadessa.Hrotsvitha, cuja influéncia sobre .o desenvolvimento... literdrio...dos paises germanicos se conhece. Estas comédias, provavel- mente ‘represefitadas pelas religiosas, sto, do ponto de vista da histéria’ dramdtica, consideradas como a prova duma tradicio escolar que terd contribuido para, o. desenvolvi- mento do teatro na Idade Média. Acrescentemos.de.passa- gem que muitos mosteiros, de homens ou_de_ mulheres, ministravam localmente a instrucio as, criancas. da, regiao. E surpreendente também constatar que a enciclopédia ida_do.século~Xit-.emana. duma.-religiosa,..a tade_ de. Landsberg...E..o famoso Hortus. ae darum.(«Jardim.de-Delicias»), no qual os eruditos va0 procurar as informagGes mais seguras em relacao as técn no. seu.tempo.-Podia dizer-se o mesmo das obras da célel Hildegarda de Bingen. Finalmente, uma outra_religiosa, Gertrude de. Helfta,. no. século--XIIl,..conta-nos .como_se sentiu feliz por passat do estado de «gramdcicay ao de_ «tedlogan, isto. 6, .que,..depois..de..ter» percorrido..o..cicla.., O MITO DA IDADE MEDIA oT borda.o.ciclo. superior, como dos estudos.preparatérios,. se fazia_na.universidade. O que prova .que...ainda...no século XIN os conventos de mulheres sio_o que. sempre tinhart sdo-desdé-Sao Jeronimo, que instituiuo primeiro deles, a comunidade de Bethléem: centros de oracio, mas também de.ciéncia. seligiosa, .de~ exegese,.de..erudicao, estuda-se aia. Sagrada, Escrivura,. considerada.como,.a. base de todo... conhecimento,.e. também. todos..os.elementos..do saber teligioso-e. profano. As religiosas sao mulheres: ins- truidas; alias, entrar no convento ¢ uma_yv “para aquelas“que querem desenyolver os. seus, conhecimentos para“além “do. nivel corrente. O que pareceu extraordindrio em Heloisa, na sua juventude, foi o facto de, nio sendo religiosa ¢ nao desejando manifestamente entrar no con- vento, ela continuar, no entanto, estudos demasiado aridos, em vez de se contentar com a vida mais frivola, mais des- preocupada, duma rapariga que deseja «permanecer no século». A carta que Pierre, o Venerdvel, lhe enviou di-lo expressamente. Mas ha mais surpreendente, Se se quiser fazer uma ideia exacta do lugar ocupado pela mulher na Igreja, nos tempos feudais, é preciso. perguntar..a_si prdprio..o..que. se ditia 6 H6886 séCulo. XX de conventos.de homens colocados sob 6_magistério-duma..mulher...Um. projecto. desse..genera teria no..nosso:.tempoa~-menor. possibilidade. de. resultar? Foi, no_entanto,--0. que se-realizoucom pleno .sucesso, e sem..ter provocado..o..menor.escandalo na Igreja, com Robert. d’Arbrissel.em Fontevrault, nos.primeiros. anos do século. XIE. Tendo. resolvido -fixar a. multidao..inverosimil de homens.e-mulheres. que chamava-atras-de-si-—- porque foi um. dos. maiores. conversores. de..todos. Os tempos —, Robert, d’Arbrissel-decidiu- fundar dois conventos, um de homens--outro“de-mulheres **entre-eles-erguia-se-a~igreja que_era_o,tinico-lugat.onde..monges.¢ monjas. podiam * Houve, alias, numerosas ordens mistas na época, principal- mente nas regides anglo-saxdnicas e em Espanha, $-12—7 i i 98 REGINE PERNOUD _encontrar-se. Ora esse mosteiro duplo foi colocado. sob a “autoridade, nao dum. abade, mas duma abadessa. E vontade do fundador, devia ser vidya, tendo, pois,.. riéncia do casamento.,..Acrescentemos, para sermos com- pletos, que a primeira abadessa,..Pétronille,.de. Chemillé, que presidiu aos destinos desta, ordem. de. Fontevraule.ciaha ‘vinite ¢dois anos. Nao vemos que hoje semelhante andacia, mais uma vez, tivesse possibilidades de .ser-encarada, Se examinarmos os factos, imp6e-se esta conclusao: durante todo o periodo feudal, o lugar da mulher na Igreja foi certamente diferente do homem (e em que medida nao seria uma prova de sabedoria o ter em conta que homem ¢€ mulher sao duas criaturas iguais, mas diferentes?), mas foi um lugar eminente,..que,,alids, simboliza. pesfeitamente ° culto, eminente-também, prestado-2: Virgem: entre-todos os.,santos::E pouco nos surpreende..que..a. época..termine com um rosto de mulher: 0 .de-Joana.d’Arc, a qual, diga-se dé passagem, nunca teria.podido nos..séculos. seguintes obter a audiéncia ¢ suscitar a. confianca que .no..fim de contas, obieve. E igualmente surpreendente observar a rigidez que se produz, em relacio & mulher, mesmo no fim do século XIN, E por meio duma medida bem significativa que o papa Bonifacio VIT,.em-1298,-decide;-em»relagio as monjas (Cartuxas, cistercienses),.a.clausura.total..e-rigo- rosa que elas conheceram_a.partir.dai, Daf em diante nao sera mais admitido.que-a-religiosa intervenha-no-mundo... Nao. se. tolerarao.mais esas. laicas,.tio..consagradas, 00 século XII, as beguinas, que levavam.a.vida.como..toda a gente, mas que se. consagravam....por....votos.. No século XVII principalmente, ver-se-4 as religiosas da Visi- taco, destinadas pela sua fundadora a misturar-se com a vida quotidiana, obrigadas a conformar-se com a mesma clausura das carmelitas; de tal modo que Sdo Vicente de Paulo, para deixar as Irmas de Caridade prestar_auxilio a0 povo, cuidar dos doentes e ajudar as familias necessitadas, deixaré de as tratar como religiosas e de as obrigar a ser O MITO DA IDADE MEDIA 99 freiras; a sua sorte teria sido entao a das Visitandinas. Nao se podia, pois, conceber que uma mulher que tinha decidido consagrar 2 sua vida a Deus, nfo estivesse enclausurada; no entanto, nas novas ordens criadas para os homens, teste- munha-o a dos Jesuitas, estes continuam no mundo. Basta dizer que o estatuto da mulher na Igreja é..exac- tamente_o.mesmo.que na sociedade. civil, e que, pouco a pouco, lhe. foi.retirado,-depois-da-Idade-Média,.tudo.o.que * the podia conferir alguma autonomia, alguma.independén- cia, alguma..instrugio. Ora, como ao mesmo tempo a uni- versidade —que nao admite senao homens— tenta con- centrar o saber €°0 efisino, os conventos deixam, pouco a pouco, de ser esses centros dé estudo.que eram preceden- tementé, acrescentemos que eles deixam também de ser, ¢ bastante’ fapidamente, ‘centros de oragio. A mulher, encontra-se, pois, excluida da vida eclesias- intelectual--O- movimento precipita-se 0 comeco do século XVI, 0 rei de Franga tem 0 poder de. nomeacio, das. abadessas.¢.dos.abades, O melhor exemplo continua a sera ordem de Fontevrault, que se torna um asilo para as antigas amantes do rei. Asilo onde se leva, alids, wma” vida” cade vez menos edificante, porque tio Tigorosa_ “clausura nao tarda.a sofrer alteracées, decla- radas ou nao. Se algumas ordens,..como..a.do Carmel ou a de Santa Clara, conservam a sua puseza gracas as reformas, a-mai6ria dos mosteiros de. mulheres, no fim do antigo” regime-sio-casas acolhedoras, onde as filhas mais novas das. grandes familias *recebem*muitas..visitas-e-onde-se joga ds cartas, ou_mesmo.,.a..outros:-«jogos. .proibidos»;~-noite ave Haveria que falar das mulheres que néo eram nem altas damas, nem abadessas, nem sequer monjas: campo- nesas ou citadinas, maes de familia ou mulheres que exer- ciam uma profissio, Imitil dizer que, para ser correcta- mente tratada, a questo reclamaria varios volumes, ¢ também que exigiria trabalhos preliminares que nao foram:feitas. Seria indispensdvel vasculhar nfo s6 as colec- ee a06 RAGINE PERNO Ui gdes de costumes ou os estatutos das cidades, mas tambét 3 enorme massa das actas notariais, no Midi, sobret cattularios, documentos judiciais, ou ainda os inquéri ordenados por So Luis*, encontram-se ai, respigados vida quotidiana, mil pequenos detalhes, ceifados ao e sem ordem preconcebida, que nos mostram homens _ mulheres através dos factos comesinhos da existéncia: aqui a queixa duma cabeleireira, ali a duma vendedeira de sal duma moleira, da vitva dum lavrador, duma castela, dum@ mulher «cruzada», etc. # por meio de documentos deste género que se pod reconstituir, pega a peca, como num mosaico, a histéri real. Ela aparece-nos |4, intitil dizé-lo, muito diferente d cangdes de gesta, dos romances de cavalaria ou dessi fontes literdrias que tanta vez se tém tomado como font histéricas! O quadro que se destaca do conjunto desses documet tos apresenta, para nés, mais de um trago surpreendente pois se vé,..por..exemplo; as» mulheres votando~como..0$ homens nas _assembleias . urbanas~ou~ nas*“das*-communas. rurais, ae Muitas vezes nos divertimos, em conferéncias ou expo- sigdes varias, a citar o caso de Gaillardine de Fréchou, que num arrendamento proposto aos habitantes de Cauterets, nos Pirenéus, pelo abade de Saint-Savin, foi a linica a votar Zo, enquanto todo o resto da populacio vorou Sim, O yoto das. mulheres. niio..é em-toda.a-parte.expressamente mencionado, mas isso pode ser porque. nao. se..visse.neces: Sidade de o fazer, Quando: os-textospermitemdiferenciat ® Iniciativa sem precedentes, ¢, alias, sem sequéncias, que consistia em fazer vigiar pelo rei a sua propria administracao, dirigindo-se directamente aos administrados; o fei enviava a0 proprio. lugar inquiridores unicamente encarregados de recolher as declaragoes. de arraia-mitda que tinha razao~de* queixa~-dos agentes reais ¢ de reparar jmediatamente-os.-abusos~-cometidos,, por outros termos, era a. vida.eficaz que=tetia remediado_ os de- | feitos do estatismo. 0 MITO DA IDADE MEDIA 101 a origem dos _yotos,_s7é-se..qne -om-egides tho diferentes cori’ as unas _bearnesas, .cer _regides..da.Champagne ow cettas cidades-do-Leste;.como: Pont-i-Mousson;-o8 ain na Touraine, quando:dos Estados Gerais de 1308,-as. mulhe- res SA. explicitamente .nomeadas » entre..0s concen que, isso.seja: apresentado.como um costume.particu lar localidade. Nos estatutos das cidades, indica-se em_ getal que 08 votos sao recolhidos na assembleia dos bab sem precisar de outro modo; por vezes fazese men¢ao a. idade, indicando, como em Aurillac, que o direito de voto é exercido com idade de vinte anos ou, em Embrua, a partir dos catorze anos. Acrescentemos que, como geral- mente os votos se fazem por fogo, isto é por lar, por fami- Jiares mais do que por individuo, é este que representa o «fogo», logo € 0 pai de familia que ¢ chamado a tepre- jentar os seus; se € 0. pai de familia que. ¢ peralments. 2 chefe.dela,-verifica-se,. bem. entendido, que 4.802. autoridade (a dum administrador, ¢ dum dirigente, n20.dum. pro- prietariOes : ' Nos actos notariais.¢ muito frequente ver uuma.roulher casada apie por” si prOprias “abrindo,.. por.exemplo,..uma loja_ou..um-negdcioy-€- ist0.-S¢M.-SCt obrigada.a-apresentar. (ima. -autorizagio~do- marido. Finalmente, os registos das derramas (nos dirfamos os registos dos recebedores),, quando nos*forant consévados, como,.¢.0. Caco de. Paris, no fim do século, X11, mostram uma, sultidao. de mulheres que _-exerciam.,.profiss08s:. ora,,..médica,...boticdria, estucadora,... tintureita;~ copista,.. miniatusista,: encaderna- eter aa = fim..do..século, XVI,--POL. HE, decreto do. Parla: mento datado. de-1593,-¢:que-e-mulher sexaafascada expli- ciramente .de.toda:a funcaio-ne~Estado. A influéneia ascen- dente do direito_ romana_nfio...carda,.Pos.. confinar...2 mulher “tiaquilo que. foi,.em-todos-os "tempos; & emer privileg Q:..0. cuidadoedavcasane a educagao dos: ee ‘Até ao momento em que mesmo isto lhe sera tirado pa lei, porque, notemo-lo, com 0 Cédigo de Napoleao, ela 102 REGINE PERNOUD ja nfo é sequer senhora dos seus hens e, no seu Jar, ela nio desempenha sendo um papel subalterno. Porque, desde Montaigne até Jean-Jacques Rousseau, sio os homens,,que compéem tratados de educagao, enquanto. o..primeizo tratado de educacio_ publicado . em... Franca. que-chegou até nés emana duma mulher, Dhuoda, que. o,compés (em véisos latinos) aproximadamente em. 841-843,.para-ws0 dos.-seus. filhos * Ha alguns anos, algumas discussGes que se realizaram quando se tratou da questo da autoridade dos pais, em Franga, seriam bastante desconcertantes para o historiador da Idade Média; de facto, a ideia de que fosse precisa uma lei para dar & mulher um direito de olhar pela educacio dos filhos teria parecido paradoxal nos tempos feudais. A comunidade conjugal,.o.pai.e.a.mie, exercia entGo conjuntamente .a.tarefa.de educacio ec de proteccio dos..filhos,...assim. .como,...eventualmente,. a. administragao dos bens. F verdade que a familia é.entéo concebida num sentido muito mais lato;.esta.educagio, pée infinitamente menos problemas, porque..se.-faz».no.,meio..dum, tecidd vital; duma comunidade. familiar mais vasta e mais diver- sificada do que, nos..nossos.-dias, pois. ela. nfo esta redu- zida”X célula_inicial _pai-mae-filho, mas inclui também ayés, colaterais, .domésticos,.no..sentido etimoldégico do termo..O que nao impede que a crianca tenha, eveatual- mente, a sua personalidade juridica distinta; assim, se ela herdar bens prdprios (legados, por exemplo, ‘por-um. tio), estes sao administrados..pela..comunidade familiar, que mais tarde. tera..de..lhe,-dar..conta-deles. é Podiam multiplicar-se assim os exemplos de porme- nores fornecidos pela histéria do direito e pela dos cos- tumes que atestam.a.degradacio-do~lugar-mantida.pela mulher. cntre-os-costumes feudais“é-o- triunfo. duma.tegis- ‘lagio_«a romanay,..de..que.onosso..Cédigo..continua ainda * P. Riché, Dhuode, Manuel pour mon fils, Paris, Ed. du Cerf, 1975. O MITO DA IDADE MEDIA ‘ 4 103 impregnado, Por_muito..que..os..moralistas. quisessem ver mulher...no» lar»;-teria .sido..mais..indicado__inverter a proposigao: eexigir-que,o.larestivesse na mulher. Ni A reacgag_nao..chegou sendo. po. .nosso.-tempo...Alias, “demasiado ilusdria, digamo-lo: tudo se..passa..como > a _mubher,,.deslumbrada..de., sarisfagio a, ideia, de ter penetrado._.no,.. mundo...masculino,...ficasse...incapaz, do. es forgo. de--imaginagao~suplementar..que Ihe .seria. preciso para,.ttazer-.d.. Sse. mundo.a. sua..proptia.marca, aquela precisamente. que. falta.A.nossa sociedade. Basta-lhe..imitar onsiderada capaz de exercer as mesmas ode adoptar os comportamentos, ¢ até os hé- bitos, em relacéo ao vestudrio do, seu. parceiro, sem_.mesmo pore sipr -questiig” do“ que é em si contestével e-que-devia~ser~contestado. E de perguntar se ela nao sera moyida...por..uma. admizagao -inconsciente, € que, s¢ pode derar., excessiva, dum, mundo masculino que ela acredita necess4rio ¢ que basta copiar com tanta exactidag” quanta for. possivel, ‘mesmo .que. seja..4_ custa da perdada...sua.. propria identidade_e_negando _anteci- padamente.a suaoriginalidade. Contestag6es desta espécie arrastam-nos para bastante Jonge do mundo feudal; elas podem, no entanto, levar a desejar que esse mundo feudal seja um pouco melhor conhecido daquelas que acreditam de boa-fé que a mu- lher «sai finalmente da Idade Média»: elas tém muito que. fazer para,.teencontrar ovlugar-quecctipou no seu cempowa”tainha~ Leonor ouve sainha Branca... a inline em iste NI I. heart) || 0 INDEX ACUSADOR No tempo em que preparivamos, nos arquivos na-— cionais, uma exposigio sobre o século de Sao Luis, eu tinha entregue a uma assistente, alids muito culta, a pas- ( sagem bem conhecida-do. Lesouro.de-Brunetto: Latiniy:q explica aos seus leitores, em meados do séeul6 “XIM,..a,.es- fericidade--da.. Terra. ; «Toma!» disse-me ela, muito espantada, «eu julgava que Galileu tinha sido queimado vivo na Idade Média por ter dito que a Terra era redonda.» Eu expliquei-lhe que a frase continha trés erros his- téricos: Galileu. nao tinha. descoberto.que™aTeira’era redonda; ja se.sabia -isso~ha~quatro. séculos.. Depois, ele nao tinha sido queimado vivo, mas apenas encarcerado, © que. ja.era.uma. forma bem pouco. cortés...de.. alguém que tinha a coragem de afirmar pela primeizavez, que. a’ Terra: girava~em-roda’'do Sol. Finalmente; isso-nao Se passava no. Idade» Média» Ai, para a convencer, tive de d recorrer ao Larousse em vinte volumes, Foi com imenso — espanto que ela teve de admitir que «o caso Galileuy, que todos atribuem liberalmente a Idade Média,..pertenc bem” ao... Renascimento,.. pois: se»-passa” em 1633, Galileu, nascido. em, 1564, falecida..em:.1642;~era~contemporAnco._ de Descartes;.era mais. velho-do-que-ele-trintave-dois-an mas morreu apenas. dezassete-anos-antes-dele. O caso _Ga- lileu deu-se cem anos depois..do..nascimento..de__Mon=. tdigne. (1533), mais de.cem.anos.apé: a Reforma (1520), O MITO DA IDADB MEDIA 105. quase., duzentos-anos--depois~da-vinvengio...da., imprensa, finalmente,...mais..de--meio~século..depois do. Concilio de ‘Trento.-.(1547#1563);"que~-se~-pode,,.com..todg..o...direito, olhar como..g, corte entre a, Igreja., medieval,.e.a,Igreja dos. tempos-do* Renascimento. Acrescentemos,..de~resto,-que “0” caso Galileu~€ tipico da mentalidade. cenascentista,..se. nos colecarmos. do. ponto de vista.da. exegese’. No século XVII os comentadores tém tendéncia para se prenderem apenas ao sentido literal; um pouco como alguns _,exegetas, nos. nossos. dias... que. nfo” esto ‘atentos sett ao. sentido histérico-e resumem-a’ Escrituraa dados contingentes, sem admitir, como se fazia no tempo de Bernard de Clairvaux, que um mesmo. texto pode ter varias ordens de -significagao,- todas. igualmente impor- tantes~-patao erente.— O caso Galileu é um insulto tanto ao bom senso como ao espirito cientifico, Mas, demasiado facilmente também, fez-se dele um insulto & histéria nesse sentido em que nio se atribui A época em que ela se desenrolou efecti- vamente, isto é, 4 primeira metade do século XVIL Ora, €. uma_das-vantagens.da.histéria-o- poder opor-se pela. tihica.forga..das-datas. as. generalizacSes, &s teorias c as leis..As datas so algarismos, logo, essa espécie de linguagem que, na nossa época de confusio das linguas, continua acessivel a todos, aos seres mais simples como aos cérebros mais marcados pelas diversas espécies de deformagées ideoldgicas, politicas, filosdficas, ou até so- cioculturais. F, pois, com toda a seguranga que se pode 2 Nos tempos umedievais» os métodos de explicacéo dos tex- tos implicavam a possibilidade de comentar a Biblia de modo diferente do seu sentido literal, Conhece-se, em particular desde os trabalhos do P. Henri de Lubac (Exégése médiévale, Paris, Ed Aubier, 1959-1962, quatro volumes in-quarto) a leitura «segundo os quatro sentidos», que acostumava os espiritos a varias _ordens de comentétios & propésito.dum mesmo texto: sentido -histérico, mas também -BOFICO,, moral,.. ete. 106 REGINE PERNOUD dizer que a data da condenagio de Galileu é ela propria tao irrefutavel como a do primeiro passo na Lua, tao estavel como uma lei mateméatica, tao bem garantida como essas revolugdes planetarias descobertas precisamente por Galileu. O . proceso. de_Galileu6.-contemporneo, .notemo-lo de passagem, da grande. época. (seo podemosdizer!).dos processos..de -feitigaria. Sabe-se, ou, melhor, sabe-se..maly que, embora tenha havido sempre. feiticeiros,.e, feiticeiras, ¢ ainda. mais-histérias. de-feiticeitos.e. feiticeiras, os pri meitos_ processos.. mencionados “expressamente, nos textos 36..tiveram...lugar. no-séculow XIVy«na tegiao..de Tolosa; conhece-se depois, em_.1440,.0, célebre, de Gilles. de Rais” (acusado de magia, mais. do que de. feitigaria. propria- mente-dita): Na segunda metade do século XV esses pro- cessos efitram nos habitos, comegando por aquele que, em 1456, na regio lorena, iria fazer oito vitimas. O interesse pela _feiticariaccresce-sensivelmente no, século XVI, em que Braves personagens,..como~Jean-Bodin,.advogado e pro- curador .do..rei;-ou--Nicolas.Rémy,, juiz,e, procurador-geral da Lorena, escrevem, um, uma, Demoniomania e, 0 outro, uma Demoniolatria;.este junta, se 0 podemos dizer, a pra- tica & teoria, pois teria _enviado para a _fogueira, na, sua qualidade de juiz, uns trés mil feiticeiros ou feiticeiras, com efeito, com o século XVI —o século da razio — o mimeto de processos por feiticaria atinge proporcdes loucas..Quase que nao hi uma tegifio onde néo se pos- sam evocat processos célebres, quer se trate de Loudun, de Louviers, de Nancy, do caso de Méautis, na Nor- mandia, etc. * De testo, os mais célebres.casos..de.feitigaria .passam-se na propria Corte, a. de.Luis. X1V....Nenhuma.rcegiao.da Europa escapou, tanto. prorestantes-(a-Inglarerra,..onde..as~ ? Aconselhamos a consulta do resumo publicado na coleccéo «Que sais-je?», nas Presses Universitaires, Jean Palou, La Soree/le- rie, n.° 756, 5° ed., 1975, principalmente a p. 72. TTT a eeeeaaaieaaasaeliiclaall O MITO DA IDADE MEDIA 107 primeiras. execugGes. se..deram~no: seinado..de.. . século..XVI,..a..Alemanha,..e. até-a»Suécia.e.a- América.do Norte)como-catdlicas. A reacg’o nfo se esboca senao na primeira metade do século XVII, com as obras de alguns jesuitas, em particular o P.* Friedrich Spee, cuja obra Cautio criminalis, apazecida em 1633 (0 ano do processo de Galileu), nao deixou de influenciar os juizes da sua regido (Mayence ¢ Wurzbourg). O papa Urbano VII reco: mendaya, por sua.vez,.em 1637, prudencia ‘na perseguicao dé. fciticeiros“efeiticeitas; “Nao ~consegue..impedir que ainda_em.1718,-em-—Bordéus,-se-tealize.o Ultimo processo conhecido... por--feitigaria, que~terminou, como. Os. prece- dentes, na. fogueira...Eis.o que. devia fazer reflectir aqueles que. tém.tendéncia: para acrescentar. levianamente © adjec- tiyo..medieval--ao-termo obscurantismo. A esta expansio de superstigéo basta opor, com efeito, a mentalidade dos tempos feudais, tal como ela se exprime de Salisbury, bispo de Chartres no século XU, que’ dizia: «O melbor. remédio, contra essa doenga (tra- tarse..da.feiticaria..—..c..0..emprego.deste..termo.. por um. grande pensador aproxima-o, curiosamente dos. psiquiatras de.hoje) ¢ apoiar-se firmemente na fé, ndo ligar impor tancia..a~essas. -mentiras endo. prestar atengao também a_lamentaveis loucuras.» * O respeito das convicgGes religiosas faz parte hoje dos direitos da pessoa humana, pelo menos nos paises do Ocidente. Esté escrito nas diversas declaragées dos Di- reito do Homem. E, sem a menor diivida, um dos pontos em que © progresso sobre um passado relativamente re- cente é evidente; pensemos principalmente nas. persegui¢Ocs orden: por Luis “XIV contra os protestantes — ou, em sentido inverso, nas diversas formas de opressiio exer- cidas na Irlanda pelos colonos ingleses sobre. os irlandeses 108 i REGINE PERNOUD catélicos, ou até na-Inglaterra contra os ingleses catdlicos, submetidos a. diversas trogas: sabe-se, po: exemplo, que a”ehttada nas_universidades lhes foi proibida até. 185! Se nos recolocarmos na mentalidade dos tempos feudais, constatamos que a ligagio entre profano e sagrado é a tal ponto intima que os erzos doutrinais tomam uma extrema importancia até na vida quotidiana. Para dar um exemplo tantas vezes citado, o facto de os cdtaros negarem a vali- dade do juramento ofendia a propria esséncia da vida feudal, feita de contratos de homem para homem e assen- tando precisamente no valor do juramento. Daf a repro- vacio geral que provoca entio a heresia; ela rompe um acordo profundo ao qual adere o conjunto da sociedade, € essa ruptura parece duma extrema gravidade 4queles que sao testemunhas dela, Qualquer incidente de ordem espiritual parece, nesse contexto, mais grave do que um acidente fisico. : Uma anedota vivida é significativa desse ponto de vista. Joinville conta como, no momento em que o exér- cito do rei de Franca, de que ele faz parte, ¢ varrido pela epidemia nas margens do Nilo, ele proprio, atacado pela doenga, assiste um dia 4 missa na sua cama, sob a tenda. Ora, eis que o padre celebrante é de repente atingido também pelo flagelo; cambaleia, Joinville salta da cama e corre a ampar4-lo: «Acabe o seu sacramento», disse ele; depois, continua a sua narrativa: «E ele acabou de dizer a missa, e nunca mais a cantou.» Ora, para toda a gente, hoje, o gesto de Joinville pareceria pouco sen- sato: diantée dum padre atacado de doenga qualquer pessoa se apressaria a ir procurar um médico, mas a preocupago maior de Joinville ¢ do proprio padre, tanto quanto se pode deduzir da narrativa, foi que ele «acabe g sacra- mento». Ora;sob-mnuitos~aspectos,..a- Inquisigao™ foi~a~reacgao de defesa*duma’ sociedade* para-a-qual,-com~razao-ou-sem ela, a preservacao da fé parecia ‘tio importante-como=nos nossos dias a satide fisica. Sente-sevaqui*o"que:faz:a-dife- QO MITO DA IDADE MEDIA 109 renga. duma--época’ para a outra, isto é, as diferengas. de critérios,. de escala~de-valores. E em histéria é elementar comecar por. ter. isso.em. conta,..€ mesmo respeitd-lo, sem 9..que.0- historiador® se transforma em. jwiz. Jsto nfo impede que @ instituigéo da Inquisigao seja para nds o trago mais chocante em toda a histéria da Idade Média’. O seu estudo necessitaria duma biblioceca inteira. Essa biblioteca existe, alias, pois o assunto tem suscitado um grande nimero de obras, cujo conteide nao atingiu, no entanto, realmente o grande piiblico*. O termo inguisigdo significa inquérito; no século TL, Abélatd prodlama que a vida do investigador, do légico, passa-se emi inquisigao permanente e seu propésito nao ada que possa lembrar a heresia Ou evocar a fe- pressio. A palavra comega a tomar um sentido juridico quando, em 1184, o papa Lucio TI, em Verona, exorta os bispos a procurar activamente os heréticos para avaliar a progressio do mal nas suas dioceses. Mas isto é apenas uma recomendag’o precisa no tocamte ao exercicio dum direito que o bispo sempre teve, 0 de excomungar o he- rético; ou até «extermind-lo» (bani-lo, expulsa-lo an ex- tremis para fora das fronteiras); ¢ estes pululam entio, Ainda por cima, em certos manuais, passa-se rapidamente dos”Baptizados forcados, impostos por Carlos Magno quando da conquista de Saxe, 4 instituicio da Inquisicao. Que entre os dois se tenha passado meio milénio (quatrocentos € cinquenta anos, pelo menos), isso nao perturba de forma nenhuma os redacto- tes: como a Idade Média forma, definitivamente, a seus olhos, um bloco uniforme, 40 yéem razao para se incomodarem com 0%" 3 4 Aconselhamos a consulta, uma vez pot todas, dos trabalhos mais recences sobre uma questdo que eles tém grandemente reno- yado nestes tiltimos anos, nomeadamente os Cabiers de Fanjeaux, especialmente consagtados 20 estudo da histéria religiosa nas re- gides meridionais na Tdade Média, directamente extraida das fon- tes. Ver principalmente os n.°° 3, Cathures en Languedoc, 6, le Credo. la Morale et inquisition e 8, Les Mendiants en pays d’oc az XII sidcle (Tolosa, Ed. Privat, 1966-1975; encontrar-se-A af a bibliografia necessiria). 110 REGINE PERNOUD sobretudo no Sul da Franga e da Itélia, Os mais nume- rosos, sabe-se, sfo aqueles que se designam a si prdprios sob 0 nome de éatharoi, os puros; pode-se resumir a dou- trina catarista dizendo que ela assenta num dualismo absoluto: o universo material é obra dum deus mau, sd as almas foram criadas por um deus bom; donde resulea que tudo o que tende a procriagio é condenavel, em especial o casamento; os mais puros adeptos da doutrina véem no suicidio a perfeicio suprema”. Na realidade, como todas as seitas —e as da nossa época permitem compreender o fendmeno—, esta diversifica-se muito ra- pidamente. Tal como se espalhou na Lombardia e nas regides provencais € occianas, o catarismo é uma religiao de dois niveis; ha os perfeitos, que observam a doutrina _ em todo o seu rigor: continéncia absoluta, interdigio de fazer a guerra e prestar juramento, abstinéncia severa; enguanto os outros, os simples crentes, se conduzem mais ou menos Aa sua vontade; sendo condicio para a sua salvacio a absolvicio, o consolamenium, que eles deviam receber dum petfeito antes da sua morte. Por muito estranho que parega, 6 o conde de Tolosa, Raymond V, quem, em prtimciro lugar, pensa combater militarmente os hetéticos que pululam so seu dominio. Numa carta ao abade de Citeaux, faz a mais negra des- fo da extensio da heresia: «O flagelo piitrido da heresia espalhou-se a tal ponto que a maior parte daqueles que 4 aprovam julgam prestar com isso uma homenagem a Deus... aqueles mesmos que se dedicaram ao sacerdécio esto corrompidos pela peste da heresia, e os lugares sagrados e desde sempre veneraveis das igrejas ficam * Se a maior parte dos escritos doutrinais dos cétaros foram destruidos pelos tribunais da Inquisicao no século XIE, o mais importante de .entre aqueles: que subsistitam é um tratado de polémica atribuido a um cdtaro contra outros cdtaros, Trata-se do Liber de duobus principiis, por um discipulo do cataro Jean de Lugio, dissidente da seita de Desenzano, na Italia, que teve ums grande importancia no século XHIZ, O MITO DA IDADE MEDIA 1 abandonados; caem em. ruinas;. nega-se 0. baptismo,..abo- mina-se a Eucaristia, despreza-se a. peniténcia, rejeita-se a criacéo do homem e a ressurrei¢éo da carne e anulam-se todos os sacramentos da Igreja. Por muito penoso que seja dizé-lo, vai-se até ao ponto de introduzir dois principios.» De facto, como todas as heresias, a dos cdtaros nega a En- carnagio, mas leva esta negacao até ag ponto de professar o horror da Cruz. Ora, quando a Raymond V de Tolosa sucede Ray- mond VI, seu filho, este considera os heréticos de modo muito diferente do pai; numerosos sio mesmo aqueles que dentre os seus stibditos o acusam de os favorecer. Quando, em 1208, o papa lhe envia um legado, Pierre Castelnau, ele manda-o embora, com ameacas que éhcon- tram eco, porque o legado € assassinado dois dias mais tarde, & ent#o que o papa Inocéncio III vai pregar a cru- zada exortando os barées de Franca e doutros paises a pegar em armas contra o conde de Tolosa e os outros heréticos do Midi. A luta estava declarada, mas, contrariamente ap que se tem tantas vezes dito e escrito, até essa data, quer eles sejam perfeitos ou simples crentes, os heréticos nao vive de forma alguma na clandestinidade, B em pleno dia que circulam, que’ pregam, que se multiplicam coloquios ¢ en- contros com aqueles que tentam reconduzi-los 4 ortodoxia, em especial com esses irm&os mendicantes que Domingos de Gusmao chama & pregacio da sé doutrina e 4 pratica duma_ pobreza integral e que se tornario em 1215 em irm&os pregadores. As reunides em que ele exorta os heréticos, as discusses piblicas, como as que se reali- zaram em Fanjeaux —em pleno coracio do Midi albi- gense— ¢ que ficaram célebres, atestam que, apesar dos inquéritos -episcopais~ que tinham sido ordenados aqui e além, os heréticos no experimentavam a minima neces- sidade de se esconderem, ¢ sobretudo nessas regides occi- tanas onde eles desfrutavam duma proteccéo eficaz da parte dos senhores meridionais. Tudo muda, bem enten- dabble al Ud alah uci lic al 112 R&GINE PERNOUD — dido, quando se decide a guerra; a mudanga sera mais sensivel ainda quando for instaurada, uns vinte anos mais tarde, em 1231, a Inquisigaéo pontifical. £ ao papa Gregério IX que cabe a sua iniciativa, nao a Sio Domingos como absurdamente se pretendeu’, este Gltimo ja morrera hi dez anos quando Gregério IX prevé a institui¢ao dum tribunal eclesidstico destinado especial: mente 4 detengao ¢ julgamento. dos heréticos. ‘A: assimilagio dos Dominicanos 4 Inquisi¢gio resulta do facto de Gregério IX confiar aos irmaos pregadores, muito populares, o cargo da Inquisigg0, quando a institui, em 1231; mas a partir de 1233 associa-lhes a principal das outras ordens mendicantes, a dos irm&os menores. Os Franciscans exerceriio as fungSes inquisitoriais, sobre tudo, na Itdlia, alguns também em Franca, como Etienne de Saint-Thibéry, que foi massacrado em 1242 em Avig- nomnet, ao mesmo tempo que o seu.companheiro o domi- nicano Guillaume Arnaud, Apesar do que se acredita geralmente, os meridionais n&o serio os Uinicos a ser esmagados sob 0 peso da Inqui- sigo fio século XII. De facto, os actos mais dramaticos, os que fizeram mais vitimas, passaram-se na Borgon! ¢ na Champagne, assim como no Norte da Franga, subme- tido A actividade temivel do demasiado famoso.. Robert, le Bougre, Tratava-se dum antigo herético convertido, dato seu sobrenome’ (0 seu verdadeiro nome era Robert, * Precisemos que So Domingos deixara o Midi occiano desde 1216, para nao mais se ocupar senéo duma ordem religiosa cujo sucesso ultrapassava todas as esperangas do seu fundador ¢ que ia conhecer uma espantosa expansio; a partir de 1249, alguns irmaos pregadores (devia-se chamar-lhes dominicanos, do nome do seu fundador) evangelizavam na Finlandia, T Bougre ¢ uma deformacio de Bulgaro; ¢ possivel, ainda que nfo esteja absolutamente provado, que 0 catarismo tenha nas. cido das seitas bogomilas das. regides bitlgaras, onde se teriam propagado as doutrinas maniqueistas, isto é,. dualistas (um_ dei mau na origem da criacao. visivel, oposto a0 deus bom. criado! dos espiritos). O MITO DA IDADE MEDIA 113 le Petit). Ingressando_ nos .irmos. pregadores depois da sua conversao, ¢ promovido. ao. cargo. de inquisidor.em 1233 e imediatamente, em. Charité-sur-Loire, ordena. exe- cugdes que levantam protestos de varios arcebispos, ¢ m0 dos menos_ importantes, .pois- encre eles se. encontravam os de. Reims, de.Sens .¢ de Bruges. O. papa suspende-o dos seus poderes em 1234, mas restitui-lhos~ no» ano seguinte. Retoma imediatamente a sua terrivel tarefa, avaliando-se..em. cinquenta. os. heréticos que ele manda queimar numa louca digresséio a Chilons-sur-Marne, Cam- brai,.Péronne, Douai, Lille. Depois, em 1239, foi. em Mont-Aimé (na Champagne), onde a atetradora fogueira vem acrescentar, segundo uma testemunha ocular, Aubri de Trois-Fontaines, cento e oitenta ¢ trés vitimes, depois duma razia gigantesca operada quando das feiras de Provins'. Robert, le Bougre, foi depois, certamente a pat- tir de 1241, demitido das suas fungdes. E possivel que ele proprio se condenasse a prisio perpétua, mas isso nao estd exactamente estabelecido. A Inquisigio exerceu sevicias igualmente no Midi: © por vezes de maneira enérgica, como em Carcassonne, onde, entre 1237 € 1244, o inquisidor Ferrier adquiriv © sobrenome de «Mattelo dos Heréticos». Guillaume de Puylaurens, cujas indicagSes sdo geralmente exactas, fala de duzentos heréticos que teriam_ sido queimados em Montségur em 1244, depois de o castelo em que Ss tinham refugiado os assassinos dos inquisidozes de Avi- gnonnet. set obrigado-a..capitular; muitas incertezas rei- nam, de-facto, sobre esta «fogueira de Montségur, que suscitou- no nosso. tempo. uma vasta literatura, de que nao subsiste grande coisa de valido. para a histOria, prin- * Qs cdtaros, com efeito, recrutavam sobretudo os seus adep- tos entre os comerciantes. Acusavam-nos, nao sem razio, parece, de praticarem a usura, isto é, 0 emprestar com interesses (o nome de lomberds, que se lhes dava, designava também os usutarios, isto é, os banqueiros). §-125—8 ill i L 4 it REGINE PERNOU. cipalmente depois dos trabalhos de Yves Dossat® contrapartida, conhece-se bem a fogueita de Berlaig junto de Agen, onde, pouco tempo antes da sua mort em 1249, 9 conde de Tolosa, Raymond VII, mand queimar aproximadamente oitenta heréticos, : 1 Inticil sobrecarregar aqui os exageros a propésito Inquisicao nas obras de escritores imaginativos, mas pou respeitadores das fontes documentais. Os castigos gel mente aplicados sio emparedamento, isto ¢, a prisio (dis tingue-se a «parede estreita», que é a prisio propriamente dita, © a «parede largay, que é a residéncia vigiada), ou, mais frequentemente ainda, a condenacéo a peregrinac® | ou a0 transporte duma cruz de tecido cosida sobre o fato Onde os registos subsistiram, como em Tolosa em 1245 1246, constata-se que os inquisidores” pronunciam uma condenacao a prisio, em média, num caso em nove, & pena do fogo, Aum caso em quinze; os outros acusados eram ou libertos ou condenados a penas ligeiras, De resto, nio é aqui que esta a questo, A reprovagio: que se aponta contra a Inquisigo desde o século XVUL constitui um desses progressos que o historiador nao pode deixar de sublinhar, pois se levanta contra o prépria principio de julgamentos feitos em nome da lei; esta aparece-nos na sua prépria esséncia, como devendo s+ Capar a qualquer pressio, a qualquer coaccio de ordem exterior e juridica. De facto, para o crente —e a imensa maioria é crente na Idade Média—, a Igreja esta perfeitamente no seu direito exercendo um poder de jurisdiggo: na sua qua- lidade de guardia da £6, esse direito foi-lhe sempre reco: ahecido por aqueles que, pelo seu baptismo, pertencem 4 Igreja. Dai, por exemplo, a aceitagao de sangGes, tais come a excomunhao ou o interdito, Excomungar q pér * Ver nos Cabiers de Fanjeaux, j& ci , ja citados, i 6; le Morale ot Vinguisition, especialmente pp. 361-378. +o Ibid., pp. 370 e segs. 0 MITO DA IDADE MEDIA 115 fora da comunh’o dos figis aquele que nao se conforma com as regras instituidas pela Igreja no seu papel de sociedade; @ uma «colocagio fora de jogo», como s¢ pratica em toda a parte em relaco aquele que faz bacota, que trai, que nao aceita os regulamentos duma vociedade, dum clube, dum partido, duma associagao qualquer, A qual, por outro lado, ele pretende pertencer. Na mesma linha das sancGes eclesidsticas, o interdito atingia com uma espécie de excomunhio geral todo um territério, toda uma-cidade, para obrigar a obediéncia aquele que era o responsdvel por ela: senhor, rei, ou mesmo abade, etc. Esta espécie de exilio da sociedade dos fiis era 0 meio mais eficaz de obter a correccio do culpado, porque o interdito trazia consigo a suspensao de todas as cerimédnias religiosas; os sinos deixavam de repicar, os offcios (casamentos, enterros...) j4 nfo eram celebrados, 0 que tornava a vida literalmente intolerdvel as populacées. Todavia, a guerra contra os heréticos meridionais ¢ a instituicig.da Inquisigéo sao a ultima palavra destas sangdes_eclesidsticas, no que elas implicam de recurso a forga, ao poder temporal, ao «braco secular», Era um facto desabitual na Igreja, uma tendéncia nova que os canonistas dos séculos XIV e XV se esforgario por jus- tificar e legalizar, e que terd desenvolvimentos graves no século KVI. Os papas a quem se devem estas duas me- didas sio daqueles que nos manuais de histéria se con- sidera como os «grandes papas da Idade Média»: Inocén- cio Il e Gregdrio IX. Um e outro, —e isto ¢ importante notar — sao fervorosos adeptos. do direito romano. Sabe-se como o renascimento do direito romano € o seu estudo, principalmente na Universidade de Bolonha, véo a pouco e pouco penetrar o direito da Igreja — nao tao comple- tamente como penetraréo na sociedade civil depois, no século XVII ou mais tarde, mas, no entanto, de maneira profunda; sob esta influéncia, os adecretistas», aqueles que se ocupam do direito canénico, encaminham-se pata 116 REGINE PERNOUD um pensamento. autoritario, para o exercicio duma sobe rania..centealizada ™. piritual. Por outras palavras, optaram pela facilidade; e nunca talvez ao longo da histéria a solucao facil revelou como a melhor para aquilo que ela nfo» é: na uma solugio, mas a porta aberta a novos-e~temiveis..pro- blemas. a __Certamente que eles no podiam calcular as conse: quéncias das suas decisGes, ditadas pela impaciéncia, por uma busca de eficdcia imediata — perfeitamente contra ao espirito do Evangelho—, mas também, «mais. subti mente, por essa tendéncia para o autoritarismo que de senvolve inevicavelmente a pritica do direito romano. Se um e outro, alias, sio fortes personalidades, a since tidade do seu zelo religioso nao é menos indubitavel: a mais premente necessidade dela, 0 zelo auténtico de Domingos de Gusmiio e de Francisco de Assis; quanto a Gregério TX, nao seria exagerado ver nele um vere dadeiro campefo da liberdade de espirito: o ano de 1231 que € aquele em que ele institui a Inquisigao, é tambéntt o da. bula Parens scientiarum, pela qual ele~confirma. e formula os. privilégios da Universidade de Paris e as segura a sua independéncia. face ao rei, e também aos bispos ou aos seus.chanceleres;..em. conclusio, ele defint “ u frei i O direito romano, tal como era constituido, principalmente 4 império do Oriente, com todo o prestigio que a personalidade le Justiniano Ihe conferira, emanava duma autoridade tinica € eeu ae como consequéncia, os costumes € os es: titos no exercicio duma semelhante autoridade, iti. , tanto ni o tual como no temporal. ‘a 0 MITO DA IDADE MEDIA 117 © reconhece a liberdade da busca’ filosdfica cientifica... Ele pée-também- um “termo’ a dois anos de perturbagdes e de greves. que .tinham oposto..os professores e estu- dantes parisienses a. rainha Branca.de. Castela.¢. a.seu jovem filho Luis IX, obrigando-9s, sem. contemporizagao, 4 sestabelecerem integralmente os. privilégios que sub- trafam: os-universitarios & propria justiga do rei. Ver-se-A aqui um exemplo patente das ambiguidades da historia, onde, contrariamente 4 imagem que tantas vezes dela apresentam, é bem dificil distinguir os «bons» dos «maus». A instituigaéo da propria Inquisicgéo nfo deixava de apresentar um lado _positivo .no..concreto da vida. Ela substitula o. processo..de..investigagao pelo de acusacao. Mas, sobretudo num tempo ¢m que 0 popular no esta disposto a divertir-se com 0 herético, ela intraduz uma justiga regular: Porque dantes reinava, em muitos casos, umajusti¢a laica Ou mesmo um arrebatamento’ popular que infligia ads heréticos as piores penas. Para nos con- vencermos disso. basta recordarmos que o rei Roberto, © Piedoso, tinha, em 1022, mandado queimar em Orledes catorze heréticos, cleros e laicos. Por outro lado, em muitas circunstancias, os bispos tinham tido de intervir para subtrair As violéncias da multidao aqueles que ela considerava como heréticos, Pierre Abélard teve a propria experiéncia disso, em Soissons, em 1121, quando foi aco- Ihido & pedrada por uma multidio indignada, Alguns anos antes, alguns heréticos que 0 préprio bispo da cidade de Sissons condenara-a prisio eram arrancados dai ¢ le- vados 4 fogueira por amotinados que censuravam a0 bispo a suaefraqueza sacerdotal», Por diversas vezes tinham sido cometidos actos de violéncia, sabendo-se como, no tempo do préprio Filipe Augusto, oito citaros sao quei- mados em Troyes no ano de 1200, enquanto um pouco mais tarde, em 1209, 0 rei inflige o mesmo suplicio e alguns discipulos de Amaury de Béne. No Midi, em Saint-Gilles-du-Gard, 0 herético Pierre de Bruys, que quei- » 118 ye REGINE PERNOUD mara publicamente um crucifixo, sofreu o mesmo suplicio, que Ihe é infligido por uma multiddo furiosa, Era talvez inevitavel que um dia ou outro fossem institufdos tribunais regulares, mas esses tribunais foram. marcados por uma dureza particular, devido ao renasc mento do direito romano: as constituigdes de Justiniano” ordenavyam, com efeito, a condenagao do herético 4 morte. E é para as fazer reviver que Frederico I, tornado impe- rador da Alemanha, promulga, em 1224, novas insti- tuigdes imperiais, que, pela primeira vez, estipulam ex- pressamente a pena do fogo contra o herético resistente. Vé-se assim que a Inquisicio, naquilo que ela tem de mais odioso, é o fruto das disposigdes tomadas, no seu advento, por um imperador no qual se tém deleitado em reconhecer 0 protétipo do «monarca esclarecidon, alias” ele prdprio céptico e em breve excomungado. Resta que, ao adoptar o castigo do fogo, ao instituir como processo legal o recurso 20 «brago secular» para o relapso”, o papa acentuava ainda o efeito da legislacio imperial e recoahecia oficialmente os direitos do poder temporal na perseguigio da heresia. Sempre sob a.in-. fluéncia da legislagao imperial, a tortura ia ser autorizada oficialmente — quando houvesse fundamento de provas — nos meados do. século-xIm. ~~ ~ “ Ora, todo este aparelho de legislagdo contra a heresia nao iria tardar a ser virado pelo prdéprio poder temporal contra o poder espiritual do papa. No tempo de Filipe, o Belo, as acusagGes contra Bonifacio VII, contra Bernar Saisset, contra os Templarios, contra Guichard de Troyes, apoiam-se nesse poder reconhecido ao rei de perseguir o herético. Mais do que nunca, a confusdo entre espiritual e temporal entra em beneficio deste wltimo. Nao temos = © relapso é 0 herético reincidente, aquele que, tendo abjurado uma primeira vez, torna a cait no seu erro; apenas este relapso pode ser remetido ao «braco seculars — expressao pudica para significar que se encarrega a autoridade temporal de o con- duzir a fogueira, OQ MITO DA IDADE MEDIA 119 aqui mais do que lembrar as tiltimas consequéncias disso: a Inquisigéo do século XVI, a partir da intelramente nas miaos dos reise imperadores, iria fazer um numero de vitimas sem comparacio com as do século XII. Em Es- panha ir-se-4 ao ponto de se servir da Inquisigao contra os Judeus, ou os Mouros, 0 que voltava_ a desvia-la completamente. do.seu objectivo. Com efeito, ela era, se o podemos dizer, para uso interno: destinada a detectar os heréticos, isto é aqueles que, pertencendo a Igreja, se viravam contra ela. E assim_que..no. século” XIE, Fer- nando Il,.rei-de-Espanha (primo de Sao Luis, sera, como ele, canonizado), recusara a Inquisigio: nao unha heréticos no. seuteino~e-ele~préprio- se proclamava. «rei das tés religides» (crista, judaica_¢ mucgulmana).— 0 que implica um étado_de.espirito. muito diferente do da época de Carlos V_e.de. Filipe II! Do mesmo modo, quando se fala de confuséo entre espiritual e temporal, € preciso entender-se quanto a datas e épocas. Quando, no século XUI, se dé um «beneficio» 9 rendimento duma terra— a um cura ou a um pre- lado qualquer, trata-se de assegurar a sua vida material, pois a terra é entéo a tnica fonte de riqueza. 0 dominio pontifical, esse mesmo, nao tem outro objectivo senao fazer viver 0 bispo de Roma e os seus conselheiros, os cardeais que o rodeiam. Ao longo do século XII, sob a influéncia do direito romano e em grande parte por ocasiao dos conflitos com o imperadot, o pontifice torna-se um chefe de Estado; esta evolugio confirma-se, em todo 9 caso, senao nos factos, pelo menos nas intengdes, quando Bonifacio VILE acrescenta uma terceira coroa 4 sua tiara: a que simboliza precisamente o seu poder temporal (sa- be-se que a tiara pontifical nig aparece senio no decurso do século XIII, ela ostenta uma, depois, duas coroas, que, como as duas chaves, significam o duplo poder de ordem c de jurisdicio que ¢ 0 de todos os bispos).. Para a época precedente (sete séculos e meio sobre os dex séculos da Idade Média!), aqueles que imaginam 120 RERGINE PERNOUD uma Igreja monolftica dispondo dum poder absoluto pessoa do papa sao radicalmente contraditados pelos factos. recordemos que, nos séculos XII e XII (durante duzentos anos, entio), os papas tiveram de xesidit cento e vinte e dois anos fora de Roma, vivendo a situagio dos pros: ctitos ¢ dos exilados, expulsos pelas cabalas e revoltas que alimentam continuamente a histéria de Roma, 4 Nunca, na realidade, o cardcter do poder inerente a0 papado na época feudal foi melhor expresso do que quando, no Concilio de Clermont, Urbang II decide que” se chame a primeira cruzada”, em 1095: 0 papa, que acaba entio de exortar os cristéos a reconquistar os lu- | gares sagrados invadidos pelos Turcos, ¢ um vagabundo, expulso de Roma; quando abre o concilio, comega por excomungar o rei de Franga, no reino do qual ele se encontra, com desprezo das mais clementares precaucOes diplomaticas; impotente no seu prdprio territério, nao — deixa por isso de desencadear um movimento que ira | permitir & cristandade recuperar o que ela considera como 0 seu feudo e o seu proprio lugar de peregrinacao. Absolutamente diferentes eram as. preocupagdes dum Bonifacio VIII, imbuido de poder de autoridade. tal como” Filipe, o Belo, mas que adopta. uma atitude. de ~chefe — de_ Estado. Comega entio a verdadeira. confusio entre poder espiritual ¢ poder temporal. Os papas, que haviam — podido, gragas.4. reforma. gregoriana, libertar-se da viol féncia do imperador, vio cair sob o poder do rei de — Franga; “isto durante, aproximadamente, um século. Nao se libertario dela senZo ao prego dum. cisma, que “vai pesar sobre a Igreja durante perto de meio século; a con: fusio entre os poderes sera consumada com a Concordata de Bolonha (1516), que, em Franga, entregar4 as nomea- Ses de abades e bispos nas mos do rei, do poder tem: a i Recordemos que a palavra «cruzaday ¢ moderna ¢ nunca foi pronunciada na época; dizia-se: peregrinacdo, passagem, via- gem ou expedicao além-mar. i ih © MITO DA IDADE MEDIA 121 poral, -Mede-se mal hoje ainda o peso desses quatro séculos de Igreja-funcionaria, porque os efeitos da Con- cordata de 1516 se prolongarao em Franga até a lei da Separagio de-1904:-quatrocentos, anos de Igreja do Estado, durante os quais todos os bispos, todos os abades de mosteiros, foram nomeados pelo rei, depois pelos chefes de Estado, mesmo que eles fossem, como Jules Ferry, anticlericais convictos. F quase s6 no fim do século XX que a mentalidade geral (a dos descrentes, como a dos crentes) se encontra, de facto, desligada de habitos de espirito modelados pela Igreja. do” Estado — uma Igreja_ centralizada, autoritaria, de estrututas garantidas pelo poder temporal, o do Estado, seja qual for a sua forma. O resultado foi, no século XVH, a soberba fachada da religido, com os seus sermoes, que, num cendrio de grande dpera, Jembravam a Corte € oS grandes do pulpito a pregar, n docilidade facilmente garan- tida dos prelados correspondia a libertinagem conhecida de muitos deles, fossem cles atcebispos, como o de Reims, Maurice le Tallier, irm&o de Louvois, que passeavam em grandes catruagens as suas amantes, uma das quais era sua propria sobrinha, ete; €, por outro Jado, face a este esplendor —9. dos edificios € das estruturas hierarqui- cas —, agravava-se desapego 4 vida contemplativa, ates- tado pela ruina espiritual das abadias (havia cinco mon- ges em Cluny quando deflagrou a revolucao) ”. Imdeil insistir nisto: os inconvenientes profundos, inse- pardveis, da Igreja de Estado manifestaram-se até tempos muito préximos.do nosso em certos paises™, Na histéria ™ Muito caracteristica é a historia da Ordem de Grandmont, fundada em Limousin no século XIl, e que tinha com portado, em Franca, 160 casas; nao contava mais de nove religiosos quando foi suprimida, em 1780. Ver o estudo que lhe consagrou André Lanthonie, Histoire de l'abbaye de Grandmont en Limousin, Saint- Yrieux-la-Perche, Imp. Fabrégue, 1976. i 48 Além disso, ¢ em toda a parte que. as Igrejas caem sob a dependéncia do poder temporal, tanto nos paises protestantes, 122 REGINE PERNOUD da Igreja da Franga era precisa nada menos do que a santidade ascética de reformas como as de Carmel ou de Trappa, pata que a Igreja continuasse a viver sob aparén- cias magnificas e irrisérias, Ao assinar a Concordata, o papa (Leag X, um Médicis, o mesmo que responde aos protestantes de Lutero com a excomunhdo) reservara-se, € vetdade, um direito de veto nas nomeagées eclesidsticas: ele nunca o exerceu. Henrique IV péde nomear bispo uma crianga de seis meses eo mesmo Maurice Le Tellier, ja nomeado, sera abade de Lagny com a idade de nove anos. A Assim, 9 que, durante todo o passado medieval —A excep- ¢40 do entreacto carolfngio—, tinha constituido abuso, injustiga, excepgio, designadamente a nomeacéo de bispos ou abades pelo favor do poder senhorial ou real, torna-se no comego do século XVI 0 direito. E curioso constatar que estes factos, embora tao evi- dentes, tao faceis de detectar na histéria do Ocidente, sao muito geralmente ignorados, desconhecidos, passados em siléncio ou inexactamente apreciados, siléncio ou inexac- tamente apreciados, especialmente. pelo clero ¢ pela im-— prensa catdlica. Para voltarmos & Inquisicfo™, a sua criacgio contri- buiu, aos olhos do historiador, para fazer evoluir a Igreja, ia, a Dinamarca, a Inglaterra, a Alemanha, e até a Suica, como nos paises catélicos, que concluem, a exemplo da Franca, concordatas que atribuem aos principes ou imperadores o poder de nomeacio dos dignitarios, & entdo que se pode falar de confusio entre espiritual e temporal, confusao que se taduz por uma completa dependéncia das estruturas da Igreja, a partir dai confundidas com as do Estado. * Para o crente, sera mais tranquilizador constatar que ne nhum dos «grandes papas» — Inocéncio Il] e Gregorio IX — foi canonizado pela Igreja; pelo contrario, esta canonizou Lufs IX; ele nasceu, recordemo-lo, cinco anos depois do desencadear da guerra albigense e tinha quinze anos quando esta termina, com o tratado de paz de 1229, tinha dezassete anos no momento em que a [nquisicio (que ele secundard nos seus dominios) foi criada; a Igteja canonizou também seu primo Fernando II], que, quanto a si, recusou a Inquisicio em Espanha. O MITO DA IDADE MEDIA 123 e em geral o Ocidente, até essa forma fanatica que a expiessao religiosa tomar..no século- XVI, -precisamente no tempo das guerras religiosas. O rosto da Igreja, torna-se entao efectivamente monolitico, estatal, ligado a toda uma burocracia e a uma mentalidade puramente ocidentais. Tendo deixado de conhecer as perpétuas reformas que constituiram a sua vida até entao, ela viu, contra si, ope- rar-se a Reforma. Com efeito, para nos compenetrarmnos disso, basta comparar essa rigidez aos esforgos feitos no século XI para conhecer € compreender as correntes nao cristis as quais se fazia frente; basta evocar um Pedro, o Veneravel, abade de Cluny, que manda, a partir de 1941, traduzir 0 Talmude e 0 Cordo (sabet-se-A que mais tarde foi obrigagéo para todos os pregadores de cruzadas terem lido o Corio?), para apreciar a diferenga entre a evange- lizagdo do século XVIL € dos seguintes e aquela em que sé censurou, mao sem razdo, o seu caractet estreitamente / cocidentaly, A Igreja dos séculos Ve. Vi tinha sabido qresistit aos barbaros»; ela espalhara, efectivamente, a instrugio entre esses «barbaros» como entre os herdeiros da cultura antiga—enquanto, quando evangelizar na América do Sul, negligenciaré completamente essa ins- trugio, que teria assegutado nesse pais a sua propria substituicao, Por toda a parte em que a evangelizacao se manifestar na época cldssica, quer, alias, ela seja protes- tante ou catélica, ela permanecera feudal no Ocidente *. £ impressionante pensar que no fim do século X10, havia na China uma cristandade préspera que reunta seis bispos em volta do arcebispo de Pequim. A sujeicio do papado pelo poder temporal, as desordens que semelhante situa- 0 arrasta inevitavelmente, mesmo que nao fosse senio favorecendo o apetite de riquezas e honras, conduziram, * Fra, de resto, dificil conciliar as preocupagoes de evangeli- zacéo com as diversas formas de opressio em vigor: a esctavatura nas Antilhas,-os genocidios na América do Norte, ou na Aus- tralia. Ce eMail All aii 124 REGINE PERNOUD ~ no século XIV, a um desinteresse quase completo dessa Igreja do Extremo Oriente, cuja existéncia nio voltara senio varios séculos mais tarde. Estes so alguns factos que conviria conservar presentes no espirito quando se pronunciam (¢ Deus sabe se se pronunciam) juizos sobre — © que € conveniente chamar «a Igreja da Idade Médiay. Observar-me-Zo que é apenas um uso entre muitos outros, este index acusador que se levanta tantas vezes € tio facilmente & nossa época para denunciar o mal, o escindalo, a corrupgie, o desvio, etc. (corajosamente, porque a dentincia, bem entendido, ¢, invariavelmente, um acto de coragem). E notavel que o mal se site sempre em frente daquele que aponta o index, esse que personi-~ fica o bem, infalivelmente. f de perguntar se as doutrinas maniqueistas que suscitaram a Inquisigfo —e influen- ciaram, alids, um tanto os prdprios inquisidores!— nao — impregnaram em profundidade a mentalidade até ao nosso” tempo. a Haveria, evidentemente, muitas outras coisas a dizer a este propésito. Penso naquela jovem amiga, cheia de atdor militante C.F.D.T., que me explicava com muita convicco que a Igreja de hoje tina finalmente compre- endido que servit o préximo era servir a Deus, e que esta descoberta espantosa na histéria do cristianismg ia modi- ficar completamente a vivéncia relacional da base, ou. mesmo © conjunto do comportamento sociocultural em — meio cristio. Perguntei-lhe como podia um espfrito simples — como o meu compreender as razGes. que tinham levado os” cristios da Idade Média a chamar «Palacio de Deus» ou Casa de Deus», nfo as igrejas, mas aos sitios onde se aco~ lhiam e tratavam gratuitamente os pobres, os doentes, miserdveis, e se isso nao teria qualquer relagdo com o que ela chamava a vida relacional. A sua resposta excedia, pro- vavelmente, as capacidades dum espirito simples, porque eu ja no me lembro absolutamente nada dela. Podia ter: -lhe lembrado também como os estatutos das ordens hos. O MITO DA IDADE MEDIA 125 pitalares prescteviam receber 0 doente, fosse quem fosse e viesse donde viesse, «como o senhor da casa». Ou ainda evocar esse direito de asilo, que seria inutil fazer reviver, em larga escala,. numa.época em que renasce 0 espirito de*vinganga, publica e privada. Mas nao tenho a certeza se a minha jovem. militante me* teria escutado até ao fim e, alias, eu. sentia-me vagamente inquieta, perguntando a mim prépria que juizo faria ela sobre a maneira como Joinville compreendia a vivéncia relacional, * Em 1970 uma emissio de televisio fora dedicada a Cruz Vermelha Internacional e as suas comissdes de inqué- Titg nos campos de internamento. O seu representante era interrogado por diversos interlocutores, entre os quals uma jornalista que the fez a pergunta: «Nao se pode obrigar os paises a aceitarem a comissiio de inquérito da Cruz Vermelha?» E, como o representante dessa instituicag fizesse notar que as comissées de inquérito nao dispunham de nenhum meio para que as suas observagées fossem registadas, observadas ou sancionadas, e que, por outro lado, essas comissées nfo dispunham dum direito de visita formal- mente admitido e reconhecido por todos, a mesma jorna- lista continuou: «Nao se podem ento exilar das naces civilizadas aquelas que recusam as vossas comissées de inquérito?» ae ‘Ao escutar este didlogo, com -referéncia 4 histéria, podia dizer-se que, na sua indignacio, certamente com- preensivel, esta jornalista acabava de inventar sucessiva- mente a Inquisi¢ao, a excomunhio € 0 interdito — apenas com a diferenca de ela os aplicar a um dominio onde o acordo se faz unanimemente, o da proteccio dos prisionei- tos ¢ 0 dos internados politicos. (a ii I ages lei aaa lil de opiniao do dominio religioso para o dominio politico? este recrudescimento, que invade todos os pafses, da seve- tidade para com o delito de opiniao politica. Todos os exclusivos, todos os castigos, todas as hecatombes, pare- os desvios ou ertos quanto & linha politica adoptada pelos poderes em exercicio. E, na maior parte dos casos, nfo basta banir aquele que sucumbe A heresia politica, im- mentos interminaveis, que destroem no homem a capaci- dade de resisténcia interior. em vidas humanas — pior ainda do que a das duas «grandes guerras»... — com que se tém saldado as revo- lugGes e€ a punicao dos delitos de opiniZo no nosso século XX, pode-se perguntar se nesse dominio do delito de opiniao a nogdo de progressa nao se encontra atrai- goada. Para 0 historiador do ano 3000, onde estar o fana- século XMI ou no século XX? 126 REGINH PERNOUD Mas nem é preciso ir buscar comparagGes deste géne- ro. Que época pode, melhor do que a nossa, compreender a Inquisigéo medieval, desde que transportemos o delito E mesmo muito surpreendente para o historiador constatar cem, no nosso tempo, justificiveis para punir ou prevenir porta convencer, daf as lavagens ao cérebro e os interna- Quando se pensa no pavoroso balanco, na perda louca q tismo? Ou a exploragio do homem pelo homem? No © Wy Hl i vil HISTORIA, IDEIAS E FANTASIA Um jovem, do género excitado, se bem que simpético, apresentara-se um dia no meu gabinete nos Arquivos Nacionais, para submeter & minha opinido- (ainda pet- gunto a mim prépria porqué!) uma memdédria que fizera sobre os famosissimos cataros. Percorridas algumas pagi- nas, fui levada a perguatarlhe a sua formacio como his- toriador; verificava-se, com efeito, que ele consultara muito pouco as fontes auténticas. Isso provocara um sobressalto indignado: «Vocé compreende, eu, quando faco histéria, nfo € para saber se um facto € exacto ou nfio; o que eu 14 procuro é o que pode promover as mi- nhas ideias.» A resposta impunha-se: «Entio, caro senhor, porque faz histéria? Vire-se para a politica, para o romance, para © cinema ou pata 0 jornalismo! A historia nfo tem interesse sendo quando é a procura da verdade; desde que seja outta coisa, deixa de se chamar historia.» Ele partira decepcionado e, parece, extremamente irritado. Pelo menos naquilo que lhe dizia respeito, ele tinha reacgdes sinceras. O que nao é muito comum. A Idade Média fornece, a todos aqueles pata quem a historia é apenas um pretexto, um terreno de cleicao: um perioda que o grande ptiblico ignora, com alguns nomes que sobressaem, Carlos Magno, Joana d’Arc, a Inquisigao, -os catatos, a Chanson de Roland, os trovoadores, os Tem- 128 REGINE PERNOUD pldrios, Abelardo, 0 Graal, feudal que rima com brutal € 0s servos ocupados a fazer calar as ras. Tal ¢,.mais-ou menos, a bagagem fornecida pelos manuais do 2.° ano ou os do ensino elementar. Se se desejar reforgd-lo, acrescen- te-se-lhe o segredo dos Templarios e 0 tesouro dos cata- | ros € o tesouro dos Templérios. Mediante o que se pode «ptomover ideias», como queria 0 meu jovem interlo- cutor. E isso € feito geralmente com um a-vontade que — sempre nos surpreenderd, a nds, pobres operarios que somos, para quem a histéria é 0 estudo paciente de documentos tanta vez demasiado 4ridos, mas sempre con- — cretos, vestigios de acontecimentos vividos por pessoas vivas, pouco preocupadas em se vergarem a teorias pre- fabricadas ou em obedecer a estatisticas determinadas. Acreditar que a histéria se faz. mos nossos cérebros, que ela se pode construir «como se quer», é provavel- mente um dos erros capitais do nosso tempo. Era absolu- tamente tipica a atitude daquele escritor (alias, director de «colecg&o histérica» —Oh miséria!) que, quando duma discuss&o sobre. as origens de Cristévao Colombo, dizia a historiadora Marianne Mahn-Lot: «A sua tese é talvez a verdadeira, mas deixe as pessoas a liberdade de pensa- mento!» Ficaria certamente embaragado esse senhor se The perguntassem que horas eram. Se ele tivesse respon- dido: «20 horas e 30 minutos», podiamos retorquirs: «Deixe-me a liberdade de pensamento: eu acho que sao ttés horas da manha.» Impossivel negar mais ingenuamente ou mais impu- dentemente a histéria. A liberdade de pensamento, que ela implica e exige, como toda a. busca cientifica, nio pode em nenhum caso ser confundida com as fantasias inte- lectuais dum individuo, ditadas pelas suas opinides poli- ticas, as suas opimiGes pessoais ou os seus impulsos de momento ou, mais simplesmente, pelo desejo de escrever um volume de grande tiragem. A histéria temo seu domi- nio. Ela deixa de existir se ja nao for busca da verdade, O MITO DA IDADE MEDIA 129 fundada em documentos auténticos; ela evapora-se lite- ralmente; melhor: ela j4 nfo é senao fraude e mistifica- 40. E ocasiao de citar a belissima definiggo de Henti- -Irénée Marrou: «Homem de ciéncia, 0 historiador encon- tra-se como delegado pelos seus irmos os homens & con- quista da verdade» *, Objectar-me-Zo com os grandes éxitos da literatura histérica; mas, precisamente, quando um Shakespeare recria Henrique vV, ele fa-lo respeitando a verdade da persona- gem, tal como a histéria no-lo revela. Muito mais discutf- vel, um Walter Scott impondo uma imagem de Luis XI que nada tinha a ver com o Luis XI da histéria — embora esta imagem tenha podido insinuar-se nos manuais escola- res! Finalmente, o que se vé todos os dias: ir buscar os nomes de personagens histéricos para fazer aceitar produ- Ges que nao tém nada a ver—ai de mim! —com as obras de Shakespeare, ou mesmo Walter Scott, nao é mais do que uma lamentével falsificagdo destinada a abusar do bom povo que se despreza, Jogando como gosto pela historia, que o publico manifesta cada vez mais (sao reflexo duma época de filosofias baratas, de sistemas puramente abstrac- tose de. teorias somente intelectuais, macionais, cere- brais, etc.), adoptam-se apressadamente alguns nomes ja conhecidos (Cristévao Colombo, Joana d’Arc, etc.), alguns temas de que se sabe que desencadeario alguma resso- nancia politica: (os cdtaros, os Templarios, a Occitania...), mediante 0 que se constréi, ornamentando o assunto de alguns mini-escAndalos, segundo os processos jornalisticos de efeito seguro, uma obra «histéricay, ou até uma colec- fo inteira, «muito vendiveis». E tio facil, com efeito, manipular a histéria, consciente ou inconscientemente, para uso dum publico que nfo 4 conhece. Tem-se, quotidianamente ou quase, testemunhos na televisio. Quando os acontecimentos contados sao sufi- 1 De la connaissance historique, Paris, Ed. do Seuil, 1954, p. 219, (Reeditado em 1975.) S-125—9 130 REGINE PERNOUD cientemente recentes para que a sua deformacao no écran possa ser rectificada, é apenas um meio mal. Mas que um autor se atire (¢ 0 termo que convém) & questio albigense. por exemplo, quantos estario & altura de protestar? Ele pode alegremente fazer reviver um Sao Domingos uns vinte anos mais tarde, confundir uma personagem com outra e compor um tecido de exros que deixa o especialista estupefacto, que este n&o terd outro recurso seng uma cri- tica detalhada em qualquer revista de. erudicio. A Idade — Média é uma matéria privilegiada: pode-se dizer dela © que se quer com a quase certeza de nao-se ser desmentido. De facto, a vida do medievista podia consumir-se @ emendar os erros, porque quase sempre os factos, os textos _ do tempo, desmentem as lendas acumuladas desde 0 século XVI e espalhadas sobretudo desde o século XIX. F bem raro que se aborde um assunto sem ter primeiro que rectificar as efabulacdes que suscitou. Para me referir a um exemplo bem caracteristico, ainda que seja titado da histéria recente, « nio da Idade Média, fizemos a experiéncia dele ainda nao ha muito tempo (1974), em condigées que se podem considerar exemplares. Um argumentista de filmes apresentara-se nos Arquivos Na- cionais, procurando a documentacio que se relacionasse com o atentado de Damiens contra Luis XV. Esse argu- mentista pedira desde o principio para ver o registo de Parlamento «donde as paginas tinham sido arran- cadas». Com efeito, todos os historiadores, desde Mi- chelet — mais precisamente depois de Ravaisson, que 0 precedera—, contaram que as pdginas que continham as deliberacdes do Parlamento sobre o caso Damiens tinham sido arrancadas; ora, A vista do registo auténtico, pude- mos, constatat que este estava completo, que as paginas se seguiam na sua paginagio primitiva, isrepreensivel- mente, e que as deliberacées estavam tracadas ao longo dele sem adigées nem subtraccdes. detectaveis, Michelet escrevia também que das provas desse processo nfo res- O MITO DA IDADE MEDIA 131 tava mais do «que um pobre fatrapo vermelho», a camisa de Damiens; de facto, 0 gabinete das provas dos proces- sos de Estado nos Arquivos Nacionais guarda completo, se bem que fortemente roido pelas tragas, 0 fato de Damiens — simples para a época, mas que, de pura 14, admiravelmente tecido, cosido e ornado, seria para 0 nosso tempo uma verdadeira obra-prima de grande alfaiace, com colete, bofes, uma luva, etc. O erro, de facto, ¢ facilmente detectivel: provém dum primeito” «historiador» que se fez eco de mexericos de corte segundo os quais o atentado de Damiens teria sido, dirfamos nds, teleguiado por altas petsonagens que teriam querido subtrair 9 seu nome das deliberacdes. Simples fSbula sem consisténcia que o estado dos registos des- mente, assim como das minutas, tudo, mais uma vez, absolutamente completo, sem a menor lacuna. Ora, Mi- chelet, quando compés a ultima parte da sua Histowe de France, isto é, 0 periodo mondrquico até a revolucdo (A Histoire de la Révolution fora escrita por ele em data anterior), estava afastado dos Arquivos Nacionais hd vinte e trés amos; o principe-presidente retirara-lhe o lugar que ele ai ocupava 4 sua recusa em prestar-lhe juramento, em 1852. Ele compés, pois, o capitulo relative a Damiens segundo muito vagas recordagdes pessoais —éo «pobre fatrapo vermelhon — e segundo um. histo- riador anterior, para 9 caso muito mal escolhido. Nao é esta a unica Ocasia que permite constatar, na tiltima parte da sua obra, uma informagéo de qualidade inferior 4 da primeira, escrita antes dos acontecimentos de 1848- 1852. Vé-se que, relativamente ao atentado de Damiens, era preciso, primeiro, consultar documentos, corrigir a ime- xactiddo inicial que falseava a histéria do processo desse desgracado — um meio demente, vitima dum processo penal que se tornou duma inconcebivel crueldade, nos séculos XVO-XVII. aan 132 REGINE PERNOUD Anedota tipica, erro. facil de. rectificar, porque S¢— trata duma “historia felativamente recente. Os erros do mesmo género abundam em telagao.& Idade Média; muitas — vezes provém de nao se preocuparem em. consultar..a8 fontes. Vou evocar aqui um exemplo revelador, e que desta vez nos faz regressar a Idade Média. Todos aqueles que no nosso tempo tém visitado Rocamadour devem ter ouvido falar dum St.° Amadour, que outro nao sefia que Zaqueu, 0 publicang do Evangelho, convertido por Cristo, e que, tendo vindo evangelizar os Gauleses, teria morrido como eremita nessas montanhas, as quais ele teria dado o seu nome, dai o nome de Roc-Amadout. Tendo de estudar, para um congresso, 0 Livre des Mi- racles de Notre-Dame de Rocamadour de que se possul um manuscrito original, do século KIMI, pude constatar que nao havia em parte alguma mengao de Zaqueu nem de qualquer santo ‘Amadour, todos os milagres contados eram atribuidos expressamente a Cristo, por intercessdo da Virgem, Dum estudo mais atento conclui-se que 2 lenda remonta ao século XV (trezentos anos depois da redaccao do Livre des Miracles), ela s6 é expressamente contada numa obra de edificacéo publicada em 1633; finalmente, da néo é admitida na liturgia senao aproximadamente em 1850, em pleno século XIX. Podiam contar-se as centenas as anedotas deste género. Recorrer as fontes, mas no a quaisquer fontes, porque 2 confusig é entre fontes literdrias e fontes histéricas. f evidente que, quando se toma «no primeizo grau», ao pé da letra, o contetido das cangdes de gesta ou o dos romances de cavalaria e se quer fazer das suas perso- nagens tipos de vida corrente, 2 humanidade que s¢ descreve povoa-se de monstros, de enormidades e de abertacbes, Devia bastar 0 simples bom senso, parece, para rectificar ertos deste género. Ora, no ¢ nada disso. Viu-se comentadores, em Franca principalmente, obstina- rem-se em tomar em total aceitagio obras de pura fan- © MITO DA IDADE MEDIA 133 tasmagoria. Tudo o que se pode pedir a uma obra lite- rAria € serem o eco duma mentalidadé, fio a descricao duma realidade, e muito” menos ainda a sua descri¢io exacta,.O século XIX viu a eclosio dum género novo com © romance natusalista; enganar-se-iam ainda completa- mente se tomassem.o tio Goriot ou Lucien de Rubempré por_personagens histéricas. Foi, no entanto, 0 que nao deixou de se fazer a propdsito de Raoul de Cambrai, por exemplo; ¢, todavia, a epopeia, como o romance de cava- laria, é radicalmente diferente, na sua propria esséncia, do romance naturalista: o autot ‘nfio_se_preocupa com a copia da realidade mais do que © escultor. que talha as personagens dum capitel romano. Apesar disso, viu-se em Raoul de Cambrai o provétipo do senhor ratoneiro, devastador, injusto e cruel: teria sido mais indicado pro- curf-lo através das crénicas, € muito mais ainda através dos documentos dos cartularios ou outros do mesmo género. Mas é mais facil trabalhar eternamente sobre os mesmos esquemas j feitos do que estudar-as doagées, os contratos de arrendamento, as actas de venda e de trocas, etc. No entanto, ai € que se encontra a histéria, nfo é na literatura. Hi de dizer que um grande esforgo hi que se fazer no plano histérico, isto é, cientifico, pata conhecer um milendrio da nossa histéria, evitando referir-se a um vago folclore alimentado por crénicas sempiternas ou simples- mente pelos estudos anteriores, remontando aos séculos XVI ou XIX, ¢ forgosamente incompletas ou de intct- pretagio imexacta. Basta evocar a personagem Abelardo, de que. se fez um descrente, um. céptico perdido num século de ignorancia € de erbrutecimento. Fazer passat por descrente o pensador cujos esforcos de pensamento foram todos consagrados a estabelecer 0 dogma da San- tissima Trindade, 0 tedlogo que abriu caminho a Tomés de Aquino, € em si bastante paradoxal; -¢, no entanto, jsto que se 1@ um pouco Por toda a parte nas obras de vulgarizagao. 134 REGINE PERNOUD A inica das suas.obras que foi traduzida é a famosa « admiravel Lettre d unm ami, assim como a sua corress pondéncia com Heloisa*. A sua obra filosdfica contin praticamente desconhecida, excepto para os especialista que leram o texto latino. Aconteceu-me pessoalmente um curioso desaire: expus a sua histéria, depois de muitos outros, numa colecgao onde se tinha o habito, alids exces lente em si, de colocar notas marginais para esclarecer tetmos dificeis. Estas notas eram redigidas por um agre- gado de Histéria®. Ora, a minha surpresa foi grande ao constatar as liber- | dades que ele tomava com os textos do préprio Abelardo, particularmente com o Sic et non, obra que, aqui para nds, pode fazé-lo passar por céptico, O anotador pusera co- mentérios tirados dos manuais correntes: o resultado era deveras surpreendente —isto ¢, 0 menos que se pode dizer— para alguém que se tivesse dado ao trabalho de ler o Sic e¢ non de ponta a ponta. Se ele tivesse lido o admiravel «Prdlogo», que indica a intengio de todo o resto da obra (que se compée essencialmente de citagdes — de Escritura ¢ dos fundadores da Igreja), talvez os seus comentarios tivessem sido outros. E é assim que a imagem de Abelardo, tal como ela aparece nos seus escritos, difere a tal ponto daquele que os historiadores dos sé- culos XVIII e XIX fabricaram e espalharam, que os auto- res cultos acreditam num erro quando lhe apresentam Os textos auténticos. O exemplo sem dtivida mais surpreendente é 0 de Sao Luis, 0 menos conhecido dos reis de Franga. E extraor- dindrio pensar que 0 catdlogo completo das memérias de Sfo Lufs ainda nao foi organizado, enquanto j4 foram , * Foi feita ha pouco uma ttaducdo da sua Erhique por um erudito, D. E. Luscombe, publicada em Oxford, Clarendon Press, 1971. * Recordemos que a agregacéo forma, nao historiadores, isto é, pesquisadores que trabalham sobre os textos originais, mas pro- fessores de Histéria—o que é a mesma coisa. Q MITO DA IDADE MEDIA 135 recenseadas pata os reis que o precedem. € para os que © seguem:~talvez- que -o ntimero demasiado grande de documentos que existem dum reinado que cobre mais de quarenta anos da nossa histéria tenha desencorajado os eruditos. Evidentemente que um trabalho destes ne- cessita de uma equipa; ora os paledgtafos, que sao admi- ravelmente formados no estudo do documento, sao-no muito pouco no trabalho de equipa. Nos nao conhecemos, pois, Sao Luis senao através dos cronistas ——multo bem instruidos ¢ dotados por vezes dum talento imenso, como Joinville —, que nos permitem apanhar a sua personali- dade, mas continuamos a ignorar a sua verdadeira obra, os actos da sua vida piblica ou privada; do seu reinado ndo temos senio um conhecimento de segunda mao, po- deria dizer-se, E, para sublinhar-as Jacunas.da-nossa-infor- magio, assinalemos. que a prépria obra. de Joinville. néo foi ainda objecto duma edigao critica; constantemente edi- tada e reeditada, ela.é-o.sempre segundo a. velha _edicgio de Natalis-de Wailly; oa, nfo. se cata duma edigéo que responda &s exigéncias actuais. de criagio dum texto se- gundo os manuscritos existentes. Assim, 0 nosso conbeci- mento do reinado de Sito Luis nao ultrapassou. 0 nivel da sintese histérica, sobre a qual continuamos a apoiar- “nos: a obra de Le Nain de Tillemont, composta po S& culo XVI, mas editada somente no século passado, por Jules de Gaulle, para a Sociedade de Historia da Franga _ enquanto a crénica mais valida que The diz respeito nem sequer recebeu..a arengao. que. teria mezecido. Um outro exemplo num dominio muito diferente, que assinala uma tese recente *, Sabe-se que da obra de Etienne Langton apenas um centésime foi publicado: exactamente um sermo, entre perto de trezentos que chegaram ate * Esneval (Amaury d'), L'imspiration biblique d'Etienne Lang- ton a travers le commentaire sur le livre de Ruth et les «Inter- pretationes nominum hebraicortray. Tese de 3.° ciclo, apresentada 4} Universidade de Caen, 1976. 2 136 REGINE PERNOUD nés, um comentirio biblico, enquanto ele compés o co- mentario de todos os livros da Biblia, e um Unico quaestio, em setenta. O grande pitiblico ignora até o nome de Etienne Langton. Mas, pata apreciar essa lacuna, & pre: ciso saber que todos aqueles. que citaram esta ou aquela passagem da Biblia, desde 0 século XIII até aos nossos dias, com a sua referéncia (isto representa varios, milhares ou, melhor, varios milhdes de citagées), devem. qualquer coisa aos trabalhos desta personagem, os quais fixaram, até ao nosso tempo, a capitulation da Biblia, a sua divisao em capitulos ¢ versiculos ¢ que até a Biblia judaica adoptou. Para vincar a sua importincia basta dizer que; depois da sua passagem pela Universidade de Paris, foi arcebispo de Cantuaria e, por outro lado, desempenhou um papel decisivo na redacgéo da Magna Carta’ inglesa, em 1215. Trabalho nag faltara certamente as vindouras gera- ges de historiadores da Idade Média, mas ser-thes-A pre- cisa coragem para o levarem a bom termo, e também alguma independéncia de espirito. Temos secebido fre- quentes vezes confidéncias de candidatos 4 agregacio, para saber em que nos havemos de apoiar a esse respeito’ aqueles que desejavam. fazer umn trabalho. sobre a histéria da_Idade. Média -eram, com raras-excepg6es,. desencora- jados pelos professores e futuros censores de teses a quem se dirigiam. Nao que se vA supor destes intengdes pér- fidas: simplesmente, e isto € 0. mais gtave, eles nZo tinham —a—competéncia necessiria, e - curiosidade. ainda menos; deste-modo,..chegou-se a este paradoxo. de uns (os que estudam.a -histéria da antiguidade. grega ou la-. tina, ou até a antiguidade bizantina) terem toda a espécie de dificuldades em encontrar assuntos de tese ou de trabalhos porque as questdes j4 foram éstudadas € esqua- drinhadas em todos os cantos © recantos, enquanto outros que queriam virar-se para a nossa prdpria. histéria, onde enormes lacunas, verdadeitos abismos, estio ainda para satisfazer, se véem afastados do--seu~desejo. O MITO DA IDADE MEDIA 137 Isto é assim em todos os dominios, nfo sé na his- téria propriamente dita, a das personagens ea dos acon- tecimentos, mas também com a histéria: da filosofia, com a das ideias, com a histéria social, com a dos grupos humanos, com a histéria dos costumes, com a do direito... O resultado é este vazio quase absoluto que se encontra sobre estas varias questées nos trabalhos de conjunto, enciclopédias, histérias universais, etc. em que 0 periodo medieval é tratado em algumas paginas —mil anos des- pachados! — numa total desproporcio com todos os outros perfodos, incluindo o periodo antigo. Sejam quais.forem as quest0es abordadas, passa-se levianamente sobre esses mil anos, Bem caractetistica foi a atitude daquele fildsofo que, professando em voz alta o seu desprezo pelos da Sorbone, pela Universidade, etc., nao deixava menos por isso de adoptar com uma sara docilidade de espirito o mais absoluto dogma da Sorbone sobre o assunto, pois tratava esses mil anos em cinco ou seis paginas, na Histéria da Filosofia. «Para a Sorbone, entre Plotino e Descartes, néo hd nada», constatava diante de mim um jovem concorrente & agregacio — daqueles que, precisa- mente persuadidos de que certamente se devia ter passado qualquer coisa no dominio do pensamento entre Plotino e Descartes, teriam gostado, quanto a ele, de interessar-se por isso. : Serd esta uma posig¢Zo cientifica? Sera mesmo, sim- plesmente, uma posigio inreligente? Nao se deixara, bem entendido, de opor um certo nimero de objeccdes, Podem citar-se grandes nomes, revistas de cultura, centros de estudos medievais, como o de Poitiers, varios congressos, coloquios ¢ até alguns cursos universitarios, como, no Mans, o curso de icono- gtafia medieval. Tudo isto existe, mas nao invalida a regra. A regra é que o estudante de literatura. faga uma tese sobre Proust ¢ que o estudante de Historia aceite interessar-se por tudo, excepto pelo periodo medieval. 138 { : EEGINE PERNO Pelo menos, eta assim até uma época muito recent Sente-se hoje crescer um interesse que, afinal de conta 3 Oe #6 aioe as Proprias portas da universidade tee ios modernos de exploragio dos documentos po leriam permitir renovar e alargar o seu estudo. A info matica comeca a penetrar nos arquivos; ela ¢ chamada Prestar imensos servicos. Sem duvida que ela se aplicar mais as €pocas posteriores, porque é muito taro que ‘6 possuam coleccdes de documentos bastante eeenase bas ne _ fompletas para que seja interessante tratd-los pela atica, no que se refere ao periodo feudal; no entanto, algumas séries prestavam-se a isso- pensemos, por exemplo, nas inquirigses de Sio Lufs e em tudo 0 que elas poderiam revelar-nos sobre a vida social do tempo. Para o periodo posterior, os segistos paroquiais (sabe-se que os mais antigos em Franga er a0 século XIV) foram, por outro lado, objecto duma espo- Hiagao; e, se formos a acreditar em alguns especialistas, eles no esgotam a quest4o, porque no estabelecimento_ de programas teriam sido esquecidos os padrinhos e as madrinbas, cujo papel foi tio importante no passado; isto ¢, os meios, por muito aperfeigoadas que sejam, neoll dio o seu pleno rendimento, na histéria como em outros” lados, sen&o quando sao conduzidos e utilizados por inves- tigadores devidamente qualificados. O que podia estar prodigiosamente desenvolvido, e nao esté ainda senio no estado embriondrio, é a utilizagio dos meios de reproducio para um melhor conhecimento do nosso passado. Em especial a reproducio de minia- curas € manuscritos. Ha ai uma fonte praticamente ilimi- tada € quase inexplorada em relacio ao que podia ser feito. A imagem, o conhecimento que nés temos da Idade Média pela arquitectura, pelas esculturas, pelos vitrais, pelos frescos e até pelas tapegarias —a aie tagao «ao ar livre» —, nao representam a centésima parte do que poderia ensinar-nos a reproducio das miniaturas dz manuscritos, se ela fosse sistematicamente conduzida 0 MITO DA IDADE MEDIA 139 com os meios de reprodugéo a cor de que hoje dispomos. mesmo surpreendente que na época audiovisual nada tenha ainda sido empreendido nesse sentido a escala exi- gida. Uma lacuna profunda subsistiré no nosso conheci- mento da Idade Média enquanto 0 esforgo necessario nesse dominio nao for feito. Por agora, contentamo-nos com imagens, mais ou menos sempre as mesmas, embora a ilustragég dos manuscritos, jnacreditavelmente rica (cO- nhecem-se alguns que contém mais de: quatro mil minia- turas"!), se. tenha conservado inalteravel (a0 contrario do que se passou em relagdo aos frescos cujas cores se tornaram mais ou menos embaciadas ou empalidecidas) e represente um panorama imenso que interessa nio 36 a histétia da arte propriamente dita, mas toda a vida social, econdmica, etc. Apenas a Inglaterra fez um- esforgo: o Museu Britanico oferece & curiosidade dos visitamtes uma exposigfo permanente de uns duzentos manuscritos e proporciona aos interessados condicées de preco ¢ de execugéo proprias a encorajar as reprodugGes; por outro lado, colecgGes particulares de fotografias, como o Cour- tauld Institute, permitem 2 um publico vasto conhecer o que em Franca se pode considerar como um tesouro praticamente inexplorado, indispensavel a0 conhecimento da Idade Média, e paradoxalmente menos acessivel do que © tesultad das pesquisas arqueoldgicas, que nfo tardam, em geral, a vir enriquecer os museus, Em 1969, pouco depois dos primeiros passos do homem na Lua, enquanto a televisdo interrogava um grupo de criancas sobre as razOes dos progressos técnicos da huma- nidade, um garoto respondeu: «h porque depois da Idade Média, as pessoas reflectiram!» Ele podia ter uns oito 4 ® Citemos a Bible Historiée (Frangais 167 da Bibliotheque Nationale), que contém 5152 imagens, o famoso Brevidrio do Duque de Bedford (Latim, 17 294), com 4346 imagens, etc. Mesmo nos casos em que as paginas com iluminuras se contam por dezenas on por centenas, ¢ de considerar ainda a’ decoracao marginal, muitas vezes duma siqueza surpreendente. 140 nove anos, mas ja sabia que durante a Idade Média as pessoas nfo reflectiam, Ja 0 disse, mas insisto, este desconhecimento nao é apandgio das criangas, desculpaveis certamente, pois repe- temo que lhes ensinaram, Recordo-me da conversa ue tive com um jornalista da televisio catdlica: era a pond! sito do processo de Joana d’Arc (Je Monde tinha inserido um artigo sobre uma obra publicada recentemente acerca do assunto e a televiséo catdlica podia, por sua vez, aven- turar-se, sem riscos demasiados, a falar de Joana d’Arc ) . QO que me interrogava perguotou-me como eram conhies cidas as actas do processo e eu expliquei-lhe que se possuia © processo auténtico, o extracto, feito pelos notarios, como em todas as acc6es juridicas, das perguntas postas lo tribunal e das respostas dadas pela acusada. = —Mas entio escrevia-se tudo? — Escrevia. — Mas isso deve ser uma grande pasta! — Muito grossa. no a impressdo de que estava a falar com um anal- a meee es o publicar houve pessoas que tiveram — Sim. ‘Tudo. : E eu sentia-o mergulhado numa estupefaccio tho intensa que insistic teria sido indelicado; ele murmurou para si proprio: «Quase custa a acreditar que essas pessoas fossem capazes de fazer as coisas com tanto cuidado..‘» «Essas pessoas... com tanto cuidado:..» Era a minha vez de ficar espantada: esse jornalista nunca teria olhado para uma abdébada gética? Nunca teria perguntado a si préprio se para a aguentar durante quase um milénio, uns quarenta metros de altura, nao seria preciso que ela tivesse sido feita com cuidado? Ele fazia-me lembrar aquele outro interlocutor que —sempre a propésito de Joana d’Arc— me dizia, muito superior: «Vocé deve imaginar que, se alguns documentos dessa época ainda REGINE PERNOUD aa O MITO DA IDADE MEDIA 141 existirem, devem estar num estado tal que com certeza nao se deve conseguir ler nada...1» Com certeza que, para convencer este Ultimo, bastava convida-lo a ir ver alguns dos quilémetros de prateleiras dos Arquivos Nacionais. Ele seria rapidamente obrigado a reconhecer que 0 perga- mifho ou o tecido sao mais resistentes do que o nosso papel de jornal. Pouco importa: o que est em causa €é essa, visio infantil duma parte da histéria da humanidade. Havia um primeico ¢ decisivo progresso @ fazer no que se tefere 2 Idade Média, era 0 aceitar que «essas pessoas» foram pessoas como nés; uma humanidade como a nossa, alias, nem melhor nem pior, mas diante da qual nao basta encolher os ombros ou sorrir desdenhosamente; pode-se estudd-la tao. serenamente como outra qualquer. Isso implicatia, evidentemente, renunciar ao. termo Idade Média, pelo menos para designar todo esse milénio que separa.a antiguidade. do Renascimento. Se admitirmos que muitas coisas se podem passar num petiodo de mais de mil anos, isso devia levar a uma nomenclatura um pouco diferenciada, na medida em que as pessoas se 4gat- tam as classificagdes (reconhegamos que elas tem a sua utilidade). De resto, muitos eruditos a adoptaram jA e nao se justifica que 0 conhecimento comum mostre um tal atraso em relacio & erudigio, numa época em que pro- gressos consideraveis foram realizados precisamente 4 rapidez da difusio. Poderia assim falar-se dum periodo franco, pela qual comega o que S¢ chama a Idade Média, e que designa os trezentos anos que vio da queda do Império Romano (410, se se escolher para ponto-de.partida a tomada de Roma pelos Godos; 476, se se preferir a deposicao do ultimo imperador) até ao advento da dinas- tia carolingia, em meados do século VII; atacar-se-a assim uma primeira fase, que, nao mais do que as que 4 precederam ou que se Ihe seguiram, nao merece ser esque- cida. Ela representa, se se procurar um equivalente, um tempo igual aquele que decorreu desde o advento de Hen- sique TV (1589) & guerra de 1914, 142 REGINE PBRNOUD Uma segunda fase podia ser o petfodo imperial; cle viv consumat-se a unidade da Europa, o que nfo oferece pequeno interesse no nosso século XX, Decorre num espago de duzentos anos, aproximadamente: ou seja, da morte de Luis XV (1774) ao nosso tempo..(1975). A partir de meados do século X e até ao fim do — século xu é a Idade feudal, que constitui bem uma unidade, sobretudo em Franca, com tracos comuns e forte- mente marcados que caracterizam esses quase trés. séculos e meio: ou. seja, 0 mesmo lapso de tempo que entre Joana d Are (1429) € a Revolucgao Francesa. ; Finalmente, podia reservar-se o termo Idade Média para os dois Ultimos séculos (0 mesmo intervalo que entre a morte de Luis XIV (1715) e a Revolucio Russa); tra- ta-se, pois, dum periodo de transigao, efectivamente entre feudalidade e monarquia, do ponto de vista politico, com _ as suas violentas mudangas sociais, econdmicas, e até artisticas. # E de notar que para este ‘ultimo periodo —e sé para ele — seriam justificadas as vistas sumérias que fazem da Idade Média uma época de guerras, de fomes e de epidemias. H precisamente para clarificar essas grossciras cronologias que tfnhamos estabelecido, ao longo dum coléquio, a silhueta do homem de 1250, 4 qual tinhamos oposto a do homem de 1350. Em 1350, 0 homem da Europa acaba de ser sacudido pelo mais violento cata- clismo que ele conheceu: a peste bubénica, ou peste negra, que apareceu, como se sabe, em 1347-1348 ° e que atingiu nada menos do que um homem em trés. E a estimativa ainda fica abaixo da realidade em toda a parte onde se pode contar com mimeros precisos, Basta recordar que em Marselha, por exemplo, os conventos de frades_ pregadores e de frades menotes ficaram completamente despovoados % . Ela fizera _estragos Precedentemente na Europa t. r 0 século VIII e nao voltara a aparecer mais desde entao. - O MITO DA IDADE MEDIA 143: e que algumas cidades do campo foram totalmente riscadas do» mapa. “ Em Franca o flagelo sucede a batalha de Crécy, que abateu, em 1346, segundo a expressio do tempo, «a flor da cavalaria francesa». Quer dizer que as familias nobres, pelo menos as do Norte da Eranga, forem literalmente decapitadas. Por outto lado, um novo elemento vinha transfcrmar as condigées da guerta, a pdlvora. para canhfio, que fez a sua aparigao nos campos de- batalha nessa primeira metade do século XIV. Embora, nas condi- gGes em que ela é empregada, faga mais medo do que mal, o seu emprego inverteu a proporcio entre os meios de defesa e os meios de ataque; até entio mais. fracas, estes vio tornar-se os mais fortes, € é toda uma meotali- dade que oscila: se dantes se tratava sobretudo de. fazer prisioneiros, agora procura-se matar o adversario. Durante algum tempo ainda se virara a atengao para 0s meios de defesa: € a razfo por que, nesse século KIV, se vé aparecer 0 cavaleito armado de couraga de ferro, enquanto em 1250 © guerreiro, que se sentia. a0 abrigo por tris dos muros das fortalezas e nfo tinha pata se defender armas de fogo, se_contentava”com> a sua cota de malha, com o seu elmo © com as-suas grevas, em 1350 0 homem, tornado ele proprio uma fortaleza mdvel, alids.cada vez mais emba- racado nos seus movimentos, comsagra-se, antes de mais nada, aos meios de ataque; estes ngo deixario mais de se aperfeigoar, até aos momentos das grandes hecatombes, com cimaras de gas e a bomba atémica. Estudos recentes mostraram, por Outro Jadu, como as proprias condigdes climaticas se modificaram no comego do século XIV ¢ que a um perfodo de clima quente sucedeu. um perfodo mais frio e muito mais pluvioso; ¢ a este factor que se deveu, sem divida, a grande fome de 1315- -1317, que sacudiu toda a Europa. Podia-se comparé-la aquela que, durante os anos de 1974-1975, assolou o Sahel, nado quanto aos seus efeitos (a agriculcura estava suficien- vemente diferenciada no Ocidente para que os recursos isd REGINE PERNOUD locais no fossem.utilizados, coisa. impossivel..para_a populagées némadas, que vivem ainda da pastoricia), mas quanto 4s ‘suas-causas, Uma outra mudanga, mais subtil e provavelmente mais radical, vem dos progressos na medida do tempo. E n0 comego do-século XIV que aparece “6 relégio mecAnico" Até entéo, os ritmos prdprios das estagGes, biolégicos, a sucessio. dos-dias-edas~noites, a das estag6es, marcadas — pelas festas litirgicas, formavam.na vida quotidiana uma tramaquée ‘nao tinha nada derigoroso e que apresentaya contrastes “muito diferenciados. Assim, o simples facto de se jejuar vinte dias antes do Natal, quarenta dias antes da Pascoa ¢ dos festins tomarem depois todo o seu sen- tido, espiritual e material, supde alternancias que rompem toda a monotonia. Acrescentemos que, se todos ‘os pro- gressos cientificos devem mais ou menos -alguma coisa 4 divisio do. tempo gtacas 20 reldgio. mecinico e aos seus derivados, este, .em..contrapartida,.cria. uma cuptura de mentalidade que .exerceu..o-seu~efeito: sobre 0. homem do século XIV em relacao ao do século: Xi, absolutamente como no. nosso tempo as possibilidades de. medidas. do tempo, cada vez mais exactas e tigorosas; exerceram 9 seu efeito. tanto nas’ cadéncias-de trabalho como sobre as proezas desportivas. Podia-se continuar assim, mas estes poucos indicios bastam para sublinhar os contrastes que existem duma epoca pata outra € que tornam impossiveis as generali- zag6es a que nos habituaram as lacunas da nossa formacao histérica. _..1 Jean Gimpel no hesita em ver no perfodo que vai do século XIV ao nosso aa eta do reldgio mecinico». Ver a sua obra intituleda La Révolution industrielle du Moyen Age, Paris, Bd du Seuil, col. «Points», 1975, pp. 141 e segs, ‘Actescentemos que contavamos consagrar um capitulo aos progressos técnicos reali- zados na Idade Média, mas 2 publicagdo desta obra, pareceu-nos suficiente aconselha-la ao leitor. OQ MITO DA IDADE MEDIA 145 Assim, guertas, fomes, epidemias, caracterizam bem essa Idade Média, a dos séculos XIV e KV, sobretudo em Franga; 0 nosso pais atravessa ent&o uma das mais terri- veis épocas da sua histéria, ainda que as guertas tenham sido esporddicas: a famosa Guerra dos Cem Asios com- porta, entre 1340 ¢ 1453, uns sessenta anos de hostilidades declaradas, que nfo afectam senfio uma parte restrita do territério; os desastres permanentes foram causados pelos mercendrios, homens de guerra contratados a soldo, que achavam pratico viver no pais ¢ cuja presenga era, pot consequéncia, de temer para as populacdes, tanto em tempo de paz como em tempo de guerra. Para apreciar sauda- velmente a situagio, e com algum retrocesso, é preciso recordarmos que em 1958 o exército francés estivera gactivon, segundo o eufemismo habitual, durante cinquenta anos, desde o comego do século; ora, o exército moderno compée-se das forgas vivas da nag&o: inteira, ao contrério do que se passa na Idade Média, em que os soldados so voluntarios. Tudo isto nfo quer dizer que a época feudal tenha sido isenta das misérias que em todos os tempos tém afligido a humanidade; mas comparemos, em. espirito, por exemplo, a sorte de Paris, que nao sofreu um cerco desde o dos Normandos, em 885-887, ¢ as perturbagdes de mea- dos do século XIV no tempo de Etienne Marcel: mais de quatrocentos anos decorreram sem que a cidade tenha sido atingida pelas guerras ou pelas desordens internas; se se ~estabelecer um paralelo com aquilo que se passou em Paris de 1789 até aos nossos dias, intitil insistir no balango das revolugGes sucessivas, dos cercos € das ocupagdes estran- geiras... Sem esquecer @ célera do ‘século- XIX e a gripe espanhola do século KX! ‘A nossa geragio cncontra-se na charneira de duas con- cepcdes do mundo—aquela em que temos sido criados, e que herddmos dos trés ou quatro séculos precedentes: no centro da qual se erguia o homo academicus, animado pela tazio que raciocina ¢ pela légica aristotélica, julgando $-1% —10 146 REGINE PHRNOUD segundo o direito romano e nao admitindo, no que respeita a estética, senao a da antiguidade classica greco-latina, tudo isto no interior dum universo a trés dimensGes, do qual, ainda no século passado, um Berthelot estava con- vencido de que em breve se poderiam definir os limites e€ os componentes. Acontece que os progressos cientificos, determinados pelos’ sdbios contemporaneos de Berthelot, provocaram o ruit dessa visio; sem nos referirmos as aqui- sic6es cientificas de hoje (um hoje que remonta, de facto, ao fim do século passado), quer se trate da relatividade, da mecinica ondulatéria, da nogio de espago-tempo ou, mais simplesmente, dos meios de exploragio, levados além de tudo o que se podia prever ha somente cem anos — basta constatat em redor de nds a destruigao do que se pode chamar a Visdio classica do universo. ~~Bsta visio classica, de-que -se pode (muito sumazia- mente) dizer que nos vem de Aristételes, através de Sado Tomas e Descartes, vemo-la nascer na Idade Média, & no século XIIi que a légica aristotélica (Aristéreles repensado pelos fildsofos 4rabes era entio um pouco do que é nos nossos dias Hegel para o mundo universitétio) se encon- tra, nao sem esforgo, adoptada pela filosofia cristé; ¢ na mesma época em que se elabora uma sintese, entrevista por Abelardo, mas tealizada século e meio mais tarde por Toms de Aquino e pelo seu mestre, Alberto, o Grande. Mesmo assim, 6 um puro erro de éptica ver af um sistema de pensamento dominante no século XII: pelo contrario, ele provocou, na época, 0 efeito duma espécie de corpo estranho que se tentou expulsar, Nao é senéo muito mais tarde que o pensamento tomista seri adoptado; 0 momento em que ele se formulava, ele estava longe de se impot. Recordemos que nesse mesmo século XI. um Robert Grossetéte funda, sobre o estudo da luz, nfo s6 uma estética, mas uma ordem de conhecimento. E que dizer desses pensadores do século precedente, o XII, que animaram a escola de Saint-Victor, em Paris! Sem sentir necessidade de se apoiar nem em Platio nem em Aristé- axe — 0 MITO DA IDADE MEDIA 147 teles, nao ignorando, por ouro lado, nem um nem outro — pelo menos em parte—, um Hugues de Saint- -Victor_coloca a frente de toda a contemplacéo a da beleza do universo; ele marca como primeiro elemento 0 movi mento, ofigem também do prazer estético: movimento dos yentos, das vagas, dos astros no céu; supde uma pbeleza invisfvel aos ossos sentidos —concepedes. deste género nao estario mais préximas tanto da visdo cientifica ¢ artis- tica do. nosso. tempo como daquele em que se esperava reduzit o homem e€ 0 mundo a definig6es ¢ classificacdes? Uma exposicgio sealizada no Museum, em Paris, em 1974, mostrava fotografias obtidas com microscépio electrénico: Naturexa multiplicada por 10 000; ela apresentava uma visio do universo totalmente insuspeitada, e, por outro lado, curiosamente proxima da arte dita abstracta, nas suas melhores proporges: pelissimas placas que evocavam um campo trabalhado, ou uma admiravel floresta ou admir4- veis construgdes geométricas, eram dadas como, quando se consultava a legenda, a seccao de um cabelo, a extre- midade da pata de um percevejo, a faceta do olho dum mosquito, Estava-se muito longe, escusado dizé-lo, do uni- verso caftesiano, mas o que € certo é que um Hugues de Saint-Victor ou um Isidoro de Sevilha se teriam deleitado num universo como 0 que o electronico revelava, Quem disse, pois, que 0 petiodo classico era aquele em que 0 homem pusera como ponto de partida de todo o conheci- mento a diivida, em vez da admiracio? Hoje,-o microscb- pio electrénico, como @ viagem do astronauta, podiam harmonizar-nos com um tempo que, por instinto, aceitava a admiracio, que nZo teria recusado esses asaltos qualita- tivos» (a expressao é de Maurice Clavel) e que as catego- rias da légica classica tornavam inadmissiveis, E € muito provavel que as geragdes vindouras se espan- tem de como se péde tanto tempo dar assim o exclusivo contra um periodo inteiro do nosso passado, aquele preci- samente que deixou de si préprio os tragos mais convin- 148 REGINE PERNOUD centes. Nao seria tempo de acabar com esta negligéncia sistemdtica e de admitir que se podem estudar, no campo das ciéncias humanas, sem desprezo nem complexos, esses _ mil anos da nossa histéria. que foram uma coisa diferente 4 dum meio-termo? f Fe Xx SIMPLES PROPOSITO SOBRE O ENSINO DA HISTORIA Recentes — muito recentes — disposi¢des parecem dever conceder um lugar um pouco mais importante do que no passado as ciéncias humanas na formagio do aluno. O his- toriador nao pode deixar de o aplaudir, e o educador ainda mais. Com efeito, pode-se perguntar se, até agora, a elabo- ragio dos programas nao foi encarada muito mais em funcio de matérias para encher do que em fungao da pr6- pria crianca e dos imperativos do seu desenvolvimento. A observacio, certamente, nfo é nova, todos os educadores dignos desse nome a tém, mais ou menos, formulado. Mas os esforcos de todos aqueles que preconizaram os métodos activos comecaram a produzir os seus frutos. A No entanto, para o historiador, as exigéncias fazem-se mais vivas. Os programas oficiais, assim como os métodos utilizados no passado, anulavam, de facto, aquilo que constitui o interesse proprio da histéria, Recordemos, por exemplo, 0 absurdo que era fazer estudar a historia da Idade Média no 5.° ano’ e a sua literatura no terceiro; 0 10 5.° ano do liceu, em Franca, equivale ao nosso 2.” ano de licen, pois o tempo é contado a partir da primaria, que se compée de cinco anos. Além disso; a contagem faz-se ao con- tratio da nossa: o ptimeiro ano da primaria é 0 11.° Quando entram no liceu, € 0 6.° ano, logo o 1.° ano de liceu ma nossa maneira de contar. O 3.° 6, pois, 0 nosso 4.° ano. (N. da T.) “\llliullilAlcaaaaai 150 REGINE PERNOUD que levava, por outro lado, uma boa parte dos professores 2 nao ensinarem absolutamente, da Idade Média, nem his- téria nem literatura. Onde os métodos tinham evoluido receava-se romper com os programas. Outro absurdo no qual € preciso insistic: o préprio principio que consistia em cortac a histéria em fatias —fatias demasiado desiguais, diga-se de passagem —, com a ideia simplista de que aquilo que se estudou durante um ano fica assimilado para toda a vida, Nao seria conveniente rever a questéo no seu con- junto, encarando nao sé o estudo dos factos, mas também a formagao do sentido bistérico no aluno, que surge tio necessaria como a formagio do sentido literario? Negligenciar esta formacio é desprezar o contributo positivo do estudo da histéria, Quer se queira quer nZo, o homem é também um ani- mal histérico:~o lugar que elé ocupa no tempo é tio importante para ele como aquele que ele ocupa no espaco; € essa curiosidade que cada um sente acerca da sua origem, da sua familia, dos pais, ou mesmo dos antepassados, é tio legitima, tao justificada, como a do médico que interroga © seu paciente, nao sé sobre as doencas da sua infancia, mas sobre as condigdes de vida e de morte de seus pais. Imitil insistir, no século da psicandlise, no interesse ime- diato que apresenta para cada um de nés o nosso passado e€ 0 dos nossos—interesse t#0 poderoso, t%0 profundo, como o do meio social, em geral, sobre o qual se insiste tanto nos nossos dias, e que se estende muito naturalmente do individuo ao grupo e 2 regifo. Mas, como toda a iniciago, como todo o ensino, o da histéria devia revestir formas diferentes segundo a. idade daquele que se ensina (idade mental, evidentemente; nenhum educador ignora que esta idade mental pode ser largamente diferente da do estado civil para esse ser em evolugdo continua, mas descontinuada, que é a crianga). Porque, nas classes infantis, nfo se ensinaria histéria por meio de historietas, unicamente historictas, destinadas O MITO DA IDADE MEDIA 161 a deixar na meméria nomes prestigiosos como sé a histdria sabe fornecer, para além de toda a lenda, Isto, bem enten- dido, sem a minima preocupacao cronolégica: todos sabem que até 4 idade de nove ou.dez anos, mesmo. mais tarde pata algumas criangas, a sucesso no tempo nao conta; ¢, pois, completamente intitil, até essa idade, atravancar a memoria de datas, como também é inttil, o que se fez durante tanto tempo, mandar fazer «andlises» num estadio em que a inteligéncia é precisamente incapaz de analisar. Em contrapartida, nao-hd uma crianga, por muito pequena que seja, que nao goste de histdrias, sobretudo quando elas sao averdadeiras». Ora, numa idade em que o que se conta se enraiza pata toda a vida, seria capital enriquecer os espiritos gracas ao reportério histdrico, cnjo interesse humano.é inesgotavel. Um pouco mais tarde, pelos nove-onze anos, todo ° educador pode estimular largamente o sentido social que desperta e mostrar também aos seus alunos como ver o que nos rodeia recorrendo a histéria local. O estudo da histéria podia confundir-se entéo com o do meio em que se vive. E. de resto, 0 que h4 algum tempo os professores formados nos métodos activos chamaram «o estudo do ambiente». Para ser bem feito, ele reclama uma referéncia 4 histéria, ¢ também certas exploracGes que podiain ser. extremamente benéficas: visitas a museus, certamente, mas também aos arquivos, fossem eles simplesmente os do municipio local, o estudo do cadastro, do estado civil, dos recenseamentos... Finalmente, 0 estudo dos monumenos do passado (que regido da Franga esté desprovida deles?), o das persona- gens, dos acontecimentos que marcaram a localidade, even- tualmente o das estacGes arqueolégicas que possam ¢xistit nas proximidades—~ tudo -isto devia ser a matéria das aulas de histéria e seria, evidentemente, mais formativo do que ter que aprender 9 resumo do manual, a Finalmente, quando nasce a possibilidade de analise e¢ de abstraccio, podiam abordar-se vis6es de histéria, 90 mesmo tempo mais gerais e muito mais precisas, por meio TAMA Adil 152 REGINE PERNOUD de assuntos repostos ng seu enquadramento cronolégico € eventual, baseando-se nos documentos e nos textos da época tratada; evidentemente que fica excluido na nossa €poca © agarrarmo-nos 4 histéria politica e militar, pois a histéria nao se compreende senZo em ligagio com a geologia e a geografia, extensivel & economia, & histéria da arte; etc. Os manuais podem ent&o ser utilizados, com muito maior proveito, na biblioteca da classe, Doutro modo, mais amplamente, ser4 possivel orientar um estudo sério, em qualquer dominio que seja, sem ter primeiro esbogado, pelo menos sumariamente, a histéria da matéria estudada? «Como se pode uma pessoa interessar pela histéria numa altura em que os homens pisam a Lua?», disse- tam-me um dia. A tesposta é facil, Qual foi a primeira coisa que 0 homem fez assim que se encontrou na Lua? Baixou-se, para apanhar uma pedra. O gesto do arquedlogo. O pri- meiro reflexo do primeiro cosmonauta foi aquele que traz a luz o préprio material da histéria. Nada mais natural; a histéria é a vida; para além de todas as definigGes ¢ de todas as abstraccGes, 0 homem afirma-se pela sua histéria, e, se uma pedra pode ter tanto interesse para ele, é porque ela é, 4 letra, «sinal de vida». A «tabua rasan cartesiana é talvez a maior mentira filoséfica de todos os tempos. &, em todo o caso, aquela cuja aplicagio pesa mais fortemente sobre 0 nosso. A ideia de «fazer tdbua rasan, de «tornar a partir. do zero», constitui sempre uma sedutora tentagio. Mas é precisamente um empreendimento impossivel: imposs{vel, a nao ser numa vista de espirito completamente arbi- tratia, no se preocupando com as realidades concretas. Porque tudo o que é vida é dado, transmitido, Nunca se parte de zero. Freud demonstra-lo-ia, em caso-de-neces- QO MITO DA IDADE MEDIA 153 sidade, Ou ainda, em termos~mais~simples,.esse texto do Génesis que nos mostra cada fruto «trazendo a sua semente»—o que negava antecipadamente toda a geragiio espontanea, E espantoso pensar que todas as vezes que a tentagio. de. «partir do. zerom foi transposta para os factos foi saldada com a morte; com miultiplas mortes ¢ destruigdes, e-isso em todos os dominios. Por ter querido fazer «tabua rasan, quantas vezes. se. tera estupidamente destruido.o que’ teria. podido.ser ponto de apoio, pedra de espera? Mas talvez seja concedidg A nossa época redes- cobrir 2 importincia da tadic#0, que € um dado vivo, susceptivel, como tudo o que € vida, de crescer, de adquirir, de enriquecer novos contributos.. Néo se poder4 fazé-lo senZo sedescobrindo a importincia da histéria, que é a procura do vivido, esse vivido a partir do qual nés vivemos a nossa prdpria vida. Pertence a histéria como aos estratos arqueoldgicos; h4 sempre a camada subjacente, e, quando se chega ao solo virgem, o arqued- logo cede a mio. ao gedlogo, que, quanto a ele, nos expde a histéria desse solo. A histéria é vida, precisamente porque ela comporta um dado, qualquer coisa que preexiste nos nossos con- ceitos, nos nossos preconceitos, nos nossos sistemas; a moeda que tem certa efigie e é encontrada num tal lugar determinado; as conclusGes. que se. tirarem podem ser falsas; mas o facto, a moeda indicando tal data, encon- trada em tal Ingar, nao depende de nds; temos que acei- ta-la, como temos que aceitar que tal manuscritg tenha sido composto em tal data e sobre a ordem de tal pessoa — sob reserva de que o arsenal da critica tenha sido. correc: tamente posto em movimento pata o estabelecer. E certo que uma doutrina em moda me querera con- vencer de que eu leio nos textos o que eu ]4 bem quero ler. Por vezes, é verdade: eu penso maquele escritor que, para provar que Joana d’Arc era mesmo «bastarda de Orledes» omitia numa citagéo as quatro linhas que anu- Javam a sua afirmacao i ill 154 REGINE PERNOUD Ai nfo hé histéria, indtil sublinha-lo, A histéria é uma ascese; dirfamos de boa vontade, uma ascese herdica. Os que fizeram escavacg6es este ano, seguindo a forma de Arqueologia, reconhecé-lo-Ao de boa vontade comigo — porque eles estao mais perto da histéria do que os colec- cionadores de anedotas e os inventores de fantasias pré- prias para lisonjear a opiniao. Ciéncia 4rdua, que exige que nos debrucemos longa- mente sobre fragmentos de louga ou formuldrios de fei- tigaria — esses formularios de feitigaria que os historia- dores marxistas acharam por bem tratar com desprezo, porque eles pdem em causa a sua prépria existéncia como historiadores. Pesar e avaliar 0 valor histérico de cada fonte de documentagio, do caco de barro ao foral ou 4 escritura, separar duma justaposigo de factos controlados a substancia viva, a que permite reconstituir peca a pega © itinerario duma personagem, da sua obra, e, por vezes, se se tiver uma documentagao suficientemente abundante e eloquente, a sua mentalidade—exige muitos anos de trabalho, 9 que, ma nossa época de facilidades, é ainda, mais uma vez, quase herdico, mas também nao é senfio a este preco que se faz a histéria. Com a condicio de se ter também identificado longamente as fontes, de se ter impregnado do contexto para Ihe penetrar o valor rela- tivo; e isso, muitas vezes, para nfo extrair sendéo uma parcela — que se podia dizer insignificante, se nfo fosse certo, por outro lado, ¢ isso por experiéncia, que nenhuma parcela de verdade sera jamais insignificante. Quanto Aqueles que negam a importancia da documen- tagiio em si, nfo nos daremos ao trabalho de os refutar: se eles a negam, nao sera porque eles prdprios sio inca- pazes de aceitar qualquer informagéo.além daquela que eles antecipadamente formularam? A pergunta vale a pena ser posta; depois do que se poderd com utilidade convida-los a vir dar uma volta, por exemplo, pela arre- cadacio dos arquivos; alguns quilémetros de pensamento, o mais placido desmentido. OQ MITO DA IDADH MEDIA Ae 165 O dado da histéria est4 14, mas é preciso certamente, durante muito tempo, trabalho e respeito, para 0 ex- plorar_e expor em seguida a sua substancia, Com- preende-se perfeitamente que alguns prefiram escapar disso pelo desdém; é infinitamente mais facil desenvolver ideias; ora a ignorancia do documento permite apenas desenvolver ideias com toda a serenidade, para tirar delas sistemas histérico-sociolégicos, satisfatérios para o espirito. © que é fecundo na pesquisa histérica €, pelo con- trdrio, esse obstaculo, ou, antes, esses obstaculos perpe- tuamente encontrados, que se opdem aos nassos precon- ceitos e nos conduzem a modificar as nossas ideias pre- concebidas, Uma. ideia preconcebida- & partida é, certa- mente, estimulante, mas é preciso saber resignar-se 3 abandond-la todas as vezes que os documentos o imponham. A histéria. obriga o respeito, um pouco como a medi- cina ou a educagZo; em resumo, tudo o que se relaciona com o homem, por falta do que se comecou cedo a desviat, a subtrair-se & exigéncia interna da disciplina adoptada: deixa-se de ser historiador quando se negli- gencia ou se trunca um documento, como se cessa de ser médico quando se desdenha ou subestima o resultado duma andlise ou dum exame, ou como se cessa de ser educador quando se usurpa a personalidade daquele que se esta encarregado de ensinar. Est4 aqui talvez o principal interesse desta formagio do sentido histérico to desejavel em matéria de educagio. Na idade em que o adolescente procura «o outro» € sé forma em relagdo ao «outron, nada seria mais fecundo para ele do que esse encontro com o que oO precedeu no tempo ¢ que lhe é, mais uma vez, tao préximo, tio necessério, ¢€ que o cerca mo espago. E provavelmente, por falta dessa dupla dimensio,.tanto 9 tempo como 0 espago, que tantos espfritos continuam atrofiados, for- mados de maneira unilateral, sumaria, simplista, O estudo da histéria dé A juventude a experiéncia que lhe falta, ele pode ajudar o adolescente a dominar a tentagao mais 156 REGINE PERNOUD habitual: ser exclusivista, condenar antecipadamente tal tendéncia, tal pessoa, tal grupo; nZo ter como universo senéo uma visio limitada & sua prdpria visio (e nao séo_ s6 os adolescentes!) Na idade em que importa confrontar os valores rece- bidos, os dos que o cercam, os da meninice, da familia ou do meio social, com a sua propria personalidade, o estudo da histéria alargaria o campc desta investigacao forneceria dimensdes impossiveis de adquirir de outro modo. Os jovens de hoje mostram.um notvel apetite de viajar, que € um reflexo de satide, mas a dimensao tempo falta ao seu universo espacial. E é uma lacuna. O alcance da histéria em matéria de educagio podia, pois, ser imenso para a maturago intelectual. Chesterton dizia que um homem sé é verdadeiramente um homem quando. olhou-o-mundo.com_ os pés para o ar e a cabeca para baixo: Pode-se-praticar 0 mesmo género de exercicio sem demasiada fadiga estudando histéria, Ao familia- rizar-se_com outros tempos, outras épocas, outras civili- zagdes, toma-se o habito de desconfiar dos critérios do seu tempo: eles. evoluirio como outros. evoluizram, E a ocasiio de rever pessoalmente o seu prdprio mecanismo de pensamento, os seus préprios motivos de acg@o ou de teflexdo, em compatagio com os dos outros, H4 um alargamento do horizonte familiar que pode ser extrema- mente benéfico, com a condigio, bem entendido, de que se_trate de histéria verdadeira, e nfo, simplesmente, de julgamentos_prefabricados que se distribui, 140. generosa- mente_no_ensino. O estudo da histéria permite, finalmente, situar exactamente a nogio de progresso, Faz-se geralmente do Progresso uma ideia demasiado elementar, Como escreveu Lewis Mumford, é-se levado a pensar que, se as ruas das nossas cidades estavam sujas no século XIX, elas deviam te: estado cem vezes mais sujas cem anos antes, Quantos estudantes acreditam de boa-fé que o que. se passou no século XIX, por exemplo, o trabalho das criangas mas pa QO MITO DA IDADE MEDIA ‘d 167 fabricas, sempre tinha existido e que sé a luta das classes € 0 sindicalismo no- final do século XIX desembaragaram a humanidade desse defeito! Quantos militantes de movimentos feministas. pensam de boa-fé que a mulher foi sempre confinada num gineceu, por menos moral, € que s6 os progressos do nosso século XX lhe concederam alguma liberdade de expressio, de. trabalho ¢ de vida pessoal! Para ohistoriador,.o-progresso. geral nao traz dividas; mas nZo menos o facto. de que nao se_trata nunca de progresso continuo, uniforme, determinado. Que a humanidade avance sobre certos Pontos, recue noutros, e isso tanto mais facilmente quanto o impulso que fez o efeito dum progresso’ num dado momento fara, com a continuacio, o efeito duma regress4o. No século XVI, nao se duvidou, de forma alguma, que a humanidade estivesse em progresso, principalmente do ponto de. vista econémico; muito poucas pessoas tomatam consciéncia de que, como o clamavam Las Casas e¢ alguns outros frades dominicanos do Novo Mundo, esse progresso se fazia restabelecendo a escravatura por um gigantesco movi- mento de reaccio e€ que, consequentemente, um passo em frente, aqui se pode pagar: com um recuo além. A humanidade progride, indiscutivelmente, mas nao uniformemente nem em toda-a~parte, Finalmente, para fora mesmo das questées de edu- cagio, onde o seu papel deve ser capital, onde el devia mesmo servir de enquadramento a todo o ensino/ha um proveito geral da histéria. Longe de nés a ideia dum eterno recomeco, ¢ mesmo de comparacées forcosamente facticias, subjectivas e arbitrarias, entre uma Epoca € outra; mais longe ainda a ideia de que a histéria possa trazer uma solucio aos problemas actuais: se se puder tirar uma conclusao do estudo da histéria, é, pelo con- tratio, que a solucio da véspera munca é a do dia, A pere- grinagio armada que nds chamamos cruzada era, em absoluto, quer se queira ou nao queira, a solucio indis- pensavel no.fim do século XI para ir em socorro dos aba | did a sill 158 REGINE PERNOUD lugares sagrados e do Préximo Oriente em. geral— mas j4 nfo era essa a solucéo que se impunha no principio do. século. XMI,.e~-menosainda~no fim desse mesmo sé- culo XII, e é surpreendente constatar que nenhuma aten¢io foi prestada pelos poderes de entio a um Ramon Lull, que, quanto a cle, indicava a solugio do-momento, quando, no Ocidente, os papas, os imperadores, os reis, retomavam infatigavelmente a solugio da véspera*, Mas nfo se estard muito mais 4 vontade para formular semelhantes julga- mentos quando se beneficia do recuo do tempo?.. A histéria-nao-fornece solucio, mas ela permite —e sé ela— pér correctamente os problemas. Ora, todos sabem que um problema correctamente posto esta j4 meio resolvido. Ela é a vnica a permiti-lo, porque apenas ela autoriza.o.inventério duma situacéo dada; apenas ela fornece os elementos donde resulta essa situacio, Nag ha conhecimento verdadeiro sem o recurso a histéria, E isto é verdadeiro em toda a parte onde o homem, a vida do homem, estiverem em causa. Um corpo vivo sé se conhece pela sua_histéria. Negligenciando a formag&o do sentido histérico, esque- cendg que a histéria é a meméria dos povos, o énsino forma amnésicos. Hoje censura-se, por vezes, as escolas, as _universidades, de formarem irresponsdveis, privile- giando © intelecto em detrimento da sensibilidade e do cardcter. Nao mais que o irtesponsdvel, 0 amnésico nao é uma pessoa completa; nem um nem outro. desfrutam desse plenoexercicio das suas faculdades, que’ é 0 tinico a_permitit ao homem, sem perigo para ele prdéprio e para as seus semelhantes, uma vétdadeira liberdade. * Ramon Llull, esse génio, poeta e profeta, preconizara um outro tipo de expedicio & terra do Isl0: médicos, enfermeiros, ¢ também pregadores capazes de se exprimirem na lingua dos «Sar- racenos». Ele est4 na origem dos colégios de linguas orientais, o primeiro dos quais foi decidido quando do Concilio de Viena, em 1312. Aconselhamos a consulta de Ramon Sugranyes de Franch, Raymond Lulle docteur des missions, Friburgo, 1954. INDICE Pég. I— «Idade Média» 5 II — Desajeitados e indbeis 15 iI — Grosseiros e ignorantes ... 38 IV — Indoléncia e barbaria .. 57 V— Ras e homens 16 VI— A mulher sem alme ... 88 VII— O index acusador 104 VUI — Historia, ideias e fantasia 127 IX — Simples propésito sobre o ensino da historia 149

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