You are on page 1of 75
{I | Mauro Martins Amatuzzi AEDIEORA 2: Edigao por uma PSICOLOGIA /HUMANA E preciso que a Psicologia busque se aprofundar naquilo que é caracteristicamente humano. Do contrario ela nao podera contribuir no dialogo dos que buscam saidas verdadeiras para os problemas pessoais e sociais que enfrentamos em nosso mundo conturbado. E preciso que ela se debruce sobre os sonhos que alimentamos em nosso intimo, sobre nosso desejo de uma vida mais digna, sobre o sentido que queremos dar as nossas vidas, sobre as formas como podemos, de verdade, dar andamento as nossas mais legitimas aspiragdes. E isso nao apenas em termos individuais, mas, também, em termos da comunidade que constituimos, entre nés humanos e com a natureza, mae que nostodeia. Este livro procura resgatar para a Psicologia - como estudo e pratica de desenvolvimento da pessoa humana — aquilo que nos vem da tradigaéo humanista. Procura ‘9 sentido que pode ter o humanismo para a Psicologia (capitulo 1), ¢ os fundamentos. desse sentido numa fenomenologia da fala e do silencio (capitulo 2). Busca aplicar, em ‘seguida, 0 que foi ai levantado ao campo da pesquisa do humano (capitulos 3, 4 € 6), a psicoterapia (capitulos 5 e 7), construgaode uma psicologia popular (capitulo 8), e ao esforgo de construir uma comunidade verdadeiramente humana (capitulo 9). Por uma PSICOLOGIA Humana Mauro Martins Amatuzzi DIRETOR GERAL Wilon Mazalla Jr. COORDENACAO EDITORIAL. Willian F. Mighton COORDENAGAO DE REVISAO Erika F. Silva REVISAO DE TEXTOS Vera Luciana Morandim R. da Silva EDITORAGAO ELETRONICA Sofia Cavalcante REVISAO DE FILMES Rosangela A. Santos CAPA Fabio Cyrino Mortari Dados Internacionais de Catalogagao na Publicacio (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Amatuzzi, Mauro Martins Por uma psicologia humana / Mauro Martins Amatuzzi. -- Campinas, SP: Editora Alinea, 2008. 2* edigio. 1, Psicologia humanista 1. Titulo. 01-4247 CDD - 150.198 indices para catalogo sistematico: 1. Psicologia humanista. 150.198 ISBN 978-85-7516-243-9 Todos 0s direitos reservados & Editora Alinea Rua Tiradentes, 1053 — Guanabara ~ Campinas-SP CEP 13023-191 — PABX: (0xx!9) 3232.9340 e 3232.2319 www.atomocalinea.com.br Impresso no Brasil Agradego aos editores das revistas abaixo mencionadas ¢ a diretoria ANPEPP juntamente com a Dr* Regina Maria Leme Lopes Carvalho, a ermissao de retomar textos ai publicados originalmente, para a composi¢ao presente livro: Arquivos Brasileiros de Psicologia Estudos de Psicologia (PUC-Campinas) Psicologia em Estudo Psicologia: Teoria e Pesquisa Prometeo ~ revista mexicana de psicologia humanista y desarrollo humano Coletaneas da ANPEPP. presentacao. ipitulo I. Humanismo e psicologia \pitulo IT. Siléncio e palavra .. Da fala ao siléncio surgimento do secundario...... A compreensao. ipitulo IIL. Investigago do humano ... ipitulo IV. Pesquisa do vivido pitulo V. Atendimento psicoterapico.... ‘A palavra foi feita para calar..... Escutar é abrir-se para o mundo, e responder upitulo VI. Versio de Sentido .... Compreendendo a VS a partir de sua histéria hist6ria e outras abordagens Tentativa de defini¢ao .. Para uma fundamentagao teéric: Principios gerais para 0 uso da Versio de Sentid Capitulo VII. Etapas do processo terapéutico A problematica... O material... Os caminhos da anilise....... Os resultados... O alcance desses resultados. Confirmagées externas ConsideragGes finais. Capitulo VIIL. Psicologia popular. Capitulo IX. Processos humanos ... O que é processo Os processos na vida A explicag4o psicoldgica do processo.. Processos grupais Processo comunitario e outros 4mbitos...... m sobre todos os humanos que em salas de aula, em ruas € , em sessOes de psicoterapia, em reunides de sindicatos, em ‘ec igrejas traduziram em atitudes seus compromissos e valores. a de tudo um manifesto a favor do existir humano em 0, numa arrojada aventura iluminada e nutrida pela palavra. juro Amatuzzi tem sido assim, um psicdlogo que filosofa, em tiplas atividades como professor, pesquisador, conselheiro € liste nao é apenas mais um de seus livros; constitui uma sintese nificados atribuidos, ao longo de mais de trés décadas, a consistentes no sentido de um engajamento com pessoas ¢ dades na lida diaria pela recuperagéo da dignidade humana. foram, certamente, as versdes de sentido, mas nunca em ento do sentido do proprio viver, como valorizagao do cotidiano nstrugao de experiéncias pessoais. - Os capitulos que compédem esta obra mantém a énfase no smo como uma perspectiva de abordagem ao psicolégico, na ‘a como definigdo primeira do ser humano, na investigagao do ido como possibilidade de uma apreensio compreensiva do diano, no processo como historicidade critica e constitutiva. Por uma Psicologia Humana & um titulo que marca a Mificagao do autor com a praxis de uma atividade profissional, O cuidar ... Criando bolsdes de humanismo . Referéncia: cuja matriz de pensamento substancia um compromisso com desenvolvimento de uma abordagem interdisciplinar aos problemay e ao desenvolvimento humano, aplicada a individuos, grupos ¢ comunidades. Isso, em esséncia, define 0 proprio surgimento di Psicologia Humanista em sua retomada dos valores renascentistas, com énfase na recuperagao da importancia do homem em seu tempoe contexto, valorizado em sua totalidade. Sim, quero a palavra Ultima que também é tao primeira que jé se confunde com a parte intangivel do real. Ainda tenho medo de me afastar da légica, porque caio no instintivo eno direto, e no futuro: ainvengao do hoje ¢ © meu Unico meio de instaurar o futuro. Clarice Lispector em sua Agua Viva parece traduzir de maneira simples e ainda assim magnifica a importancia de um livro como este, em que da palavra emerge a confirmagao do vivido em sua concretude atual e do transcendente como devir humano. De um ponto de vista estritamente pessoal, julgo imprescindivel também reverenciar 0 homem Mauro Amatuzzi, meu colega e parceiro num processo em que a cronologia do tempo é de menor importancia face a grandeza do inusitado, das vivéncias diversas, das contradigdes feitas de encontros e desencontros, da magia em momentos de descoberta académica. Em meio ao turbilhdo das pesquisas, dos relatorios, das reunides administrativas, sobrevive o aconchego de abragos essenciais, de olhares certeiros, a nos acalentar a certeza de que ainda nos importamos com o outro, este amigo que pode ainda ser cumplice nas horas, tantas vezes vazias e despidas de significados, em que o humano parece escapar de dentro de nossos papéis ¢ desempenhos. Vera Engler Cury O texto a seguir corresponde originalmente a uma palestra pronunciada na JV Jornada de Psicologia Humanista, promovida pelo Centro de Psicologia da Pessoa e pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, em agosto de 1988, ¢ depois publicada em Arquivos Brasileiros de Psicologia, 41, (4), pp. 88-95, set./nov. de 1989, com 0 titulo O significado da Psicologia Humanista, posicionamentos filoséficos implicitos. Ainda gosto bastante dele. Parece-me que ele aponta para a largueza do territério de uma Psicologia realmente Humana. Fiz pouquissimas modificagGes, somente para adaptar o texto ao novo titulo. Hoje creio que & melhor falarmos do Humanismo na Psicologia, do que da Psicologia Humanista. essencial do que quero dizer a respeito desse assunto pode ser colocado em algu- mas poucas proposigées. E a primeira é a inte: o homem nao é um “bicho que fala”, mas le ¢ a propria palavra, isto é, ele é palavra. Reen- tro aqui uma idéia que é tanto de Heidegger ymo de Buber: nao é a linguagem que se encontra homem, mas 0 homem que se encontra na lin- uagem. A segunda proposi¢ao é que isso nao é poesia” ou jogo de palavras, como talvez possa parecer, Trata-se de uma afirmagao muito precisa, jue nos coloca num outro ambito de considera- Ges, ou seja, que implica mudanga radical de pon- to de vista. E a terceira é justamente que essa 10 Mauro Martins Amatuzzi mudanga radical de ponto de vista 6 0 que mais caracteriza a con- tribuigao do humanismo para a psicologia. Nao se trata, com efeito, nem de uma mudanga de objeto, nem de uma mudanga de método, e nem mesmo, quem sabe, de uma mudanga tedrica. Trata-se na rea- lidade de uma mudanga na relagdo com o objeto. Essa mudanca 6 capaz de assumir em determinados momentos 0 mesmo método, s6 que num contexto onde o sentido global é outro, o que faz com que a visdo resultante (a teoria, nesse sentido) seja outra, mais abrangente, capaz de conter as vis6es anteriores, s6 que como parciais, ¢ reco- nhecidas como parciais. Nessa nova visio a teoria, alias, se torna ela mesma relativa: nao se trata mais de teorizar, como um fim. A teoria passa a ser ela também um momento de algo mais amplo, que 6 0 que afinal importa. E esse algo mais amplo é antes um compromisso que uma teoria. Uma das coisas que subjaz a essas proposigdes 6 que a consideracao do sentido é fundamental. Para compreender 0 ser humano, tenho que lidar com questées de sentido. A consideragdo do ser humano em termos de causa ¢ efeito, antecedente e conseqiiente, parte e todo, por mais cabivel, correta ou verdadeira que possa ser, nao da conta do que seja o ser humano como totalidade em movimento. Em outras palavras: posso explicar certas ocorréncias humanas ou comportamentos a partir de “causas” internas ou externas (motivagGes inconscientes ou configuragdes de estimulo, por exemplo), posso analisar relagdes de antecedente-conseqiiente (como por exemplo 0 efeito de uma recompensa), ou posso explicar certas coisas em fungao das relagdes parte-todo (como por exemplo quando digo que o modo de ser de uma pessoa é a repercussao individual de problemas ou situagées coletivas bem caracterizaveis). Posso ainda descrever como é que tudo isso se articula numa espécie de historia geral de conflitos e fantasias, e que se aplicaria a todas as pessoas ou a maioria (psicologia do desenvolvimento). Cada uma dessas coisas é valida e possivel, e de fato é feita, com muitas pesquisas, certamente. Mas nenhuma delas em separado, e nem todas somadas, dio conta do ser humano como totalidade em movimento. Algo fica faltando, e nao é algo que possa ser cumprido dentro de cada um daqueles enfoques. Nao é tanto que essas explicagdes estejam incompletas. Sim, até estdo, e haverd sempre mais a Por uma Psicologia Humana u pesquisar nessa linha. Mas a incompletude a que me refiro é de outra ordem. Talvez “explicagdes” dessa natureza nao bastem, e por mais que somemos explicagdes nao estaremos entendendo ainda o principal desafio que se coloca para nés face ao nosso viver: 0 que vamos fazer com nossa vida? Que sentido vamos dar a ela, ¢ de tal forma que nao nos isole de um sentido mais global? Sob esse enfoque o ser humano nos aparece nado como resultante de uma série de coisas, mas como, fundamentalmente, o _ iniciante de uma série de coisas, ¢ os desafios daquilo que ele deve criar no so respondiveis com explicagées daquele tipo. O homem 86 aparece naquilo que ele tem de mais proprio, com a questo do sentido, nio com a questao da causa explicativa. A relagao explicativa se refere ao homem como resultado, como repertorio, ou como recebido, e, portanto, em definitivo, ao homem como passado. Nao se refere ao homem atual, ao homem desafiado, ao homem tendo que responder e posicionar-se, ao homem presente (face a um futuro). Este homem atual, presente, desafiado, interpelado, em movimento, é 0 que encontra as questdes de sentido: essas so as quest6es presentes, que surpreendem o homem como existente (nado apenas como natureza, como diria Merleau-Ponty). Dizer que o homem é um “bicho que fala” (0 que equivale a dizer que é um “animal racional”) é ficar no ambito das explicagoes, e portanto, do homem como resultado. Mas isso nao é ainda o homem atual. S6 poderemos chegar a ele mudando 0 ponto de vista e assumindo as questées de sentido que definem sua atualidade. O que cle fala? O homem atual, presente, existente, € constituido pelas questdes de sentido. Ora, a palavra é exatamente a questio do Sentido. Por isso o homem atual se encontra na palavra, e nio o contrario. E na decifragao de suas questdes de sentido que o homem pode se instaurar em sua atualidade. Mas é preciso tomar cuidad essa decifragaéo pode ser vivida como uma redug&o ao esquema explicativo onde apenas encontraremos 0 homem-resultado, e nao o homem em sua atualidade. Isso, para Merleau-Ponty, seria permanecer no nivel da palavra secundaria, da fala inauténtica, do falar sobre, da fala sobre falas. A fala sobre falas é ainda um discurso No passado. A decifragao do sentido sé sera um discurso no presente fe for vivencial, experiencial, uma vivéncia do préprio sentido 12 Mauro Martins Amatuzzi criando novos sentidos. E enfrentando os desafios que vou decifrando os sentidos e criando novos sentidos. 4 decifracao dos sentidos que permanece no atual identifica-se com o enfrentamento dos desafios, e nao é apenas um estudo deles. O homem atual, portanto, encontra-se no assumir as questdes de sentido e isso significa uma reviravolta completa de perspectivas (do homem-resultado para 0 homem-atual). E é exatamente essa reviravolta que faz o sentido do humanismo na psicologia. Antes de passarmos para um outro ponto, gostaria de trazer aqui uma consideragao paralela que pode nos ajudar a compreender essa questo que acabo de formular. A diferenga que existe entre essas duas perspectivas é a mesma que existe na consideragao da cultura como resultado (ou como produto), e da cultura como ato cultural. Uma coisa é estudar os produtos culturais (objetos, maquinas, obras de arte, utensilios, ou outros produtos como a ciéncia, a religiao, ou as estruturas de parentesco ou estruturas de relagdes de trabalho etc.) de algum grupo social ou sociedade. Aqui estamos estudando a cultura de um povo como algo dado, e, portanto, acabado. Outra coisa completamente diferente (embora possa incluir a primeira) é ser agente cultural, produzir cultura, inserir-se num movimento vivo de produgao cultural. A diferenga entre essas duas coisas é clara. Ora, acontece que o termo “cultura” pode ser definido em uma dessas duas diregées, originando-se dai muita confusdo. A cultura que é vista pelo estudioso nao tem nada a ver coma cultura que é praticada pelo agente cultural. No primeiro caso temos um produto acabado e mais ou menos estatico: é a cultura como produto cultural. No segundo, temos a cultura como contetido de um movimento incessante, algo em constante mutagiio. No primeiro caso fazemos historia no sentido de retratar um passado (ou algo acabado), no segundo fazemos histéria no sentido de construira historia em curso. Ea historia que fazemos retratando s6 tem sentido em fungao da historia que estamos construindo. A cultura de um povo nao é algo feito, mas algo que se faz, e reduzir uma coisa 4 outra é, na realidade, esmagar o potencial criativo de um povo, e tentar estagnar um movimento, impedindo que esse povo enfrente seus verdadeiros desafios, A cultura ha que ser definida como um processo vivo e nao como um conjunto de produtos acabados. O ser humano tem que ser captado em seu movimento, € isso s6 pode ser feito movimentando-se, inserindo-se num Por uma Psicologia Humana 13 processo. O homem como resultado, ou a cultura como produto, nao sao ainda o homem atual ou a cultura que se faz. Acredito que 0 sentido do humanismo em psicologia é 0 de nos colocarmos na postura do atual, do presente, do atuante, do em curso; e todas as explicagées s6 terao valor como instrumentos para isso, mesmo que, como instrumentos, permanecam aquém dessa atualidade. Voltemo-nos agora para o Humanismo, e vejamos 0 que essa palayra nos sugere. Podemos encontra-la usada pelo menos de quatro modos diferentes em relagao a Psicologia. 1. No sentido estrito o Humanismo é um movimento cultural, europeu, tendo seus primérdios ja no século XIV, e que esteve intimamente ligado 4 Renascenga. Mas é talvez dai que 0 termo tenha se generalizado, podendo ser aplicado a qualquer filosofia que coloque o homem no centro de suas preocupagdes, ou como um adjetivo aplicavel a outros movimentos, como é 0 caso da “psicologia humanista” (ou do humanismo na psicologia). O movimento cultural da Renascenga precisa ser entendido em fungio de seu contexto. De algum modo ele aparece como uma espécie de reac&o contra um sobrenaturalismo medieval que naquela época significava um desprezo pelo que é humano: nada das coisas desta vida é importante a nado ser aquilo que aqui é uma aquisi¢ao de méritos para a vida futura, eterna, apds a morte. A vida presente, nesse sentido, nao é levada a sério em sua consisténcia propria, ndo tem valor nenhum em si mesma. O préprio homem, em si, em seu corpo, nao precisa ser cultivado, uma vez que seu destino é a morte; 0 importante é cuidar da alma imortal. As coisas do mundo sao transitérias e um cendrio passageiro para as coisas eternas, que s&o as que importam. A arte, a ciéncia, a politica, a beleza, a flexibilidade corporal nao so coisas que devam deter o interesse do sabio, mas sim, as coisas eternas, sobrenaturais, as virtudes da alma. A satide do corpo, a maturidade psicolégica nao sao importantes a nao ser como substrato minimo para as virtudes que nos preparam para a vida eterna. O humano, o temporal, este mundo sao assim 14 Mauro Martins Amatuzzi altamente desvalorizados em favor do espiritual, do eterno, do sobrenatural. A cultura antiga, representante desse humano, era, assim, mais ou menos desprezada, ou entao era lida como um simbolo ou apelo de algo outro, maior. Nao que isso tivesse caracterizado a Idade Média toda. Mas eraa forma como uma face do pensamento medieval foi lida a partir do ponto de vista da Renascenga e do Humanismo. Uma nova necessidade nos faz freqiientemente caricaturar a visdo anterior. Seja la como for, esse humanismo nasceu sob a bandeira da revalorizacao do humano, o que significava na pratica um retorno aos classicos, e 4 cultura paga greco-romana. O que é humano tem um valor em si mesmo, © nao como mero suporte ao sobrenatural; este mundo nao é apenas um cendrio provisério e sem importancia para algo que nao tem nada a ver com ele; 0 tempo, 0 que se constréi paulatinamente, o crescimento humano sio importantes (o tempo, e nao a eternidade, é onde se constroem as coisas, € estas coisas que construimos). O homem é corpo tanto quanto alma, e é como um todo que ele tem que ser cuidado. Virtude é 0 desenvolvimento das potencialidades humanas, endo algo acrescentado de fora. Para alguns isso representou uma rejeigao da visao teoldgica das coisas, e no século XX isso é representado pelo humanismo ateu (cujo exemplo mais contundente é Sartre). Para outros essa revalorizagao do humano, do mundo, do tempo nao se define por um posicionamento anti-religioso ou ateu. Existe todo um humanismo cristo segundo o qual é na trama deste mundo que realidades definitivas esto sendo construidas (e um exemplo eminente desse humanismo em nosso século é Teilhard de Chardin). De qualquer forma essa revalorizacaio do homem, das coisas do homem, da historia humana, daquilo que aqui efetivamente se faz, da atualidade do humano, nao se relaciona necessariamente com uma posicao religiosa ou anti-religiosa. O que polariza esse movimento é justamente uma volta a atualidade do humano, e um acreditar que esse é 0 caminho. 2or uma Psicologia Humana 15 2. Erich Fromm fala do humanismo nao como um movimento localizado na Europa do século XIV. Ele fala de uma tradigéio da ética humanista que encontra representantes em praticamente todas as épocas do pensamento ocidental. Ele proprio pretende ser um pensador que se insere nessa tradi¢aio. “Na tradigao da ética humanista”, diz ele, predomina a opiniao de que oconhecimento do homem éa base para o estabelecimento de normas e valores (1947, p. 31). “Normas e valores” aqui referem-se 4 quest’io do caminho, por onde vamos, que é a questéo do sentido. Na tradigao humanista essa questo se responde a partir de um conhecimento do homem. E Fromm continua: Os tratados de ética de Aristételes, Spinoza e Dewey [...] sao por isso, ao mesmo tempo, tratados de Psicologia (Id. ibid.). O equacionamento € 0 encaminhamento desses problemas sao ao mesmo tempo ética e psicologia. Etica, porque seu contetido € a questo do sentido, do por-onde-vamos; e psicologia, porque para isso nos debrugamos sobre o homem buscando um conhecimento de sua natureza. Um pouco antes Erich Fromm havia dito: Na ética humanista o bem éa afirmagao da vida, o desenvolvimento das capacidades do homem. A virtude Consiste em assumir-se a responsabilidade por sua prépria existéncia. O mal constitui a mutilagao das capacidades do homem; © vicio reside na irresponsabilidade perante si mesmo (Id. ibid., pp 27-8). Rogers e Maslow aproximam-se bastante de semelhantes concepgdes. No fundo existe uma crenca no homem, uma confianga no que nele se manifesta. A expressaio tedrica disso € a tendéncia atualizante de Rogers, ou o conceito de auto-atualizagao de Maslow. O que esté na raiz do humanismo nfo é, pois, apenas um postulado tedrico, ou uma hipétese, mas uma atitude concreta em favor do homem. Isso é mais fundamental que as teorias que a partir dai se constroem. Teorias diferentes sobre o homem podem ser consideradas humanistas. O que as une nfo € tanto que todas aceitem determinadas afirmagées, mas uma atitude. Por isso Fromm fala de uma tradigao ética: ha valores envolvidos, mais que afirmacgdes abstratas. Ha posicionamentos e compromissos, e nado 16 Mauro Martins Amatuzzi apenas teses cognitivas (isso nao quer dizer, é claro, que esses posicionamentos devam ser ingénuos: existe toda uma elaboragao critica posterior que tende a confirmé-los, € isso no proprio Erich Fromm). - André Amar, numa visao de conjunto da histéria da psicologia publicada num diciondrio de psicologia francés, situa quatro momentos dessa histéria. O da Psicologia Aumanista, que, na sua consideragao, é o que vem da Idade Média ou mesmo da Antigiiidade grega, e vai até o comeco da psicologia cientifica; caracteriza-se basicamente por um posicionamento ético, isto é, por uma ndo-dissociagdo entre uma pesquisa objetiva, digamos, e um posicionamento de valores: é a psicologia brotando do contexto de uma ética, de uma visao do sentido da existéncia. O segundo momento é 0 da psicologia cientifica.onde exatamente se da essa ruptura entre a objetividade cientifica e a ética. Ele situa depois, como terceiro e quarto momentos, a psicandlise e a Psicologia fenomenolégica, e neste ultimo, principalmente, comegam a reaparecer coisas do primeiro momento. E curioso notar que esse autor, sendo europeu, nao fala da psicologia humanista tal como esse conceito aparece nos Estados Unidos, como algo bem especifico, mais do que no sentido de Erich Fromm, inclusive. Sua classificagao sugere também que além de um posicionamento ético indissociavel, uma psicologia humanista implicaria uma. critica a atitude cientifica. Retomaremos a esse ponto. Vemos que esses trés sentidos de humanismo convergem. em seu denominador comum, apontam para o mesmo: ponto, tém o mesmo “sentido”. . Mas concentremo-nos agora, entdo, na psicologia humanista no sentido restrito e contemporanco do termo. E aqui dois livros que se tornaram classicos, por exemplo, Psicologia Existencial Humanista, de Thomas Greening, e A Psicologia do Ser, de Abraham Maslow. E 0 tempo ¢ a década de 1960 nos Estados Unidos. Tempo de guerra do Vietna; crise moral, de valores. O pais envolvido por uma guerra considerada absurda pelo povo americano. E esse Por uma Psicologia Humana 17 questionamento nao era apenas tedrico: teve inumerdaveis manifestagdes pessoais e coletivas, as quais certamente tiveram uma importancia para a retirada das tropas americanas do Vietna. Tudo isso representou um grande questionamento coletivo do sentido da presenga americana no mundo, Uma crise ética. Esta psicologia humanista surgiu como uma reagio, a partir da insatisfagao sentida face aos dois conjuntos tedricos mais importantes em psicologia: 0 behaviorismo e a psicandlise; bem como face a uma descrenca nas possibilidades da filosofia. Nao se tratava de negar as descobertas feitas no behaviorismo e na psicandlise, mas de um sentimento de que eles, permanecendo em suas perspectivas originais, nado traziam as respostas de que se precisava: o ser humano com seus questionamentos atuais nao estava 14, por mais validas que fossem as explicagdes ai dadas. Poderiamos dizer que essa psicologia, permanecendo nos quadros de sua ortodoxia, podia nos dizer como treinar um soldado, ou porque um soldado ficava perturbado quando voltava da guerra, mas nio era esse 0 problema do povo americano. O problema era qual o sentido da guerra, ¢ qual o sentido da vida e da morte (ou da minha vida e morte, ou de meu filho ou de meu marido). E aqui a psicologia tradicional nao ajudava muito. E tudo isso ' era urgente: os jovens estavam morrendo, ¢ 0 holocausto ja estava no horizonte. Quanto 4 filosofia, para Maslow pelo menos, ela aparecia como um conjunto de palavras apenas, sem nada de mais concreto. Quando o humanismo afeta a psicologia, entao, resulta dai nio ina teoria especifica, nem mesmo uma escola, mas sim um lugar ¢omum onde se encontram (ainda que com pensamentos diferentes) todos aqueles psicélogos insatisfeitos com a visio de homem " Implicita nas psicologias oficiais disponiveis. O rétulo especifico de icologia humanista é apenas um episddio, diria momentineo, de {go que tem um sentido maior: a presenca de uma atitude humanista interior da psicologia. Mauro Martins Amatizzi Penso que posso colocar esse sentido maior em quatro pontys: 1. A primeira parte do livro de Maslow tem por titulo exatamente “Uma jurisdigao mais ampla para a psicologia’, e os dois capitulos que compéem essa parte sfo: “Para uma Psicologia da satide”, e “O que a psicologia pode aprender com os existencialistas”. Trata-se, no fundo, de admitir quea psicologia possa trabalhar a questo dos fins, da sade, da auto-realizagao, € nao apenas dos meios, da doenga ou Jo ajustamento minimo. Mas isso tudo é aquest&o do “para onde vamos”. A psicologia nao pode ser apenas um conjunto de conhecimentos técnicos a servigo de qualquer finalidade; & enquanto toma para si também essa questiio que ela se fiz afinal uma ciéncia do homem, e nao antes. Isso tem a ver com a neutralidade ética da ciéncia coro alguma coisa a ser redimensionada (e acredito que essa questo nao se aplique apenas as ciéncias humanas). A ci€ncia sé é eticamente neutra formalmente, abstra itamente. O ato cientifico concreto nunca é neutro: ele se insere num contexto de sentido e serve a alguma direcao do caminher humano. Para nos convencermos disso, basta que consideremos os critérios de financiamento de pesquise, Mas essa no neutralidade vai mais longe e toca na propria questao do alcance do saber: aquilo que eu vejo depende do Ponto de vista a partir do qual me coloco para olhar. E so dentro de um posicionamento de compromisso com 0 se: humano como um todo (coisa que nao é nada abstrata, mas acarreta até posi¢des politicas) que meus olhos se abrer para determinados aspectos do ser humano, ou que me disponho a pesquisar determinados problemas e de um determinado modo. 2: Husserl foi um dos que iniciou um questionamento da aplicagao do método cientifico a realidade humana. Nao se nega a validade das conclusdes. Mas se discute 0 alcance delas. Aquilo que elas afirmam caracteriza o ser humano? Para Husserl, a originalidade da consciéncia fica fora do alcance do método das ciéncias naturais exatamente por sua realidade intencional (que sé é captada através da questo do sentido). Por uma Psicologia Humana 19 A atitude cientifica define um tipo de relagao (a relacdo objetificante) que ndo capta a pessoa atual mas apenas o ser humano como resultado. Para Buber, o centro da pessoa sO se revela no ato da relagdo. As afirmagées cientificas podem ser verdadeiras mas nao caracterizam aquilo que é especificamente humano. A maneira como costuma ser tratado o processo de comunicagao dentro de uma abordagem cientifica seria um exemplo interessante. O processo pode ser dividido em seis momentos: 1) o da mensagem intencional a ser comunicada; 2) o da codificagio da mensagem; 3) a comunicacio ou expressao propriamente dita; 4) a recep¢ao da comunicagao através das janelas sensoriais; 5) a decodificagdo no nivel central superior; e 6) a compreensdo da mensagem. Tenho seis coisas diferentes e bem especificas (¢ um distirbio de comunica¢ao pode ser situado em um desses seis estgios). Por mais util que possa ser tal esquema, em termos de compreensao do que vema ser a comunicacao ou mesmo 0 ato expressivo, nada de mais falso do que esse retrato. Para nao falar sendo de um aspecto, a propria mensagem depende dos Ppassos seguintes, neles se transforma, nao esté plenamente constituida independentemente deles. Ela s6 se torna 0 que é quando ja nao é mais pura mensagem intencional (mas ja & comunicagao, por exemplo). A ciéncia tradicional nao tem como lidar com isso. Um outro exemplo é 0 do gesto significativo: 0 dedo que aponta para a lua, por exemplo. Idiota é aquele que, quando aponto para a lua, olha para meu dedo. A esséncia de um gesto s6 ¢ dada fora dele. Olhando para o dedo, por mais que 0 analise e disseque cientificamente, nao chegarei a lua, e portanto, nem mesmo 4 realidade de minha mao atual como gesto, como presenga. Ora, o homem é essencialmente um gesto, em sua presenga ou em sua existéncia, Ele é um atribuidor de sentido, e é assim que cle constitui um mundo e se constitui a si mesmo na relagao com o mundo. Se separarmos as coisas, compartimentalizando-as, nao mais veremos a realidade significativa, a atual, 0 presente. Nada mais diferente de um movimento que um retrato, nada mais diferente de um ser vivo que um cadaver. 20 w Mauro Martins Amatuzzi A diferenga entre a pesquisa objetiva e a participante também ilustra a mesma questo. Nao se trata apenas de uma diferenga de método para se conseguir 0 mesmo resultado. O saber produzido é concretamente outro, o assunto pesquisado é outro, o possuidor do saber é outro. Trata-se de uma diferenga na forma de conceber a relacgao humana e 0 conhecimento. - Gosto de entender a atitude fenomenolégica por comparagao com a atitude ingénua ea critica. Segundo a atitude ingénua, existe um mundo independente, constituido por si mesmo, e como tal cognoscivel (e Maslow fica ainda nessa atitude, ao que parece; é o prego que ele paga por nao ter sido um pouco mais filésofo). J4 na atitude critica, sabemos que o que percebemos desse mundo depende de nossos referenciais. Costuma-se referir a Kant, com sua critica ao conhecimento, para 0 nascimento mais forte dessa atitude; é preciso relativizar 0 conhecimento e estudar os referenciais através dos quais ele se da. Creio que a atitude fenomenolégica vai além da critica, e eu a formularia assim: é sé na interagao que teremos 0 verdadeiro conhecimento. O conhecimento compée a interagao humana com o mundo, é um aspecto dela. Uma interagiio sem conhecimento é pobre e de um nivel inferior, e ilude se nao nos dermos conta disso. O humanismo em’ psicologia aponta para uma atitude fenomenolégica. - E so nessa postura totalmente diferente que se revela o homem no que ele tem de proprio, Aquilo que se revela ai é uma totalidade em movimento, uma criatividade, e nado completamente isolavel de totalidades mais abrangentes. 0 homem como pessoa atual é 0 homem como palavra, isto é, como abertura para algo outro, onde corpo e alma sao indissocidveis (nao podendo ser compreendidos um sem 0 outro); é ato e no resultado (isto é, existe na interagdocom © mundo e com os outros homens); é busca de sentido, atribuigao e comunicagio de sentido, criagéo de mais sentido. No fundo, a meu ver, a Ppresenga do Humanismo na Psicologia é a presenga de uma saudade. Saudade do homem atual, desafiado no presente em telagdo ao sentido de sua vida. Capitulo jammed pees Siléncio e Palavra Juntamente com a questo do sentido, temos também a questao da palavra, no menos importante para caracterizar oO humano, Nada entenderemos do “aparelho significatério” (expressdio que poderia substituir a de “aparelho psiquico”) sem levar em conta a intencionalidade ¢ a linguagem. Esse texto foi publicado originalmente em 1992, na revista. Estudos de Psicologia (PUC-Campinas), 3), pp. 77-96, com 0 titulo O siléncio e a palavra. Fago aqui pequenas alteragées de detalhes apenas para melhor expressar 0 que esta sendo exposto. No item III, quando se trata do secundario, houve modificagdes um pouco maiores, mas mesmo assim consistiram apenas em acréscimos de algumas poucas frases visando explicitar a relagao do tema com a psicologia e a psicoterapia. ste capitulo poderia ter o seguinte subtitulo: uma leitura de Merleau-Ponty a partir das preocupagdes de um psicoterapeuta. De , ele nao pretende reconstituir 0 pensamento © Merleau-Ponty em seu contexto proprio ea ir das questdes que ele se colocava. Mas visa jonder a uma pergunta como “em que esse fil6- nos faz pensar, a nds psicoterapeutas?”, ou que ele pode nos ajudar a pensar nossas pré- questdes?”. E claro que essa elaboracao pres- uma primeira leitura dos textos a partir da algumas pistas foram surgindo. Uma dessas 1s @ aidéia de siléncio, nao apenas como ausén- ruidos, mas como algo positivo e embriond- 2 Mauro Martins Amatuzzi tio no plano das significagdes. Nao pretendemos seguir tdas as pistas, mas comegaremos por esta. Essa maneira de ler um autor (j4 falecido) no é isenta de Tiscos e armadilhas, Contudo penso que poderemos evitd-las se levarrM0S em conta que as preocupages que nos guiam néo so necessariamente as do autor lido e que devemos tomar cuidado para nao misturar as'COisas, atribuindo a ele pensamentos que serao nossos, mesmo duando suscitados por ele. A pesquisa foi feita basicamente em quatro textos: Fenome/tlogia da Percepeao (FP), A Estrutura do Comportamento (EC), Sobre a Fenomenologia da Linguagem (FL), a Linguagem Indireta e as Vo2es do ‘Silencio (LIVS), os quais foram citados a partir da edigdio em portugues, se bem que algumas vezes a tradugio tenha sido modificada levar!do em conta 0 original francés. Vamos formular agora, a titulo de hipoteses, algumas afirmagdes que poderdo nos orientar no comeco dessa |¢itura. Veremos depois 0 que os textos nos dizem a respeito. Aplena expressividade ou nao da fala, ou seja, sua autenticidade, pode ser descrita a partir de sua relagdio como pré-verbal que a mobiliza. Este algo que a precede ¢ a mobiliza, posto que nao-verbal, pode ser denominado, numa aproximagio primeira, de siléncio. A fala é ruptura de um determinado siléncio. Do siléncio total do viver biolégico emerge uma regig® que vem a ser a inten¢Go significativa (ou intengiio de significar), E essa intengdo que remete a fala como a sua origem. Quando falamos de significado, referimo-nos, na realida(e, a0 aspecto conceitual, abstrato, de algo que & mais vasto e, er” sua concretude, envolve outros aspectos, pois é também sentin €nto, experiéncia de valor, desejo, intengaio. A maneira pela qual a fala se une a esse algo mais amplo 0 expressa e lhe da forma, é aquilo qu® the constitui sua significdncia, ou significatividade, digamos assim. Uma fala ser4 tanto mais significativa, quanto mais estiver diretamente conectada com essa porgio emergente de siléncio» (Ue coloca o falante face a um mundo novo. Prefiro aqui o t@rmo cancia, ao invés de significagiio, porque este ultimo é ainda limitado ao aspecto conceitual daquilo que quero dizer. Ao falar> 40 apenas faco signos a partir de uma intengao ja pronta, Na verdade a Por uma Psicologia Humana 23 fala auténtica decide e desencadeia algo. Ela nao apenas traduz, mas cumpre, da andamento a uma intengdo, tornando-a, de certa forma, passado como mera intengiio, e dando origem a novas intengdes no interior de um movimento. De que se trata, na realidade? Que siléncio é esse e como ele germina num falar? Nao é a esse siléncio que importa chegar no pro- cesso terapéutico, para que ele possa ser falado e assim desencadear o Viver criativo? Da fala ao siléncio 1. Eis como Merleau-Ponty fala desse siléncio: Perdemos a consciéncia do que ha de contingente na expressao e na comunicagao, seja na crianca que aprende a falar, sejano escritor que diz e pensa pela primeira vez alguma coisa, finalmente em todos aqueles que transformam em palavras um certo sil&ncio (FP, p. 194). A crianga que aprende a falar nao apenas incorpora signos Novos ao seu repertério: ela tem acesso a um novo modo de tomunicagao e de relacdo com o mundo. Esse exemplo vem ao lado daquele do escritor quando diz e pensa pela primeira vez alguma Gisa, o que é diferente de simplesmente repetir o ja pensado ou de fier um novo arranjo, mas que, na verdade, nada cria de novo. Trata-se sempre do acesso primeiro 4 palavra. E mesmo “quando usamos para isso palavras j4 conhecidas, se realmente #slamos dizendo algo pela primeira vez, ¢ assim criando para nos ‘Ugnificados, émais verdade dizer que a fala contribui para modificar sentido comum das palavras, do que dizer que ela é constituida por ws sentidos comuns (FP, p. 190). Quando a fala ¢ original cla faz evoluir a propria lingua. Esses is casos de acesso a palavra (0 da crianga e do escritor) sdo slamente exemplos de todos aqueles que ‘ransformam em palavras certo siléncio. Um certo siléncio. Nao todo siléncio, nem quer siléncio. Um certo. Perdemos consciéncia do que ha de ie € novo no ato realmente expressivo. 24 Mauro Martins Amatuzzi E logo em seguida Merleau-Ponty acrescenta: Nossa vista sobre o homem permaneceré superficial enquanto nao remontarmos a esta origem, enquanto nao encontrarmos, sob o barulho das palavras, © siléncio primordial, enquanto nao descrevermos o gesto que rompe esse siléncio (FP, p. 194). O siléncio primordial é, por assim dizer, a alma da palavra pronunciada, é aquilo que se concretiza e adquire sentido no mundo com 0 discurso. A ruptura do siléncio que da origem 4 fala nao é propriamente a eliminagao do siléncio, mas uma realizagao dele. _ _ 2.Merleau-Ponty da, dentre outros, os seguintes exemplos da fala originaria: a do apaixonado que descobre seu ‘sentimento, a do escritor e do fildsofo que despertam a experiéncia primordial anterior as tradigdes (FP, p. 189). Nesses exemplos 0 siléncio pré-verbal que mobiliza e dé vida a fala é identificado como o sentimento que o apaixonado descobre (tevela-percebe) e a experiéncia primordial (anterior as tradigées) que 0 escritor ou filésofo despertam (acordam, trazem a vida ou 4 consciéncia). O sentimento preexistia, mas quando descoberto ele adquire um estatuto existencial novo. A esta luz, antes de ser pronunciado, ele era um pré-sentimento. S6 agora ele é assumido como tal, com esse sentido. A experiéncia primordial preexistia, mas s6 quando desperta é que ela tem acesso a um outro nivel e se realiza no compromisso da pessoa. S6 quando pronunciados é que sentimento e experiéncia adquirem sua realidade determinada e plena. Descobrir 0 sentimento e despertar a experiéncia primordial s4io também formas de romper 0 siléncio. Quando rompido o siléncio se revela pois como sentimento ou experiéncia. Nao como conceito ou idéia. Estes mais 0 exprimem posteriormente do que o constituem. 3. O siléncio esta para a fala assim como a inspiracdo esta para a obra de arte. A inspiragao antes da obra é uma inquietagao apenas, um determinado estado de procura, e o artista s6 sabe definitivamente © que ele queria pintar depois do quadro pronto. A inspiragao o guia, mas nao é um quadro interior. O pintar é 0 ato criativo,O artista sé tem um meio de se representar a obra na qual trabalha: é necessdrio que ele a faca (FP, p. 191). E ainda: A expressao estética confere ao que ela exprime a existéncia em si (FP, p. 193). Por uma Psicologia Humana 25 Com a fala auténtica ocorre algo semelhante: A fala, naquele que fala, nao traduz um pensamento ja feito, mas o cumpre (FP, p. 189). Ou: O prdprio sujeito pensante esta numa espécie de ignorncia de seus pensamentos enquanto nao os formulou para si ou mesmo falou e escreveu, como mostra o exemplo de tantos escritores que comegam um livro sem saber ao certo © que escreverao nele (FP, p. 188). 4. Dois tipos de expressdo descrevem esse siléncio: 1. um certo vazio da consciéncia (FP, p. 194); um voto (desejo) instanténeo (FP, p. 194); um vazio determinado (FL, p. 134); um certo vazio (FL, p. 134); uma certa caréncia que procura se preencher (FL, p. 194); ¢ 2 intengao significativa nova (FP, p. 194); intengao de falar (FP, p. 185); intengo significativa em estado nascente (FP, p. 20 intengao significativa que poe em movimento a fala (FP, p. 194). Eis alguns textos onde aparecem essas expressdes: Para o sujeito falante exprimir é tomar consciéncia; nao ‘exprime somente para os outros, exprime para que ele proprio saiba 0 que visa. Se a palavra quer encarnar uma intengo significativa, que 6 apenas um certo vazio, nao é somente para recriar em outrem a mesma falta, a mesma privagio, mas ainda para saber de que ha falta ¢ privacio. [...] Para a intengéo significativa, voto mudo, trata-se de realizar um certo arranjo dos instrumentos jé significantes ou das significacées j4 falantes [...] suscitando no ouvinte o pressentimento de uma significacao outra e nova, e, inversamente, promovendo naquele que fala ou escreve a ancoragem da significacao inédita nas significacées jA disponiveis. [...] Exprimo quando, utilizando todos esses instrumentos jé falantes, faco-os dizer alguma coisa que nunca haviam dito (FL, pp. 134-135). A intengao significativa é mais de ordem dinamica, do desejo, lo que de ordem cognitiva, conceitual. E a fala é primeiramente o dlesencadeamento de algo dessa ordem dinémica, mesmo que possam esultar dai pensamentos. * A intencao significativa em mim (como também no ouvinte que a reencontra ao me escutar), mesmo que deva em seguida frutificar em “pensamentos”, no momento é 26 27 Mauro Martins Amatuzzi ior uma Psicologia Humana apenas um vazio determinado a ser preenchido pelas palavras 0 excesso do que quero dizer sobre aquilo que jé foi dito (FL, p. 134) (destaque do autor). Ena Fe enomenologia da Percepgao: Da mesma forma que a intencéo significati mos Int ignificativa que ih ee pati do Outro nao é um pensamento explicte, jue icla que procura se preencher, da mesma nee retomada por mim desta intengao nao é uma operagao am Pensamento, mas uma modulacao sincrénica de minha ncia, uma transformagio de meu ser (FP, p, 194), 5. O que precede a fala origi i ‘a original e a habita dando-lhe vi mk ae Merleau-Ponty, nao € O pensamento, Este ee sal i , ie aa verdadeiramente © que pensamos quando o dizemos, O que htsee i: € pois uma mobilizacéo Para falar (intencao significativa ‘0 nascente, desejo, caréncia, vazio, siléncio primordial) ie intengao de falar sé se encontra numa experiéncia "como a ebulicdo de um liquido, quando na densidade do ser, zonas de vazio se it (FP. p 208) constituem e se deslocam para fora uma capacidade de auto-ultrapassamento, A ; : ns Al falante) é aquela na qual a intengio significativa se ones ra em estado nascente. Aqui a existéncia se polariza bets eer “ nao pode ser definido Por nenhum © natural. [...] Esta abertur: ; é ‘a sempre recriad; [. rt Pr jada nia Plenitude do ser & o que condiciona a primeira palavra da como a dos conceitos (FP, p. 207). E em outro lugar: E necessério pois reconhecer como fato ulti Poténcia aberta e indefinida de significar, ito gone tempo de captar e de comunicar um sentido, pela qual ohomem fe transcende em diregdo a um comportamento novo, ou em regio a0 outro, ou em diregio a seu préprio pensam, através de seu corpo e de sua palavra (FP, p. 204), oe 6. Recuamos pois da fala auténtica para a intengao de falar que ¢um certo vazio, um desejo, um siléncio determinado, que por sua vez emerge da natureza ou do passado como um salto qualitativo pressupondo uma abertura na propria natureza. E pela fala original que o homem se transcende a si mesmo em dire¢4o a um sentido Hoyo. Isso nao é um mero movimento cognitivo. E um movimento existencial. Reconhecemos ai alguns niveis: * oda fala auténtica; * o do sentimento ou experiéncia nomeados pela fala; * o da intengdo significativa na fala; * o da intengdo significativa em estado nascente, caréncia, vazio, siléncio determinado; e * oda abertura ou poténcia aberta e indefinida de significar ou de se transcender. Na verdade 6€ dificil distinguir todos esses niveis. B nossa Onsideracao que incide em separado sobre “partes” de um processo em que concretamente eles estdo interpenetrados. Se por vezes Sonseguimos separar um momento como anterior a outro, sera mais Gomo momento de gestagao e nao propriamente algo outro. * » Do siléncio a fala 1. No caminho de volta do siléncio a fala um primeiro aspecto é 0 mistério da expressao. Merleau-Ponty usa expressdes como “lei mnhecida” e “milagre”. Em nossa arqueologia fenomenoldgica, ndo da fala chegamos ao siléncio ¢ suas raizes, por camadas que se fam. E podemos voltar. Em tudo isso descrevemos processos, € as descrigdes tém certamente um referente identificdvel. Mas, em itivo, ndo explicamos 0 ato expressivo. A intengao significativa nova s6 se reconhece recobrindo-se de significagées ja disponiveis, resultadas de atos de expressio anteriores. As significacées disponiveis se entrelacam repentinamente segundo uma lei desconhecida, e de uma vez por todas um novo ser cultural comecou a existir. O pensamento e a expressao constituem-se pois 28 simultaneamente, quando nossa aquisicao cultural se mobiliza a servigo desta lei desconhecida, como nosso corpo de Fepente se presta a uma gesto novo (FP, p. 194). E uma capacidade do corpo humano apropriar-se, em uma série indefinida de atos descontinuos, de nticleos significativos que ultrapassam e transfiguram seus Poderes naturais. Este ato de transcendéncia se encontra Primeiramente na aquisigao de um comportamento, depois na comunicagéo muda do gesto: & pela mesma poténcia que o Corpo tanto se abre a uma conduta Nova quanto a faz compreender a testemunhas exteriores. Nos dois casos um sistema de Poderes definidos de repente se decentra, se rompe e se organiza sob uma lei desconhecida, tanto ao sujeito quanto a testemunha exterior, e que se revelaa eles nesse exato momento [...]. A linguagem coloca o mesmo problema: uma contragao da garganta, uma emissio sibilante de ar entre a lingua e os dentes, uma certa maneira de movimentar nosso corpo se deixa de repente investir de um sentido figurado, © 0 significam fora de nds. Isto ndo 6 nem mais nem menos mmilagroso que a emergéncia do-amor no desejo, ou do gesto nos movimentos desordenados do comeco da vida (FP, p. 204), 2. Como esta lei desconhecida atua? Ela trabalha sobre significages disponiveis fornecidas pela cultura, (que abstratamente consideradas constituem a lingua como parte principal de um sistema de signos), reorganiza os signos em fungao de uma intengao significativa nova, e os fazem dizer algo que nunca antes disseram. E € por isso que as falas realmente expressivas acabam contribuindo para a propria evolugio da lingua. Significagdes disponiveis, isto é, atos de expressio anteriores, estabelecem entre os sujeitos falantes um mundo comum ao qual a palavra tual e nova se refere [...]. O sentido da fala nada mais é do que 0 modo como ela maneja este mundo linguistico ou como ela modula sobre este teclado de significagées adquiridas (FP, p. 197). E como foram adquiridas essas significagdes? Como todos os gestos significativos que langam o ser humano no nivel propriamente humano: um comportamento novo (de outra ordem de complexidade), um gesto mudo, a linguagem, como vimos no texto anterior (FP, p. 204). Mauro Martins Amatuzzi Poruma Psicologia Humana 29 (As significagées se tornam disponiveis) quando, em seu tempo, foram instituidas como significagses a que posso recorrer, como significagdes que tenho — e o foram por uma operacao expressiva do mesmo tipo. [...] Exprimo quando, utilizando todos esses instrumentos ja falantes, fago-os dizer alguma coisa que nunca haviam dito (FL, p. 135; cf. também FL, p. 136, e FP, p. 207). 3. E importante ressaltar aqui o condicionamento que a lingua iisponivel representa, para que possamos depois ultrapassa-lo na ira expressdo. - en traz consigo uma atitude, um determinado modo de se Welacionar com o mundo, e suas palavras, antes de carregarem um onceito abstrato, trazem uma significagao emocional presa a elas, tudo isso resultando da sedimentagao dos atos expressivos que vém Ponstituir o conjunto de significages disponiveis. é (As diferencas entre as diversas linguas) no representam diferentes convengées arbitrérias para exprimir 0 mesmo 7 pensamento, mas sim diferentes maneiras parao corpo humano a de celebrar o mundo e finalmente de o viver (FP, p. 198). hi Ao vivermos numa lingua, portanto, somos subsidiérios de li experiéncia acumulada que a constitui. Isso nada mais é que a munidade cultural na qual crescemos e vivemos e que identemente determina nossas condutas. : Isso que estamos aqui chamando de contetido de uma lingua, modo de ser sedimentado por ela (pela comunidade na qual 0s), pode se verificar até mesmo no nivel das palavras. Sem ida as palavras denunciam um modo de recortar 0 mundo e ito de se comportar. Merleau-Ponty fala da atitude que elas m e de seu significado gestual, linguageiro, que capta uma cia emocional. E é sobre esse significado gestual que se ri posteriormente um significado conceitual (cf. FP, p. 190, 197). A lingua transmite diretamente, concretiza, um modo de se wlonar com o mundo (FP, p. 201). F 4, Mas ao mesmo tempo que isso se relaciona com um. estilo de (a conduta ai sedimentada), relaciona-se também com estilos ais, Temos no sé 0 estilo de nossa lingua, mas também nossos i proprios. Quanto a isso podemos dizer que cada um tem sua 30. Mauro Martins Amatuzz) lingus Opri: i. ites i Pee Constréi, com a forma que usa sua lingua, seu jeito 0 é ‘ 2 it Solaris Portugués) de falar, o que equivale a dizer, sey € se relacionar ou de construi ’ ; ruir 0 mundo. E t i um segundo nivel de determinacd nis anenae ad , Tmina¢ao: somos tributarios na comunidade onde fomo: iali rice a tein 's SOcializados, m: é Oprii meee maa ', Mas também de nossa Propria maneira de existir desse pensamento, i Sotaque do flésofo (FP, p. 190), roeunde © tom, 0 sedimentagao e uma experiéncia adquirida. No caminho de volta do siléncio a fala, indivi, i ie a de ee discurso expressivo), ou de um pensamento — ‘versal (no plano de um discur: Sfico) ‘ 80 filos6fico), para alé i = , lém dos estilos, é Preciso que passemos pela concretude de uma determinada expressio, | Se houver um pensamento universal (para além dos estilos), sera retomando 7 esfor¢go ; expressdo e tilos), id. fe d Si comunicagao tal como foi te r ingua que o entado por uma [i obteremos, assumindo todos os equivocos, todos os ; ; deslizamentos de sentido le uma tradigao lingiiisti ido de q a tradi i igao lingiiistica é - m 2 te ita e 198 lustamente medem sua poténcia de expressao Hira Psicologia Humana 31 ____ Mas isso que vale para a filosofia (sé chego ao universal passando jielo particular), vale também para o esforgo de compreensiio profunda deuma pessoa em psicoterapia. O desejo sé aparece nas entrelinhas do eatilo, ___ Oque importa no momento, nessa viagem de volta do siléncio 4 fila, 6 nos darmos conta de como ele vai se revestindo de nificados, passando pela cultura e pela histéria pessoal. Mas se estamos considerando a fala auténtica, a expressao nao termina ai. 5. A expressao é, na verdade, um tatear em torno de algo que lente, mas sem se apropriar e conter plenamente. Isso sera ante na hora de pensarmos a compreensao. Por ora fiquemos algumas indicagdes de Merleau-Ponty. Se ela (a lingua) quer dizer e diz alguma coisa, nao é porque cada signo veicule uma significagao que lhe pertenceria, mas __ porque todos juntos aludem a uma significagao, sempre em Sursis se considerados um a um, e em rumo a qual eu os _ultrapasso sem que nunca a contenham (FL, p. 132). No que se refere a linguagem, se o signo se torna Significante por sua relagao lateral a outros, o sentido sé urge entao a intersecgao e como no intervalo das palavras (LIVS, p. 143). O sentido, quando é novo, nfo est contido pelas palavras, 6 indicado por elas, e isso mesmo representa 0 caminhar do ano. O que queremos dizer [...] nao é sendo o excesso do que sobre 0 que jd foi dito (LIVS, p. 175). 6, Finalmente a “determinagao” ultima da fala auténtica. O que ienta ela? O que ela faz, ou cumpre? Que exprime pois a linguagem se nao exprime pensamentos? Elarepresenta, ou melhor ela é.a tomada de posicao do sujeito no mundo de suas significacées [...]. O gesto fonético realiza, para o Sujeito falante e para aqueles que o escutam, uma certa ‘estruturacao da experiéncia, uma certa modulagao da existéncia, @xatamente como um comportamento do meu corpo investe para mim e para o outro os objetos que me cercam de uma certa lignificacao (FP, pp. 203-4). 32 Mauro Martins Amatuzz) Psicologia Humana (Na poténcia aberta de significar) o homem se transcende em diregao a um comportamento novo ou em diregdo ao outro ou em direcao a seu préprio pensamento através de seu corpo e de sua palavra (FP, p. 204). nee fi . . fala da crianca que pronuncia sua primeira palavra, a do Tomada de posigao do sujeito, estruturagio da experiéncia, nado que descobre seu sentimento, a do “primeiro modulagao da existéncia, transcendéncia em direcéio ao comportamento, homem que falou”, a do escritor e do filésofo que despertam a novo. Essas afirmagdes mostram o carter existencial, comprometedor, periéncia primordial anterior as tradigdes (FP, p. 189, nt.5). envolvente, decisério da verdadcira expresso. Dizer realmente algo ¢ tomar posi¢ao, e com isso entrar num mundo novo, pelo menos no que diz respeito a um aspecto particular. A fala auténtica depende mais do “eu posso”, do que do “eu sei”, diz também Merleau-Ponty (FL, p. 133), Com a fala auténtica o homem, apoiado no contexto cultural e em sua propria experiéncia pessoal, os transforma e os leva adiante, No caminho de volta do siléncio a fala, encontramos pois: * uma lei desconhecida; * significagdes disponiveis que esto no sujeito como uma possibilidade corporal ou esséncias emocionais; * aquilo que a lingua usada contém como atitude recebida ou modo de ser (a presenga da cultura); * os estilos pessoais ou modos de ser da experiéncia pessoal, também como recebidos e constituintes da expressio (a pre- senga da histéria pessoal); * a expresso como um tatear em torno de um sentido nunca plenamente contido em palavras; e, finalmente * uma tomada de posigao do sujeito (que transfigura todas as ), cada fala que rompe o siléncio langando o falante numa nova Merleau-Ponty chama a isso fala auténtica ou originaria. E dentre os exemplos possiveis Sfio essas falas assim densas que se identificam com o ito; nesses momentos expressivos a fala ndo traduz um lento ja feito, mas o cumpre (FP, p. 189), ela é a efetuagéo do ento, como também diz Merleau-Ponty, e é por isso que s6 sei 0 (em se tratando de pensamento novo, nascente) quando o issim como um artista sé sabe o que quer pintar depois que 0 quadro, ou um poeta 86 sabe, em definitivo, o que quer dizer, jue escreveu o poema. E essa fala expressao origindria que i desejada mobilizagao do ser em diregao a sentidos novos esta no secundario, e com ela seu existir. A pessoa nao encontra a, E as questdes que nos ocorrem agora sao: 4. 0 que é exatamente essa expressio segunda (que nao cumpre tudo o que a originaria cumpre), e como ela se tornou possivel? . 'b. podemos separar claramente dois tipos de fala, uma auténtica € outra nao, ou trata-se mais de duas dimensGes aparentes em qualquer fala, de forma que possamos encontrar um solo de autenticidade mesmo em uma expressao segunda? determinagdes anteriores). Ocorre que a maioria de nossas falas ndio tem essa densidade da fala verdadeiramente expressiva e nova. Como se introduz ai no mundo de nossa linguagem a fala banal, corriqueira, empirica, mais t ou menos repetitiva, que no acrescenta nada nem langa a pessoa em um compromisso novo? 2. Vejamos entao como Merleau-Ponty introduz a distingao. $ noe wimeiro texto ¢ o seguinte: O surgimento do secundario 1. Tudo 0 que dissemos até agora refere-se a fala auténtica, aos momentos realmente expressivos da fala: a primeira fala pronunciada com sentido, cada fala onde um novo sentido se cria ou esta se Ha lugar, é claro, para se distinguir uma fala auténtica, que formula pela primeira vez, e uma expressao segunda, uma fala Sobre falas, na qual consiste o ordindrio da linguagem empirica. Somente a primeira é idéntica ao pensamento (FP, p. 189, nt. 4). 34 Mauro Martins Amatuzz| -- Nesse texto 0 que se opée a fala auténtica é uma expressio segunda. Em outros lugares aparecem termos como fala origindria opondo-se a uma fala derivada. A expressio pode ser segunda, ou derivada em relagao a uma primeira. A palavra constituida, tal como funciona na vida cotidiana, sup6e preenchido o passo decisivo da expressio 3 (FP, p. 194), portuna chamada de um signo pré-estabelecido, ndo o é Certamente podemos imaginar um homem que sé falasse iara.a linguagem auténtica. E, como disse Mallarmé, amoeda automaticamente; mas isso seria ou efeito de danos cerebrais, como ta que se passa em siléncio de mao Th mee bbe aha no caso dos afasicos, ou entao nao seria uma lin: iguagem propriamente Yerdadeira palavra, aquela que significa, que tor dita, como € 0 caso de macacos que “aprendem a falar”, ou de Evo na coisa, nao é, aos olhos do uso empirico, sendo perturbagdes genéticas muito severas e no entanto compativeis como. cio, visto que nao vai até o nome comum. A linguagem é uso mais ou menos mecanico de algumas poucas palavras. A r si mesma obliqua e auténoma e, se Ihe ocorre significar linguagem segunda, contudo, ao contrario disso tudo, é comum em tamente um pensamento ou uma coisa, trata-se apenas nossa vida. E nossa linguagem ordindria, corriqueira, pela qual uma capacidade secundaria, derivada de sua vida interior. designamos objetos e interagimos no cotidiano. Estamos falando fato 0 escritor, como 0 tecelao, trabalha as avessas: pois de uma possibilidade comum, nao extraordinaria, de quem quer jocupa-se unicamente com a linguagem € ae trilha que tenha tido acesso a fala. j-se de repente rodeado de sentido (LIVS, p. 145). Uma outra caracteristica dessas falas é que elas, ainda que as vezes complexas, na verdade nao trazem nada de novo, Sao falas que nao exigem de nds nenhum verdadeiro esforgo de expressio (FP, p. 194), Passem-me 0 sal, vou comprar pao, que horas s40?, quanto custa? ~ sao exemplos de falas de manutengao, e sua compreensiio é imediata por qualquer pessoa que seja da mesma comunidade lingiiistica. Sio instrumentos de nosso cotidiano viver, do manuseio social de objetos em fungao de nossas necessidades. E sio Jalas sobre falas porque correspondem ao uso derivado de palavras que originariamente na comunidade foram expressivas, a servigo de necessidades também derivadas, nesse sentido que nao procuram romper algum siléncio primordial. Com elas ndo ha necessidade de significagdes novas, Merleau-Ponty as chama de falas banais. lotemos, de passagem, que aqui surgem dois sentidos novos de 0”. O primeiro é0 da linguagem empirica, que significa mas nao gente um sentido novo. E 0 siléncio com que passamos para los a moeda conhecida e gasta. Outro ¢ 0 siléncio da verdadeira porque ao tornar presente um sentido novo ela nao significa nomes comuns. E obliqua, o sentido novo surge nas as, € por isso mesmo esta fala faz evoluir a lingua. Mas como se forma essa expresso segunda, esse uso significagdes disponiveis, como uma fortuna adquirida. A ir destas aquisig6es, outros atos de expressao auténtica Vivemos num mundo onde a palavra esta instituida. Para 1 ee vse (FF. p.207) todas essas falas banais possuimos em nés significagdes j4 formadas. Elas somente suscitam em nds pensamentos segundos; e estes, por sua vez, se traduzem em outras tantas Palavras que no exigem de nés nenhum esforco verdadeiro de expresso, e nao pedem de nossos ouvintes nenhum esforgo de compreensao (FP, p. 194). § expressOes originais se sedimentam em aquisi¢gdes , significagdes disponiveis, as quais poderao ser retomadas juagem empirica derivada (expressio segunda), ou entdo ntalizando expressGes novas onde havera, neste caso, uma agao do sentido dos instrumentos culturais. 36 Mauro Martins Amatuzzi A palavra (fala) enquanto distinta da lingua, é esse momento em que a intengao significativa, ainda muda e toda em ato, revela-se capaz de incorporar-se a cultura, minha e de outro, capaz de me formar ede forméa-lo, transformando © sentido dos instrumentos culturais. Por sua vez torna-se “disponivel” porque, retrospectivamente, nos daa ilusio de que estava contida nas significacdes ja disponiveis, quando na verdade, por uma espécie de astiicia ela as esposara apenas Para infundir-Ihes uma nova vida (FL, p. 136). A expresso segunda, seja no sentido da linguagem empirica ordindria pela qual prosseguimos nosso cotidiano, seja no sentido de uma fala que de fato nao cria um sentido novo (mesmo quando as vezes 0 pretenda, como é 0 caso do discurso circular da pessoa que Procura terapia), 6 uma possibilidade que se insere na propria natureza da linguagem do homem. E, finalmente, para alargarmos um pouco mais o Ambito de possibilidades dessa expressao segunda, citemos dois textos, um anterior e outro posterior a “Fenomenologia da Percepcao”. No primeiro, para elucidar a questiio das telages alma/corpo, Merleau-Ponty evoca as relagdes conceito/palavra. Nos dois casos nao podemos separar os dois termos como se fossem duas coisas ou substancias. Eles se unem naquilo que é 0 concreto: 0 comportamento humano (para os termos alma/corpo), e a fala viva (para os termos conceito/palavra). Esse concreto é a operagéo constituinte na qual percebemos depois os dois termos como “produtos separados”. Assim sendo, cada grau de complexidade do comportamento humano (operagaio constituinte do corpo/alma) seria corpo em relagao ao grau mais complexo, e alma em relaco ao menos complexo, assim como cada fala efetiva (operagiio constituinte do conceito/ palavra) é palavra (vocabulo) em relacao a falas posteriores e conceito (pensamento) em relacao a falas anteriores. Os dois pares sao inseparaveis, mas os distinguimos para compreender o proprio dinamismo da operacdo em questao (0 comportamento ou a fala). O corpo em geral, assim como a palavra (vocabulo), seria o adquirido; e a alma em geral, assim como 0 conceito (pensamento), seria 0 sentido novo que se instaura. Um nao vive sem 0 outro, mas nao so duas operagdes nem duas coisas, mas dois momentos de nossa consideragio, necessarios para compreender a cologia Humana. dade da operagao. Nesse contexto a expressao “linguagem ’ aparece significando a materialidade das palavras, por iO 40 conceito/pensamento que seria o sentido. A “fala viva” e ‘4 0S reine. Ai o sentido novo adquire corpo e se tora entdio um ido, disponivel para operagées ulteriores. Pode-se certamente comparar as relacées entre a alma e ) Corpo comas relagées entre o conceito ea palavra vocabulo mot), mas com a condi¢ao de se perceber, sob esses pro- tos separados, a operacao constituinte que os une, e de se ncontrar, sob as linguagens empiricas, acompanhamento xterior ou vestimenta contingente do pensamento, a fala (parole), que 6, somente ela, a efetuagao do Pensamento, le 0 sentido se formula pela primeira vez, funda-se assim IMO sentido, e se torna disponivel para operagées ulteriores , p- 243). fala viva citada aqui ¢, evidentemente, a propria operagao \iva no sentido auténtico do termo. E a linguagem empirica mo 0 “corpo” dessa operagac “acompanhamento exterior ou fa contingente do pensamento”. E sob ela que devemos ta “fala viva” se quisermos chegar ao sentido. Aqui a empirica nao é, pois, sin6nimo ou exemplo de fala banal, go que esta presente também na fala auténtica. 1d na fala uma camada superficial que devemos ultrapassar legarmos ao sentido. O texto nao é completamente claro a mas creio podermos dizer que, desde que se trate de fala e ‘Mero automatismo ou rea¢do mecanica, podemos procurar ” que esta sob a “linguagem”. O tatear em tomo do sentido Se procura pode nos parecer linguagem empirica no sentido sio segunda, mas contém algo vivo, um sentido em », um siléncio que procura se romper. Ora, esse parece ser 0 ico da pessoa que procura terapia: seus falares parecem idos no secundario, um falar-sobre que nao tem desencadeado ‘mas que por ja ser um tatear (quando na terapia), aponta par outro texto é bem posterior 4 “Fenomenologia da 0”. Ele mostra que um discurso teérico, abstrato ou mesmo , pode ficar aquém do que pretende resolver se nao for truto da 38 Mauro Martins Amatuzz) sologia Humana elaboragao de uma experiéncia concreta, de um vivido que inclui fala secundaria nao cria significados novos mas apenas conhecimentos, experiéncias anteriores, valores. Ou seja, se no for Xecuta (ou aplica) significados antigos. Por isso ela nao exi- uma auténtica operagio expressiva. Nao basta que articule ge esforco especial de expressao nem de ere ce corretamente conceitos ou fatos observados, diriamos. E preciso que ma como outra sao imediatas (a fala _novalliextey tudo isso seja feito como auténtica ‘operacio expressiva. Sendo Bepressio € também de inate Data perde-se a relevancia, a significdncia. Ora, isso é também uma forma 4 fala secundaria é uma ee ain - ccna de secundario: ficar aquém dos problemas que se desejava resolver, ‘hatureza da linguagem humana. Falas origi por mais complexo que possa ser o discurso, Um discurso cientifico, dari te, e isso é necessario para a vida cotidiana; ou mesmo filoséfico, corretos do ponto de vista formal, podem ser pun ee a ossibilidade da linguagem existe também irrelevantes, nao significantes, inoperantes diretamente, ey causa ae da capacidade de significar (a fala) que ne Jancis a0 “dives? uso se ae secundarios. Até mesmo a ciéncia pode nao “dizer” nada. decorre de um distanciamento do siléncio originario: é pos- jivel falar assim distanciado de si, mas esta fala nao envolve em significagdes disponiveis que sdo depois usadas se- © que queremos dizer no se mostra, fora de toda palavra, como pura significacao. Nao é senao 0 excesso do que vivemos pessoa como um todo e nem a compromete; sobre o que ja foi dito. [..] (No campo do pensamento politico, uma fala sera inauténtica quando se esperaria, pelo contexto da por exemple) toda asioe todo oxrhrchneto do passam fel onde ela se enconra, que ela fosseplenamente expres conhectnarto tod sr noses penta oes es en ecatinno ingano pelo tio valores) e querem propor valores que nao tenham tomade ap cclibersdamente ou nao), ela deixa es Corpo em nossa histéria individual e coletiva, ou bem, o que di Gxpressiva, ¢, de fato, naquele momento, 0 suj no mesmo, escolher meios por um calculo e Por um proceder de um contato com seu proprio siléncio; : otc aio inteiramente técnico, acabam aquém dos problemas que + no entanto, por ser apesar de tudo expressiva (a sa desejavam resolver (LIVS, p. 175). plenamente), a fala secundaria, mesmo quando peer Haas, gs : 4 NORE) contém em sua concretude pistas dinamicas para o que pode- A possibilidade do secundério se instala até mesmo no interior popterm do discurso cientifico, filoséfico, politico ou técnico. E nesses casos Baz.2 Set tuténtico ou otiginel. © que determina isso, como sempre, é ele ndo ser uma operacao diretamente expressiva (ou seja, estar desconectado do siléncio que é © excesso do que vivemos sobre 0 que ja foi dito). Mas nesse préprio vazio, creio, podemos ver, dissimulado, 0 sopro da vida. As possibilidades do secundario nao se limitam pois as falas Corriqueiras necessarias em nosso cotidiano. Mas se esses alargamentos sao validos, entdio podemos ver, até mesmo sob a linguagem corriqueira, uma certa expressividade: a da manutenc¢io do vivo. E é por isso que embora “segunda”, Merleau-Ponty ainda usa 0 termo “expressao” quando fala de “expressdo segunda”, 5. Desses textos de Merleau-Ponty ficam pelo menos sugeridas algumas proposigées de interesse para 0 psicélogo terapeuta: Sreio que podemos acrescentar que a fala de uma pessoa que psicoterapia é um tatear em torno de um significado, um de expressdo, que no entanto nao chega a ser plenamente cedido. Esse tatear, contudo, aponta para uma diregdo que é 0 gnificado em gestacao. Cabe ao terapeuta favorecer essa , OU ao menos no atrapalha-la. Mas como? a. ee A a. ompreender profundamente significa ouvir o siléncio em qualquer fala. 40 Quando ouvido é que ele é realmente dito, e isso é umi mobilizagao do ser. Ouvir nao é um ato de inteligéncia ou do pensamento, mas um participagao existencial em um movimento de gestacio ou parto no plano do sentido. E pelo conjunto de minha resposta interativa qué mostro que ouvi. Ela sera a elaboragdo de meu siléncio face ao outro que me dirige a palavra. Creio que os textos de Merleau-Ponty apontam para isso. 1. A compreensiao vai além dos significados ja conhecidos dos instrumentos falantes, ou seja, dos termos usados. Ela atinge uma fonte, o centro do discurso, um sentido novo. Com o exemplo da compreensio de um texto filoséfico, ele escreve: qui que aparece aquela nota de rodapé em que Mae compreensio sO se aplica & fala auténtica. Nas falas nfio ha necessidade de um esforgo de compreensao. & verdade que em expressies segundas podemos encontrar m nticleo de autenticidade, isso que ele diz da compreensio da ica se aplica pelo menos em parte 4 compreensao de qualquer 0 que o que muda, no caso da pessoa em terapia que tenta se mas de fato nao o consegue de forma satisfatori & que os ypontam para um centro realmente, mas eles nao so ainda ”, e por isso a expressiio nao € completa. : Um outro texto, também sugestivo, nos diz que a i oua discurso auténtico é como um “encantamento”. Somos ! pelo discurso, sentimos sua necessidade, embora nao prever onde ele vai chegar. Nem o sujeito falante pensa fala, nem o ouvinte pensa no que est ouvindo. oO pensar do eu proprio falar, e o do ouvinte, seu compreender. S6 depois, do discurso, quando o ouvinte acorda, por assim dizer, é que ir pensamentos sobre 0 discurso. O fato é que temos o poder de compreender para além do que pensamos espontaneamente. Alguém sé pode nos falar numa linguagem que j4 compreendamos: cada palavra de um texto dificil desperta em nés pensamentos que nos Pertenciam antes, mas essas significagdes se enlacam as vezes num pensamento novo que as remaneja totalmente; somos. entao transportados ao centro do livro, reencontramos a fonte (FP, p. 189). “O orador nao pensa antes de falar, nem mesmo enquanto \, sua fala é seu pensamento. Da mesma forma o scent © concebe a propésito dos signos. O “pensamento’ do fador € vazio enquanto ele fala, e, quando alguém 1é um xxto para nds, se a expressao é bem-sucedida, nao teremos lum pensamento & margem do proprio texto, as palavras pam todo nosso espirito, elas vem preencher exatamente a espera e sentimos a necessidade do discurso, mas nao famos capazes de prevé-lo e somos possuides por ele. ° fim discurso ou do texto serd.o fim de um encantamento. So entao oderdo surgir pensamentos sobre o discurso ou sobre o exto; antes o discurso era improvisado eo texto ompreendido sem um tinico pensamento, 0 sentido estava sente em toda parte, mas em nenhum lugar posto por ele \esmo (FP, p. 190). te trecho enfatiza o cardter direto da compreensao. Ela nao xiva, somos transportados pelo discurso. O maximo que 08 fazer, creio, 6 nao impedirmos isso. E uma forma de 0 lir seria determo-nos reflexivamente em cada palavra. Um texto jor de Merleau-Ponty cabe bem aqui: Este ser transportado ao centro do discurso e descobrir 0 sentido para além dos significados parciais nao é como a resolucao de um problema. No problema a incégnita aparece pela sua relagao com os termos conhecidos do problema, quase mecanicamente. Na compreensao de uma pessoa nao é assim. Aqui é sé na medida em que me aproximo do sentido que as palavras vao se mostrando como signos que realmente apontam para ele. Antes nao. Nao ha nisso nada de compardvel a resolugéo de um problema, em que se descobre o termo desconhecido por meio de sua relacao com termos conhecidos. Porque o problema sé pode ser resolvido se for determinado, isto é, se © cotejo dos dados designar ao desconhecido um ou varios valores definidos. Na compreensao do outro, o problema é sempre indeterminado, porque somente a solugéo do problema fara aparecer retrospectivamente os dados como convergentes, somente o motivo central de uma filosofia, uma vez compreendido, da aos textos do fildsofo o valor de signos adequados (FP, p. 189). 42 Mauro Martins: Amatuzzi jcologia Humana 43 © que com demasiada deliberacao procuramos nao 0 ‘idade de atos que é essa compreensao de gestos, ¢ 0 fato de essa obtemos, nao faltando pelo contrario idéias, valores, a quem dade operativa confirmar o outro no seu significado, e a mim souber absorver, meditando na vida, o que de sua fonte em minha compreensao. espontanea se libera (LIVS, p. 175). F = 2 i q ® J A comunicagao ou a compreensao dos gestos se obtém ela reciprocidade de minhas intengGes com os gestos do tro, de meus gestos com as intengées legiveis na conduta lo outro. Tudo ocorre como sea intengao do outro habitasse meu corpo, ou como se minhas intengdes habitassem o seu .,]. O gesto esta diante de mim como uma pergunta: ele me \dica alguns pontos sensiveis do mundo e me convida a me nir a eles. A comunicagéo se completa quando minha nduta encontra neste caminho seu préprio caminho. Ha nfirma¢ao do outro por mim e de mim pelo outro. [...] Nao mpreendo os gestos do outro por um ato de interpretagao lectual (FP, pp. 195-6). 3. Mais adiante entretanto ele fala do esfor¢o de compreensao, As palavras banais nao exigem de nés nenhum verdadeiro esforgo de compreensio. Ja vimos esse texto acima. Para todas essas falas banais Possuimos em nés significagées j4 formadas, e essas falas bamais nao exigem de nds nenhum esforco verdadeiro de expressao, e nao pedem de: Rossos ouvintes nenhum esforco de compreensao (FP, p. 194). Nao hi oposigao entre o carater direto da compreensio e o fato de que as vezes cla exige esforgo. O que se acrescenta aqui como caracteristica do compreender, quando ele exige esforgo, é que ele supde uma abertura para o novo, que é coisa que néo é necessaria no simples caso da linguagem ordinaria. Podemos ent3o acrescentar essa abertura para © novo como uma outra caracteristica da compreensio, 4.E preciso citar de novo aqui um texto que também ja. lemos, onde essa abertura para 0 novo vai aparecer como um movimento do préprio ser, uma transformagao mais global, portanto, do que ade um simples pensamento. ‘om 0 gesto lingiiistico ocorre algo parecido. Acompanho a @ se comunica em sua intencionalidade, e com isso confirmo-a zer confirmando-me em meu compreender, numa espécie de dade de pensamento em ato. Essa confirmagao aqui nao éclaro, uma concordancia com 0 que 0 outro diz em termos de também suas idéias. Isso seria um pensamento segundo. isso sim que quando compreendo posso pensar junto. ler é participar do sentido. Em resumo, sido caracteristicas da compreensao: ela vai além do entendimento dos significados literais e transporta-nos para o sentido novo apontado por eles; ela tem um carater direto; (Na compreensao da fala de outra pessoa) nao & Primeiramente com representagdes ou com o pensamento que eu me comunico, mas com um sujeito falante, com um certo estilo de ser e com o mundo que ele visa. Assim como intengao significativa que pds em movimento a fala da outra pessoa nao & um pensamento explicito, mas uma certa caréncia que procura Se preencher, assim também a retomada por mim dessa mas implica abertura para 0 novo, e, portanto, saida da atitu- intencéo nao é uma operagio do meu pensamento, mas uma Se ctidiana; eran agp rt ” geste elaéuma transforma¢ao global do ser (junto comas transfor- acgdes do falante) e nao apenas um ato do pensamento; implica uma reciprocidade operativa na qual os interlocuto- res se confirmam em suas intengGes significativas. A retomada da intengao significativa do outro, na compreensio, nao é uma operacdo do pensamento, e sim uma transformagaio mais global do ser que acompanha a mutagao daquele que esta se comunicando. 5. A seguir Merleau-Ponty compara a fala com o gesto, dizendo que ela é um gesto lingilistico. No contexto dessa comparagao aparece como compreendemos o gesto. E 0 que gostariamos de destacar é lemos comentar esse liltimo ponto dizendo que quando essa Ao ocorre, o siléncio se aquieta, a pessoa esta como ja para um mundo novo, ¢ novas intengdes podem comegar a se 6 O movimento existencial que se procura desbloquear na ia. a) TTT O ponto de partida deste capitulo é 0 interesse em conhecer melhor as formas de investigagao do humano, e com isso avangar nessa pratica. Com essa intengdo permito-me retomar aqui, com modificagées, 0 texto de uma palestra proferida na Universidade Federal do Ceara, no final de 1993, e publicado na revista Estudos de Psicologia (PUC-Campinas) com data de setembro de 1994, /1(3), pp. 73-77, com 0 titulo A investigagdo do humano: um debate. Vamos manter aqui 0 tom coloquial que tinha 0 texto da palestra. ) de professor orientador de projetos de acgao em Psicologia. Que posturas episte- démico. do estou dangando estou fazendo uma io do humano. Seria entao o dangar um iGncia? Se o for nao saboreio a danga, e onhecimento resultante seja mais pobre que eu poderia adquirir se dangasse sem de conhecimento cientifico. io que ha aqui algumas coisas a se r. Uma é que ha varios caminhos para a 46 Mauro Martins Amatuzz| ina Psicologia Humana 47 investigagao do humano. A ciéncia, com certeza nao é 0 unico, ¢ indiscutivel. Bastava que se fizesse uma observacado talvez nem mesmo o mais rico. A poesia é uma forma de investigar natica, e com regras de precisao. Os fatos podem ser olhados de humano; a literatura, o teatro também. A amizade é uma forma de 1 neutra. A natureza est ai, ela funciona de acordo com leis que investigar o humano; a luta politica, o lazer, o esporte. A psicoterapia mem pode descobrir objetivamente, e, ao contrario da filosofia, também. Ha muitos caminhos. 4 procedimentos objetivos néio so passiveis de interminaveis O resultado dessas investigagdes, porém, nao é sempre do \issdes. Podemos ter normas confidveis para dirigir nossas a¢des. mesmo tipo. E essa é a segunda coisa que queria considerar. Quem , a ciéncia nasceu gerada no utero da filosofia, e opondo-se a danga, conversa com amigos, pratica esporte, faz politica com certeza do isso para garantir uma nova forma de vida social ou as aprende muito sobre o humano. Mas esse saber se encontra nele as $ novas que tomava a inquietag¢do humana. vezes de forma somente tacita. E o saber do homem de experiéncia, Em seu bergo a ciéncia ja se anuncia como una: os fatos que o habilita a reagir de formas mais adequadas quando diante de 0S € sociais nao so diferentes dos fatos naturais, e portanto algum desafio novo. Mas nao necessariamente esse saber se sabe de ser investigados da mesma forma. E claro que nao foi assim forma refletida. iimples desde o comego. A filosofia quis guardar o humano para Ha uma diferenga entre o saber tacito, experiencial, e 0 saber entregar apenas o nado humano para a ciéncia. Mas acabou explicito, representado para o préprio sujeito. Este ultimo também ndo essa disputa, pois a ciéncia pretendeu abarcar tudo, ¢ seu pode mostrar diferengas quanto ao grau em que é assegurado de tigio foi muito grande. A filosofia acabou ficando desacreditada forma objetiva ¢ publica. Ele pode, de fato, ser obtido por meios que iuitos. O “ser” (objeto da filosofia) nfo ajudava muito: ta nao dependam da experiéncia subjetiva, de modo que qualquer Jugio da vida social, como os “fatos” (objeto da ciéncia). E pessoa possa verificar que é assim, ou melhor, possa ser convencida avel foi preferido pelos principes. : de que os fatos demonstram tal coisa. E uma questio de légica Pouco a pouco, entretanto, e nao sem a influéncia dos poetas € aplicada aos fatos. A sofisticagao desse ultimo tipo de saber é a literatos (Gusdorf, 1990), comegou um movimento que ciéncia. A humanidade construiu uma ciéncia, um saber objetivo e licava a originalidade do humano. O que é proprio do humano publico, e que pode ser apropriado por quem o estuda. E mais. Na §e deixa captar pelos métodos da ciéncia. Mas ento nao pode complexidade de nossa vida atual, esse tipo de saber se tornou necessario, indispensdvel, insubstituivel. A nossa sociedade nao poderia funcionar sem ele. A nossa sociedade tal como ela é nao poderia subsistir e manter-se em movimento sem o saber produzido pela ciéncia (e por sua filha dileta, a tecnologia). Mas estamos correndo demais. Antes mesmo da ciéncia havia uma forma de saber, mais baseada no pensamento e na experiéncia de vida, mas que se pretendia geral, universal. Uma reflexio rigorosa sobre as coisas. Era a filosofia. S6 que, de repente, a filosofia comegou a parecer algo nao certo, nao seguro, e nao pratico para oe ce % atender as necessidades dos homens (fossem elas pragmaticas ou de iposta pelas ciéncias humanas é do tipo sujeito-sujeito, pois ° conhecimento). O pensamento nao tinha um juiz que decidisse sobre aqui é um outro sujeito. O tipo de objetividade que se pode ter é, seu acerto ou erro. Foi assim que apareceram os fatos. Os fatos \ uma objetividade que nasce de um entendimento entre decidiriam. E esses fatos poderiam ser medidos objetivamente e de iijeitos, é uma objetividade que brota de uma inter-subjetividade. O idar com a autodeterminacdo, com a liberdade, com a slividade etc. E as ciéncias humanas foram nascendo do seio da fa, que entio foi rebatizada pelos humanistas como ciéneia . E os cientistas humanos, ao contrario dos cientistas naturais, savam o discurso simples de uma ciéncia una. Digamos que a lo pressuposta pela investigagao nas ciéncias naturais ¢ do tipo ito-objeto. O objeto é uma parte do mundo; o mundo existe em si; 0 to pode captar suas leis objetivamente, sem que haja nenhum ilvimento, mas apenas, digamos, um olhar. Ja a relagado 48. Mauro Martins Amatuzzi sicologia Humana 49 mundo das ciéncias humanas nao é 0 mundo em si, mas 0 mundo tal como experienciado pelo homem e, portanto, carregado de significados. Nao é natureza mas é mundo (mundo é natureza mais significado humano). Em vez de fatos, temos os fenémenos. Os fatos na verdade sao derivados. O que é primeiro sao os fendmenos. Os fatos cia mais dialética, quando as conclus6es sao estabelecidas a s6 sdo obtidos por abstragao. A experiéncia primeira é de fendmenos, de uma interagdo com os sujeitos, isto é, eles sao convidados a isto é, a coisa tal como vista, tal como experienciada. E mar as conclusdes e de alguma forma participam delas. sera trabalhando em cima disso que chegaremos aos fatos. Pretende-se interessante notar que esses desdobramentos (filosofia/ ciéncia, com isso transcender a relagdo sujeito-objeto e se chegar a uma outra natural/ciéncia-humana) nao eliminam o ponto a partir do qual que é mais primitiva que esta, e que por ser mais primitiva nos d4 © desdobramento. O surgimento da ciéncia nao eliminou a acesso a uma verdade mais radical. No fundo as ciéncias humanas (por mais que a ciéncia tivesse nascido por oposigao a ela), mas estudam nao o mundo como natureza, mas a relagio homem-mundo, finir-se ou pelo menos repensar sua identidade. O surgimento Nio é possivel abstrair 0 homem que estuda, e considerar somente 0 abordagem fenomenoldgico-hermenéutica do seio da ciéncia objeto puro. Se nas ciéncias naturais se pretende evitar ao maximo 0 minou a abordagem empirico-analitica, nem mesmo impediu que envolvimento do pesquisador, nas humanas 0 que'se tem a fazer ¢ tirar rdagem pesquisadores continuassem se ocupando de assuntos proveito desse envolvimento. E uma outra concepgiio de ciéncia, outro i8 (86 que dentro de seu enfoque proprio). Parece que as coisas modelo epistemoldégico, outro paradigma (Chizzotti, 1991). , no ficam nunca perfeitamente resolvidas. As pesquisas em ciéncias naturais foram, ento, chamadas de ie desdobramento no interior da pesquisa cientifica nao estava empirico-analiticas. E quando aplicadas ao ser humano podem ser de 2 firmeza estabelecido, quando novas necessidades surgiram. tipos: estatisticas ou de andlise de comportamento. As pesquisas en} /comecou a questionar foi que esse conhecimento todo (seja ele ciéncias humanas foram chamadas de fenomenoldgico-hermenéuticay O-analitico, seja ele fenomenolégico-hermenéutico) é muito porque no fundo lidam com significados de experiéncias e fazen) Neo coma acai concreta. Quer isso dizer que ele ainda fica fora interpretagGes (isto é, explicitagao de significados ou desdobramento dé i0 pratica. Ha ainda uma separagao entre 0 ato de pesquisar (0 sentidos). Foram também chamadas de existenciais ou mesmd oduzir o conhecimento) ¢ a atuagao concreta hist6rica (0 ato de humanistas (ver por exemplo Polkinghorne, 1982), porque buscam @ nhecimento). Isso torna a atuagiio, e conseqiientemente toda significado dos fenémenos para os humanos com eles envolvido! profissional concreta, mera execugao externa do que foi Também foram chamadas de “qualitativas” (Alves, 1991), por oposiciid pelos sabios. E faz dos “sabios” os detentores do poder do as “quantitativas”. Os que se colocam nesta abordagem empiricd ento. Ou, pior ainda, da o poder do conhecimento aqueles que analitica consideram que 0 termo “quantitativo” aplicado a eles restring) ¢ financiam as pesquisas. Mas os profissionais da area de muito 0 que fazem, pois eles podem trabalhar também com an io conseguem aquietar suas questdes nascidas da lida com 0 qualitativa. Mas a isso os praticantes da abordagem hermenéutica dize aceitar tranqiilamente serem como autématos dos sabios dos que nao se pode confundir andlise qualitativa com pesquisa qualitati laboratorios, meros aplicadores de conhecimentos. Algo esta A anilise qualitativa pode se dar no interior da maneira convencional (| isso tudo. Essa ciéncia toda ainda esta longe da agao fazer ciéncia, ja a pesquisa qualitativa 6 um outro modo de se fa! idora concreta. E isso foi sem divida influenciado por um ciéncia, inteiramente diferente, e nao sé diferente quanto senvolvido no interior de movimentos politicos procedimentos técnicos. ios. Foi ficando mais clara a oposig&o entre conhecimento fio concreta, entre uma relacéio meramente cognitiva entre Penso eu que pode haver duas tendéncias em pesquisas desse ido tipo, o fenomenoldgico-hermenéutico: uma tendéncia mais ca, quando as conclusées sao principalmente baseadas na w@ de dados dos depoimentos registrados dos sujeitos, e uma 50 Mauro Martins Amatuzy) er o humano, e o humano concreto que somos € que temos nds, nao teremos que tomar as asas do simbolo, cujos idos nunca se esgotam (pois ndo so meros signos), der o que da poesia nao coube na ciéncia, o que da arte, da religiosidade também nao? Nao ser que existe uma certa ia inserida essencialmente no modelo até hoje vigente de ja ele empirico-analitico, fenomenolégico-hermenéutico, ou ragmatico)? Nao sera que ao invés de pensarmos em possuir idoria nao deveriamos pensar em sermos possuidos por uma da qual, no entanto, podemos nos aproximar com respeito? agem seria essa? 3 formas de escuta desenvolvidas por René Barbier nos msar. Ele é um socidlogo, especialista em pesquisa-a¢ao, ¢ de se considerar um psicossocidlogo. Segundo ele essas 3 e escuta sio necessdrias para que nos aproximemos do que queremos estudar. Ele denomina a primeira de escuta eo-clinica”. Nao basta buscar a coeréncia, ou compreender es que existem entre os fendmenos que observamos no na sociedade (e eu acrescentaria: também no individuo). No joe ¢ no envolvimento com a agio é preciso desenvolver uma ensivel ao que acontece com as pessoas em sua pratica. Essa entifico-clinica vai além do que poderiamos chamar de \ciocinante (principalmente se esse raciocinio sé langa mao esta estabelecido). O outro tipo mencionado por ele é a filoséfica”. E uma escuta dos valores tltimos das pessoas e 9, ou seja, aquilo para que, a partir do que, a pessoa faz questao de favor do que aceita correr 0 risco de perder algo importante 1992, p. 209). Aqui também langamo-nos num plano que 0 do puro cognitivo. E preciso ouvir 0 que move as ‘4 partir de dentro. E o terceiro tipo de escuta € a ica”. Consiste em ficar atento ao novo na vida do grupo, as jonantes, minoritarias, que questionam o ja estruturado. homem e mundo, e uma relag’io mais englobante, transformadora. () conhecimento é, enquanto sozinho, constituinte da relago merament¢ cognitiva, mas por outro lado ele é apenas um componente, da relagdo mais englobante e transformadora. Mas, e isso é fundamental, é enquanto inserido numa agdo transformadora que o conhecimento concreto e vai mais longe. O verdadeiro conhecimento é 0 que faz part de uma relagdo mais que meramente cognitiva com 0 real. Isso tudo fo| clareando uma nova concepgdo de ciéncia, de pesquisa e dé investigagao, e também de pratica. E essa nova concep¢ao foi chamadi de dialética ou pragmatica. Foi dentro dessa concepgao que surgiram pesquisa-participante, e a pesquisa-acao (Astolfi, 1993; Gamboa, 1991), E os estudos teéricos dentro dessa nova concep¢do tomaram out fisionomia também: foram denominados estudos criticos e visat também uma transformagao mais global. Dentro dessa nova perspectiv a acao concreta (a psicoterapia, por exemplo) péde ser vista comi pesquisa ou investigag’o. O ato de pesquisar e 0 préprio processi terapéutico, por exemplo, no so coisas diferentes, Esta em jogo ut novo modelo epistemoldgico. Nao ha uma separacao entre a pesquisa ¢ agao; pelo contrario a acao desenvolvida como pesquisa passa a ser mail critica, qualitativamente superior, e mais eficaz. E por outro lado 0 conhecimento assim gerado, mais verdadeiro. Isso muda muita coisa, inclusive 0 modelo de relatérid cientifico, 0 modelo de registro de dados, 0 proprio modelo di interagéo concreta na coleta de dados, e a propria atuacig profissional. Existem modelos diferentes disso tudo para os paradigmas. Sera que termina aqui essa andanga dos modos de pesquisar humano? O que podemos prever como novos passos que virao? E aqui 86 podemos ousar, pois estamos nos arvorando em profetas, tentand detectar pequenos sinais dos tempos. Falo do que imagino e de com interpreto pequenos sinais. Todas essas formas de saber no esgotatt) aquele conhecimento de vida, saber tacito que decorre da experiénel; vivida, de que falavamos no comego. Ha ainda muita coisa que dai nid passou para o plano do saber representacional explicito. Nao sera qu todas essas formas de saber explicito (filosofia, ciéncia natural, ciéne| humana, dialética) nao teriam em comum que todas elas ficam ainda ¢ algum modo submersas no fluxo histérico? Nao serd que pai A escuta mito-poética é aquela que esta atenta a vida sJacional e simbélica de um grupo, de uma populac’o, ea forma © as pessoas so solidarias, como trocam mitos, simbolos, sens, a fim de criar condigGes diferentes daquelas que Ihes 52 Mauro Martins Amatuz: As vezes sao os mitos e simbolos os tinicos meios de termos acesso a algo que nao esta dominado ou plenamente conhecido e que, no entanto, é fundamental para se entender 0 que acontece, ou 0 que esta por acontecer. Creio que a integragao dessas 3 formas de escuta sé é possivel s¢ uis a do Vivido estivermos envolvidos numa pesquisa conjunta, que nao exclud ninguém, e que é a0 mesmo tempo uma pratica em busca de significados mais abrangentes, dentro de uma postura de quem quer, com humildadg, participar de um movimento e de uma sabedoria que ja estao ai. Uma psicologia humana passa muitas vezes por uma abordagem fenomenolégica, seja no sentido mais puro de um olhar para a consciéncia ¢ os significados do suje- ito entrevistado, seja no sentido em que esse olhar é determinado pelas indagagdes que habitam o pesqui- sador. Na verdade uma coisa necessita da outra. Esse capitulo tenta mostrar isso numa linguagem que, mesmo sendo te6rica, pretende clarear os rumos da pesquisa e da pratica. E quer fazer isso como numa primeira expresso apenas reflexiva. a das coisas que caracteriza uma psicolo- de inspiragao fenomenoldgica é a im- fncia dada ao vivido. Acredita-se que s ele seja melhor guia para nossas ag6es € para nossos pensamentos do que con- idéias construidas mais ou menos artifi- ‘Amatuzzi, 1996). Dai a importancia da ue tenha por objetivo uma aproximagao e a conseqiiente expressao do que nele ido como significado potencial face a blematica trazida pelo pesquisador. E a indagacaio que o vivido se manifesta. que é 0 vivido? E nossa reagao interior juilo que nos acontece, antes mesmo que 54 Mauro Martins Amatuzz) Psicologia Humana tenhamos refletido ou elaborado conceitos. Hesitei ao escrever “nossa reagao” ao invés de “a reacdo da pessoa”. Sai do impessoal @ escrevi “nds”. Nossa reagao. Sai da postura objetiva e neutra, e estou evocando a experiéncia minha e do leitor, a experiéncia comum, nossa. Todos podemos saber de que estou falando, mesmo que isso’ seja de dificil definigao. Reagimos por dentro aquilo que nog acontece. Isso é 0 vivido, a experiéncia imediata. E como nos sentimos. ‘as essa palavra sentimento, embora possa ser usada aqui, é . O sentimento se distingue claramente do pensamento. Uma entir, outra coisa ¢ pensar. Pois bem, o vivido esté num plano ciéncia onde o sentir e o pensar nao se distinguiram ainda. E entido ele é tanto sentimento como pensamento, sem ser m dos dois. E sentimento e pensamento potenciais. E a raiz 0 sentimento como do pensamento. Sim, porque o sentimento pode ser elaborado, recebendo a influéncia dos pensamentos bes, E, como tal, ele estara distante da experiéncia imediata, lexiva. Se denominamos 0 vivido de sentimento é, entio, para ui-lo do pensamento elaborado, ou da elaborag4o posterior orre. Apenas por isso. Vivido, experiéncia imediata, sentimento primeiro: a cia de se retornar a isso fica mais clara, ent’io. E como se emos deixando de lado tudo aquilo que colocamos em cima $ primeiro, para voltarmos 4 pureza original, digamos assim, nitir que essa pureza original dé vida a tudo que se segue a igindo possiveis distorgdes, clareando a relatividade das g6es. A pesquisa fenomenoldgica pretende voltar ao vivido, gando as elaboragdes que se fazem a partir dele, mas Essa reagao interior ja é alguma coisa da ordem da consciéncit Nao estamos nos referindo a reagdes externas, fisicas ou fisiolégicas, mas a rea¢Ges internas. Algo que podemos sentir. Poderiamos talve7) falar da face interior, ou psicolégica, de nossa reagdo. Mas aqui quas¢ que ja existe uma tomada de posig&o em relacgio a questdo do paralelismo psico-fisico (Dutra, 2000). E nao é essa a intengao, Relativizemos, pois, nossas maneiras de falar. O que importa é aquilo 4 que estamos nos referindo, como uma experiéncia de cada um. Um outro aspecto é que se trata da reagao imediata. Nao a reagio construfda, nem a reaco pensada. E 0 que eu sinto, diretamente, a forma como avalio, diretamente. Para além das mediagdes pensadas, para alén) das minhas escalas de valor. E nao se trata também daquilo que eu possit pensar depois para “domesticar” a experiéncia, ou reduzi-la ao familiar, lo-as provisoriamente entre parénteses, para revé-las depois, Finalmente, dissemos que é nossa reagao interior aquilo qué \quela fonte primeira. Dai as coisas podem ficar mais claras. nos acontece, e nao simplesmente aquilo que acontece. A diferengaé Mas como chegar ao vivido sobre algum tema de investigagao? justamente a conex4o com nosso centro pessoal. Buber dizia qué a mais claro se examinarmos primeiro 0 que acontece com ele aquilo que me acontece é palavra que me é dirigida (Buber, 1982, p. 44). Hil NO das significagdes. O seu percurso psicolégico. coisas que nos tocam e das quais nao temos a menor consciéncia. i File sozinho nao existe, uma vez que 6 sempre acompanhado de um tocar meramente fisico. Para que possamos falar de vivido como ‘ignificagao. A funcdo da pesquisa consiste em substituir sua reagao interior, é necessario um outro nivel de comunicagid ‘jo contextual imediata, pela significagéo do contexto envolvendo a subjetividade, é necessdrio que tenha acontecido algo pelo pesquisador, dialogicamente. Vamos construir isso que seja portador de um sentido potencial para mim (ainda que sej /passo. apenas o sentido de um espanto). Com 0 vivido estamos no plano do izer que o vivido é sempre acompanhado de alguma significado, e nao simplesmente no plano dos eventos mec&nicos, fio significa dizer que nao temos acesso direto a ele. digamos assim, ou objetivos. O vivido nao éa reacdo muscular, mas acesso ja é uma forma de significa-lo, tanto por parte do reacao psicolégica, mental, espiritual, antes de qualquer claboragiid Sujeito que o vive, como por parte do pesquisador (ou do posterior com raciocinios. A reagao psicolégica imediata. Por iss) que reflete sobre ele). Por isso devemos dizer que 0 vivido “se falamos também de experiéncia imediata, e de sentimento (ver po) intro de nés, ele se expressa, e assim assume um significado. E exemplo Rogers & Kinget, 1975, pp. 61-3). 10 de se dizer que ele se constitui como vivido pleno, pois éa 60 Mauro Martins Amatuzz| iologia Humana, esté ainda fazendo uma pesquisa propriamente fenomenoldgica. Esta ecorte da existéncia foi bem selecionado), deve possibilitar ocorre quando ele pesquisador ou pessoa que reflete, guiado pela isfio mais clara do assunto, e conseqiientemente, um indaga¢ao que o mobiliza, atravessa 0 depoimento, por assim dizer, ¢ lento mais efetivo na agao. parte em busca do vivido ali contido, sem se desviar para a busca dos ‘88a visio mais clara do assunto é 0 que o pesquisador busca, a padres coletivos, ou elementos da histéria escondida. Mas como ess¢. uma questo que esta tendo significado para ele. A partir dai ele ivido nao tem consisténcia sem uma estrutura ou contexto de interlocutores vivos (ou memorias documentadas) com quem significados, 0 pesquisador procura dizer inicialmente este significado ialogar em torno da experiéncia vivida, ¢ assim produzir suas para 0 sujeito, tal como ele se mostra no depoimento; e depois, por uma , E quando o interlocutor assume a mesma intengfio de espécie de trabalho de abstracdo conceitual, vai se desprendendo do cle sai também beneficiado por ela. Ele sai compreendendo-se contexto concreto do sujeito, para expressar seu significado mais geral, ‘© capaz de agdes mais efetivas). Por isso, dentro da luz Esse significado mais geral é 0 que aparece no contexto mais amplo da jolégica, nao ha diferengas essenciais entre pesquisa e existéncia humana, naquele aspecto que esta sendo problematizado pelo ito psicolégico ou psicoterapia. A aproximagio do vivido pesquisador, a partir de seu contexto. A luz sob a qual se 1é 0 depoimento ia mudangas. E como uma volta a fonte, “as coisas mesmas”. é, ent&o, uma luz que permite atravessar a materialidade empirica do proprio depoimento, chegar ao vivido que ele expressa, e depois, abstraindo-se do contexto concreto deste sujeito, buscar os significados gerais em relagéo a existéncia humana problematizada pelo pesquisador. Mas esses significados gerais, assim construidos pelo pesquisador, devem dar conta do vivido concreto dos sujeitos, ou seja, devem ser suficientes para dizer e clarear esse vivido de um ponto de vista mais abrangente (e capaz de incluir outros possiveis sujeitos nessi compreensio). Nada impede que esse ponto de vista mais abrangente poss incluir uma consideracdo do coletivo (em pesquisas tematicas) ou dil hist6ria individual (em estudos de caso). Mas na pesquisa propriamenté fenomenoldgica essas consideragdes, quando for 0 caso de clay ocorrerem (devido ao tipo de delimitagéio do objeto ¢ de alcance dij pesquisa), serdo apenas instrumentais ou intermediarias, e nao finais, Onde termina, entao, a pesquisa do vivido? Com que tipo dé afirmagao ela se encerra? Nao é coma afirmagao de um fato, mas col a afirmagao de uma possibilidade de compreensdo (ou um conceito) que se estende para além dos sujeitos estudados naquela amostra, assim que entendo o que Husserl chamava de esséncia. A pesquisi fenomenolégica, em psicologia cientifica, descreve uma esséncia, partir de depoimentos concretos de pessoas falando de sua experiéncias (ou escrevendo ou manifestando de qualquer forma qui seja). O que ocorre é que tal descrigao, se o objeto foi bem escolhidi limento Psicoterapico Este capitulo retoma anotagées feitas para um curso sobre esse tema na Universidade Estadual de Maringa, em abril de 1999, logo depois publicado na revista Psicologia em Estudo, da mesma Universidade, em edigao especial, 4(1), pp. 67-81, com o titulo Abordagem fenomenologica no atendimento psicoterdpico. A reflexio aqui apresentada baseia-se numa compreensao da fala e da escuta. Toda fala efetiva e plena da vida social a um sentimento ou a uma intengdo anteriormente vivida de forma ainda vaga. Fazendo isso permite a manifestagao de um aspecto novo da realidade vivida pela pessoa e mobiliza sua ago. O pensamento que ela transporta inclui emogiio. O atendimento psicoterpico caminha em dire¢ao a falas que cumpram essa fungao. Isso se faz pela escuta aberta de um terapeuta comprometido como pessoa nessa relagio. Dai resulta um verdadeiro didlogo e é ele que sera, na verdade, terapéutico. Foram feitas pequenas modificagdes no texto no sentido de complementar referéncias bibliograficas. a foi feita para calar base dessas consideragées é uma go do processo de significar, na fenomenologia. O atendimento 6 uma ajuda ao proceso de ar que de alguma forma ficou lo, e nado esta mais conseguindo sozinho. Quando a pessoa vé , ela se transforma e passa a estar indo de forma diferente. $4 Mauro Martins Amatuz/| ii Psicologia Humana 68 Duas frases de Clarice Lispector ilustram bem essa concepcad do processo de significar: e também — por que nao? — fago uma pesquisa ou me dedico a Se nao o fizer 0 sentimento permaneceria vago, sufocador. nilo expressar de algum modo, o impacto da realidade fica parado ) de mim, me sufocando e me impedindo de continuar a viver. quanto nao for dito ou atualizado na plenitude de um dizer uma presentificagéo, um sentimento permanece vago ¢ dor. A partir do momento em que ele é dito, algo se transforma, . O proprio sentimento deixa de ser vago e sufocador. E da utros sentimentos. Cecilia Meirelles também, em um de seus poemas, faz uma Jamentar que outra, a amada, nao tivesse percebido o que suas escondiam, e que, no entanto, segundo a amante, é forte e \0, talvez ndo capturdvel pelas palavras, mas certamente visivel Entao escrever é 0 modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando 0 que nao é palavra. Quando essa nao-palavra morde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma vez que se pescoua entrelinha, podia-se com alivio jogar a palavra fora. Mas ai cessa a analogia: a nao palavra, ao morder a isca, incorporou-a. O que salva entao é ler distraidamente (Lispector, 1985, p. 41). O que é que a palavra pesca? A nao-palavra. O que é uma coisa co. que € outra? A seqiiéncia do texto nos faz aprofundar na comparagao} quando essa nao-palavra morde a isca... As vezes a nao- palavra nao mordea isca. Nao é sempre que a palavra realmente diz alguma coisa. Aj vezes ela é vazia, oca de realidade. Existem palavras e palavras. Nen} delas. sempre a palavra pesca a nao-palavra. Quando consegue, algo se disse, _ Nunca eutivera querido/ dizer palavra tio loua: / bateu-me ou algo se escreveu. Quando consegue, a palavra esta sendo plenament¢ ; vento na boca, / e depois no teu ouvido. // Levou somente a palavra, cheia de sentido, cheia de vida, cheia de realidade. Um escrito. jalavra, / deixou ficar o sentido. // O sentido esta guardado / no sabe bem quando ele realmente escreveu alguma coisa, e quando eld y com que te miro, / neste perdido suspiro / que te segue simplesmente colocou sinais graficos sobre o papel. Ea diferenga entre lucinado, / no meu sorriso suspenso / como um beijo palavra efetivamente expressiva ea palavra malograda. A psicoterapia ¢ jalogrado. // Nunca ninguém viu ninguém / que o amor pusesse a busca de se passar dos discursos vazios aos discursos transformadores, Uo triste. / Essa tristeza nao viste, / e eu sei que ela se vé ates Nao tanto transformadores dos outros, mas transformadores daquele gente vento / fechou teus olhos também... (Meireles, mesmo que os pronuncia. Todo esforco do terapeuta é um esforgo de ser esta Completa, 1994, p.1 18). um interlocutor que favorega a essa passagem. A psicoterapia é uma / \ palavra eo sentido. O dito e 0 vivido. O corpo ea alma, diria pescaria das nao-palavras que importam para a pessoa. E uma pescaritl ju-Ponty. A nao-palavra de Clarice seria 0 sentido de Cecilia. A com as palavras de que no momento dispomos. O processo segue com conduz o sentido, vive pelo sentido. Mas este nao esta preso na palavras-iscas, de uma néo-palavra a outra ndo-palavra, até que s¢ | como num carcere. Ele voa solto no olhar, no rosto, no suspiro, chegue a um centro a partir do qual tudo fica diferente. teza bem visiveis. Mas... s6 se aquele vento fechou teus olhos Numa outra frase Clarice diz mais: m. A palavra conduz o sentido, mas pode nos fechar os olhos ‘ entido. Como o vento. / -palavra foi feita para calar. Im outro poeta, este argentino, Alberto Juarroz, diz que a da palavra é maior do que simplesmente designar as coisas. Escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o ir- reproduzivel, é sentir até o Ultimo fim o sentimento que perma- neceria apenas vago e sufocador (Lispector, 1984, p. 191). Escrever é tentar entender. Procurar entender é procuraf reproduzir 0 que nao pode ser plenamente reproduzido. E colocat: guia presenca. num quadro 0 pér-do-sol até que possamos entender o que é 0 proprio El oficio de la palabra, / mds allé de la pequeria miseria / y la por-do-sol. Escrever é sentir até o fim aquilo mesmo que ja sentimos, yequeria ternura de designar esto 0 aquello, / es un acto de amor: E para poder sentir tudo que eu digo, falo, pinto um quadro, fago um ear presencia (Juarroz, 1980, p. 27). 66. Mauro Martins Amatuajf ologia Humana, 67 E ele comenta isso dizendo: ir o ser da coisa, seu sentido. A palavra (Jogos, razao) ¢ © sentido desvendado. Mas para Platao e Aristoteles essa foi feita, e a palavra passou a ser vista como mero rétulo 0 conceito. A linguagem deixou de ser um modo de se lidar coisas, para ser apenas © sistema convencional de sinais Jo para designar, contetdos ja pensados, sinais esses que tm lade de facilitar a comunicagao na sociedade. A palavra foi endida como se referindo ao conceito e nao mais 4 coisa. E 0 La palabra es el hombre. Si esto es asi, la poesia seria el modo més amplio, el modo més comprensible y creo que abarcador... Abarcador de qué? La respuesta cémoda seria: de lo real. Pero aqui hay otra cosa que a veces descuidamos y es que la palabra crea realidad. Entonces: no sélo abarcador sino también enriquecedor, ampliador de lo real (Juarroz, 1980, p. 30). E eu comentaria Juarroz dizendo que a palavra captura realidade, nos pde em contato com ela, mas ao mesmo tempo, fazent foi entendido como uma maneira de se apropriar da essCncia. isso, ela amplia o real, ela o tora visivel e 0 modifica. Ai entio elf | era eterna, para Plato, por exemplo. O modelo perfeito das compreendo, eu vejo. Mas 0 que vejo? rfeitas. Passou a haver ent&o, no entendimento das pessoas, Muitas vezes dizemos: “descobri um mundo novo”, mesmi psigao entre o pensamento puro e a linguagem. O pensamento que nada tenha mudado objetivamente. A realidade paree pensar) visa esséncias eternas e imutaveis. A posse delas por transfigurada. E a palavra, ou entendimento expresso por ela, que cri onceito (= nous, mesma raiz que pensar). Pensar passou a ser esses mundos. Uma experiéncia nova, a partir de um novo Angulo ¢ Jo como um abrir-se para as esséncias eternas. E a linguagem visdo: uma nova realidade. falar) ficou sendo algo que pertence ao mundo passageiro e A palavra foi feita para calar. flo da comunicagao. O falar nao desvenda o sentido; é 0 Retomemos isso. A palavra cria. Cria presenga. Enriquece ( lento que faz isso, mas separando-se da coisa concreta. Essa real. Isso nos remete para a historia das concepgées sobre a palavril 0 (segundo Coreth 1969-1973, pp. 26-34) i Resumidamente, houve 3 fases. /19. Primeira fase. Na Grécia antiga, assim como na Biblia, alias, { se inicia uma mudanga. Terceira fase. Humboldt, em 1835 palavra era vista como uma coisa. Uma coisa que eu posso possuir, por Coreth), ira afirmar: as linguas nao séo propriamente meios de que interfere com aquela outra coisa que esta ld fora. Por isso 0 que el) a verdade ja conhecida, mas antes instrumentos para descobrir ° digo afeta a realidade. E como se eu possuisse a alma das coisas sconhecido. Para Heidegger, j4 em nosso séc. 20, 0 entendimento tivesse dominio sobre elas. Isso foi visto depois como pensamenti Compreendido como uma abertura para o Ser que se revela. Ora, magico. A crenga infantil e ingénua de que meu pensamento teil gem: a capacidade basica do ser humano de se abrir para o poder sobre a realidade. Mas isso é na verdade uma caricatu oisas. Por isso ele dird: “o homem habita na linguagem”, e nao: posterior do pensamento antigo. Vimos com os poetas como no homem, Para Merleau-Ponty 0 que existe atras da pensamento que se expressa tem o poder de transformar a realidad: loé ‘opensamento. Este est Da palavra. O que existe por tras € Foi apenas 0 modo de conceber isso que estava talvez pout 0 de significar, ou seja, a mobi izagao para falar, 0 desejo. Eo explicado. Mas por causa disso comegou uma idéia diferente. Wittgenstein dira que o jogo de linguagem proprio as ciéncias Segunda fase. Na Grécia mesmo comecou-se a fazer ul (com a verificabilidade externa pelos fatos) nao é 0 tmico separagdo entre a natureza (fysis, a coisa em si) e a palavra (Jogos, I; existem outros jogos de linguagem (0 da arte, o da ética, o da aquilo que expressa a coisa natural). Mundo é diferente de Palavri) }etc.). Se o jogo das ciéncias exclui como verdade tudo que nao Heraclito foi uma espécie de transigdo. Para ele, falar (/egein, mest i icado, isso nao corre nos outros jogos, pois cles representam raiz que logos, a razio da coisa) nao era ainda uma designagil 108 diferentes. Nessa 3* fase, entao, retomam-se as verdades da posterior e externa do objeto ja sabido, mas era justamente o ato dh fase. Mauro Martins Amatuzz) Juarroz, © nosso poeta argentino, escreve: Utilizo el término pensar para significar la capacidad del hombre de interpretar, de traducir en palabras la realidad (grifo meu), no como sistema légico 0 racional, sino como Persecucién, como posibilidad de infinito desvelo en pos de encontrar un sentido ala realidad. ¥ entiendo por sentido no una formula, ‘ni una explicacién, sino simplemente el que las cosas son asi porque deben ser asi. O sea que el pensar es para mi la apertura humana, creadora, que consiste en el reconocimiento de Ia realidad que no puede darse sin que al mismo tiempo yo la esté creando (Juarroz, 1980, p. 40). E ele diz também: : Esa capacidad del hombre de crear Ia realidad en base a su interpretacién por médio de simbolos es lo que llamo pensar. Pero todo eso al mismo tiempo estd cargado de un infinito peso motivo. Toda palavra tiene una dimensién emotiva [...] El hecho de pensar y de expressarse es infinitamente emotivo: no hay bensamiento sin emocién. En ese sentido entiendo pensar (uarroz, 1980, p. 41), i E poderiamos resumir dizendo que nao ha palavra viva que seja Sem emogao, pois ela interfere com a realidade, cria um mundo novo, mais do que simplesmente retrata a realidade. Se ficarmos na mera palavra, ento estaremos matando sua vida. Adélia Prado tem um poema que se Chama “Antes do nome”: Nao me importa a palavra , esta corriqueira. / Quero 60 espléndido caos de onde emerge a sintaxe, os sitios escuros onde nasce 0 “de”, o “alids”, 0 “o”, o “porém” eo “que”, esta incompreensivel muleta que me apdia. / Quem entender a linguagem entende Deus cujo Filho é Verbo. Morre quem entender. / A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda, foi inventada para ser calada. / Em momentos de graca, infreqiientissimos, se poderd apanhé-la: um peixe vivo com a mao. Puro susto e terror (Prado, 1991, p. 22). A palavra foi inventada para ser calada, pois através dela eu entendo e dou sentido ao espléndido caos, aos sitios escuros, 4 coisa mais grave, surda-muda. Quando ela pode ser, com plenitude, aquilo que tem a vocacdo de ser, sera como um peixe vivo na mao, puro jicologia Humana terror. A tarefa do terapeuta é favorecer palavra que seja ‘que nasceu para ser: um momento fugaz que nos abre os olhos realidade, e muda tudo. Oprimeiro sentimento basico que gostaria de partilhar com aminhaalegria quando consigo realmente ouvir alguém. Acho que esta caracteristica talvez seja algo que me é inerente e JA existia desde os tempos da escola primaria. Por exemplo, _lembro-me quando uma criancga fazia uma pergunta e a professora dava uma étima resposta, porém a uma pergunta inteiramente diferente. Nessas circunstancias eu era dominado por um sentimento intenso de dor e angustia. Como reagao, eu tinha vontade de dizer: Mas vocé nao a ouviu! Sentia uma espécie de desespero infantil diante da falta de comunicagao que “era (e é) tio comum (Rogers, 1983, pp. 4-5). - Ouvir realmente. Nos podemos ouvir, porque nosso aparclho livo esta em ordem, mas nao escutar, ou ndo ouvir realmente, ido nao atravessamos Os sons € ndo vamos até a alma da pessoa que , ou até seu coragao. Ficamos nas palavras-vento, como aquele do poema de Cecilia Meireles. Ele nao entendeu nada. O vento seus olhos. O que houve com a professora de Rogers? Um mero voco de comunicacao como se ela tivesse confundido as palavras? mente nao. Ela entendeu corretamente todas as palavras. Mas nao ila pessoa. Ouviu o significado, nao ouviu o sentido. Merleau-Ponty ja havia dito algo semelhante. Dizia ele que ouvir realmente (como diria Rogers) é necessario: reencontrar sob as linguagens empiricas, acompanhamento. exterior ou roupagem contingente de todo pensamento, a palavra viva que é sua efetuacao, onde o sentido se formula pela primeira vez, se funda assim, e se torna disponivel para _ operacées ulteriores (Merleau-Ponty, 1972, p. 227). i Mauro Martins Amal sologia Humana A linguagem empirica, a fala como som mensuravel, é ape o acompanhamento exterior do pensamento. A fala como pala’ viva, esta é a propria efetuagdo do pensamento. E nela que o sentid se formula pela primeira vez, e se constitui tornando-se ent disponivel para outros atos de viver. Quando aquilo que dizemos 1) é realmente ouvido, é como se nao tivesse sido plenamente dito, como sea fala tivesse ficado entalada no fundo de nossa garganta, |! viver nao pode se desenrolar. ‘nos alca a condigo propriamente humana. Simbolizamos o emos discutir o real, e assim transformar nossa relagao com ao mesmo tempo que o falar faz isso, ele também nos _do real. Para olharmos o que se passa, afastamo-nos um © que quer dizer tudo isso? Aproximagao e afastamento sao pectos de uma relagdo diferente com o real, que a capacidade f nos permite. E nessa relagdo diferente que aparece o ‘ado, o sentido. E entdo o que era simplesmente real passa a ser undo organizado e com sentido. que faz o psicoterapeuta? Ele nos ajuda a perceber como 10S nosso mundo, e como nossos problemas se prendem a ‘omo fazemos isso. Se eu, como pessoa em processo itico, puder entender isso, entio terei condigdes de ser diferente. Mas vamos ver, com Ricoeur (1977), como é que vai se mani- © um mundo com sentido, para além do simples real da rela- \ediata, quando entramos no universo da linguagem. O primeiro distanciamento que a linguagem opera em relagdo | é 0 distanciamento da significagdo. Quando falo significo, lo signos, e assim me afasto, olho um pouco mais de longe, |. Pela mediagio dos signos me afasto da imediaticidade da , digamos, animal. Mas com o evento da fala, resintetizo a ide: eu a re-encontro como designada por mim. Aqui temos 0 0 simplesmente como fala. Ouvir, aqui, é entrar em contato que a pessoa diz. E se sou da mesma comunidade lingitistica jorre sem maiores problemas porque também uso os mesmos de signos com os quais analisamos a realidade. Falo a mesma |e entendo o que a pessoa esta dizendo. as a fala opera um segundo distanciamento. E que quando os arrumamos 0 que dizemos de acordo com um estilo préprio. js expresses e€ construgdes que gostamos mais. Usamos um um género. Isso nos pde um pouco mais distantes do real fo. E o distanciamento operado pela composigao, a que jponde discurso como obra. Como obra literaria. Se levarmos ta isso, entdo o ouvir verdadeiro tem que levar em conta 0 to da relacio € o estilo proprio da pessoa. Ouvir entao nao sera lesmente entrar em contato com o que a pessoa diz, mas entrar ontato com o que ela quer dizer através de todo esse modo com a crianga que nao teve sua pergunta respondida? Ela podg voltar a insistir algumas vezes, ou podera desistir. E se desisil acabard por esquecer sua pergunta verdadeira, e, pior ainda, acaba por substitui-la pela pergunta que a professora diz ter ouvido, pensard que esta sim foi a pergunta correta. Paulo Freire diria que professora foi ent&o a “opressora” que fez 0 menino se distanciar ¢ sua verdadeira palavra. i Separarmos 0 mero significado do significado pleno no ajuda a compreender o ouvir. O mero significado fica no nivel di palavras, enquanto o significado pleno se prende a toda preseng Significante da pessoa. Receber o significado pleno, e nao apenas ( mero significado, é ouvir realmente a pessoa. A resposta que broly deste ouvir bem pode ser chamada de interpretacao simbélica porqu reune 0 que eventualmente estava separado. O texto de Rogers continua assim: Creio que sei porque me é gratificante ouvir alguém. Quando consigo realmente ouvir alguém, isso me coloca em contato com ele, isso enriquece minha vida (Rogers, 1983, p. 5). ; Ouvir realmente é igual a entrar em contato, que é igual 4 enriquecer minha vida ou deixar-se tocar. Voltaremos a isso mais tarde, No prosseguimento dessa fenomenologia do ouvir e do responder, pec¢amos agora ajuda a Paul Ricoeur. Ele vai nos falar doy niveis de distanciamento que o discurso opera em relagio o real, Entendamos bem isso. Falar significa dar um sentido as nossas experiéncias © portanto nos aproxima delas, permitindo-nos lidar construtivamente e criativamente com clas. Tira-nos da condigio: 2 Mauro Martins Amatuzz\ ina Psicologia Humana 2B Isso exatamente € 0 quarto nivel de distanciamento operado la. A fala, deixando de ser sé do outro, nos afeta e questiona. iga a que tomemos uma posi¢Ao. Permitindo que a presenga total jitro me atinja como um projétil, ougo-me a mim mesmo recriado sse encontro. E o distanciamento operado pela comunicagiio ou ato direcionado de fala, a que corresponde 0 discurso como afio. A fala do outro o distanciou de sua realidade imediata e, proprio de dizer nesse momento ¢ nessa situagao. E isso pode nao ser igual ao mero significado das palavras. Quantas véezes em brigas ouvimos 0 outro dizer: mas vocé disse isso! E nao nos sentimos compreendidos. O que acontece? A pessoa joga na cara da gente as) palavras e nao o sentido. O verdadeiro ouvir vai além do significado imediato das palavras. Ricouer fala ainda de um terceiro nivel de distanciamento que para ele é 0 que ocorre quando escrevemos. Ao escrevermos alguma coisa ou gravarmos de qualquer forma o momento fugaz de uma fala, nds construimos um texto que poderd ser usado por outras pessoas de forma mais ou menos independente das intengdes imediatas de seu autor. O significado de um texto nao se prende mais ao que seu autor tinha consciéncia de ter pretendido. O texto escapa a individualidade do autor. Este muitas vezes se surpreende com tudo que disse e nao sabia. Esse é 0 distanciamento operado pela escrita, ou qualquer forma de fixar 0 que foi dito. A ele corresponde o discurso como texto. Existe um “mundo do texto”. E mesmo quando falamos, aquilo que dizemos tem essa dimensao de texto que remete a um mundo talvez insuspeitado pelo autor. Quem sabe sejam essas as dimens6es coletivas do que dizemos. Mas mesmo coletivas, sio eminentemente pessoais, pois se enraizam em nds. Aqui 0 ouvir tem que ir mais longe, entao. Ouvir realmente, aqui, significa entrar em contato com o mundo da pessoa. Com aquele espacgo mental ou campo semantico onde ela habita mesmo sem conhecer tudo que ha ali. E nds podemos entrar em contato com esse mundo mesmo sem termos que dizé-lo de que recebé-la afeta a pessoa. Se como ouvinte nao fui afetado, forma organizada. Ele se constitui de tudo que é recebido pela pessoa, io ndo ouvi realmente. Mas nao apenas as pessoas nos falam, mas também de tudo que foi construido por sua historia pessoal, pela nbém os eventos do mundo nos falam. histria de suas emogGes, sentimentos, reagdes, e pelo seu momento presente em que nos fala. Nao “saberemos” de forma representada ¢ discriminada tudo isso, mas podemos entrar em contato. E como entrarmos na casa de uma pessoa. Em sua moradia pessoal. Em seu modo de ver, organizar 0 mundo, estar nele, agir. Ela esta neste mundo, e podemos, ouvindo, entrar nele como um todo. O mundo do. outro tem coisas em comum com o nosso mundo, e tem coisas que lhe sao proprias. Mas justamente por isso, ouvir com essa profundidade nos obriga a questionarmos nosso proprio mundo pela aproximagao. do mundo do outro. ouvir-se a si mesmo € ainda ouvir ao outro que se comunica igo. Se eu nao me ougo no que cle diz, cle nao foi ainda mente ouvido. Estamos aqui no limiar da resposta e temos que recorrer a er. A fenomenologia do ouvir se expande em fenomenologia do mitindo a interpelagao do outro, sinto a necessidade da osta. Seu discurso jA nao esta nele. Esta agora em mim. O ‘ontro humano est4 eminentemente presente em nossa relagdo com mundo. O que ocorre em mim que estou ouvindo é uma jilizagao. Tanto em minha vida pessoal, como aqui diante da oa como interlocutor. Para Buber a palavra verdadeira é a palavra dirigida, e é por Aquilo que me acontece é palavra que me é dirigida, Enquanto coisas que me acontecem, os eventos do mundo sdo palavras que me sao dirigidas. Somente quando os esterilizo, eliminando neles o germe da palavra dirigida, é que posso compreender aquilo que me acontece como uma parte dos eventos do mundo que nao me dizem respeito (Buber, 1982, p. 44). A outra pessoa é uma presenga que me fala, uma presenga a mim gida. E s6 quando elimino esse fator de presenga dirigida, e portanto ilgo que me toca, que eu posso olhar um acontecimento de forma “4 Mauro Martins Amatuzzi neutra, como algo que nado me diz respeito. Essa objetividade so é possivel gragas 4 supressio mais ou menos artificial da relagdo mobilizadora. Mas 0 prego que se paga é nao tocarmos o centro dinamico da pessoa. Em psicoterapia, se quisermos tocar 0 centro dinamico da pessoa, é portanto necessario que nos deixemos tocar, Tomar conhecimento intimo de um homem significa entao, principalmente, perceber sua totalidadade enquanto pessoa determinada pelo espirito, perceber o centro dinamico que imprime o perceptivel signo de unicidadea toda sua manifestacao, a¢gao e atitude. Mas um tal conhecimento intimo é impossivel se o outro, enquanto outro, é para mim o objeto destacado de minha contemplagio ou mesmo observacio, pois a estas Ultimas esta totalidade e este centro nao se dao a conhecer: o conhecimento intimo sé se torna Possivel quando me coloco de uma forma elementar em relagdo com 0 outro, portanto quanto ele se torna presenca para mim (Buber, 1982, p. 147). S6 ougo plenamente quando o outro se torna presenga atuante para mim. Ai entao, sinto a necessidade da resposta. Mas neste momento central do dialogo, uma bifurcagao ¢ possivel. Se precipito a resposta estrago tudo. Nao dou tempo suficiente a esta mobilizagiio e atuo através de uma ligagéio direta. Minha respostit sera apenas 0 efeito do discurso ou da presenga do outro. Mas se, ao contrario, ainda espero, entao permito que surja 0 novo, € 0 que surgir sera verdadeiramente resposta ¢ nao efeito. I} somente aqui que se fecha 0 elo dialdgico. rsdo de Sentido Este capitulo retoma um trabalho originalmente apresentado em Aguascalientes, no México, no 8° Encontro Latino-Americano da Abordagem Centrada na Pessoa, em outubro de 1996, logo depois do encontro da Associagio Nacional de Pesquisa e Pés-Graduagiéo em Psicologia (ANPEPP) daquele ano, onde foi também discutido. Foi publicado como um capitulo das Coletineas da ANPEPP, caderno 9, com o titulo O uso da versao de sentido na formagiio e pesquisa em psicologia (pp.11-24). Esse cademo foi organizado pela profa. Regina Carvalho, tem como titulo Repensando a formacdo do Psicélogo: da informagdo a descoberta, publicado em Campinas, SP, Editora Alinea, 1996. O texto parte de uma preocupacdo com a busca de caminhos para pesquisas de tipo qualitative. Propde-se a examinar teoricamente um tipo de relato que vem sendo usado como instrumento pratico tanto na formago como na pesquisa, denominado Versao de Sentido (VS). Aqui conto um pouco de sua histéria, e busco uma justificativa para seu uso. Fiz algumas pequenas modificagdes no sentido de atualiza-lo e adapta-lo a este livro. O atendimento psicoterapico de orientagao fenomenolégica ¢ formado por elos dialégicos desse tipo. As outras falas que visati) apenas conferir a compreensao, manter a comunicagao ou clarear @ sentimento so preparagées para a resposta, ou ja sao implicitamente a resposta, ou entao nao tém sentido terapéutico algum. enho trabalhado ha algum tempo com Vers6es de Sentido (VS), como instrumento econémico e de uso facil, no acompanha- teflexivo de atendimentos terapéuticos, de les educativas e docentes, e de trabalhos pos. A experiéncia se espalhou, ¢ hoje mu- legas a praticam em atividades de formagao iséo, € comega também a ser usada em . Contudo também nfo faltam os oposi- 16 Mauro Martins Amatuzzi tores, argumentando que o termo é em si contraditério, ou que a VS nao pode servir como forma de acesso ao processo vivido. A expe- tiéncia de quem ja lidou com esse tipo de relato do vivido, entretanto, fala a favor de sua fecundidade para a formago e pesquisa, tanto no campo clinico como no educativo ou.de assessoria a grupos. O que me proponho aqui é: 1. redizer o que é exatamente uma VS, 2. contar um pouco de sua histéria, fundamentando-a em uma historia anterior, e 3. buscar uma justificativa teérica para seu uso. Gostaria de ter como pano de fundo 0 conjunto de desafios encontrados em uma iniciagao cientifica de abordagem qualitativa, seja a pesquisa, seja a pratica profissional. Nao vejo porque uma iniciagiio, para ser cientifica, deva comegar pelo manuseio de tabelas, freqiiéncias e testes estatisticos, quando 0 que se visa é um aprendizado de penetragaio de significados. Nao vejo porque, também, esse aprendizado deva ser separado de uma iniciag&o a pratica de atendimentos ou de uma experiéncia de envolvimento com processos grupais. Entendemos por Versio de Sentido (VS) um relato livre, que nao tem a pretensao de ser um registro objetivo do que aconteceu, mas sim de ser uma reacdo viva a isso, escrito ou falado imediatamente aps o ocorrido, e como uma palavra primeira, Consiste numa fala expressiva da experiéncia imediata de seu autor, face a um encontro recém-terminado. Compreendendo a VS a partir de sua historia Tudo comegou com o convite, feito a alguns colegas recém-formados, para uma pesquisa-em-agdo a respeito do desenvolvimento pessoal. Isso se faria através de um grupo onde discutiriamos semanalmente nossas experiéncias em atendimento psicolégico. Combinamos que essas discusses seriam feitas nao a partir do telato da sessao, mas a partir de um relato condensado do que, para 0 a Psicologia Humana 1 \peuta, tinha sido o essencial do encontro terapéutico. Houve ‘icamente dois motivos para isso. Um, bastante trivial. Estavamos los cansados de fazer relatérios mecanicos de sesso, como era gido nos estagios. E 0 outro motivo se referia 4 questo do sentido. que “fazia sentido” para estarmos conversando? E antes disso: 0 “fazia realmente sentido” para nds estar escrevendo logo apés 1atendimento? A resposta parecia ser: 0 que de primeiro nos vinha hente, agora, com o distanciamento da presenga face-a-face do nte, e antes que nos tivéssemos envolvido em uma nova atividade. is: algo que nos desse uma visdo de conjunto do que acabara de yntecer ali. Escrever isso foi experimentado como significativo. Fazendo isso, e discutindo nossos atendimentos a partir de tais latos, algumas coisas foram ficando mais claras. O que fazia ido registrar era diferente daquilo que escreviamos quando, de moria, tentavamos reproduzir a seqiiéncia dos fatos de forma ut ‘a. O que fazia sentido registrar era o sentido vivo, presente no rio ato de escrever. E era esse sentido que expressava melhor o amento do processo. _ Foi isso que nos levou a formulagiio de que o “sentido que essa” 6 sempre presente. Um registro mecnico nao o pode -, pois ele s6 contém o passado. E s6 através de nosso presente odemos estabelecer contato vivo com 0 sentido de um encontro. 0 contato vivo que é util na formacio. _ Mas isso equivale a dizer também que, se eu quiser ter um ido vivo do sentido vivido numa sessao terapéutica, este sd Jerd ser uma versio atualizada no presente, do sentido vivido l4.O ilo sera tudo memoria apenas, ou esquecimento. O tinico acesso isivel ao sentido vivo de um encontro se da através de versdes iais dele, no vivido de quem o reatualiza. Aquele grupo de colegas, naqueles anos de 1989/90 na USP, ja realizado uma exploragao em acao da experiéncia do sentido. E foi publicado em 1991 em um artigo que teve por titulo: O ido-que-faz-sentido: uma pesquisa fenomenologica no processo peutico (Amatuzzi; Solymos; Ando; Bruscagin & Costabile, 1991). Gostaria de prolongar hoje aquelas reflexdes para fazer face a imas objecdes que surgiram depois, em encontros com outros gas. E principalmente a duas delas: 78 Mauro Martins Amatuzzi - 0 sentido nao tem versao (e portanto a VS nos distancia do sentido vivo), e, 2. a VS nao nos da acesso ao que de fato aconteceu (e portanto nao serve como instrumento cientifico de pesquisa). A VS éuma versio do sentido vivido de um encontro, através do sentido vivido logo depois (¢ por isso mais facilmente surpreendido), Mas ela podera ser também apenas memoria, se nao for atualizada em outro didlogo vivo. Isso também foi experimentado naquele grupo. Ao invés de a sessio ser trazida ao grupo como um objeto a ser analisado (através de um relatério), era lida a VS, e a ela reagiamos com comentarios livres, inclusive do proprio terapeuta. Esses comentarios foram se revelando ser de dois tipos, quando mais uteis. No que diz respeito ao terapeuta (autor da VS) foi interessante constatar o poder de evocacao que a VS tinha. Era como um registro condensado do vivido, ¢ que permitia 4 pessoa nao apenas lembrar-se do ocorrido, mas também, falar disso de forma viva, atual, como pela primeira vez, explicitando detalhes do vivido. E por parte dos outros membros do grupo constatamos que os raciocinios ou interpretagdes causais nao ajudavam, muito, pelo menos no primeiro momento. Mais valia simplesmente dizer, de forma simples e presente, o que se tinha ouvido a partir da leitura da VS, ea reago que ela havia provocado. A partir dai se iniciava um didlogo que cumpria aquilo que, com Buber, poderiamos chamar de “presentificagao” do sentido ou dos significados vividos (agora em novo contexto interlocucional). S6 quando isso estivesse realizado, é que outras formas de consideracio ou raciocinio se faziam tteis no acompanhamento reflexivo da experiéncia. Em um outro grupo posterior, tratando-se de uma experiéncia didatica (desta vez na PUCCAMP, em 1995), constatamos que aquilo que para o autor da VS podia inicialmente parecer sem sentido se lido para terceiros, para os outros que ouviam de fato transmitia muito exatamente a qualidade do vivido, mesmo que nao houvesse ali informagdes sobre o empirico do que tinha acontecido. Isso aconteceu mais ou menos assim. Numa sala de aula do curso de p6s-graduagao em psicologia clinica, alguns alunos estavam trabalhando com versGes de sentido para acompanhar experiéncias semanais de atendimento clinico, educativo ou de assessoria a grupos. Haviamos feito um rapido “treino” para escrever VSs no. yma Psicologia Humana 19 eco do curso. Quando um determinado aluno foi ler sua VS pela eira vez, ele hesitava muito, e, com muitas explicagGes, dizia que ‘yia sentido em ler aquilo para outras pessoas. Por fim foi pedido ele a lesse assim mesmo, e, sem comentarios, ouvisse 0 que os gas tinham a dizer acerca do que tinham ouvido. Ao final dessas dos colegas, o primeiro declarou estarrecido que eles tinham 0 essencial daquele encontro, mesmo sem saber nada de seu do. Pessoalmente comecei a pensar que uma VS bem feitaé uma ic de radiografia fenomenoldgica de um encontro. Até agora pretendo estar afirmando que: 1. Uma VS é uma forma de contato vivo com o sentido de um encontro. 2. Osentido para o qual aponta uma VS se torna atual quando ela é colocada num contexto de interlocugdo presente. 3. Ela tem o poder de transportar o vivido de forma condensada. Ela evoca lembrangas e desdobramentos de sentido em seu autor, e passa para os ouvintes um sentido essencial, mesmo quando nao passa detalhes fatuais. Mas outras coisas também pudemos constatar naquele primeiro . Vejamo-las: 4. Uma VS pode ser re-escrita pelo seu autor sem que ela deixe de ser uma VS. Verificamos que 0 seu autor pode torné-la atual, e nesse ato poderd haver novas explicitagdes ou desdobramentos de sentido. Em suma, pode haver versdes de versdes de sentido. Isso 6 importante do ponto de vista da pesquisa. No fundo o método qualitativo de pesquisa consiste em re-escrever sucessivamente a mesma coisa (ou fazer sucessivas leituras) até que se chegue a uma depuragiio do significado que se procura. E quando é 0 préprio sujeito que faz isso (sozinho ou em interlocugao), nfo seria de estranhar que se acrescentassem eventualmente significados novos ao mesmo vivido. 5. Mas poderia ser uma VS re-escrita por outra pessoa? Poderiamos talvez dizer que a transcrigao feita por um pesquisador seria tio mais apropriada quanto mais ele tivesse participado da re-criagao do sentido através de um grupo de interlocucdo, na medida do possivel com a presenga do autor. Permanece valido, no entanto, que re-escrever (ou x . Posteriormente a esse grupo, que durou aproximadamente um Mauro Martins Amatuzzi transcrever) 6 fazer uma outra versio do mesmo sentido, a partir do atual ponto de vista de quem o faz. O trabalho com VSs em grupo (ou numa dupla) pode ser equivalente a uma supervisdo. Isso também foi constatado por membros do grupo de trabalho com VS, e que, por outro lado, estavam em supervisdo com outra pessoa. 0. que se dizia é que a discussao no grupo estava sendo mais significativa do que aquela que a pessoa tinha em sua supervisao. Foi por causa disso também que muitos colegas passaram a usar a VS como método de supervisao, ¢ alguns chegaram a levar trabalhos em congressos sobre essa experiéncia. ano, trabalho prosseguiu de outras formas. Uma das formas mais significativas foi o trabalho com seqiiéncias inteiras. A conclusao foi que, a partir da andlise de séries de VSs, referentes a um mesmo processo, é possivel descrever, de un) ponto de vista mais fenomenologico, esse mesmo processo, As versGes de sentido, sesso por sessao, olhadas em conjunto depois de terminado 0 processo, possibilitam uma visao mais condensada do todo, e ao mesmo tempo rica em detalhes experienciais (embora nao em detalhes fatuais). Um trabalho nesse sentido ja foi publicado (ver cap. VII), e outros estéo en) andamento. Uma questao importante que aqui se coloca é de se saber se ¢ possivel descrever um processo do qual participaram pelo menos duas pessoas, a partir das VSs de apenas uma delas, Se entendemos por processo a seqiiéncia de fatos ocorridos, objetivamente considerados, e envolvendo todas as pessoaj em relago, ent&o certamente que a descrigao feita a partir de VSs seria muito parcial. Mas se processo se referir nao a fatoj objetivos, e sim a seqiiéncia de significados vividos dw encontro para encontro, e se esses significados foren) entendidos como sendo do encontro, e nao de cadi participante em separado, entéo podemos hipotetizar que (i série de VSs nos dé acesso ao desenho do processo. Cada V§ P ima Psicologia Humana 81 sera aqui realmente apenas uma “versao” do sentido do encontro, e é enquanto tal que ela deve ser analisada. E claro que significado ou sentido do encontro é um conceito de dificil apreensao. O que é isso na pratica? No entanto é ele que mais interessa na avaliagdo de um processo: o que cada encontro possibilitou em relagdo a um movimento de conjunto, e como esses elos se articulam na cadeia. E no caso de um processo terapéutico, sera principalmente o significado que 0 encontro teve para o cliente que ira definir seu sentido. Ora, 0 terapeuta como tal é uma pessoa voltada para isso, e é nesse papel que ele faz suas versGes de sentido. Elas podem ser, portanto, aqui de particular relevancia. Mais pesquisa seria aqui necessdria, envolvendo comparativamente VSs de terapeutas e de clientes (ou de todos os participantes do grupo), sem divida. No entanto eu ousaria dizer, teoricamente, que a natureza das coisas aqui em jogo é tal que as VSs de um participante apenas podem nos dar um razoavel acesso ao sentido do processo como um todo, desde que sejam lidas sob esse ponto de vista. Preciso acrescentar aqui que, atualmente, ja existem pesquisas envolvendo VSs de clientes ou participantes de grupo, por exemplo: Alves, 1996; Prebianchi & Amatuzzi, 2000; Macédo, 2000. Mais pesquisa seria aqui necessdria, envolvendo comparativamente VSs de terapeutas e de clientes (ou de todos os participantes do grupo), sem divida. No entanto eu ousaria dizer, teoricamente, que a natureza das coisas aqui em jogo é tal que as VSs de um participante apenas podem nos dar um razoavel acesso ao sentido do processo como um todo, desde que sejam lidas sob esse ponto de vista. Preciso acrescentar aqui que, atualmente, ja existem pesquisas envolvendo VSs de clientes ou participantes de grupo, por exemplo: Alves, 1996; Prebianchi & Amatuzzi, 2000; Macédo, 2000. 8. Ha uma outra conclusao a que pudemos chegar, no entanto, que torna relativas todas as anteriores. E que a | uma Mauro Martins Amatuz7) coisa que se vai aprendendo a fazer, assim como se aprende a chegar a uma fala auténtica a partir de um habito anterior de falas inauténticas, mecanizadas, e sé indiretamente expressivas. Nao basta uma simples instrugao para que 4 pessoa esteja pronta para escrever uma VS. E comum que ela comece fazendo relatos de observa¢do neutra, ou mesmo elaboragées légicas a respeito do ocorrido. E sd. pouco a pouco que a VS vai se aproximando de uma fala expressiva da experiéncia imediata, Nossa historia com esse instrumento pode nos dizer algumas coisas aqui. Uma primeira é que justamente if aprendendo a fazer VSs é ir aprendendo a lidar de forma viva com 0 significado das coisas e, conseqiientemente, if aprendendo a relagao psicolégica. Isso parece importanté no aspecto pedagdgico da formagao. Em segundo lugar, se deve dizer que a VS nao ¢ tao varidvel em seu valor expressivo quanto o seria a fala direta ni presenga do cliente. O recuo no qual ela é feita (sob o climi: do encontro, mas sem a presenga do interlocutor) permil¢ mais facilmente seu carater expressivo. Além disso cla ¢ passivel de “corregdes” no grupo de acompanhament reflexivo (supervisao). E finalmente, é importante dizer que uma boa anilise d¢ qualquer documento deve levar em conta as caracteristici de seu valor heuristico. Pré-historia e outras abordagens Rogers, em 1951, em seu “Psicoterapia Centrada no Cliente", utilizou-se também de relatos livres do proprio cliente para ilustt) 0 processo. Segundo ele, foi espontaneamente que uma determina cliente escreveu apés cada sessio. No fim do processo de 8 sessdes ( terapeuta recebeu todos esses escritos que serviram, entao, pil mostrar como as coisas se passaram “aos olhos do cliente”. Eis cor ele apresenta os manuscritos: \ima Psicologia Humana Depois desta primeira entrevista, ela (a cliente) escreveu, de forma bastante completa, suas impressdes, e mostrou o relato ao conselheiro antes do segundo encontro. O conselheiro a incentivoua continuar realizando esses informes pessoais depois de cada entrevista, para incrementar nosso conhecimento da terapia. Disse a ela que quanto mais sincero fosse o informe, implicando afirmacées positivas ou negativas, mais valioso seria © registro. Nao se voltou a mencionar o informe nas entrevistas seguintes, e o conselheiro sé os recebeu ao final dos contatos terapéuticos. O relato é extensamente auto-explicativo, mesmo que a autora o interrompa por momentos com comentarios (Rogers, 1972-1951, pp. 88-9). A cliente fez algo que se aproxima um pouco de nossas VSs, e foi utilizado depois num estudo de carater eminentemente litativo. Algumas express6es chamam a atengdo: informes oais, sinceros, para incrementar nosso conhecimento. Infelizmente essas sessdes nado foram gravadas para que se sse comparar os informes escritos com as gravagGes, e nciar assim nao s6 o que a gravacao tem a mais, mas também o 8 informes tém a mais, e que nao poderia nunca ser gravado. Bastante cedo também nos Estados Unidos 0 videotape foi do como instrumento e técnica a servigo da terapia. Um dos consistiu em recapitular a sesso, com sua ajuda, junto com 0 euta ou o cliente, permitindo novos insights sobre a relagado. Isso na técnica de supervisio, a Interpersonal Process Recall (IPR), na década de 1970. Segundo um comentario de Bernard & ear, em seu livro sobre a supervisio (1992, p. 26), embora o do parega comportamental, ele tem também um aspecto i, P fac FA menolégico, pois assume que as proprias pessoas sio os s intérpretes de suas experiéncias. Eles dizem também que loxalmente tal técnica permitia um acesso mais livre ao vivido 0 da propria sesso, pois diante do video o terapeuta permitia facilmente que os insights emergissem de dentro de si mesmo. de uma re-experienciagao da sessao diante do video. E 0 do presumivel, podemos deduzir, é que os comentarios assim apds a sessdo, com o distanciamento do contato imediato, Onavam sentimentos ou lembrangas vividas 14, mas nao zadas, € que, portanto, nao apareciam na gravagio. 84 Mauro Martins Amatuzz) ina Psicologia Humana 85 a atividade em questao, escreva, o mais espontanea ¢ ramente possivel, baseando-se em seus proprios sentimentos ; momento, o que lhe parece ter sido 0 essencial deste encontro abou de acontecer”. Ou: “escreva livremente acerca do acabou jcontecer”; ou ainda: “escreva como vocé esta, face a esse intro que termina”. E importante que o proprio autor experiencie nificancia do que ele esta escrevendo ou falando. Qualquer iliva de “instrugao” deve ser apenas 0 come¢o de um processo em go a um texto ou depoimento cada vez mais expressivo da riéncia imediata face ao encontro, e que seja ao mesmo tempo ificativo para quem escreve. Aum texto assim produzido, nés o denominamos uma “versdo mntido” porque ele pode ser um indicador indireto (mas o mais que podemos dispor) do sentido do encontro. Ele é uma verséo itido do encontro, tal como ele existe no presente da experiéncia | pessoa. E 6 quando utilizada dessa forma que uma VS pode ser astrumento Util em pesquisa e formagao. Podemos entdo falar de versdes de sentido como método. liste essencialmente em versar e conversar sobre o sentido até te chegue a uma presentificagao dele suficiente em relagdo ao sperado daquela atividade. Versar e conversar: fazer versdes mtido, e “‘con-versar” a partir delas fazendo novas versdes. ntificagdo: palavra de estilo buberiano, que quer dizer, aqui, jtar experiencialmente os significados, isto é, néo apenas os conceitualmente, mas torna-los presentes vivencialmente. trata do acompanhamento critico de uma experiéncia O mesmo pode ser constatado com o uso de questiondrios aplicados a clientes e terapeutas logo apds a sessao. As perguntag mencionadas em estudos como os de Heppner, Rosemberg ¢ Hedgespeth (1992) ou de Stiles, Reynolds, Hardy, Rees, Barkham @ Shapiro (1994) e que ja constituem instrumentos padronizados visam colher dos clientes ou dos terapeutas, imediatamente apés a sessio ¢ ja n4o na presenga um do outro, seus sentimentos, pensamentos ou avaliagdes acerca do encontro recém-terminado. E claro que aj respostas continham dados muitas vezes diferentes dos qué apareciam nas gravagoes. A VS segue esse mesmo espirito, sé que ela é feita de forma mais livre, nao padronizada, ¢ a partir daquilo que a propria pessod considera importante. Tentativa de definicdo Como produgéo, uma VS € a fala, 0 mais auténtica possivel, que toma como referéncia intencional um encontro vivido, pronunciada logo apés sua ocorréncia.Fala auténtica: é important que seja uma fala expressiva da experiéncia imediata, fala primeiti, original, esponténea, e no necessariamente um raciocinio, teorizagdo, cumprimento de instrugdes ou relatério. Referénel intencional: esta fala é expressiva da experiéncia imediata, face a U encontro. A situagao: uma relag4o interpessoal, uma aula assistid um grupo, ou mesmo qualquer encontro com um objeto significativa, Esta fala é pronunciada Jogo apos a ocorréncia do encontro, e tendo. como referéncia. A situagao interlocucional que define o encontro j nao é exatamente a mesma; 0 sujeito nao esté pressionado pe necessidade da resposta, e nesse sentido esta mais livre para Uf acesso a sua experiéncia imediata. Como produto, a VS sera um texto expressivo da experiéne! imediata, escrito ou gravado por iniciativa da propria pessoa, oi) solicitado por um interlocutor. A rigor poderia ser qualquer tipo (f produgao simbélica. Como poderiamos solicitar uma VS de um cliente, de i) supervisionando, de um auxiliar de pesquisa, ou de um participat| de grupo? Uma possivel maneira simples seria pedir a ele que “loy © sujeito mais bem preparado e disponivel para 0 proximo iro. Se se trata de pesquisa, a presentificagaio esperada é aquela odemos buscar uma justificativa tedrica para a versao de sentido fenomenologia da linguagem inspirada em Martin Buber ¢ e Merleau-Ponty. Em dois artigos reuni alguns elementos que 386 Mauro Martins Ami icologia Humana preparam essa tarefa (Amatuzzi, 1991 ¢ 1992). Mas agora quero su r em que diregdes podemos desenvolver essa fundamentagao. (© reconhecimento da identidade,- revela essa propria Para além dos elementos simbélicos do discurso, a fala, cot) de no ambito da interlocugao (as vezes até para o proprio ato, € um simbolo. Quer isso dizer que nao apenas ela cont \ua fala tem essa funciio reveladora, isto é, reunidora de niveis elementos que, advertida ou inadvertidamente, remetem a ouli s de identidade). coisas (elementos simb6licos), mas que em si mesma ela “retij\@! © caso de uma VS, enquanto potencialmente ouvida por outras pée junto uma série de coisas que antes estavam separadas, e 0 (oupelo menos pelo seu préprio autor), elao da aconhecer, em intencionalmente (simbolo). Quanto mais a fala se cumpre coil menor profundidade, tornando disponivel seu existir em simbolo, menos importantes serdo seus elementos simbélicos. Quilill \0 projeto envolvido pelo encontro. No caso de um terapeuta, mais ela exerce sua fungdo simbdlica, menos aparecem elemeil a a tornd-lo mais disponivel para o préximo encontro na simbélicos inadvertidos. em que foi ouvida por alguém (e compreendida), ou ao menos Aafirmacao, como ato, retine sujeito e predicado, permitindo ti siada conscientemente por seu autor. Em supervisao, pois, a VS conhecimento maior. A designagao retine sujeito e objeto num me} autor, traz seu projeto, da-o a conhecer nesse novo contexto mundo de significados; sem ela 0 objeto permaneceria totalmi locucao. E esta é justamente uma das finalidades da supervisio. estranho e nao integrado ao mundo de significados do sujcito. O aning ite lembrar que o distanciamento calculado no qual é feita a reune 0 ouvinte € 0 arauto com aquilo que é anunciado, e que se faz, jlita o aparecimento de aspectos até entéo mais ou menos entdo, intencionalmente presente aos dois. Um pedido retine a pesso idos do projeto. quem ele se dirige com uma caréncia solicitante do sujeito, aii segundo lugar a palavra também pée junto passado, presente ignorada. Mas ha outras coisas que sao postas juntas ao mesmo tel ), Bla torna atual o projeto a partir de suas taizes no passado, e nesses atos todos. No pedido, por exemplo, a caréncia do sujeito par 0-0 em diregfio ao futuro, Ela cumpre uma atualizacdo, € tanto até nao ser ignorada, mas a outra pessoa aguardava que a primeiti) ito mais compromete o falante. Dai porque uma VS precisa ser manifestasse para que elas duas se reunissem num vinculo omo fala auténtica, que compromete o falante como numa provimento ou subordinagao. O proprio pronunciamento do pedido quem o faz implica o reconhecimento de uma caréncia e de necessidade do outro, ou seja, implica a decisdo que assim seja. Isto um ato que reine no sujeito uma série de coisas em seu mundo inter Eassim por diante. Em varios niveis a fala reune, e poderiamos dizer ela pde junto esses niveis também. E por isso, alias, que ela leva adianl experiéncia, desdobrando significados. E isso também que signif estar em processo. Pensando em nosso problema que é a fundamentacio verso de sentido, podemos dizer que a fala, como ato, péde juil retine, coisas em 3 niveis. Em primeiro lugar e basicamente, ela pde junto pessoas. A permite o reconhecimento das pessoas em relagao a um proj Quando falo e sou ouvido, minha fala me da a conhecer naqul| intengdes que constituem meu existir nesse momento: e isgi ilhado em uma relagdo. Ao mesmo tempo, pois, que reine possibilidade de uma nova re-experienciagio. E esse poder sera jaior quanto mais apropriado e facilitador for o contexto dialdgico ila, estou tomando posi¢ao em uma situagao atual, mas sem ir que tudo que nisso esta implicado se faga presente (se retina). 88 Mauro Martins Amal Psicologia Humana 89 s nos colocarmos na perspectiva de Buber (1982-1953), 0 » de uma relagiio nao se encontra propriamente em nenhum irticipantes. Em cada um, segundo ele, existe apenas 0 ipanhamento secreto da propria conversagao”, que é seu 9 subjetivo ou psicolégico. O sentido de uma relagdo -se somente neste encarnado jogo entre os dois, neste seu Entre }), De nosso ponto de vista, isso aponta para o fato de que 0 lo deve ser buscado numa leitura do segundo tipo acima citado, esma inserida num contexto relacional. Finalmente, quando se busca 0 sentido de processos, deve-se com séries de VSs. Elas permitem um olhar de sintese muito imediato ¢ rapido do que o que se poderia obter a partir de Ges. 0 que resulta disso tudo para o uso de VSs na formagao e na io cientifica? ; f convicg’io minha que, apesar de as explicagdes serem aqui is (porque se referem a algo nao convencional em pesquisa), se se iniciar alguém a uma abordagem do sentido, é preciso comegar do exatamente isso, € nao outra coisa. E preciso que a atividade de iio seja de mesma natureza que a pretendida, ¢ nao diferente. oO ode diferir aqui, para uma iniciagao, seria o carater de menor risco, mos assim, da atividade pedagégica. Ora, é exatamente isso que as como método possibilitam. Antes de se atender um cliente, por plo, pode-se iniciar fazendo versdes de sentido da propria situagao jal de formagaio: e ja estaremos lidando com algo da mesma natureza ue aquilo que ira acontecer no atendimento. E a conversa que ocorre isnas sessdes de acompanhamento equivale a um. “treinamento” de ‘com significados. Coisa andloga se pode dizer a propésito da iagio cientifica, quando se trata de pesquisa qualitativa ou ymenolégica. Em nossa experiéncia pudemos perceber a indidade do uso de VSs para uma abordagem do sentido, tanto na magzio como na pesquisa. Meus modelos de relacionamento aprendidos em outras relagées, exemplo, tendem a se fazer presentes nesta. Mas se nao me dou coil disso (isto é, se isso nao é significado de alguma forma por mi minha tomada de posigao perde em autonomia, e os relacionament anteriores tendem a se fazer presentes inadvertidamente através (| elementos simbdlicos da fala (no mais das vezes somente decifravi por peritos). Uma VS “traz” para 0 novo contexto de interlocucao (0 aqui vivido anterior (no 14). E nao ¢ raro vermos uma verdadeira reedi¢) das mesmas relagGes vividas la, entre essas pessoas aqui. Em suma, 0 poder da VS se fundamenta no poder da fil Quanto mais auténtica ela for, tanto mais poder direto ela tera (isto aquele que decorre de sua funcao simbdlica como ato), e menos pot indireto (isto é, aquele que decorre de seus elementos simbdlicd inadvertidos). Principios gerais para o uso da Versdo de Sentido O que resulta disso tudo para a andlise de VSs para fins (i pesquisa? O contexto ideal para sua “interpretagao” (compreensio di sentido que ela transporta) é o de uma interlocugao onde ela e seu aut) se fazem presentes. E nessa nova interlocugao que se reedita o sentidy mesmo quando implicando novas falas mais explicitas. E isso qui acontece em supervisdo, e é isso que pode também acontecer cil) pesquisa. E preciso que se aceite entretanto a figura do “parceiro” de pesquisa. Nesse novo contexto se “versa e conversa”, tendo a mest referéncia intencional, até se chegar a explicitagdo pretendida. Um outro ponto importante é que a VS pode ser “lida” em dol niveis. Ela transmite primeiro a vivéncia de seu autor. Mas num segund nivel, ela transmite 0 sentido da relagao vivenciada pela pessoa. E nesy segundo nivel que ela merece, mais apropriadamente, 0 nome di “versao”: ela sera uma versao do sentido da relagao, ou seja, a versild desta pessoa. A leitura que se faz depende do nivel em que o pesquisado} se coloca, 0 que por sua vez depende do objetivo da pesquisa. lo Vil as do Processo Terapéutico Por quais etapas passa o individuo que, estando plenamente envolvido numa relac4o terapéutica, se propde a explorar sua experiéncia visando superar alguma situagao pessoal vivida como problematica? E possivel descrever essas etapas a partir de Versdes de Sentido das sesses escritas pelo terapeuta? Para responder a essas questdes examinaremos, neste capitulo 3, seqiiéncias de Versdes de Sentido. Para isso retomo um texto que foi originalmente publicado na Revista Psicologia: Teoria e Pesquisa, da Universidade de Brasilia, em 1993, 9(1), pp. 1-21, como titulo Etapas do processo terapéutico: um estudo exploratorio. Fiz apenas pequenas modificagSes nesse texto para adapta-lo a esta publicagao. blematica te estudo se desenvolveu no interior de um terapeutas que toda semana se reunia para sobre seus atendimentos. A sistematica dessa era tomarmos como ponto de partida breves sintéticos da experiéncia imediata do uta, escritos imediatamente apds o lento. A esses relatos demos o nome de s de Sentido (VS). A expectativa era que o de fazer VSs nos colocaria, a cada um, mais 10s do movimento que constituia 0 processo itico com aquele cliente em particular e, ao 0 tempo, nos ajudaria a estarmos mais 2 Mauro Martins Amatuzz| a Psicologia Humana 93 Da mesma maneira que muitos psicdlogos se interessaram pelos aspectos constantes da personalidade [...] também eu me interessei, desde muito tempo, pelas constantes que intervém na modificagao da personalidade. [...] qual é o processo em que essas modificagdes ocorrem? (Rogers, 1961, p.108). disponiveis a ele no préximo encontro. Esta era a dimensao de “formagdo” que esse grupo tinha. Havia, no entanto, ainda uma outri expectativa. O que essas VSs poderiam revelar do processo s@ analisassemos séries mais ou menos longas delas? Foi com umi) pergunta como essa que nos propusemos a trabalhar quando pudemoy dispor de trés seqiiéncias de VSs praticamente completas, ¢ qué Em outras palavras: existe alguma regularidade na forma como abrangiam, cada uma, um processo de atendimento desde 0 comegd m as mudangas terapéuticas? Para fazer isso Rogers deixa de lado até o fim. caminhos e opta por um terceiro. O primeiro caminho corresponde As possibilidades de andlise de um material como esse sao, sett} ntagdo em vigor nas pesquisas até entao: saber alguma coisa sobre divida, maiores que as que desejamos aqui apresentar. Nossa anilisé rocesso pelo estudo dos resultados (idem, p.109). Foram medidos nao naquele momento, contudo, restringiu-se a um aspecto apenas: podiat} resultados finais, mas intermediarios. No entanto, face aos as VSs nos mostrar um “desenho” do processo, do comego ao fim, ett] sitos de Rogers, isso levava apenas a cortes fotograficos que nao termos de etapas ou fases vividas pelo cliente na relagio com @ viam 0 movimento. terapeuta? A resposta a que chegamos foi positiva. E 0 que noj propomos agora aqui é refazer esse caminho com a preocupa¢ao de determinar, 0 mais exatamente possivel, o seu alcance. Ha ja quase 40 anos Rogers (1958), num trabalho pioneiro, §\ dedicou a descrever as etapas do processo terapéutico. O cap.5 de se Tornar-se Pessoa, publicado originalmente em 1961, traz o prime texto desse seu trabalho, que foi feito entre 1956 ¢ 1957. Eis como ele apresenta: Mesmo esta ultima técnica (medidas intermedidrias) forneceu-nos poucas indicagdes quanto ao processo em si mesmo. Estudos sobre resultados segmentados sao ainda medidas de resultados e, por conseguinte, fornecem poucas _ indicagdes sobre a maneira como se opera a transformacao (Idem, p. 109). ; E a maneira como se opera a transformagdo que também esta weocupando aqui. O segundo caminho é 0 da formulagao tedrica, acompanhada, lo possivel, de observacio clinica (idem, p.109). E Rogers considera ertamente isso é possivel, a partir mesmo de varios quadros de cia tedricos. No entanto nao é isso que mais interessa quando ita de um campo de investigag4o novo (idem, p. 110). Considera ele que, como abordagem primeira em um novo io, 0 importante é que Se nos capitulos precedentes 0 processo terapéutico é encarado de um ponto de vista quase exclusivamente fenomenolégico, a partir do quadro de referéncia do paciente, este capitulo procura captar aquelas qualidades de expressao que podem ser observadas por outra pessoa e situa-se, portanto, num quadro de referéncia externa (Rogers, 1961, p.107). Trata-se portanto de analisar 0 processo terapéutico vivi pelo cliente na relagio com o terapeuta, mas no tanto do ponto vista das percepgdes dele mesmo (0 que Rogers chama aqui perspectiva fenomenoldgica), mas sim a partir de uma anilise (| outra pessoa possa fazer. No entanto o que ele pretende estudar é processo em si mesmo, 0 processo através do qual a personalidade altera (Rogers, 1961, p.108). Diz ele també: nos fixemos nos acontecimentos, que nos aproximemos dos fenémenos com o minimo de preconceitos possivel, que assumamos a atitude observadora e descritiva do naturalista, recorrendo a inferéncias pouco diferenciadas (low-level inferences) que parecem mais conaturais ao material estudado (idem, p. | 10). cE interessante como isso se aproxima do que, numa linguagem ite da de Rogers, vem a se chamar de pesquisa fenomenoldgica: imar-se dos fendmenos descritivamente, sem idéias 94 Mauro Martins Amatuzzi iruma Psicologia Humana 95 ila gravando tudo, pode deixar de ser ativo na exploragdo da experiéncia fazer surgir os dados relevantes. O outro comentario concerne ao fato de que Rogers polarizou preconcebidas, com generalizagdes as mais proximas possiveis dos dados. Interessante também o comentario com o qual Rogers caracteriza © seu método: empreguei o método que muitos de nés utilizamos para levantar hipdteses, um método que os psicélogos de nosso pais parecem relutantes a expor ou a comentar. Usei-me como instrumento (idem, p. 110). Tanto Mucchielli (1991) como Chizzotti (1991), por exemplo, consideram que esse usar-se como instrumento pode ser caracteristica da pesquisa qualitativa. Mas Rogers considerava que isso 6 0 levaria a levantar hipéteses uteis. Rogers trabalhou a partir de gravagées de sessdes terapéuticas, seguindo determinados passos. Em primeiro lugar ouviu, repetida ¢ pacientemente, as gravagées, procurando ingenuamente (sem crivos de analise) apreender 0 que fosse relevante para uma compreensio do seu assunto. Algumas categorias emergentes eram extraidas dos fatos mais simples. Em seguida ele formulava essas observagées e essili abstragdes elementares (low-level abstrations) de modo a poder-s@ destacar imediatamente hipéteses verificaveis (idem, p. 111). HA dois comentarios importantes a serem feitos aqui quanto i) metodologia e seu alcance. O primeiro diz respeito ao uso dd gravador como forma de registro. Esté fora de divida que i metodologias qualitativas tiveram um grande impulso a partir dessiiy formas de registro, como comentam, por exemplo, Brioschi & Trigo) lor de sua descrigéo do processo terapéutico, em si mesma insiderada, ficou mais ou menos perdido, e a pesquisa se orientou jum processo num determinado momento. A preocupaciio deixou 1 descritiva ou compreensiva, e passou a ser avaliativa. O proprio Rogers trabalhou logo depois em uma escala Iker; Rablen & Rogers, 1960), e esta foi a matriz de muitas outras » por exemplo, nos apéndices do livro de Rogers, 1967). Marziali Jexander (1991) fazem uma interessante revisio bibliografica da ima década a respeito dos estudos sobre os componentes da ligdo terapéutica, sua definigdo e mensuragdo. Segundo essa slo os estudos se centram em medidas da qualidade da relagao euta-cliente em diversos momentos do processo, ¢ sua relacao 1 os resultados da terapia. Existe, sem divida, a preocupagao da ficia, uma vez que se pretende prever, 0 mais precocemente sivel, o resultado da terapia a partir da avaliagao da relagao peuta-cliente conseguida nas primeiras sessées, e com isso evitar imentos que tenham poucas chances de sucesso. A idéia de se uma descrigao fenomenoldgica das etapas do processo, tudo, um “desenho” de seu movimento para se saber como ocorre udanca, como era a intuigao original daqueles primeiros estudos ogers, foi praticamente abandonada. A intengiio de se aproximar icontecimentos para entender 0 processo, e assim contribuir para rn ago e aperfeigoamento de terapeutas acabou se perdendo. josso estudo busca resgatar exatamente esta intencao. paradoxalmente, pode-se afirmar que o desenvolvimento tecnolégico favoreceu a efervescéncia dos métodos qualitativos, na medida em que 0 uso do gravador substituiu apontamentos manuscritos no campo ou mesmo memorizados, de forma, muitas vezes, imperfeita ou incompleta (Briochi & Trigo, 1987, p. 631). Por outro lado, entretanto, 0 gravador possibilita um distancl mento entre o pesquisador e o pesquisado que pode ameagar algumas (| caracteristicas da pesquisa qualitativa, particularmente o envolvimento ( pesquisador ¢ a validagao em situagao (sobre esses conceitos Vi Mucchielli, 1991, pp. 20-1). O pesquisador, apoiando-se no fato de ( O que chamamos de “Verso de Sentido” (VS) é um relato escrito pelo terapeuta, imediatamente apés o término de cada , A intengao nao é substituir por um relato de memoria o que 96 Mauro Martins Amatuzz) poderia ter sido gravado. Nao se trata de um registro de fatos, mas da experiéncia presente do terapeuta, ainda no clima emocional da sessao: o que ele apreende como sendo 0 sentido daquele encontro, Heppner, Rosenberg e Hedgespeth (1992) trabalharam com questiondrios aplicados imediatamente apés cada sesso, para captar pensamentos e interpretagdes de clientes e terapeutas a respeito da sesso recém-terminada. Nossa VS é escrita somente pelo terapeuti (se bem que ja existam estudos baseados em VSs escritas pelos terapeutas ¢ pelos clientes), e nao em resposta a algum questionario, De fato tentamos usar perguntas guias (cf. Amatuzzi e col.,1991), mas elas nao se revelaram muito Uteis para 0 que queriamos captar: 0 sentido da sessao, tal como vivido pelo terapeuta na relac&o com sell cliente. Naquele mesmo estudo anterior citado, 0 que se evidenciou, como caracteristicas desse sentido, foi 0 seguinte: 1. ele é tanto objetivo como subjetivo, uma vez que se trata di) experiéncia do terapeuta enquanto intencional; 2. € ao mesmo tempo um sentido captado e um sentido produzido: sé 0 percebo quando 0 produzo como participanté da relagdo; 3. ele é uno e miltiplo, isto ¢, pode se desdobrar em outros sentidos (em atos sucessivos de expresso), assim como pode nao ser percebido no primeiro momento da VS, ou numa primeira VS; e ele sé aparece quando o proprio ato de o expressar fizer, eld também, sentido (cf. Amatuzzi e col., 1991, pp.10-2). E dificil colocar tudo isso numa instrugo normativa rigida qué produza sempre VSs homogéneas. A experiéncia mostrou que VS ¢ algo que se vai aprendendo a fazer assim como se vai aprendendo (| ser terapeuta. E é dificil dizer que se é terapeuta sempre da mesmi) forma com qualquer cliente e em qualquer sessao. De qualquer form) 0 ponto de partida foi o de escrevermos um relato livre do sentido di encontro, tal como vivido por nés, imediatamente apés o término sessio, e portanto ainda sob seu clima. Qual o valor, entéo, de semelhantes relatos? Sao relato) expressivos da experiéncia de um terapeuta, escritos o maj proximamente possivel do clima do encontro. Sao dados tipicamen| qualitativos, que nao podem ser tratados por crivos ou tabelas. N ima Psicologia Humana lem ser trabalhados como respostas a um questionario ‘onizado. E muito provavel, entretanto, que eles tenham uma didade muito grande em relagdo a nos mostrar 0 processo eutico em seu movimento, e exatamente por ser 0 que sdo. Até i so podemos concluir que as VSs tém estatuto de “documento”, nao sabemos o que pode ser tirado delas, nem como. ___ Outras informagées sobre essas VSs que foram aqui analisadas ) as seguintes: 1. Trata-se de seqiiéncias de VSs do atendimento de 3 pessoas pelo mesmo terapeuta; 2. Foram atendimentos semanais, em geral, e em alguns periodos mais criticos, duas vezes por semana; . O tipo de atendimento oferecido foi verbal, face a face, 0 trabalho do terapeuta consistiu em receber compreensiva mente a pessoa com suas inquietages, oferecendo a ela um espago dialégico desencadeante de seu proprio processo interior. O terapeuta tinha experiéncia de 15 anos em atendimentos desse tipo; 4. Duas das pessoas atendidas eram mulheres casadas, uma com um filho pequeno, e outra com dois filhos maiores que ja nao moravam com os pais; e a outra pessoa era um homem solteiro, de 25 anos aproximadamente, que morava com 0s pais juntamente com outros irmaos; 5. O que havia de comum entre eles, na intengado de procurarem terapia, era um desejo de fazer uma revisao de vida em fungao de problemas de relacionamento, e de um sentimento difuso de insatisfagao; 6. Os trés atendimentos foram considerados bem-sucedidos no sentido de que as trés pessoas, no final, consideraram ter conseguido 0 que procuravam. Isso nao significava, evidentemente, que todos os seus problemas estivessem resolvidos, mas que algo se cumprira ali, ¢ que agora eles podiam parar o atendimento; 7. Esses trés atendimentos foram escolhidos para esse estudo pela Unica razio de terem sido os trés primeiros que terminaram depois que o terapeuta comecou a fazer Versdes de Sentido de seus atendimentos. w 98 Mauro Martins Amatuza) 1a Psicologia Humana 99, Chamaremos aqui de Z a uma das mulheres, aquela que tinh filhos mais velhos. Ela foi atendida durante 9 meses; 31 encontrog, Nao temos todas as VSs; apenas 17. Ha principalmente duas falhas, Entre a 5a. sesso (Z5) ea 13a. (Z13), ha 7 sessdes sem VS, mas a di Z13 da uma idéia do que vinha acontecendo. Entre Z21 ¢ Z26 também nao ha VSs. Depoimentos orais de memoria do terapeulit mostram que um mesmo clima atravessa essas sessdes. Também dit la. sessio e da ultima nao ha VS escrita imediatamente apés, mil) apenas relatos orais posteriores do terapeuta. Chamaremos de S a outra mulher, aquela que tinha um fill pequeno. Ela foi atendida durante 7 meses, em alguns periodos com sess6es por semana. Houve 43 atendimentos, dos quais dispomos de 4 VSs. Como no caso anterior ha algumas falhas, mas, seja por dado) internos das préprias VSs existentes, seja por complementagées oral existe a possibilidade de se reconstruir 0 movimento da seqiiéncia. E chamaremos de L ao mogo; um professor que foi atendi durante 1 ano ¢ 3 meses, em geral também uma vez por semana (mas ¢ momentos mais criticos, 2 vezes). Neste caso a la. VS corresponded | sesso, pois foi s6 a partir dai que o terapeuta escreveu VSs. Houve encontros depois dos 12 iniciais (total: 54). Dos 42, temos 34 VSs. Aqi as falhas depois da 12* sesso esto mais espalhadas. Contudo nao registro do comego do processo (as 12 sessdes anteriores a L1). Devido a peculiaridades desses 3 atendimentos e desse estut e também por razdes éticas, as VSs nao sero aqui transcri integralmente na forma original. Contudo é possivel darmos algu exemplos de cada um dos 3 atendimentos (cuidando para que detalhes nao venhama ferir a confidencialidade do relato). O nim apés a letra indica a sessao. Eis as amostras de VS: Z13. Achei importante ela poder contar, reviver [...] Sao lembrary de que nao gosta. Prefere nao falar nem pensar. Mas fill Foram coisas horriveis. Tem muito medo [...]. Z15. Senti sono, Estava devagar, nada muito envolvente, 1 muito tranqiiilo. Ela contou que nao se revolta tanto 1) com... Z17. Chorou pela primeira vez aqui. De tristeza [...]. Uma y sem sentido, eu diria. Compreendi muito a dor dela... . Omedo de ficar louca, eo pedido de ajuda. Quer compreender © que se passa com ela. Muito nervosa, perdida |...] . Estava muito bem [...] Me disse que resolveu deixar de lado aquelas coisas, ¢ se sente melhor. Aceitagao. [...| Enfim coisas boas [...] . Senti mudanga em varias coisas. Maior aceitagio de si, abertura para projetos [...] Ficamos de nos ver (dentro de dois meses). . Segundo depoimento oral do terapeuta, posterior a essa sess4o que foi a ultima, Z declara que nao precisa mais do atendimento. } Ela quer fazer um balanco da vida num momento de virada. Senti-me ativo. . Tomara que o didlogo prossiga significativo para ela. Sinto que sou um interlocutor muito util. Ela tem muito que contar e eu vou reagindo [...] . Como ela tem engolido sapo! Sinto que ela est4 com uma vontade de rever tudo, como se tivesse vivido sempre errado. E muito forte. Nao quer se enganar dessa vez. Isso me toca muito. Sera que deixou passar a felicidade em outros momentos? [...] . Achei que me falou de desespero. Algo muito forte. O problema nao resolvido com... . Estava feliz por enfrentar um trabalho arduo que gosta, embora nao dé muito valor a esse tipo de coisa. . Nao sei o que foi importante. Foi um contar novidades [...] Ela lida meio diferente (com situagGes diarias). . Final feliz. Sente-se forte inclusive para dizer nao quando necessario. Milagres [...] . (13a.sess/Bo) E quando a gente nfo fica encucando muito que a vida pode prosseguir. Esta mais autoconfiante, alegre, solto, sem se impor decisdes ou ficar numa atitude critica [...] . O que me tocou foi 0 desejo de compreender [...] “por que afinal, assim?” [...] 100 Mauro Martins Amatuz7) a Psicologia Humana 101 ito gramatical, quando é usada a voz ativa ou a passiva, como se ibuem os tempos dos verbos etc. Em tudo isso, entretanto, ficava do o essencial: o referente, o tema vivencial do encontro, ou do género. Era esse referente que poderia dar sentido Aquelas s analises. Assim foi que nos perguntamos diretamente se nao possivel distinguirmos nos relatos etapas do processo, tificarmos momentos de mudanga ou de virada. Parecia possivel. O procedimento consistiu, ent&o, em dividir cada relato em juntos de VSs que teriam uma unidade identificavel na seqiiéncia, itificar pontos de mudanga. Ao mesmo tempo que isso se fazia, ‘vamos frases ou titulos descritivos dos conjuntos, e das ies criticas. _ Uma vez esbogadas essas divisdes e nomeagdes, procuramos se havia algo em comum ou comparavel nas 3 seqiiéncias, ou se poderiamos descrever um movimento parecido para Z, SeL; esse movimento poderia ser caracterizado por etapas também veis. Buscavamos, ent&o, agora, uma categoriza¢ao mais ampla, Uma outra informagao importante sobre esses relatos é¢ que gente, e aplicavel aos 3 relatos. Chegamos, ent&o, num primeiro eles foram feitos ingenuamente em relagio aos resultados da andlise nto, a conjuntos de VS ou VSs criticas identificaveis em cada posterior: o terapeuta nao tinha a menor idéia do tipo de analise que lo, e num segundo momento as etapas comuns aos 3 relatos. poderia ser feita, e muito menos de seus eventuais resultados. A ‘Vamos enumerar, a seguir, algumas caracteristicas dessa intengao de cada relato foi mesmo a de escrever algo de significativo, ise, importantes para sua apreciagao. ainda dentro do clima da sessao. 1. Ela no foi feita cumulativamente e sem retorno. O momento Ao final dessa caracterizagéo do material, devemoy de categorizar as etapas mais abrangentes e comuns aos 3 acrescentar que, se ele pode ter 0 estatuto de documento, é também telatos as vezes obrigava revisdes na categorizagao dos verdade que ele se apresenta de forma um tanto fragmentada. Isso conjuntos préprios a cada seqiiéncia. Quer isso dizer que os inviabiliza totalmente sua utilizagéo? Cremos que nao, dependendo dados foram forgados a caber nas categorias? Nao do tipo de analise que se queira fazer. necessariamente. Podemos também pensar que as categorias mais abrangentes, uma vez esbogadas, esclareciam os conjuntos proprios a cada seqiiéncia, permitindo que eles fossem mais bem expressos; ¢ esse fato, por sua vez, ajudavaa dar mais precisao as etapas mais abrangentes. Trata-se, na verdade, de uma interacéo dos niveis de categoria, com clarificagdes mutuas. Mas isso quer dizer também que essas L5. Quer mesmo enfrentar seu problema afetivo [...] Como. esta, nao esta bom. Falou mais abertamente do que antes sobre suas inquietagées [...] L23. So para lembrar: foi bom ele ter contado o sonho com todos: aqueles pontos [...] ¢ as associagées que fez [...] O sentimento de invasao e a mistura de dois mundos [...] Uma mistura ruim para ele. L33. Chorou porque se sente distante e com medo [...] Devo ser amigo? L34. Durante muito tempo alimentou um sonho que nao pode s¢ realizar [...] Parece um beco sem saida [...] L41. Foi uma conversa solta, esponténea, bem humorada, Continua ou nao? Mas se sim, diferente. Bonita a franquezit dele. Eu também me coloquei mais solto. L42. Decidiu parar. Encucar menos e viver mais. Contou .., Desse ponto de vista a terapia foi um sucesso [...] Os caminhos da analise Ao iniciarmos a andlise desses relatos nao sabiamos 0 qué poderiamos encontrar. Houve tentativas iniciais de se quantificar, medindo os tamanhos das VSs por niimero de palavras e por namerd categorias no sio simplesmente rotulos, mas correspondem a de palavras novas. Trabalhamos também com 0 tipo de construgild depuragées sucessivas que revelam a natureza do fendmeno: de frase: quem fala, de que se fala, quem € o agente quando ele nao 6 equivalem a aproximagées de esséncias fenomenais; Mauro Martins Amatuzz| 2. O encontro das etapas nao foi possivel sem a formulagao de algumas hipoteses, tais como: a) as etapas ou fases sid divididas em subfases qualitativamente diferentes; b) essag subfases nao estao sempre presentes explicitamente em termos de VS, seja porque nao aconteceram na sessao, sejil porque 0 terapeuta nao registrou esse detalhe. De novo @ mesma questao pode se colocar: nao seria isso forgar og dados? Mas também a mesma resposta pode ser dada: iss0: evidenciou uma estrutura que parece dar conta dos dados) 3. Essa anilise foi de alguma forma acompanhada pelo grupo de trabalho, mas nao houve o procedimento de submeté: a juizes neutros e independentes. Entretanto, o que tail) juizes poderiam fazer seria examinar a coeréncia interna dit anialise, apenas. Se fossem chamados a refazer a andlise # partir de nada, poderiam, no maximo, chegar a resultadow He: andlogos ou nao contraditérios. Isso corresponderia a umit I. espécie de confirmagao externa. Esperamos que isso venhit a acontecer, a partir de outros relatos analisados por outroy. pesquisadores. Quanto ao exame da coeréncia interna esl estudo contou apenas com o acompanhamento do grupo di pesquisa. I. Tudo isso, juntamente com as limitagdes dos documentos acimit referidas, nos leva a considerar que os resultados aqui apresentad tenham o valor de hipéteses provaveis (ou de construg6es uteis para compreensao dos dados). Nesse sentido outros estudos precisam 4 feitos para trazer confirmagGes ou corregées a este. Uma ultima observacio. Essa andlise descreve momentos, fase! e subfases de qué? A resposta seria: do processo terapéutico. Nil apenas 0 processo de uma pessoa independente, mas seu processo ¢ relacao com outra pessoa, que se propde a acompanhé-la: 0 terapeut iT, De alguma forma esse processo envolve o terapeuta, e é por isso ql seus relatos podem ser validos. Os nomes das fases levaram em con| esse aspecto relacional do objeto do estudo. oY. eu. Mn. ima Psicologia Humana V. 10. 5 resultados Transcreveremos a seguir os agrupamentos que foram feitos ada relato. Esses agrupamentos (conjuntos de sessdes ou sessdes cas) estao designados por nimeros ardbicos (1, 2, 3 etc.), idos de frases descritivas. Ao final de cada frase estao entre inteses as sessdes que foram nele agrupadas (por exemplo: Z19, ), para 0 agrupamento 6 de Z). Os algarismos romanos (I, II, III correspondem 4s etapas que sao semelhantes para os 3 relatos. mos que, como LI corresponde de fato 4 13a. sessio do \dimento de L, essa seqiiéncia de relatos j4 comega na etapa II. T ‘e-se ao terapeuta, e C ao cliente. Atendimento de Z . T fala de si (Z2); 2. Cdiz coisas dificeis de dizer e ser compreendido, sobre concep¢ées e fatos vividos (Z3, Z4, Z5, Z6, Z13 eZ14); 3. Maior aceitagao de si por parte do C (Z15); 4. Cfala da situagao presente como triste, de muito isola- mento e falta de amor (Z16, Z17); 5. O medo da loucura (Z18); 6. Re-exame de concepgées e experiéncias, enfocando valores (Z19, Z20); 7. Solidao e tristeza no presente (Z21, Z26, Z27); 8. Questionamento maximo (Z27); 9. Mudanga repentina; aceitacao, planos de mudanga, mudanga nas relagdes (Z28, 230); C dizendo que nao precisa mais desta terapia (Z31). Atendimento de S 1. T fala de si e da intengao geral de C, segundo ele vé (S1); 2. Colocando coisas para fora e sendo compreendida; lembrangas e seu significado (S2, S3, $4); 3. Comega questionamento do presente (S5, S6, S7); 4. O presente a luz do passado (S8, 89); 5. C volta-se para a relagao (S10); 6. T desnorteado? (S12); 104 Mauro Martins Amatuzg) 7. Questionamento do presente de forma mais concretd (examinando possibilidades de decisdes) (S21, $22); 8. O desespero (S23); IV. 9. Mudanca repentina; assuntos externos da semana; re-arranjos no cotidiano; aprendendo a ser diferent (S24, $25, $26, $27, $28, $29, $30, $31, $32); 10. Compartilhando coisas boas, assumindo novo modo: de ser, mais seguro e flexivel (S33, $34, S35, $36, S37, $38, S39); V. 11. Desligando-se (S40, $41, $42, $43). Nos relatos a etapa II] comega com uma mudanga no proprio ero das VSs: nao propriamente assuntos novos que aparecem, um modo diferente de abordar os assuntos. O que predomina ui 6 o questionamento (nao mais simplesmente um contar), e do ente (nao mais do passado). E como se o cliente dissesse: Se as NaS So assim (etapa II), como fico eu agora? (etapa III). O tom nao nais de alivio, como na etapa II, por poder contar e ser npreendido, mas de uma angistia crescente. Pode haver aqui a fase uma revisao de valores e padrdes de comportamento 6 de Z), entremeadas com duras constatagdes da situagao 1. 1. Finalizando uma etapa, sentindo-se mais solto (L1). jente (Z21, por exemplo). Esses encontros com o real duro, no 2. fie da questéo central (L2, L3, L4, L§y ente, e no desamparo, nds os denominamos de crises. Pode feet ete HE rer mais de uma, entremeadas com questionamentos vivos, mas ; Sentindo-se mais aceita 9, 110,11 1, 112,113,114); malmente haveria uma culminante na final dessa fase (Z27, $23, . Vendo melhor seu desejo e seus dilemas (L15, L16, EE ae L17, L18, 23, L24, L25); ag interessante notar que 0 T de certa forma pode participar IL. 5. Questionando mais concretamente seu modo de sé) meses, ficando sem ver a saida (por exemplo S12), por mais esteja junto dando suporte. Suspeitamos também de que esses social (L26, L27, L28, L29, L30, L31); 4 ae aif 6. O duro encontro com sua realidade social e sexifl mentos sejam decisivos no processo: sao eles que mobilizam as Atendimento de L (L34); angas mais profundas a partir do proprio intimo do C; mas ao Ill. 7. Considerando mais concretamente possibilidad mo tempo, podem levar a pessoa a nio se aprofundar mais, caso novas e enfrentando dificuldades e impassé e sinta acompanhada com seguranga pelo terapeuta. (L35:mudanga, L37, L39); Essa crise culminante é seguida de uma mudanga repentina e IV. 8. Socialmente mais solto, desejando parar a teraph itemente inexplicavel. Constatamos nesses relatos que 0 tom das para continuar seu processo so (L41, L42). do-se com seu novo modo de ser as atuais circunstancias da E interessante também notar aqui que nem sempre esse novo 0 de ser é explicitamente conhecido como novo ou diferente do O que caracteriza a etapa I é a sondagem mitua de T e C; oy etapa terminaria na decisao de iniciar ou nao a terapia. Ambos deve) tomar essa deciséo. As VSs aqui mostraram mais como isso vivido pelo T (Z2 e S1). Feito isso, comega um “colocar as coisas para fora” por pill do C. Ele fala do que estava “entalado” nele, inicialmente de forty) bem préxima ao motivo de sua vinda a terapia. Sendo recebidi compreendido, esse contar normalmente leva a uma aceitagao mil) de si (n.3 de Z), que, por sua vez, pode levar a uma extensig lade (n.9 de Z). Mas as vezes mudangas surpreendentes so das (“milagres” em $43). Finalmente ambos, C e T, vao se dando conta de que aquela 0 pode terminar, porque cumpriu o que dela se podia esperar: € a V, do desligamento. Mauro Martins Amatuzzi Sumariamos essas hipoteses descritivas através de denomina- des das etapas e subetapas do processo, como mostramos a seguir. I. Tomando pé. IL. Dizendo coisas-dificeis-de-dizer-sendo-compreendido. * dizendo coisas dificeis * aceitagao de si * dizendo mais coisas dificeis * aceitagao * (entrando no questionamento) IIL. Questionando o presente. * questionando o presente * crise * questionamento mais profundo * crise * (opcdo, mudanga) IV. Aprendendo a ser diferente. + formulando projetos e enfrentando dificuldades * compartilhando coisas boas * (comegando a se desligar) V. Desligando-se. O conjunto desse processo pode ser caracterizado com 4 expressao: Permitindo a crise O alcance desses resultados Acreditamos que a maneira mais prudente de classificar esse resultados seria, como jd 0 dissemos, considera-los como hipoteso provaveis, a serem confirmadas, corrigidas e mais bem delimitaday, por estudos posteriores a partir de uma maior diversidade de casoj, Por uma Psicologia Humana 107 formas de atendimento, e terapeutas. O estudo aqui apresentado permite dizer que nao se trata de hipoteses quaisquer. Embora aguardando maior confirmagao por parte de colegas psicoterapeutas, stas foram retiradas de forma sistematica de uma observacao. Além disso é preciso lembrar também que elas decorrem do atendimento de um determinado tipo de pessoa (com queixas que volvem problemas de relacionamento e um difuso sentimento de insatisfagao com a vida), e de um determinado tipo de atendimento (que poderia ser caracterizado menos como intervengaio do que como companhamento). Generalizagdes maiores e analogias podem ser possiveis, mas tém que aguardar também outros estudos. Confirmagées externas Mostraremos a seguir alguns dos resultados de nossa busca de jonfirmagdes externas, acompanhados de breve discussao. A jinalidade é sempre melhor contextualizar nossos resultados. ‘Vejamos, em primeiro lugar, o proprio estudo de Rogers de que lévamos no inicio. Ele descreve 7 fases do processo terapéutico, tais omo vividas pelo cliente. E preciso, entretanto, dizer que essas fases lormalmente nao sao todas percorridas pelos clientes, segundo Rogers. Js que avanc¢am mais come¢am o processo jé a meio caminho, na 4a. lapa por exemplo. E os que comecam na primeira etapa muito lificilmente avangam no processo. Podemos resumi-las na forma como gue (cf. Rogers, 1961, pp.114-36). 1. Recusa de comunicagao; extrema rigidez de concepgdes; relagdes interpessoais encaradas como perigosas; nao reconhecimento de problemas pessoais; nao desejo de mudanga; 2. Expressio um pouco maior sobre coisas externas; os problemas s4o captados como completamente exteriores ao individuo; 3. Comecgam falas sobre si mesmo como objeto, ou no passado; aparecem sentimentos e significados mas nio so reconhecidos; descrigdo de sentimentos e significados que nao esto presentes; reconhecimento de contradigdes; 108 Mauro Martins Amatuzzi 4. Comega um questionamento de concepgées pessoais; descric¢do de sentimentos do presente mas como objetos; com hesitagao 0 cliente toma consciéncia de responsabilidade pessoal quanto aos problemas; ha uma tendéncia a experimentar sentimentos no presente, mas com medo ¢ desconfianga; . Irrupgiio de sentimentos no presente, com espanto; maior liberdade na expressao de sentimentos; maior flexibilidade de concepgdes pessoais; desejo de viver os proprios sentimentos, de ser 0 verdadeiro eu; . Sentimentos antes bloqueados (portanto novos) aparecem no presente, so experienciados; 0 carater mais imediato da experiéncia é vivido e aceito; desbloqueio da vivéncia direta e presente; descontragao fisiologica; o eu como objeto tende a desaparecer; Grande abertura ao novo; sentimentos novos sao usados como referéncia; grande flexibilidade, comunicagio interior clara; escolha de novas maneiras de ser. w a x Rogers descreveu essas 7 fases de acordo com 7 aspectos do processo, facilmente distinguiveis nas primeiras fases, mas que tendem se confundir quando nos aproximamos do final. O desenho do process é bastante complexo, e 0 que apresentamos aqui ¢ apenas um resumo0, Em nosso desenho ha um crescendo até um ponto critico central, @ depois uma espécie de resolucao, diferindo nisso do de Rogers. Nossa II} etapa, que é decisiva, seria descrita com elementos que se encontram nif 4°, 5°, e 6 fases de Rogers. As diferencas de enfoque poderiam suscitaf estudos comparativos mutuamente enriquecedores. No entanto, como s¢ pode observar mesmo por esse resumo, a linha geral de evolugild descrita por Rogers converge no sentido de uma maior presentificagil0, nesse sentido confirmando a nossa. Em Rogers 0 processo tende patil () vivéncia dos sentimentos no presente, sentimentos novos, escolha novas maneiras de ser, e em nossa descrigéo tende para questionamento do presente, crise vivida, mudanga e novil aprendizagens. Por outro lado, nossos 3 sujeitos parecem ter comegad0: processo na 3* ou mesmo 4" fase de Rogers. Isso mostra que sui primeiras fases podem ser consideradas como prévias, ou, quem sill como pré-terapéuticas (como, alias, ele mesmo sugere). Por uma Psicologia Humana 109 psicanalitica no contexto do trabalho pratico. Em seu Esbogo de Psicandlise (1938), obra da maturidade, ele descreve a grosso modo as etapas do trabalho. Apresentamos aqui também um resumo. Seguindo © mais de perto possivel suas palavras, na caracterizagao do Jue seriam 4 etapas, 1. O pacto. A situagao analitica se constitui com este Pacto: o paciente nos promete a mais completa sinceridade, garantimos a ele a mais estrita discrigdo, e colocamos a feu servigo nossa experiéncia em interpretar material influenciado pelo inconsciente; 2. Trabalho intelectual. O ponto de partida é uma ampliagéo do autoconhecimento; oferecemos um trabalho intelectual de nossa parte e um incentivo ao Paciente para ele colaborar; 3. Luta contra a resisténcia, Aquele trabalho suscita resist€ncia, 0 ego luta contra nosso estimulo, mas o inconsciente vem M Nosso auxilio visto possuir um impulso ascendente. Realiza-se uma luta sob nossa direcao e com nossa assisténcia; : 4. O desfecho. © desfecho dessa luta, para Freud, 6 indiferente: quer resulte na aceitacio de uma exigéncia instintiva, quer na sua rejeicéo definitiva, um perigo foi liquidado, 0 ambito do ego foi ampliado, um dispéndio inttil de energia tornou-se desnecessario (Freud, 938, pp. 223-6). Aparentemente © que Freud descreve aqui é um processo de en¢ao ativa, uma estratégia terapéutica, e nao propriamente um esso de acompanhamento. Quanto a isso a comparagao no pode ser com 0 modelo que estamos estudando. No entanto nao podemos ar muito essas diferengas. O trabalho intelectual (2° etapa) visa uma agao. do autoconhecimento e tem ‘uma certa analogia com nossa II a. Assim como esta desemboca naturalmente no questionamento do te, Ievando auma crise vivida que nao deixa de ser uma situagao adora, assim também 0 auto-conhecimento aprofundado acaba itando uma resisténcia por causa de seus aspectos ameagadores. Freud explica muito bem em seus termos metapsicoldgicos. A Tuta aresisténcia nao deixa de ter um paralelo com o delicado trabalho ipeuta no momento da crise e de sua gestacdo, na abordagem que al 110 Mauro Martins Amatuzzi estivemos estudando. Quando Freud diz que o inconsciente nesse momento vem em auxilio do terapeuta, visto possuir uma tendéncia ascendente, isso pode ser entendido como se referindo a tendéncia a vida que justifica a confianca do terapeuta no processo. Apesar de ser um acompanhante, o terapeuta se posiciona do lado da tendéncia para a vida. Andresen (1991), num artigo publicado numa revista psicanalitica, vé na seqiiéncia de eventos pelos quais passa 0 personagem biblico Jé o padrao de transformagao profunda da consciéncia religiosa, para quem opta pelo caminho da tradi¢’io contemplativa ou mistica, Mas, ao mesmo tempo, analisando referéncias da literatura psicanalitica (principalmente Winnicott, Klein e Bion, além do proprio Freud) mostra como essa mesma seqiiéncia retrata a estrutura essencial das transformagées esperadas durante 0 proceso psicanalitico. E essa seqiiéncia, para ele, é: privagaio e sofrimento, ignorancia e obscuridade, transformagao da consciéncia e mudanga de percep¢ao; o que nao deixa de ser uma estrutura de crise, E ainda, Freud vé 0 padrao do fracasso do psicanalista nas atitudes dos amigos de Jé (que tentaram em vao convencé-lo a uma mudanga). Esta seqiiéncia (padrio do fracasso), diferente da primeira (padrao das transformagdes esperadas), é a seguinte: desejo de ajudar, certezi tigida, e consciéncia imutavel. Nesta, 0 que nao existe é 0 que Jé pede desesperadamente a seus amigos: que simplesmente 0 ougam, independentemente de critérios prévios de julgamento. O padrao de mudanga aqui referido é 0 de uma transformagao que poderiamos chamar de existencial e nao apenas cognitiva. Ora, acreditamos que ta] estrutura se sobrepde, como uma outra maneira de analisar 0 mesmo processo, aquela descrita acima por Freud. Ainda que por um caminho bastante diverso, estamos encontrando na psicandlise também umii certa confirmacao daquela nossa anilise. Dentre os estudos que nfo vém diretamente do campo (ii psicoterapia, podemos citar o de Denne e Thompson (1991). Partindé da analise de depoimentos de pessoas que passaram pela experiénei(i de transigdo de uma falta de sentido e propésito na vida, para uml vida com significado e propésito, eles descrevem os element0y constituintes dessa experiéncia. Sao eles: assumir responsabilidad por si mesmo e por uma vida ativa e autoconfiante, a admissio integrago de aspectos impedidos da experiéncia, congruéncia ent Por uma Psicologia Humana i conceitos pessoalmente significativos ea experiéncia, a existéncia de decisées como ponto de virada, e um progresso em direcdo a uma relagao equilibrada entre si e o mundo. Implicagdes para a terapia sio levantadas na discussao, embora os depoimentos colhidos nao se refiram a processos terapéuticos. A mudanga entretanto, cuja estrutura é aqui estabelecida, 6, como no processo terapéutico, uma mudanga mais global, existencial, do que simplesmente intelectual, Cognitiva, embora tenha esses aspectos também. Existe uma analogia patente entre os descritores do processo de transformagao para uma ida com significado, e os que levantamos para 0 processo terapéutico. Outro paralelo interessante € 0 que se pode fazer com as andlises de Kuhn a respeito da estrutura das revolugées cientificas. A tevolugao é precedida por uma crise que consiste no questionamento do paradigma vigente. Um novo paradigma surge. No periodo da (rise a ciéncia normal nao tem como assimilar novos fatos e vao Surgindo pesquisas alternativas, até que 0 novo paradigma acabe prevalecendo. Aqui estamos no campo do social ou mesmo cultural, e no entanto a analogia é surpreendente: trata-se sempre de estruturas e transformacao (Kuhn, 1962, e também Carvalho, 1991). Outra fonte de confirmagio externa vem dos estudos de psicologia no interior de tradig6es religiosas, misticas ou sapienciais. proprio livro de J6, referido acima, se insere nessa tradigdo. 3randao & Crema (1991), no livro que organizaram sobre 0 “novo aradigma holistico”, incluiram uma parte intitulada “A descoberta da sabedoria mistica”. E no outro volume da mesma ie, “Visio Holistica em Psicologia e Educacdéo”, incluem um pitulo de Jean-Yves Leloup (1991) sobre uma forma de sicoterapia chamada iniciatica, que se inspira nessas tradigdes. O vro de W. James, “As Variedades da Experiéncia Religiosa”, que é lm classico nesse campo, é de 1902. Mais recentemente Clark (1983) etoma essa preocupacao numa obra sobre os estados mentais, onde le clabora todo um modelo psicolégico, uma teoria mesmo, ‘ando como fonte principal a literatura mistica. Pois bem, nessa i¢do encontramos muitas descri¢des de caminhos de crescimento i de transformagao, o que Clark chama de “estagios do caminho stico” (stages on the mystical path). 112 Mauro Martins Amatuzzi Daremos em seguida um resumo desse itinerdrio, inspirado em uma comunicag4o oral do mesmo Leloup citado acima (posteriormente publicada, cf. Leloup & Boff, 1997), e adaptado por nds as finalidades deste estudo. Incluem-se ai elementos de varias tradigdes. As etapas podem ser descritas como segue. 1. A experiéncia numinosa (ou de transcendéncia), que ¢ 0 ponto de partida do caminho, refere-se a uma abertura para outra possibilidade de se encarar as coisas, uma percep¢’io nova; 2. A metandia (palavra grega que significa “conversio”) corresponde 4 reviravolta provocada por aquela experiéncia em termos de esquema de vida e procura de um caminho para dar prosseguimento a uma busca; 3. Consolagao: com a pratica dessa busca, muitas vezes orientada por alguém ou por algum método, ocorrem experiéncias gratificantes. E a tranqiiilizagao do se saber a caminho; 4. O deserto: é a fase das grandes tentagdes e dividas que sucede 4 da consolagao inicial; 5. Apassagem pelo vazio, ou “noite do espirito”, corresponde a0 ponto mais profundo, ou ao cume daquele processo de questionamento, divida, experiéncia de vazio ou vacuidade; 6. Transformagao-uniao: do coragao vazio nasce a vida nova; ocorre uma profunda transformagao; 7. A volta 4 praga do mercado: corresponde a reinsergao no cotidiano, a partir daquela vida nova. Os paralelismos sao evidentes. A decisio de iniciar a terapitt supde uma mudanga de olhar sobre a propria vida que, embora nao sejit necessariamente uma experiéncia extraordinaria, j4 é um inicio do processo. A terapia poderia ser, ent’io, um método procurado a partil de uma “metandia”. Uma vez a caminho, nossa II etapa, ha umi gratificante aceitacao de si (subetapa) que corresponde a “consolagiio" descrita aqui. Mas depois sobrevém 0 “deserto das provagées” ¢ experiéncia aguda do nada (III etapa, questionamento e crises), dé onde, a partir de uma transformagao (passagem para a IV etapa), brolit uma “vida nova”. [i essa vida nova que é posta a prova no cotidiano (IV etapa: aprendendo a ser diferente). Sem duvida ha aqui um campo a set Por uma Psicologia Humana u3 mais explorado. Ha semelhangas nos dois desenhos de processo, € os dois se referem a uma transformagao experiencial ou existencial, mais lo que meramente cognitiva ou de habilidades. Consideracées finais A intengio original de Rogers em seu estudo citado era, como imos, a de descrever um caminho de transformagao percorrido por essoas quando seus recursos de vida sao potencializados num idlogo de ajuda psicolégica. Essa intengo desembocou em estudos mpiricos que tentaram medir o estégio da pessoa em relagdo a spectos varidveis desse itinerério de transformagio, tais como: o tipo de relagdo com os sentimentos e as experiéncias, o grau de ongruéncia, a forma de se relacionar com problemas pessoais € 0 tu de responsabilidade assumido em relacio a eles, 0 tipo de clagao com o terapeuta etc. Com isso, entretanto, algo se perdeu laquela intengao original: a descri¢ao qualitativa do processo como todo, com a finalidade de simplesmente compreendé-lo, e com so melhor visualizar o papel do terapeuta ou de quem quer que se oponha a acompanhar uma outra pessoa nesse movimento. Esse nosso estudo tenta recuperar essa intengaio de pesquisa. fartindo da anilise de versdes de sentido foi possivel fazer um desenho processo onde ele aparece muito mais como um movimento istencial, que envolve a pessoa inteira. Nos detalhes, esse “desenho” apresenta aqui como um conjunto de hipéteses provaveis, a serem nfirmadas ou corrigidas por estudos posteriores. Na busca de confirmagées externas de nossos resultados, amos surpresos em constatar que essa preocupacéo com o ‘ocesso de mudanga é bem mais vasta do que imagindvamos, e bém mais antiga. O proprio esforgo de pesquisar psicoterapia instruindo escalas de crescimento ainda que parciais pode agora ser isto como se alimentando dessa fonte comum mais ampla: 0 desejo conhecer os caminhos do ser humano. jpitulo Vill sicologia Popular Este capitulo foi originalmente escrito para a revista Prometeo — revista mexicana de psicologia humanista y desarrollo humano, um periédico da Universidad Iberoamericana, em um numero especial de 1997, que teve por titulo geral Antes y después de Chiapas: o nos salvamos juntos o todos perecemos. O titulo completo do artigo foi: Salir del consultorio para hablarmos de ti - la construccion participativa de una psicologia popular, e ele se encontra nas paginas 27 a 33. Por esses titulos se pode ver o alargamento de perspectivas que ele contempla, e é por isso que ele cabe bem aqui. Para além da psicologia como clinica, num sentido restrito da palavra. Gostei muito de ter escrito este texto. A ele se seguird o capitulo IX deste livro, formando como um conjunto. Utilizei evidentemente a versio original em portugués, e fiz pequenas modificagdes para adapté-lo 4 forma deste livro. Achei que as notas de rodapé poderiam ser dispensadas aqui sem que 0 texto fosse prejudicado. As referéncias que estavam nessas_notas, juntamente com alguma outra, foram acrescentadas na bibliografia no final do livro. histéria da educagao popular na América Latina mostrou que 0 termo “popular” nao significa somente que se trata da educagao povo, mas também, e talvez principalmente, que trata de uma educagao com o povo. As pessoas uns, na sua condigao de classe popular, nao sio enas objeto desta educagao, mas também sujeito. educagao popular acabou por designar um modo se pensar e praticar educagao (ver, por exemplo, randao,1985). Paulo Freire resume numa espécie hie Mauro Martins Amatu77\ Por uma Psicologia Humana 117 de formula que o importante numa aproximagio verdadeira aos opri- somprova-la através de uma reflexdo critica da pratica das pessoas midos é que 0 educador, despindo-se de todo autoritarismo, comece a suas comunidades. E 0 ato de explicitagdo dela, na reflexo da acreditar nas massas populares e jd ndo apenas fale a elas ou sobre Ig%io, que Ihe confere cientificidade. elas, mas as ouga, para poder falar com elas (Freire, 1983, p.36), Resulta disso tudo que essa psicologia nao pode ser praticada a A partir dai é que penso a expressio “psicologia popular”. Nao se ir de uma relagao que seja basica e primariamente uma relagao entre trata da psicologia das pessoas comuns, maioria da populagao, quando iujeito e objeto. Se como pesquisador eu tomar “pessoas do povo” como elaborada por um especialista que entrevista essas pessoas, e, de dentra bjeto de conhecimento, mais ou menos como um zodlogo faz com a de seu gabinete, elabora sua visio. Trata-se, isso sim, de uma psicologia ina de uma determinada regio, o que eu estaria produzindo seriam explicitada na convivéncia, e construida num contexto de agao conjuntit ecimentos objetivos uiteis aqueles que, nao se vendo como povo, a servico dessas mesmas pessoas. E mais: 0 tipo de pessoa que ¢ etendem “tratar” ou “manipular” essas pessoas, em fungdo de algum preferencialmente enfocada neste esforgo € aquela que vive sob Al po de interesse (como por exemplo, adapta-las produtivamente a um mesmas condigdes que a imensa maioria da populagao, e consideradit istema de vida dado de antem&o). Ou, mais benignamente, que como tal. Esta psicologia sera popular, pois, quando: tirariam das condigées populares de vida ligdes que poderiam se l.considerar as pessoas comuns, na sua condi¢ao comum; plicar a qualquer tipo de pessoa, mesmo que nao seja do povo, como 2.quando for elaborada no contexto de uma busca dé exemplo o préprio pesquisador ou a comunidade cientifica, emancipagao ou crescimento; € lleressada em conhecer 0 comportamento humano em geral. Mas 3.quando for elaborada em conjunto com essas pessoas, (ld pre seria um conhecimento produzido por alguém que se coloca fora forma participativa. : condicao do objeto de estudo, e portanto um conhecimento que nao Poderiamos dizer também que ela ser4 a explicitacdo dij le como prdprios os interesses, os problemas, ¢ os desafios dessas experiéncia popular no que diz respeito a0 comportamento humano tid $0as, tais como vivenciados por elas. : contexto das condigdes concretas a que as pessoas sto submetidiy, Em uma perspectiva diferente dessa, o pesquisador parte do Partimos do pressuposto de que existe toda uma psicologia implicita 1 Ssuposto de que ele faz parte daquela condigao de pessoas, ¢ de experiéncia popular. Cada pessoa ja a possui € a usa, mas em pil C estudando esta psicologia cle estara estudando-se a si mesmo. apenas. Ela est dividida nas varias experiéncias das pessoas. Taly mbém. E mais: que 0 conhecimento obtido seré mais completo e ninguém a possua por inteiro neste momento. E é por estar dividida q) tinente se ele puder contar com a colaboragao efetiva dessas ela nao pode ser plenamente apropriada, nem pode ser criticamen| soas, num esforgo conjunto de explicitagio dos problemas e claborada e estar a servico de um esforgo de crescimento ¢ emancipagiit afios, de sua andlise sistematica, ¢ de seu enfrentamento concreto. O que existe, entio, é a psicologia oficial que nos toma como objetos, (| 1 elagao aqui sera portanto mais complexa que a relagao coisas a nosso respeito, e nos dificulta a tarefa vital de dizermo-nos ati ito-objeto. Trata-se na verdade de uma relagao sujeito-sujeito, mesmos, e também dizermos nossa propria palavra a respeito ( m mediada pela realidade que efetivamente envolve a ambos e acontecimentos que nos envolvem. stende ante seu olhar e agao. ; : : A psicologia popular é, pois, a experiéncia popul Y Essa seria a perspectiva basica de se construir e praticar uma explicitada. Mas nio que ela ja esteja pronta em seu estado impli¢l ologia popular. Isso no quer dizer entretanto que dentro desse bastando apenas manifestd-la: isso seria muito ingénuo ¢ ni to ¢ desse enfoque, ndo possa haver momentos de uma relagao cientifico. Seria a psicologia do senso comum. Nada nos garantitl) Objetiva, do tipo sujeito-objeto. Mas nesse caso sera o grupo de verdade de suas assertivas. Da forma como entendo a psicold) iboradores tentando se ver mais objetivamente, em um instante popular, 0 esforgo de explicitd-la é, ao mesmo tempo, 0 esforgd xivo de um processo cujo sentido, entretanto, ultrapassa 0 deste 118. Mauro Martins Amatuz) Ipuima Psicologia Humana 119 momento considerado em sua especificidade. O olhar comunitario, entes e irreconciliaveis. Mas essa atitude é que de fato separa esses envolvido e comprometido com a vida, pode tomar como campos, sugerindo que a atuagao nao precisa ser acompanhada instrumento, momentancamente, o mero olhar objetivo. Entretanto 4 reflexio critica (mas que deve apenas aplicar conclusdes relagdo basica de onde brota essa psicologia sera sempre a relagild intificas), por um lado, e por outro lado, que a ciéncia nao pode sujar inter-humana mediatizada pelo mundo, como diria Paulo Freire. mos na concretude dos processos historicos (pois isso ameagaria a Na pratica o que significa isso? Uma reflexao constante, exerci isdio de suas conclusdes). Estamos muito perto de uma separagao de apartir de dentro de um processo comunitario, levada a cabo por agente soas: os homens da ciéncia, de um lado, e os da pratica profissional, envolvidos por desafios comuns, numa realidade comum. outro. Ambos disputando o valor de seu conhecimento, um Qual 0 papel do “técnico” (o agente, o profissional) niss@ oiando-se no método cientifico concebido de forma abstrata, e outro tudo? Essa é uma questo sem divida fundamental para nd piando-se na experiéncia pratica muitas vezes desprovida do possivel psic6logos ou profissionais de areas afins. Nesse momento, contudo, critico. Ora, a historia da psicologia clinica atesta contra isso. Na quero apenas ressaltar um aspecto: ele pode ter um papel decisivo no joria das vezes foi a partir da pratica clinica e através da mediagdo de processo. Quem quer que ja tenha se dedicado humildemente a ur ias articuladoras, que foi sendo construida uma visio psicolégica trabalho popular (isto é, sabendo ouvir, sentindo-se em comunhio ¢ ser humano, util no enfrentamento posterior dos mesmos problemas nao pretendendo ser 0 dono da verdade das pessoas, mas trazend ‘0S OU outros. Detectar aquele preconceito nos obriga, pois, a efetivamente sua contribuig&o), sabe que 0 técnico pode ser u tmular principios metodoldgicos que se adaptem a essa nova situagao, catalizador fundamental para que ocorra movimento nas pessoas ( que se perca o valor cientifico. grupos, e que muitas vezes é ele, por sua presenga qualificada, qui Da forma como esta colocado 0 problema sobressaem algumas possibilita que muitas coisas venham a acontecer naquele meio. licagdes. O método cientifico precisa certamente ser concebido de Existem armadilhas nas quais podemos facilmente cair negsj 1a abstrata para melhor servir aos processos de pensamento. Mas tarefa de uma psicologia popular. O pesquisador, mesmo se sentiniy 10 nao significa que ele nao possa se concretizar em situagdes subjetivamente identificado com a “causa popular”, pode agir de { is”, mesmo que isso complique bastante nosso pensamento forma que as pessoas do povo fiquem reduzidas 4 fungdo de mero) lo aumento enorme do numero de varidveis a serem levadas em fornecedores de dados para a pesquisa. Por mais que ele diga que sii ita, Comparado ao bairro ou a regiado geografica onde se localiza e pesquisa esté a servico das pessoas do povo, o conhecimento nel e uma comunidade, o laboratério ¢ uma super-simplificagao ou produzido ainda nao pertence a elas, ainda é um conhecimento di smo uma abstragao da realidade. E perfeitamente concebivel quea pesquisador, conferindo-lhe um poder retirado das origens de se ma historica concreta de nossas a¢Ges seja iluminada e enriquecida dados. E isso é muito comum acontecer em programas de p6s-graduagl lO apenas por conhecimentos prévios que podemos aplicar, mas com pesquisadores bem intencionados. E por que acontece assitt) incipalmente por um olhar reflexivo que pretende detectar Penso eu que uma das coisas que muito contribui para isso é uma espé lagdes significativas naquilo que esta acontecendo. E precisamente de preconceito em relagao ao que pode ser considerado cientifi io essas relagGes significativas que irao gerando uma teoria, uma Segundo esse preconceito nao é possivel que uma “intervengilo! io sempre maleavel das coisas, mas capaz de provocar corregdes concreta, uma atuacao profissional, seja considerada ao mesmo temp tota e influenciar o desenrolar dos proprios acontecimentos. Um um ato cientifico (no sentido de produzir ciéncia). A idéia comum 6 q ler se acumula a partir dessa experiéncia (pratica profissional) aatuagao profissional possa ser objeto de uma pesquisa, mas nunca w/t do iluminada pela reflexao critica (o olhar cientifico). Nada nos pesquisa em si mesma. E como se a atuacdo nao tivesse a mes Wiga a dizer que esse saber é menos ciéncia do que o que foi dignidade que a ciéncia. Ou, pelo menos, como se fossem dois cami \duzido em situagées artificiais de “laboratério”. E esse saber 120 Mauro Martins Amatuzz| qualifica e instrumentaliza a propria comunidade no enfrentamento de suas situagdes novas. Estivemos considerando a “armadilha da ciéncia”. Mas existe outra: a “armadilha da pratica”. Se a primeira consiste em eliminar 0 “popular” dessa psicologia (nao seria mais uma psicologia do povo @ construida com 0 povo), a segunda consistiria em se eliminar 4) “psicologia” (néo haveria a preocupagdo com aqueles cuidados qué permitiriam uma reflexdo rigorosa de comportamentos e agdes). Se no primeiro caso o técnico entrevista pessoas e faz “sua” psicologia, no segundo caso ele esta preocupado somente com a acdo que entretém {iy pessoas, sem nenhum esforgo de detectar relagdes significativas, @ portanto, sem nenhum cuidado prévio de registro fidedigno do qué ocorre. A intui¢ao imbutida no sentimento € o mais importante, acredilii cle; o resto se da espontaneamente. A énfase no polo experiencial acabi resultando numa renincia a qualquer psicologia como conhecimento dij conduta, ou capacidade de compreender o que se passa. O pressuposli) aqui é de novo uma separacaio entre o conhecimento e a agaio, como quit acreditando que o conhecimento explicito fica sempre aquém da agild, nao a podendo instrumentalizar. O importante é desenvolver a intuigila incentivar 0 contato com o sentimento. Resulta dai, no plano pesquisa, um “relato de experiéncia” muito superficial, despojado di precisdes que a tornariam passivel de discussio, e das reflexdes que poderiam aprofundar manifestando as relagées entre os acontecimen| E 0 mesmo preconceito de que o pensamento nao pode existir no cul de uma agao. Sé que agora nos colocamos do lado da ago, e desistit do pensamento. Na verdade a idéia de uma psicologia popular aponta pi uma integragao entre 0 pensamento e a agdo, € portanto entre esforco de racionalizar, de ver ordem, e a intui¢ao e o sentimen| Como isso poderia ser feito? Creio que nao existe um modo apenas de se fazer isso, em! exista algo como um espirito ou uma estrutura. Em uma experiél desenvolvida em um bairro da cidade onde moro, partimos de necessidade sentida e explicitada num pedido por parte de algui pessoas sintonizadas com o bairro. A partir dai iniciou-se uma ativi grupal de reflexao da vida, com acertos e erros, mas que resultoul constatag4o inequivoca da necessidade desses espagos populare yuma Psicologia Humana 124 ilha e reflexio, e do papel importante que a psicologia poderia sempenhar como fio condutor de temas geradores antes bloqueados. digo uma psicologia nao pronta ou construida, e a ser assimilada, mas como campo de indagagées muito propicio a elaboragao da ‘periéncia popular. O espirito com que essas reunides foram sendo nduzidas era justamente o de tomar temas referentes ao crescimento ano como ponto de partida, e entéo compartilhar e refletir a eriéncia de cada um. As anotagdes que foram sendo feitas itiram sinteses mais ou menos fecundas em relagiio 4 compreensaio experiéncia de outros grupos e pessoas (cf. Amatuzzi e col., 1996). O ponto de partida poderia ter sido bem diferente, como de fato nteceu em muitas outras experiéncias. A concepgio de uma icologia popular poderia até mesmo estar informando uma ividade de atendimento psicoldgico individual, de casais com blemas, ou de grupos. O que é importante para que ela venha a mntecer? Penso poder resumir com os seguintes pontos: - que se parta de uma necessidade concreta sentida e partilhada num determinado espaco geografico ou inter-humano; 2. que essa necessidade seja expressa por pessoas desse espago, ou por quem possa falar em nome delas; - que a partir dai se constitua um espago de partilha e reflexao da vida, significativo para as pessoas; 4. que nesse espago as pessoas possam entrar em contato com sua experiéncia, perceber a condig&o comum a que estio submetidas (e que é a condigdo humana concreta, tal como existe no contexto das relagdes sociais em vigor); e que elas se sintam também mutuamente fortalecidas por esse contato e teflexdo. Nesse ponto a atuagiio do facilitador é decisiva; - que haja a preocupagao de acumular um saber a partir de relag6es significativas detectadas com rigor; a transferéncia da aprendizagem pressup6e essa preocupacao, isto é, 0 grupo nao deve visar apenas solugdes imediatas; 6. considero importante que essa preocupac’io com o saber resulte nalguma forma de expressdo objetiva escrita (ou de qualquer forma gravada), e para isso & necessario que se apoie em registros fidedignos da experiéncia; w a 12 Mauro Martins Amatuz#| 7. a partilha desse saber acumulado na experiéncia (na pratici apitulo | x dos enfrentamentos da vida ou na comunicagao escrita) com outros grupos ou pessoas é de fundamental importancia em sua propria confirmagao, evolug’o ou reformulagao. Acredito que esse processo é 0 de uma “psicologia popular”, 6 que o conhecimento acumulado ai (flexivel, em evolugao) é tambérn “psicologia popular” como corpo de conhecimento e teoria a serviga do desenvolvimento na comunidade. Este capitulo representa uma primeira tentativa de expressar uma intui¢ao que une, numa visio abrangente, o trabalho de desenvolvimento pessoal (dentro ou fora de uma terapia), 0 trabalho com grupos, 0 desenvolvimento comunitério e social, em harmonia com a natureza. Na verdade é¢ um so trabalho, ¢ é ele que traz a sensagio de estar vivendo algo significativo. O conceito que serve aqui como fio da meada é o de processo. Ele pode ser entendido de uma maneira mecanica, ou de um modo envolvente da pessoa, naquilo que ela tem de mais profundamente humano. Como expressdo de uma intuicdo, preferi manter o estilo mais espontaneo, deixando a multiplicagao de referenciais académicos para um outro momento. e € processo _O que vema ser um processo terapéutico? E ato da experiéncia cotidiana de muitos terapeutas que, embora haja condigdes iveis para que seja facilitada a ocorréncia de cesso terapéutico, ele nem sempre acontece. sempre a pessoa se envolve, assume seu 0 crescimento, torna-se ativa em sua propria rmagao. Muitas vezes o que ocorre sio alguns esclarecimentos sobre 0 problema ou mesmo pequenas modificagdes mais ou uperficiais no comportamento da pessoa. E 10 simples conseqiiéncia de o problema ter 124 Mauro Martins Amalif#} uma Psicologia Humana 125 sido ventilado numa conversa a dois. Ou pode acontecer também que Oblema que estamos vivenciando, nao é preciso mudar 0 modo as sessGes tenham se transformado em uma orientagao especifica po) 10 pensamos o problema? parte do terapeuta. Isso até pode ser positivo, se o terapeuta tiver boi} Todas as relagées terapéuticas sao processos onde coisas senso e sabedoria, mas nao deveria mais ser chamado de psicoterapiit ontecem, sem diivida. Mas aqui estamos querendo falar de no sentido de promogao de um processo pessoal. Este envoly@ mobilizagao mais profunda da pessoa, um envolvimento mais ativ sontece processo em um processo terapéutico. A mesma palavra na exploragao de suas proprias vivéncias, que culmina nui) dois sentidos. Talvez claredssemos dizendo que no primeiro questionamento das estruturas atuais dentro das quais a pessoa age, @ mtido se trata de processo pessoal, e no segundo, de processo abre para uma forma mais produtiva de ser. E nao se trata nem mesini) lacional. Na relagao terapéutica ocorrem coisas diferentes com 0 de uma exploragao ou questionamento intelectualizado. Mas sim di sar do tempo: ela é um processo relacional onde uma coisa vai um modo diferente de abordar o problema: um modo mais vivo, qué scorrendo da outra, uma coisa se segue a outra com um certo recorre ao que ha de mais profundo no coragao humano. Quando nild ncadeamento e ordem. Mas tudo isso pode nao tocar a pessoa no se chega nisso, algo deixou de acontecer. O cliente nao entrou ey processo. Seja porque o terapeuta nao esteve a altura da tarefa que lhe cabia, seja porque isso nao correspondia ao momento do cliente, Um “processo” nao é uma coisa, um objeto ou um estado qué se instala na vida de uma pessoa como algo acabado e complet0, Trata-se na verdade de um movimento. E como se a pessoa tivesié estado estagnada, e agora essa estagnaciio se desfaz, o gelo derretg, algo comega a se mexer. No plano externo ja havia movimentos, silt}, mas eram como possibilidades de uma estrutura estatica. Quando @ processo se instaura é a propria estrutura que se flexibiliza, y@ transforma. Trata-se de um movimento qualitativo da pessoa, uml mobilizagao interior desencadeada no contexto de uma relagild interpessoal facilitadora, muitas vezes a Unica coisa capaz de promover mudangas de paradigma no funcionamento da pessoi, Quando o velho paradigma de funcionamento psicoldgico ja nila atende as necessidades sentidas, s6 mesmo uma mudanga radical, com novas maneiras de ver e sentir, pode apontar saidas criativay Mas muda 0 jeito como se vive o problema. Muda o modo de relagild ’ consigo mesmo, com os outros, e com o mundo. Quando isso comey a acontecer, entdo estd ocorrendo processo. ago nao chegou a desencadear um processo pessoal. Para que isso corra, nao basta que fatos externos mudem. E preciso que também ituras internas se mobilizem, dissolvam-se, percam sua rigidez, mesmo desaparecam. A pessoa passa a funcionar de forma Js processos na vida Aqui surge a pergunta: s6 em psicoterapia ocorre processo pessoal? Todo mundo diria que nao, e eu concordo. A propria vida é, uu deveria ser, um processo de transformagao pessoal, muitas vezes lesencadeado por modificagées na estrutura e funcionamento corporal ‘por exemplo, as modificagdes que ocorrem durante a adolescéncia u durante o envelhecimento), ou por modificagdes ambientais culturais, educacionais, nas relagdes que vivemos). E mesmo essas Poderiamos dizer, quem sabe, que todas as pessoas mudati\, as linhas de desencadeamento (corporal e ambiental) nao sao mas que essas mudangas se dao no interior de um conjunto mais oll ibsolutamente decisivas. A pessoa pode tomar um novo rumo de vida menos fixo de possibilidades. Quantas vezes vemos um amigo mudilf partir de encontros significativos. Mas pode também aferrar-se a de profisséio, mudar de casamento, até mesmo mudar de religiaio, ma modos ja conquistados, resistindo a qualquer tipo de mudanga. Isso vai na realidade continuar 0 mesmo? Ou quantas vezes, para resolver UN) depender da histdria passada? Em parte sim. A histéria do individuo i r 126 Mauro Martins Amatuy#| podera dizer como ele reagira diante dos desafios da vida. May) também esse fator (a histéria individual) nao é absolutamenté determinante. Temos que deixar em aberto a possibilidade de a pessow escolher, autodeterminar-se, assumir sua vida, ou entio, a0 contrario, deixar-se levar pelas determinagdes externas mais OW menos mecanicamente. A imagem que me ocorre aqui é a do veleiro. Ele é guiado pela vento, pelas ondas, pelas correntes maritimas. Contudo o navegador tira proveito disso em favor de seu rumo de viagem. Mas tambéit} pode nao serum bom navegador, por algum motivo qualquer. E enti, acaba ficando a deriva, isto 6, ao sabor dos ventos, das ondas @ correntes maritimas. Isso tudo quer dizer, entdo, o seguinte: a vida certamente ¢ ui} processo relacional onde muitas coisas acontecem. Mas ela poderil deixar de ser um processo pessoal. Podera deixar, mais ou menos, di ser um processo de descobertas pessoais, de aprendizagent verdadeiras, de encontros transformadores. E isso quando as pessouily de alguma forma se bloqueiam ao processo de viver. Executam um vida previamente estruturada, mais do que vivem em plenitud Se esses bloqueios nao ocorrem (ou ocorrem mas nao de fo! tao impeditiva) a pessoa passa por desafios existenciais no decurso sua vida. Esses desafios caracterizam etapas de desenvolvimento qué estruturam em tomo de verdadeiras crises, isto ¢, questionamentos (| formas adquiridas, e passos existenciais para outras formas mm flexiveis de relacionamento consigo, com os outros e com o muni Estudando pesquisas sobre 0 desenvolvimento pessoal e confrontant suas conclusées com historias de vida, eu mesmo acabei por descrever, etapas possiveis para uma vida bem vivida, desde o nascimento até idade avancada (cf. Amatuzzi, 2000). Nao séo apenas mudang) externas que ai ocorrem, mas verdadeiras transformagées pessoi Como as passagens decisivas na saga do desenvolvimento pessoal t uma estrutura de crise, podemos dizer que ele se configura como processo. Muda o modo da relagao da pessoa consigo mesma, coll} outros e com o mundo. Ela vai se abrindo cada vez mais, seu ¢l transforma, 0 que era rigido vai se flexibilizando e¢ relativizando, nao, é claro, pois essa possibilidade de enrijecimento é real ¢ freqilel ao que parece. Por uma Psicologia Humana 127 O que acontece quando alguém procura uma psicoterapia? Seu processo de desenvolvimento pessoal, de alguma forma, ficou bloqueado, e ela ja nao consegue facilmente, sozinha, dar conta de ludo que esté acontecendo. Corre 0 risco de ficar d deriva, suas agdes ‘endo meras conseqiiéncias dos ventos, ondas, correntes maritimas. Muitas coisas acontecem em sua vida, mas ela ja nao sente que se tem has maos, nao se sente livre, sente um profundo “sufoco”, mesmo que em saiba dizer de que se trata exatamente, Seu processo pessoal esta perrado. Ela esta funcionando a partir de fora somente. O que vem a ser entdo a psicoterapia? Um encontro iignificativo onde o processo pessoal possa ser desemperrado. Uma \juda a vida, portanto. Dai delicadeza da tarefa do terapeuta: ele niio ode fazer isso pela pessoa, pois seria contraditério, deixaria de ser m processo dela. Ele nao pode viver por ela. O que ele pode fazer & ferecer um clima de seguranga tal em que a pessoa possa fazer isso, quiser. E muito provavelmente ela iré querer (se encontrar esse lima relacional favoravel), pois existe dentro de todos nds um mpulso natural nessa direcao. A vida, se for vivida em plenitude, sera um processo pessoal. Mas vezes é preciso uma ajuda para desemperrar esse processo. E isso sera, S, uma questéo de desaprender os modos que se tornaram lloqueadores, para que a vida possa se manifestar novamente. explicagao psicolégica do processo Ja“tocamos” 0 processo. Mas como compreendé-lo em termos. psicologia? O que acontece psicologicamente quando ha processo ssoal, ¢ 0 que deixa de acontecer quando nao ha? Teoricamente a resposta é simples. Quando ha processo a ssoa esta em contato consigo mesma, com 0 centro de simesma. Na agem comum, utilizada em nossos trabalhos com grupos ypulares, aprendi a designar esse centro da pessoa como coragéo. jando a pessoa perde contato com seu coragio, cla bloqueia seu Ocesso, ¢ passa a funcionar mais ou menos como autémato. Mas em consiste esse coragao humano? Nao é 0 sentimento, como é mum pensar. E algo mais profundo. E o lugar de onde nascem os 128 Mauro Martins Amatuzt| Por uma Psicologia Humana sentimentos. Mas também de onde nascem os pensamentos ¢ as de fato usamos nao mais nomeiam o que se passa realmente conosco. decisdes. E 0 lugar onde essas 3 coisas no se separaram ainda. Lugar entdo nosso falar ja estard distante, jd teremos perdido 0 contato Ann do contato com 0 outro, com 0 nao eu. Dependendo do que acontece nosso centro. nesse contato, 0 corag4o humano estar aberto ou fechado. Se houver O que faz um terapeuta? Ele proporciona oportunidade para um acolhimento e uma confianga basica, ele estard aberto e pronto que restabelegamos 0 contato perdido com nosso centro pessoal. Mas para o desenvolvimento numa diregdo construtiva. e A vida freqiientemente nos leva a perder esse contato com nosso centro (com nosso coragio). Passamos entao a funcionar # partir dos pensamentos (que ficam, entao, rigidos como preconceitos), dos nossos sentimentos (que sem aquele contato cor © coragao ficam mais ou menos enlouquecidos) e das decisdes (que, sem aquele contato com nosso intimo, ficam duras como se fossem previamente programadas). Numa linguagem popular a restauragil do contato com o centro se da quando uma outra pessoa, com 0 Seif coragao aberto, ouve nosso coragdo. Reaprendemos a ouvi-lo, entilo, Restabelece-se o fluxo da vida. Os sentimentos, os pensamentos ¢ {if decisées estarfo, agora, em harmonia entre si e com 0 centro. Mes se as circunstancias exteriores forem dificeis. Que exemplos poderiamos dar desse centro, ou do coragao? Uni) pessoa esta falando insistentemente muitas coisas. Aparentemente mudi de assunto. Mas continua a falar como se nao tivesse terminado de dizel, como se nao estivesse satisfeita. De repente percebemos, no meio di toda aquela confusiio, o que realmente ela quer dizer, e tudo faz sentidd, E alguma coisa que esta por tras de todo seu discurso, mobilizando: como uma necessidade. Se algum amigo nesse momento lhe dlis\ exatamente isso, se é que ele percebeu bem, essa pessoa ficard coil iluminada. Dependendo do caso podera até chorar de emo Finalmente alguém me entendeu. Recebeu ¢ tocou meu coragao, Ii centro. S6 se pode fazer isso com sentimento positivo, com amor, GO} amizade. De outra forma nfo se toca, mas se fere 0 coragao. Mas quail tocado instaura-se 0 processo pessoal. Muitas palavras podem expressar isso que se passa em N10) centro, a cada momento. Palavras diferentes. Mas nao qualq| palavra. Algumas nitidamente nao servem. Somos capazes identificar qual serve e qual nao se adapta, sem sentir diivi Podemos até aprofundar o significado daquilo que sentimos, expressarmos com outras tantas palavras. Mas quando os termos Coracdo aberto a coracio que vai se abrindo. Sem isso, s6 0 que ocorre sio conselhos ou “truques de vida”, que podem funcionar parcialmente, mas nao restabelecem o fluxo vivencial. O verdadeiro terapeuta é uma pessoa treinada para isso, mesmo em situagdes onde 88a relagdo, assim tdo pessoal, fica dificil. Jean-Yves Leloup, em seu belo livro sobre Filon de lexandria, nos diz que o sentido original da palavra terapeuta nao aquele que cura, mas aquele que cuida (Leloup, 2000). Sempre jouve “cuidadores”, e é uma tremenda pretensio dizer. que “terapia” ) que a Psicologia moderna fez foi olhar para isso com os olhos de im novo tipo de ciéncia. E, com certeza, ainda nao terminou de olhar. Ha sempre algo em curso dentro de nés. Os filésofos da agem diriam que é uma intengo significativa, ou intengao de ificar. Espécies de garrafas jogadas ao mar. Aproximarmo-nos de 16s mesmos é chegar perto disso. E abrir as garrafas e dar nomes ao que m dentro. Quando fazemos isso, entramos em processo. Nossas ate mgdes sao revestidas de palavras, e outras intengdes podem entdo irgir. Isso é 0 desenvolvimento pessoal, isso é mudanga de vida, ou isso a vida prosseguindo. Quando isso acontece no estamos s6s. rocessos grupais Somos como circulos concéntricos. Temos varios Ambitos. livemos falando de nosso ambito estritamente pessoal, ¢ j4 nele iste uma abertura para o outro. Ndo somos completos em nés ssmos. Vivemos como parte de um ou varios grupos. Sera que lemos falar de processos grupais com a mesma profundidade com falamos de processos pessoais? Mauro Martins Amatuz) Aquilo que acontece em nosso interior é mobilizado ng presenga (fisica ou intencional) de uma outra pessoa, ou varias, Somos parte de grupos e nosso processo pessoal se da de formg intimamente relacionada com processos grupais. Como pensar isso? Em primeiro lugar € preciso reconhecermos a possibilidade de processos grupais tanto no sentido profundo do termo, como no sentido mais mecAnico. Processo grupal nao é apenas a seqiiéncia de coisas que acontecem no grupo, uma depois da outra, un provocando a outra. Pode ser também uma mobilizagao do proprio modo grupal de ser, a partir das mobilizagdes pessoais, ¢ integradd) com elas. Nesse sentido 0 processo grupal é também profundament@ pessoal. Um exemplo poderia esclarecer isso. Muitas vezes Wi) grupo em que nos inserimos vai se modificando ao sabor «ii influéncias que pesam sobre ele, e nao temos nenhum controle sobre isso. Uma coisa acontece depois da outra, ou por causa da outra, 0 grupo, como grupo, esta a deriva, mesmo que as pessowl) individualmente possam manter sua liberdade individual, ao meni) no sentido de poderem “deixar 0 barco”, sair do grupo. Isso nio ainda um processo grupal; é apenas um processo de ocorréncias q se abatem sobre o grupo, deixando como tinica margem de liberdad as decisdes individuais. Nao ha liberdade integrando pessoa ¢ gruij) Como tal o grupo nao se tem nas mos. Isso s6 comega a aconted quando as pessoas se abrem umas para as outras, a partir de sel centros, em seu intimo. A propria estrutura do grupo, entio, relativiza. O modo de ser grupal ganha vida ¢ vai se modificando. harmonia com as modificagdes pessoais. As pessoas nao eit simplesmente sendo levadas pelo grupo. O coletivo passa aca Ambito mais alargado do pessoal. Quando as pessoas sao vitimal! um “processo grupal”, isso nao é ainda um processo grupal. Dene temos aqui dois sentidos para a palavra proceso. Um ¢ ii} superficial, designando 0 que acontece de fora e se impoe as penil queiram elas ou nao, e outro é mais profundo, teferindo-se au mobilizagao do grupo que envolve as pessoas naquilo que elas (an mais humano. Quando um grupo entra em Processo realmenti cresce muito como grupo, e ele passa a ser um instrument crescimento pessoal também. Por uma Psicologia Humana 131 Quando nos deparamos com um grupo, podemos adotar uma postura de resolver seus problemas através de dicas orientadoras. Nao estamos, ent&o, confiando no proprio processo grupal. Se, ao invés disso, propusermos uma abertura de todos a todos, a partir de seus centros pessoais (a partir do coragao), ent’io as solugdes ocorrerao mas 40 como coisas prontas, e sim como um novo rumo mais criativo que 0 proprio grupo acaba assumindo. Solugdes inesperadas as vezes ontecem, a partir de uma nova maneira de abordar 0 problema, a partir eum outro paradigma. Nesse caso nao é que as pessoas se submetem ao ocesso grupal, mas que elas instauram o processo, a partir delas inesmas, juntamente com todos os demais. O que é importante aqui é rceber que so duas coisas bem diferentes, Grupo e pessoas se potencializam (se enriquecem) no segundo caso, ¢ se separam, ou se lubmetem um ao outro, no primeiro caso. Quando as pessoas se comunicam de corag¢ao, a partir de seu htimo, manifesta-se a alma do grupo, uma sabedoria viva que é ior que a consciéncia das pessoas, mas que, de certa forma, pende dela. Quando a comunicagao flui, e sabemos nos abrir ao € se manifesta, acontecem coisas sdbias que nao haviamos evisto, e ds quais nao poderiamos chegar sozinhos. Isso é 0 ‘Ocesso grupal no melhor sentido da palavra. Ele nos ajuda como oas ¢ ndo nos submete. Deixa de haver oposiciio entre liberdade Soal e liberdade grupal. O grupo passa a ser as pessoas, cionando em sua plenitude humana. Assim como dissemos que existe um centro na pessoa, ¢ que femos estar em contato com esse centro, assim também podemos que existe uma sabedoria grupal, um centro de energia grupal, Se constitui quando as pessoas se comunicam de coragao aberto. ‘Mos estar mais ou menos abertos ao contato com esse centro 1. Se nos fecharmos, isso significara também uma restrigao a hunicagao aberta, de coragdo a coracao. E entao bloquearemos o esso grupal. A abertura a esse centro grupal supde uma rentincia Xcessivo desejo de controle racional. Na verdade, a razio é um ento importante, mas a servigo de outra coisa. Ela entra, mas pode matar a confianga ou uma postura aberta a algo maior. Como pessoas, somos profundamente solidarios. E no grupo escemos. O verdadeiro grupo é como uma extensdo de nosso ito pessoal. O processo grupal nao é uma coisa ruim, uma espécie lal necessario, mas uma coisa boa para nos. 132 Mauro Martins Amatuy#| fuma Psicologia Humana mudanga de paradigma também. Mas que nao exclui 0 raciocinio ¢ a nica, obviamente. Nao ha oposi¢ao, mas uma visao diferente. Aqui imbém se pode falar, entio, de processo nos dois sentidos: num mtido meramente preservacionista utilitario (pensando xclusivamente na riqueza do homem), e num sentido mais vivo e jessoal (onde se pensa no todo, como contexto no qual nos realizamos, partir da percepgao de que somos participantes). E também quando a omunica¢ao com a natureza se da a partir de dentro, que podemos nos ¢ntir verdadeiramente participantes, membros, e falar de processo ‘ologico propriamente dito. E é nesse caso que 0 processo ecolégico Ntegra os outros ambitos: o pessoal, o grupal, e 0 comunitario, Processo comunitario e outros Ambitos Somos também comunidade, grupos maiores, grupo de grupos, [! um ambito novo. Aqui também pode ou nao ocorrer processo integradd, Se nao, a comunidade (0 social) abate-se sobre nés, fazendo-nos vitimas, deixando-nos a op¢ao de apenas preservar nosso individualismo beri) protegido. Poderiamos talvez chamar a isso de processo socidl, enquanto uma realidade auténoma, independente das pessoas. Mas 4 for processo propriamente comunitdrio, ele também potencializa iy pessoas € os grupos. A complexidade é bem maior, pois implica noy, habilidades e percepgdes. Para que haja verdadeiramente procesyi) comunitario (e nao apenas uma seqiiéncia de eventos sociais), a mes indo-nos 0 contexto maior. Todos ocorrem ao mesmo tempo. “O que necessidade de comunicagao aberta existe, e de rentincia ao excessivi mntecer a terra acontecera aos filhos da terra”. Cuidar da terra é controle racional. S6 que aqui aparecem outras caracteristicas, idarmo-nos de nds mesmos. comunicagdo, mesmo sendo totalmente pessoal, nao sep necessariamente intima. E nem seria possivel isso no 4mbito de un) vida comunitaria, com uma quantidade grande de pessoas. Mas se ni houver pessoalidade na comunicagao, mesmo que seja no ambito mali da comunidade, nao ocorrera processo no sentido mais profundo integrado do termo. Por outro lado surge a politica, como atengiio orre processo pessoal quando estamos em contato com nosso centro sensibilidade ao bem comum, ¢ como novo Ambito de pensamento sssoal, nosso “corago”. Isso nado acontecendo o processo nado atuagao. Mas aqui também existe uma politica comunitariamente vivii yderia ser chamado de pessoal propriamente dito, mas talvez apenas que favorece as pessoas, ¢ uma politica apenas socialmente vivida, q telacional. Quando estamos em contato com nosso centro pessoal massifica as pessoas. Esta segunda é polarizada pelas tentativas ( ssencadeia-se um movimento interior, fluente, e normalmente controle. Jé na primeira, existe 0 desejo de comunicagao aberta, @ )Itado para o crescimento. Sem esse contato somos como vitimas do confianga no processo comunitario que envolve as pessoas. esso. Com ele tomamos consisténcia no interior do processo. A mesma regra que rege a ampliagao dos ambitos do pessoal iemelhantemente, ocorre processo grupal propriamente quando os comunitario deve chegar a incluir também o meio ambiente, hembros do grupo estéo em contato com a “alma” do grupo, a natureza, o universo, como um circulo concéntrico maior. Ea ecolog ibedoria grupal, que se manifesta a partir da comunicagao aberta entre Eacomunicagao pessoal se estende também. Sera preciso que a pest les. Isso nado acontecendo as pessoas ficam sujeitas as leis da dindmica veja € ouga a natureza (animais, plantas, minerais...) a partir de upal que atuam de modo mais ou menos cego. A essa situagaio centro, de seu “coragao”. Entio instaura-se um processo ecolégico, imbém se chama processo grupal, mas num sentido bem diferente. sentido forte do termo. Sim, porque aqui também existe um seni} demos falar ainda em processo comunitdrio, incluindo um ambito fraco: a ecologia de medidas externas a que nos submetemos com {ii} jor de pessoas unidas por uma condigao identitaria comum, por um de protegao de “nossas riquezas”. A verdadeira ecologia nila jeto maior comum. Aqui também poderd ocorrer processo num meramente utilitaria, mas pressupde um senso de respeito pelo todo, mtido externo do termo, sem que as pessoas estejam de fato uma percepgiio (quase diria amorosa) de que somos parte. I! Uj olvidas. Para que tenha um sentido desencadeador das cuidar Poderiamos dizer, resumindo nosso percurso até agora, que 134 Mauro Martins Amatuz# potencialidades humanas, a condi¢ao para 0 processo comunitario verdadeiro seria de novo a comunicagao aberta, nao necessariamente no sentido de intima (nesse Ambito seria impossivel), mas no sentido de pessoal, a partir do centro, e possivelmente instrumentalizada por estruturas intermedidrias facilitadoras. Estamos no ambito do politica como referente a “polis” (cidade, nagao). Podera ocorrer somente um jogo de forgas que tende a submeter as pessoas, ou um verdadeird processo politico envolvente das pessoas inteiras. Devemos falar aindit de processo ecolégico. E ele ocorre quando as pessoas se sabem © i sentem participantes do todo que inclui a natureza, 0 cosmos, universo; aceitam e gostam disso. Esse sentir gera 0 respcito, ¢ agbel no sentido de um cuidar solidario do mundo como contexto pari propria realizagao pessoal. Ocorre por fim que todos esses Ambitow esto interligados, e um nao pode ocorrer plenamente sem o ould, O cuidar do processo pessoal, cuidar profissional, extraordinario, do psicdlogo, tem sido chamado de psicoterapia. 1 suit condigao basica é oferecer, na relacdo, um clima de seguranga tal qued processo pessoal natural possa se desbloquear e seguir seu rumo, cuidar do grupo é também delicado, ¢ supée a promogio d comunicagdes abertas e verdadeiras entre as pessoas. Um grt natural que funciona bem, tem cuidadores naturais dentre s@ participantes. O cuidar da comunidade nao tem sido distinguido pe uma profissao especial. Talvez os politicos devessem ser isso. Mas, Ni circunstdncias concretas em que nos encontramos, eles dificilme! nao sdo contaminados pela busca do poder. Nos meios populi fala-se de agentes comunitarios. Deveriam ser pessoas que, pot (i propria maneira de ser, fomentam a comunicagao aberta entre today que, no nosso ambiente atual, supde muita disponibilidade interiof, ao mesmo tempo perspicacia para nao se deixar engolir e anular pel jogos de poder. Para a ecologia existem técnicos. Mas 0 cuidar processo ecolégico, como o nivel maximo de abrangéncia ( processos humanos, nao tem propriamente um profissional design Nao bastam técnicos, nem politicos. Se as pessoas, na condi¢ao bil de pessoas, nao estiverem envolvidas, nfo havera proce) propriamente dito, mas uma simples seqiiéncia de acontecimelil materiais dos quais seremos mais vitimas do que agentes. Por uma Psicologia Humana 135 ; E curioso notar que, na medida em que se parte para os campos mais abrangentes, a especificagao profissional vai se diluindo m1 ‘ogressivamente, até que, por fim, nao exista um profissional specifico. E no entanto esse vem a ser um de nossos principais lesafios atuais: cuidar de nosso desenvolvimento de forma integrada. dele pouco se fala, ou, tudo de que se fala nao tem relagao direta om ele, uma vez que as formagées profissionais tém sido redominantemente técnicas. Nos niveis mais abrangentes muitos ofissionais tém uma fungiio importante. Mas 0 que em definitivo lua sao pessoas envolvidas na pratica, através de uma agao lucida e imorosa (partindo do coragao). Ea formagao para esse tipo de pratica 6 pode se dar também de forma pratica: fazendo, ¢ examinando a ‘periéncia. Todo resto, por mais importante que seja, é acessério. mesmo 0 psicdlogo, em seu fazer profissional de promover Nocessos pessoais, deve levar em conta que nenhum desses ambitos umanos tem consisténcia completa independentemente dos outros. que se ele nao for uma pessoa, antes de ser qualquer coisa, nada de srdadeiro e profundo ocorrera. Tiando bolsées de humanismo Todos nos preocupamos com a sociedade em que vivemos. A imanidade esta em guerra contra ela mesma. A violéncia esta ai e assusta a todos. Acusamo-nos mutuamente, denunciamos fancias impessoais, procuramos culpados. Os que dao um passo m perguntam-se o que é possivel fazer além de se proteger ou gir. Creio que alguns fatos faceis de se ver podem nos ajudar a impreender o que se passa. Somemos todas as possibilidades de emprego formal que existem ima cidade. Se este numero for aproximadamente igual ao da u jagao ativa, teremos uma cidade razoavelmente equilibrada. Todos cidadaos terao um lugar, estarao trabalhando em paz. Mas se o mero de possibilidades de emprego for menor que o da populagaio ‘a, muitos dos cidadaos estario excluidos da possibilidade de balho. Nao haverd lugar para eles naquela cidade. Pois bem, se 10s todas as possibilidades de emprego oferecidas em todo nosso 136 Mauro Martins Amatuzzi mundo atual, esse niimero sera nitidamente muito inferior ao numero de pessoas ativas para o trabalho produtivo. Esse calculo ja foi feito e chegou-se a essa conclusao. Ha mais gente no mundo do que ofertas de trabalho previstas. E isso, evidentemente, é mais gritante em regides: subdesenvolvidas como a América Latina. Nao ha espago para todos, Somemos agora 0 produto interno bruto de todos os paises do mundo, isto é, todas as riquezas de fato produzidas no mundo. Esse cAlculo também ja foi feito. E 0 resultado foi que esse montante global de riqueza, se fosse dividido por todas as pessoas que existem no mundo, seria suficiente para que cada uma vivesse de forma digna, Ha riqueza para todos viverem dignamente. Mas isso nao acontece. Nossa sociedade é organizada para beneficiar somente 4 alguns. Nao a todos. E uma contradig’o que gera os conflitos em que vivemos. Se acrescentarmos a isso as formas de comunicagao que tornam 0 nosso mundo uma aldeia global, e que no fundo veiculam mensagem de que cada um deve procurar a solugao para os seus problemas, fica facil imaginar 0 quadro final. Todos procurando solug6es individuais, num tipo de organizagao social que nao permite uma solucao para todos. Dai para a crise ética, a violéncia, ¢ 4 espoliag&o dos recursos naturais, ha apenas um pequeno passo, e jth demos este passo. Um mundo enlouquecido pelo individualismo, pelo assalto a natureza, pela violéncia, pelas diferengas gritantes, Dentro desta légica algumas pessoas consideram que nao ha nada a s@ fazer senao esperar de bragos cruzados que os excluidos, que ficaram fora, se autodestruam (pois a sociedade se regula a si mesmil espontaneamente). Enquanto isso no acontece, resta a necessidade de se proteger deles: aumentam os muros ¢ as grades. Que tipo de processo é esse? E um processo que se abate sobre nds. Nao é uma mobilizagao em vista de uma situacao mais humana patil todos. Sentimo-nos vitimas. A quem cabe cuidar para que esse process) mecanico se transforme em um processo humano e humanizante? Com ja vimos nao ha profissionais especializados para isso. Todos somo) capazes, como cidad&os comuns, associando-nos uns com os outros, partir da pratica, em torno de um outro paradigma, de outra visio coisas. Uma visao mais verdadeira, que integre os diversos ambit} humanos. O que acontecer coma terra, acontecera com os filhos da te! Por uma Psicologia Humana 137 O que acontecer com as comunidades, acontecera com os seus Participantes. O que acontecer com os grupos terd enorme influéncia sobre as pessoas. Se quisermos mudar 0 mundo, comecemos ja, mudando-nos a nés mesmos, come¢ando uma forma completamente diferente de nos relacionarmos. O contexto de um processo pessoal é 0 grupo. O contexto de um processo grupal é a comunidade. O contexto de um processo comunitario é a terra, nossa casa. Se isolarmos esses contextos nada contecera, a nao ser o proprio isolamento pessoal com a ilusao de Pessoalmente acredito que a tinica saida para esse nosso undo enlouquecido é envolvermo-nos em verdadciras experiéncias omunitarias. Participar, com a vida, da criag’o de bolsdes de umanismo. Bolsdes no sentido de que ai ocorrem processos lumanos integrando todos os niveis. Nao no sentido de redutos chados. Espagos abertos onde se possa experienciar um modo ‘ompletamente diferente de ser. Isso pode acontecer desde ja, sem sperar nada, a partir da determinacdo de pessoas comuns, O psicélogo tem uma contribuigdo importante a dar nessa riagéo de comunidades. E isso porque ele pode facilitar a omunica¢ao entre as pessoas. Mas ele (assim como todos os outros ‘ofissionais) deve comegar dando o primeiro passo, como cidadao mum. Pois o que pode acontecer, se o quisermos, nao depende de apel especifico nenhum. O que é entio trabalhar processos humanos de forma integrada, i todos os seus Ambitos inseparaveis? E tomar a iniciativae comegar ja iver segundo outro paradigma. E passar a funcionar a partir do centro ssoal, abrindo-se ao outro. F associar-se na pratica do que fazemos, e scar 0 bem de todos. Se isso nao fizer parte do trabalho do psicélogo, estara somente contribuindo para que o mundo continue a ser como Transcendemos a psicologia? Creio que a psicologia que nao estiver ravessada por esses valores, em todos os seus niveis de insergao fissional, j4 nao tem nada de importante a oferecer a nosso mundo. Referéncias Ives, A. J. (1991). O planejamento de pesquisas qualitativas em educagio. In: Ca- rnos de Pesquisa. So Paulo, (77), pp. 53-61, mai. es, V.L.P. (1996). Atendimento de familias e/ou casais: enfoque centrado na sssoa. PUC-Campinas. Dissertagao de Mestrado (em Psicologia Clinica). ', A. (1980). Historial, desenvolvimento e evolugao da Psicologia. In: M. & F, luguelin. Diciondrio de Psicologia. Lisboa, Sio Paulo: Verbo. ituzzi, M. M. (1989). O Significado da psicologia humanista, posicionamentos losoficos implicitos. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 41, (4), pp.88-95. atuzzi, M. M. (1990). O que é ouvir. Estudos de Psicologia, 7(2), pp. 86-97, matuzzi, M.M. (1991). O sentido-que-faz-sentido: uma pesquisa fenomenolégi- | no proceso terapéutico. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 1(1): 1-12, atuzzi, M. M. (1991b). Psicoterapia como hermenéutica existencial. Estudos de icologia (PUC-Campinas), 8(1), pp. 94-107, jan-jul. matuzzi, M. M. (1992). 0 Siléncio e a Palavra. Estudos de Psicologia (PUC-Cam- ), 93), pp. 77-96, set-dez.. wzi, M. M. (1993). Btapas do Processo Terapéutico: um estudo exploratério, logia: Teoria e Pesquisa (UnB), (1) pp. 1-21, jan-abr. matuzzi, M. M. (1994). A investigagio do humano: um debate. Esiudos de Psico- a (PUC-Campinas), 11 (3), pp.73-77. atuzzi, M. M. (1996a). Apontamentos acerca da pesquisa fenomenoldgica, Estu- de Psicologia (PUC-Campinas), /3(1), pp. 5-10. M. M. (19960). O uso da versiio de sentido na formagao ¢ pesquisa em psico- M.L.L. CARVALHO (org). Repensando a formagiio do psicélogo: da in- do d descoberta. Campinas- SP, Alinea, Coletanea da ANPEPP. 9, pp. 11-24, 140 Mauro Martins Amatuzzi Amatuzzi, M. M. (1997). Salir del consultorio para hablarmos de tu. La construecién participativa de una psicologia popular, Prometeo (Revista mexicana de psicologia humanista y desarrollo humano) n? especial, pp. 27-33. Amatuzzi, M. M, (1999). Abordagem fenomenoldgica no atendimento psicoterapi- co. Psicologia em Estudo, 4(1), pp. 67-81. Amatuzzi, M. M. (2000). O desenvolvimento religioso: uma hipétese psicoldgica. Estudos de Psicologia (PUC-Campinas). 17(1), pp. 15-30. ; Solymos, G.; Ando, C.; Bruscagin, C. & Costabile, C. (1991). O senti- do-que-faz-sentido: uma pesquisa fenomenoldgica no processo terapéutico. Psicolo- gia: Teoria e Pesquisa (UnB), 7(1) pp. 1-12, jan-abr, ; Echeverria, D-F.; Brisola, E.B. & Giovelli, LN. (1996). Psicologia na Comunidade - uma experiéncia. Campinas-SP: Alinea. Andresen, J.J. (1991). Biblical Job: Changing the Helper’s Mind. Contemporary Psychoanalysis, 27(3), pp. 454-481. Astolfi, J.-P. (1993). Trois paradigme pour les recherches en didactique. In: Revue Francaise de Pédagogie, 103, avril-mai-juin, pp. 5-18. Barbier, R. (1991-1992). Transcrigo da palestra do prof. René Barbier sobre Pes- quisa-agao. In: Anudrio do Laboratério de Subjetividade e Politica (Dep. de Psico- logia da Univ. Federal Fluminense), 1(1), pp. 197-214. Bernard, J.M. & Goodyear, R. K. (1992). Fundamentals of Clinical Supervision. Boston: Allyn and Bacon. Bonfim, E. de M. (1991). Psicologia Comunitiria no Brasil: reflexdes historicas, te6ricas e préticas. In: ANPEPP (Associagao Nacional de Pesquisa e Pés-Graduagiio om Psicologia). ANAIS do 3° Simpdsio Brasileiro de Pesquisa e Intercambio Cientifi- co. So Paulo, ANPEPP/PUCSP. pp. 411-413. Brandio, C.R. (1985). A educagdo como cultura. Sao Paulo: Brasiliense. Brando, D.M.S. & Crema, R. (Org.). (1991). O Novo Paradigma Holistico. Sio Pa- ulo: Summus. Brioschi, L.R. & Trigo, M.H.B. (1987). Relatos de Vida em Ciéneias Sociais: Consi- deragdes Metodolégicas. Ciéncia e Cultura (Rev. da SBPC), 39(7), pp. 631-637, Buber, M. (1979). Eu e Tu. 2* ed., So Paulo: Cortez e Morais. Buber, M. (1982a). Do didlogo e do Dialdgico. Sio Paulo: Perspectiva. Buber, M. (1982b). Elementos do inter-humano. In: M. BUBER. Do didlogo e do di alégico. Sio Paulo: Perspectiva (original alemao deste capitulo: 1953). Campos, R.H. de F. (1991). Psicologia Comunitaria no Brasil: um pouco de histéria, In: ANPEPP (Associagiio Nacional de Pesquisa e Pés-Graduagio em Psicologia), Por uma Psicologia Humana 141 ANAIS do 3° Simpésio Brasileiro de Pesquisa e Intercémbio Cientifico. Sao Paulo, ANPEPP/PUCSP. pp. 428-430, Campos, R.H. de F. (1998). Psicologia Social Comunitéria—da solidariedade é.au- tonomia. 2 ed., Pettépolis-RJ: Vozes. Carvalho, M. C.M. de (Org.). (1991). Construindo o Saber: metodologia ciemtifica, fundamentos e técnicas. 3° ed., Campinas-SP: Papirus (orig. 1987). Chizzotti, A. (1991). Pesquisa em Ciéncias Humanas e Sociais. Sio Paulo: Cortez. Clark, J.H. (1983). Map of Mental State. London, Boston, Melbourne and Henley, Routledge & Kegan Paul. Coreth, E. (1973). Questées fundamentais de hermenéutica, S40 Paulo: EPU-EDUS? (orig. alemfo de 1969). Denne, J.M. & Thompson, N.L. (1991). The experience of transition to meaning and purpose in life. Journal of Phenomenological Psychology, 22(2), pp. 109-133. Dutra, L.V. (2000). Algumas dificuldades lingiiisticas na delimitagao do problema da relagdo entre 0 cérebro ¢ a mente: a critica de Ryle a Descartes. Revista da FFCL (Faculdade de Filosofia Ciéncias e Letras da FEOB), [(1), pp. 17-27. Freire, P. (1983). 4 importancia do ato de ler. 3* ed., Sio Paulo: Cortez / Autores Associados. Freire, P. & Nogueira, A. (1989). QUE FAZER - teoria e pratica em Educagdo Po- pular. Petropolis-RJ: Vozes. r Freud, S. (1978). Esbogo de Psicanilise. In: S. FREUD. Selegao de textos. Sao Pau- lo: Abril Cultural, pp.195-246 (orig. 1940). Fromm, E. (1974). Andlise do Homem. 9° ed., Rio de Janeiro: Zahar. Gamboa, S. (1991). A dialética na pesquisa em educagao: elementos de contexto. In: I. FAZENDA. Metodologia da pesquisa educacional. 2* ed., aumentada. Sao Paulo: Cortez, pp. 91-115. Géis, C.W. de L. (1993). Nogdes de Psicologia Comunitaria. Fortaleza-CE: UFC. Gomes Del Campo, J.F.E. (1993), El modelo de accién social para la intervencién co- munitaria. Revista Intercontinental de Psicologia y Educacién. 6(1-2), pp. 271-306. Greening, T. (ed.) (1975), Psicologia Existencial Humanista. Rio de Janeiro: Zahar. Gusdorf, G. (1989-1990). Les modéles épistémologiques dans les sciences humai- nes. In: Bulletin de Psychologie. Tome XLII, n° 397, pp. 858-868. Heppner, P.P.; Rosenberg, J.1. & Hedgespeth, J. (1992). Three Methods in Measu- ring the Therapeutic Process: Clients' and Counselors’ Constructions of the Therape- utic Process versus Actual Therapeutic Events. Journal of Counseling Psychology. 39(1), pp. 20-31. a2 Mauro Martins Amatuza) Por uma Psicologia Humana 143 Juarroz, R. (1980). Poesia y creacién - dialogos con Guillermo Boido. Buenos A\v rado, A. (1991). Poesia reunida. Sao Paulo: Siciliano. res: Carlos Lohlé. Kuhn, T. (1978). A Estrutura das Revolugées Cientificas. 2° ed., S40 Paulo: Persped. tiva (orig, 1962). olkinghorne, D. (1982). What makes research humanistic? In: Journal of Humanis- Psychology. 22(3), Summer, pp. 47-54. Prebianchi, H.B.; Amatuzzi, M.M. (2000). Andlise de uma experiéncia de supervi- Ladriére, J. (1975). Le discours théologique et le symbole. Revue des Sciences Rell: do clinica. Estudos de Psicologia (PUC-Campinas), 17(1), pp. 55-63. gieuses (Univ. de Strasbourg), 49(1-2), pp. 116-141. Ricoeur, P. (1977). Interpretagdo e ideologias. Rio de Janciro: Francisco Alves Leloup, J.-Y. (1991). Trés orientagdes maiores de uma psicoterapia iniciatica. In) ogers, C. (1958). A process conception of psychotherapy. American Psychologist, DMS. Brandao & R. Crema (org.) Visio Holistica em Psicologia e Educagéio. Si\) 13, pp. 142-149. Heatie: Remon, gp. 70-74. ogers, C. (Org) (1967). The therapeutic relationship and its impact - a study of Leloup, J.-Y. (1996). Cuidar do Ser — Filon e os Terapeutas de Alexandria. S*ed, sychotherapy with schizophrenics. Wesport, Connecticut: Greenwood Press. Petropolis-RJ: Vozes. Leloup, J.-Y. & Boff, L. (2000). Terapeutas do Deserto — De Filon de Alexandria @ Francisco de Assis a Graf Diirckheim. 5*ed., Petrépolis-RJ: Vozes (Orig. de 1997), ogers, C. (1972). Psicoterapia Centrada en el Cliente, Buenos Aires: Paidés (orig, mericano de 1951). ogers, C. (1983). Um Jeito de Ser. Sio Paulo: EPU. Rogers, C. (1985). Tornar-se Pessoa. So Paulo: Martins Fontes (orig. 1961). Lispector, C. (1984). A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, ispector, C. (1985). Para nd cer. Si Paulo: Ci ivro. Tispector, © (1985).-Pare nd esquecer..S4o Raulo: Girculo,do livro togers, C. & Kinget, M. (1975). Psicoterapia e Relagdes Humanas ~ Teoria e Prética Macédo, $.M. de (2000). Psicologia clinica e aprendizagem significativa: relatandd fa Terapia Nao-Diretiva. Belo Horizonte: Interlivros. i 16gica colaborativa, Psicologit . 49-16, cnlact uma pesquisa fenomenolégica colaborativa. Psicologia em Estudo. 5(2), pp. 49-76, yuza, B. de (1996). Psicologia Comunitaria nos Estados Unidos e na América Lati- : implicagdes para o Brasil. Psicologia: Reflexdio e Critica, 9(1) pp. 5-19. Miles, W. B.; Reynolds, S.; Hardy, G.E.; Rees, A.; Barkham, M. & Shapiro, D. A. 1994). Using the Session Evaluation Questionnaire and the Session Impacts Scale. Journal of Counseling Psychology, 41(2) pp. 175-185. Walker, A.M.; Rablen, R.A.& Rogers, C. (1960). Development ofa scale to measure mocess changes in Psychotherapy. Journal of Clinical Psychology, XV, pp. 79-85. Marziali, BE, & Alexander, L. (1991). The power of the therapeutic relationship) American Journal of Ortho-Psychiatry. 61(3), pp. 383-391. Maslow, A. (s/d). Introdugdo a Psicologia do Ser, Rio de Janeiro: Eldorado. Meireles, C. (1994). Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar. Merleau-Ponty, M. (1967). Phénomenologie de la Perception. Paris: Galimard, Merleau-Ponty, M. (1971). Fenomenologia da Percep¢do. Sao Paulo: Livraria Fr tas Bastos (orig. francés de 1945). Merleau-Ponty, M. (1972). La structure du comportement. Paris: PUF (orig. 1942), Merleau-Ponty, M. (1975). A Estrutura do Comportamento. Belo Horizonte: Intet}) vros (orig. francés de 1942). Merleau-Ponty, M. (1980). Sobre a Fenomenologia da Linguagem. In: Textos Sel cionados. Sao Paulo: Abril (Os Pensadores) (orig. francés de 1960). Merleau-Ponty, M. (1980). A Linguagem Indireta e as Vozes do Siléncio. In: Text Selecionados. Sao Paulo: Abril (Os Pensadores) (orig. francés de 1960). Mucchielli, A. (1991). Les méthodes qualitatives. Paris: Presses Universitaires () France. Mueller, F.-L. (1978). Historia da Psicologia - da antiguidade aos dias de hoje, ed., Sao Paulo: Cia. Ed. Nacional. Mauro Martins Amatuzzi Psic6logo formado pela PUC de Sao Paulo, e Doutor em Filosofia da edu- cago pela UNICAMP. Foi professor em varias universidades, dentre as quais a USP, no Instituto de Psicologia, e, atualmente, esta vinculado 4 PUC de Campinas. Autor de diversos livros, dentre eles: Psicologia na Comunidade: uma experiéncia (desta editora). Colaborou com capitulos em outros livros, e tem varios artigos publicados em revistas especializadas. Considera que o mais importante, neste seu momento de vida, é envolver-se com outras pessoas interessadas em pesquisar praticamente 0s caminhos do desenvolvimento humano pessoal e comunitario, ‘www.atomoealinea.com.br SITE NOSSO WEASTE ISBN 978-85-7516-243-9 ! 8575!162439

You might also like