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A ESCRITA AMORDAGADA DONALDO SCHULER Fim Quatro-Olhos, Renato Pompeu dra.aatiza a produgaéo roma- nexeA Num regime em que impera a vontade do ditador. Em circunstan- elas normais, € preceito de criag4éo romanesca que o leitor, aceitos os prinefplos da ficco, creia nas palavras do narrador. Mas, se 0 narrador enereve vigiado, amordagado pelo regime opressor, 0 que acontece? A natural distAncia entre a palavra e o referente se conflitua. O narrador, wo afirmar, abre a suspeita de que a realidade pode ser 0 oposto do que deelara, Se definimos a verdade como desvendamento, o discurso ame- drontado pelo ditador se distancia da verdade por nada dizer. Conside- emo um dos paragrafos, tipico de Quatro-Olhos: Av condigbes de vida desse cidadao, assim minuciosamente reproduzidas, eonstitufam o corpo de trecho importante do livro. Receio, entretanto, que 4 powelta nflo estivesse envolvida no caso.Torpes temores, na verdade, pois agora erelo com firmeza nado haver mengdo a esse casal no livro, uma vez «ue 18 eonfundo e acho que estou pondo em vida outras figuras que néo wo dinoutidas de modo edificante na obra. Torno-me convicto disso, pois a prlegulee desse episédio, seu indisfarg4vel e mesmo descarado cardter de referénela pouco sutil a problemas j4 por demais explorados, nao condizem ‘oom 4 Inadlita originalidade de minha superior criagio. Nao era disso que tyalava meu romance, o qual na verdade de nada tratava porquanto estava além @ elma de mesquinharias ou de qualquer preocupagao pouco estética. ‘Tinha, na verdade, valor épico, e foi bom té-lo esquecido; mesmo perdido, pordm, eu o fiz e alguém pode achd-lo. (p.194) 1 caracterfstico da ficgdo desprender-se do mundo oferecido pe- jou sentidos © construir, em plena liberdade, mundo préprio. Quatro- Clhox até, entretanto, duplamente distanciado da realidade sensorial, OF Her romance e por narrar as aventuras € desventuras de um autor ‘wetpado em refazer um romance avesso ao cotidiano. O sumigo do ro- © fol determinado pela ago violenta da polfcia, guiada pelo prin- volo de que toda escrita, mesmo a mais inécua, ameaga a seguranga do ————— pene Hehiler, Professor Titular no Departamento de Letras Cléssicas e Vernfculas da ' ‘Onganon 17/1001 9 regime. Para se proteger, a ditadura faz-se anOnima, torna difusas as instancias de que procedem as ordens, oculta os canais que levam a 6r- gaos decisérios. Desorientado, o narrador busca o manuscrito subtrafdo nos lugares mais estranhos, em condugio publica, em bairros remotos. Na falta de informagio autorizada, presta ateng&o a toda sorte de ru- mor. Tudo é possfvel na vigéncia do poder que se oculta e obscurece as determinagdes. Refazer o romance € persistir na insubordinag&o. Que outra coisa fazer senao escrever quando se € escritor? O texto sumido era efetivarnente romance? Eis a primeira diivida. O narrador nao des- carta a hipdtese de ter sido um livro de crénicas. A questao nao pode ser degradada a uma inécua discussao de géneros. Enquanto o romance tem personagens, tem enredo, tem agiio, cendrio amplo, a crénica se restringe a reduzidas provincias do cotidiano, tao restritas como o de- sabrochar de uma flor. A dtivida — crénica ou romance? — afeta a re- construgaéo. A personagem a que o narrador atribui atuago importante nos papéis desaparecidos pode nem mesmo ter estado 14. Tratava-se mesmo de “superior criag4o”’, como afirma o narrador? Como sabé-lo, ignorando-se até as caracterfsticas mais banais do manuscrito desapare- cido? A reconstrugéio nfo revela qualidades excepcionais. O narrador, deambulando entre os “nadas’’ que Ihe tecem a vida, empenha-se na recuperagaéo de nada para apresentar nada que valha a pena preservar. Esterilidades que tais caracterizam os feitos da ditadura. Por inseguros que sejam os critérios da critica literdria, ela consegue distinguir o que tem valor daquilo que deve submergir no mar do esquecimento. A dita- dura, entretanto, cega e canhestra, confunde criagéio e mediocridade, determinando para ambas o mesmo destino. O interesse do narrador por latim, a Ifngua esquecida, a lingua que j4 nfo 6, mostra o apego a coisas mortas, revelado no texto em re- teng6es arcaizantes, formas cristalizadas, desativadas. Isso nao condiz com as qualidades do romance, voltado, desde as origens, 4 novidade, ao que se renova. O narrador assegura o “‘valor €pico”’ do escrito. Se o tinha, nao se pode dispensar a acto de personagens sobre 0 mundo, esséncia do €pico. Onde, entretanto, a certeza de epicidade, se nem mesmo, a exis- téncia de personagens no livro a ser reescrito esté assegurada? O livro que temos na mao mostra-se escassamente épico na segunda parte, na viséo de fora, em que o olhar do narrador, falando agora em terceira pessoa, narra os atos dos pacientes no sanatério. Mas este j4 nao € o narrador da primeira parte. Na visado €pica, o narrador da primeira parte € observado, e seus atos nfo vao além do esforgo de refazer o manus- crito antigo, de ler gramaticas antigas. Na primeira parte, narrada em primeira pessoa, todo fazer redunda em nao-fazer, € o relato de insu- cessos. 10 Organon 17/1991 Estamos em presenga de uma variante da escrita intransitiva, es- erita que exclui tudo que nao seja ela mesma. N&o foi assim a escrita poderosa, a que abrangia o universo, abalava sistemas, mexia com a vida dos homens, apresentava modelos aos pésteros, a escrita Epica. Quatro-Olhos € a hist6ria do romance impossfvel de ser escrito e re- produzido. Nao se confundam as incertezas do narrador de Quatro- Olhos com as incertezas dos narradores machadianos. Machado afronta todos os autoritarismos sem omitir os do pensamento tido como escla- recido, A incerteza machadiana é metodolédgica, € socratica, € convite para repensar o j4 pensado, questionar o respondido. Nao € inécuo, nos romances de Machado, 0 incessante apelo & colaboragao do leitor. Ma- ehado entende compromisso de todos a reconstrug&o sobre as rufnas dos sistemas abalados. Para Quatro-Olhos, entretanto, € sintomatico o epiuddio daquele funciondrio com dois telefones sobre a mesa, que se dirige telefonicamente a si mesmo. O aparelho inventado para comuni- ongSes A distancia foi degradado & conversa solitéria, a palavra que de- veria ligar os homens nao sai do falante, falar intransitivo. Ante um texto que nfo sai de si, o leitor € convocado como testemunha da rufna. Contra a altissonancia da epopéia, o romance desde sempre culti- you © ailéncio, Recolhe, entretanto, a vida que se gera em siléncio, re- pelindo © siléncio que paralisa os misculos na urna funerdria. A epopéia se alimenta do vigor da meméria. Os feitos lembrados pieean da meméria do cantor & meméria do ouvinte onde sao guarda- sos para werem repetidos em cadeia infinita. A perda da meméria de- ereti 6 fim da epopéia. Quando a meméria se apaga, nasce o romance, eonutrulile que 6 com dramas presentes, conflitos interiores, sentimen- {08 surpreendidos no nascedouro. A meméria romanesca, quando ocor- 1, dintante do reservartério Epico, depositério de fatos objetivos, apa- yeoe relvatada no mar das experiéncias presentes. Quatro-Olhos, ao “array @ faléncia do construir, apresenta o romance em crise, determi- Haile por um regime que, temeroso de atos originais, veda a emergéncia so Novo. Para se regenerar, o romance teré que suscitar forga mais po- deronn do que a inércia letal que o deprime. Como pode o narrador ser esquecido a ponto de olvidar os deta- ties main corriqueiros da crénica ou do romance ou do “romance cré- ‘Hieo! Gomo também o designa? Na verdade, ele foi atingido por um ‘ tyaumdtico, A mulher, envolvida em movimentos politicos clan- = Abandonou o apartamento em que moravam sem que ele tives- ‘#® § Coragem de acompanhé-la. Momentos depois vem a policia. Como fie eneontra a mulher, leva o escritor e apreende o livro. A fuga da Wulher, nllo tanto a fuga, mas a falta de decisio de segui-la, o desequi- tibva. A covardia o transtorna a ponto de ser encaminhado a um sanaté- 16 paiquidivico, A reconstrugiio do livro se dé a partir das profundezas denne Ablamo, Para o narrador, o intelectual, a agio revolucionaria da 17/901 Mn mulher fora um mistério. Nao entendia as suas amizades, os seus atos. Mantendo-se prudentemente distante, o divdrcio entre o homem e a mulher, entre o intelecto e acao prdtica se opera. Ao se evadir, a mu- lher n&o revela o paradeiro ao intelectual, para protegé-lo, para se pro- teger. Que garantia lhe poderia oferecer o intelectual de que nao reve- laria informag6es reservadas, quando submetido a tortura? Em vez de agir, o intelectual sai ferido, em vez de orientar, requer orientago do mesmo regime que o agrilhoou. O sanatério € o instrumento de que o sistema dispGe para confinar a intelectualidade, imével como a abelha no Ambar. Quatro-Olhos € como o chamam no sanatério. Quem se oculta atrés desse alcunha desumanizante? A idéntidade do romancista que se tem como inovador nao aparece em lugar nenhum. Perde-se na massa das multid6es anénimas que preferem submeter-se & violéncia a arriscar a vida para construir uma sociedade livre. O estado de satide nao altera significativamente as circunst4ncias, j4 que o autoritarismo do sanaté- rio (ainda se pratica tratamento de choques elétricos) e 0 comporta- mento dos pacientes reproduzem literalmente o que se passa no mundo das pessoas sadias. Aqui € que se retoma o problema levantado no conto O alienista de Machado de Assis. Quem deve ser recolhido ao sanatério, quem tem o direito de ficar fora? Quais sio os critérios de normalidade? Qual € a efic&cia do tratamento? Em Quatro-Olhos, a ca- sa de satide espelha a sociedade; em um e outro territério, o messias e 0 demOnio dominam o cenério. Encontrando-se ambos submissos ao sis- tema autoritério, a livre colaborag&o com os mandantes € a tinica liber- dade consentida. Em um e outro territério, sendo os rebeldes levados & passividade pela viol@ncia, quando passivos, sfo declarados sadios. Que importa que os episédios sejam do livro a ser reconstrufdo ou que sejam introduzidos no ato da reconstrugao, j4 que uns e outros tombam na mesma indiferenga? Nessas circunstdncias, a reconstrugdo nao € mais que o prolon- gamento da construg4o antiga. LA como aqui, a narrago convocada pa- ra dar sentido a uma vida toma o lugar da agéo. Pouco importa que 0 romance nfo tenha sido publicado, distante que estava de todo interes- se social. Subtrafdo 4 sociedade, terapéutico € o sentido do discurso, subjetivamente terapéutico,subjetivamente estético, subjetivamente va- lorado. O abismo da subjetividade, devorando tudo, mantém-se atuante s6 como discurso, no circuito de si para si. A abelha presa no Ambar, de um poema do poeta hispano-latino Marcial, destacada em epigrafe, simboliza a obra literéria, que prende, sufoca e eterniza o seu autor. O sfmbolo vale para a intelectualidade em geral, presa em discuss6es pro- fundas e indécuas, conivente na ineficdcia com o regime opressor. Pre- sos no mbar estao tanto os produtores do realismo fantéstico como os 12 Organon 7/1991 ar ‘penirios que em lugar de agredirem com a greve recorrem 4 macumba para prejudicar os patrées. Relevo merece no romance a escrita. A escrita comparece nas origens da democracia. Devendo a democracia ser regida por leis es- veritas, nllo h4 como entendé-la em povos sem escrita, expostos 4 vonta- de do soberano, Informar, fixar, criar princfpios objetivos e universais wo algumas das virtudes da lei escrita. Nao sendo escrita, a vontade goberana 6 obscura, inst4vel, arbitraria. Quando leis escritas aparece- yum Has cldades gregas, passou-se a perguntar o que era preferfvel: a vontude de um governante s4bio, atento as circunstfncias do momento, sempre peculiares, orientado pelo bom senso, ou a lei escrita, objetiva, Hout, Ineapaz pela sua rigidez ingénita a considerar situagdes espect- fies, Arinidteles supera o dilema, unindo as duas alternativas no regi- ie fepublicano: a lei escrita, soberana, impede o arbitrio; a sabedoria si) governante adapta os princfpios gerais as solicitagdes presentes. Na siadura, mesmo que haja leis escritas, ditadas, a vontade do ditador se da poberania. As determinagées ditatoriais se instituem como semis dle today as vontades que as apdiam, o que provoca o império de voulude impessoal, anénima, inst4vel, insensfvel. Por ser ditato- |, & Yontade soberana corta o didlogo, ultraja os tribunais, repele o tee, Tendo a escrita cafdo sob suspeita, qualquer texto, mesmo o indigitado como foco de insurreigéo. Norma escrita nenhu- ) te # Inetitufda, norteia a vida publica ou privada. A escrita, no ealiiio em que € confinada, sobrevive subjugada, humilhada, tie (odo poder. A ditadura se define como deposig&o da escrita. i ox denuncia a escrita inocuamente estética, ferida de Ji sun prépria ineficdcia. A escrita, que esteve a servigo da 1 dende que se vulgarizou, nfo deve renunciar & tarefa de © sutoritarismo, assuma ele a forma que assumir. A escrita julverma a cédigos, constréi o espago da liberdade. Uma es- Wordagada eristaliza-se em sepultura de quem a cultiva. i BIBLIOGRAFIA wai OL M1,, Davi, Achados e perdidos. Sao Paulo, Polis, 1979. LMA, A politica, Trad, de Torrieri Guimaraes, S40 Paulo, Hemus, , luk, La raison graphique. Trad. do francés de Jean Bazin ¢ Alban Parii, Minuit, 1979. 1, A, Urle. The literate revolution in Greece and its cultural conse- New Jerney, Princeton University Press, 1982. |, Henato, A sada do primeiro tempo e Quatro-Othos. Si0 Paulo, Cfr- de Live, wd, 190, Janete Gaspar, Ov romances brasileiros nos anos 70. Florianépo- ior da UNSC, 1981, 3

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