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Ligdes de OTM ay an OM CT 2° ED EpilerXo) revista € ampliaca Sumario = A guisa de referéncias introdutdrias: A Critica Hermenéutica do Direito, © combate ao senso comum tedrico dos juristas e o tamanho do Smagindrio dos juristas.... 11 A alegoria do hermeneuta ¢ o palimpsest 1.2 As “Ideias de Candrio” e of limites do meu mund 5. Compreenderam: . L4.O tamanho do imaginario edo munda. = A crise do ensino juridico e os concursos puiblicos: o circulo vi setroalimentagio da crise. 5 21. Da crise do ensino ao ensino da crise: elementos introdutérios, 22 AGnal, o que ¢ positivismo? Como ndo se constei o novo sob 0 alicerce do velho, principalmente, quando o problema é estrutural. 22.1. Positivismos: ideolégico, tedrico e metodoldgico/conceitual. 2.2.2. Positivismo exclusivo ¢ positivismo inclusivo......... © Positivismo para alm do “imaginario gnosiol6gico dos jusistas”. Dos aportes jusfilosdficos fundan‘es da constru¢So juspositivista escondidos em posturas (supostamente) rupturais. O problema da simbiose entre ensino-doutrina-concurses. Por que 0 exsino jurfdico continua de(sin)formando os alunos?...... \..)¢ 0 juspositivismo continua vivo por at. A estandardizacao do direito” ou “o que estamos ensinando aos nossos alunos”?. 24 1" § Ss caries pelas quais Dworkin nao admite dlsciletonadlimos na decisio sedicial e porque em Alexy ocorre a “consagracio da discricionariedade ies operadores juridicos”.... BL Hermenéutica e Secnnexacin dGscricionariedades interpretativas, suas Gecorréncias e consequéncias. De como o problema é paradigmitico, 52 Anecesséria critica a discricionariedade... 52 O problema da discricionariedade em Robert Alexy: O equivoco de pensar gue a superagdo do positivismo exegético estaria na corre¢do moral do direito.. . 34 Acorecio moral do direitoe o fantasma de Radbruch. .. ‘55 Paincipios nao abrem a interpretagao. Ao contrario: fecham-na. 3 Ronald Dworkin e sua aversao a discricionariedade judicial... 77 Quaantos juizes esclarecem os fundamentos da validade de suas 4. As razdes pelas quais nao é mais possivel sustentar a cisio entre “casos faceis” e “casos dificeis” . rE 4.1. De como a dicotomia exsy cases-hard cases atende a uma exigéncia do esquema representacional sujeito-objeio.. 4.2, Easy cases ¢ hard cases: do Ontico ao ontoldgico — uma questio de compreensio, ¢ nao de deducao (ou subsuncdo). A resposta (correta) a0s hard cases, 4.3, O valor da applicatio (Gadamer): para além das “sutici as regras. ees... . . E 86 4.4. Porque cada caso ~ que nao ¢ fécil nem dificil — possui uma “dobra”.,,...95 5. E importante ainda discutir a diferenca entre volurtas legis e voluntas legislatoris 5.1. Consideracdes propedéuticas... wai8 52. Objelivismo e subjetivismo na perspectiva da doutrina juridica brasileira... : . a 2101 5.3, O que s4o patadigmas filoséficos? De que modo eles condicionam a interpretacio?, 104 5.4. O dilema objetivismo versus subjetivismo no ambito (hermenéutico) da aplicacao do direito: 0 problema dos “cruzamentos fundacionais”,..... 108 5.5. O sonso comum teérico e sua relaga0 com a voluntas legis e coma voluntns legislatoris: 0 que ainda nao foi dito sobre a polemic: 114 6. Entre neoconstitucionalismo e (pés-)positivismos: das insuficiéncias da teoria neoconstitucional para as particularidades do caso brasileiro 9 6.1, Oneoconstitucionalismo como mera tentativa de superagao do paleojuspositivismo, 6.2. De como a raiz do problema est na confusdo acerca do conceito de “pés-positivismo”, 26 63. Alguns elementos caracterizadores do fenémeno.... 1128 64, Oneoconstitucionalismo nao é “pés-positivista” ec) 6.5. O problema da “ponderacao” ¢ 0 ovo da serpente do ativismo-decisionismo: os necessarios alerta 119) 136 7, Os modelos de juiz diante da democracia e da divisdo de poderes no Estado Democratico de Direito.......... 2 seecsavoe AS 7.1. Os “modelos” de juiz surgidos nas décadas pés-positivistas . 143 7.2. Da metéfora do juiz (Hércules) 4 metéfora da resposta (correta) ou de como a tesposta correta deve ser compreendida como uma metifora....149 7.3. Doze pontos para demonstrar a inadequacio de mixagens te6rico-metodolégicas, ; Referéncias bibliograficas.... 153 165 2. A crise do ensino juridico e os concursos publicos: o circulo vicioso ea retroalimentacao da crise 2.1. Da crise do ensino ao ensino da crise: elementos introdutérios A crise do ensino juridico nao é uma realidade nova, ao con- trario, ha anos tem sido denunciada, valendo destacar importantes nomes como Luis Alberto Warat, Tércio Sampaio Ferraz Junior e José Eduardo Faria. Hodiernamente, para além da inadequagao das propostas pedagégicas contempordneas e do cardter (re)produtor do juspositivismo, esta crise assume novos contornos. E nessa trilha que 0 presente texto busca se ocupar da simbio- se existente entre ensino-doutrina-concurso, intentando evidenciar que esta mutualidade tem contribuido para o agravamento da ctise e a consolidagado de entendimentos apenas perfomaticamente pés- -positivistas. Isto é, dantes questionavamos 0 atrelamento do ensi- no coma cartilha do positivismo jurfdico, hoje, a questo que vem a baila €: somos de fato pés-positivistas? Conseguimos transpor 0 positivismo jurfdico, ou o nosso ensino esta ou continua enraizado neste paradigma, mesmo quando afirmamos 0 oposto? Almejando langar um olhar hermenéutico sobre 0 tema, pro- ponho, inicialmente, uma abordagem mais ampla acerca do juspo- sitivismo e 0 nao éxito das propostas pretensamente rupturais, uma vez que, envolvidas em um abissal sincretismo conceitual, nao con- seguem romper com o principal problema do positivismo que € 0 discricionarismo decisional que perpassa todo o normativismo ou, na classificagio de Bobbio, o positivismo metodolégico/conceitual. Ap6s, abordo a relacao entre ensino juridico e concursos e 0 proprio exame da OAB, demonstrando a influéncia destes ultimos no modo de ensinar o direito, tanto na forma como no contetido, bem como suas limita¢6es para os fins a que se destinam. Posterior- mente, sera feita uma anamnese da Resolucao 75/2009 do Conselho LigGes de CRITICA HERMENEUTICA DO DIREITO 17 as Nacional de Justiga que incluin “Nogées Gerais de Direito e for- macdo Humanistica” para os concursos da Magistratura, buscando desvelar a manutengio de velhos postulados, muitos deles ainda caudatarios da forma positivista de se fazer teoria do direito. Imerso nesta realidade em que o ensino e a doutrina se bastam_ enquanto preparatérios para os concursos e 0 exame da OAB, inclu- sivenas faculdades, a crise, aparentemente, alcanga sua estabilidade. O que outrora era tido como enunciador da crise, 0 juspositivismo, agora esta nas entranhas do nosso modo de pensar ¢ fazer o direito Escondido, o problema agora se transveste de soluc&o. Saltamos da crise do ensino para o ensino da crise. Na raiz, uma pergunta ainda no respondida: o que € isto - 0 positivismo juridico? 2.2. Afinal, 0 que é pasitivismo? Como nao se constréi 0 novo sob 0 alicerce do velho, principalmente, quando 0 problema é estrutural Em terras brasileiras ninguém mais quer ser positivista. So- mos uma nacao de “pds-positivistas”, “ndo-positivistas” ou “neo- constitucionalistas”. Nesse contexto, de um modo geral, as posturas “rupturais” apresentam-se como (re)adaptacées do velho, sendo perceptivel a continuidade de fundamentos jusfiloséficos que, em tese, estariam superados. Mas 0 que é isto - 0 juspositivismo? Ouvem-se muito, nos mais diversos espacos de (re)producao do discurso juridico, criticas a0 famigerado paradigma. Uma das criticas mais recorrentes se refe- re ao encarceramento da interpretacao na “literalidade” normati- va. Assim, quando alguém defende a aplicacao de um determinado texto juridico invocando, por assim dizer, um elevado grau de “li- teralidade”, logo é taxado de positivista. O epiteto fica brilhando como em um outdoor na testa do jurista que ousa fazer tal afirmacao. Mas fazer a defesa da “literalidade da lei” seria uma atitude posi- tivista? Quando falamos em positivismos e pés-positivismos, torna-se necessdrio, ja de inicio, deixar claro 0 “lugar da fala”, isto é, sobre “o qué” estamos falando. Com efeito, de ha muito minhas criticas sao dirigidas primordialmente ao positivismo normativista pés-kelse- niano, isto é, ao positivismo que admite discricionariedades (ou decisionismos e protagonismos judiciais). Isto porque considero, 18 Lenio Luiz Streck no ambito destas reflexées e em obras como Verdade ¢ Consenso,* superado o velho positivismo exegético (nas suas diversas espécies “nacionais”). Ou seja, nao 6 (mais) necessario dizer que 0 “juiz no 6a boca da lei”, etc. enfim, podemos ser poupados, nesta quadra da histo- tia, dessas “descobertas da pdlvora”, Isto porque essa “descoberta” nao pode implicar um império de decisées solipsistas, das quais sao exemplos as posturas caudatarias da Jurisprudéncia dos Valo- res (que foi “importada” de forma equivocada da Alemanha), os diversos axiologismos, o realismo juridico (que nao passa de um “positivismo fatico”), a ponderacéo de valores brasileira (pela qual 0 juiz literalmente escolhe um dos princfpios que ele mesmo elege prima facie), ete. Explicando melhor: 0 positivismo & uma postura cientifica que se solidifica de maneira decisiva no século XIX. O “positivo” a que se refere 0 termo positivismo é entendido aqui como sendo 0s fitos (lembremos que 0 neopositivismo légico também teve a denomina- ao de “empirismo légico”). Evidentemente, fatos, aqui, correspon- dem a uma determinada interpretagao da realidade que engloba apenas aquilo que se pode contar, medir, pesar ou, no limite, algo que se possa definir por meio de um experimento. Por certo que o positivismo juridico, enquanto paradigma te rico, esta longe de ser algo uniforme, Muito ao contrario, por positi- vismo juridico é posstvel considerar posigGes tedricas que sio, entre si, profundamente heterogéneas. Esse desgaste gerado pela amplia- g80 do campo seméntico em tomo daquilo que poderia ser definido como posilivismo juridico levou, ainda na década de 1950, & produ- cao de trabalhos que pretendiam, entre outras coisas, organizar o Ambito denotativo do termo. Os trabalhos de Norberto Bobbio, na tradicao continental, e de Herbert Hart, no ambito da cultura anglé- fona, sio exemplos representativos desse esforco. E bastante conhecida a separacdio analitica gue faz Bobbio en- tre positivismo ideotogico, positivismo tebvica e positivismo melodolbgico ou conceitual.* No interior de cada uma destas categorias, o mestre italiano procurava afirmar algumas caracteristicas marcantes que *Cf. STRECK, Lenio Luiz. Verdade ¢ Cons 5. ed. Sao Paulo: Saraiva, 2014. 5 Sobre a importacio das teorias no Brasil, ver STRECK, Lenio Luiz. Verdade ¢ Cansenso, op. cit, p. 27.857, “CE BOBBIO, Norberto. 0 positivisino Jurflico, S80 Paulo: icone, 1995, passim. —. El problema del positivicmo juridico. México: Distribuiciones Fontamara, 1995, LigGes de CRITICA HERMENEUTICA DO DIREITTO 19 eee o: constituicio, hermencutica e teorias discursivas poderiam ser observadas nas diversas tradicdes que sao adjetivadas como positivistas. Em todas elas, 0 problema do conceito de direito, a questao da relacdo entre direito e moral e a postura que 0 analista do direito deve ter com relacao ao seu objeto de estudo, marcam os elementos determinantes para a construcio de cada um destes ambitos do po- sitivismo juridico. 2.2.1, Positivismos: ideolégico, tedrico e metodlolégico/conceitual Norberto Bobbio, diante das criticas sofridas pelo positivismo juridlico, sobretudo, pelo jusnaturalismo e pela sociologia do direito, distinguiu trés aspectos do paradigma positivista que foram sendo observados ao longo da histéria. O objetivo do jusfilésofo italiano era demonstrar a impossibilidade de uma critica genérica ao juspo- sitivismo, sendo necessério, portanto, identificar se a andlise refere- se a0 positivismo enquanto uma ideologia (ideolégico); como uma teoria (teérico) ou na qualidade do modo de aproximagao (approach) do estudo do direito (metodoldégico ou conceitual).? Assim, 0 positivismo ideoldgico é caracterizado em posturas que defendem a tese de que o direito positivo possui forca obriga- toria, devendo ser por todo cbedecido e aplicado pelos juizes, inde- pendentemente de um “julgamento” acerca dos escriipulos morais que o envolvem. Vale dizer, deve ser observado ou aplicado pelo simples fato de ser direito, sendo indiferente o seu contetdo. Nesse caso, haveria uma pretensa separacio conceitual entre © direito e a moral. Todavia, como bem adverte Santiago Nino, a tese do positivismo ideologico nao é de natureza conceitual, en- volvendo, igualmente, uma postura moral (ideolégica). Seria uma 7 Nesta segio desenvolvo um dislogo da Proposta de Bobbio, no que tange aos trés aspectos ou formas do juspositivismo, com a erftica 20 referido paradigma que veriho realizando om mninhas pesquisa. Nao obstant, entendo que a distingao analitica apresentada pelo jusfl6so- fo italiano manifesta-se limitada para abordagens como esta. Conceitas analiticos como esses acabam, ao fim e ao cabo, em uma tautologia, Ou seja, a tautologia limita a compreensao do fendmeno, o que pode ser notado pala existéncia de uma imbricagSo dos tes aspectos, isto 6. Positivismo enquanto uma metodologia possui também aportes tedricos e ideolégicos ¢ assim entre os deinais, sendo, no minimo, uma reducio que encobre parte do problema. O Positivismo, em sintese, jamais pode sez enquacrado/classificaclo como ideolégico sem. que nele estejam presentes os outros dois “tipos’. Noutro passo, leituras neste nivel (apofantco) nao desvelam aquilo que se esconde naquilo que se mostra, isto d, toda a facticidade que € condigdo de possibilidade de sua enunciagso. ° CE. NINO, Santiago. Introducci al andiss del derecho. . ed. ampl. rev, Buenos Aires: Edito- rial Astrea, 1995, p. 32-35 20 Lento Luiz Streck Postura efetivamente valorativa que defende que, em suas decisées, os juizes devem considerar um tnico prinefpio moral: observar tude aquilo que o direito vigente determina. Em minha obra, 0 positivismo juridico enquanto ideologia 6 identificado nas versdes juspositivistas do séc. XIX, que denomino como positivismo primevo ou primilivo, principalmente, na Escola da Exegese. Neste contexto, lei e direito tornam-se a mesma reali- dade e a jurisdicao é considerada uma atividade mecaniea de apli- cacao legislativa, Eis aqui um ponto que, no ambito do peculiar sincretismo que domina © pensamenio juridico brasileiro, gera grande perplexida’ de. Geralmente, procura-se aplicar a Kelsen um tipo de pecha que © colocaria como defensor deste positivismo primitivo caracteri, zado por esta ideologia (na medida em que sua obra supostamen- te pregaria uma especie de aplicacao, cega de valores, do dircito Positivo). Todavia, esse tipo de interpretacio s6 pode ser feita por alguém que possua algum tipo de dominio vulgar da teoria do di- reito. Nesse caso, é Sempre necessario lembrar que, em Kelsen, ope- tamos com dois niveis: o da ciéncia do dircito e o do direito, das Praticas jurfdicas. Kelsen nunca afirmou que os Srgaos aplicadores do direito tinham o dever — moral — de decidir segundo as regras vigentes.’ O comando que determina a teducao da atividade do ju- rista a descrico das normas juridicas, adequadas a uma norma hi- polética fundamental pressuposta, é de natureza epistemolégica e aplica-se, como tal, apenas a ciéncia do direito. Esse é o bushis da teoria kelseniana, No campo das praticas juridicas, estamos diante daquilo que, com Warat, podemos nomear de “politica juridica”. Por outro lado, conformea proposta de Bobbio, podemos iden- tificar, também, o positivismo enquanto teoria, Neste aspecto, tra ta-se da estrutura do ordenamento juridico e do arcabougo tedrico Para sua compreensao. Como exemplo cita a concepcao legislativa, coativa e imperativa do dircito bem coma ideia de coeréncia e com- pletude do sistema. No que diz respeito as fontes, o dircito seria formado de forma exclusiva e predominante por preceitos legisla- livos, sendo que esta acepcao estaria muito préxima de um estata- lismo juridico. No fundo, o positivismo teérico também participa do horizonte juspositivista do séc. XIX. Vale ressaltar, segundo essa ° Em este sentido Nino defiende que Kelsen no niega que los juices pueden dejar de aplicar em Sus decisiones normas juridicas por razones morales. sto permite sostener gue, aunque pue- a. pareuer, tampoco Kelsen seria win “positivista ideoldgien” Kelson no ates que hay una obligactin moral de obedecer o aplicer a toda Ia norma juridica.” CE NINO. op. cit, p. 35. Ligdes de CRITICA HERMENEUTICA DO DIREITO 21 ee corrente, que 0 direitv é confundido com a lei, enquanto fonte for- mal emanada de um poder legislativo. Texto igual & norma, para utilizar uma nomenclatura mais contemporanea. Lei e direito, ali, sfio a mesma coisa. Todavia, Bobbio diferencia o positivismo en- quanto teoria daqucle de matiz ideoldgica, em virtude de que 0 apego a lei nao seria urn comando de ordem moral, mas, sim, de natureza meramente teérica: trata-se de um imperativo do deduti- vismo conceitual. Por fim, 0 jusfilésofo apresenta 0 juspositivismo enquanto modo de aproximar-se do estudo do direito, também chamado de positivismo metodoldgico ou conceitual (este Ultimo em referéncia ao recorte acerca do conceito de direito). Nesta perspectiva 0 direito nao deve ser caracterizado de acordo com propriedades valorati- vas, mas, sim conforme propriedades descritivas. As proposigdes utilizadas pelos juristas para descrever o direito nao implicam em juizos valorativos. Ao contrario, clas estao fundadas apenas em cri- térios de verificagdo observaveis empiricamente. Diferentemente dos aspectos anteriores, 0 positivismo meto- dolégico/conceitual é aquele em que os principais juristas e jusfild- sofos positivistas se encontram (Austin, Kelsen, Ross, Hart, dentre outros) bem como as versées contemporaneas do juspositivismo (exclusivo ou inclusivo). Isto é, a maioria nao defende o positivismo enquanto ideologia e poucos concordam com a limitagao tedrica do fenémeno juridico enquanto um conjunto de preceitos legislativos emanados pelo Estado. Entretanto, majoritariamente, reconhecem que © conceilo de direito deve resultar de uma descrigao apoiada somente em propriedades faticas, empiricas. Talvez, isso indique 0 porqué de ser 0 aspecto mais dificil de ser contestado e criticado. Na verdade, nao ha divida de que se trata da forma mais sofisti- cada do positivismo e é aquela que, no ambito da teoria do direito, encontra maior repercussao atual. O grande detalhe que marca essa construcao do positivismo ju- ridico diz respeito ao fato de, no seu interior, 0 tedrico do direito po- der afirmar que, em algumas hip6teses especificas, os juizes podem decidir casos que nao estao previamente previstos de forma unfvo- ca pela ordem juridica vigente, sem se contradizer. Nalguns casos, poder-se-ia afirmar que 0 juiz pode inclusive deixar de aplicar uma lei porque a considera moralmente injusta, sem que isso represente uma contradig&o da teoria. E isso tudo porque, dentze os critérios de verificago observaveis empiricamente, aparece o da chama- da discricionariedade judicial, que funciona como uma espécie de 2 Lenio Luiz Streck pedra filosofal da interpretagéo. Ela nao aparece como problema; ao contrario, ela aparece como solugdo, ou, no minimo, enquanto uma constatacdo cientifica, feoricamente “neutra”, do modo como se resolvem determinadas controvérsias juridicas. Entretanto, ve- nho ha tempos denunciando que o problema da institucionalizacao da discricionariedade gera um enorme déficit democrético, facil- mente constatado a partir de teses como “livre apreciagao da prova, livre convencimento, decisio conforme a consciéncia do julgador”, etc. Quem detém o poder de decidir de forma discriciondria? Eis a questao. E esse 6 0 ponto fulcral: determinadas posturas caracterizadas com 0 positivismo metodoldgico, reconhecem a possibilidade de o juiz decidir certos (na verdade, muitos) casos a partir de critérios extrajuridicos. Todavia, em nenhum momento essa postura pos vista atirmard que 0 juiz esta obrigado a decidir segundo um padrao normativo prévio. Uma vez que esse “padrao normative prévio” seria carecedor de um teste cle verificagao empirica. 2.2.2. Positivismo exclusivo e positivismo inclusive Todo esse debate a respeito dos diversos positivismos foi atualmente ampliado pela incorporagdo de novos elementos. Na verdade, algumas propostas de renovacio das postulacées bésicas do positivismo juridico metodolégico /conceitual ou, simplesmen- te, normativista ~ se privilegiarmos a sua vertente kelseniana. As- sim, fala-se em novas formas de positivismos, como seria o caso do positivismo inclusivo e, por outro lado, defende-se uma manuten¢éo de algumas de suas caracteristicas essenciais, que desaguaria em um positivismo exclusivo. Ha varias formas de se compreender essa problematica. Po- rém, penso que a melhor interpretacao procura retratar o problema a partir das incursées criticas realizadas por Dworkin em seu deba- te com 0 positivismo. Como é cedigo, a obra de Dworkin se projeta a partir de uma dura critica a uma forma de positivismo conceitual: aquela proposta por Herbert Hart. Um dos elementos nucleares da critica apresen- tada por Dworkin esta assentado exatamente no conceito de poder discricionario e de suas repercussées para a aplicacao do direito. Basicamente, Dworkin afirmava que, mesmo nos casos espect- ficos no interior dos quais 0s positivistas conceituais reconheciam a Ligdes de CRITICA HERMENFUTICA DO DIREITO 23 possibilidade de decisdo discriciondria, seja pela falta de uma regra clara, seja por questdes de divergéncia interpretativa, haveria, tam- bém aqui, a necessidade de se observar que tais decisdes aderem a padres normativos obrigatdrios. Tais padrées seriam printcépios que estariam embebidos em uma forte controvérsia de fundo nao apenas juridico, mas, também — e principalmente -, moral. Assim, mesmo nos casos em que a interpretagio dos direitos que conformam 0 caso nao seja “facil”; que nao exista regra clara; ou que, supostamente, estaria a regra a ser aplicada em divergén- cia. com uma estrutura politico-moral prévia, nao estaria o julgador livre para decidir segundo os critérios extrajurfdicos que achasse mais convenientes para 0 caso. Estava cle obrigado — por um dever moral —a “descobrir” os direitos que as partes tém. A esse dever moral, Dworkin da o nome de responsabilidade politica. Posteriormente, Dworkin aperfeicoaria ainda mais este seu ar- gumento inicial. Nesse caso, a construcaio radical da ideia de que 0 direito seria/é um conceito interpretativo (e essa é uma questao de paradigma filoséfico que parece que seus adversarios nao com- preenderam) altamente controvertido e da ideia de integridade so pontos importantes que visam, no fundo, identificar — nao através de recursos meramente emp‘ricos, por certo - como se da essa res- ponsabilidade politica dos juizes. Em minhas obras, essas descobertas de Dworkin fornecem um aporte significativo as minhas propestas. Todavia, procuro ir além em diversos aspectos a partir da construgao daquilo que passei a chamar de um direito fundamental a uma resposta constitucionalimente adequada. Outro elemento aproximador — entre minhas teses e as de Dworkin - diz respeito a tentativa de responder ao problema da “auséncia do critério empirico de verificag30”, sem cair em uma espécie de jusnaturalismo tardio. Vale dizer: como 6 posstvel afir- mar que os juizes sempre possuem o dever — moral — de decidir de forma adequada & Constituicéo, sem resvalar, com isso, em uma vinculacao absoluta entre direito e moral e sem, ao mesmo tempo, cair nas malhas do positivismo ideolégico? A resposta aparece, como também intuiu Dworkin, em Gada- mer e sua hermentutica filoséfica. Na verdade, a hermenéutica fi- loséfica surge como uma efetiva texceira via que passa ao largo da velha diade positivismo v.s. jusnaturalisme, Novamente, aqui, 0 pa- pel da filosofia - compreendida paradigmaticamente— como condi- cao de possibilidade. 24 Lenio Luiz Streck Na verdade, todo positivismo conceitual estd fadado ao fra- casso porque desconhece dois elementos profundos que marcam a experiéncia juridica: em primeiro lugar, o carater radicalmente interpretativo do direito (nao existe direito imune A interpretacia); por outro lado, ¢ em consequéncia desse primeiro “esquecimento”, © excessivo apego aos critérios empiricos de justificacao. Ora, Gadamer foi decisivo ao demonstrar que a experiéncia hermenéutica da interpretacio (seja de que tipo de texto se esteja a tratar) ulixapassa o plano da simples verificacdo empiric. De fato, ela é um acontecimento marcado desde sempre por uma compreen- io fundada, por sua vez, em uma autocompreensao do intérprete mergulhado em um mundo compartilhado. Eis, aqui, a superacao do esquema sujeito-objeto, problematica que parece esquecida nos diferentes intérpretes de matriz analitica do(s) positivismo(s). Assim, 0 positivismo conceitual sofre de uma espécie de “ce- gueira analitica’: perde-se no raso dos elementos empiticos de justificacao e se esquece que a compreensio das formas juridicas acontece em um nivel muito mais profundo, mais além de um mero discurso sobre fontes ou autoridades de instituicao. As leses de Dworkin provocaram, sem dtivida nenhuma, uma reformulagio em diversos aspectos do positivismo conceitual. Ao mesmo tempo, adeptos de posturas mais ligados a uma teoria prag- matica do direito procu(sa)ram, constantemente, responder 2s crfti- cas formuladas por ele ao positivismo pragmaticista. Assim, autores como Jules Coleman e Joseph Raz, podem ser inclufdos come membros representativos de uma longa lista de de- tratores — muitas vezes com alto grau de leviandade — de sua teoria da responsabilidade politica dos juizes. Coleman” ofereceu uma interpretactio do estégio atual posi- tivismo que fez fama pelo mundo, principalmente no mercado ju- ridico de lingua espanhola. Trata-se da separacdo/distincdo entre positivismo inclusivo e positivismo exclusive. O positivismo inclusivo estaria representado pela posig&o do proprio Coleman ao Passo que 9 representante contemporanco mais emblematico do positivismo exclusive seria Joseph Raz. A posigao de Coleman nao pode ser considerada original. Ela se apresenta no maximo ~ e com muilas ressalvas — como uma ten- tativa de reformulag&o das formas anteriores de positivismo. Nada © CE. COLEMAN, Jules. The Practice of Principle: In defense of a Pragmatist approach to the Legal Theory. Oxford: Oxford University Press, 2010. Lig6es de CRITICA HERMENEUTICA DO DIREITO. 25 ee de novo nisso. Assim, sua postura poderia ser definida da seguinte forma: diferente das tradicionais formas de positivismo que sepa- ram qualquer tipo de critério moral dos dominios da teoria do direi- to, sua proposta aceitaria a introdugao de critérios morais no texto para identificar o direito valido, mas somente se a comunidade juri- dica tiver adotado uma convencio que assim determine. Seria, portanto, um tipo de positivismo - que mantém © apego pelas fontes sociais do direito - porém, inclusivas com relacio a pos- sibilidade de incorporacao de elementos morais. Coleman recorre a Hart para dizer que a regra de reconhecimento, em casos explicitos, pode permitir que principios morais possam ser aceitos como juri- dicamente obrigatérios. Esta é considerada a versao débil ou fraca, da tese das fontes sociais, que poderia ser resumida da sepuinte maneira: a) 0 direito provém exclusivamente dos fatos sociais por ser uma pratica social; b) consequentemente, é possivel que nos cri- térios de identificacao sejam convencionalmente aceitos raciocfnios de cunho moral. Nessa postura, aceita-se a tese da discricionariedade, porém de forma minorada: os fatores morais “incluidos” no direito positi- vo limitariam as possibilidades de escolha dos juizes no momento das suas eletivas decisées. Mas, fica uma questo em aberto: como detectar o ingresso dos fatores morais no direito? De que modo isso écontrolado? Por outro lado, tém-se as posicées exclusivistas ilustradas pri- vilegiadamente por Joseph Raz."' Neste caso, prega-se uma sepa- tacao radical entre moral e direito. Tem-se a versio forte da tese das fontes sociais, para a qual inexiste uma conexdo entre Direito ¢ Moral que permita a identificacao daquele a partir deste. Isto é, a normatividade juridica é identificada sem nenhuma relagao com a moralidade. Afirma-se, porém, gue o direito apresenta limites — em face da imprevisibilidade da administracao judicial dos fatos so- Gais ~e, diante de um desses limites, o juiz mantém para si poder Giscricionério para decidir, segundo os crilérios que lhe parecerem Mais convenientes, a questo posta. Nesse caso, a descoberta de uma norma juridica valida continua a depender, apenas, de uma questao de fontes. E, claro, da subjetividade do juiz (aqui, clara- mente visivel, em Raz, a despreocupacio com 0 problema dos pa- radigmas filoséficos). 4 CE. RAZ, Joseph. Betaveen Authority and Inierpretation. New York: Oxford University Press, 2009; ——. Legal Principles and the Limits of Law. In: The Yale Lato Journal, vol 81, 1.5 Abril de 1972, p. $23825, 26 Lenio Luiz Streck Devemos lembrar que, para a grande maioria dos positivistas do common law - e Raz nao é excecio — o problema da interpreta- co esta ligado a uma interpretagao do direito enquanto sistema, isto é, devemos entender o problema levado a cabo por estes au- tores como algo do tipo “a partir de onde pode o juiz decidir?”, e nao “como deve o juiz decidir dentro de um certo sistema”. Em outras palavras, a questo de fundo € 0 que distingue o juridico dos demais sistemas normativos ¢ nao partindg do direito o melhor modo de resolver 0s litigios é este ou aquele. F, pois, um problema de identificagao das fontes do direito, e nao dos sentidos internos deste conjunto. Neste caso, uma vez identificados os limites da ju- ridicidade, ainda que com uma série de buracos dentro dele, nao hd nada a fazer se nao reconhecer um Ambito de discricionariedade para aquele que esta legitimado a aplicar o direito. Raz, portanto, conclui ndo apenas pela possibilidade da dis- cricionariedade, mas a reconhece como uma das caracterfsticas identiddrias dos ordenamentos juridicos. Ademais, reconhece a possibilidade de o juiz se valer de critérios extrajuridicos para fir- mar sua decisio. Ele discute esses aspectos a partir de uma andlise dos limites do direito e da nogao de autoridade legitima. Sua anéli- se esta assentada na ideia de razao pratica que, de forma analitica, é separada pot ele de forma a conter uma dimensio avaliativa-subs- tantiva e uma dimensao formal-analitica. A primeira pergunta pe- las razOes que nos levam a perseguir determinados valores; quais desses valores sao corretos e inegociaveis, etc. A segunda ocupa-se dos aspectos légico-conceituais ligados aos conceitos de valor, au- toridade, legitimidade, etc. Sua anilise acaba por privilegiar, nesses importe, as questdes analftico-formais envolvidas no problema da discricionariedade - principalmente os conceitos de autoridade e legitimidade - acaban- do por se manifestar, novamente, como uma vertente das teorias analiticas do direito. Por isso que € preciso ter presente, desde jé, que mesmo essas propostas pretensamente renovadoras do positivismo juridico néo contribuem para a solugao do verdadeiro dilema do direito con- temporaneo que 6, exatamente, a superagio da discricionariedade judicial a partir de uma teria da decisao. Isso porque existe, na atual quadra da histéria, uma necessida- de de se colocar de forma justaposta o problema da teoria do direi- to com as questdes politicas, da teoria democratica. Os positivistas — exclusivos ou inclusivos — nao se deram conta disso. Continuam Ligdes de CRITICA HERMENEUTICA DO DIREITO 27 a tratar do fenémeno juridico como se este fosse independente da politica. Ora, definitivamente, nao 6! E esse 6 um dado civilizatério, Afirmar, a esta altura dos acontecimentos, que a discricionariedade judicial é um fato empirico indiscutivel - como que a repristinar a velha teoria aristotélica dos argumentos autoevidentes ~ é rasgar, de um ponto a outro, a teoria democratica e toda a tradicao cons- litucionalista que se seguiu as ondas de redemocratizacao do pés- Puerra e, nas ultimas décadas, estendeu-se para paises da Attica, América-Latina ¢ Leste Buropeu. No mais, caberia Perguntar: qual a importancia de se afirmar que a discricionariedade ¢ um dado inescapavel - ou uma solucio para os limites que o direito encontra — para uma teoria do direi- to contemporanea? Na verdade, nenhuma. Ela marca, apenas, uma volta ao velho ponto cego do positivismo. Por isso, é Preciso reco- nhecer que um teoria do direito s6 faz sentido hoje enquanto teoria interpretativa. 2.3. O Positivismo para além do “imaginario gnosiolégico dos juristas”. Dos aportes jusfilosdficos fundantes da construcio juspositivista escondidos em posturas (sapostamente) rupturais As teorias criticas do direito — me refiro aquelas sustentadas na analitica da linguagem (caso especifico, por exemplo, da teoria da argumentagao juridica) — nao conseguem fazer mais do que supe- rar um tipo especifico de positivismo. No item anterior, refiro-me a este modelo de positivismo com a expressao positivismo primi tivo (exegético). De toda forma, a Protoultrapassagem que se faz no ambito dessas teorias se d4, apenas, no que tange ao problema “lei=direito”, isto é, somente alcancam o “sucesso” de dizer que “o texto é diferente da norma” (na verdade, fazem-no a partir nao de uma diferenga, mas, sim, de uma cisio (semantico-estrutural), cor- tando qualquer amazra de sentido entre texto e sentido do texto. Para isso, valem-se da linguagem, especialmente calcados na primeira fase do linguistic turn, que conhecemos como 0 triunfo do neopositivismo légico. Na especificidade do campo juridico, as teo. tias analfticas tomaram emprestado do préprio Kelsen o elemento superador do positivismo exegético, que funcionava no plano semi- Otico da sintaxe, indoem direcdo de um segundo nivel, o da seman- tica, © que se observa ainda hoje na “cr 28 Lenio Luiz Streck Que a lei nao da conta de tudo, Kelsen jé havia percebido, s6 que, enquanto ele chegava a essa concluso, a partir da cisdo entre ser e dever ser, com a divisao entre linguagem objeto e me talingua- gem, as teorias analiticas e seus correlatos chegam 4 mesma conclu- sao. Ocorre, entretanto, que essa “mesma conclusao” vem infectada com o virus do sincretismo filoséfico, uma vez que mixaram inade- quadamente o nivel da metalinguagem com o da linguagem objeto, isto é, do plano da ciéncia do direito (pura) ¢ do direito (eivado do solipsismo proprio da razao pratica) Noutras palavras: Kelsen apostou na discricionariedade do intérprete — no nivel da aplicacdo do direito — como sendo uma fatalidade, exatamente para salvar a pureza metédica, que assim permanecia “a salvo” da suibjetividade, da axiologia, da ideologia, etc. Veja-se: Kelsen nao sepata a moral do direito. Fle separa, sim, a ciéncia do direito da moral. Esse é o busilis da questao. Ou seja, se Kelsen faz essa aposta nesse “nivel”, as diversas teorias (semanticas e pragmaticistas) apostam na discricionariedade a ser feita “direta- mente” pelo intérprete /juiz. Mais ainda, se Kelsen teve 0 cuidado de construir 0 seu pré- prio objeto de conhecimento — e, por isso, é um auténtico positivista ~,a teoria pos-kelseniana que nado compreendeu a amplitude e pro- fundidade do neopositivismo légico, acabou por fazer essa mixa- gem dos dois niveis (metalinguagem e linguagem-objeto). A partir dessa ma compreensio, os juristas pensaram que 0 juiz seria 0 sujei- to pelo qual, no momento da aplicagao do direito (em Kelsen, 0 juiz faz um ato de vontade e nao de conhecimento), passa(ria) a fazer a “cura dos males do direito”. O que em Kelsen era uma fatalidade (e nao uma solucio), para as correntes semanticistas, passoua sera salvacao para as “insuficiéncias” 6nticas do direito. E de que modo as teorias analfticas pretendem controlar a “ex- pansio linguistica” provocada pela descoberta da cisio da norma com relacao ao texto? A resposta é simples: pela metodologia. Algo como “racionalizar” o subjetivismo...! No fundo, um retorno a ve- Tha jurisprudéncia dos conceitos (Begriffjurisprudenz). Ou melhor, em tempos de jurisprudéncia dos valores, axiologismos, etc., “nada melhor” que um retorno a uma certa racionalidade dedutivista, seja ela proveniente do proprio sistema juridico ou dos “valores objeti- vos” da sociedade. A diferenca é que agora nao se realiza mais uma piramide formal de conceitos para de(a)purar o sentido do direito positivo; ao revés, utiliza-se 0 intérprete como “canal” através do qual 0s valores sociais invadem 0 direito, como se 0 sujeito que julga LigSes de CRITICA HERMENEUTICA DO DIREITO 29 fosse o fiador de que as regras juridicas nao seriam aplicadas de um modo excessivamente formalista. Ponto para a Wille zur Macht —a vontade do poder. Ocorte que, ao permanecerem no campo da semanticidade, os juristas que se inserem nesse contexto (na verdade, a maioria) obrigados— sob pena de autodestruic&o de seu discurso) —a admitir muiltiplas respostas na hora da decisio (veja-se o que o proprio Kel- sen diz no 8° Capitulo de sua TPD). Nada mais do que evidente: se as palavras contém incertezas designativas/significativas, ha que se admitir uma pluralidade de sentidos (no campo da semntica, € claro). S6 que isso denuncia a ciséo entre interpretar e aplicar. Observemos: 0 neopositivismo surgiu exatamente para construir uma linguagem artificial, com o fito de superar essa incerteza da linguagem natural com a qual era feita a ciéncia. Ja as diversas teo- rias analiticas apenas comemoram tardiamente a descoberta dessas incertezas da linguagem, pensando que, se superassem 0 exegetis- mo descolando a norma do texto, j4 estariam em um segundo pata- mar... Ledo engano. No campo juridico, o “maior avanco” parece — e apenas parece —ter sido dado por Alexy, que de algum modo pretende conciliar 0 método analftico da Jurisprudéncia dos Conceitos com 0 axiologis- mo da Jurisprudéncia dos Valores. Com efeito, procurando racio- nalizar 0 uso da moral corretiva (p.ex., através da Jurisprudéncia dos Valores, que ele buscou “controlar” racionalmente), Alexy con- tenta-se em dizer, em um primeiro momento, que os casos simples se resolvem por subsun¢ao, 0 que quer dizer que ele acredita na suficiéncia Ontica da lei nagueles casos em que haja “clareza” no enunciado legal e na rede conceitual que o compdem. Ou seja, Ale- xy, em parte, continua apostando no exegetismo, ao menos para a resolucao dos casos no ambito das regras. Para além dessa “sufici- 6ncia Ontico-exegética”, quando estiver em face de um caso dificil, apela para o outro nivel da semistica: a pragmatica. Mas a palavra final seré do sujeito e sua subjetividade. A ponderacao alexiana, feita para resolver o problema de coliséo de principios, dependera, ao fim e ao cabo, da discricionariedade.* Portanto, dependera do sub-jectum, de um solus ipse. 12 -(__) os direitos fundamentais nao sa0 um objeto passivel de ser dividide de uma forma tio rofinada que exclia impasces estruturais ~ ou eeja, impasses reais no sopesamento ~ , de formas a tornd-los praticamente sem importincia, Nesce caso, entao, de fato existe uma discri- Gionariedade para sopesar, uma discricionariedade estrutural tanto do Legislativo quanto do Judicidrio”. Cf. ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais, Sa0 Paulo: Malheiros, 2008, p.Gl. 30 Lenio Luiz Streck Disso exsurge um paradoxo: 0 que sustenta o arraigamento aos ordenamenios (regras em geral) 6, ainda, o positivismo exe- gético. No fundo, parece que superestimamos as criticas ao po- silivismo exegélico, como se este ja estivesse superado. Explico: nas tltimas décadas, as criticas & forma primitiva do positivismo abriram duas possibilidades: a permanéncia do objeto criticado eo escondimento das possibilidades da superagao do elemento supe- rador do exegetismo. Quem fica preso ao texto (que se iguala, as- sim, A norma) s6 consegue superar 0 “impasse” apelando ao “novo positivismo”, o normativista. Por isso alguns juristas compreende- ram mal 0 sentido do neoconstitucionalismo. Explicando melhor: por nao terem compreendido o problema da diferenga entre o ve- lho positivismo exegético (sintatico) e o positivismo normativista (semantico), pensaram que 0 neoconstitucionalismo seria a forma de superar o exegetismo. E, para isso, apelaram para a busea de valores que estariam “escondidos” por debaixo dos textos legais. Com isso, nao foram além de Kelsen. E esse 6 0 ponto fulcral do problema. “Descobrir” hoje que o direito nao é igual a lei e dar a isso um grau de invencao critica 6 subestimar e ignorar o fundamento do positivismo normativista. Por certo Kelsen acharia uma tolice alguém sustentar que texto é igual & norma ou que a lei é a tinica e plenipotente fonte do direito. A toda evidéncia, Kelsen riria se Jesse o que dele dizem nas salas de aula das Faculdades de Direito no Brasil e nos cursinhos de preparagdo para concursos publicos e exame da OAB. Nosso ensino juridico nao consegue se dar conta de que, quan- do Kelsen diz que lei vigente é valida, esta se referindo ao plano da ciéncia do direito, e nao ao plano da aplicagio do direito feita por juizes, promotores, advogados, etc. Sua pureza, vale lembrar, era uma pureza cientifica, e ndo uma pureza interpretativa. Isso, por- tanto, é suficiente para dizer que nao supera Kelsen - e, portanto, nao supera o positivismo normativista - aquelas posturas tedricas que pretendem superar a equivaléncia direito-lei a partir de uma desconsideracao da lei em favor da vontade do juiz. Quem pensa assim erra o alvo: atira no positivismo primitivo achando que este representa a totalidade das posturas positivistas. Com isso, aceita acriticamente as consequéncias de um outro modelo positivista de ciéncia juridica, 6 dizer, o proprio positivismo kelseniano, de um lado, eo positivismo de Hart, de outro. Lig6es de CRITICA HERMENEUTICA DO DIREITO 31 Pensemas: como € possivel que hoje se critique Kelsen ou Hart e, ao mesmo tempo, se defendam exatamente as tess desses dois corifeus do positivismo? Por que um adepto da teoria da ar- gumentacdo juridica ou de qualquer outro marco teérico atual que defenda a discricionariedade dos juizes seria diferente de Kelsen e Hart? E veja-se como isso é sintomatico, Hé varios autores que sus- tentam posigées ditas “progressistas”, afirmando que 0 juiz 0 ca- nal por onde os valores sociais invadem o direito. O intrigante € que muitas dessas posicdes — e o Brasil é prédigo nesse tipo de produgao — falam em pés-positivismo e chegam a citar Dworkin como sendo 0 autor que “elevou os principios & condicdo de nor- ma €, com isso, teria libertado os juizes das amarras da estrita le- galidade”. Ora, é cedico que Dworkin constréi sua tese exa tamente Para combater as mazelas do positivismo de Herbert Hart (que, Por sinal, também pode ser enquadrado como um positivista nor. mativista). © ponto central do combate de Dworkin diz respeito ao poder discricionario que Hart atribui aos juizes para solver aquilo que ele chamava de casos dificeis. Note-se: 0 autor, tide na unani- midade como um dos corifeus do chamado pés-positivismo, é um antidiscriciondrio convicto (e, como coroldrio necessario, antirrela- tivista). Portanto, nao basta dizer que a lei nao contém o direito (isso Antigona ja sabia); nao basta dizer que o Ontico nao esgota os senti- dos s¢ isso for feito sob os pressupostos do positivismo normativis- ta (ou dos diversos positivismos de cariz voluntarista). Isso explica as Tarbes pelas quais a defesa da discricionariedade é feita pela maioria dos juristas. Ou seja, recentemente estao ultrapassando 0 velho positivismo exegético. Para tanto, basta ver o que a maioria dos juristas defensores do neoconstitucionalismo fala sobre a discri- cionariedade, os princfpios (Lidos como valores), etc. Essa é a pista Para identificar os “novos” positivistas (ou neopositivistas), 2.4. O problema da simbiose entre ensino-doutri ima-concursos, Por que 0 ensino juridico continua de(sin)formando os alunos? Ha muito tenho também denunciado que o ensino juridico em terras tupiniquins encontra-se em crise. Em tempos de simplifica~ Ges, facilitagdes, sem falar dos (re}sumos dos resumos, a comple- 32 lonio Luiz Streck xidade do fenémeno jurfdico (social), aparentemente, é reduzida a um conhecimento estandartizado, prét-a-porier, supostamente ade- quado 4 emergéncia do momento presente. Nesse contexto, os concursos ptiblicos” e 0 proprio exame da Ordem dos Advogados do Brasil, (retro)alimentam esta realidade, formando um circulo vicioso e nao virtuoso. Os concursos repe- tem o que se diz nos cursinhos, um conjunto de professores produz obras que sao indicadas/utilizadas nos cursos preparatérios, que por sia vez servem de guia para elaborar as questdes que sao feitas por aqueles que sao responsdveis pela feitura das provas (lerceiri- zados — industria que movimenta bilhdes e os préprios orgdos da administragao ptiblica). No mesmo trilhar, recentemente foi apresentado um estudo encomendado pela Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministé- rio da Justiga, em parceria com 0 Programa das Nag6es Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) e realizado pela Fundacao Getulio Var- gas (FGV) e a Universidade Federal Fluminense (UFF). A pesquisa foi coordenada pelo professor Fernando Fontainha eanalisou 698 certames de 20 6rgaos federais — realizados entre 2001 e 2010 —, chegando a conclusdes que para nés eram autoevidentes, mas que agora recebem a chancela da empiria. Dentre estas, desta- ca-se: que os concursos precisam ser modificados, pois, do modo como est4o, tornaram-se um fim em si mesmo; que conseguem, em regra, apenas selecionar os “concurseiros”, isto €, so aprovados aqueles que sabem fazer as provas, endo os que possuem as com- peténcias necessdrias para o exercicio das fungées ptiblicas; que os concursos ptiblicos movimentam um mercado milionario, etc. Tenho observado que parcela significativa dos concursos pi- blicos se transformou em quiz show, como se fosse um conjunto de “pegadinhas” para responder coisas que sé assumem relevancia porque sao ditas pelos professores de cursos de preparacao para ingresso nas diferentes carreiras do servico pablico (mormente na Acerca da exit estado da arte dos concursos priblicos no Brasil tenho desenvolvido o tema em uma de série artigos publicados no sife Consultor Juridico ~ Conjur -, dos quais in- dico a leitura dos seguintes: Tout vatrésbiondansle monde juridique, cisponivel em: chttp:// weww.conjur.com.br /2013-mar-28 /senso-incomum-apesar-reprovacoes-cab-acham-tudo- bem-direito>; Quando o senhor de engenho vira diretor de (con)cursos, disponfvel em: ; Cinquenta tons de concursos: antes do caos, riamost, disponivel em: ; Concursos ptiblicos: & 6 nao fazer perguntas imbecis!, dispontvel em: LigSes de CRITICA HERMENEUTICA DO DIREITO 33, rea juridica). Nao ha motive para surpresa, neste ambiente, exis- tem até mesmo obras como o Manual das Pegadinhas."* Interessante que alé mesmo as “pegadinhas” adentraram o territ6rio manuales- co, scré que viveremos a ponto deste contetido torna-se uma cate- dra em nossas faculdades. Nestes termos, nao faz, sentido algum. genhar perder tempo com estudos aprofundados em teoria ou filo- sofia do/no direito, 4 que a aprovagao, em muzitos casos, prescinde destes. Dito de outro modo: nao se estuda para conhecer algo; se estuda tao somente para passar, melhor dizendo, para ser aprovado. Assim, se aquilo que € cobrado apresenta-se sumarizado, nao hé motivos para maiores estudos e reflexdes, bastando evitar a queda no campo minado das pegadinhas ¢ 0 desenvolvimento da memorizagao (n1e0- decoreba), ainda que, vencido o prazo de validade, 0 amontoado de informagées transforme-se em uma vaga lembranga. Interessante notar que até mesmo quem esté imerso no mun- do dos cursos preparatérios ja se dd conta desta realidade. No blog, exame de ordem encontra-se um texto do professor Geovane Mora- es intitulado A arte de ser um aluno ruim. O autor define o perfil do estudante de sucesso para os concursos ou para a OAB, qual seja, 0 ruim. Em suas palavras, sentencia: Costumo sempre falar em minhas aulas que o aluno de Direito que possui maior facilidade em passar em provas da OAB é aguele que na época da graduagao era fraco, ruim ou péssimo. (.) E antes que comecem a me alirar pedras, me permita dizer que se trala de uma constatagao sociolégica. Faga um exerciclo mental. Lembre-se dos piores alunos da sua turma. Aqueles que vocé tinha certeza que sequer iriam terminar o curso. Agora ‘se lembre dos melhores, os queridinhos dos professores. Qual dos dois passou mais rapido na OAB? Qual dos dois passou mais rapido em concurso? Qual dos dois esta progredindo mais rapido na profissi0? (-) 0 bom aluno sabe demals e por isso ele briga com a prova. OAB nao é lugar para voo$ defender o que actia mais certo ou erraco, mais ldgico ou ilégico, mas sim para responder exatamente 0 que a banca quer que seja taspondido. Fugir disso 6 pedir para ndo passar. Caso a FGV queira que seja vocé indique como a resposta de 2+2 6 resultado 08, 6 isso que vooé vai ter que responder. (sic) 14 Disponivel em: http://www editoraferreira.com.br/ publique /media/:manual_pegadi- nhas.pdf>. % Disponivel em: . Acesso em: 10/04/2013. 34 Lenio Luiz Streck N&o obstante 0 autor declarar que usa 0 adjetivo ruim de for- ma caricatural no intuito de dizer que o estudo para a OAB deve ter um direcionamento especffico, esta expressaio denota, de fato, 0 resultante desta relagao ensino-concursos: estudantes sem reflexio critica, preocupados em decorar conceitos, cédigos, leis, artigos, ju- risprudéncias e dispor-se ao alvedrio da empresa organizadora do certame. Veja-se que esté implicita nesta ideia a vulgata da filosofia da consciéncia, isto é, a realidade nada mais é do que uma projecdo da subjetividade assujeitadora dos sentidos. Por isso, nao podemos/nao devemos aceitar que as empresas organizadoras possam dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa. Ao contrario, 0 fandamento tem de ser fundamentado. Nesse senti- do, estendo a critica que fago & discricionariedade judicial também aqueles que elaboram as provas dos concursos priblicos, seja devi- do A irrelevancia pratica das questdes formuladas ou em decorrén- cia das respostas teoricamente (in)questionaveis, que sao corretas apenas porque dizem que $30. O que deve ser dito, também, 6 que a légica perversa dos coneursos piblicos invade, sem pedir licenca, as salas de aula das universidades, impondo um novo modelo de professor e outra abordagem conteudistica. O professor vem se tornando um astro pop, com a tarefa de entreter os alunos. Acima de tudo, o professor, como os pastores (neo)pentecostais, deve se esfalfelar para prender a atencao da plateia e expor o assunto nos rasos limites delineados pelos concursos. Infelizmente, se a maioria das pessoas que hoje procuram uma faculdade de direito tém por objetivo a aprovacio em um concurso, 0 ensino entdo é adaptado as necessidades dos consumidores e do mercado. Provavelmente, como uma tentativa de minorar a crise do en- sino juridico 0 Conselho Nacional de Justiga — CNJ - na Resolu- ¢40 75/2009, mais precisamente no artigo 47, complementado pelo Anexo VI, instituiu a incluséo de “Nogées Gerais de Direito e for- macao Humanistica” para os concursos cla Magistratura." Nestas “nogdes”, diga-se, sindnimo de conhecimentos superficiais, ele- mentares, encontram-se, dentre outras, a Filosofia do Direito e a Teoria Geral do Direito e da Politica. Ab initio, observa-se que nao é pequeno 0 repertério bibliografico que j apresenta estes contetidos devidamente traduzidos para o mundo paralelo das noges estan- 16 A Ordem dos Advogados do Brasil também seguiu esta tendéncia, instuindo a partir do X Exame Nacional Unificado a disciplina de Filosofia do Direito. Ligdes de CRITICA HERMENEUTICA DO DIREITO 35 dartizadas dos certames ptiblicos.” A Filosofia e a Teoria Geral do Direito e da Politica agora esta disponfveis em formato descartavel nas feiras e bancas especializadas em “tudo”. Da mesma forma, encontram-se livros sobre a “formacao hu- manistica” para concursos."* O que é impressionante ainda é que se quer “ensinar” humanismo. Varios livros querem ensinar “como ser humanista”. Ora, isso nao se aprende em manuais. Ou est4 no amago do ensino juridico, nos livros e nas praticas cotidianas, ou nao estd, Tentar ensinar “humanismo” para “uso em concursos pi- blicos” é institucionalizar a matéria, em nada contribuindo para a construgao de um ensino juridico, de fato, humanista. E como anda a doutrina juridica? Hé anos tenho declarado que a doutrina nao mais doutrina; ao revés, tem sido caudataria da ju- risprudéncia, e, hodiernamente, também dos concursos ptiblicos. Desta forma, a “dogmética” juridica, longe de exercer 0 seu devido constrangimento epistemolégico, tem servido, salvo excegbes, para sedimentar incoeréncias e equivocos. E incalculavel o numero de obtas que trazem o chamativo titulo de “Para Concursos”. Observa-se, desse modo, que a simbiose ensino-doutrina-con- cursos tem sido um entrave para o desenvolvimento de um ensino juridico emancipatério e ruptural, a partir da proliferagio de con- cepsGes justiloséficas anacrénicas e antidemocraticas. Assim, por consequéncia, 0 positivismo continua sendo a regra, seja no viés Primitivo, seja nas vertentes voluntaristas. O que o ensino juridico 2 Indico a leitura do artigo “O Tristo Fim dos ciéncias Juridicas em Terrae Brsiis” constante do meu livro Compreenier Diveito. Neste faco a anamnese de uma obra para concursos que abrange 0 contetido inserido pela resolugio 75 do CNJ. Por evidente, desvelando uma séric ce equivocos teéricos ali apresentados. Cf. STRECK, Lenio Luiz. Compreender Direito: desvelando 6 obviedades do discurso juridico. Sao Paulo: Revista dos Tribunals, 2013, 8 Além de nao contribuirem para a construcdo de um ensino jurfdico humanista, obras desta categoria server, na maioria dos casos, como reforgo para a manutengio de varios proble- mas teGricos. Fxemplificanco, cito a obra Nocies Gerais de Direito e Formagio Humanistice, ao alar acerca do sistema jurfdico ¢ de sua aplicacio lecionam que: “o intérprete e o aplicador 3e valem das fontes formais do Direito no processo ligico-silogistico, ou seja, na operacao de- ominada juizo de concrecio ou de subsunsio em que a situagio concreta (premissa menor) £ dedurida na premissa maior (fonte formal) exiraindo-se uma conclusio, ou seja, solucae Juridica para o caso concreto, Portanto, na premissa maior, ou seja, na fonte formal enunciase © dever-ser e na premissa menor verifica-se o enunciado do caso concreto, examinada pelos meios de prova, concluindo-se de forma justa. Porém, para que o aplicador Guiz) passa encom. tar com maior facilidade a premissa maior, é imperioso que o dircito estabeleca mecanistnos que facilitem a localizacio do instituto, ou seja, a localizacio da fonte formal” (p. 38). Neste trecho, observarse, que a concrecéo do sistema juridico ocorre por intermédio de raciocinios silogisticos, como se positivismo exegético respundesse, satisfatoriamente, para os dias de hoje um tema de tamanha complexidade. Cf, ASSIS, Ana Elisa S. Queiroz; SERAFIM, Antonio de Pacua; ASSIS, Olney Queiroz; KUMPEL, Vitor F. Nocées Gerais de Divetio e Formagio Hara. n&tica, $0 Paulo: Saraiva, 20112. 36 Lenio Luiz Streck nao se da conta é que a complexidade do dircito transcende as lei- turas simplificadas e simplificadoras do Direito. e 0 juspositivismo continua vivo por ai Da anilise dos contetidos dispostos no Anexo VI da Resolucéo 75 do CNJ, objetivando desvelar 0 nao dito, o standard de racio- nalidade que se esconde nas entrelinhas dessa nova regulagao dos concursos, percebe-se a perpetuagaéo de algumas incompreensdes teoréticas acerca do positivismo juridico, das quais decorre também asua manutengao. Dentre os temas escolhidos de Filosofia do Direito, especifica- mente, no item 3 da Resolugao do CNJ, encontramos: ”A interpreta- 0 do Direito. A superagao dos métodos de interpretacio mediante puro raciocinio légico-dedutivo. O método de interpretacao pela l6- gica do razoavel”. A principio, a escolha destes contetidos aponta para uma pretensa ruptura com o positivismo, j4 que o futuro ma- gistrado deverd, ao interpretar, transcender 0 mundo analitico da “iteralidade” normativa que aprisionaria os sentidos. Entretanto, ao contrério, uma vez mais digo: o positivismo no é apenas sua versao exegética, tendo sofrido mutacées muito mais sofisticadas, sendo que hoje a discussio deveria centrar-se no positivismo nor- mativista que j se afastou dos raciocinios légicos dedutivos para concregao do direito. Explico. Como dito alhures, Kelsen, ao dis- correr sobre a interpretacao do direito, entende ser esta um ato de vontade que ndo esta sujeito a raciocinios analiticos como as pro- posig6es da ciéncia do direito, que sao atos de conhecimento. Nesta medida, a respeito da hermenéutica, o positivismo normativista se apresenta como uma proposta de superacéo ao exegetismo e aos raciocinios dela decorrentes. Demonstrando esta incompreensao acerca do juspositivismo e da construcao teérica de Kelsen, no site de um dos maiores cur- 0s preparatérios para concursos e para o exame da OAB do pais, lecionando acerca dos 7 temas importantes de Filosofia do Direito, lé-se que: De acordo com os professores Alvaro de Azevedo ¢ Alessandro Sanchez, é impor- tante que o candidaic estude bem esse tema. °O positivismo juridico tem como épice adoutrina de Hans Kelsen que visa demonstrar uma formula de aplicagao do direito LigSes de CRITICA HERMENEUTICA DO DIREITO 37 que pura e simplesmente declare a vontade do legislador sem criar nada novo, redu- zindo o seu conteddo as leis escritas’, detine Sanchez.” Faltou, portanto, compreender que: @) Kelsen superou 0 posi- tivismo exegético a partir do fato de que o conceito preponderante nao é mais a lei, mas sim, a norma, que nao esta contida apenas na lei, mas também nas decisdes (portanto, o problema em Kelsen é um problema de decidibilidade); h) Kelsen, uma vez que foi mal- -entendido, nao foi superado pelos tedricos do direito justamente por nao terem conseguido compreender o alcance nem da primeira fase da viragem linguistica (neopositivismo légico) e nem de seu sequenciamento /aprimoramento (0 giro ontoldgico-lingutstico). Aparentemente, 0 contraponto aos raciocinios légicos deduti- vos seria o método de interpretagdo da ldgica do razoavel. Este foi defendido pelo jusfildsofo Luis Recaséns Siches como alternativa a légica tradicional, pura e¢ formalista. Entretanto, Siches caminha no mesmo sentido de Hans Kelsen ao sustentar e estimular os racioci- nios analiticos limitados a esfera da ciéncia do direito, sendo apenas inadequados na interpretacao/aplicacao. Em suas palavra Estudiar formas a priori, esto es, esencias formales necesarias y universales, va- lindo-se de métodos de ldgica y ontologia formales, parece sin duda adecuado y correcto. En cambio, resulta superiativamente discutible, es mas, com seguridad gravemenie incorrect, aplicar los mesmo metodos al tratamiento de los contenidos juridicos” (...). Veja-se, por exemplo, até onde isso pode nos levar. No XXII Concurso Piblico de Provas e Titwlos para a Magistratura do Tra- balho da 9 Regiao, em uma das provas dissertativas apresentam-se dois problemas, um referente & desaposentacao e outro acerca da outorga uxéria, ambos com o seguinte enunciado: Responda de modo conciso e adequado as seguintes indagagdes utilizando o método da logi- ca do razodvel de Recaséns Siches de um lado; ¢ do positivismo de Kelsen de outro. Como assim “método da légica do razodvel’”? O que seria isso? Como assim, “o positivismo de Kelsen”? Seria uma contra- posicao entre o axiologismo de Siches (também um positivista) e pretenso exegetismo de Kelsen? Como tudo esta a indicar, o formu- lador da questo incorreu em erro. E aqui atengao: em qual curso de preparaciio ha(veria) espaco para discutir Kelsen e Siches na pro- fundidade exigida? Se um professor mandar um aluno de curso de © CE Disponfvel em: . Acesso em: 16/04/2013 ® Cf. SICHES, Luis Recaséns. Intraducion al estudio del Derecho, 4, ed. Editoral Porrud: México, 1977, p. 233. 38 Lenio Luiz Streck preparagio ler a Teoria Pura do Direito ou a Introducién al estudio del Derecho, teria, por certo, sérios problemas. A logica do razoavel seria utilizada na interpretatio do direito, e nao para seu estudo cientifico. Isto evidencia a cisao moderna entre Razio Teorica e Raz&o Pratica, presente no positivismo normativis- ta ena construcio de Siches. Contudo, diferentemente de Kelsen, 0 jusfilésofo guatemalteca procura apresentar uma nova ratio como justificativa e metodologia para a discricionariedade. Deste modo, a decisdo, que continua sendo um ato de vontade (como em Kelsen, 36 que sem a cisdo “ciéncia do direito e direito”), pauta-se, agora, na légica do razoavel, que: Es una razon imprognada de puntos de vista estimativos, de critérios de valoracién, de pauias axiolégicas, que, ademas, lleva @ sus espaldas como aleccionamiento las ‘ensefianzas recibidas de la experiencia, de la experiencia propria y dela experiencia del préjimo através de la historia?! Kelsen, sendo um pessimista moral e um relativista, e ciente do problema da polissemia dos signos linguisticos, zelega 0 jus di- cere ao arbitrio. J4 Recaséns Siches, que criticava o relativismo, di- reciona esta escolha por argumentos razoaveis, fundamentados em valores que entendia posstiir validade objetiva,® neste prisma labo- za mediante um positivismo axiolégico. Trata-se, paradoxalmente, de uma tese que busea superar o objetivismo (formalismo) do po- sitivismo exegético mediante um mergulho na ontologia classica, igualmente objetivista. Ou seja, Siches acredita que o homem nao cria valores; cle 0s descobre nas brumas de uma ontologia, trazendo a lume uma “objetividade imanente a existéncia humana”. * Cf. SICHES, op. cit., p.232. ” Friedrich Miillet, em seu livre O Novo Paredigma do Direito, traz, ao final, trés artigos anexos. Dentre estes, um texto intitulado De Hans Kelsen a Friedrich ‘Miiller — Método Juridico sob o paradigma pos-positivista, de autoria de Olivier Jouanjan, que camiha 20 sentido ora susten- fado, aproximancio Kelsen, no que tange a aplicacao, do realistno juricico. O autor assevera que a teoria pura do dizeito pode transformar-sc em wm realismo juridico radical, fazendo alu- a0 a obra de Michel Teoper. Ci. MULLER, Friedrich, O Novo Pavadigina do Direite: Introdugi0 & Teoria Motodica Estruturantes. 3. ed. S40 Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 213 e segs. 2 “ Aunque rechacemos ol subjelivismo psicologista, el relativismo, sin entbargo la objetivi- dad de los valores no deberios pensa:la en unos términos abstractos, utopicos y uer6nicos, esto es, fuera de todo lugary de todo tiempo. Que Jes valores no son puras actitutes subjetivas significa que no constituyen simplesmente proyeciones de mecanismos mentales. Por eso, rechazando cualquir doctrina psicologista, subjetivista o relativista, entiendo que se puede y se pusie y se debe afirmar gue los valores son objetivos. Pero su objettvidad es tnmemarte a la ‘Caisiencia humana, Los valores son significaciones objetivas, pero esas significaciones tienen sentido dentro dol ¢mbite de la vide humana. EL hombre no crea valores. Por el contrério, el hom- ‘bre tiene que reconocerlos como tales, Pero el senticlo de los valores esté essertctalmente referido aia existencia humana” (GICHES, p. 289). Liges de CRITICA HERMENEUTICA DO DIREITO 39 Portanto, aquilo que é apontado como superador dos racioct- nios l6gico-dedutivos, encontra-se enraizado no paradigma juspo- sitivista, seja com a cisdo entre Direito e Ciéncia do Direito, com as Tespectivas racionalidades “fnsitas” a cada uma delas ou na conti- nuidade da decisao enquanto ato de vontade, mesmo que, agora, Pautado em valores objetivamente presumiveis.** Em suma: Siches revela uma tentativa jusnaturalista de transpor o exegetismo, entre- tanto, continua enraizado no positivismo, deslocando 0 “mito do dado” das regras para os valores, mantendo a Telagao sujeito-ob- jeto. Em poucas palavras: tanto é Positivista quem acredita que o sentido esta nas coisas (metafisica classica aristotélico-tomista) ou Ro sujeito (Filosofia da consciéncia). Veja-se, assim, quao longe esta 0 “programa” do CNJ da com plexidade da teoria do direito; e quao Jonge esta a doutrina daquilo que se deve entender por teoria do direito stricto sensu. Na parte referente a Teoria Geral do Direito e da Politica, tem- -8e no item 2: Fonies do Direito Objetivo. Principios Gerais do Direito. Jurisprudéncia. Stimula Vinculante. O questionamento que exsurge 6 Senesta quadra da hist6ria ainda é possivel falar em prineipios ge- rais do direito? Estes surgiram dentro de um contexto jusnaturalista Tacionalista no qual o direito poderia ser conhecido e construido de maneira completa e sistematica pela raz4o. Eram entendidos Como axiomas de justica necessérios a partir dos quais se realizava a deduc&o, eram conhecidos por intermédio de um raciocinio axio- mAtico e indutivo do proprio sistema legal vigente. “Dito de outro modo: ¢ da prépria lei que se tira 0 contetida que sera articulado o argumento dos princfpios” Ocorre que os princfpios gerais do direito, mesmo provenien- tes de uma tradi¢ao do direito natural, foram adaptados ao positi- vismo juridico, seja como axiologia imanente dos textos legais, ou ideias de justica que permitiriam ao intérprete maior liberdacie para dizer o direito. Atualmente, os estudos deveriam ser norteados na * Nio que tange aos fundamentos da construcdo teérica de Siches a jusfilésofo revelou. que: [Enlos Ultimos 30 anos se hi desenvuelio um renacimiento muy vigoroso e muy extergid eee, es de Derecho Natural. Lo hallamos em el campo de las convicciones individu Ales colectivas, como tambien em el plano de nuevas meditaciones flosdficas, om el erat oe ban producido depuradas doctrinas iusnataralstas de rais existence] y tambien de sonecage inspiracin neo-aristotclico-tomista, as{ como outra contribiticiones particulares de eminent pensadotes, dicilmente classificables em. esouclas determinaclas” (SICHES, 1977, p. 278). #5 OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Decisio judictal ¢ 0 conceit de principio: a hermenéutica ¢ a Gs)determinagao do direito, Porto Alegre: Livravia do Advogado, 2008, p52 40 Lenio Luiz Streck compreensao acerca dos principios constitucionais® que rompendo com o positivismo institucionalizam 0 mundo pritico no direito e mantém sua coeréncia e integridade. A continuidade do enfoque principiolégico nos principios gerais do direito é desconsiderar uma abordagem paradigmatica ruptural. Como resultado os principios juridicos permanecem sendo conceituados como “positivagio de valores” ou como uma “sofisticacao” dos velhos principios gerais do direito que agora migraram para os textos constitucionais. Con- forme tenho escrito em diversos textos e principalmente em minha obra Verdade e Consenso, sobretudo no posfacio, os principios cons- titucionais devem ser compreendidos sob a “tese da descontinuida- de”. Isto é, os principios constitucionais nao podem ser concebidos como uma atualizagao dos principios gerais de direito ja existentes ao tempo das metodologias juridicas que influenciaram 0 pensa- mento juridico no perfodo que sucedeu a codificacdo. Em linhas gerais, esta seria a “tese da continuidade”. Ao revés, dentro de uma postura paradigmatica ruptural, os principios devem ser entendi- dos enquanto normas (carater deontolégico) que instituem 0 mundo pritico no direito e que mantém a sua coeréncia e integridade. So- mente assim sera possivel romper com a cisdo semantico-estrutural entre regra e principios,” caracterfstica das teorias argumentativas e dos neoconstitucionalismos. A resolucgéo 75 do CNJ encontra-se em consonancia teérica com 0 positivismo juridico, mostrando-se, parcialmente, inade- quada com os avancos da teoria do direito na contemporaneidade. Assim, onde poderia estar 0 avanco, reside também 0 retrocesso. Mesmo sendo coerente a inclusao das disciplinas propedéuticas nos concursos e no exame da OAB, estas nao deveriam ser instrumen- talizadas, isto é, sem mudar a légica destas provas, nao passarao de mais contetidos para serem memorizados. 2° Nesta perspectiva Castanheira Neves afirma que os principios constitucionais se distin- guem “decisivamente dos “prinefpios gerais de direito’ que o positivismo normativista-siste- ™ético via como axiomas juridico-racionais do seu sistema juridico, pois sao agora principios normativamente materiais fundamentantes da propria juridicidade, exprescoes normativas de’o direito’ em que o sistema juridico cobra 0 seu sentido e nao apenas a sua racicnalidade”. Cf, CASTANHEIRA NEVES, Antonio, A crise actual da filesofia da dircito no contexto da crise glo- bai da flosofia, Topicos para a posstbilidade de uma rellexiva reabilitacio. Coimbra: Coimbra Editora, 2008, p. 108. © Seria interessante indagar aqueles que dizem que principios s4o valores e/ou que prineipios gerais do dizeito convivem com 08 ptincipios constitucionais, o que acontece quando ha um conilito entice um principio geral e um principio constitucional? Como sustentar, por exemplo, uma nulidade relativa com base no axioma do século XIX intitulado “no ha nulidade sem projuizo’? Ligdes de CRITICA HERMENEUTICA DO DIREITO a Da presente anamnese, percebe-se que a “resposta certa” in- felizmente continua sendo o(s) positivismo(s) juridico(s) indepen- dentemente da assertiva em que este(s) se encontre(m). Do jeito que esta, mesmo que o aluno/candidato tenha estudado profun- damente, atengdo: para ser aprovado, 0 errado podera ser o certo no gabarito. Repete-se, metaforicamente, o didlogo em Alice Afra do Fspetho. Humpty Dumpty diz para Alice: é a gloria para vocé. Poderas receber, em vez de um, 364 presentes. Ela responde: nao sei o que quer dizer com gléria, ao que ele, desdenhosamente, diz: “Claro que nao sabe... até que eu lhe diga. Quero dizer ’é um belo e demolidor argumento para vocé’”, acrescenta Humpty Dumpty. Mas, diz Alice, “gléria nao significa ‘um belo e demolidor argu- mento”. E Humpty Dumpty aduz: “Quando eu uso uma palavra, ela significa exatamente 0 que quero que ela signifique: nem mais, nem menos”. Observe-se bem essa frase final do personagem no- minalista de Lewis Carroll: a palavra “gléria” significa o que ele, Humpty Dumpty, quer que ela signifique. E o fim “demolidor” de uma discussao. 2.6. A “estandardizacao do direito” ou “o que estamos ensinando aos nossos alunos’? A simbiose ensino-doutrina-concursos tem formado um cfrcu- Io vicioso, no qual o ensino e a doutrina transformaram-se como ferramentas para a aprovacio, reduzindo, assim, consideravelmen- te, seu espectro de abordagem e profundidade conteudistica. Nesta relagdo hé um recrudescimento de concepedes equivocadas acerca dos juspostivismo, como resultado, concepgées tedricas que inten- tam romper com 0 velho, ao contrario o mantém, sobretudo, partin- do dos mesmos standards de racionalidade. Os concursos ptiblicos eo exame da OAB precisam ser repensa- dos, porque se tornaram bastantes em si, selecionando candidatos ad hoc, alijados de reflexao critica. Esta realidade, inevitavelmente, terd reflexos na pratica jurisdicional e em todo servico puiblico, resvalan- do, em tiltima andlise, na consolidacao democratica brasileira. Sem modificar 0 nosso modo de compreender 0 mundo, sem superar 0 esquema sujeilo-objeto, sem superar a cultura manuales- ca que assola e domina o imagindrio dos juristas, sem superar a discricionariedade positivista e a falsa impressao de que sdo criticas as determinadas posturas subjetivistas-axiologistas que desconsi- 2 Lenio Luiz Streck deram o texto (inclusive da Constituicio), parece temerdrio falar no resgate do papel transformador do direito, entendido como aquele que exsurge do papel dirigente e compromissério da Constituicao. Afinal, passados tantos anos e em pleno paradigma do Estado Democratico de Direito, do giro lingufstico e do Constitucionalismo Contemporaneo, a) ainda nao se construiu um modelo de ensino que “supere” a leitura de leis e c6digos comentados (na maioria das vezes, reproduzindo conceitos lexicograficos e sem nenhuma so- fisticagao teérica); b) a doutrina, a cada dia, doutrina menos, estando domina- da por produgGes que buscam, nos repositérios jurispru- denciais, ementas que descrevem, de forma muito breve, o conceito do texto enquanto “enunciado linguistico’: uma simples decisao de tribunal vira referéncia - plenipotenci- aria — para a atribuicao de sentido do texto, perdendo-se a especificidade da situacdo concreta que a gerou; ¢) até mesmo em determinados setores da pés-graduacio stricta sensu (mestrado e doutorado) continua-se a fazer descrices de leis e casos (ha dissertagdes e teses tratando de temati- cas monogtaficas, mais apropriadas para cursos de especia- lizacgéo, para dizer 0 menos) — a maior parte desvinculada das linhas de pesquisa dos cursos, como, ®. g., limitagaio de fim de semana na lei de execucao penal, cheque pré-data- do, saidas temporatias na lei de execuedo penal, inquérito policial, recurso de offcio, perda de bagagem em transporte aéreo, sistema postal, andlise juridica do lixo, o papel do ofi- cial de justica, o papel do drbitro, suspenséo condicional da pena em aco penal privada, embargos infringentes, embar- gos declaratorios, uniao homossexual (em wm Programa de Pés-Graduagao que trata de meio ambiente), embargos de execucao, agravo de instrumento, excecao de pré-executivi- dade, infanticidio, além de wna tese que, em pleno Estado Democratico de Direito, arrasa com o poder constituinte e uma outra que propée a “inverséo do énus da prova penal” em crimes do colarinho branco, etc.; 4) por outro lado, nem sequer conseguimos elaborar um novo modelo de provas de concursos publicos, continuando com a tradicional miltipla escolha — espago (indispensavel) para personagens ficticios como Caio, Ticio e Mévio - e com questées dissertativas sobre casos juridicos (no mais das LigGes de CRITICA HERMENEUTICA D0 DIREITO 43 vezes, sem. qualquer sentido “pratico”) ou sobre conceitua- lizacées juridicas. Disso tudo € possfvel extrair a seguinte assertiva: ou se acaba com a estandardizacao do direito e suas simplificacdes a-metédi- cas, decorrentes em grande Parte do “efeito concurso” no ensino ena doutrina, ou elas acabardo com o que ainda resta da ciéncia juridica.’* jemte que estou me referindo & cotidianidade das préticas juridieas, representado pelo Universo das contonas de faculdades de diteito, os intimeros eursos de ‘reparagio para con- furclonlitine he cade do dizeito massiicatae sujoenda pelo excesco de procesont pela des: fuclonililade do sisterta processucl. Despiciendo registrar a lmportancis de reece producto {eérica (também em qualidade) gcorrida nos altimos anos, mormente no campo do direito constitucional, frato principalmente da expansio da pls-graduagie shit sone (R4, hoje, 76 Fancher ae gimestrado # 27 programas de doutorado er funcionamento). Fova anche i Huneia a se far notar nas decisoes judiciais, proporcionandosdlornne avancos doutrinérios © jurisprudenciais, Entretanto, ha muito ainds a fazer, 44 Lenio Luiz Streck

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