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A135 Hum, Mara da Grga Souza Stores, cores, ny, = mas: ogaiesio dos espagae a eacao itn ana da Goya Sours Hor Poke Antmed, 2006, * nae |: ducagio Infanti ~ Organi2agio- Espagos I. Titulo, cpu 37232 Catalogagto na publcasio: Ménica allo Canto = CRB 10/1023 SBN 85.363-0920-4 Sabores, . cores, sons, aromas A ORGANIZACAO DOS ESPAGOS NA EDUCACAO INFANTIL Maria da Graga Souza Horn Pedagoga. Doutora em Educagio pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e 2004 © Animed Eaitora $.4., 2004 Capa: Angela Fayet Programagdo Visuat Preparagdo do original Marcia da Silveira Santos Leiturafinat Rubia Minoo Supervisio editorial Monica Balljo Canto Projeto grafico e edtorayao eletronica Alexandre Milter Ribews MEDS EorTOR {eS de publicato, em lngua portuguesa 3 ARTMED" EDITORA'S A Si dernimo de Ornelas, 670 - Santana 0040-340 Por Alegre RS Fone (51) 3330:3484 Fax (51) 3330-2378 for tliat ou repeats deste volume tod oem te. sob quaisquer ra Wes Uber sshur meio (lero: merge a vaio, otoespi,ditibureae a Web © outros, sem permissag expressed ee SA0 PAULO ay, Rebousas, 1073 - Jardins 5401-150 Sto Faulo SP Fone (11) 3062-3757 Fax (11) 3062-2497 SAC 0800 703-3444 IMPRESSO No pRasi, PRINTED IN BRazit ee Para Renato Souci, Por muitas historias que nao escreveu. ‘Calving, em sew livro Ligdes americanas, diz que a fantasia é um lugar onde chove. Eu acredito que também a educagao sea, metaforicamente, um lugar onde chove. E um lugar onde chove um pouco de tudo; um lugar aberto, sem protegdo, onde chovem falas, agées, pensamentos, memérias, conheci- mentos, amores, emogies, ideais, paixdes, fadigas, cmarguras, alegrias A educagtio € um lugar onde hd riscos; é um lugar descoberto, exposto & imprevisibilidade do tempo, onde criangas e professres podem até se molhar; transformando-se em umn lugar desconfortdvel, ido, mas cheio de aventura, verdadeiro, intenso, fascinante” (Spaggiariem Rabbitti, 1999). Ao leitor deste trabalho, o esforgo de tornar paixonante e intenso 0 texto que eserevi PREFACIO O texto de Maria da Graga é marcado pela intengao, anunciada no ini- io do livro, de fazer um esforco para torné-lo apaizonado e intenso. ‘Quem conhece Graca sabe que ela é uma educadora intensa e apaixo- nada, antes de tudo, pela vida e, conseqiientemente, pela educacéo. Foi da paixdo pela vida que esse texto brotou, 0 espaco nio ¢ algo que emoldure, ndo é simplesmente fisico, mas atravessa as relagdes, ou melhor, é parte delas. E ¢ sobre relagdes que se fala quando o assunto € educagio. O professor é um mediador de diferen- tes relagdes: entre as criancas & o saber, entre as criencas e 0 mundo que as cerca, entre elas mesmas, entre elas e o mundo imediato, etc. A nogéo de mediagao nao é simples. Nao significa que 0 professor esté “no meio de todas as relagdes”, ou que elas nao ocorram sem ele, mas que ele intervém © organiza o ambiente para que as relagées e as aprendizagens possam ser otimizadas. Conforme é demonstrado com muita clareza no texto da tese, agota transformada em livto, a organizagao do espaco da sala de aula e da escola expressam concepgées ora autoritarias, ora democrdticas, ora cen tadas no professor, ora no grupo de alunos e na :nterlocucéo com eles. ‘Assim, o espaco nao & algo dado, mas deve ser construido como uma di- mensio do trabalho pedagégico. A educayiv wadicional “adultocéntrica” cede lugar a viséo contemporanea da crianga come protagonista, interlo- cutota qualificada do adulto e das outras criancas, como alguém que vive o préprio tempo e nao estd simplesmente a espera de viver um tempo futuro que Ihe seria “ensinado” pelo adulto. A superacéo da postura adultocéntrica nao elitrina 0 papel do profes- sor; a0 contrario, reforga-o como um ator consciente das possibilidades e das necessidades infantis. Nao se trata apenas de dar informagées e mol: dar comportamentos, mas de criar condigdes ricas e diversificadas para gue cada crianga trilhe seu caminho e desenvolva suas possibilidades. Tra- (Xm MARIA DA GRACA SOUZA HORN tarse de trabalhar 0 grupo e seu contexto, respeitando as diferencas sem perder a visio do todo, A autora uiliza-e da visio de Urie Brofenbrenner (1996), para quem 0 desenvolvimento humano se dé em um meio ambiente ecoligito concebids ‘opologicamente por estruturas que sdo chamadas de micro, meso, exe ma, crossisteme; portanto, nao se explica apenas pela realidade imediata, O desenvolvimento humano é tomado na perspectiva de Henri Wallon (1989), para quem o meio é essencial em dois sentidos: como ambiente (mulliew) e como instrumento (moyem) do desenvolvimento humano, Esse visdo é dinamizada pela concepeio de “Rede de Significagoes", de Clotilde Rossetti-Fesreira (2004),"a qual introduz a dimensio semidtica e permite articular, de forma dinémica, as diferentes dimensdes do desenvolvimento ‘rumano, resultado de interacées préximase distantes tanto no espago como no tempo humano vivido. A autora explicta, de forma didética, 0 processo de transformaglo vi- enciado pelas professoras através de mudancas introduzidas na organiza. sao do espaco e de novas interagdes e reflexdes realizadas pot elas sob a coordenacao da supervisora pedagégica, deixando claro que ha de educat o educador para que ele eduque seus alunos. Novas formas de interagir 6 se constroem com novas interac6es, ou seja, jamais resultardo de orientagoes prontas meramente transmitidas, Maria da Graca consegue demonstrar com clareza essa nova perspecti- ‘a, introduzida na experiéncia que analisou, por ser uma verdadeita edu. cadora, isto g, por ser capaz de viver essa perspectiva na sua pritica peda. ségica, Ela ¢ uma verdadeira educadora, porque ama a vidae fol ne lula pela vida que construiu este belo trabalho. Agradeco a ela a oportunidade de ter participado e vivido essa aventura, Carmem Maria Craidy Doutars em Educagdo.Professora do Pés-Graduagio da Faculdade ‘de Bducagdo da UEKGS AuussetFermea, M,C. er al. Ree de SignificosGes 0 desenvolvimento humano. Porto Alegre: Arrmed, 2004 SUMARIO PREFACIO.. ix 1A SOLIDARIA PARGERIA ENTRE ESPACO.E EDUCADOR B 2 PASSOS DO ESPAGO NA TRAJETORIA DA EDUCAGAO INFANTIL «enue 23 3 INQUIETAGOES DE UMA EDUCADORA. 39 4 TESTEMUNHOS DA MUDANGA: ANOTAGOES E REGISTROS a ‘+ PRIMEIRAS CONSTATAGOES cess 5: = Como as crangas brincam: ss 0 jogos que nao sio jogados ~ A palavra das professoras: - i” evidéncias de uma concepeéo pedagésica . ~ Estratégias da coordenacao pedagéaica: s Drimeiros encontros hosptaleiros 65 + AS RUPTURAS COM 0 CONHECIDO. ” = Como as erangas brincam: m0 protagonizando enredos . ~A palavra das professoras: eo ‘as modificagSes no plano das idéias.. — Estratégias da coordenacéo: 1 vinculos se estabelecem . + A DIVERSIDADE NAS TRAJETORIA: = Como as eriancas brincam: a interago em cantos temticos ... =A palavra das professoras: agd0e rellexdo das ids... ~ Estratégias da coordenagéo. ° coneretizando propos... a 90 * CONCRETIZANDO MUDANGAS: MARCAS SIGNIFICATIVAS ... gs ~ Como as eriancas brincam: 68 jogos que so jogados nos espagos ctiad0$ vansann 98 ~Appalavra das professoras: A Sidéncas de mudangas de uma concep pede en. 102 By Sobel EARCERIA ~ Bstratégias da coordena: es vos ENTRE ESPACO E EDUCADOR 5 DAS VIVENCIAS... ALGUMAS CERTEZAS 113 REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS... 17 Inicialmente, importante considerarmos que, no Brasil, a educa- ‘io infantil percorreu um longo caminho, 0 quel, em certos momentos, \ vinculou-se & satide em seus pressupéstos higienistas; em outros, & catidade e ao amparo pobreza e, em outros ainda, & educacao. Nessa trajetéria, toda a politica de educaco infantil emanada do poder pui- blico se caracterizou, de um lado, por um jogo “de empurra” e, de ou- tro, por uma visdo acintosamente assistencialista Os érgios piblicos, em especial, tém uma tradicao de lidar direta- mente com grupos organizados da populacdo, reforcando a orientagao de guarda as criancas, principalmente em relacio 2 higiene e a alimen- tacdo. Como conseqiiéncia da prépria trajetdria hist6rica da educagéo in- fantil, diferentes momentos emergiram nas propostas de trabalho de- senvolvidas nas instituigées de educagao infantil no Brasil. A producao cientéfica foi largamente ampliada, e as pesquisas sobre a infancia, em ! suas diferentes dimens6es, influenciaram muito o referencial pedago- ico para essa etapa de ensino. Hoje temos um novo ordenamento legal iniciado com a Constitui- séo de 1988 que se desmembra através do Estatuto da Crianga e do Adolescente (1990), pela Lei Orginica da Assisténcia Social (1993) e pela Lei de Diretrizes e Bases da Educacao (LDB, 1996). Como resulta- do disso, um novo status é conferido & crianca, garantindo-Ihe direitos ¢ tratamento de cidada. No atual contexto, sem duivida, a LDB signifi- cou um grande avanco nessa area, rompendo com toda normatizacao até entio encontrada no pats. (rrr Apesar disso, a expansfo da oferta de vagas no pais esté longe do ideal, persistindo um percentual pequeno de criancas atendidas, se, bretudo em creches. Mesmo considerando essa defasagem entre criancas atendidas e vagas, poderiamos ponderar que, se temos producao clentifca, se & legislacio nos coloca em um patamar nunca antes alcangado, 9 auc estd faltando para nossas instituigées de ensino realizarem um trae, Iho de qualidade? Sabemos que anos e anos de uma prética voltada somente para guarda e para o cuidado, de pouca atengao & formacao profissional aos educadores infantis e de um atendimento precério em todos os cesar dos ndo se dissipardo como em um passe de magica f cheese ee mento de muito trabalho, de muitas modificagdes, sejam estrutureg sejam pedagégicas. . Neste momento to crucial para a educagio infantil, podemos nos Perguntar: Por onde comecar? Que caminhos trilhar para dar ae eign, gas de 0 a6 anos uma educacao de qualidade? Qual poderia ser o ho condutor das mudangas? Na verdade, investir na formacao dos profissionais que atuem nes- sa area é um dos caminhos a serem seguidos. Historicamente, exces educadores, em sua grande maioria, sobretudo os que atenden ale. manda das camadas mais empobrecidas da populacao, t2m sus pratica ancorada ro fato de ter paciéncia, de gostar de crianga, de ndo tor ung formagao profissional, de ter um trabalho proximo as suas casas, eee Perrenoud (2001) afirma que formar professores, a parti de situgcoes de aprendizagem, deveria ser a meta desses programas, da eduteyas infantil atéa universidade, tornando-os profissionais que dominance habilidades de seu oficio, Tal formagao deverd pautar-se na andlie dae Priticas e na reflexéo. Esse autor aponta que o desenvolvimento de algumas competéncias sao fundamentais nesse processo, como apren, der a ver ea analisar; aprender a ouvir, a escrever, a let ea explican aprender a fazer; aprender a refleti. 4 precariedade na formacio ta edueadores infantis no Brasil, de modo geral, ¢ de toda a ordew Var ¢s motivos podem ser apontados, desde os aspectos historicos da traje. {ria dessa stapa de ensino, jd apontados neste capitulo, ate s cultere ainda muite forte de que para trabalhar com criancas basta gostar ¢ ter paciéncia com elas Estes dedos revelam um cenério geral de precariedades. Um dos aspectos mais evidentes dessa dificil situagdo diz respeito a organize G20 dos espacos nas instituigdes de educacdo infantil, surginds dat a Televancia dessa temética. SABORES CORES. SONS AROMAS. 15 © olhar de um educador atento € sensivel a todos os elementos que esto postos em uma sala de aula. O modo como organizamos materiais e méveis, e a forma como criangas e adultos ocupam esse espaco e como interagem com ele sdo reveladores de uma concepcao pedagégica. Alids, o que sempre chamou minha atencio foi a pobreza freqiientemente encontrada nas salas de aula, nos materiais, nas co. ‘es, nos aromas; enfim,,em tudo que pode povoar o espaco onde coti- dianamente as ctiancas estao e como poderiam desenvolver-se nele ¢ por meio dele se fosse mais bem organizado e mais rico em desafios. A discussio sobre a importincia do espaco ne desenvolvimento in- fantil tem, nas.diversas correntes da psicologia, um suporte fundamen- tal. A corrente cognitivista, por exemplo, enfatiza a funcéo desempe- nhada pelas experiéncias espaciais primérias na construgdo das estru turas sensoriais das criangas. Frago (1998) cita como um dos exem- plos dessa vertente os estudos piagetianos sobre a psicogénese das es- truturas topoldgicas na infancia, nos quais destaca a valorizacéo das primeiras experiéncias sensoriais na casa e na escola como fatores es- senciais do desenvolvimento sensorial, motor e cognitivo. Segundo Pia get (1978), a representagio do espago para a crianca é uma construcdo internalizada a partir das ages e das manipulacées sobre o ambiente espacial préximo do qual ela faz parte. Portanto, néo basta a crianca estar em um espaco organizado de modo a desafiar suas competéncias; € preciso que ela interaja com esse espaco para vivé-lo intencionalmente. Isso quer dizer que essas vivén- cias, na realidade, estruturam-se em uma rede de relacdes e expres- sam-se em papéis que as criangas desempenham em um contexto no qual os méveis, os materiais, os rituais de rotina, a professora e a vida das criancas fora da escola interferem nessas vivéncias (Rossetti-Fer- reira, 199) Os textos dispontveis atualmente sobre organizagao espacial nas escolas, em especial nas salas de aula, referem-se, na maior parte dos casos, & intima relagdo entre as interagoes socials das crlancas e suas aprendizagens, intermediadas pelo meio onde estio inseridas, cendrio desse processo. Meio & aqui entendido como o campo onde a crianga aplica as condutas de que dispde. Ao mesmo tempo, é dele que retira 05 recursos para sua aco (Galvao, 1995). A discusso acerca da importéncia do meio no desenvolvimento infantil tem em Wallon (1989) e Vygotsky (1984) seus legitimos repre- sentantes. A partir da perspectiva s6cio-histérica de desenvolvimento, esses tedricos relacionam afetividade, linguagem e cognigéo com as praticas sociais, ao discutirem a psicologia humana em seu enfoque psicoldgico. Desse modo, na visio de ambos, 0 meio social ¢ fator pre- ponderante no desenvolvimento dos individuos. Na ebordagem de Wallon, o conceito de meio e suas implicagées no desenvolvimento infantil sio fundamentais. Sua concepgao sobre esse assunto tem como ponto de partida as contribuigdes de Darwin, para o qual o ser vivo evolui em sua relacdo com 0 meio. Diferentemente dos animais, ao nascer, a crianca é desprovida de meios que lhe possibilitam agir sobre o mundo que a cerca. Nesse rico processc, a mediagio do grupo na relacao do individuo com 0 meio estrutura relagdes com 0 mundo fisico e social. Portanto, em alguma medida, é necessdrio que a mediagdo humana se interponha entre 0 individuo e 0 meio fisico, ¢ iss0 ocorre através das pessoas, dos grupos @ de todas as relagdes culturais. Conforme afirma Wallon, qualquer ser humano ¢ biologicamente social desde seu nascimento. Por conseguin- te, deve adaptar-se ao meio social, no qual todas as trocas produzidas sdo a chave para as demais. Assim, entende-se que sozinho o bebé nao sobrevive, e que a sobrevivéncia depende da intermediagéo de parcei- tos mais experientes. Em razdo disso, o meio assume uma importancia significativa, assim como o papel do grupo, podendo-se inferir que os espacos destinados a criancas pequenas deverdo ser desafiadores e aco- Ihedores, pois, conseqiientemente, proporcionarao interagdes entre elas e delas com o$ adultos. Isso resultard da disposicéo dos méveis e mate- riais, das cores, dos odores, dos desafios que, sendo assim, esse meio proporcionara as criangas. A medida que o adulto, nesse caso o parcei- ro mais experiente, alia-se a um espaco que promova descentracéo de sua figura e que incentive as iniciativas infantis, abrem-se grandes pos- sibilidades de aprendizagens sem sua intermediagao direta. Assim sen- do, cada modo de relacio com o entorno implica um determinado equi- librio funcional que, por sua vez, ¢ uma expresso da historicidade tanto de maturagio individual como da evolugio do meio humano. Logo, 0 espaco nao é algo dado, natural, mas sim construfdo. Pode-se dizer que 0 espaco é uma construcio social que tem estreita relacdo com as ctividades desempenhadas por pessoas nas instituicées. Sendo assim, entende-se que, para Wallon, a atividade humana & eminentemente social, e a escola é o lugar mais adequado para que essa atividade se desenvolva além do ambiente familiar, por ser um mefo, muitas vezes, mais rico, na medida em que é mais diversificado € pode oportunizar as criangas a convivéncia com outras criangas € com outros adultos além de seus seus pais. Os exercicios da vida em sociedace se iniciam na familia e ampliam-se quando a crianga comeca a freqientar a escola, a escolher os amigos, a ter a solidatiedade do grupo, a enfrentar desavencas. De acordo com ess2 autor, o grupo social é indispensdvel & erianca nao somente para sua apréndizagem social, como também para o desenvolvimento da tomada de consciéncia de sua ptéptia personalidade. A confrontagio com os companheitos Ihe permite constatar que ¢ uma entre outras criangas e que, a0 mesmo tempo, é igual e diferente delas. Desse modo, cabe ao adulto organizar sua pratica junto as outras criangas, de modo que as relacdes do grupo possam ocorrer longe das coergdes e de um. disciplinamento centrado nas normas ditadas por ele. Elas necessitam de espaco pata exercerem sua criatividade e para contestarem 0 que desaprovam. Ao mesmo tempo, € necessério ter a clareza de que, nos primeiros anos de vida, o individuo apresenta rea- ges descontinuas e esporédicas que precisam ser completadas e inter- pretadas. Devido a essa incapacidade, ele é manipulado pelo outro, e & através desse outro que suas atitudes irdo adquirir forma. Assim, esta~ belece-se uma reciprocidade que o acompanhard pelo resto da vida, e, nesse aspecto, a unio do sujeito com o ambiente desempenha um pa- pel fundamental. Por isso, em um ambiente sem estimulos, no qual as criangas néo possam interagir desde tenra idade umas com as outras, com os adultos e com objetos e materiais diversos, esse processo de desenvolvimento no ocorrerd em sua plenitude Considerando que cada estagio do desenvolvimento representa um sistema de comportamentos, é na relago com o ambiente que o indivi- duo assume determinadas aces, considerando os recursos e as com- peténcias que jé desenvolveu. Podemos afirmar que o referencial tedrico de Wallon suscita refle- xbes pedagégicas significativas. Dada a importincia que atribui, por exemplo, & tonicidade muscular e postural, podemos depreender que a organizacio espacial deverd traduzir-se em um espaco amplo onde as criangas poderao movimentar-se com liberdade. Muitas vezes, na edu cago infantil, vemnos as salas de aula sendo organizadas com mesas € cadeiras ocupando 0 espaco central, o que impée as criancas uma “di- tadura postural”, a qual certamente acarretara croblemas de compor- ramento em algusnas delas, pois nao se sujeltardo a ficar sentadas pot longos perfodos de tempo. E importante termos consciéncia de que as criancas, passando por diferentes estagios de desenvolvimento, terao, por conseguinte, necessidades diversas também em relagao ao meio no qual esto inseridas. Quando muito pequena, a crianga age diteta- mente sobre o meio humano, utilizando-se das pessoas para se inserir em seu contexto social. Na medida em que conquista autonomia moto: ra, em que adquire padrées de linguagem mais avancados, conquista recursos cada vez mais refinados para interagir com a cultura e com 0 mundo que a rodeia. Portanto, enquanto para os pequenos da creche e do maternal as areas onde podem cotrer, saltar, rolar so fundamen- tais, para os maiores que jé freqiientam os niveis A e B, esse espaco talvez seja reduzido, dando lugar a outras atividades, como pintar, de- senhar, brincar de faz-de-conta e de fazer barraca. Assim, planejar a vivéncia no espaco implica prever que atividades sao fundamentais para a faixa etdria a que se destina, adequando a colocagao dos méveis e dos objetos que contribuirao para o pleno desenvolvimento das crian- cas. Partindo do entendimento de que as criancas também aprendem na interagdo com seus pares, é fundamental o planejamento de um espago que dé conta dessa premissa, permitindo que, a0 conviver com gTupos civersos, a crianga assuma diferentes papéis e aprenda a se conhecer melhor. Por cutro lado, também é importante considerar a educacéo inspi rada nos pressupostos de Wallon, que se contrapée & tradigdo intelec- tualista que muito influenciou a pré-escola: nela, o desenvolvimento intelectual € entendido como um processo dissociado do desenvolvi- ‘mento sccial e motot. No enfoque desse tedrico, a pessoa é vista como um todo, entiquecendo-se com as miiltiplas possibilidades do eu. Nes- se sentido, uma proposta pedagdgica que se alicerca nos pressupostos de Wallon coloca em destaque a estética e a criatividade como alimen- tos do espirito. Nessa perspectiva, temos outra implicagdo pedagégica importante que diz respeito diretamente ao modo como organizamos © meio no qual a crianga se insere e relaciona-se com outras pessoas. A harmonia das cores, as luzes, 0 equilibrio entre méveis e objetos, 2 propria decoracdo da sala de aula, tudo isso influenciard na sensibili- Gade estética das criancas, ao mesmo tempo em que permitir que elas se apropriem dos objetos da cultura na qual esto inseridas. © meio social também foi para Vygotsky fator preponderante na construcéo e no desenvolvimento dos individuos. Em sua perspectiva, © desenvolvimento das fungées tipicamente humanas é mediado social mente pelos signos e pelo outro. Desse modo, o sujeito produtor de conhecimento nao é um mero receptéculo; é, ao contrério, um sujeito ativo que, em interagéo com 0 meio social, constréi e reconstréi o mundo em uma relacdo dialética, A partir desse entendimento, acreditava que © comportamento das criangas pequenas é fortemente determinado elas caracteristicas das situacdes reais em que se encontram. Assim, nas situagGes imaginarias vividas pela crianga, como a do faz-de-con- ta, ela é levada a agit no Ambito da zona de desenvolvimento proxi- SABORES - CORES . SONS » AROMAS... 19 ‘mal, tendo tm vista que se comporta de maneira sempre mais avanga da do que na vida real." Nesse processo, a brincadeira aparece como importante promotora de desenvolvimento, constituindo-se em uma atividade em que a crianca aprende a atuar em uma esfera cognitiva que depende de motivagdes internas. Como conseqiiéncia disso, cons tréi aprendizagens ao desenvolver ages compartilhadas com outras ctiangas, apropriando-se de um saber construiéo em uma cultura. A cultura acontece em eSpacos que retratam seus simbolos e signos, os quais nao séo criados ou descobertos pelo sujeito, mas por ele apropria- dos. Tal processo inicia quando a crianca nasce e vai se construindo em sua relacdo com parceiros mais experientes, os quais Ihe fornecem de- terminadas significacdes. Sua atuacdo, em situacées objetivas, dever- minam formas de relades sociais e de uso de signos na realizagao de tarefas presenciais. Podemos inferir, por meio dessa idéia, que é fundamental a crianca ter um espaco povoado de objetos com os quais possa criar, imaginar, construir e, em especial, um espaco para brincar, o qual certamente no serd o mesmo para as criancas maiores e menores. Quando, por exemplo, a crianga usa um pedago de madeira como se fosse um avido, ela se relaciona com a idéia de avio, e néo propria mente com 0 pedago de madeira que tem em mios. Na verdade, esse objeto representa uma realidade ausente e auxilia a crianga a separar © objeto do significado. Essa vivéncia fundamental, ja que prové uma situagdo transitéria entre a acdo da crianga com objetos concretos suas ages com significados. Isso resultard em uma etapa importante, ‘a qual, no futuro, ird levé-la, a pensar, a se desvineular das situacdes, concretas. Depreende-se dessa idéia que, quando uma c:ianga vive uma situa- cdo imaginatia, isso nao é algo fortuito; ao contrério disso, evidencia uma manifestagdo emancipatéria da crianga em relacdo as circunstan- cias situacionais. Uma implicagio pedagdgica decotrente disso é a de que “o povoamento” do meio ambiente com objetos e materiais que desafiem a crianca no ato de transformar e cria: é fundamental para seu desenvolvimento. Vygotsky (1984) afirma que apesar da relagéo brincadeira-desen- volvimento poder ser comparada 4 relacio instrugdo-desenvolvimen- to, 0 ato de brincar proporciona um suporte basico para as mudangas das necessidades e da consciéncia. A atuacao da crianga no ambito da imaginacdo, em uma dada situagao imaginéria, oportuniza a criagao das intengdes voluntérias e a formagao dos planos da vida real e das motivacdes da vontade. Nesse sentido, tudo surge ao brincar, 0 que se 20 m MARIA DA GRACA SOUZA HORN. constitui, assim, no mais alto nivel de desenvolvimento pré-escolar. £ através da atividade de brincar que a crianca se desenvolve. Somente nessa dimensao a brincadeira pode ser considerada uma atividade con: dutora que determina o desenvolvimento da crianga. ‘Uma implicacao pedagégica importante que emerge destes postu- lados éa de que, para a crianca brincar e exercitar sua capacidade de compreenséo produgdo de conhecimento, é essencial que haja um espaco de sala de aula organizado visando a esse objetivo. Sendo as- sim, um espaco despovoado de objetos e de materiais instigantes e desafiadores, ou seja, de brinquedos que evoquem enredos de jogo sim- bélico, é a propria negacdo do que Vygostky considera fundamental para o desenvolvimento infantil. Para este autor, o desenvolvimento humano é uma tarefa conjunta ¢ reciproca. No caso da crianca em idade pré-escolar, o papel do adulto €0 de parceiro mais experiente que promove, organiza e prove situa- (es em que as interacdes entre as criangas e o meio sejam provedoras de desenvolvimento. Nessa dimensao, 0 espaco se constitui no cenério onde esse processo acontece, mas nunca é neutro. Considerando-se as premissas de que o meio constitui um fator preponderante para o desenvolvimento dos individuos, fazendo parte constitutiva dese processo; de que as criancas, ao interagirem com 0 meio e com outros parceiros, aprendem pela prépria interagdo e imita- do,” constatamos que a forma como organizamos o espaco interfere, de forma significativa, nas aprendizagens infantis. Isto é, quanto mais esse espaco for desafiador e promover atividades conjuntas, quanto mais pe-mitir que as criangas se descentrem da figura do adulto, mais fortemente se constituiré como parte integrante da acdo pedagégica. ‘Tomando como referéncia os postulados de Vygotsky, entendemos que o papel do professor ¢ interferir na zona de desenvolvimento pro- ximal dos alunos, provocando avancos que nao ocorreriam de forma espontdaea. Essa intervencdo, sobretudo na escola infantil, dependera do modo como o professor, o parceiro mais experiente, organiza, por exemple, jogos e materiais relacionados aos mais diferentes campos do conhecimento (linguagens, matemética, ciéncias, artes) que, em tal estégio de desenvolvimento das criancas, serdo os mais adequados e do modo como organiza cantos e recantos da sala de aula, como biblio- teca, casa de boneca, recanto das fantasias, das construcdes, os quais ermitirio enredos com a participago em duplas, trios ou grupos maio- tes de criancas. De modo geral, o espaco, muitas vezes, é organizado desse modo; porém, séo téo pobres em materiais, cuja presenga os tor- nariam mais atraentes, que so pouco convidativos as criancas. SAGORES CORES . SONS _AROMAS.. = 21 NOTAS 1, Zona de desenvolvimento proximal 6 um conceito wygotskiano que define aquelas fangGes que ainda néo amadureceram, mas que esto em processo de maturagao; funcdes que amadurecerio, mas que, no presente momento, estio em processo embrionatio. 2. ImitagZo aqui é entendida sob a perspectiva de Vygotsky, ou seja, imitar nfo é uma mera cépia do modelo, mas uma reconstrugao individual do que ¢ observado nos outros. PASSOS DO ESPACO NA TRAJETORIA DA EDUCACAO INFANTIL Para a erianga, 0 expago € 0 que sete, 0 que vé, 0 que faz nee Portanto, oespaz €sombra ¢escurido; é grande, enorme ou, pelo con ‘rdrio, pequeno; & poder correr ou ter de cer quiet, é ese lugar onde pode i olhar ter, pensar Oespazoéem cima, embaix,¢ tocar undo chegar a tocar; éBarue {ho fore forte demais cu, pelo contri, sléacio, so tanta cores, todas Juntas ao mesmo tempo ow uma tnia cor grande ou nenhuma cor 0 expapo, enti, comera quando abrimse as thas pela mand em cada despertar do sono; desde quando, com aus, retornamas ao esas (Fomnero, spud Zabalza, 1998, p. 231) Falar em espacos, no ambito educacional, implica resgatay, inicialmen- te, referéncias teéricas de autores que contribuem para essa discussdo, Pen- sando em discutir o espago educacional sob a perspecciva da arquitetura, a contribuigdo de Nayume Lima (1989) nao pode ser desconsiderada, cobre tudo no destaque que dé a abordagem histérica do espago escolar. Sua én- fase recai sobre 0 modo como o espaco interfere no disciplinamento das criancas e no controle dos movimentos corporais. Suas consideragées acer. cadesse tema nas décadas de 1950 e 1960, resultado de estudos realizados nas escolas piblicas de Sao Paulo, mostram que os espacos escolares nao cram muito diferentes dos da Franga e da Inglaterra do século XIX. Tais espacos impunham ordem e disciplina em detrimento as necessidades das riancas. A prépria planta dos prédios escolares previa os espagos como ‘modo de controle da disciplina, com as salas de aula organizadas com filas rr de classes, corredores de circulagdo estreitos, etc. Nesse sentido, seus dos evo os pastas de Foucault see st seguindo nesta direcio, sera interessante, antes de tudo, refletr a res- eito das idéias foucoultianas, prin re e refer 6 pit das ids , principalmente no que se refere 20 Panépti- Essas idéias explicitam o Panéprico de Bentham como sendo a figu central de uma construgo em anel que crcundava une tore Nea eet Janelas se abriam sobre ° lado interno do anel. A construgio perifria era ividida em selas, que tinham duas aberturas: u a para o interior e outra para o exterior. ee Dentro dessa estrutura, o vigia vé a todos, mas eles nfo se ver Dessa de complts pelos prisioneitos, a violéncia desencadeada nos loucos, 0 cone Légio que podem sofrer os doentes, a disperséo e o barulho que um grupo de crlaneas pode fazer. Como se percebe, 0 principio € que ocoletivo deve ser evitado. Reflecindo sobre alguns espagos de educacdo infantil, encontro c relacio com escasidéias quando verifco que, de modo geral eden, ‘tm prefecéncia por realizar trabalhos dirigidos, feitos individualmente, nae revem espagos para tarefas coletivas e tém dificuldades de orienta: sou trabalho para escolhas feitas pelas criangas sem sua constante vigilance ¢ ordenamento. Na verdade, ha uma intencionalidade de quem organize o¢ spaces, pensados principalmente para que todas as atividades gitem ems tomo do adulto. Toda vez que alguma situacio foge ao controle da profes Sora, isso € reafirmado. Um exemplo disso se evidenciou durante uma re. nido pedagogica de que participei, na qual a discussio girava em torno da necessidace de todas as criansas aguardarem na recepeao da escola para gntrarem em fila, Fora proposta uma alteragdo nesse sentido, a qual poss! bilita as eriancas a entrada em suas salas de aula sem a necessidade da fila Umma das professoras se manifestou, dizendo: Me desapem, mas deveamos ser conutadas sobre ist. Anal, somos ou ‘do especialistas em educagSo infantil? (...) Eles se empurram, se batem, sind so saben ander em grupo vem © biter ) A poe ene tamanhopequeno para todos eae ao mesmo temps Es soe Por queni enrarem fl, fea tudo muito mals tgannado Niostoo es 4 fila vai nos tornar mais ou menos tradicionais. uh Voltanco a idéia do Pandptco, i , Podemos constatar que o espaco, organi-

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