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Ensino de Filosofia UFFS PDF
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Ensino de Filosofia
Organizadores:
Xxxxx Xxxxx Xx
Chapecó
setembro/2014
Ficha Catalografica
Sumário
Prefácio������������������������������������������������������������������������������� 7
1. OS DESAFIOS DO ENSINO DE FILOSOFIA: pensar-se a
si mesmo�������������������������������������������������������������������������� 13
Altair Alberto Fávero
Elisete M. Tomazetti
Centro de Educação
Universidade Federal de Santa Maria
Dezembro de 2013
Ensino de Filosofia 11
1. OS DESAFIOS DO ENSINO DE FILOSOFIA:
pensar-se a si mesmo
Altair Alberto Fávero1
1. INTRODUÇÃO
Ensino de Filosofia 15
Já a filosofia como questão ou processo, sem negar ou contestar a
validade da postura anterior, ressalta outro ângulo: parece-se como um
“aprender a pensar”2. Esse é entendido não como a capacitação lógica,
como domínio do uso de um instrumento que ordena o pensamento, mas
como o desenvolvimento da capacidade de questionar, de rejeitar como
dado inequívoco e evidência imediata, que convence o senso comum e fun-
damenta grande parte dos pensamentos. Tal abordagem da filosofia apre-
sentaa como uma disciplina que coloca o ato de filosofar, de questionar
e de retomar questões abandonadas, ou dadas como resolvidas, acima da
própria filosofia como teoria. O importante não é conhecer as respostas que
outros deram, mas tentar alcançar, por meio da questão posta por eles, uma
nova resposta, a qual, por sua vez, abrirá o caminho a novas questões.
É nesse sentido que a tentativa pioneira de Lipman constitui um
marco referencial e diferencial no que se refere ao ensino da filoso-
fia. No início da década de 1970, após ter ensinado por longos anos
introdução à lógica a estudantes universitários, Lipman começou a se
preocupar com o valor de tal curso, ou seja, qual seria o possível be-
nefício que seus alunos obteriam ao estudar regras para determinar
a validade dos silogismos ou ao aprender a construir orações con-
trapositivas. Eles, realmente, raciocinavam melhor como resultado
do estudo da lógica? Não estariam seus hábitos lingusticos e psico-
lógicos já tão firmemente estabelecidos que qualquer tipo de prática
ou instrução no raciocínio chegaria tarde demais? Tais indagações
levaram Lipman (1990) a pensar, hipoteticamente, que o problema
não estava propriamente na universidade, mas na educação básica
que esses alunos haviam tido. Ele constatou que era possível aju-
dar as crianças a pensar com maior habilidade. Foi nesse contexto
que nasceu o programa de filosofia para crianças que se espalhou
pelo mundo todo, inclusive no Brasil, constituindo um importante
referencial e um projeto “revolucionário” que buscava repensar a
educação.
No dizer de Lipman (1990), “há muito se desconfiava que a Filosofia
2 Vários livros já foram lançados com essa finalidade. A título de exemplo, poderíamos citar o livro de
Leopoldo Justino Girardi e Odone José Quadros (1998), Filosofia: aprendendo a pensar; de Cipriano
Luckesi e Elizete Passos (1998), Introdução à filosofia: aprendendo a pensar; de Pascal Ide (1995), A
arte de pensar. Heidegger (1964, p.14), ao falar sobre isso, assim se expressa: “Conquistamos o sentido
da palavra pensar quando nós mesmos pensamos. Para que um tal ensaio aconteça, devemos estar
preparados a aprender a pensar”.
16 Universidade Federal da Fronteira Sul
carregava dentro de si tesouros pedagógicos de grande generosidade e de
que esses tesouros poderiam, algum dia, seguir o método Socrático e dar
sua valiosa contribuição para a Educação”(p. 19). Restava saber de que
maneira tais tesouros poderiam ser colocados a serviço das crianças. Cer-
tamente, não poderia ser da maneira que costumeiramente era feito, pois
a própria história se encarregara de demonstrar que tais esforços eram inú-
teis. Isso levou Lipman a criar uma história para crianças. Não uma história
do tipo em que os adultos, que sabem tudo, benevolamente explicam aos
pequenos ignorantes as diferenças entre pensar bem e pensar mal. Deveria
ser algo que os pequenos descobrissem por si mesmos, com pouca ajuda
dos adultos. As crianças da história deveriam formar, de alguma maneira,
uma pequena comunidade de pesquisa, na qual cada uma participasse,
pelo menos em alguma medida, na busca cooperativa e na descoberta de
modos mais efetivos de pensar. Para isso, “a Filosofia precisava sacrificar
a terminologia hermética e transformarse em um romance filosófico, um
trabalho de ficção constituído de diálogos em que as ideias filosóficas es-
tariam espalhadas profusamente em cada página” (LIPMAN, 1990. p. 22).
Inicialmente, Lipman (1990) acreditava que tal “história” seria um
livro que as crianças pudessem encontrar por si mesmas quando fossem
a uma biblioteca ou que algum parente lhes desse de presente para ler e
discutir. Entretanto, aos poucos, foi constatando que era preciso filosofia
para crianças tanto na escola quanto em casa. As provas experimentais3
de melhora acadêmica convenceram Lipman de que as escolas poderiam
aceitar tal iniciativa como um programa de habilidades de pensamento
e de raciocínio, ao mesmo tempo em que as crianças, dentro da sala de
aula, dar-lhe-iam uma entusiasmada acolhida.
A partir da tentativa pioneira de Lipman (1990), muitos educado-
res, preocupados em desenvolver a qualidade do pensamento das crian-
ças, têm percebido que a filosofia é uma opção educacional estimulante
e confiável. O mesmo acontece com aqueles que estão envolvidos com
programas de humanidades para as séries iniciais do ensino fundamen-
tal. A filosofia oferece às crianças e jovens a oportunidade de discutirem
3 Em 1970, valendose dos estudos de Piaget, Lipman realizou uma experiência de campo com dois
grupos de crianças selecionadas por acaso. Cada grupo tinha cerca de 15 crianças, que tinham duas
aulas por semana durante nove semanas, tendo sido cada um deles submetido a um préteste e pósteste.
No fim do período experimental, a pontuação do grupo de controle em raciocínio lógico permaneceu
imutável, ao passo que a do grupo experimental tinha dado um salto de 27 meses. Posteriormente,
em 1975, o experimento foi ampliado para 200 crianças. Desse experimento a melhora na leitura foi
substancial e surpreendente.
Ensino de Filosofia 17
conceitos, tal como o de verdade, que existem em todas as outras disci-
plinas, mas que não são abertamente examinados por nenhuma delas. A
filosofia oferece um fórum no qual as crianças e jovens podem descobrir,
por si mesmas, a relevância, para suas vidas, dos ideais que norteiam a
vida de todas as pessoas.
É frequente ouvirmos dos professores universitários e, mesmo do
ensino médio, «reclamações» de que seus alunos apenas memorizam
os conteúdos pelos quais serão testados e não aprendem a pensar uma
disciplina. Essa noção sobre o pensar uma disciplina é bastante ardilosa.
A maioria dos professores pressupõe que certas habilidades elementares
sejam dominadas por seus alunos quando, na verdade, isso raramente
acontece. Sempre que investigamos, empregamos uma variedade de habi-
lidades cognitivas, as quais podem ser extremamente elementares, como
fazer distinções e conexões, ou extremamente complexas, como a descri-
ção e a explicação, que são composições intrincadas de habilidades mais
simples usadas de uma maneira coordenada.
Na visão de Lipman, o cerne do problema da educação contempo-
rânea devese à deficiência nas habilidades elementares e, por consequ-
ência, das habilidades mais complexas. É comum, por exemplo, os pro-
fessores de álgebra se sentirem aborrecidos quando descobrem, a cada
ano, que seus alunos não possuem as habilidades necessárias para resol-
ver problemas algébricos elementares, para não falar da incapacidade de
“pensar algebricamente”. Assim, surgem os questionamentos: quem deve-
ria ensinar tais habilidades? Se os professores de álgebra ou de qualquer
outra disciplina tivessem de ensinar tais habilidades, não correriam o risco
de descuidar sua própria disciplina? Por outro lado, se tais alunos não es-
tiverem de posse de tais habilidades, conseguirão ter êxito nas disciplinas
que exigem o domínio necessário de certas habilidades? Qual é a solução?
Continuaremos com a velha postura de encontrar o culpado?
Referências
FERRY, Luc. O que significa ter uma vida bem-sucedida? Rio de Janeiro:
Difel, 2004.
IGLÉSIAS, Maura. O que é filosofia e para que serve? In: RESENDE, Anto-
nio (Org.). Curso de filosofia. São Paulo: Zahar, 1996, pp.11-16.
1 Doutor em filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor do
departamento de filosofia da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
crescimento e sucesso do ensino médio técnico. O ponto forte da propos-
ta, ao que se diz, será a integração dos conteúdos, visando a combater o
que vem sendo chamado de “dispersão das disciplinas”. A reforma visa a
oferecer uma solução para a baixa qualidade do ensino médio público,
cujos alunos (88% das matrículas) tem uma defasagem de três anos em
relação aos alunos das escolas particulares. Essa baixa qualidade estaria
associada à fragmentação do cotidiano curricular.
O meu objetivo neste texto não é discutir a proposta, até porque
ela ainda não foi divulgada. Podemos especular, por certo, que sua im-
plementação será difícil, por uma razão facilmente compreensível: o pro-
cesso de formação dos professores não contempla estratégias de ensino
integrado; cada disciplina é objeto de uma licenciatura específica e nelas
não temos uma tradição de interdisciplinaridade. Por essa razão a força de
indução do governo começa a ser exercida a jusante do processo pedagó-
gico, a saber, no material didático que patrocina.
1.1 Começando pelo final: o edital do livro didático
Ensino de Filosofia 33
3. O ENSINO DA FILOSOFIA: Um possível
modo de situá-lo no currículo da educação
básica
Odair Neitzel1
José Pedro Boufleuer 2
1. INTRODUÇÃO
1 Mestre em educação pela UNIJUÍ. Professor de Filosofia da Universidade Federal da Fronteira Sul
(UFFS).
2 Doutor em educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor da UNIJUÍ.
razões convincentes para o que se acredita ser a importância da filosofia e
da sociologia na formação dos jovens adolescentes.
A pretensão deste texto é apresentar algumas reflexões que possam
oferecer contribuições ao debate quanto ao possível papel da filosofia no
processo formativo das novas gerações. De fato, sua presença no currículo
do ensino médio no Brasil enseja uma tematização acerca da sua espe-
cificidade temática como área de conhecimento e da sua relação com a
intencionalidade formativa da educação escolar, o que permitirá visuali-
zar um possível lugar desta disciplina no âmbito do currículo escolar. De
outra parte pretendemos sinalizar, de alguma forma, para tudo aquilo que
se põe no horizonte do operar pedagógico do filósofo-professor quando
este pisa em uma sala de aula. Ou seja, para o que se coloca em jogo,
quais problemáticas e o que precisa ser considerado quando o professor se
propõe a ensinar. Enfim, qual o seu papel, quem são os seus interlocutores
e quais as abordagens que marcam a especificidade do seu fazer.
A proposta, aqui, é pensar essas questões sob a inspiração do que
se convencionou chamar de paradigma da racionalidade comunicativa e
que, em nosso entender, apresenta-se como um modo de filosofar já não
mais metafísico. Faremos isso a partir do que podemos entender como a
questão da filosofia em perspectiva ampla, considerando o que é propria-
mente fundante na tematização filosófica ocidental e que gira em torno da
pergunta de como organizar um mundo comum, haja vista que o modo
humano de ser não é nato e que, por isso, necessita ser estabelecido. Em
outros termos, o fato de os homens não mais serem determinados pelos
instintos lhes põe a tarefa de produzir um entendimento de como tornar a
vida coletiva o mais razoável possível. Emerge com essa questão o tema
central de toda a filosofia ocidental: o da racionalidade. A partir dessa
questão põe-se propriamente o tema do conhecimento, envolvendo, por
sua vez, as relações dos indivíduos entre si e destes com a natureza.
Situado, assim, o núcleo fundante da tematização filosófica, inter-
pretado, por sua vez, na perspectiva de uma racionalidade comunicativa,
acreditamos poder pensar tanto a questão central da formação humana
como a possível contribuição do conhecimento filosófico na educação es-
colar. Com esse percurso investigativo-argumentativo pensamos oferecer
algumas indicações para as questões acima enunciadas que envolvem o
ensino de filosofia.
Ensino de Filosofia 37
Dizer que todas as áreas do conhecimento são criações humanas,
porém, não quer dizer que elas são irrelevantes, que carecem de objetivida-
de, ou que a seu respeito se pode dizer ou ensinar qualquer coisa. É exata-
mente pelo fato de os conhecimentos serem talhados ao nosso modo de ver
as coisas, ao nosso modo de percebê-las em seu alcance ou significado, que
temos a configuração do mundo humano que, enfim, é tudo o que temos.
Não há outro mundo senão este que erigimos por meio das objetivações
simbólicas concernentes aos nossos modos de ser e de interagir com os ou-
tros e com o meio. Dito de outro modo, o mundo é aquilo que se apresenta
como algo para nós, como âmbito acessível à reflexividade e horizonte de
possibilidades, num desafio constante à liberdade e ao risco das escolhas.
Voltando à filosofia, e já sem as ilusões de encontrar aí uma objeti-
vidade essencial, de que forma poderíamos falar do que fazer dos filóso-
fos? Seria possível dizer algo sobre essa área do saber sem deixar a enten-
der que aí vale dizer qualquer coisa, ou que se trata de um âmbito de livre
criação de cada respectivo professor? Em que sentido, portanto, podería-
mos falar de filosofia como um campo temático próprio, com abordagem
específica, passível de justificação como disciplina a compor o currículo
da educação básica? É nesse sentido que se põem os esforços a seguir.
Ao longo dos tempos, pelo menos desde os gregos, sempre houve
os que se entenderam como filósofos ou que foram considerados como
tais. Assim, não parece pairar dúvidas de que Heráclito, Platão, Descartes,
Kant, Heidegger, por exemplo, foram filósofos. E há, também, nos dias
de hoje e entre nós os que se apresentam ou são considerados filósofos,
como Apel, Tugendhat, Honneth, Morin, Stein, entre outros. E com o que
se ocupam os filósofos e que poderíamos, então, chamar de filosofia? A
resposta que acreditamos mais ou menos evidente é a de que os filósofos
são os que dialogam com a tradição que se tem chamado de filosofia, pois
não parece existir filósofo que seja capaz de dispensar esse diálogo com
outros também considerados filósofos.
A pergunta óbvia que se põe diante desse raciocínio aparentemen-
te circular é sobre o que tem tratado esse diálogo. Parece evidente, mais
uma vez, que um diálogo só é possível se há temas em comum. E quais
seriam esses temas? Arriscamos aqui dizer que se trata de um diálogo em
torno das questões do mundo humano. Mundo esse que já tem um tem-
po... Que não está e nunca estará sendo iniciado por qualquer que seja
a geração de humanos. Os primórdios do mundo humano podemos até
38 Universidade Federal da Fronteira Sul
imaginar, conjeturando, por exemplo, acerca do que teria estado em sua
base fundacional, mas não há como trazer argumentos factuais relativos
à sua emergência. Já a filosofia, em função de registros de que dispomos,
e que remontam há aproximadamente três milênios, parece consistir num
esforço em tornar reflexiva essa experiência do mundo humano. Uma re-
flexividade que se inicia pelos limites e possibilidades do conhecimento
humano, cuja consciência possibilitaria a instauração de modos de ser e
de interagir em níveis de maior razoabilidade, haja vista que esses modos,
para nós humanos, não se encontram previamente determinados.
A indeterminação do modo humano de ser faz com que o diálogo
sobre quem somos e sobre a que podemos aspirar se torne uma questão
que não se resolve “de vez”, mantendo-se como abertura fundamental
para a consideração à luz das sempre novas circunstâncias de cada épo-
ca e para as diferentes possibilidades de compreensão dos indivíduos e
grupos. Assim, mesmo que a tematização da condição humana possa ser
entendida como a questão que perpassa o diálogo filosófico, os modos de
fazer isso vão mudando ao longo dos séculos, configurando o que se pode
chamar de um diálogo sempre situado na história da humanidade. Com
isso, duas coisas parecem ter ficado bastante claras até aqui.
A primeira é a de que filosofia só pode chamar-se como tal enquan-
to reflexão que dialoga com a tradição do pensamento filosófico. Podem-
se, inclusive, contrapor posições de autores e concepções que compõem
a tradição da filosofia, como frequentemente ocorre, mas não se pode
prescindir, ignorando, do que nessa tradição já se produziu. Assim como
também nos demais campos de conhecimento ninguém vai começar da
estaca zero, como que “descobrindo a roda”. É da condição humana sem-
pre contar, mesmo que de forma nem sempre consciente, com as experi-
ências dos que nos antecederam.
A segunda coisa que nos parece ter ficado clara é a de que filosofia,
em sentido bem amplo, ocupa-se da condição humana e das possibilida-
des de estabelecer um modo de ser e de interagir passível de ser predicado
de razoável. Embora essa noção remeta ao tema da racionalidade, não se
trata aqui de referência a qualquer modo específico de como se estabele-
ceu sua compreensão ao longo dos séculos, mas de uma referência antro-
pológica, ou seja, como indicativo de um modo especificamente humano
de ser enquanto necessitado de fazer-se, já que não de todo determinado
pela sua constituição biológica.
Ensino de Filosofia 39
Ainda no que se refere à busca de um modo razoável de ser e in-
teragir, a segunda coisa que nos pareceu evidente até aqui, pode-se visu-
alizar, sob esse âmbito, uma espécie de “divisor de águas”: ou essa busca
se faz na perspectiva de encontrar uma resposta em definitivo e que per-
mitiria, por assim dizer, encerrar essa busca, ou essa busca se vislumbra e
se entende ao modo de uma proposição que resulta de um determinado
modo de compreensão do humano, necessitando, por sua vez, de justifi-
cação na perspectiva de que se torne reconhecida como válida. Grosso
modo, esse divisor de águas se refere ao que podemos entender por pen-
samento metafísico e pensamento não mais metafísico. Enquanto que no
primeiro modo a solução é entendida como dada “de vez”, seja como
revelação ou como descoberta, no segundo modo a solução é entendida
como construída no tempo histórico e passível de revisão. Enquanto que a
primeira, em função do seu estatuto metafísico, permitiria uma aplicação
à revelia dos sujeitos históricos, a segunda, em função do seu estatuto de
mera proposição, depende sempre da consideração das perspectivas dos
sujeitos envolvidos em sua aplicação.
Tendo chegado a esse ponto somos obrigados a dizer que o cará-
ter das considerações relativas aos vínculos entre a filosofia e a formação
humana, com implicações para a formação escolar, depende de que lado
nos pomos ante o “divisor de águas” acima referido. Mesmo que possamos
dizer que o conjunto da filosofia se ocupa da condição humana, a indi-
cação de suas possíveis contribuições na formação das novas gerações,
pela mediação da docência em espaços de ensino formal, dependerá da
percepção do seu estatuto.
E nesse sentido podemos dizer que no tempo histórico atu-
al, e no que se expressa por meio das produções e pelos autores
mais reconhecidos, a filosofia hoje se compreende como não mais
metafísica, isto é, como proposição. Trata-se do reconhecimento
de que estamos todos num mesmo barco, como que à deriva, sem
que ninguém saiba melhor, e antes de todos, para qual direção
seguir. Diante dessa percepção assume-se, então, o desafio de um
acerto de perspectivas com todos os envolvidos. Nesse pensar não
mais metafísico reconhece-se a nossa condição de seres que vi-
vem num mundo finito, em que os padrões de verdade devem ser
construídos em perspectiva imanente, o que os torna precários e
sempre provisórios (STEIN, 1996, p. 32). E, para podermos viver
3 Jürgen Habermas (1929), filósofo e sociólogo alemão, filiado à tradição da teoria crítica, é autor da
Teoria da ação comunicativa, obra em que apresenta a concepção de racionalidade comunicativa
sustentada na ação orientada ao entendimento e ao consenso, configurando um modelo de razão que,
segundo o autor, é capaz de resgatar o potencial emancipatória do agir humano, esgotado no modelo
moderno de racionalidade instrumental.
Ensino de Filosofia 41
resulta em parâmetro que permite sustentar uma teoria crítica da
sociedade, capaz de identificar as patologias do mundo humano
contemporâneo4.
Seja como reflexão crítica ou como modo de orientação pauta-
do na construção de entendimentos, a racionalidade comunicativa pode
inspirar, a nosso ver, modos de abordagem da filosofia em contextos de
ensino. Para avançar nessa direção, porém, é preciso sustentar com mais
detalhes a perspectiva da racionalidade comunicativa como modo de situ-
ar a filosofia e o seu quefazer.
A razão comunicativa é elaborada por Jürgen Habermas em sua
obra Teoria da ação comunicativa (1987), em que dialoga com pensado-
res das mais diferentes correntes de pensamento filosófico, sociológico,
psicológico, entre outras. Esse exercício de interlocução denota, por si só,
uma disposição dialógica com pretensões de ampliação dos horizontes
daquilo que consideramos como racional, resultando em nova perspectiva
de se situar diante do saber e do exercício filosófico.
A concepção de uma racionalidade pautada na comunicação e no
discurso argumentativo é apresentada como alternativa frente ao esgota-
mento da razão cognitivo-instrumental e de sua incapacidade de levar
adiante o projeto moderno de esclarecer e emancipar os homens. Enquan-
to que no modelo da razão cognitivo-instrumental o paradigmático é “a
relação de um sujeito solitário com algo no mundo objetivo, que pode
ser representado e manipulado”, no modelo de uma racionalidade comu-
nicativa o paradigmático é “a relação intersubjetiva que estabelecem os
sujeitos capazes de linguagem e ação quando se entendem entre si sobre
algo” (HABERMAS, 1987, v. 1, p. 499).
Habermas visualiza na racionalidade comunicativa um modo de
coordenação dessas interações capaz de preservar a condição de auto-
nomia dos sujeitos na configuração de sua vida coletiva. Uma autonomia
já não pautada no solipsismo ou na autorreferência dos próprios sujeitos,
como proposto pela moderna filosofia da consciência, mas nos laços in-
tersubjetivos que articulam os sujeitos no processo de constituição desse
mundo humano. Conforme Habermas,
4 É importante observar que a noção de crítica adquire sentidos distintos no pensar metafísico e no
pensar pós-metafísico. Para o primeiro sempre significa a sinalização de algo que tenha se desviado
do padrão original ou essencial, enquanto que para o segundo aparece como identificação de traços
resultantes das opções ou proposições feitas ou assumidas.
42 Universidade Federal da Fronteira Sul
O conceito de ação comunicativa se refere à
interação de pelo menos dois sujeitos capazes de lin-
guagem e de ação que (seja com meios verbais ou
extraverbais) estabeleçam uma relação interpessoal.
Os atores buscam entender-se sobre uma situação de
ação para poder assim coordenar de comum acordo
seus planos de ação e com isso suas ações (1987, v.
1, p. 124).
Dessa forma, sob o pressuposto de um pensar já não mais metafí-
sico, a racionalidade comunicativa é proposta como possível parâmetro
para a coordenação das interações que constituem o mundo humano co-
mum. Parâmetro esse que emerge do próprio modo de a linguagem estru-
turar-se com vistas ao entendimento, qualificando-se, assim, como “fato
da razão” (HABERMAS, 1989a, p. 418). Assim, consideram-se racionais
aqueles que são capazes de fazer afirmações fundamentadas e justificar
tais proposições perante o crivo da argumentação crítica. “Ser racional
significa ser capaz de apresentar justificativas razoáveis, agregar argumen-
tos aceitáveis, que se configurem em motivos suficientemente fortes, en-
quanto boas razões, para suportar a crítica que se faz presente no embate
argumentativo” (BOLZAN, 2005, p. 85).
O projeto habermasiano tem como uma de suas bases a guinada
linguístico-pragmática no âmbito da filosofia, que permite a visualização
da linguagem não como instrumento de que lançam mão os comunican-
tes, mas como médium em que esses se constituem e se revelam em suas
motivações que podemos chamar de racionais. Revela-se, assim, a dimen-
são de uma razão que já não se identifica com o operar de um sujeito mo-
nológico, mas com o operar intersubjetivo que se expressa pelo diálogo
argumentativo, permitindo pensar a coordenação das ações sociais em
suas possíveis motivações intersubjetivas ou como resultado de acordos
estabelecidos entre as partes envolvidas.
Habermas considera a linguagem o locus em que os homens ex-
pressam níveis de maior ou menor racionalidade (razoabilidade) no en-
frentamento de sua condição de espécie sem sentido posto. Isso significa
compreender a linguagem como “marca antropológica por excelência”
(ARAGÃO, 1992, p. 51), acontecimento humano primeiro e fundante
de tudo o que possa ser considerado humano. Em termos filosóficos isso
significa subscrever uma compreensão de “filosofia primeira” em que
Ensino de Filosofia 43
a linguagem efetivamente assume a preponderância na constituição do
modo especificamente humano de ser5.
Essa tomada de consciência acerca do papel fundamental da lin-
guagem na constituição da vida humana vem ocorrendo não só no campo
da filosofia, mas também em outras frentes de reflexão que se ocupam
com os fenômenos da cultura, da sociedade e das formas de subjetivação.
Tais fenômenos passam a ser compreendidos, então, a partir do pressu-
posto de que em sua lógica estruturante se encontram indivíduos cuja
espécie desenvolveu uma competência linguística. Para todos os efeitos,
“é preciso considerar que somos seres linguísticos e comunicativos, que
nos movemos na linguagem. Não temos a possibilidade, segundo Haber-
mas, de saltar fora do círculo mágico da linguagem” (NEITZEL, 2009, p.
29). É a virada linguística no campo da filosofia que permite, por sua vez,
a sustentação de um conceito de racionalidade comunicativa nos termos
propostos por Habermas.
A potencialidade estruturante da linguagem, tanto no nível dos in-
divíduos como no nível da coletividade humana, só é possível de ser veri-
ficada a partir das teorias pragmáticas, que consideram a linguagem sob o
ponto de vista de seu emprego em contextos comunicativos e não apenas
sob o ponto de vista linguístico e semântico. Isso porque na perspectiva
das teorias pragmáticas já não interessam apenas as relações entre lingua-
gem e mundo, mas, e especialmente, as relações que se estabelecem entre
os sujeitos quando a linguagem é usada para referir-se ao mundo, o que
equivale ao uso comunicativo da linguagem, presente em contextos de
diálogo.
Numa comunidade de agir comunicativo Habermas identifica dife-
rentes tipos de argumentação e discursos em que os sujeitos se comportam
de modo racional ao se expressarem sobre saberes ao mesmo tempo em
que vão justificando suas motivações implícitas. Esses discursos podem se
ocupar de configurações diferentes do mundo. Assim, no discurso teórico,
que se ocupa do mundo objetivo dos fatos constatáveis que podem ser ver-
dadeiros ou não, revelam-se racionais as pessoas que no âmbito cognitivo
-instrumental expressam opiniões fundamentadas e agem eficientemente.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
7 Desidério Murcho, em artigo acerca da natureza da filosofia e o seu ensino, alerta para as duas
formas de acabar com a filosofia, ou seja, transformando-a “numa espécie de conversa de café, vaga
e sem qualquer contato com a tradição filosófica”, ou, então, numa história dos grandes problemas
filosóficos, contada sem qualquer envolvimento nessa discussão (MURCHO, 2002, p. 15).
Referências
1. INTRODUÇÃO
2. O EDUCAR PLATÔNICO
Ensino de Filosofia 57
3. O EDUCAR A DISTÂNCIA
2 “O aluno passa a ser agente deste processo, pois depende muito do seu interesse e da sua ação para
que haja aprendizado.” In Tarouco (et allia), p. 3.
58 Universidade Federal da Fronteira Sul
do ato de filosofar quanto a natureza dialógica da autoeducação não ga-
rantem o sucesso do aprendizado da filosofia num curso a distância; o
que buscamos mostrar até agora, porém, é que o reverso também não é o
caso: aprender filosofia a distância não é uma tarefa condenada ao fracas-
so, pois, no final das contas, as características, os instrumentos e métodos
de um curso a distância se coadunam com a natureza do conhecimento
filosófico. Se o professor está fisicamente presente no diálogo com o alu-
no ou se está a centenas de quilômetros de distância é o aluno que deve
procurar os conhecimentos que percebeu não possuir. Do mesmo modo,
o diálogo é realizado com ou sem a sala de aula; o que muda é apenas o
meio no qual ele acontece. Dialogar é avaliar e pôr à prova suas ideias em
relação às ideias do outro. Leibniz e Clarke debateram as noções de espa-
ço e tempo absolutos trocando cartas no início do séc. XVIII, o primeiro na
Alemanha e o segundo na Inglaterra. Também Marx discutiu, por meio de
cartas, inúmeros conceitos filosóficos e econômicos com Engels.
Referências
Heidegger, M.: ‘What calls for Thinking?’ In D. Farrell Krell, Basic Writin-
gs: Martin Heidegger, pgs.365-391, 1993. London: Routledge.
Ensino de Filosofia 59
Rousseau, J.J.: Emílio. Lisboa: Europa-América, 1990.
1. INTRODUÇÃO
1 Doutor em educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor da
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
finalidade da vida humana e de como o ser humano poderia atingi-la.
Emmanuel Kant ocupou-se especificamente das mesmas questões, princi-
palmente na sua reflexão Sobre a pedagogia, embora tenha formulado as
bases antropológicas de sua filosofia prática na Fundamentação metafísica
dos costumes e na crítica da razão prática. Quanto aos autores contem-
porâneos, optei pelo livro sobre ética por razões metodológicas. Embora
muitos autores tratem das questões, Cortina e Martinez elaboraram um
capítulo didático sobre o tema e o tratam no e para o contexto de uma
sociedade democrática, na perspectiva teórica atual e produtiva da Teoria
do Agir Comunicativo, de Jürgen Habermas.
Espero que o texto sirva para motivar as reflexões e discussões sobre
essa temática tão relevante hoje, principalmente porque as instituições
tradicionais, como a família, a comunidade religiosa, que se ocupavam
da ‘formação do caráter moral’ das crianças e dos adolescentes, não tem
mais o mesmo desempenho pedagógico, que passou para os meios de
comunicação de massa, os desenhos infantis, os jogos eletrônicos. Mas se
a Educação é função do Estado e visa formar para a cidadania numa socie-
dade democrática, ela precisa chamar para si a tarefa da formação integral
dos educandos, e isso passa pela educação moral.
3. O QUE ENSINAR/APRENDER?
Ensino de Filosofia 77
A educação visa, pois, a conjugar a disciplina com a liberdade,
para que a primeira não se oponha à autonomia e para que seja mediação
necessária para a aprendizagem fundamental da vida moral: aprender a
guiar sua vontade pela razão, a fim de ser autônomo. Assim entendida, a
disciplina não escraviza a criança, mas faz com que ela perceba sua pró-
pria liberdade sem ofender as demais. O respeito à dignidade da criança
sempre deve estar presente para que não se promova um simples adestra-
mento. A disciplina não pode quebrar a vontade da criança. Isso levaria à
escravidão. Ela deve visar a que a criança possa, gradativamente, guiar-se
pela razão, ser autônoma. Mas a autonomia se funda na razão, não na dis-
ciplina, embora esta seja necessária para que a criança aprenda a “domar
as paixões e abrir espaço para razão”.
Considerando os períodos de desenvolvimento da criança, Kant es-
tabelece peculiaridades para três aspectos distintas na educação: educação
do corpo, educação intelectual e educação moral. A educação do corpo
se refere aos cuidados materiais dispensados por quem cuida da criança.
Os dois aspectos principais que devem ser observados quanto à educação
do corpo para que a criança chegue à autonomia são: educá-la para que
não seja escrava das próprias inclinações e assim possam seguir a própria
razão, e proporcionar uma educação ativa para que a criança, por meio de
suas atividades, possa desenvolver seus conhecimentos e habilidades.
A educação intelectual consiste no exercício de cultivar a memória,
importante para guardar as impressões sensíveis (Kant, 1996, p. 68), mas
uma cultura fundada exclusivamente na memória é superficial e forma
pessoas incapazes de pensar e de julgar por si. A educação que prima
pela memória conduz à heteronomia e à servilidade. Por isso que o autor
afirma que “a memória deve ser ocupada apenas com conhecimentos que
precisam ser conservados e que têm pertinência com a vida real” (Kant,
1996, p. 69), mas que a criança não deve se tornar um imitador cego, sob
a pena de que jamais aprenda a pensar por si mesma.
A educação moral é a culminância da formação humana e se funda
sobre máximas da razão, não sobre a disciplina (idem, p. 80). Esta é ne-
cessária como meio, para preparar a inserção do educando no âmbito da
razão. O primeiro esforço da educação moral consiste em colocar as bases
para a formação do caráter, isto é, o hábito de agir segundo certas máxi-
mas (idem, p. 81). Essa formação possui os três traços fundamentais de que
já falamos no item anterior: a obediência, a veracidade e a sociabilidade.
78 Universidade Federal da Fronteira Sul
Com a disciplina e a obediência a criança aprende que há deveres
a cumprir e que não se pode fazer tudo que se deseja. Por estranho que
pareça, para ilustrar a necessidade desse aprendizado moral, Kant apela
para o conceito de trabalho, afirmando que é “de suma importância que
as crianças aprendam a trabalhar”, não somente porque o ser humano é
o único animal obrigado a trabalhar para ter seu sustento, mas porque
no trabalho se aprende “a fazer muitas coisas necessariamente para tal”
(idem, p. 65). Ele traz consigo a necessidade, a submissão ao outro, o peso
do mundo, mas ao mesmo tempo o trabalho é liberdade, pois nele o ser
humano se descobre obra de si mesmo. No trabalho aprende-se a fazer
o que é necessário fazer e, ao mesmo tempo, se exerce a autonomia e a
criatividade. E assim, na passagem da natureza à cultura, liberdade e obe-
diência se unem sinteticamente na noção de trabalho.
O intuito de toda educação, culminando na educação moral, é o de
acompanhar a criança para que se torne capaz de se guiar pela sua pró-
pria razão, isto é, de aprender a servir-se da razão para que em tudo possa
perguntar a si mesma se as normas que está seguindo podem se tornar
universais. A criança precisa ser orientada, disciplinada e incentivada para
aprender a agir por conta própria, a guiar-se pela razão, a se tornar adulta,
preparada para a autonomia no convívio com seres também autônomos
e numa sociedade que não precisa cercear a liberdade de pensar e de se
expressar.
Ensino de Filosofia 81
6. HOMENS, DEUSES E MÁQUINAS: o
conflito entre o mito e ciência
Ediovani Antônio Gaboardi 1
1. INTRODUÇÃO
2 Supostamente por isso a perdiz não alça voos com grande altitude. O “trauma” da queda faz com
que ela prefira os lugares baixos. O mito, assim, explicaria a origem e a natureza própria da perdiz.
84 Universidade Federal da Fronteira Sul
deixar a ilha de Creta, vigiada pelo exército do rei. Mas ele advertiu seu
filho para que não voasse muito alto, para não derreter a cera com o calor
do Sol, nem baixo demais, para não umedecer as penas com a água do
mar tornando-as excessivamente pesadas. Logo que Ícaro aprendeu a voar
com desenvoltura ficou tão entusiasmado que esqueceu os conselhos do
pai. Foi subindo cada vez mais alto, imaginando até se conseguiria alcan-
çar o Sol. A cera derreteu, desmantelando suas asas, e ele morreu afogado.
Esse é o céu de Ícaro: um céu povoado de deuses. Mas é importante
lembrar que esses deuses são antropomórficos, ou seja, eles possuem uma
forma humana. E não estamos falando apenas da forma física. Os deu-
ses também têm a mesma “forma psicológica”. Isto é, eles se comportam
da mesma maneira como os seres humanos poderiam se comportar. Eles
tomam decisões similares às humanas, às vezes boas, às vezes más. Ora
são justos, generosos e bondosos, ora são vingativos, ciumentos e interes-
seiros. E os fatos do mundo físico são consequências dessas decisões dos
deuses e também das decisões dos homens. Por isso, tudo o que acontece
acaba tendo uma “moral da estória”. Nada acontece por acaso. Os fatos
sempre dizem algo para o ser humano, sempre ensinam o que deve ser
feito e o que deve ser evitado.
Ícaro, por exemplo, deixou-se levar pelo desejo de sempre querer
mais. Ele é o exemplo de alguém que não põe limites às próprias ambi-
ções. Quem tudo quer, tudo perde, diz o ditado. Evitar os excessos tem a
ver com obedecer à própria natureza das coisas. Ícaro quis ir além da sua
natureza, buscando o sol. Essa falta medida nas ações custou-lhe a própria
vida. Já Dédalo, em Atenas, deixou-se levar pelo ciúme, pelo desejo de ser
superior a todos. Acabou atraindo para si a desgraça. Foi expulso e teve de
servir ao rei de Creta. E não foi ele também o responsável pela morte de
seu filho? Afinal, homens não voam. Ele quis imitar os pássaros, fugindo de
sua natureza, e olha no que deu! E o rei Minos, então? Fez uma promessa
e a descumpriu. As consequências não tardaram a chegar. Como diz ou-
tro ditado, “Deus não mata, mas achata!”. Enfim, no mito os fatos, tanto
os humanos quanto os naturais e os divinos, sempre têm uma conotação
moral, sempre ensinam algo sobre o bem e o mal. A própria origem dos
seres naturais tem um sentido moral. A perdiz, por exemplo, voa baixo
por ter se originado de uma queda. A sua natureza animal é consequência
de uma história pregressa, que tem um sentido humano muito evidente.
E, de modo geral, sempre que o homem tenta contrariar essa ordem moral
Ensino de Filosofia 85
presente no mundo, algo de muito ruim acontece. O Minotauro, esse ter-
rível monstro, só poderia surgir de algo igualmente monstruoso: o amor
erótico de uma mulher por um animal.
O céu de Ícaro, então, é cheio de poesia. Quer dizer, ele é cheio
de sentido. Nele tudo tem um significado profundo para o ser humano,
indicando quais são as boas e quais são as más decisões. No céu de Ícaro,
pode-se sonhar com ir além do mundo físico, alcançando o divino, o sa-
grado. As coisas “falam” conosco, tocam nossos corações e nossas mentes
e nos ensinam caminhos, pois são a própria manifestação do que há de
mais elevado, que são os deuses. Mas e o céu de Galileu, como é?
ele fala de filosofia, na verdade ele está se referindo ao que definimos hoje como ciência. O que
ele está dizendo, então, é que para investigar questões como a origem do universo, a mecânica do
movimento, a causa dos eclipses, etc. não adianta estudar os textos de Aristóteles ou a Bíblia. É preciso
tentar “ler” o universo, a natureza.
Ensino de Filosofia 87
que falam sobre eles. Ou então concebemos divindades porque interpre-
tamos os fatos imaginativamente, indo além daquilo que é visto. Também
não usamos uma linguagem científica (matemática) para falar dos deuses e
de seus atos. A linguagem mítica é sempre repleta de metáforas, imagens,
sentimentos, relações arbitrárias, definições imprecisas, etc. A ciência que
nasce com Galileu desqualifica totalmente esse tipo de conhecimento.
Mas como é o céu de Galileu, então? O céu de Galileu é apenas
o vazio onde as partículas materiais (átomos) interagem entre si. Essa é a
visão de mundo que ficou conhecida como mecanicismo:
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Foi a ciência de Galileu que nos levou à Lua. Mas a Lua pode ser
vista também pelo olhar da bailarina ou dos amantes. Não precisamos re-
duzir seu significado, dizendo que é apenas um satélite da Terra, com 1/6
de sua gravidade. Ela é isso do ponto de vista físico, mas pode ser muito
mais do ponto de vista humano.
Um dos grandes desafios que mantém a filosofia viva após mais de
dois mil anos de história é a tentativa de encontrar referências para a ação
humana, tanto individual quanto em sociedade. Se a ciência negou as
respostas divinas, é preciso encontrar novas respostas.
É uma necessidade humana tentar dar sentido para as ações. Não
queremos agir simplesmente por agir. Somos limitados pela natureza de
nossos corpos e também pelas condições físicas externas. Entretanto, o
próprio desenvolvimento da ciência e da tecnologia mostra o quanto su-
peramos esses limites. Mas a pergunta sempre se coloca de novo: qual o
sentido daquilo que fazemos?
Também não nos contentamos em admitir que esse sentido é subje-
tivo. Essa solução seria fácil, mas não é viável se generalizada. Existem in-
tenções individuais que são inaceitáveis na vida em sociedade. Temos que
buscar, então, alguma referência objetiva, que valha para todos. Todas
essas questões estão sempre em jogo no nosso dia a dia e se manifestam
na música, no cinema, nos noticiários, no sistema jurídico, nas decisões
políticas, no cotidiano das escolas, etc. Refletir sobre isso é uma das prin-
cipais formas de fazer filosofia.
Referências
1. INTRODUÇÃO
3.1 DEMOCRACIA
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Referências
{
Abelardo
1. Ensino Schopenhauer
Gilson
Tensão/
Dilema
{ {
Filosofia Kant
2. O que
ensinar
Filosofar Hegel
5 No caso da filosofia isso parece não estar claro. Novamente, a proposta de Obiols joga uma luz
sobre esse problema.
7 Contudo, pode tornar-se um problema na medida em que se pensa que o educando deve receber
uma educação o mais abrangente possível e não ser doutrinado a essa ou aquela escola de pensamento.
122 Universidade Federal da Fronteira Sul
primeira tentativa – e seguindo Deleuze – pode-se recorrer à etimologia e
análise do nome: filosofia. De imediato temos a célebre referência de que
filosofia é o amigo da sabedoria8. A origem da palavra “filosofia” se dá
por uma contestação, a negação de que não se é aquilo ou não se possui
aquilo que outros presumem que se tenha ou que se é. Contudo, se está
próximo disso, numa relação íntima, de amizade e, porque não dizer,
de conhecimento também. O filósofo, o amigo da sabedoria, tem uma
relação íntima com algo que é desejado e reconhecidamente de valor, a
sabedoria. Entretanto, não a possui.
Esse não possuir pode significar duas coisas: que esse que se decla-
ra filósofo não é sábio em nenhuma medida, mas persegue essa sabedoria.
Ou, ainda, que possui certo conhecimento, sabedoria, mas não em sua
totalidade, apenas parte dele, não sendo, dessa maneira, um ignorante
completo, mas, também, nenhum sábio. Apesar de ser uma análise elu-
cidadora e interessante, em um primeiro momento, por diversos motivos,
o principal é que não ajuda a resolver a questão sobre a filosofia e sua
natureza. Isso significa que, infelizmente, a autodenominação pitagórica
não serve para uma determinação precisa da natureza da filosofia enquan-
to um tipo de conhecimento, ou ciência (como alguns podem preferir).
Então, tentar delimitar de forma suficiente a natureza da filosofia e dessa
derivar o que pode ou não ser ensinado recorrendo a história do surgimen-
to de seu nome não é suficiente, para não dizer inútil.
Diferentemente, se for pensado nas ciências especializadas/aplica-
das e nas ciências naturais/exatas, parece não haver esse problema. Desse
modo, o pronunciamento e o ouvir nomes como engenharia, química,
física, administração, biologia, matemática, psicologia, história, e outros
tantos, já parece implicar em uma compreensão do objeto de estudo ou,
pelo menos, dos campos desses objetos de estudo. O mesmo, infelizmen-
te, não acontece com a filosofia. Também se poderia fazer alusão que isso
é assim porque o desenvolvimento e consolidação da ciência no séc. XVIII
e a separação da filosofia da religião a esvaziaram, precisando ela, então,
a filosofia, procurar objetos de estudo e justificativas que não fossem nem
religiosas ou científicas.
Outro expediente que pode ser usado é recorrer à definição de
pensadores/filósofos importantes na história da filosofia (independente
8 Conta-se que essa teria sido a resposta de Pitágoras àqueles que o identificaram com um sábio na
Grécia antiga há mais de 2.500 anos.
Ensino de Filosofia 123
dos motivos dessa importância e de suas convicções). Um procedimento,
como o anterior, louvável, afinal, se alguém quer saber o que algo é nada
mais sensato (em princípio) do que recorrer àqueles que são considerados
os grandes representantes de sua ciência e verificar o que eles dizem a res-
peito. Apesar de ser um recurso interessante e enriquecedor ele também
traz dificuldades específicas e não menos difíceis de resolver.
Hume, por exemplo, em Investigação acerca do entendimento hu-
mano, seção I, Das diferentes classes de filosofia, fala da existência de
duas espécies de filosofia, a fácil e a abstrusa. A fácil é a que seduz, encan-
ta e arregimenta seguidores por onde passa. A abstrusa (a filosofia verda-
deira, assim considerada por ele por ser um discurso rigoroso e buscar os
fundamentos daquilo que existe) não, ela é difícil, vista como inútil, afasta
as pessoas. “Certamente, a filosofia fácil e terá sempre preferência, para a
maioria dos homens, sobre a filosofia exata e abstrusa; e por muitos será
recomendada, não apenas como a mais agradável, mas também como
mais útil do que a outra.” (HUME, 1972, p. 6)
Schopenhauer em O mundo como vontade e representação diz que
“A filosofia nada mais é do que a perfeita e correta repetição e expressão
da essência do mundo” (SCHOPENHAUER, 2004, p. 94). Heidegger, em
Conceitos fundamentais da metafísica: mundo, finitude e solidão, apro-
priando-se da sentença de Novalis dirá “A filosofia é propriamente uma
saudade da pátria, um impulso para se estar por toda a parte em casa”
(HEIDEGGER, 2003, p. 9) ou, ainda “Ao contrário, apesar de só o saber-
mos obscuramente, ela é algo que, em sua totalidade e em seu ponto mais
extremo, dá lugar ao acontecimento de uma expressão e de um diálogo
derradeiros do homem”(HEIDEGGER, 2003, p. 6). E, para finalizar com
Heidegger “Filosofia é filosofar” (HEIDEGGER, 2003, p.5).
Wittgenstein afirma no Tractatus logicus-philosophicus que “A filo-
sofia não é uma das ciências naturais... a filosofia não é uma teoria, mas
uma atividade” (WITTGENSTEIN, 2001, 4.112). Pode-se recorrer, tam-
bém, a uma grande enciclopédia filosófica reconhecida por sua seriedade
e renome, por exemplo, Oxford companion to Philosophy, editada por
Honderich, e será lido em um dos trechos que “[a] filosofia pensa sobre o
pensamento”9 (HONDERICH, 2005, p. 702). Deleuze, de forma não me-
nos enigmática, afirma que “A filosofia e a arte de formar, de inventar, de
fabricar conceitos” (DELEUZE E GUATTARI, 2001, p. 10), ou, ainda, dita
9 “The shortest definition, and it is quite a good one, is that philosophy is thinking about thinking.”
124 Universidade Federal da Fronteira Sul
a mesma coisa de outro modo “A filosofia não é nem comunicativa, assim
como não é contemplativa e nem reflexiva: ela é, por natureza, criadora
ou mesmo revolucionária, uma vez que não para de criar novos concei-
tos” (DELEUZE, 2007 p. 170).
Agora, quem for a Russel poderá ler que “A característica essen-
cial da filosofia em virtude da qual ela é um estudo que se distingue
do da ciência, é a crítica” (Russel: 2005, p. 117), em Os problemas da
filosofia diz:
10 Pensa-se, aqui, principalmente no professor do ensino médio (especialista ou não) que tem que se
ver com a tarefa de montar um currículo de ensino de filosofia.
11 Em alguns casos, para não dizer todos, tornará a tarefa mais complicada e difícil.
Ensino de Filosofia 125
limitadas por tais circunstâncias – e usá-las como uma espécie de modelo
para a construção de um currículo mínimo de filosofia12.
Resta, ainda, outro expediente, tentar definir ao que se refere espe-
cificamente o termo filosofia e conquistar uma ideia de sua natureza. Para
tanto, é possível usar o que se pode chamar de procedimento negativo,
comparativo e positivo13. Da seguinte forma, inicialmente pode-se fazer
um elenco do que a filosofia não é, na esperança de identificar algum
elemento que torne possível a sua identificação e delimitação de sua iden-
tidade e, ao final, sua natureza.
Então, é possível dizer, por exemplo, que a filosofia não é religião.
Religiões e cultos religiosos têm a fé (crença não justificada) como um
pressuposto necessário e indiscutível. Além do mais, a aceitação passiva
dos dogmas é necessária. Apesar de filósofos poderem fazer de sua filo-
sofia uma espécie de religião e de seu pensador preferido uma espécie de
santo ou ser superior, os conhecimentos e afirmações derivados de sua
filosofias não se baseiam na fé, mas em uma argumentação, no mínimo
razoável e justificável. Desse modo, poderíamos dizer que filosofia não é
religião ou uma forma dela.
Filosofia seria uma espécie de arte? Tal qual o artista o filósofo
pode estar submetido a certas forças criadoras advindas do que se pode
identificar como inspiração. O artista cria, o filósofo cria, o artista fala
de forma cifrada do mundo, o filósofo também. Mas a visão que o artista
talvez possa ter do mundo não é ordenada ou sistematizada como a do
filósofo. A inspiração artística, e sua criação, é livre, e a do filósofo será
traduzida em argumentos que não podem ser livremente associados. De-
vem ter uma ordem e coerência. Pode-se, então, dizer que filosofia não
é arte, embora possa a ela se parecer, mas, ainda, não se sabe o que é a
filosofia.
Por último, pode-se compará-la com a ciência e dizer que o filó-
sofo procura, tal qual o cientista, rigor e sistematicidade em seu discurso.
Contudo, a ciência trata de objetos que se submetem a certos meca-
nismos de prova, diferentemente daqueles da filosofia, o que tornaria
impossível dizer que a filosofia é uma ciência tal qual a entendemos.
12 Pressupõe-se, aqui, a formação de um estudante de ensino médio deva ser a mais abrangente
possível.
13 Recurso que não deve ser estranho aos “heideggerianos de plantão”. Que, aqui, serve de
“inspiração”.
126 Universidade Federal da Fronteira Sul
Portanto, a filosofia não é uma ciência14 e, entretanto, ainda não sabe-
mos o que ela é.
Como foi percebido, todos os expedientes usados acima, apesar
de serem interessantes e esclarecedores não resolvem a questão principal.
Obviamente que ajudam a, é claro, digamos, aparar as arestas, dar uma
direção, evitar equívocos. Mas não respondem o que se quer e é central:
saber o que é a filosofia.
Agora, quanto ao ensino, a pergunta “O que será ensinado?” não
representa um desafio menor. No caso da filosofia o que é isso que deve
ser ensinado? Um conhecimento, mas sobre o quê? Todo conhecimento
debruça-se sobre certos problemas e questões, os quais tenta resolver ou
esclarecer, pelo menos. No caso da filosofia, onde estão esses problemas
sobre os quais há um conhecimento que tenta resolvê-los ou esclarecê
-los? Nos textos? No cotidiano? Na cabeça de quem ensina? Na cabeça do
filósofo? São problemas inventados? Não existem na realidade? A resposta
a essas questões são importantes na medida em que podem levar a certas
ideias erradas ou, até mesmo, preconceitos com relação à filosofia e deter-
minar, assim, o que é ensinado15.
Por exemplo, muitos podem dispensar os textos filosóficos sob a
justificativa (dita muitas vezes em alto e bom som) de que eles não se
referem à realidade e são, até mesmo, uma forma de manter os alunos
alienados com respeito a sua condição. Ora, como alguém pode dispensar
2.500 anos de história sob essa alegação? Que existem filósofos e filosofias
difíceis é certo. Retóricos, lacônicos e prolixos quando não o deveriam ser,
com certeza. Mas, dispensá-los sob a justificativa de que seus problemas
não são reais, verdadeiros ou que não dizem respeito à realidade, seriam
uma espécie de ficção e não é aceitável. Os problemas filosóficos dizem
respeito e derivam de problemas reais e a eles querem fazer referência.
Se a exposição é aceitável ou não, justificável ou não, bem feita ou não,
é outro problema. Normalmente, o ataque à filosofia como um todo e a
certos filósofos ou correntes filosóficas apenas esconde certas preferências
(em sua maioria ideológicas) daqueles que emitem a crítica e não são jus-
tificáveis ou legitimas. Com isso se diz que é um falso dilema ou problema
a questão sobre onde estão os problemas ou questões filosóficas e ao que
14 Nesses moldes.
15 Lembre-se de que grande parte dos profissionais que ensinam filosofia não tem formação na área.
Isso não é uma crítica a suas capacidades e habilidades profissionais.
Ensino de Filosofia 127
elas dizem respeito. Elas são exploradas nos textos filosóficos e tem sua
origem no mundo, na realidade, no cotidiano.
Outra questão controversa é com relação ao eixo em torno do qual
a filosofia ou abordagens filosóficas serão desenvolvidas: será seguida uma
história dos problemas? Das escolas filosóficas? Dos filósofos? Períodos fi-
losóficos? (considerando que todas essas orientações sejam distintas entre
si). Considera-se, seguindo Obiols, entre outros, que a apresentação de
um problema, mesmo que atual, para ser abordado de modo satisfatório
deverá ser remetido à história da filosofia e as origens nessa mesma histó-
ria, ou seja, quando e por quem começou a ser tratado como problema e
porque isso aconteceu.
Normalmente, um eixo que é aconselhado e seguido (sem maiores
questionamentos) como sendo o menos problemático é o que diz respeito
aos períodos históricos da filosofia e, dentro desse, abordarem-se temas,
filósofos e problemas de tal forma a mostrar um fio condutor e coerência
no desenvolvimento de certo tema. Conjuntamente com isso, as discipli-
nas temáticas formam um quadro do ensino de filosofia. Essas, mais fle-
xíveis do que as anteriores. Com relação aos períodos ter-se-ia o antigo,
medievo, moderno e contemporâneo. Quanto ao eixo temático, poderia
ter-se filosofia da matemática, epistemologia ou filosofia da ciência, ou
ambas, filosofia da mente ou filosofia da linguagem, lógica ou filosofia
da lógica, introdução à filosofia, entre outras. O eixo temático seria mais
flexível e poderia refletir a tendência de ensino de um curso em um local
sem prejuízo a uma formação básica e sólida. Isso em nível de graduação.
Em nível de ensino médio poderia ser tomada a mesma referência sem
o aprofundamento e especialização exigida em uma graduação, ou seja,
noções gerais e introdutórias. Todavia, aqui, o pano de fundo é o dilema
entre filosofia e o seu ensino e alguém poderia perguntar da viabilidade e
legitimidade de tais procedimentos e escolhas de tal forma a colocar em
dúvida qualquer tipo de orientação. E a resolução do que e como ensinar
em filosofia ficaria, novamente, em suspenso e sem resposta.
Guilhermo Obiols, contudo, ao analisar essa questão da relação
entre ensino e filosofia resgata a opinião de três filósofos: P. Abelardo, A.
Schopenhauer e E. Gilson. Julga-os relevantes e importantes para colocar
a mostrar o que pretende: que não há incompatibilidade entre a natureza
do fazer filosófico e o seu ensino. Mas uma questão se põe com relação ao
ensino de filosofia no ensino médio e que diz respeito ao que se ensina: a
128 Universidade Federal da Fronteira Sul
tensão entre filosofia e filosofar, conteúdo x habilidades e/ou competên-
cias. E que aponta para outra: formam-se filósofos e/ou apenas pessoas
conhecedoras da história da filosofia?
O testemunho de Descartes em suas Regras para a direção do espí-
rito parecem acabar com todas as esperanças daqueles que acham que por
saberem muito da história da filosofia, ou seja, terem um conhecimento
vastíssimo, seríamos filósofos. Diz ele: “(...) nem nos tornaremos filósofos
se, tendo lido todos os raciocínios de Platão e Aristóteles, não pudermos
formar um juízo sólido sobre quanto nos é proposto. Com efeito, daríamos
a impressão de termos aprendido não ciências, mas histórias” (DESCAR-
TES, 1998, p. 19). Kant, na Crítica da razão pura, também parece jogar um
balde de água fria naqueles que julgam que é possível aprender filosofia
quando diz que se pode apenas aprender a filosofar16. Se forem acrescen-
tados os relatos de Abelardo (séc. XIII), Schopenhauer (séc. XVIII) e Gilson
(séc. XX) sobre a relação entre o ofício de ensinar e o fazer filosofia a situ-
ação fica ainda mais difícil. Pois, possivelmente, o leitor incauto será con-
vencido, no mínimo, da incompatibilidade entre a filosofia e seu ensino.
De forma resumida, todos esses três filósofos desdenharam e manifestaram
um grande descrédito e aversão ao ofício do ensino de filosofia, ao qual se
submetiam como reconhecem, por pura necessidade econômica.
Abelardo é explícito ao testemunhar que foi a extrema pobreza e
a falta de opções que o levaram a ensinar filosofia. Schopenhauer consi-
derava um estorvo sem medidas ao verdadeiro pensador ter que dar aulas
e, para Gilson, o ensino era uma espécie de moléstia. Para todos, fazer
filosofia e ensiná-la não eram coisas que andavam juntas. Alguém poderia
facilmente concluir sobre a incompatibilidade entre fazer filosofia e ensiná
-la, podendo, até, desistir de fazê-lo ou, pelo menos, disseminando a ideia
da incompatibilidade entre as duas atividades.
Obiols lembra-nos de duas coisas importantes para diminuirmos
(senão anular) o peso de tais afirmações anteriores sobre o ensino da filo-
sofia. A primeira diz respeito que Abelardo, Schopenhauer e Gilson estão
criticando mais o sistema educacional que lhes obriga a ensinar certos
temas e não os deixa propriamente filosofar, em sala de aula. Obviamente
que uma situação dessas somente pode ser vista como um fardo ou uma
moléstia, tal qual eles relatam. A segunda é que se olhar-se para história da
filosofia poderá ser percebido que filosofia (seu ensino) e filosofar sempre
16 Que será citado mais adiante, assim como os outros filósofos citados na sequência.
Ensino de Filosofia 129
andaram juntas e que muitos importantes filósofos foram grandes profes-
sores.
Obiols cita Pitágoras, Platão e Aristóteles que além de grandes fi-
lósofos, foram grandes professores e fundaram “escolas” filosóficas. Sinal
de que não deveriam ver uma incompatibilidade tão grande entre filosofia
e filosofar, ou seja, julgavam que era possível ensinar de algum modo
filosofia e fazê-la ao mesmo tempo. Cita, ainda, além de Abelardo, Scho-
penhauer, Gilson, Kant e Hegel, todos considerados importantes filósofos
e excelentes professores. Para ele isso seriam exemplos de que não há,
como poderiam nos fazer crer os três filósofos mencionados, assim com
Descartes e Kant, uma incompatibilidade entre ensino de filosofia e filo-
sofar como poderia supor um leitor incauto desses pensadores. A partir
dessa constatação, Obiols propõe que a atividade de ensino de filosofia
devea ser entendida como algo em que o professor introduz o aluno em
uma prática da qual ele é especialista: a da pesquisa e produção filosófica.
Solucionada a incompatibilidade entre o ato de ensinar e a filosofia,
resta outro dilema/problema, aquele que diz respeito ao próprio ato de
ensinar, ensina-se filosofia (conteúdos) ou a filosofar?! Obiols chama Kant
e Hegel como autores paradigmáticos e com posições opostas (aparen-
temente) para mostrar que não há incompatibilidade nenhuma e que ao
mesmo tempo em que se ensina filosofia (conteúdos) se está ensinando a
filosofar. Kant é paradigmático exatamente por sua afirmação de que so-
mente se pode ensinar a filosofar, afirmação presente na Crítica da razão
pura ao explicar o que é a filosofia escolástica e a cósmica.
17 Lembra-se o leitor que a exposição não visa a uma avaliação dos elementos constituintes da proposta
de Obiols. Julga-se que tal modelo deve ser avaliado na prática e no dia a dia escolar. Acrescenta-se – e
isso não deixa de ser um julgamento – as novas tecnologias de informação que deverão ser integradas
àquela prática e que Obiols não chama à discussão. Somente a título de lembrança lembra-se de P.
Levy e sua posição com respeito as novas tecnologias – sua obra Tecnologias da inteligência: o futuro
do pensamento na era da informática. Traduzido para o idioma português e publicado pela Editora
Ensino de Filosofia 131
Figura 02 - Modelo forma geral
Aprender filosofia
e a filosofar
Conceitos Atitudes
Processo de
Parte inferior Aprendizagem
do gráfico é a
mais importante Processo de
2º Obiols ensino filosófico
Estratégias
Desenvolvimento Encerramento
Início concreto abstrato concreto
Provocar perplexidade
Fazerem ‘seu’ o problema
Primeiro momento
Despertar o interesse
{
alunos
Compreender de forma
crítica as respostas
Desenvolvimento
abstrato
Apresentar sua posição e argumentos
Terceiro momento
Recapitular
Encerramento Sintese
Referências
1. INTRODUÇÃO
4. A ESTÉTICA
5. A INTERDISCIPLINARIDADE
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Referências
1. INTRODUCCION
2. CIUDADANÍA Y EDUCACIÓN
DOMINGO MORATALLA, T., “La banalidad del bien. De los derechos hu-
manos a la responsabilidad”, en GRACIANO GONZÁLEZ ARNAIZ (ed.),
Derechos humanos. Nuevos espacios de representación, Madrid: Escolar
y Mayo, Madrid, 2012, pp. 115-138.
1. INTRODUÇÃO
2 Doutor em Filosofia pela PUCRS. Professor do curso de filosofia da Universidade Federal da Fronteira
Sul (UFFS).
No intuito de equacionar as questões, divide-se o texto em duas par-
tes. A primeira diz respeito à capacidade e incapacidade para o diálogo,
na qual será abordada, inicialmente, a capacidade para o diálogo como
atributo humano, bem como as condições para a sua realização: o saber
ouvir e o encontro de uma linguagem comum; e, em seguida, interpreta-
se a incapacidade para o diálogo enquanto fenômeno técnico-científico e
social e, posteriormente, enquanto um fenômeno educacional, de modo a
analisar a incapacidade para o diálogo em sala de aula. A segunda parte
trata de discorrer sobre a possibilidade de superação da incapacidade para
o diálogo, a partir do próprio diálogo que se estabelece no ambiente da
sala de aula.
4 Sobre isso Gadamer faz uma espécie de prognóstico: “A técnica moderna de informação, que
talvez somente se encontre nos inícios de sua perfeição técnica, se se deve crer nos profetas técnicos,
tornará supérfluos livros e jornal e com maior razão o autêntico ensinamento que cresce de encontros
humanos, que pode surgir dos contatos humanos” (GADAMER, 2000, p. 131).
180 Universidade Federal da Fronteira Sul
destacou a conversação telefônica, pois, talvez fosse, em sua época, o
avanço mais significativo em termos comunicação entre as pessoas. Hoje,
contudo, diante dos avanços na área das tecnologias da informação e co-
municação certamente poderíamos recolocar um conjunto de questões
acerca de tais tecnologias que têm contribuído ou não para o encontro
intersubjetivo com o outro, mediante o diálogo.
Já a incapacidade para o diálogo enquanto um fenômeno pedagó-
gico refere-se de certo modo à função do professor, ensinar, e a transfor-
mação da educação em um ensino de massa. Essa atribuição histórica do
professor como responsável em ensinar coloca-o no limiar entre a capa-
cidade e a incapacidade para o diálogo, o qual, não poucas vezes, acaba
cedendo a esta, pois ele crê que, como sendo o único responsável em en-
sinar, deve sempre ser o que mais fala ou o único a falar em sala de aula.
A sua crença está, por vezes, fundada no mito da transmissão, em que os
conhecimentos (conteúdos) somente podem ser ensinados pelo professor
mediante a própria transmissão e aprendidos somente pelos alunos.
Desse modo, o professor torna-se o único detentor da palavra,
pois, mediante esta, ele é capaz de transmitir os conhecimentos (con-
teúdos) aos estudantes. A palavra aqui é considerada um meio ou um
instrumento de transmissão de conhecimentos5. Nesse sentido, a palavra
não opera o pensamento, apenas serve como um meio para transmiti-lo.
Assim, o professor que acredita que o ensino somente pode ser realizado
mediante a transmissão de conhecimentos (conteúdos) aos alunos crê
também que somente ele pode ou deve falar, o que o torna incapaz para
o diálogo.
Por outro lado, a transformação da educação em ensino das mas-
sas não só parece ter favorecido a democratização da educação, mas, ao
mesmo tempo, tornou o ensino precarizado, assim como estabeleceu uma
barreira quase intransponível ao diálogo. Essa barreira ao diálogo consiste
na agregação de um número considerável de estudantes numa mesma sala
de aula, o que acaba dificultando ou mesmo impossibilitando o diálogo;
este, para que possa ocorrer autenticamente, necessita de um contato, de
um encontro, de uma intimidade que acontece somente num círculo pe-
queno de pessoas. Contudo, o círculo de pessoas na maioria das salas
5 Ao contrário, a palavra não pode ser tomada como um meio ou instrumento do conhecimento,
ou mesmo do pensamento, pois ela é própria expressão do pensamento, ou seja, somente podemos
pensar dentro de uma linguagem.
Ensino de Filosofia 181
de aula tem se ampliado consideravelmente, a ponto de ser impossível o
diálogo. Nas palavras de Gadamer (2000, p. 136):
Referências
6 O autor trabalha em uma das partes de seu texto, Incapacidade para o diálogo, três tipos de diálogo,
a saber, negociação oral, diálogo terapêutico e diálogo confidencial (cf. GADAMER, 2000, p. 136-
140).
Ensino de Filosofia 185
GADAMER, H-G. A incapacidade para o diálogo. In: ALMEIDA, C. L. S.
de; FLICKINGER, H. G; ROHDEN, Luiz. Hermenêutica filosófica: nas tri-
lhas de Hans-Georg Gadamer. Porto Alegre: Edipurs, 2000. p.129-140
GADAMER, H-G. Verdade e método II: complementos e índice. Petrópo-
lis, RJ: Vozes, 2002.
GARCIA, C. B; FENSTERSEIFER, P. E. Diálogo na política e na educação
republicana. Disponível em: <http://www.revistas.unilasalle.edu.br/in-
dex.php/Dialogo/article/view/193/207> Acesso em: 22 out. 2013.