You are on page 1of 186

Ensino de Filosofia

Universidade Federal da Fronteira Sul

Ensino de Filosofia
Organizadores:
Xxxxx Xxxxx Xx

Chapecó
setembro/2014
Ficha Catalografica
Sumário

Prefácio������������������������������������������������������������������������������� 7
1. OS DESAFIOS DO ENSINO DE FILOSOFIA: pensar-se a
si mesmo�������������������������������������������������������������������������� 13
Altair Alberto Fávero

2. PRIMAVERA DA FILOSOFIA NO CURRÍCULO DO


ENSINO MÉDIO?��������������������������������������������������������������� 25
Ronai Pires da Rocha

3. O ENSINO DA FILOSOFIA: Um possível modo de


situá-lo no currículo da educação básica��������������������� 35
Odair Neitzel
José Pedro Boufleuer

4. ENSINAR FILOSOFIA A DISTÂNCIA: isto é possível?53


Marco Antonio Franciotti
franciotti@icloud.com

5. PARA PENSAR SOBRE O ENSINO DE ÉTICA OU A


EDUCAÇÃO MORAL��������������������������������������������������������� 61
Luiz Gilberto Kronbauer (UFSM)

6. HOMENS, DEUSES E MÁQUINAS: o conflito entre o


mito e ciência������������������������������������������������������������������� 83
Ediovani Antônio Gaboardi

7. FILOSOFIA POLÍTICA PARA O ENSINO MÉDIO: uma


proposta de abordagem�������������������������������������������������� 99
Clóvis Brondani
8. NATUREZA DA FILOSOFIA E SEU ENSINO: o modelo
de forma geral�������������������������������������������������������������� 119
Evandro Bilibio

9. A ESTÉTICA COMO PRESSUPOSTO


INTERDISCIPLINAR: em arte e filosofia no ensino
médio������������������������������������������������������������������������������ 137
Joce Mary Mello Giotto
Gerson Witte**

10. EDUCAR PARA LA AUTONOMÍA: ética y ciudadanía


en perspectiva hermenéutica�������������������������������������� 155
Tomás Domingo Moratalla
tomasdomiungo@filos.ucm.es

11. PRÁTICA DOCENTE E HERMENÊUTICA: diálogos em


sala de aula��������������������������������������������������������������������� 175
Eduardo Morello
Elsio José Corá
Prefácio

Ao escrevermos um prefácio o que fazemos é um convite à leitura


daquilo que outros escreveram. Por havermos lido anteriormente a obra
nos colocamos na posição de apresentá-la de forma breve e desafiadora
para que outros sejam instigados a lê-la. Eis minha tarefa aqui – convidá
-los a ler os capítulos que seguem, em sua multiplicidade de abordagem
escolhidas para a reflexão.
O tema central do livro é o ensino da filosofia na escola básica.
Um tema que ao longo desses últimos anos, no Brasil, tem assumido im-
portância e visibilidade em congressos, seminários, pesquisas e em pro-
duções bibliográficas. No entanto, há um espaço em que tal visibilidade é
mais fundamental e que, parece-me, ainda ocorre timidamente – os cursos
de licenciatura em filosofia. Nesse caso, a UFFS, Universidade Federal
da Fronteira Sul – Chapecó, uma universidade muito nova, um curso de
filosofia, por conseguinte, também muito novo, já assume o compromisso
com o ensino da filosofia no ensino médio ao nos brindar com a organiza-
ção dessa coletânea.
Os onze (11) capítulos que compõem o texto foram escritos por
professores de filosofia e professores de filosofia da educação, de diferen-
tes instituições de ensino superior, do Brasil e da Espanha. Esses professo-
res, a partir de sua paixão filosófica, realizaram um exercício de reflexão e
de problematização sobre questões gerais acerca da relação entre filosofia
e educação, filosofia e ciência. Entretanto, o ensino da filosofia, tema cen-
tral, é tratado na maior parte dos textos.
Altair Fávero, colega que inscreveu seu nome na luta pelo retorno
da filosofia à escola, nas últimas décadas, no RS e no Brasil, problematizou
o ensino da filosofia tendo como referência básica as ideias de Mattew
Lipmann e sua defesa do desenvolvimento de habilidades cognitivas que
potencializam o exercício filosófico de crianças e jovens. A partir desse
argumento Altair defende que um dos principais desafios do ensino da
filosofia para o século XXI é o pensar-se a si mesmo, a ser efetivado pelos
estudantes que se encontram, na escola, com a filosofia.
O capítulo assinado por Ronai Rocha, querido colega com quem
compartilho, no curso de filosofia da UFSM, ideias, desafios e propostas,
traz uma problematização atual e urgente: o ensino médio, espaço institu-
cional que abriga a disciplina filosofia. Ronai nos desafia a pensar a partir
das condições em que se encontra esse nível de ensino, especialmente no
RS, e das modificações que vem sendo feitas em seu desenho curricular,
desde 2012. Como forma de avançar nessa discussão, o autor apresenta
sua proposição de uma perspectiva interdisciplinar do currículo escolar,
a partir da filosofia, que é, segundo ele, “uma região da reflexão humana
que se ocupa com os aspectos mais gerais da realidade”.
José Pedro Boufleuer e Odair Neitzel, desde uma perspectiva da
filosofia da educação, inspirados em Jürgen Habermas, oferecem-nos um
belo texto em que propõem como questão central a formação humana,
que na escola recebe uma potente contribuição da filosofia. Considerada
uma reflexão do interdisciplinar a filosofia pode efetivar um diálogo com
as diversas disciplinas escolares. Como um saber específico, afirmam os
autores, “a filosofia procura contribuir na formação de sujeitos racionais
com competências com vistas à inserção no mundo da vida”, eis então a
dimensão da formação humana acionada pelo encontro com a filosofia.
“Ensinar filosofia a distância: isto é possível?”, de Marco Franciotti,
provoca-nos a pensar sobre o ensino a distância, a partir de uma abor-
dagem que dialoga com a tradição platônica, kantiana e heideggeriana.
Destacando a dimensão da transmissão do conhecimento pelo mestre, a
partir de Platão, o autor defende que a aprendizagem não depende do en-
sino, mas de um autoensinar. Como, diz Marco, para Kant a filosofia não
se ensina, mas ensina-se a filosofar e, com Heidegger, “educar é habilitar o
indivíduo para o exercício de sua capacidade de aprender”. Então, a “indi-
cação dos caminhos não requer, necessariamente, um local geográfico es-
pecífico; ela não precisa ocorrer numa sala de aula, em proximidade física
do aluno com o professor” e, por isso, não é irrelevante ou inconcebível
pensar-se no ensino de filosofia à distância. A atividade reflexiva “é posta
8 Universidade Federal da Fronteira Sul
a funcionar por uma decisão do indivíduo em solilóquio”, assim o autor
encaminha a continuidade de sua reflexão, mas paro por aqui.
Luiz Gilberto, colega professor da UFSM, escreve sobre o ensino
de ética/educação moral interrogando sobre os objetivos desse ensino e,
como decorrência, sobre os possíveis conteúdos de tal ensinamento. Ao
final, discorre sobre a dimensão metodológica desse ensino. Aristóteles e
Kant são chamados para o diálogo, assim como professores/filósofos con-
temporâneos como Adela Cortina e Emílio Martinez e o resultado é uma
instigante reflexão. Uma bela reflexão a ser compartilhada.
Homens, deuses e máquinas: o conflito entre mito e ciência, de
Ediovani Antônio Gaboardi, a partir da lembrança da música Tendo a Lua,
da banda Os Paralamas do Sucesso, discorre sobre uma visão científica,
que é “representada na música por Galileu, e uma visão mítica, represen-
tada por Ícaro”. Ao longo do capítulo o autor argumenta criticamente so-
bre essas duas posições, destacando os elementos que as constituem. Se a
ciência assumiu centralidade em nossa sociedade, ela não nos basta como
explicação daquilo que nos acontece, pois é preciso ir além, “estabelecen-
do preferências, tomando decisões, colocando objetivos em prática etc.
Mas com que critérios você faz isso? A ciência, o estudo da natureza, não
pode fornecer referência nenhuma”.
Clóvis Brondani inicia seu texto com um conto de Borges para
mostrar “como problemas e questões tipicamente filosóficas podem apa-
recer cotidianamente e não apenas na história da filosofia”. Esse é o mote
para produzir uma importante problematização sobre o ensino da filosofia
política no ensino médio, conteúdo sempre presente nos programas dessa
disciplina. O autor apresenta, então, quatro temas que podem ser desen-
volvidos no ensino médio: democracia, o sentido da política, igualdade e
justiça social, estado e legitimação. Em cada um deles oferece sugestões
de questões e abordagens que podem ser realizadas pelo professor de filo-
sofia. É um texto que cumpre um objetivo fundamental: estabelecer o diá-
logo entre a universidade e a escola básica; entre a formação universitária
e o exercício da docência de filosofia na escola contemporânea.
O livro do professor argentino Guillermo Obiols, Uma introdução
ao ensino da filosofia, foi o objeto de análise e reflexão de Evandro Bilibio.
Essa tem sido uma obra de leitura obrigatória nos cursos de licenciatura
em filosofia, pelo seu caráter questionador, provocador e propositivo acer-
ca do ensino da filosofia. Por isso, considero importante a contribuição de
Ensino de Filosofia 9
Bilibio, pois ele percorre toda a obra, discorrendo sobre as posições de
Obiols e, ao mesmo tempo, tecendo indagações críticas sobre algumas de
suas ideias.
Joce Mary Giotto e Gerson Witte, respectivamente professores de
filosofia e de artes no IFSC de Chapecó, oferecem aos leitores o relato de
experiências interdisciplinares realizadas em um curso técnico de nível
médio integrado em informática. O texto traz uma breve discussão sobre
o ensino de artes e de filosofia no ensino médio, cujo eixo central é a esté-
tica, mais propriamente o tema do belo. Ao final são relatadas as oficinas
de integração, que foram realizadas com os estudantes do IFSC. Os auto-
res reafirmam que o exercício interdisciplinar é possível e, mais que isso,
necessário, na instituição escolar.
O professor Dr. Tomás Domingo Moratalla, da Universidade Com-
plutense de Madri, discorre sobre a educação ética, a partir de uma abor-
dagem hermenêutica. A partir do filósofo Paul Ricoeur, propõe uma refle-
xão em que a ética não é tomada em uma concepção abstrata e teórica da
moral. Busca, isto sim, pensar a moral desde uma perspectiva do mundo
vivido pelos homens, no qual ocorre o encontro com os outros e consigo
mesmo. No contexto do ensino, essa perspectiva indica a preocupação
com uma educação que é também a formação de sujeitos que exercem
sua autonomia no âmbito da cidade. Para tanto, traz em seu texto interes-
santes propostas metodológicas para serem desenvolvidas na escola. Uma
delas diz respeito ao exercício de ler, ver e falar de forma argumentada e
outra traz uma problematização sobre heteronomia e autonomia, a partir
da película A onda. Pensamentos instigantes para nós, professores.
E, fechando essa coletânea, os professores Eduardo Morello e Elsio
José Corá tomam como objeto de sua reflexão a prática docente, a relação
entre professor e alunos, a partir da questão do diálogo. Problematizam o
diálogo como um atributo humano, destacam suas possibilidades e impos-
sibilidades no espaço da sala de aula e chamam a atenção para sua condi-
ção de fenômeno social e educacional. Tomando como referência Gada-
mer, e considerando todos os empecilhos que hoje dificultam o exercício
do diálogo nas escolas, em suas salas de aula, afirmam a possibilidade de
superação de tal dificuldade. Tal superação, dizem os autores, é possível
com a realização do próprio diálogo, “na medida em que tanto professor
quanto os alunos se abrem um ao outro, de modo a encontrar uma lingua-
gem comum e ouvir atentamente o que o outro tem a dizer”.
10 Universidade Federal da Fronteira Sul
Esta é, portanto, uma obra de múltiplas reflexões filosóficas que
espero instigá-los a lê-la. Ela nos instiga a experimentar outros modos de
pensar as relações entre filosofia e educação, o ensino da filosofia no en-
sino médio, a formação ética... Ela é fruto desse nosso tempo, dessa nossa
vontade de pensar as questões que nos afetam, dentro da universidade,
dentro da escola, na sociedade – um pensar filosófico sobre o ensino da
filosofia, sobre a educação e a filosofia. A filosofia é, então, esse ato de
pensamento que aqui foi produzido, inspirador de outros tantos ainda por
vir!

Elisete M. Tomazetti
Centro de Educação
Universidade Federal de Santa Maria
Dezembro de 2013

Ensino de Filosofia 11
1. OS DESAFIOS DO ENSINO DE FILOSOFIA:
pensar-se a si mesmo
Altair Alberto Fávero1

1. INTRODUÇÃO

Tinham razão os gregos quando “inventaram a filosofia” de que


o “pensar bem” se traduz em “viver bem”. Tanto um quanto o outro
podem ser equivocadamente interpretados em nossos dias: muitos atri-
buem o “pensar bem” como sendo uma bem orquestrada estratégia para
montar um grande negócio, ou encontrar uma fórmula infalível de “sair-
se bem”, escolher uma prestigiada profissão, ou ainda ter encontrado
“pessoas certas” para projetar-se num futuro pleno de sucesso e de uma
“vida bem-sucedida”. Na mesma direção muitos levianamente confun-
dem “viver bem” com uma vida repleta de “conforto”, dinheiro, poder,
prestígio. No entanto, se tivermos um olhar que ultrapassa a “vala co-
mum” do pensamento nos daremos conta que no sentido grego tanto
o “pensar bem” quanto o “viver bem” não se reduzem a essa simples
condição material. “Viver bem” no sentido grego pode ser interpretado
como “vida boa” e não se confunde com “êxito social”. “Vida boa” nos
tempos iniciais da filosofia no solo grego significava, no dizer de Luc Fer-
ry (2004, p. 15) “empenhar-se na busca de um princípio transcendente,

1 Pós-doutorado pela Universidad Autónoma del Estado de México (UAEMéx).


Doutor em educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Professor de filosofia da Universidade de Passo Fundo (UPF). E-mail: altairfavero@
gmail.com.
de uma entidade externa e superior à humanidade, que lhe permitisse
apreciar o valor de uma existência singular”. Avaliar se uma vida teria
valido a pena tê-la vivido implicava adotar um critério sobre-humano,
ou seja, algo que pudesse ser utilizado como uma espécie de balança
capaz de medir a “densidade da vida”.
O termo filosofia, em nossos dias, é concebido como sendo um
conceito extremamente amplo e polissêmico. Fala-se que tal empresa pos-
sui tal “filosofia”; que fulano tem uma excelente “filosofia” de trabalho;
que a cultura X tem uma “filosofia” de vida formidável; que o novo geren-
te, ao assumir a empresa Y, implantou uma “filosofia” radical; ou de que
a “filosofia” da escola Z visa a tais e tais princípios. Se observarmos todos
esses conceitos, parece que “filosofia” tem a ver com uma concepção e,
pois, com um “saber de direção” que Gramsci (1987) chama de “filoso-
fia espontânea”, “senso comum”, ou “concepção de mundo”(p.11 e 12).
Maura Iglésias (1996), no texto O que é filosofia e para que serve (p.11-
16), além desse primeiro sentido, destaca outros dois, a saber, a filosofia
oriental e a filosofia como disciplina acadêmica.
Se o simples conceito de filosofia provoca essa ampla possibilidade
de interpretações e reflexões, o que dizer do ensino de filosofia? A filoso-
fia é possível de ser ensinada? Que conteúdos são próprios da filosofia?
Há um tempo e um espaço para a filosofia? Ela precisa ser tratada como
disciplina na formação de nossos alunos? É possível ensinar filosofia para
as crianças? Ao implantar filosofia nas escolas, não estaríamos compro-
metendo a própria identidade da filosofia? Como deve ser a formação do
professor de filosofia? Kant teria razão quando afirmou que não se ensina
filosofia, ensina-se a filosofar? Não pretendemos tratar neste texto todas es-
sas questões. Apenas intencionamos abordar algumas reflexões em torno
do ensino da filosofia.
Quando se fala em ensino de filosofia, imediatamente surgem três
questões: ensinar o quê? Ensinar para quê? Como ensinar? Tais perguntas
refletem um “espírito” pragmatistautilitário presente em nossa época. Uma
civilização marcada pela mentalidade técnico-instrumental dificilmente
consegue perceber a importância da filosofia no mundo de hoje. Nossa
sociedade e nossa cultura costumam considerar que alguma coisa só tem
o direito de existir se tiver alguma finalidade prática, muito visível e de
utilidade imediata. O presente texto tem a pretensão de refletir sobre al-
guns desses aspectos referentes ao ensino da filosofia e, ao mesmo tempo,
14 Universidade Federal da Fronteira Sul
indicar um dos principais desafios do ensino da filosofia para o século XXI:
pensar-se a si mesmo.

2. OS PRECONCEITOS COM RELAÇÃO À FILOSOFIA

É lugar-comum ouvirmos nos dias atuais expressões do tipo «a


filosofia é a ciência pela qual ou sem a qual continua tudo igual», “a
filosofia é um saber especulativo inútil, que em nada contribui com a
ciência e o conhecimento». Grande parte dos alunos universitários, ao
ingressarem na universidade, são portadores desses preconceitos com
relação à filosofia. Os poucos que tiveram experiência no ensino médio
veem a filosofia com desprezo e, mesmo, são incapazes de captar a pre-
ciosa contribuição que ela pode dar para um pensar melhor e, por con-
sequência, para um agir melhor. Karl Jaspers, em seu livro Introdução
ao pensamento filosófico, define com propriedade a situação em que
se encontra a filosofia: “A filosofia se vê rodeada de inimigos, a maioria
dos quais não tem consciência dessa condição. (...) Ela é considerada
perigosa. Se eu a compreendesse, teria de alterar minha vida. Adquiriria
outro estado de espírito, veria as coisas a uma claridade insólita, teria
de rever meus juízos. Melhor é não pensar filosoficamente” (JASPERS,
1975, p. 139).
Grande parte dessa situação em que se encontra a filosofia devese
à maneira como as pessoas têm acesso a ela, ou seja, a maneira como ela
é ensinada. Assim, poderíamos distinguir duas posições com relação ao
ensino de filosofia: uma como resposta ou produto e outra como questão
ou processo.
A filosofia como resposta ou produto é identificada com a aquisição
de um saber pronto, assimilado de maneira memorizada e retórica: os alu-
nos são induzidos à memorização de conceitos e doutrinas escritas pelos
pensadores ao longo do tempo. A erudição filosófica é assumida como
um fim em si mesmo. Encarado dessa forma, o ensino de filosofia se reduz
à mera aquisição de um produto pronto e inquestionável. Talvez por isso
os alunos tenham dificuldade de compreender a importância da filosofia.
Infelizmente, é dessa maneira que a filosofia é compreendida pela maioria
das pessoas. Tratase de um saber acadêmico, formal, que não abre espa-
ços para uma dimensão construtiva e crítica.

Ensino de Filosofia 15
Já a filosofia como questão ou processo, sem negar ou contestar a
validade da postura anterior, ressalta outro ângulo: parece-se como um
“aprender a pensar”2. Esse é entendido não como a capacitação lógica,
como domínio do uso de um instrumento que ordena o pensamento, mas
como o desenvolvimento da capacidade de questionar, de rejeitar como
dado inequívoco e evidência imediata, que convence o senso comum e fun-
damenta grande parte dos pensamentos. Tal abordagem da filosofia apre-
sentaa como uma disciplina que coloca o ato de filosofar, de questionar
e de retomar questões abandonadas, ou dadas como resolvidas, acima da
própria filosofia como teoria. O importante não é conhecer as respostas que
outros deram, mas tentar alcançar, por meio da questão posta por eles, uma
nova resposta, a qual, por sua vez, abrirá o caminho a novas questões.
É nesse sentido que a tentativa pioneira de Lipman constitui um
marco referencial e diferencial no que se refere ao ensino da filoso-
fia. No início da década de 1970, após ter ensinado por longos anos
introdução à lógica a estudantes universitários, Lipman começou a se
preocupar com o valor de tal curso, ou seja, qual seria o possível be-
nefício que seus alunos obteriam ao estudar regras para determinar
a validade dos silogismos ou ao aprender a construir orações con-
trapositivas. Eles, realmente, raciocinavam melhor como resultado
do estudo da lógica? Não estariam seus hábitos lingusticos e psico-
lógicos já tão firmemente estabelecidos que qualquer tipo de prática
ou instrução no raciocínio chegaria tarde demais? Tais indagações
levaram Lipman (1990) a pensar, hipoteticamente, que o problema
não estava propriamente na universidade, mas na educação básica
que esses alunos haviam tido. Ele constatou que era possível aju-
dar as crianças a pensar com maior habilidade. Foi nesse contexto
que nasceu o programa de filosofia para crianças que se espalhou
pelo mundo todo, inclusive no Brasil, constituindo um importante
referencial e um projeto “revolucionário” que buscava repensar a
educação.
No dizer de Lipman (1990), “há muito se desconfiava que a Filosofia

2 Vários livros já foram lançados com essa finalidade. A título de exemplo, poderíamos citar o livro de
Leopoldo Justino Girardi e Odone José Quadros (1998), Filosofia: aprendendo a pensar; de Cipriano
Luckesi e Elizete Passos (1998), Introdução à filosofia: aprendendo a pensar; de Pascal Ide (1995), A
arte de pensar. Heidegger (1964, p.14), ao falar sobre isso, assim se expressa: “Conquistamos o sentido
da palavra pensar quando nós mesmos pensamos. Para que um tal ensaio aconteça, devemos estar
preparados a aprender a pensar”.
16 Universidade Federal da Fronteira Sul
carregava dentro de si tesouros pedagógicos de grande generosidade e de
que esses tesouros poderiam, algum dia, seguir o método Socrático e dar
sua valiosa contribuição para a Educação”(p. 19). Restava saber de que
maneira tais tesouros poderiam ser colocados a serviço das crianças. Cer-
tamente, não poderia ser da maneira que costumeiramente era feito, pois
a própria história se encarregara de demonstrar que tais esforços eram inú-
teis. Isso levou Lipman a criar uma história para crianças. Não uma história
do tipo em que os adultos, que sabem tudo, benevolamente explicam aos
pequenos ignorantes as diferenças entre pensar bem e pensar mal. Deveria
ser algo que os pequenos descobrissem por si mesmos, com pouca ajuda
dos adultos. As crianças da história deveriam formar, de alguma maneira,
uma pequena comunidade de pesquisa, na qual cada uma participasse,
pelo menos em alguma medida, na busca cooperativa e na descoberta de
modos mais efetivos de pensar. Para isso, “a Filosofia precisava sacrificar
a terminologia hermética e transformarse em um romance filosófico, um
trabalho de ficção constituído de diálogos em que as ideias filosóficas es-
tariam espalhadas profusamente em cada página” (LIPMAN, 1990. p. 22).
Inicialmente, Lipman (1990) acreditava que tal “história” seria um
livro que as crianças pudessem encontrar por si mesmas quando fossem
a uma biblioteca ou que algum parente lhes desse de presente para ler e
discutir. Entretanto, aos poucos, foi constatando que era preciso filosofia
para crianças tanto na escola quanto em casa. As provas experimentais3
de melhora acadêmica convenceram Lipman de que as escolas poderiam
aceitar tal iniciativa como um programa de habilidades de pensamento
e de raciocínio, ao mesmo tempo em que as crianças, dentro da sala de
aula, dar-lhe-iam uma entusiasmada acolhida.
A partir da tentativa pioneira de Lipman (1990), muitos educado-
res, preocupados em desenvolver a qualidade do pensamento das crian-
ças, têm percebido que a filosofia é uma opção educacional estimulante
e confiável. O mesmo acontece com aqueles que estão envolvidos com
programas de humanidades para as séries iniciais do ensino fundamen-
tal. A filosofia oferece às crianças e jovens a oportunidade de discutirem
3 Em 1970, valendose dos estudos de Piaget, Lipman realizou uma experiência de campo com dois
grupos de crianças selecionadas por acaso. Cada grupo tinha cerca de 15 crianças, que tinham duas
aulas por semana durante nove semanas, tendo sido cada um deles submetido a um préteste e pósteste.
No fim do período experimental, a pontuação do grupo de controle em raciocínio lógico permaneceu
imutável, ao passo que a do grupo experimental tinha dado um salto de 27 meses. Posteriormente,
em 1975, o experimento foi ampliado para 200 crianças. Desse experimento a melhora na leitura foi
substancial e surpreendente.
Ensino de Filosofia 17
conceitos, tal como o de verdade, que existem em todas as outras disci-
plinas, mas que não são abertamente examinados por nenhuma delas. A
filosofia oferece um fórum no qual as crianças e jovens podem descobrir,
por si mesmas, a relevância, para suas vidas, dos ideais que norteiam a
vida de todas as pessoas.
É frequente ouvirmos dos professores universitários e, mesmo do
ensino médio, «reclamações» de que seus alunos apenas memorizam
os conteúdos pelos quais serão testados e não aprendem a pensar uma
disciplina. Essa noção sobre o pensar uma disciplina é bastante ardilosa.
A maioria dos professores pressupõe que certas habilidades elementares
sejam dominadas por seus alunos quando, na verdade, isso raramente
acontece. Sempre que investigamos, empregamos uma variedade de habi-
lidades cognitivas, as quais podem ser extremamente elementares, como
fazer distinções e conexões, ou extremamente complexas, como a descri-
ção e a explicação, que são composições intrincadas de habilidades mais
simples usadas de uma maneira coordenada.
Na visão de Lipman, o cerne do problema da educação contempo-
rânea devese à deficiência nas habilidades elementares e, por consequ-
ência, das habilidades mais complexas. É comum, por exemplo, os pro-
fessores de álgebra se sentirem aborrecidos quando descobrem, a cada
ano, que seus alunos não possuem as habilidades necessárias para resol-
ver problemas algébricos elementares, para não falar da incapacidade de
“pensar algebricamente”. Assim, surgem os questionamentos: quem deve-
ria ensinar tais habilidades? Se os professores de álgebra ou de qualquer
outra disciplina tivessem de ensinar tais habilidades, não correriam o risco
de descuidar sua própria disciplina? Por outro lado, se tais alunos não es-
tiverem de posse de tais habilidades, conseguirão ter êxito nas disciplinas
que exigem o domínio necessário de certas habilidades? Qual é a solução?
Continuaremos com a velha postura de encontrar o culpado?

3. A FILOSOFIA E O DESENVOLVIMENTO DAS


HABILIDADES

Essa discussão nos remete a um problema similar descrito por Platão


em A república. No diálogo com Trasímaco, Sócrates afirma que nenhuma
disciplina ou forma de investigação busca seu próprio desenvolvimento:

18 Universidade Federal da Fronteira Sul


ou ela já é perfeita (caso em que não necessita de nenhum desenvolvi-
mento) ou é imperfeita (caso em que é de responsabilidade de alguma
outra disciplina desenvolvêla). Assim, quando a medicina (a arte de curar)
se acha inadequada, ela pede ajuda à pesquisa médica e, se a pesqui-
sa médica se acha inadequada, pede ajuda para a tecnologia médica ou
bioquímica, e assim por diante. Colocando em termos de indivíduo, um
oftalmologista, na qualidade de oftalmologista, nunca trata dele mesmo;
o oftalmologista trata dos problemas de visão de outras pessoas e, quando
necessita, pede assistência a outro oculista.
A analogia entre o argumento de Sócrates e o problema em relação
ao ensino das habilidades de pensamento poderia ser assim expressa: os
professores de qualquer série escolar ensinam aos seus estudantes as habi-
lidades necessárias às séries subsequentes e não as habilidades necessárias
à sua própria disciplina, pois estas devem ter sido trabalhadas anterior-
mente. No entanto, na visão de Lipman, há uma disciplina que se ocupa
com os aspectos problemáticos e contestáveis de todas as disciplinas. Tal
disciplina seria a filosofia. É ela que não só nos ajuda a pensar, mas, sobre-
tudo, ajuda-nos a pensar melhor porque fortalece nossas habilidades de
raciocínio, de investigação e de formação de conceitos. Por isso, é funda-
mental que ela (filosofia) não seja concebida apenas como uma disciplina
que ocorra no ensino médio em um ou dois períodos no abarrotado currí-
culo, sem vínculo com as demais disciplinas. É isso que tem ocorrido his-
toricamente e, mesmo nos dias atuais, na quase maioria das escolas. Daí
os preconceitos, as prénoções com relação a ela. No entanto, se ela for
adequadamente abordada, não simplesmente como uma disciplina, mas
com uma perspectiva transdisciplinar e interdisciplinar, então teremos a
oportunidade de visualizar um novo tempo no que se refere à educação.
Alguns poderão dizer que pode não ser muito útil adicionar mais
uma disciplina (a filosofia) a um currículo já abarrotado e cujos compo-
nentes os alunos recebem de maneira fragmentada e desarticulada. Mas
a adição da filosofia aliviaria mais do que exacerbaria essa situação. As
principais divisões ou subdisciplinas da filosofia representam abordagens
que se cruzam em ângulos retos com as matérias já existentes no currículo
e as fundem em um conjunto conexo. Os alunos poderão, por exemplo,
perceber a lógica, a metafísica, a estética, a epistemologia, a filosofia so-
cial que existe nos conteúdos de português, ciências, matemática, história,
artes, geografia, educação física, etc. No entanto, é importante que haja
Ensino de Filosofia 19
a disciplina de filosofia, e não simplesmente dizer que ela acontece em
todas as disciplinas. No dizer de Lipman (1995), “é evidente que há neces-
sidade de cursos de Filosofia no decorrer de todos os anos escolares, desde
o jardim da infância até o 2º grau. 0 cultivo do raciocínio não pode ser
levado a cabo a não ser que haja um critério para se distinguir entre bom
e mau raciocínio e somente a Filosofia pode fornecer tal critério”(p. 28).
O fato de a filosofia ser dialógica e engajarse em diálogos filosóficos
conta pontos para as habilidades de raciocínio de ordem superior. A prá-
tica em tais discussões favorece o desenvolvimento de tais habilidades em
cada um dos participantes. Se olharmos historicamente, toda e qualquer
disciplina agora considerada científica foi precedida por um período de
exploração e deliberação dialógica que seria mais propriamente filosófica.
O processo de passagem do filosófico para o científico não significa, ne-
cessariamente, que o filosófico está superado; ao contrário, ele necessita
estar pressuposto para que o científico não se torne dogmático. A filosofia
precede e gera a ciência, mas também mantém com relação a ciência
uma atitude crítica, inquiridora, questionadora, avaliadora. As crianças
ficam muito entusiasmadas com assuntos que não possuem uma linha de
procedimentos precisos, mas são cuidadosas em questões em que tais pro-
cedimentos existem, pois, em tais casos, suspeitam que as respostas já são
conhecidas pelos adultos. Em outras palavras, as discussões filosóficas,
por deixarem as conclusões em aberto, são as únicas que lhes dão uma
sensação de liberdade, uma sensação de estarem no mesmo nível intelec-
tual dos adultos. Por essa razão, a filosofia é ideal na preparação cognitiva
para se envolver, mais tarde, em disciplinas acadêmicas especializadas
e motivar a inclinação para tais disciplinas. A filosofia é a disciplina que
prepara para raciocinar as demais disciplinas.
Tal processo, entretanto, não pode ser concebido mecanicamente.
Isso significa que não basta, simplesmente, às escolas abrirem espaço para
alguns períodos de filosofia para a “transformação” ocorrer. É necessário
que haja um processo de reeducação do próprio professor. E necessário
que a filosofia se tome acessível a um público maior. É necessário capa-
citar os professores. Enfim, é indispensável que haja um processo diferen-
ciado de investigação sobre o próprio ensino da filosofia. Historicamente,
sabemos que os cursos de filosofia não deram respostas a contento com
relação a isso. A maioria deles, mesmo reconhecidos como licenciaturas,
não habilitaram adequadamente seus alunos para serem bons professores

20 Universidade Federal da Fronteira Sul


de filosofia do ensino médio, muito menos no ensino fundamental. São
alunos que possuem certo domínio técnico da filosofia, mas não possuem
em relação a ela um domínio didáticopedagógico.
Ainda, boa parte do material didático disponível para o trabalho
com filosofia no ensino médio não possui consistência para efetivamen-
te realizar um trabalho essencial com a filosofia. Quase todos os manu-
ais de filosofia tratamna com certa linearidade, dificultando o trabalho
investigativo, constitutivo, filosófico, problematizador; por isso a atitude
de suspeita com relação à filosofia e o seu afastamento das escolas e da
vida cotidiana. Fazse necessário implementar um processo diferenciado
de ensino da filosofia de modo que ela possa ser compreendida na sua
essencialidade.
Isso implica um novo jeito de fazer filosofia. No dizer de Lipman
(1990, p. 61):

O fazer filosofia exige conversação, diálogo


e comunidade, que não são compatíveis com o que
se requer na sala de aula tradicional. A Filosofia im-
põe que a classe se converta numa comunidade de
investigação, onde estudantes e professores possam
conversar como pessoas e como membros da mesma
comunidade; onde possam ler juntos, apossarse de
idéias conjuntamente, construir sobre as idéias dos
outros; onde possam pensar independentemente,
procurar razões para seus pontos de vista, explorar
suas pressuposições; e possam trazer para suas vidas
uma nova percepção de o que é descobrir, inventar,
interpretar e criticar

4. OS DESAFIOS DA FILOSOFIA PARA O SÉCULO XXI

Diante da situação explicitada, cabe perguntar: qual é o papel da filo-


sofia no século recentemente iniciado? Que funções a filosofia poderá assu-
mir tendo, por um lado, o cuidado de não cair num pragmatismo injustificado
e, por outro, o alerta de não se tornar algo estranho à própria humanidade? Na
tentativa de traçar algumas linhas diretivas, arriscamos apontar cinco grandes
desafios que a filosofia deverá enfrentar no decorrer do século XXI.
Ensino de Filosofia 21
Uma primeira tarefa da filosofia é recuperar a dimensão humanista
da sociedade. Tratase de colocar em pauta de discussão a antropologia
que norteou a humanidade no período moderno, a qual manifestou um
antropocentrismo desequilibrado que provocou uma cisão inconciliável
entre o homem e a natureza. Revisar essa posição implica refazer o cami-
nho da tecnologia, das relações de produção, das finalidades do domínio
do homem sobre o próprio homem e sobre a natureza. Tratase de definir
que antropologia norteará a humanidade, que pressupostos sustentam essa
antropologia e que processos educativos iremos desenvolver para funda-
mentar essa compreensão de ser humano. “Se o termo ‘humanidade’ quer
dizer alguma coisa”, ressalta Ernest Cassirer (2001, p. 119) em seu belo
livro Ensaio sobre o homem, “quer dizer que, a despeito de todas as dife-
renças e oposições que existem entre suas várias formas, todas elas estão,
mesmo assim, trabalhando para um fim comum”. Na análise de Cassirer
a filosofia tem um “audível e compreensível” papel de trabalhar para esse
fim.
Um segundo desafio da filosofia é retomar as “rédeas” da discussão
ética. Sabemos que o tema ética é um tema corrente nos dias de hoje.
Entretanto, o que observamos é uma generalizada confusão que extrema
desde as éticas “privadas”, calcadas em técnicos códigos de ética de de-
terminadas profissões, até as discussões “formalistas incognoscíveis” de
filósofos que não conseguem dialogar além dos seus restritos pares, em
congressos cada vez mais reduzidos de “doutores” em filosofia.
Um terceiro desafio da filosofia é assumir a vanguarda na defini-
ção axiológica. Essa temática teve uma função significativa no século XIX.
Entretanto, em todo momento, a filosofia tem desempenhado a função de
apontar a valoração das coisas. Para Platão, as ideias constituíam os valo-
res e cumpriam um significativo papel nas relações sociais, representando
os modelos à luz dos quais deveriam ser direcionadas as ações humanas,
especialmente as morais. Aristóteles, por sua vez, concedeu ao valor um
sentido mais ontológico e vinculado à fundamentação do ser das coisas.
Em Kant, ocorre uma identificação entre bem e o valor, expressando uma
objetivação do seu conteúdo. A temática axiológica teve tanta importân-
cia na tradição filosófica que, em fins do século XIX, converteu-se em uma
das principais preocupações da filosofia. Na visão de alguns pensadores
contemporâneos, a filosofia só pode seguir vivendo se for concebida como
teoria dos valores universais válidos.

22 Universidade Federal da Fronteira Sul


Um quarto desafio para a filosofia é assumir sua função emanci-
patória. Se o homem tem encontrado na filosofia algum prazer tem sido
porque o cultivo desse tipo de saber lhe tem possibilitado não só a possi-
bilidade de domínio, ação, transformação, valoração, conhecimento, mas,
principalmente, porque por meio da filosofia ele passou a tomar maior
consciência de sua possível emancipação. Isso não significa que toda fi-
losofia desempenha igual papel emancipatório, pois o que, para alguns,
pode constituir alguma forma de libertação, não necessariamente deve
ser compartilhado por todos como efetiva forma de graus de liberdade.
Um dos conceitos mais difíceis de encontrar consenso entre os filósofos,
políticos, sociólogos e até entre as pessoas comuns é o de liberdade. Não
obstante, se é possível argumentar em favor de algumas formas de filosofar
as quais têm sido mais desalienadoras que outras, então se pode com-
preender o sentido tendencialmente emancipatório da filosofia desde sua
aparição até nossos dias. Somente o exercício do filosofar mediado pelo
diálogo poderá identificar quais formas são alienantes e que atitudes são
emancipatórias.
Um quinto e último desafio nessa abordagem tratase de assumir sua
função práticoeducativa. Desde os tempos remotos, a filosofia assumiu
essa função, basta analisar as concepções éticas e gnosiológicas de Sócra-
tes e de Platão. Na Idade Média, essa função também foi explicitada pela
concepção da ideia de filosofia como serva da teologia, a razão a serviço
da fé. Com o nascimento da modernidade, a função prática do filosofar
se incrementou uma vez que a maior parte dos filósofos começou a gerar
utopias e projetos de transformação social como Thomas More, Campane-
la, Locke ou Montesquieu. Tal função praxiológica não se restringiu só ao
campo político, mas também se fez presente no plano técnicocientífico,
onde começaram a germinar as ideias da possibilidade de que a ciência e
a técnica se convertessem em transformadoras radicais do mundo existen-
te, como da descrição da Nova Atlântida de Francis Bacon.
Marx é paradigmático nesse sentido praxiológico da filosofia quan-
do exigiu dela uma atitude práticocrítica ao expressar na XI tese sobre
Feuerbach: “Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo de diferentes
maneiras; o que importa é transformá-lo” (MARX, 1987, p. 14). Apesar de
ser exagerado afirmar que todos os filósofos até então haviam se caracte-
rizado por uma postura contemplativa e não haviam exigido uma função
mais prática à filosofia, é certo que sua pretensão era ressaltar a função
Ensino de Filosofia 23
prática da filosofia, pois, mais que de uma nova filosofia no sentido tra-
dicional, ou um novo sistema filosófico, ele desafiava um novo estilo de
filosofar, que colocasse em primeiro plano a crítica de todo o existente
para sua mais acertada transformação, tarefa ainda hoje inconclusa.

Referências

CASSIRER, Ernest. Ensaio sobre o homem: introdução a uma filosofia da


cultura humana. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

FERRY, Luc. O que significa ter uma vida bem-sucedida? Rio de Janeiro:
Difel, 2004.

GIRARDI, Justino; QUADROS, Odone José. Filosofia: aprendendo a pen-


sar. 9 ed. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 1998.

GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da história. Rio de Janeiro: Civi-


lização brasileira, 1987.

HEIDEGGER, Martin. Qué significa pensar? Buenos Aires: Editorial Nova,


1964.

IDE, Pascal. A arte de pensar. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

IGLÉSIAS, Maura. O que é filosofia e para que serve? In: RESENDE, Anto-
nio (Org.). Curso de filosofia. São Paulo: Zahar, 1996, pp.11-16.

JASPERS, Karl. Introdução ao pensamento filosófico. São Paulo: Cultrix,


1975.

MARX, Karl. Ideologia alemã. São Paulo: Hucitec, 1987.

LIPMAN, Matthew. A filosofia vai à escola. São Paulo: Summus, 1990.

LIPMAN, Matthew. O pensar na educação. Petrópolis: Vozes, 1995.

LUCKESI, Cipriano; PASSOS, Elizeth. Introducão à filosofia: aprendendo a


pensar. 2 ed. São Paulo: Cortez, 1998.

24 Universidade Federal da Fronteira Sul


2. PRIMAVERA DA FILOSOFIA NO
CURRÍCULO DO ENSINO MÉDIO?
Ronai Pires da Rocha1

1 INTRODUÇÃO: A CONJUNTURA EM 2013

Em 2008, por meio de uma lei federal, as disciplinas de filosofia e


sociologia foram declaradas obrigatórias no currículo do ensino médio
brasileiro. Cinco anos depois, a presença delas no currículo está sendo no-
vamente discutida. A imprensa especializada em educação começa a dis-
cutir o que vem sendo chamado de “crise do ensino médio” e, junto com
isso, a necessidade de uma nova reforma curricular do mesmo. Comenta-
se que o Ministério da Educação está preparando um novo currículo para
o ensino médio. Nessa proposta, as atuais disciplinas seriam distribuídas
em quatro áreas (ciências humanas, ciências da natureza, linguagem e
matemática).
Junto às aulas das disciplinas tradicionais, os alunos terão
atividades integradoras dos conteúdos previstos.
A apresentação usual da “crise” diz que o ensino médio convencio-
nal apresenta um índice crescente de evasão; as dificuldades de retenção
dos estudantes devem-se a uma falta generalizada de qualidade de ensino,
combinada com um numero excessivo de disciplinas de pouca aplicação
prática, desarticuladas entre si e com poucas possibilidades de aplicação
prática. Faz parte da apresentação da crise do ensino médio o elogio ao

1 Doutor em filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor do
departamento de filosofia da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
crescimento e sucesso do ensino médio técnico. O ponto forte da propos-
ta, ao que se diz, será a integração dos conteúdos, visando a combater o
que vem sendo chamado de “dispersão das disciplinas”. A reforma visa a
oferecer uma solução para a baixa qualidade do ensino médio público,
cujos alunos (88% das matrículas) tem uma defasagem de três anos em
relação aos alunos das escolas particulares. Essa baixa qualidade estaria
associada à fragmentação do cotidiano curricular.
O meu objetivo neste texto não é discutir a proposta, até porque
ela ainda não foi divulgada. Podemos especular, por certo, que sua im-
plementação será difícil, por uma razão facilmente compreensível: o pro-
cesso de formação dos professores não contempla estratégias de ensino
integrado; cada disciplina é objeto de uma licenciatura específica e nelas
não temos uma tradição de interdisciplinaridade. Por essa razão a força de
indução do governo começa a ser exercida a jusante do processo pedagó-
gico, a saber, no material didático que patrocina.
1.1 Começando pelo final: o edital do livro didático

O livro didático que será usado pela escola publica brasileira no


ano de 2015 começou a ser produzido no início de 2013, nos termos do
Edital de Convocação da Secretaria de Educação Básica do MEC, o “Edital
PNLD 2015 – Ensino Médio”. O edital traz as regras para a produção e
apresentação dos livros didáticos para as disciplinas do ensino médio: lín-
gua portuguesa, matemática, história, geografia, física, química, biologia,
língua estrangeira moderna inglês, língua estrangeira moderna espanhol,
sociologia, filosofia, arte. Junto com as especificações de editoração, há
um conjunto de critérios que são usados pelo Ministério para o julgamento
das propostas editoriais. Entre esses critérios destacam-se aqueles que di-
zem respeito “à perspectiva interdisciplinar na apresentação e abordagem
dos conteúdos.” O edital começa fazendo a louvação do papel relevante
das disciplinas escolares. Elas “têm desempenhado um papel relevante na
pesquisa, na divulgação e no ensino- aprendizagem de conhecimentos
especializados, na medida em que permitem reconhecer, na compreensão
e assimilação de diferentes objetos de estudo, competências e habilidades
semelhantes, formas previsíveis de articulação com outros conhecimen-
tos; uma mesma perspectiva de abordagem; diferentes níveis de comple-
xidade; procedimentos de análise de mesma natureza”. Depois desse elo-
gio, vem a ênfase em um ensino que “ultrapasse os limites homogêneos”
26 Universidade Federal da Fronteira Sul
das disciplinas. Transcrevo a passagem, na qual destacarei as expressões
que vem ao encontro dos conceitos de articulação e interdisciplinaridade:

”(...) a formação para a vida, no contexto de


uma educação integral e emancipadora, demanda
uma intensa articulação entre os objetos propostos
para o estudo, com o objetivo de permitir ao aluno
não só reconhecer e estudar temas que ultrapassem
os limites homogêneos de uma só disciplina (como
a linguagem, o psiquismo, a vida em sociedade, os
fenômenos naturais etc.) mas, ainda, compreender
de uma forma mais ampla e integrada o próprio pro-
cesso de aprendizagem, ou mesmo a natureza da
produção e da reprodução de conhecimentos. As-
sim, essa é a perspectiva proposta por documentos
oficiais como as Orientações curriculares para o en-
sino médio (Brasília, MEC/SEB, 2006), o Ensino mé-
dio inovador: documento orientador (Brasília, MEC/
SEB, 2009) e as Diretrizes curriculares para o ensino
médio, homologadas este ano pelo Conselho Na-
cional de Educação. Em consequência, as coleções
didáticas submetidas à avaliação do PNLD deverão
atender aos seguintes requisitos:

(1) explicitar claramente, no manual do pro-


fessor, a perspectiva interdisciplinar explorada pela
obra, bem como indicar formas individuais e coleti-
vas de planejar, desenvolver e avaliar projetos inter-
disciplinares;

(2) articular os conteúdos da disciplina em


jogo com a área de conhecimento a que pertença,
estabelecendo conexões também com as demais áre-
as e com a realidade;

(3) propor atividades que articulem diferentes


disciplinas, aprofundando as possibilidades de abor-
dagem e compreensão de questões relevantes para o
alunado do ensino médio.
Ensino de Filosofia 27
O Edital PNLD 2015, como se vê, promove uma reforma do ensi-
no por meio das regras de elaboração dos livros didáticos. Um dos cri-
térios de aprovação de qualquer proposta de material didático será o da
integração entre as quatro áreas de conhecimento: linguagens, matemá-
tica, ciências da natureza e ciências humanas. Essa proposta, conhecida
desde 2009, tinha, até 2013, apenas um caráter experimental. A partir
de 2013, os critérios de aprovação indicados acima passam a ser deci-
sivos. Comentarei mais adiante o papel reservado para a filosofia nesse
processo.
Não é difícil, para um grupo editorial, encomendar e apresentar ao
governo livros didáticos que tenham essa natureza integrada. Mas não é
esse o modo de funcionamento das licenciaturas. Não há nelas tradição
e cultura prontas para começar a formação que é suposta pelas propostas
governamentais.
Uma das principais causas para a existência de um ensino médio
fragmentado reside no processo de formação do licenciado. Os professo-
res são, na maioria das vezes, formados sem contato com a licenciatura ao
lado. E no interior de cada licenciatura, cada disciplina cuida de si mes-
ma. O currículo é o resultado de um processo de agregação de vontades
pedagógicas perfeitamente isoladas umas das outras. Por outro lado, em
tese, todo licenciado pode achar muito interessante a abordagem inter-
disciplinar; mas ninguém sabe muito bem como fazer isso e a disposição
para tanto é mínima. Simplesmente não temos a experiência de trabalho
curricular conjunto porque isso não ocorre no processo formacional. A
reforma começa pelo final do processo, pelo livro didático.

2. O ENSINO MÉDIO NA BERLINDA

“No Brasil de hoje diminui a preocupação com a expansão e au-


menta com a melhoria do sistema de ensino”, diz o reitor de uma univer-
sidade federal, no discurso que faz na abertura de um evento na área de
licenciaturas; minutos depois, a professor que gerencia a rede regional de
ensino publico complementa: “O que nos interessa é que nossos alunos
aprendam”. Afirmações como essas vem sendo repetidas à exaustão e são
indicadoras de uma nova agenda educacional. Sem nenhuma pretensão
de ser exaustivo, alguns dos itens dessa nova agenda são esses:

28 Universidade Federal da Fronteira Sul


a) a constatação de que a expansão do sistema não é mais o ob-
jetivo principal, e sim a melhoria da qualidade do mesmo, em
termos de produção de aprendizagens; pode ser incluído aqui
o tema do crescente índice de evasão no ensino médio;
b) a receptividade geral a uma escola menos voltada aos proces-
sos de seleção das universidades, como os vestibulares; e isso
quer dizer também, a receptividade a um sistema mais plural,
com um forte crescimento do ensino técnico-profissional;
c) a exigência inarredável de carreiras profissionais não apenas
com remuneração adequada, mas com a jornada de traba-
lho compatível com as tarefas de planejamento e preparo de
atividades (nos termos da Lei 11.738/2008, as atividades de
interação com alunos têm o teto de 2/3 (dois terços) da carga
horária, mas poucos Estados brasileiros respeitam isso);
d) um desconforto generalizado com a forma de crescimento
do currículo nacional; os legisladores submetem-se à pressão
dos lobbies e determinam, de cima para baixo, a inclusão de
novas disciplinas, num ritmo crescente: filosofia, psicologia,
sociologia, música;
e) fim do encantamento com as promessas da tecnologia edu-
cacional; há um reconhecimento generalizado do fato que a
infraestrutura importa, sim: bons prédios, boas salas, compu-
tadores, tudo isso conta e faz diferença na vida de uma escola,
mas são apenas condições necessárias; o mais importante é a
qualidade do trabalho do professor em sala de aula, algo que
não se resolve no piscar de olhos de cursos curtos, pois diz
respeito aos conhecimentos do professor, acumulado em anos
de formação básica nas licenciaturas. Sobram estudos que in-
dicam a carência de professor com a formação adequada para
a disciplina que leciona;
f) a crise de “narratividade escolar” e a “presença branca”. Cha-
mo de “narratividade” a capacidade de uma escola fazer sen-
tido no cotidiano do estudante, como um lugar para onde este
acorre com o sentimento de compromisso e prazer em apren-
der. Chamarei de “presença branca” o fenômeno da continui-
dade da presença do aluno na escola em um patamar de par-
ticipação minimalista, engajando-se nas atividades escolares
Ensino de Filosofia 29
na medida suficiente apenas para sua aprovação. A baixa nar-
ratividade manifesta-se no sentimento de ir à escola para ape-
nas atender uma obrigação questionável, imposta pelos pais
e pela sociedade; o estudante não percebe conexões entre o
que pedem que ele estude e a sua vida; os professores e as
disciplinas não compõem um tecido, um contínuo; ao contrá-
rio, cada disciplina é uma mônada perfeitamente isolada das
demais; segue-se a isso um sentimento de não aprendizagem
e, com isso, a presença branca, prima irmã da evasão escolar.
Como esclareci, não tenho pretensão de exaustividade ao elencar
os itens acima como sendo os componentes de uma agenda de temas e
problemas educacionais e reconheço a natureza apenas intuitiva de al-
guns deles. Mas insisto que diante dessa descrição parece fazer sentido a
direção em que se movimentam alguns agentes educacionais nesta segun-
da década do século. Entre esses movimentos estão as atuais propostas de
reforma educacional do ensino médio. A proposta de uma mudança curri-
cular que tenta induzir os professores a pensar suas atividades no contexto
de grandes áreas do conhecimento parece-me claramente um esforço de
recuperação de narratividade escolar; se isso vai ou não ser combinado
com a redução ou diminuição de certos conteúdos, é algo para o futuro.
O fato é que precisamos pensar um pouco mais em nosso futuro.

3. A FILOSOFIA E A INTERDISCIPLINARIEDADE. ALGUMAS


PROPOSTAS PARA REFLEXÃO

Diante do quadro esboçado até aqui, a saber, o apelo do edital do


MEC quanto ao livro didático para 2014 e a nova crise do ensino brasi-
leiro, faço algumas reflexões sobre a presença curricular da filosofia no
ensino médio.
Meu ponto de partida é este: cada uma das disciplinas que integra
o currículo tradicional das escolas tem uma identidade própria e legítima,
que se fundamenta no fato de cada disciplina tratar de um aspecto parti-
cular da realidade.
As disciplinas tradicionais (matemática, física, química, biologia,
história, geografia, línguas, etc.) são expressões profundas do espírito e da
curiosidade humanas e resultam de milênios de investigação acumulada

30 Universidade Federal da Fronteira Sul


pela humanidade; elas precisam ser mantidas e continuadas. Trata-se
de um fato banal a constatação que a realidade precisa ser fatiada e dis-
ciplinada por nós para que seja mais bem compreendida, conhecida e
transformada. As disciplinas (escolares, universitárias, etc.) são, em última
instância, esforços de investigação e sistematização de curiosidades hu-
manas fundamentais, nas diversas áreas da experiência humana e exigem,
enquanto tais, cuidados; esses cuidados são o que chamamos de metodo-
logias, estratégias dedutivas e indutivas, estatísticas, atenção plena, etc.
São, por isso mesmo, disciplinamentos a que nos submetemos voluntaria-
mente.
Segue-se a isso que não podemos e não devemos ver as disciplinas
escolares como uma “fragmentação” do conhecimento. As disciplinas es-
colares, na medida em que são integradas em um currículo escolar, devem
ser compreendidas e tratadas como um esforço de apresentação daquilo
que há de valioso enquanto habilidades, conhecimentos e familiaridades
sobre o mundo material, formal, espiritual. Assim, não há nada errado em
ter aulas com conteúdos de física, química, biologia, sociologia, história,
pois o mundo não pode ser apresentado en bloc, de uma vez só, em uma
única grande narrativa. A forma como os conhecimentos são apresentados
e dominados pelos estudantes pode ser a mais variada e rica possível: a
partir de problemas, pelo viés da lógica da aprendizagem; a partir de uma
lógica dos conteúdos; o que não se pode perder de vista é que uma disci-
plina particular não é uma “fragmentação” da realidade, e sim uma forma
de apresentação da mesma.
A lista das disciplinas particulares não é fechada; algumas surgem,
outras desaparecem, certos núcleos duros permanecem. Hoje não há mais
alquimia e astrologia; há físico-química, biofísica, etc. Isso quer dizer que
o compromisso com a ideia de “disciplina” não é incompatível com a
transformação, evolução, surgimento e desaparecimento de “disciplinas”
e tampouco a existência de áreas de sombreamento e contato entre as
disciplinas é um argumento forte para a anulação delas mesmas. É apenas
uma trivialidade.
O argumento mais importante, historicamente, em favor da filosofia
como componente curricular é este: pode e deve haver uma região da
reflexão humana que se ocupa com os aspectos mais gerais da realidade.
Desde o início da filosofia, entre os gregos, chegou-se a essa conclusão: a
demanda humana de sentido exige uma disciplina que se ocupe não com
Ensino de Filosofia 31
esta ou aquela região dos entes, mas com o ente enquanto tal, com os as-
pectos gerais ou formais da realidade. Trata-se da filosofia. Ela correspon-
de a um tipo de curiosidade fundamental, que, pela sua natureza, ocorre
parcialmente em qualquer área da experiência humana; a esse aspecto
está relacionada a sua natureza específica, inter e trans; ela está entre as
disciplinas, dentro das disciplinas, atravessando as disciplinas. Na filoso-
fia, a interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade (transversalidade) são
sua própria natureza.
A filosofia, no entanto, é, ao mesmo tempo, uma disciplina como as
demais, mas também diferente das demais. Uma vez aceita a tese exposta
no parágrafo anterior – cuja negação significaria a recusa da própria ideia
de filosofia –, resta concluir que ela é uma disciplina idêntica às demais
sob o ponto de vista escolar; ela pode ter, como as demais, salas, progra-
mas, horários, professores, etc. No entanto, ela é diferente das demais,
pois, por ter o grau de generalidade indicado (a ocupação com “o ente
enquanto ente”), movimenta-se um âmbito de universalidade formal mui-
to peculiar. E nesse âmbito ela pode e deve abordar aspectos relevantes de
qualquer uma das demais disciplinas: temas de filosofia da ciência, filoso-
fia da arte, filosofia da matemática, da religião, da história, da sociedade,
da linguagem, da política, etc. Aspectos filosóficos são encontrados dentro
de cada disciplina (na aula de física, o que é uma explicação científica, na
aula de artes, o que é o gosto?), entre as disciplinas (português e matemáti-
ca são linguagens? O que é linguagem, então?). Com isso, pode ficar mais
clara a razão pela qual podemos ver na filosofia uma atividade, inerente-
mente interdisciplinar e transdisciplinar. Para além (ou junto com) de um
núcleo duro de problemas tipicamente filosóficos, o trabalho de reflexão
da filosofia atinge cada dimensão da experiência humana em seus aspec-
tos fundamentais. Muitos de seus temas não são canônicos de nenhuma
disciplina em particular; eles estão entre as disciplinas, e a filosofia pode
abordá-los porque nenhum tema pode ser tratado sem o uso implícito de
esquemas conceituais fundamentais, cuja investigação é típica da filosofia.
Não podemos confundir a lógica da aprendizagem de uma área de
conhecimentos, habilidades e familiaridades com a lógica de sistematiza-
ção (de conhecimentos, habilidades e familiaridades). Dizendo de outra
forma: uma coisa são os conteúdos sistematizados das diversas disciplinas;
outra coisa é a forma como esses conteúdos são armados para a aprendi-
zagem, que é o que nos interessa na sala de aula. O esquecimento dessa

32 Universidade Federal da Fronteira Sul


diferença e a fraca consciência didático-pedagógica faz com que a experi-
ência de escolaridade seja vivida pelo aluno como uma mera justaposição
de sequências de conteúdos sistematizados que não conversam entre si.
A escola precisa preservar um sentido de narratividade, que é fortalecido,
entre outras coisas, pelo espírito da inter e da trans disciplinaridade. O
apelo do discurso do interdisciplinar surge no contexto dessa crise didáti-
ca, cuja essência é a confusão entre a lógica dos conteúdos com a lógica
da aprendizagem, que reduz a sala de aula a um lugar de apresentação de
conteúdos sistematizados.
A noção de interdisciplinaridade precisa ser compreendida e ana-
lisada em suas múltiplas dimensões. No caso de nossa atividade, não po-
demos confundir o uso da noção de interdisciplinaridade no âmbito das
aprendizagens escolares com, no limite, suas aplicações no âmbito da
produção de conhecimentos avançados. O que nos importa como edu-
cadores é o interdisciplinar escolar, a saber, como um recurso didático
que produz a experiência essencial de narratividade na vida escolar. O
interdisciplinar de pesquisa é um espaço de produção de conhecimentos
de ponta visando inovações e aplicações tecnológicas. Os debates sobre
filosofia e interdisciplinaridade que não demarcam adequadamente esses
usos conceituais pouco fazem avançar a discussão curricular no ensino
médio.
Algumas discussões sobre ensino de filosofia limitam-se a tentar
compreender e a bem lamentar nossas dificuldades; precisamos dar um
passo a frente: ir até a escola que funciona em nosso bairro e ajudar a
construir propostas didáticas, de preferência inter e trans disciplinares; as
pressões governamentais para que o ensino tenha interdisciplinaridade
deveria ser visto por nós, interessados na reconstrução da educação bra-
sileira, como uma oportunidade para a filosofia ocupar adequadamente o
lugar que lhe cabe na escola. Se isso não acontecer, corremos o risco de
viver uma curta primavera da filosofia no currículo do ensino médio.

Ensino de Filosofia 33
3. O ENSINO DA FILOSOFIA: Um possível
modo de situá-lo no currículo da educação
básica
Odair Neitzel1
José Pedro Boufleuer 2

1. INTRODUÇÃO

No dia 2 de junho de 2008 foi sancionada a Lei nº 11.684, tornan-


do obrigatória a oferta das disciplinas de filosofia e sociologia no ensino
médio das escolas públicas e privadas do Brasil. Seu retorno se dá depois
de 37 anos de sua exclusão dos currículos pelo então Regime Militar, ins-
tituído pelo golpe de 1964.
Fruto de uma ampla mobilização de educadores brasileiros, o re-
torno dessas disciplinas ao currículo da educação básica não encerra as
discussões em torno das motivações e justificativas que estiveram na base
de sua reivindicação. A simples existência da lei não garante que filosofia
e sociologia constarão para sempre da dinâmica formativa de nossos jo-
vens. A garantia de manutenção do preceito legal requer, por isso, a conti-
nuidade da mobilização dos educadores por meio do aprofundamento do
debate, incluída a avaliação das experiências em curso, capaz de produzir

1 Mestre em educação pela UNIJUÍ. Professor de Filosofia da Universidade Federal da Fronteira Sul
(UFFS).

2 Doutor em educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor da UNIJUÍ.
razões convincentes para o que se acredita ser a importância da filosofia e
da sociologia na formação dos jovens adolescentes.
A pretensão deste texto é apresentar algumas reflexões que possam
oferecer contribuições ao debate quanto ao possível papel da filosofia no
processo formativo das novas gerações. De fato, sua presença no currículo
do ensino médio no Brasil enseja uma tematização acerca da sua espe-
cificidade temática como área de conhecimento e da sua relação com a
intencionalidade formativa da educação escolar, o que permitirá visuali-
zar um possível lugar desta disciplina no âmbito do currículo escolar. De
outra parte pretendemos sinalizar, de alguma forma, para tudo aquilo que
se põe no horizonte do operar pedagógico do filósofo-professor quando
este pisa em uma sala de aula. Ou seja, para o que se coloca em jogo,
quais problemáticas e o que precisa ser considerado quando o professor se
propõe a ensinar. Enfim, qual o seu papel, quem são os seus interlocutores
e quais as abordagens que marcam a especificidade do seu fazer.
A proposta, aqui, é pensar essas questões sob a inspiração do que
se convencionou chamar de paradigma da racionalidade comunicativa e
que, em nosso entender, apresenta-se como um modo de filosofar já não
mais metafísico. Faremos isso a partir do que podemos entender como a
questão da filosofia em perspectiva ampla, considerando o que é propria-
mente fundante na tematização filosófica ocidental e que gira em torno da
pergunta de como organizar um mundo comum, haja vista que o modo
humano de ser não é nato e que, por isso, necessita ser estabelecido. Em
outros termos, o fato de os homens não mais serem determinados pelos
instintos lhes põe a tarefa de produzir um entendimento de como tornar a
vida coletiva o mais razoável possível. Emerge com essa questão o tema
central de toda a filosofia ocidental: o da racionalidade. A partir dessa
questão põe-se propriamente o tema do conhecimento, envolvendo, por
sua vez, as relações dos indivíduos entre si e destes com a natureza.
Situado, assim, o núcleo fundante da tematização filosófica, inter-
pretado, por sua vez, na perspectiva de uma racionalidade comunicativa,
acreditamos poder pensar tanto a questão central da formação humana
como a possível contribuição do conhecimento filosófico na educação es-
colar. Com esse percurso investigativo-argumentativo pensamos oferecer
algumas indicações para as questões acima enunciadas que envolvem o
ensino de filosofia.

36 Universidade Federal da Fronteira Sul


2. O CAMPO DE ESTUDOS DA FILOSOFIA

Iniciemos perguntando o que é filosofia e, por extensão, do que


trata a filosofia. Mas não é intenção aqui recorrer aos manuais de filosofia
para saber de quantos modos essa pergunta já foi ou pode ser respon-
dida. Mesmo que esse exercício, obviamente, pudesse ser realizado. A
intenção, aqui, é responder a essa questão por meio de um raciocínio
que, embora possa parecer simplificado, não deixa de ir ao ponto que
julgamos central. Valemo-nos, para isso, daquilo que se conta a respeito
de outra área do conhecimento, a economia. Diz-se que um grupo de eco-
nomistas, reunidos em congresso, se propôs a elaborar um conceito geral
que expressasse o que é economia. Passados vários dias de discussões, o
grupo teria, enfim, chegado à seguinte conclusão: economia é aquilo do
que se ocupam os economistas. Mesmo sendo contado como uma piada,
ou talvez como forma de ridicularizar o que teria sido o esforço em vão
desse grupo de congressistas, a conclusão evidencia algo de importante,
no caso, de que não há um conceito, a priori e essencial, do que seja eco-
nomia, embora, de fato, e objetivamente, haja um quefazer dos que vêm
se intitulando economistas.
No caso da filosofia certamente não aconteceria algo muito dife-
rente. Se reuníssemos um grupo de filósofos para definir o que é filosofia
teríamos, possivelmente, tantas respostas quantos fossem os filósofos reu-
nidos. E a conclusão a que se chegaria, muito provavelmente, seria de que
filosofia é aquilo do que se ocupam os filósofos... Ou seja, também aqui
não parece fazer sentido buscar algo como uma essencialidade do filoso-
far. Essencialidade, aliás, que inexiste em qualquer área do conhecimento.
Para existir, ao modo de um dado em si, como pretendia a metafísica clás-
sica, o conhecimento deveria “brotar” da realidade e apresentar-se como
que à revelia dos sujeitos cognoscentes. A filosofia moderna, a começar
por Kant, foi desfazendo essa percepção, de modo que hoje sabemos que
todo conhecimento resulta de um “botar-se” do homem no mundo, com
suas condições e/ou como intérprete, com o que ele sempre traz a marca
do humano, sendo, a rigor, uma criação sua. Observe-se que é exatamente
no âmbito da educação, em meio à disputa por fatias do currículo, que
ainda há os que imaginam contar com uma objetividade essencial do seu
conhecimento, acreditando que “é assim que as coisas são”...

Ensino de Filosofia 37
Dizer que todas as áreas do conhecimento são criações humanas,
porém, não quer dizer que elas são irrelevantes, que carecem de objetivida-
de, ou que a seu respeito se pode dizer ou ensinar qualquer coisa. É exata-
mente pelo fato de os conhecimentos serem talhados ao nosso modo de ver
as coisas, ao nosso modo de percebê-las em seu alcance ou significado, que
temos a configuração do mundo humano que, enfim, é tudo o que temos.
Não há outro mundo senão este que erigimos por meio das objetivações
simbólicas concernentes aos nossos modos de ser e de interagir com os ou-
tros e com o meio. Dito de outro modo, o mundo é aquilo que se apresenta
como algo para nós, como âmbito acessível à reflexividade e horizonte de
possibilidades, num desafio constante à liberdade e ao risco das escolhas.
Voltando à filosofia, e já sem as ilusões de encontrar aí uma objeti-
vidade essencial, de que forma poderíamos falar do que fazer dos filóso-
fos? Seria possível dizer algo sobre essa área do saber sem deixar a enten-
der que aí vale dizer qualquer coisa, ou que se trata de um âmbito de livre
criação de cada respectivo professor? Em que sentido, portanto, podería-
mos falar de filosofia como um campo temático próprio, com abordagem
específica, passível de justificação como disciplina a compor o currículo
da educação básica? É nesse sentido que se põem os esforços a seguir.
Ao longo dos tempos, pelo menos desde os gregos, sempre houve
os que se entenderam como filósofos ou que foram considerados como
tais. Assim, não parece pairar dúvidas de que Heráclito, Platão, Descartes,
Kant, Heidegger, por exemplo, foram filósofos. E há, também, nos dias
de hoje e entre nós os que se apresentam ou são considerados filósofos,
como Apel, Tugendhat, Honneth, Morin, Stein, entre outros. E com o que
se ocupam os filósofos e que poderíamos, então, chamar de filosofia? A
resposta que acreditamos mais ou menos evidente é a de que os filósofos
são os que dialogam com a tradição que se tem chamado de filosofia, pois
não parece existir filósofo que seja capaz de dispensar esse diálogo com
outros também considerados filósofos.
A pergunta óbvia que se põe diante desse raciocínio aparentemen-
te circular é sobre o que tem tratado esse diálogo. Parece evidente, mais
uma vez, que um diálogo só é possível se há temas em comum. E quais
seriam esses temas? Arriscamos aqui dizer que se trata de um diálogo em
torno das questões do mundo humano. Mundo esse que já tem um tem-
po... Que não está e nunca estará sendo iniciado por qualquer que seja
a geração de humanos. Os primórdios do mundo humano podemos até
38 Universidade Federal da Fronteira Sul
imaginar, conjeturando, por exemplo, acerca do que teria estado em sua
base fundacional, mas não há como trazer argumentos factuais relativos
à sua emergência. Já a filosofia, em função de registros de que dispomos,
e que remontam há aproximadamente três milênios, parece consistir num
esforço em tornar reflexiva essa experiência do mundo humano. Uma re-
flexividade que se inicia pelos limites e possibilidades do conhecimento
humano, cuja consciência possibilitaria a instauração de modos de ser e
de interagir em níveis de maior razoabilidade, haja vista que esses modos,
para nós humanos, não se encontram previamente determinados.
A indeterminação do modo humano de ser faz com que o diálogo
sobre quem somos e sobre a que podemos aspirar se torne uma questão
que não se resolve “de vez”, mantendo-se como abertura fundamental
para a consideração à luz das sempre novas circunstâncias de cada épo-
ca e para as diferentes possibilidades de compreensão dos indivíduos e
grupos. Assim, mesmo que a tematização da condição humana possa ser
entendida como a questão que perpassa o diálogo filosófico, os modos de
fazer isso vão mudando ao longo dos séculos, configurando o que se pode
chamar de um diálogo sempre situado na história da humanidade. Com
isso, duas coisas parecem ter ficado bastante claras até aqui.
A primeira é a de que filosofia só pode chamar-se como tal enquan-
to reflexão que dialoga com a tradição do pensamento filosófico. Podem-
se, inclusive, contrapor posições de autores e concepções que compõem
a tradição da filosofia, como frequentemente ocorre, mas não se pode
prescindir, ignorando, do que nessa tradição já se produziu. Assim como
também nos demais campos de conhecimento ninguém vai começar da
estaca zero, como que “descobrindo a roda”. É da condição humana sem-
pre contar, mesmo que de forma nem sempre consciente, com as experi-
ências dos que nos antecederam.
A segunda coisa que nos parece ter ficado clara é a de que filosofia,
em sentido bem amplo, ocupa-se da condição humana e das possibilida-
des de estabelecer um modo de ser e de interagir passível de ser predicado
de razoável. Embora essa noção remeta ao tema da racionalidade, não se
trata aqui de referência a qualquer modo específico de como se estabele-
ceu sua compreensão ao longo dos séculos, mas de uma referência antro-
pológica, ou seja, como indicativo de um modo especificamente humano
de ser enquanto necessitado de fazer-se, já que não de todo determinado
pela sua constituição biológica.
Ensino de Filosofia 39
Ainda no que se refere à busca de um modo razoável de ser e in-
teragir, a segunda coisa que nos pareceu evidente até aqui, pode-se visu-
alizar, sob esse âmbito, uma espécie de “divisor de águas”: ou essa busca
se faz na perspectiva de encontrar uma resposta em definitivo e que per-
mitiria, por assim dizer, encerrar essa busca, ou essa busca se vislumbra e
se entende ao modo de uma proposição que resulta de um determinado
modo de compreensão do humano, necessitando, por sua vez, de justifi-
cação na perspectiva de que se torne reconhecida como válida. Grosso
modo, esse divisor de águas se refere ao que podemos entender por pen-
samento metafísico e pensamento não mais metafísico. Enquanto que no
primeiro modo a solução é entendida como dada “de vez”, seja como
revelação ou como descoberta, no segundo modo a solução é entendida
como construída no tempo histórico e passível de revisão. Enquanto que a
primeira, em função do seu estatuto metafísico, permitiria uma aplicação
à revelia dos sujeitos históricos, a segunda, em função do seu estatuto de
mera proposição, depende sempre da consideração das perspectivas dos
sujeitos envolvidos em sua aplicação.
Tendo chegado a esse ponto somos obrigados a dizer que o cará-
ter das considerações relativas aos vínculos entre a filosofia e a formação
humana, com implicações para a formação escolar, depende de que lado
nos pomos ante o “divisor de águas” acima referido. Mesmo que possamos
dizer que o conjunto da filosofia se ocupa da condição humana, a indi-
cação de suas possíveis contribuições na formação das novas gerações,
pela mediação da docência em espaços de ensino formal, dependerá da
percepção do seu estatuto.
E nesse sentido podemos dizer que no tempo histórico atu-
al, e no que se expressa por meio das produções e pelos autores
mais reconhecidos, a filosofia hoje se compreende como não mais
metafísica, isto é, como proposição. Trata-se do reconhecimento
de que estamos todos num mesmo barco, como que à deriva, sem
que ninguém saiba melhor, e antes de todos, para qual direção
seguir. Diante dessa percepção assume-se, então, o desafio de um
acerto de perspectivas com todos os envolvidos. Nesse pensar não
mais metafísico reconhece-se a nossa condição de seres que vi-
vem num mundo finito, em que os padrões de verdade devem ser
construídos em perspectiva imanente, o que os torna precários e
sempre provisórios (STEIN, 1996, p. 32). E, para podermos viver

40 Universidade Federal da Fronteira Sul


em sociedade, bem como para educarmos as novas gerações, pre-
cisamos definir, por nossa conta e risco, em quais verdades vamos
acreditar e sob quais regras pretendemos assentar nossas relações
de reciprocidade.
Contrapõe-se a perspectiva não mais metafísica a todo e
qualquer tipo de tematização filosófica que pressupõe sentidos pre-
viamente postos, ou fins que se impusessem à revelia dos sujeitos
históricos e de suas percepções, dos quais algum princípio de razo-
abilidade ou de “razão do mundo” pudesse emanar. Um possível
modelo de racionalidade passível de acolhimento, nessa perspecti-
va não mais metafísica, deverá assentar-se nas condições do proces-
so em que se fazem as escolhas relativas à configuração do mundo
humano. Em outros termos, a razão admissível já não poderá ser
teleológica, e, sim, processual.
É em função de todas essas questões até aqui refletidas que
entendemos fecundo pensar o ensino de filosofia no currículo da
educação básica na ótica do que se tem chamado de paradigma da
racionalidade comunicativa, enquanto modo de filosofar que busca
seus critérios de razoabilidade nos processos de entendimento lin-
guístico de que lançam mão os homens ao construírem seu mundo
humano comum. Figura de destaque desse paradigma filosófico é
Jürgen Habermas3.

3. A RACIONALIDADE COMUNICATIVA COMO PARADIGMA


DE PENSAMENTO FILOSÓFICO

Habermas propõe um novo critério de orientação para os mo-


dos humanos de ser, de agir e de interagir (com os outros e com a
natureza) ao interpretar a razão humana como capacidade de cons-
truir entendimentos compartilhados, construídos e legitimados em
processos intersubjetivos de argumentação. Trata-se da racionali-
dade comunicativa que, na perspectiva do seu projeto filosófico,

3 Jürgen Habermas (1929), filósofo e sociólogo alemão, filiado à tradição da teoria crítica, é autor da
Teoria da ação comunicativa, obra em que apresenta a concepção de racionalidade comunicativa
sustentada na ação orientada ao entendimento e ao consenso, configurando um modelo de razão que,
segundo o autor, é capaz de resgatar o potencial emancipatória do agir humano, esgotado no modelo
moderno de racionalidade instrumental.
Ensino de Filosofia 41
resulta em parâmetro que permite sustentar uma teoria crítica da
sociedade, capaz de identificar as patologias do mundo humano
contemporâneo4.
Seja como reflexão crítica ou como modo de orientação pauta-
do na construção de entendimentos, a racionalidade comunicativa pode
inspirar, a nosso ver, modos de abordagem da filosofia em contextos de
ensino. Para avançar nessa direção, porém, é preciso sustentar com mais
detalhes a perspectiva da racionalidade comunicativa como modo de situ-
ar a filosofia e o seu quefazer.
A razão comunicativa é elaborada por Jürgen Habermas em sua
obra Teoria da ação comunicativa (1987), em que dialoga com pensado-
res das mais diferentes correntes de pensamento filosófico, sociológico,
psicológico, entre outras. Esse exercício de interlocução denota, por si só,
uma disposição dialógica com pretensões de ampliação dos horizontes
daquilo que consideramos como racional, resultando em nova perspectiva
de se situar diante do saber e do exercício filosófico.
A concepção de uma racionalidade pautada na comunicação e no
discurso argumentativo é apresentada como alternativa frente ao esgota-
mento da razão cognitivo-instrumental e de sua incapacidade de levar
adiante o projeto moderno de esclarecer e emancipar os homens. Enquan-
to que no modelo da razão cognitivo-instrumental o paradigmático é “a
relação de um sujeito solitário com algo no mundo objetivo, que pode
ser representado e manipulado”, no modelo de uma racionalidade comu-
nicativa o paradigmático é “a relação intersubjetiva que estabelecem os
sujeitos capazes de linguagem e ação quando se entendem entre si sobre
algo” (HABERMAS, 1987, v. 1, p. 499).
Habermas visualiza na racionalidade comunicativa um modo de
coordenação dessas interações capaz de preservar a condição de auto-
nomia dos sujeitos na configuração de sua vida coletiva. Uma autonomia
já não pautada no solipsismo ou na autorreferência dos próprios sujeitos,
como proposto pela moderna filosofia da consciência, mas nos laços in-
tersubjetivos que articulam os sujeitos no processo de constituição desse
mundo humano. Conforme Habermas,

4 É importante observar que a noção de crítica adquire sentidos distintos no pensar metafísico e no
pensar pós-metafísico. Para o primeiro sempre significa a sinalização de algo que tenha se desviado
do padrão original ou essencial, enquanto que para o segundo aparece como identificação de traços
resultantes das opções ou proposições feitas ou assumidas.
42 Universidade Federal da Fronteira Sul
O conceito de ação comunicativa se refere à
interação de pelo menos dois sujeitos capazes de lin-
guagem e de ação que (seja com meios verbais ou
extraverbais) estabeleçam uma relação interpessoal.
Os atores buscam entender-se sobre uma situação de
ação para poder assim coordenar de comum acordo
seus planos de ação e com isso suas ações (1987, v.
1, p. 124).
Dessa forma, sob o pressuposto de um pensar já não mais metafí-
sico, a racionalidade comunicativa é proposta como possível parâmetro
para a coordenação das interações que constituem o mundo humano co-
mum. Parâmetro esse que emerge do próprio modo de a linguagem estru-
turar-se com vistas ao entendimento, qualificando-se, assim, como “fato
da razão” (HABERMAS, 1989a, p. 418). Assim, consideram-se racionais
aqueles que são capazes de fazer afirmações fundamentadas e justificar
tais proposições perante o crivo da argumentação crítica. “Ser racional
significa ser capaz de apresentar justificativas razoáveis, agregar argumen-
tos aceitáveis, que se configurem em motivos suficientemente fortes, en-
quanto boas razões, para suportar a crítica que se faz presente no embate
argumentativo” (BOLZAN, 2005, p. 85).
O projeto habermasiano tem como uma de suas bases a guinada
linguístico-pragmática no âmbito da filosofia, que permite a visualização
da linguagem não como instrumento de que lançam mão os comunican-
tes, mas como médium em que esses se constituem e se revelam em suas
motivações que podemos chamar de racionais. Revela-se, assim, a dimen-
são de uma razão que já não se identifica com o operar de um sujeito mo-
nológico, mas com o operar intersubjetivo que se expressa pelo diálogo
argumentativo, permitindo pensar a coordenação das ações sociais em
suas possíveis motivações intersubjetivas ou como resultado de acordos
estabelecidos entre as partes envolvidas.
Habermas considera a linguagem o locus em que os homens ex-
pressam níveis de maior ou menor racionalidade (razoabilidade) no en-
frentamento de sua condição de espécie sem sentido posto. Isso significa
compreender a linguagem como “marca antropológica por excelência”
(ARAGÃO, 1992, p. 51), acontecimento humano primeiro e fundante
de tudo o que possa ser considerado humano. Em termos filosóficos isso
significa subscrever uma compreensão de “filosofia primeira” em que
Ensino de Filosofia 43
a linguagem efetivamente assume a preponderância na constituição do
modo especificamente humano de ser5.
Essa tomada de consciência acerca do papel fundamental da lin-
guagem na constituição da vida humana vem ocorrendo não só no campo
da filosofia, mas também em outras frentes de reflexão que se ocupam
com os fenômenos da cultura, da sociedade e das formas de subjetivação.
Tais fenômenos passam a ser compreendidos, então, a partir do pressu-
posto de que em sua lógica estruturante se encontram indivíduos cuja
espécie desenvolveu uma competência linguística. Para todos os efeitos,
“é preciso considerar que somos seres linguísticos e comunicativos, que
nos movemos na linguagem. Não temos a possibilidade, segundo Haber-
mas, de saltar fora do círculo mágico da linguagem” (NEITZEL, 2009, p.
29). É a virada linguística no campo da filosofia que permite, por sua vez,
a sustentação de um conceito de racionalidade comunicativa nos termos
propostos por Habermas.
A potencialidade estruturante da linguagem, tanto no nível dos in-
divíduos como no nível da coletividade humana, só é possível de ser veri-
ficada a partir das teorias pragmáticas, que consideram a linguagem sob o
ponto de vista de seu emprego em contextos comunicativos e não apenas
sob o ponto de vista linguístico e semântico. Isso porque na perspectiva
das teorias pragmáticas já não interessam apenas as relações entre lingua-
gem e mundo, mas, e especialmente, as relações que se estabelecem entre
os sujeitos quando a linguagem é usada para referir-se ao mundo, o que
equivale ao uso comunicativo da linguagem, presente em contextos de
diálogo.
Numa comunidade de agir comunicativo Habermas identifica dife-
rentes tipos de argumentação e discursos em que os sujeitos se comportam
de modo racional ao se expressarem sobre saberes ao mesmo tempo em
que vão justificando suas motivações implícitas. Esses discursos podem se
ocupar de configurações diferentes do mundo. Assim, no discurso teórico,
que se ocupa do mundo objetivo dos fatos constatáveis que podem ser ver-
dadeiros ou não, revelam-se racionais as pessoas que no âmbito cognitivo
-instrumental expressam opiniões fundamentadas e agem eficientemente.

5 É exatamente o estabelecimento de um parâmetro de razoabilidade no interior do operar da


linguagem que indica a assunção de um pensar pós-metafísico, considerando que a metafísica se
caracteriza exatamente pela crença de que as questões do mundo humano possam ser resolvidas
em algum âmbito fora da linguagem, do que advém, também, a crença de que o homem pudesse ter
emergido por força de algum dinamismo fora da linguagem.
44 Universidade Federal da Fronteira Sul
Já no discurso prático, que se ocupa do mundo social das normas e so-
lidariedades, e que podem ser predicadas de justas ou não, revelam-se
racionais as pessoas capazes de justificar suas proposições recorrendo às
normas consensuais vigentes. Por fim, o próprio discurso explicativo liga-
se a argumentações com pretensões de manifestação linguística de acor-
do com as regras gramaticais vigentes no contexto da interação, sendo,
portanto, considerado racional quem se dispõe a refletir sobre as regras
linguísticas diante de perturbações comunicativas.
Essa relação que se estabelece no encontro discursivo ou comu-
nicativo precisa seguir critérios de argumentação, de verdade proposi-
cional, de justeza normativa e de veracidade subjetiva. Isso significa que
os sujeitos envolvidos na argumentação devem se orientar a partir dessas
pretensões para que as suas argumentações sejam passíveis de crítica e
reformulação. Em outros termos, é necessário que os sujeitos pretendam
que suas manifestações em relação ao mundo objetivo sejam verdadeiras,
que se proponham a assumir a normatividade socialmente acordada, além
de se expressarem de modo sincero sobre suas percepções individuais e
subjetivas.
A partir disso podemos afirmar que a racionalidade comunicativa,
que se apoia na linguagem, como competência argumentativa, sem uso da
força ou de uma ação estratégica, gera consensos por intermédio do en-
tendimento recíproco entre os sujeitos envolvidos no processo argumenta-
tivo. A razão comunicativa, portanto, orienta-se por ações e movimentos
que buscam alcançar o consenso, alterar algo no mundo ou mudar um
estado de coisas, orientando-se em ações coordenadas e gerenciados pelo
uso do entendimento comunicativo.
Ao falar o sujeito se abre às possibilidades de ter sua manifestação
corroborada ou recusada. Nesse sentido, a atitude dialógica é sempre ar-
riscada e, ao mesmo tempo, reconhecedora da própria insuficiência. Para
todos os efeitos, o que distingue o homem é o “entendimento compartilha-
do”, “o fato de que podemos dialogar uns com os outros”, ou seja, “preci-
samente o entendimento” (TUGENDHAT, 2007, p. 187). Isso sugere que a
razão não constitui um feito “meu”, como se fosse uma dinâmica a ocorrer
no interior de minha subjetividade, mas um feito “nosso”, intersubjetivo e
social. Não se trata, portanto, de “uma capacidade desligada e, de alguma
maneira, sobrenatural (...), mas consiste simplesmente em poder perguntar
por razões” (p. 190).
Ensino de Filosofia 45
Assim, mais do que algo que eu tenha, a razão é uma dimensão
que o outro me confere. Entende-se, aí, que a dimensão do “saber que
se sabe” só é alcançável pela mediação do outro, por algo como uma
aprovação ou desaprovação diante de alguma manifestação que fazemos.
Essa certificação que o outro nos confere, e que tendemos a buscar nos
demais indivíduos com quem estamos ou interagimos, pode ser entendida
como o princípio de tudo o que temos como conhecimento. É também
esse outro, com seu “sim” ou “não”, que nos motiva e impulsiona na dire-
ção do incremento do conhecimento, o que buscamos por meio de novas
aprendizagens.
Diferentemente dos pressupostos da metafísica e da filosofia da cons-
ciência, no diálogo argumentativo se pode contar apenas com a opinião do
outro, com a sua manifestação de concordância ou não, para a validação
do que se acredita ser uma percepção adequada de alguma realidade do
mundo. Enuncia-se aqui, obviamente, um procedimento que advém da in-
terpretação hermenêutica, em que os participantes de um diálogo...

Ao tomarem parte em ações comunicativas,


aceitam por princípio o mesmo status daqueles cujos
proferimentos querem compreender. Eles não estão
mais imunes às tomadas de posição por sim/não dos
sujeitos de experiência ou dos leigos, mas empe-
nham-se num processo de crítica recíproca (HABER-
MAS, 1989b, p. 43).
O aspecto importante a ser destacado é o fato de que o mundo
humano, como fenômeno de cultura e de sociedade, resulta dessa possi-
bilidade criadora, de aprendizagem propriamente dita, que emerge da co-
municação. É sempre a mediação do outro, sob a forma de assentimento
ou de recusa ao que é enunciado, que permite percepções e modos de agir
que se modificam e se incrementam, ensejando uma interação inteligente
e, possivelmente, razoável com o entorno natural e social.

4. PERSPECTIVAS PARA A FILOSOFIA NO PROCESSO DE


FORMAÇÃO

Em assumindo a pretensão de contribuir na qualificação da forma-


ção no ensino médio, a filosofia precisa estar atenta às motivações que
46 Universidade Federal da Fronteira Sul
sustentam o seu trabalho e ciente do modelo de razão que toma por refe-
rência. Para Habermas, mesmo quando a filosofia não se apresenta como
indicadora do lugar das ciências e como juiz da razão (perspectivas kan-
tianas)6, ela pode e deve manter sua pretensão de razão (concordando
com Kant) nas funções mais modestas de intérprete e de guardador do
lugar da razão, resguardando a racionalidade do discurso orientado para o
mundo da vida (HABERMAS, 1989b, p. 17-36). Esse propósito da filosofia
pode ser reafirmado sob o modelo da razão comunicativa que, segundo
Habermas, carrega em si o potencial de emancipar os sujeitos ao permitir
a interpretação reflexiva e ampliada das situações em pauta. Segundo Ha-
bermas, a racionalidade comunicativa se sustenta na...

(...) experiência central da capacidade de reu-


nir sem coação e de gerar consenso que tem uma
fala argumentativa em que diversos participantes
superam a subjetividade inicial dos seus respectivos
pontos de vista e perante uma comunidade de con-
vicções racionalmente motivadas se asseguram por
sua vez da unidade do mundo objetivo e da intersub-
jetividade do contexto em que se desenvolvem suas
vidas (HABERMAS, 1987, v. 1, p. 27).
No que se refere ao seu potencial emancipador, se tomarmos como
referência as reflexões que a filosofia construiu em seu percurso histórico
e do qual, de certo modo, os professores de filosofia são testemunhas,
vemos que o que põe os homens em busca do saber, que alimenta sua
curiosidade, que instiga o desejo de entendimento das coisas, levando-os
à constituição de um mundo próprio por meio da produção da cultura e
da organização de sociedades políticas é, em última instância, a pretensão
de se libertar da opressão. Opressão que se impõe, primeiramente, por sua
condição de existência, depois pelo trabalho e, por último, pelas restrições
que tem sua origem no próprio homem (ARENDT, 2007, p. 8-13). O que
se percebe, portanto, é que o sonho de emancipar o ser humano e torná
-lo independente dos determinismos de toda espécie perpassa, de alguma
forma, a história da filosofia.
Em diferentes momentos da história humana se bradou o ideal de
6 Sob essa perspectiva, caberia à filosofia um papel prévio de indicação das condições de possibilidade
de toda e qualquer ciência, com o que ela assumiria o lugar de juiz supremo de toda a cultura
científica.
Ensino de Filosofia 47
emancipação dos homens. Esse projeto tem seu momento mais fulgurante
no período da ilustração. Tal projeto ainda não se consolidou, como alerta
Adorno e Horkheimer, denunciando a razão moderna como esgotada e
incapaz de tal tarefa. Um dos que retoma essa perspectiva é Habermas ao
propor um novo modelo de razão, a racionalidade comunicativa (BOL-
ZAN, 2005, p. 89-94).
Ao assumir que a filosofia é a guardadora do lugar da razão e que a
razão comunicativa possui o potencial de emancipar os sujeitos, podemos
delinear uma perspectiva para a sua ação no processo de formação das
novas gerações. Nesse sentido, podemos atribuir-lhe uma tarefa interdis-
ciplinar em meio ao conjunto dos saberes curriculares, bem como a tarefa
de trazer, pelo conhecimento representado pelo professor, a especificida-
de da reflexão filosófica constituída na história do pensamento humano.
Como reflexão interdisciplinar a filosofia dirige um olhar crítico à
base racional que sustenta todo o currículo da instituição e dos progra-
mas de ensino. Segundo Bolzan, “Habermas diria que a escola deveria ser
efetivamente um espaço público de acesso ao saber, capaz de interagir
comunicativamente com os diversos setores que compõem a estrutura de
uma sociedade” (2005, p. 60). Já como saber específico a filosofia procura
contribuir na formação de sujeitos racionais com competências com vistas
à inserção no mundo da vida. Essas competências são as que garantem
aos sujeitos o atributo de racionais, já que “racional, segundo Habermas,
é aquele que é capaz de fazer afirmações fundadas e justificar tais propo-
sições perante o crivo da argumentação crítica” (BOLZAN, 2005, p. 85).
Trata-se, em outros termos, de desenvolver nos sujeitos as competências
necessárias para que esses tomem parte na comunidade de ação comuni-
cativa.
É por meio das estruturas simbólicas do mundo da vida que ocorrem
os processos de aprendizagem que compõem a práxis educativa. “Desde a
mais tenra idade outras pessoas, nossos pais e educadores, irmãos e com-
panheiros, interagem conosco estabelecendo entendimentos sobre ‘aspec-
tos do mundo’, a fim de que possamos nos desenvolver como indivíduos
socializados” (BOUFLEUER, 1997, p. 21). Pela tematização e explicitação
do mundo vivido a filosofia se orienta para a identificação daquilo que
nos governa de modo nem sempre consciente. Trata-se, na verdade, de
um exercício que parte do pressuposto de que a vida, os pensamentos, as
convicções, as atitudes, os valores, enfim, o que consideramos ser o real e
48 Universidade Federal da Fronteira Sul
o seu significado é resultante de uma história que se condensa no tempo
atual. O filosofar, nessa perspectiva, consiste no esforço em trazer ele-
mentos da cultura, como conceitos, interpretações, referências etc., que
possam contribuir para a compreensão da vida e o seu entorno.
Ao buscar desvendar a historicidade da vida humana, a filosofia
esforça-se em compreender os saberes e as práticas existentes a partir das
intencionalidades que os produziram. Em outros termos, ela busca com-
preender como os modos de pensar, de ser e de agir se sedimentaram ao
longo dos tempos, percebendo como os sentidos foram postos, se mantêm
e se modificam. Nesse sentido, o trabalho filosófico se coloca na pers-
pectiva da concriatividade histórica, em que o passado e o presente se
encontram em constante mediação. Por isso as respostas dadas em outros
contextos históricos precisam ser reavaliadas a partir das circunstâncias
do presente. Assim sendo, o filosofar constitui, por um lado, um trabalho
permanente de reinterpretação do passado à luz do presente e, de outro,
uma contínua reinterpretação do presente à luz do legado do passado.
O exercício do filosofar no âmbito da educação poderá, assim, con-
tribuir na identificação das concepções que atravessam os sentidos postos
no âmbito de uma sala de aula. Concepções essas que, não poucas ve-
zes, articulam-se com conceitos e referenciais implicitamente assumidos e
que, por isso, necessitam de tematização. Oferecer elementos que ajudem
na explicitação de conceitos e propor reflexões a partir do significado das
palavras que são utilizadas certamente é um bom começo para o exercício
do filosofar. Se assumirmos o pressuposto de que a realidade é simbolica-
mente construída, o esforço assim orientado contribuirá, sem dúvida, para
uma melhor apreensão do mundo e da vida.
Diante dessas perspectivas, a aula de filosofia pressupõe um am-
biente de liberdade em que professores e alunos se relacionam e se inter-
comunicam, considerando também a experiência que cada um tem com a
realidade. Ensinar filosofia, ou educar mediante o exercício do filosofar, é
oportunizar aos educandos uma melhor percepção de si pela tematização
e explicitação de componentes da tradição filosófica que de modo decisi-
vo contribuem na articulação da teia de interações simbólicas em que se
funda a vida humana em sociedade.
Ao buscar a explicitação dos pressupostos do pensar e do agir,
o ensino de filosofia pressupõe uma dinâmica que vai muito além de
uma simples troca de opiniões, ou de uma conversa que se coloca
Ensino de Filosofia 49
em sentido simétrico entre educador e educando. Do professor, na
sua condição de anterioridade pedagógica, espera-se um preparo
que o habilite a tematizar o sentido do humano historicamente pro-
duzido, especialmente sob o ponto de vista das elaborações mais di-
retamente vinculadas ao campo de estudos da filosofia. Isso exigirá,
por óbvio, uma boa inserção na história do pensamento humano e
um consequente domínio dos conceitos fundamentais que a atra-
vessam. Trata-se, enfim, da competência para trazer, de modo per-
tinente, os elementos da tradição filosófica capazes de contribuir na
compreensão das temáticas propostas ou dos problemas suscitados7.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A esperança que nos move é a de que uma nova concepção de for-


mação humana perpasse o currículo de formação a partir da inserção da
filosofia, com destaque para o desenvolvimento das competências cogni-
tivas e sociais necessárias aos adolescentes na constituição de suas identi-
dades comprometidas com a busca da verdade (MENDES, 2006, p. 23). O
papel fundamental da filosofia na educação começa a se cumprir na medi-
da em que tenta integrar e incluir os educandos na sociedade, garantindo-
lhes as competências necessárias para que construam um entendimento
dos processos pelos quais se tornam cidadãos atuantes e participantes.
Esse papel é intrínseco à filosofia desde sua emergência, já que “em sua
origem a filosofia e a educação se encontram voltadas para a formação
do cidadão; e têm como função prepará-lo para a vida ética e política em
sociedade” (GUIMARÃES, 2001, p. 5).
Mesmo reconhecendo, com Habermas, o papel relativamente
modesto da filosofia no conjunto dos saberes, podemos apostar na im-
portância de sua presença na formação básica das novas gerações. Tal
aposta considera suas significativas contribuições na integração das dife-
rentes dimensões do currículo a partir da sua tradição reflexiva, que pre-
cisa vir ancorada no engajamento e no comprometimento dos docentes

7 Desidério Murcho, em artigo acerca da natureza da filosofia e o seu ensino, alerta para as duas
formas de acabar com a filosofia, ou seja, transformando-a “numa espécie de conversa de café, vaga
e sem qualquer contato com a tradição filosófica”, ou, então, numa história dos grandes problemas
filosóficos, contada sem qualquer envolvimento nessa discussão (MURCHO, 2002, p. 15).

50 Universidade Federal da Fronteira Sul


representantes desta tradição, bem como de toda a equipe pedagógica
(SEVERINO, 2010, p. 58).
Para os docentes é confiada uma missão de apresentar e testemu-
nhar o saber filosófico. Mas o operar pedagógico, que envolve o processo
de ensinar e aprender, é um constante processo de estranhamento inevi-
tável no âmbito da sala da aula. É preciso, por isso, ter consciência que
quando se pisa uma sala de aula se está pisando um terreno que precisa
ser entendido e explicado. Cada situação implica um novo desafio, obri-
gando o educador a pensar sobre sua situação, a respeito da filosofia e
dos estudantes que aí estão como seus interlocutores, reagindo, fazendo
objeções, apresentando suas inquietações.
Por fim, dentre os desafios que se põem para o professor de filosofia
está o de “ganhar” a atenção de seu aluno para o saber filosófico que bus-
ca apresentar. Suas habilidades e competências devem auxiliá-lo a trans-
formar sua aula em um espaço de interação, de interlocução, que permita
que seus estudantes construam entendimentos desse universo simbólico
que compõe o mundo da vida.

Referências

ARAGÃO, Lucia Maria de Carvalho. Razão comunicativa e teoria social


crítica em Jürgen Habermas. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1992.

ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução de Roberto Raposo. 10.


ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.

BOLZAN, José. Habermas: razão e racionalização. Ijuí: Unijuí, 2005.

BOUFLEUER, José Pedro. Pedagogia da ação comunicativa: uma leitura


de Habermas. Ijuí: Unijuí, 1997.

GUIMARÃES, Alissa. A. Filosofia e educação na formação contemporâ-


nea. Revista Princípios, Natal, v. 8 n.9, p. 5-17, jan./jun. 2001.

HABERMAS, Jürgen. Teoria de la ación comunicativa. Madrid: Taurus, v.


1 e 2, 1987.

___. Teoria de la acción comunicativa: complementos y estúdios prévios.


Madrid: Cátedra, 1989a.
Ensino de Filosofia 51
___. Consciência moral e agir comunicativo. São Paulo: Brasiliense,
1989b.

MENDES, Nadelmir M. A filosofia no ensino fundamental na pers-


pectiva das pesquisas discentes. UFPR. Curitiba, 2006. 156 p. Dis-
sertação(Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Educação,U-
niversidade Federal do Paraná, Curitiba, 2006. Disponível em: http://
www.ppge.ufpr.br/teses/M06_mendes.pdf

MURCHO, Desidério. A natureza da filosofia e o ensino. Revista


Educação. Santa Maria (RS), UFSM, Vol. 27, nº 2, 2002, p. 13-17.
NEITZEL, Odair. Educação na contemporaneidade: reflexões a par-
tir de uma racionalidade comunicativa. Ijuí: UNIJUÍ, 2009. 83 p.
Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Educação
nas Ciências, Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio
Grande do Sul, Ijuí, 2009. Disponível em: http://www.unijui.edu.br/cur-
sos/mestrado-e-doutorado/educacao-nas-ciencias

SEVERINO, Antônio Joaquim. Formação política do adolescente no


Ensino Médio: a contribuição da Filosofia. Pro-posições, Campinas,
v. 21, n. 1 (61), p. 57-74, jan./abr. 2010.
STEIN, Ernildo. Aproximações sobre hermenêutica. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 1996.
TUGENDHAT, Ernst. Antropologia como Filosofia Primeira. In:
POMMER, Arnildo; FRAGA, Paulo Denisar; SCHNEIDER, Paulo
Rudi (orgs.). Filosofia e crítica: festschrift dos 50 anos do curso de
filosofia da UNIJUÍ. Ijuí: Editora Unijuí, 2007, p. 183-199.

52 Universidade Federal da Fronteira Sul


4. ENSINAR FILOSOFIA A DISTÂNCIA: isto é
possível?
Marco Antonio Franciotti1
franciotti@icloud.com

1. INTRODUÇÃO

A pergunta-título podia muito bem ser: “ensinar é possível?” Inde-


pendente de ser presencial ou a distância, com ou sem recursos audio-
visuais, em salas com quadros brancos e pincéis atômicos ou não, será
que é possível educar? É curioso que, embora sejamos profissionais da
educação, raramente levantamos essa questão, ou não o fazemos de modo
algum. Parece que simplesmente aceitamos como um pressuposto indubi-
tável o fato de que podemos educar alguém.
Mas será que é assim tão simples aceitar essa ideia? Muitos dos
críticos do ensino a distância usualmente se esquecem de que a questão
sobre a possibilidade de educar a distância não é diferente da questão
mais ampla sobre a possibilidade do educar em geral, a distância ou não.
O ponto de vista que desejamos apresentar neste artigo é que, no que diz
respeito especificamente ao conhecimento filosófico, essas duas questões
não estão necessariamente separadas. A filosofia, segundo alguns pensa-
dores ao longo da história da filosofia, tem a peculiaridade de encorajar no
indivíduo, antes de tudo, a buscar certa habilidade, unicamente a partir da

1 Doutor em filosofia pela University of London. Professor do departamento de filosofia da Universidade


Federal de Santa Catarina (UFSC).
qual a apreensão do conhecimento é possível. Desse modo, a noção tradi-
cional da educação como “transmissão de conhecimento” é questionada
e as supostas desvantagens do ensino a distância – principalmente aquela
sobre a ausência física do professor – são tornadas irrelevantes.

2. O EDUCAR PLATÔNICO

Platão é o primeiro filósofo que trata detidamente do problema da


educação. Há algumas indicações de sua posição acerca do tema quando
ele indaga se a virtude pode ser ensinada. Mas é com os mitos da remi-
niscência – no livro X da República – e da caverna – no livro VII – que
obtemos uma caracterização mais sistemática de sua visão pedagógica.
Os dois mitos se interconectam do seguinte modo: o segundo nos diz que
vivemos agrilhoados no interior de uma caverna, com apenas um feixe de
luz proveniente do lado de fora da caverna a produzir sombras na parede.
A caverna é o mundo empírico, das sensações, da percepção dos cinco
sentidos. Nele o que há são aparências, ilusões. O conhecimento genuíno
está do lado de fora, no mundo ideal, ao qual chegamos com muita difi-
culdade através da reflexão. Esse mundo ideal é mobiliado pelos arquéti-
pos das coisas e habitado pelas almas.
Por outro lado, o primeiro mito, o da reminiscência, conta que as
almas tudo conhecem mas, no caminho em direção ao nascimento, de-
vem cruzar um deserto de sol abrasador e beber a água do rio Lethé (“es-
quecimento”, em grego). Quanto mais água essas almas beberem, mais
dificuldades terão de se lembrar do conhecimento prévio. Os que em vida
se tornam sábios são os que, ao cruzar o rio, pouca água beberam. Os
ignorantes são aqueles que beberam bastante água. O desfecho é peda-
gogicamente fértil: se já sabemos de tudo, se já detemos o conhecimento,
mas nos esquecemos dele, a função do preceptor é o de estimular a alma
sem memória a se lembrar, a resgatar o conhecimento que ela já possui.
Portanto, segundo Platão, há um sentido bem específico a partir do qual
se pode dizer que não é possível ensinar: não se ensina o que já se sabe;
o que nos resta a fazer é criar métodos para que as almas encarnadas reto-
mem o conhecimento que já se encontra nelas.
A leitura de Platão é necessária hoje, pois ainda nos perguntamos o

54 Universidade Federal da Fronteira Sul


que é ensinar, se isso é possível e, em caso afirmativo, como fazê-lo. Sua
resposta é igualmente atual: não podemos ensinar no sentido de transmitir
informações para a mente do aluno, estas já se encontram implantadas na
mente. Assim, ensinar seria, quando muito, “fazer lembrar”, estimular o
aluno a procurar algo que já é seu, a pesquisar por ele próprio o caminho
de Larissa, o caminho do conhecimento.
Resgatar algo seu é tomar posse de seus próprios pensamentos,
reinstalar-se como senhor de suas próprias ideias; é lançar as bases da li-
berdade: somos livres unicamente na medida em que pensamos sem amar-
ras, sem censores, sem líderes. Aprender, nesse sentido, não é conhecer,
mas “re-conhecer”. Além disso, aprender é um ato político por excelên-
cia: aprendemos algo quando conseguimos voltar-nos aos nossos próprios
pensamentos, nossos princípios e regras que nos conduzem durante a vida
e fizermos nossas próprias escolhas, sem ninguém, ou sem nenhuma força
política, nos ditando o que devemos pensar e como devemos agir.
É preciso enfatizar que a alma sem memória só pode se pôr a ta-
refa de re-conhecer se já tiver se dado conta do lapso de memória; só se
procura resgatar aquilo que se sabe perdido. Portanto, é fundamental dar
“saber que não se sabe”. Platão afirma que se dar conta disso é não apenas
difícil, mas principalmente doloroso. Ficamos espantados, surpreendidos,
sem palavras, quando nos damos conta de que não sabemos o que pensá-
vamos saber. Esse espanto, esse arregalar os olhos diante do vazio interior
que precisa ser preenchido, esse é o primeiro ato em direção à sabedoria;
sem ele, não é possível conhecer.
Contudo, o processo de autoeducação não termina aí. Voltemos à
caverna de Platão. O filósofo é exatamente aquele que, por meio da con-
templação e da reflexão, liberta-se do mundo das aparências, o mundo
do interior da caverna, para chegar ao mundo ideal, do lado de fora dela.
Após o contato com as formas arquetípicas lá encontradas, o filósofo volta
à caverna para contar sua história. Outros que estão na mesma situação
em que ele estava, isto é, agrilhoados e incapazes de ver para além das
sombras, irão ouvir sua descrição e, com esforço e determinação, irão
seguir o mesmo caminho.
Ora, a questão que se coloca aqui é: como fazer lembrar? No diálo-
go Ménon, Sócrates consegue fazer um escravo deduzir o teorema de Pitá-
goras. Ele o faz submetendo-o a uma bateria de questões, que se seguiam a
cada resposta obtida. Este é o outro belíssimo aspecto da visão pedagógico
Ensino de Filosofia 55
de Platão: o conhecimento é para todas as almas, independente da posi-
ção social, do gênero, do credo, etc. O conhecimento é acessível a todos,
basta fazer duas coisas essenciais: dar as costas aos sentidos, às sensações,
à percepção – pois eles só nos dão informações provenientes do interior
da caverna, que é povoada por ilusões – e, ao mesmo tempo, engajar-
se numa atitude reflexiva sistemática, procurando esclarecer os conceitos
através do método dialético.
Não há, pois, educadores, no sentido tradicional, para Platão. Não
há indivíduos prontos a receber conhecimentos e outros indivíduos pron-
tos a transmiti-lo. Não é possível ensinar; só é possível se autoensinar. Não
ensinamos ninguém. O ato de educar não é relacional. Ele é introspectivo,
é um voltar-se a si mesmo, é uma contemplação do panorama de sua pró-
pria alma enevoada; é assentar a poeira, clarear a visão interior, abrir os
olhos da própria alma. A não ensina B; A ensina A e B ensina B. O ato de
educar é solitário; é a alma debruçando-se sobre si mesma, redimensio-
nando-se diante do espanto da própria ignorância; é a nossa capacidade
reflexiva sendo exercida por nós mesmos, sem influências externas.
A solidão do autoensinar-se é um estado da alma provocado pelo
filósofo. Platão reserva, assim, um papel ao preceptor: ele deve ser filóso-
fo, buscar o caminho para fora da caverna por meio da reflexão e, ao se
libertar dos grilhões do mundo das sombras, deve voltar a ele e incitar os
prisioneiros da caverna a fazerem o mesmo. A filosofia é um tipo atividade
despertadora, incitando o cidadão a se aprimorar, a se esclarecer, a buscar
a sabedoria. Platão instala, assim, um novo sentido do educar: como edu-
cadores, o máximo que podemos pretender é apontar caminhos, mas é o
aluno que deve trilhá-lo por si mesmo, a partir de sua própria iniciativa.
Sócrates, o personagem central da maioria dos diálogos platônicos,
dava-se a tarefa de incitar os atenienses, levando-os ao espanto. Ele visi-
tava a ágora diariamente e fazia perguntas desconcertantes aos populares.
Ao ver dois cidadãos discutindo sobre se certa decisão governamental foi
justa ou não, ele perguntava aos contendores: “O que é justiça?” Se a dis-
cussão fosse sobre a correção moral ou não de certa ação, ele perguntaria:
“O que é o bem?”. E assim por diante. Seu objetivo era fazer o indivíduo
se dar conta da falta, espantar-se com sua própria confusão conceitual e
desfazer-se dela. O filósofo tem uma função social: mostrar a dúvida onde
há aparência de certeza e a ausência de conhecimento onde há a presun-
ção de sua posse. Mas ela termina exatamente aí. Uma vez despertado de
56 Universidade Federal da Fronteira Sul
seu “sono dogmático”, o indivíduo deve procurar o conhecimento por si
mesmo, solitariamente.
Essa característica também aparece em Kant, para quem não é pos-
sível ensinar filosofia, mas apenas o filosofar:

Só é possível aprender a filosofar, ou seja, exercitar


o talento da razão, fazendo-a seguir seus princípios uni-
versais em certas tentativas filosóficas já existentes, mas
sempre reservando à razão o direito de investigar aqueles
princípios até mesmo em suas fontes, confirmando-os ou
rejeitando-os (KANT, 1990, B 866ff).
A filosofia ainda é um conhecimento por se fazer, sendo elabora-
do e revisto constantemente, não podendo ser capturado e ensinado. O
filosofar, por seu turno, é o exercício da razão, unicamente a partir da
qual realizamos nossa autonomia. Podemos, é claro, exercitar os talentos
investigativos da razão, analisando e criticando as doutrinas filosóficas e
promovendo a livre reflexão. Não é difícil perceber que a visão kantiana
do ato de filosofar guarda similaridades com a atitude reflexiva advinda do
espanto platônico.
Ao mesmo tempo, Heidegger reforça a ideia de que só é possível
ensinar uma habilidade, não conteúdos. Ele afirma que

Ensinar quer dizer “fazer aprender”. Aquele que


verdadeiramente ensina não ensina mais nada que não
seja a aprender. É por isso que a sua ação desperta sempre
a ideia de que perto dele, propriamente dito, não se apren-
de nada... Quem ensina só ultrapassa os aprendizes nisto:
no fato de dever aprender ainda muito mais do que eles,
pois que deve ensinar a “fazer aprender” (HEIDEGGER,
1993, p. 380).
Par Heidegger, educar é habilitar o indivíduo para o exercício de
sua capacidade de aprender. Em termos platônicos, é fazer o indivíduo se
lembrar do conhecimento latente em sua alma, que irá libertá-lo da caver-
na das meras opiniões. Em termos kantianos, é fazer a razão realizar sua
vocação crítica e libertadora.

Ensino de Filosofia 57
3. O EDUCAR A DISTÂNCIA

Se, de acordo com Platão, o educar depende inicialmente do indiví-


duo, de seu interesse e de sua iniciativa, e se o papel do preceptor filósofo
é o de orientar os caminhos apenas, então a visão platônica da educação
serve como uma luva para entendermos a educação a distância. A indica-
ção dos caminhos não requer, necessariamente, um local geográfico espe-
cífico; ela não precisa ocorrer numa sala de aula, em proximidade física
do aluno com o professor. O espanto da própria ignorância acontece em
solitude. A alma deve pôr-se em diálogo consigo mesma2. A filosofia nasce
do solilóquio e só então se transforma em diálogo. Isso quer dizer que não
importa muito onde o aluno está, desde que ele esteja reavaliando suas
ideias; e o professor tenha sido o catalisador do processo, ao seu lado ou
a distância.
Do mesmo modo, nada no pensamento kantiano obsta ao apren-
dizado da filosofia a distância. Ao contrário, se o aluno de um curso a
distância depende marcadamente de seu próprio interesse e iniciativa para
ser bem-sucedido no processo de aprendizado, então a concepção segun-
do a qual só se pode ensinar a habilidade do filosofar se ajusta perfeita-
mente a um curso de filosofia a distância. Finalmente, o ponto de vista
heideggeriano de modo algum conflita com a ideia de se ensinar filosofia a
distância. Se educar é um “fazer aprender”, então o máximo que podemos
pretender no processo educacional é preparar o aluno para o autoapren-
dizado, e isso não requer necessariamente a presença física do professor.
Nesse sentido, pode-se concluir que a distância geográfica entre
professor e aluno não impugna o ensino da filosofia: a atividade reflexiva
é posta a funcionar por uma decisão do indivíduo em solilóquio, a partir
da detecção de um problema – a ignorância, ou ausência de saber – e da
necessidade de sua solução – a busca do conhecimento. As vantagens e
dificuldades do ensino da filosofia a distância são, com base no que até
agora foi dito, as mesmas do ensino da filosofia presencial. Perguntar se
é possível ensinar filosofia a distância é perguntar se a filosofia pode ser
ensinada, a distância ou não tout court.
Para finalizar, gostaríamos de sugerir que tanto a natureza solitária

2 “O aluno passa a ser agente deste processo, pois depende muito do seu interesse e da sua ação para
que haja aprendizado.” In Tarouco (et allia), p. 3.
58 Universidade Federal da Fronteira Sul
do ato de filosofar quanto a natureza dialógica da autoeducação não ga-
rantem o sucesso do aprendizado da filosofia num curso a distância; o
que buscamos mostrar até agora, porém, é que o reverso também não é o
caso: aprender filosofia a distância não é uma tarefa condenada ao fracas-
so, pois, no final das contas, as características, os instrumentos e métodos
de um curso a distância se coadunam com a natureza do conhecimento
filosófico. Se o professor está fisicamente presente no diálogo com o alu-
no ou se está a centenas de quilômetros de distância é o aluno que deve
procurar os conhecimentos que percebeu não possuir. Do mesmo modo,
o diálogo é realizado com ou sem a sala de aula; o que muda é apenas o
meio no qual ele acontece. Dialogar é avaliar e pôr à prova suas ideias em
relação às ideias do outro. Leibniz e Clarke debateram as noções de espa-
ço e tempo absolutos trocando cartas no início do séc. XVIII, o primeiro na
Alemanha e o segundo na Inglaterra. Também Marx discutiu, por meio de
cartas, inúmeros conceitos filosóficos e econômicos com Engels.

Referências

Aspis, R. P. L.: ‘O Professor de Filosofia: O Ensino da Filosofia no Ensino


Médio como Experiência Filosófica’. Cad. Cedes, Campinas, vol. 24, n.
64, p. 305-320, set./dez. 2004.

Favarretto, C.: ‘Sobre o Ensino de Filosofia’. Revista da Faculdade de Edu-


cação, São Paulo, v. 19, n. 1, p. 97-102, jan.jun./1993.

Gallina, S.: ‘O Ensino da Filosofia e a Criação de Conceitos’. Cad. Cedes,


Campinas, vol. 24, n. 64, p. 359-371, set./dez. 2004.

Heidegger, M.: ‘What calls for Thinking?’ In D. Farrell Krell, Basic Writin-
gs: Martin Heidegger, pgs.365-391, 1993. London: Routledge.

Kant, I.: The Critique of Pure Reason, London: MacMillan, 1990.

Marques, J. O. A.: ‘L’Education Musicale d’Emile’. Etudes J.J. Rousseau,


vol 17, 2005.

Plato: The Republic. London: Penguin, 2003.,

Ensino de Filosofia 59
Rousseau, J.J.: Emílio. Lisboa: Europa-América, 1990.

TAROUCO, L. M. R., Moro, E. L. S. & Estabel, L. B.: ‘O Professor e os


Alunos como Protagonistas na Educação Aberta e a Distância mediada
por Computador’, http://calvados.c3sl.ufpr.br/ ojs2/index.php/educar/ar-
ticle/viewFile/2121/1773, 2003.

60 Universidade Federal da Fronteira Sul


5. PARA PENSAR SOBRE O ENSINO DE
ÉTICA OU A EDUCAÇÃO MORAL
Luiz Gilberto Kronbauer1 (UFSM)

1. INTRODUÇÃO

Em filosofia sempre é oportuno, senão necessário, discutir as ques-


tões considerando o que alguns grandes autores já disseram sobre o assun-
to. No presente texto me proponho a discutir basicamente três questões
fundamentais acerca do ensino de ética ou, mais concretamente, sobre
a educação moral. Primeiramente tratarei dos porquês de uma educação
moral, numa tentativa de responder à pergunta “Por que ensinar ética?”.
Na segunda parte do texto farei considerações sobre o que ensinar; sobre
os possíveis conteúdos de uma atividade docente de educação moral. Para
o item final considerei oportuno refletir sobre o “como”, apresentando
perspectivas metodológicas, pressupondo que em assuntos dessa natureza
as três questões são necessariamente interdependentes.
Sem a preocupação de justificar a escolha por este ou aquele filó-
sofo como referência, farei as reflexões sobre essas questões a partir de
Aristóteles, Kant e de um livro de ética bem atual, da Adela Cortina e do
Emílio Martinez. Aristóteles porque foi o primeiro a tratar sistematicamen-
te do assunto, colocando as bases clássicas das discussões sobre ética.
Numa perspectiva tipicamente metafísica, ele parte da pergunta sobre a

1 Doutor em educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor da
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
finalidade da vida humana e de como o ser humano poderia atingi-la.
Emmanuel Kant ocupou-se especificamente das mesmas questões, princi-
palmente na sua reflexão Sobre a pedagogia, embora tenha formulado as
bases antropológicas de sua filosofia prática na Fundamentação metafísica
dos costumes e na crítica da razão prática. Quanto aos autores contem-
porâneos, optei pelo livro sobre ética por razões metodológicas. Embora
muitos autores tratem das questões, Cortina e Martinez elaboraram um
capítulo didático sobre o tema e o tratam no e para o contexto de uma
sociedade democrática, na perspectiva teórica atual e produtiva da Teoria
do Agir Comunicativo, de Jürgen Habermas.
Espero que o texto sirva para motivar as reflexões e discussões sobre
essa temática tão relevante hoje, principalmente porque as instituições
tradicionais, como a família, a comunidade religiosa, que se ocupavam
da ‘formação do caráter moral’ das crianças e dos adolescentes, não tem
mais o mesmo desempenho pedagógico, que passou para os meios de
comunicação de massa, os desenhos infantis, os jogos eletrônicos. Mas se
a Educação é função do Estado e visa formar para a cidadania numa socie-
dade democrática, ela precisa chamar para si a tarefa da formação integral
dos educandos, e isso passa pela educação moral.

2. POR QUE ENSINAR ÉTICA OU EDUCAÇÃO MORAL?

2.1. O SER HUMANO NÃO NASCE VIRTUOSO

Conforme anunciei, inicio a reflexão sobre a necessidade da “edu-


cação moral” mostrando que Aristóteles já se ocupou de justificá-la, prin-
cipalmente na Ética a Nicômaco, ao afirmar que não se nasce virtuoso,
mas que se aprende a ser virtuoso praticando atos dessa qualidade, e não
poucos atos senão primando pela virtude em todas as ações. A educação
moral é uma necessidade, pelo menos enquanto optarmos pela vida em
sociedade, porque a consciência moral não é inata, mas é imprescindível
para o convívio social. E tal educação precisa iniciar na infância.
Segundo Aristóteles (384-322 a. C.) esse tipo de educação acontece
do mesmo modo como se aprendem as outras coisas, teóricas e práticas.
Ela se inicia como processo mimético. As crianças necessitam de bons
exemplos a serem seguidos, imitados, e, a partir disso, com o passar dos
62 Universidade Federal da Fronteira Sul
anos, construírem seu próprio caráter moral pela assimilação do agir virtu-
oso como sendo o melhor e o mais digno do ser humano, inclusive como
meio para tornar-se mais sábio, prudente e equilibrado diante das situa-
ções concretas do cotidiano; numa expressão ao gosto do autor, “para ser
mais feliz”.
Mas a formação do caráter moral está intimamente ligada ao ideal
mais amplo e mais importante. Aristóteles relaciona a ética com a política
porque as ações morais ganham importância dentro do contexto maior,
do Estado. Embora a ética, enquanto visa ao bem do indivíduo, seja fun-
damental, o bem maior e, consequentemente, a arte mais importante é a
política, uma vez que ela visa ao bem comum, da sociedade como um
todo, mas que é construído pelos indivíduos que a ele se dedicam de
modo virtuoso, justo e até com espírito de gratuidade pública. Como os se-
res humanos não nascem predispostos a isso, precisam ser educados para
buscarem, ao mesmo tempo, o bem particular na forma de autorrealização
ou felicidade, e o bem comum.

2.2. TORNAMO-NOS SERES MORAIS PELA EDUCAÇÃO

Vinte e dois séculos depois de Aristóteles, na pequena cidade de


Königsberg, na Prússia, Emmanuel Kant (1724-1804) retomou mais dire-
tamente essa questão da necessidade da educação moral, supondo que
o ser humano não está naturalmente predisposto a fazer o bem. Pelo fato
de nascer egoísta, ele precisa da lei moral, para tornar-se capaz de boas
ações. E mesmo uma série de qualidades psicológicas e sociais, normal-
mente consideradas como boas em si, podem ser utilizadas para praticar
ações moralmente más.
Kant expõe isso de modo diverso e por razões também diversas em
duas obras com finalidade complementar na formação moral do ser huma-
no. Primeiramente nos Fundamentos da metafísica dos costumes (1785)
e depois também no texto Sobre a pedagogia, que ele vinha trabalhando
desde 1776 e que foi publicado somente em 1803. Principalmente no
Sobre a pedagogia ele apresenta uma série de argumentos que justificam
a necessidade da educação moral das crianças. Pode-se interpretar essa
preocupação também nos Fundamentos, quando, na primeira seção, trata
da necessidade da boa vontade como condição para a moralidade, uma
vez que as qualidades humanas que mais estimamos podem ser utilizadas
Ensino de Filosofia 63
para praticar o mal. Por exemplo, a inteligência e a faculdade de julgar, a
coragem, a decisão, a perseverança nos propósitos, bem como as qualida-
des do temperamento, que são consideradas como coisas boas sob muitos
aspectos, podem tornar-se extremamente más e prejudiciais se a vontade
que delas fizer uso não for boa. Um ser humano sem caráter usaria essas
qualidades para praticar atos vis. Isso vale igualmente com relação ao po-
der, à riqueza, à honra, à saúde e ao bem-estar, porque podem resultar em
excesso de confiança em si mesmo e converter-se em presunção, se faltar
a boa vontade para moderar e fazer com que as decisões e ações convir-
jam para fins universalizáveis.
De modo mais geral, desde o início do Sobre a pedagogia, Kant
acentua a importância da educação moral desde a infância e a necessida-
de da mesma no processo de formação do ser humano. E isso é tão radical
que sem educação o ser humano não se tornaria humano, porque “é a
única criatura que precisa ser educada, que carece de cuidado na infância
e de formação, para transformar a animalidade em humanidade” (Kant,
1996, p. 11). E na continuação ele afirma que precisamos do dever, da
lei moral, para nos tornarmos seres morais, que não somos por natureza.
Aliás, por natureza nós somos egoístas e ambiciosos, agressivos e destru-
tivos, ávidos de prazeres que nunca nos saciam e pelos quais mentimos,
roubamos e até matamos. Repetindo, por isso precisamos da lei moral e da
noção de dever a fim de podermos conviver em condições de igualdade
e respeito mútuo.
O ser humano, segundo Kant (idem, p. 151) distingue-se dos outros
animais porque não é dotado de um instinto que dispensa o cuidado e a
instrução. O ser humano não nasce pronto, precisa ser plasmado por meio
de um processo de “formação” que compreende a disciplina e a instru-
ção. Por isso não é exagero afirmar que ele “não pode tornar-se verdadei-
ramente humano, senão pela educação”. “Ele é aquilo que a educação
dele faz.” É como se ele não nascesse humano e se tornasse humano pela
educação. Mas o processo de formação do ser humano ainda supõe a na-
tureza, no sentido de transformá-la para que os aspectos especificamente
humanos de desenvolvam como qualidades intrínsecas à sua natureza.
Essas qualidades são a razão e a liberdade.
O filósofo de Königsberg encontra nessas qualidades as condições
para a humanização, através de uma educação adequada. Razão e liber-
dade são, pois, as condições para a humanização, para a autonomia do
64 Universidade Federal da Fronteira Sul
sujeito moral, que é a característica principal da “dignidade da pessoa
humana”. Mas a educação para a autonomia inicia pelo disciplinamento,
como meio para desenvolver habilidades culturais no educando e torná-lo
prudente e moralmente bom; capaz de reconhecer e querer fins universa-
lizáveis para suas ações (Kant, 1996, p. 17-19).

2.3. PARA APRENDER A DEMOCRACIA

Adela Cortina e Emílio Martinez, inspirados na proposta metodoló-


gica da Teoria do Agir Comunicativo, sugerem que se pense a necessida-
de da educação moral como decorrência de algumas condições prévias,
como, a vida numa sociedade que se pretende democrática, e na qual
as pessoas têm direito à formação integral como meio para a autonomia
e a autorrealização. No capítulo “Ética e educação moral democrática”
(Cortina & Martinez, 2005, p. 170) eles iniciam definindo as habilidades
técnicas e sociais mediante as quais se visa preparar as crianças e os ado-
lescentes da educação básica para poderem defender-se na vida e até se
dar bem. Mas em seguida perguntam se estas habilidades bastam para a
formação integral da pessoa; se é suficiente ser um bom profissional e ser
capaz de criar ao seu redor uma boa rede de relações sociais, com pessoas
bem situadas, como possibilidade de prosperar sem maiores dificuldades,
que é o que os pais querem para os seus filhos?
Eles respondem que “se levamos a sério os valores que inspiram
uma sociedade que se pretende democrática então não é suficiente que
os educandos adquiram habilidades técnicas”. As destrezas técnicas são
fundamentais para subsistir e para construir um projeto pessoal de vida,
mas “é impossível construir uma sociedade autenticamente democrática
contando apenas com indivíduos técnica e socialmente capacitados”, por-
que tal sociedade precisa fundamentar-se em valores como a autonomia e a
solidariedade, que fazem parte da essência das instituições democráticas.
A convivência numa sociedade democrática, de relações horizon-
tais, igualitárias, implica condições que dependem da educação, da forma-
ção das crianças e dos adolescentes para saberem e quererem conviver nes-
tas condições. Se visássemos apenas ao bem-estar pessoal seria suficiente
que o processo educativo desenvolvesse habilidades técnicas e sociais. Mas
a formação de pessoas autônomas com desejo de autorrealização exige
uma educação moral (Cortina e Martinez, 2005, p. 170). Acompanhando a
Ensino de Filosofia 65
proposta de Kant, eles defendem a tese de que a educação deve fazer com
que as crianças percebam a dignidade que há nelas próprias e nas outras
pessoas, que corresponde ao que o autor iluminista chamava de capacitar
para o universal (Kant, 1996, p. 102).
Cortina e Martinez (p. 171) entendem que a educação moral é con-
dição para a autonomia e pode ser igualmente imprescindível no contexto
de uma sociedade perpassada pelo interesse próprio e até por desmorali-
zações e corrupções de muitos tipos. A educação moral pode ajudar na
formação do caráter moral dos jovens e motivá-los a fazerem o seu projeto
de vida e a desenvolve a autoestima.

3. O QUE ENSINAR/APRENDER?

3.1. VIVER COM VIRTUDE, PARA SER FELIZ

Quanto ao conteúdo, o que ensinar/aprender, sigo novamente a


ordem do item anterior, começando pela definição aristotélica da finali-
dade da ética para, em seguida, tratar das virtudes como meios e ou fins
imprescindíveis para atingi-la. Examinando cuidadosamente a questão da
finalidade da vida humana, na perspectiva teleológica que lhe é própria,
Aristóteles conclui que se pode defini-la como sendo a felicidade. Após
discutir acerca da grande diversidade de opiniões sobre o que concerne à
vida boa e feliz, o filósofo a define como algo subsistente e que depende
menos de fatores externos ao agente do que da própria pessoa do agen-
te moral, devendo ser algo condizente com a especificidade humana e
que não contradiga as condições da moralidade, isto é, o caráter moral, a
consciência e a liberdade.
Aristóteles elabora sua resposta à pergunta sobre a finalidade da
vida humana a partir da tese de que, assim como as coisas naturais tem
finalidade intrínseca (e tendem naturalmente para ela), também “toda arte
e toda investigação, toda ação humana e toda escolha, visam algum bem”
(Ética a Nicômaco, I, I, 1094a). Mas a maioria desses bens figura como
meio em vista de outros bens mais importantes e assim por diante, até
se chegar a supor que em nossa vida existe um fim último para o qual se
direcionam todas as nossas ações. Por exemplo, estudamos para aprender
e para ter uma profissão, para podermos trabalhar, para ganhar dinheiro,
66 Universidade Federal da Fronteira Sul
para podermos comprar o que queremos e ter segurança econômica... e,
por fim, para nos realizarmos, ou com diz nosso autor, para sermos feli-
zes. Esse parece o ponto de chegada porque seria estranho e até estúpido
perguntar a alguém “Por que você que ser feliz?”.
No entanto, para não darmos grandes passos para longe deste bem
ou desta finalidade, precisamos conhecê-lo, ainda que seja de modo par-
cial. E nisso consiste a função principal da ética, esclarecer em que con-
siste esse ponto de chegada da realização humana. Se não tivermos uma
noção acerca do que é esse bem a que visamos seremos como atiradores
que não visualizam o alvo que devem atingir e passam a atirar para qual-
quer lugar. Então ele define esse bem último como sendo a felicidade e
que se pode atingir mediante uma vida de ações virtuosas.
A prática das virtudes supõe o seu conhecimento, que não pode ser
meramente teórico. Antecipando a proposta da pedagogia de Kant, Aristó-
teles entende que os ser humano precisa ser educado para o uso da razão,
a fim de tornar-se capaz de elaborar um juízo prudencial, de decidir em
conformidade com este juízo, e de agir movido por um caráter firme, que
também precisa ser desenvolvido. Na Ética a Nicômaco (II, 1103b-1105b)
ele esclarece as condições para a ação moral virtuosa, afirmando que o
agente precisa ter ciência de que sua ação é virtuosa, precisa decidir-se
por fazer a ação porque ela é virtuosa, e agir movido por um caráter fir-
me. Essas condições – saber que a ação é virtuosa, agir voluntariamente
(liberdade) e fazer a escolha não por mero interesse próprio, mas porque
a ação é virtuosa, agir com virtude, isto é, com firmeza de caráter – é
que diferenciam a ação virtuosa das ações que visam atingir simplesmente
bons resultados, isto é, das ações por interesse. Mas o ser humano não
nasce com essas virtudes como condição para a moralidade. Ele precisa
ser educado para compreendê-las e fazer com que sejam constitutivas do
seu caráter moral.
Portanto, em diferenciação aos hedonistas e também aos utilitaris-
tas, embora partilhe com eles a tese da importância das consequências das
ações morais, Aristóteles coloca o acento na virtuosidade dos meios como
condição para a moralidade e, principalmente para atingir o fim último
visado: ser feliz! Para atingir esse fim há que se ter aprendido algumas
virtudes, especialmente as da ponderação e da prudência para ser capaz
de escolher o que convém adequadamente para esse fim. As virtudes inte-
lectuais e morais são, portanto, o conteúdo da ética, como indispensáveis
Ensino de Filosofia 67
à formação do caráter moral, em vista do bem último: a autorrealização
ou felicidade.
Quanto às virtudes como imprescindíveis às ações moralmente
boas, parece-me oportuno partir de um contraexemplo, considerando
uma pessoa que não é virtuosa, para entender mais facilmente sob que
condições e disposições de caráter é possível construir uma vida propen-
sa à auto realização. O que faltaria para Homer Simpson para que ele
pudesse ser considerado uma pessoa virtuosa e feliz? O que ele deveria
ter aprendido para que suas ações, por vezes tão cheias de energia e
dedicação, tivessem verdadeiro valor moral? No livro Os Simpsons e a
filosofia, o filósofo Haja Halwani escreveu um capítulo sobre Homer e
Aristóteles em que, de forma didática e sem abrir mão do rigor acadêmi-
co, mostra por que Homer Simpson está longe de ser um homem virtu-
oso, embora se demonstre por vezes esperto e até admirável. Falta-lhe a
sabedoria prática (a phronesis, da qual falaremos no item 4). Apesar de
já ter vivido muito e inclusive sofrido devido às consequências de suas
ações intempestivas, ele não aprendeu a temperança, a moderação. Ao
contrário, ele não se contém diante da comida, é guloso; é desrespeitoso
com os outros; não é capaz de cultivar amizades, embora tenha compa-
nheiros de “copo”. Basta assistir a alguns episódios de qualquer tempo-
rada para se ter uma noção clara de como é o caráter moral de alguém
nada aristotélico.

3.2. DA NOÇÃO DE DEVER À AUTONOMIA

Na perspectiva de Kant, a aprendizagem da ética passa necessaria-


mente pela assimilação da noção de dever moral e pelo desenvolvimento
de uma personalidade capaz de pensar e de agir com autonomia. Embora
o autor exponha essa noção de dever como condição da boa vontade e
a autonomia como necessária para que as ações tenham valor moral nos
Fundamentos da metafísica dos costumes, é na obra Sobre a pedagogia
que ele explicita mais claramente o que precisa ser desenvolvido para
constituir um sujeito moral e de como se faria isto. Ele pretende nos con-
vencer da necessidade da noção de dever moral como condição da “boa
vontade” e esta, por sua vez, como uma necessidade para a moralidade,
insistindo que muitas qualidades humanas, mesmo algumas das que con-
sideramos virtudes, podem ser utilizadas par o mal.
68 Universidade Federal da Fronteira Sul
Os conteúdos da proposta de Kant estão sintetizados nas fórmulas
do imperativo categórico. Primeiramente ele apresenta a condição da ra-
cionalidade sob a forma de capacidade de reconhecer e de propor, para
si mesmo, motivos de ação que sejam universalizáveis. Daí a necessidade
de uma educação para a razão, juntamente com a aquisição e o desen-
volvimento da autonomia, isto é, a capacidade de propor as leis para si
mesmo em vez de submeter-se ao mando de outrem. Em segundo lugar,
como decorrência dessas duas condições prévias, a razão e a liberdade,
segue a noção de dignidade da pessoa humana. Na educação moral as
crianças precisam aprender que a pessoa humana não pode ser tomada
simplesmente como meio e, quanto à autonomia, aprender que a vida não
é de graça, mas que precisamos conquistá-la pelo nosso trabalho.
De forma geral, o desenvolvimento humano se dá por
meio da tríplice dimensão da educação: corporal ou física, intelectual e
moral. A educação integral deve fazer com que a criança perceba sua pró-
pria dignidade e a de toda humanidade (Kant, 1996, p. 96) e isso já passa
pela razão. As três dimensões se entrecruzam continuamente. A educação
do corpo se refere basicamente aos cuidados materiais dispensados por
quem cuida da criança, mas para que a criança se torne um dia pessoa
autônoma é preciso educá-la para que possa seguir a própria razão, a fim
de não se tornar escrava das próprias inclinações. Há que se proporcionar
uma educação ativa, mediante a qual ela própria possa desenvolver seus
conhecimentos e habilidades.
A educação intelectual é antes de tudo um exercício, repetição,
mas visando à autonomia. Mesmo que a memória seja necessária, uma
educação excessivamente calcada nela leva a uma cultura superficial e
servil, formando pessoas incapazes de pensar e produzir por si mesmas.
Justamente porque a cultura moral deve fundar-se sobre máximas, não
sobre a disciplina que conduz ao comportamento imitativo e heterônomo
(Kant. 7996b, p. 80), é que as crianças precisam, desde cedo, aprender a
pensar por si mesmas (idem, p. 28). A disciplina é necessária de início,
mas apenas como meio que prepara para o uso da razão, indispensável
para que sejam cada vez mais habilitadas a compreender, aceitar e formu-
lar as máximas morais.
Ainda sobre a disciplina como ponto de partida, Kant entende que,
assim como os animais, as crianças também podem ser treinadas, mas se
o objetivo é formar pessoas autônomas e não seres humanos reduzidos à
Ensino de Filosofia 69
condição de servos, o disciplinamento e a repetição precisam ceder lugar
a atividades que possam servir de mediação entre a disciplina e a liberda-
de. Mesmo que a educação consista em exercer uma espécie de imposi-
ção de limites sobre a natureza, justamente para dar lugar à expansão da
liberdade, o autor pensa numa atividade caracteristicamente humana, na
qual e pela qual se realiza a passagem da natureza para a cultura e na qual
a disciplina se concilia com a liberdade: o trabalho. E justifica (Kant, 1996,
p. 65) afirmando que o trabalho traz consigo a necessidade, a submissão
ao outro e o peso do mundo, mas ao mesmo tempo o trabalho é liberdade,
pois nele o homem se descobre obra de si mesmo. Nesse sentido o traba-
lho também é mediação para a autoestima e para que o educando desen-
volva as condições para fazer seu projeto de vida e perseguir as metas que
estabelece livremente para si.
Mas é oportuno insistir que “pensar por si mesmo”, “agir conforme
suas próprias máximas”, não é licenciosidade. A educação para a razão,
pelas mediações já enunciadas, somente é exitosa se o educando desenvol-
ver a capacidade de pensar, decidir e agir movido por máximas universali-
záveis. O uso adequado da razão é condição para entender e apropriar-se
daquilo que Kant denomina de “imperativos categóricos”, cuja primeira
fórmula coloca precisamente essa condição e a segunda, supondo a pri-
meira, sintetiza o conteúdo da dignidade humana, condição porque so-
mente um ser humano autônomo e racional entende que, para o bem de
todos e de cada um, seria necessário que se agisse movido por máximas
que poderiam servir, ao mesmo tempo, de máximas da ação de todos.
A educação, desde a infância até a juventude, deveria ter presente
esse exercício de perguntar de modo didático, diante de cada decisão e
ação, “como ficaria se todas as pessoas fizessem o que eu pretendo fazer?”
Sendo menos kantiano, “será que todos os possíveis atingidos pelas conse-
quências da minha ação poderiam aceitá-las livremente?”
Uma breve consideração sobre a segunda fórmula do imperativo
pode ajudar a entender a dignidade da pessoa como conteúdo concreto
da educação moral e como traço fundamental do caráter de um ser hu-
mano adulto. Ao afirmar que “devo agir de tal modo que eu considere
o ser humano, tanto na minha pessoa como em todas as outras, sempre
como fim em si mesmo e nunca apenas como meio”, Kant está propondo
o princípio da dignidade da pessoa. Bem concretamente, a pessoa não
pode ser instrumentalizada; não pode ser simplesmente meio em vista de
70 Universidade Federal da Fronteira Sul
um fim alheio. E quem é capaz de entender isso, quem foi educado para
usar a própria razão, poderá analisar as situações concretas do cotidiano e
constatar que em muitas relações sociais (econômicas, pedagógicas, eróti-
cas, políticas e até mesmo religiosas) o ser humano é considerado apenas
como meio em vista de uma finalidade outra, como, por exemplo, o lucro,
a afirmação de si, o prazer, o poder, a submissão do outro, etc.
Segundo Kant (idem, p. 81) todo esse esforço pedagógico visa a co-
locar os fundamentos para a formação do caráter, isto é, o “hábito de agir
segundo certas máximas”, e que compreende três valores fundamentais: a
obediência, a veracidade e a sociabilidade. Primeiramente a obediência,
seja como obediência absoluta ou como obediência fundada no reconhe-
cimento de que o proposto é razoável e bom (idem, p. 82). A primeira
procede da autoridade e é importante para que a criança aprenda o respei-
to às leis que deverá seguir como cidadão. A segunda é mais importante
porque é voluntária e jamais dispensa o uso da própria razão.
A veracidade é o segundo aspecto fundamental do caráter. “Uma
pessoa que mente não tem caráter” (idem, p. 86) e se ainda assim existir
algo de bom em tal pessoa será mais por predisposição espontânea, por
temperamento ou até por fingimento. A veracidade não se confunde com
verdade, no sentido lógico ou epistemológico. Ela consiste em pensar de
acordo consigo próprio, sendo o contrário da mentira enquanto desacordo
consigo mesmo, que rebaixa a condição humana, isto é, anula a dignidade
da pessoa. A veracidade está intimamente ligada à ideia de dignidade e de
autonomia, isto é, de dar-se o direito de pensar por si e de não se deixar
coagir por fatores alheios.
A sociabilidade, por sua vez, envolve a disposição de tentar enten-
der os outros e de se colocar em seu lugar. Isso implica em não confundir
a autonomia com a autossuficiência, tal como está pressuposto na primei-
ra fórmula do imperativo. Ao afirmar que devo agir somente movido por
máximas tais que possam “tornar-se, através da minha vontade, em lei
universal”, ou como se a máxima da minha ação tivesse a universalidade
que se espera das leis da natureza, estou fazendo o exercício de considerar
hipoteticamente os outros. No sentido psicológico, a sociabilidade impli-
ca a sensibilidade social e a capacidade da empatia com os outros seres
humanos.
Segundo Kant (idem, p. 93), a característica fundamental do caráter
está na resolução firme de pensar algo e realmente colocá-lo em prática.
Ensino de Filosofia 71
Essa disposição do caráter se solidifica por meio do cumprimento de deve-
res, mas sempre atento à essencial autonomia do sujeito moral. Os deveres
morais podem ser para consigo mesmo, como é o caso da veracidade e do
zelo contínuo por sua própria dignidade, ou podem ser deveres par como
os outros, como é o caso do dever de zelar pelos direitos fundamentais do
ser humano em geral, intimamente ligado à sociabilidade.

3.3. VALORES PARA EXERCER A DEMOCRACIA

Cortina e Martinez continuam enfatizando os valores propostos


por Kant, agora democratizados pela teoria de Habermas, como quesitos
necessários à formação de cidadãos, isto é, de agentes morais para uma
sociedade democrática. Parafraseando os próprios autores, “se levarmos a
sério os valores que inspiram uma sociedade que se pretende democrática,
como a liberdade (entendida como autonomia), a igualdade e a solidarie-
dade ou imparcialidade, então não é suficiente que os educandos adqui-
ram habilidades técnicas”. Embora a aquisição das habilidades técnicas
seja de fundamental importância para a subsistência e a consecução de
projetos pessoais, não é possível “construir uma sociedade autenticamente
democrática contando apenas com indivíduos técnica e socialmente ca-
pacitados”. Uma sociedade democrática se constrói sobre valores como a
autonomia e a solidariedade, para os quais a razão meramente técnica ou
instrumental é cega.
Antes de nos atermos especificamente aos valores de uma sociedade
democrática, considerando o aspecto subjetivo da formação, é oportuno
esclarecer ao que se visa com a educação. Se a finalidade consiste em pro-
ver as condições para que cada um atinja seu próprio bem-estar, talvez seja
suficiente uma “educação baseada na racionalidade instrumental”, priori-
zando a aquisição de habilidades técnicas. Mas se, mediante a educação
se visa a formar pessoas com autonomia e que com seus projetos de vida
buscam autorrealização, há necessidade de uma educação moral para de-
senvolver a capacidade de enfrentar os desafios da vida diante da desmora-
lização, a autoestima e o desejo de realização, e para ajudar os educandos
a entender que, correlativamente à liberdade, o dever para com aquilo que
se exige de todos e de cada um é de importância fundamental.
A autonomia não é diretamente tema de estudo, embora seja im-
portante refletir sobre a liberdade para aprender que há uma liberdade
72 Universidade Federal da Fronteira Sul
mínima, definida pelos autores (Cortina & Martinez, 2005, p. 170) como
“direito de usufruir um espaço de livre movimento sem interferências
alheias e no qual cada pessoa possa ser feliz a sua maneira”. Trata-se, em
suma, da liberdade burguesa, para além da qual existe a liberdade pública,
que consiste no “direito de participar ativamente das decisões que afetam
minha vida e a dos demais; de ser interlocutor qualificado a discutir e ela-
borar as normas que regem o social” (Cortina & Martinez, 2005, p. 170).
Esse grau de liberdade implica o reconhecimento da liberdade dos outros
e somente pode ser exercido democraticamente, na forma de diálogo, sob
pena de negá-la pela instrumentalização de si ou dos outros.
Já o reconhecimento remete a outros valores fundamentais como a
igualdade e a solidariedade. Numa sociedade que se pretende democráti-
ca é preciso aprender, desde criança, que a igualdade significa que todas
as pessoas têm os mesmos direitos, seja os que se referem à realização pes-
soal, seja os que estão implicados na participação das decisões no âmbito
social. Isso passa pela aprendizagem de que o bem pessoal e o bem da
comunidade se entrecruzam continuamente e que um é condição para o
outro. Por essa razão os autores falam em “desenvolver um ethos comuni-
tário e de ampliá-lo na direção de uma solidariedade universalista” (idem,
p. 172), que, por sua vez, supõe que se tenha desenvolvido a capacidade
de universalização, no sentido de se perguntar constantemente “como fi-
caria se cada pessoa também pretendesse fazer o que eu pretendo”. Ou
mais concretamente, ser capaz de colocar-se no lugar de qualquer outra
pessoa.
A solidariedade (idem, p. 171) é definida como a atitude de for-
talecer a rede de relações que une os membros de uma sociedade para
alcançar entendimentos e acordos para o bem comum, e, também, como
atitude social afirmativa para incluir e fortalecer os mais fracos, como for-
ma de construir a igualdade, condição para o exercício da autonomia. A
desigualdade leva à dominação, daí a necessidade de políticas de igua-
lação social, a fim de oportunizar condições de igualdade (idem, p. 172).
Esse tipo de solidariedade também é definido por algumas correntes da
psicologia como “sensibilidade social”, “capacidade de empatia” com os
outros, como variantes psicológicas da capacidade de universalização. Os
autores utilizam a expressão forte, de incutir nos educandos a disposi-
ção de ultrapassar a solidariedade comunitária, de grupos, para adotar
uma perspectiva de solidariedade universalista, condizente com pessoas
Ensino de Filosofia 73
adultas, isto é, que atingiram o estágio pós-convencional de que fala Kohl-
berg. Isso porque o interesse comunitário ou de grupos pode ser corpora-
tivista e até mesmo prejudicial ao âmbito maior, o que se evidencia, por
exemplo, quando consideramos a divisão internacional do trabalho ou as
questões de políticas ambientais.

4. COMO CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS

4.1. VIVENDO E APRENDENDO

Aristóteles apresentou sua maneira de pensar a aprendizagem da


virtude de modo didático na Ética a Nicômaco. Mesmo que se trate aqui
da phronesis, isto é, da sabedoria prática, sua aprendizagem acontece do
mesmo modo como se aprende a fazer todas as coisas: fazendo-as repeti-
damente. Para deixar isso bem estabelecido ressalto de saída três pontos
importantes.
Primeiro de que não se adquire a sabedoria prática de modo exclu-
sivamente teórico, como se fosse suficiente ouvir o que um sábio ensina.
O mero conhecimento da virtude não é suficiente para determinar o com-
portamento. Segundo Aristóteles, quem pensa que a teoria é suficiente
comporta-se como “um doente que escuta atentamente seu médico, mas
não faz nada do que este lhe prescreveu” (Ética a Nicômaco, I, 1105b, 15).
Em segundo lugar, não basta ter a vivência das coisas práticas. É necessá-
rio que tenhamos desenvolvido a capacidade reflexiva, de contemplação,
isto é, de prestar atenção a cada vivência para com ela aprender. E a ter-
ceira é de que seria inútil tentar ensinar para alguém em que consiste a vir-
tude numa determinada coisa da qual o outro não tem vivência, segundo o
próprio, um jovem não é bom ouvinte de preleções sobre política porque
não tem experiência dos fatos da vida (Ética a Nicômaco, I, 3, 1095 1-10).
Mas, como se aprende o que são ações virtuosas, isto é, justas, mo-
deradas, etc.? Aristóteles responde que “podemos nos dar conta do que
sejam ao considerar as ações das pessoas às quais atribuímos tais virtudes”
(Ética a Nicômaco, VI, 1140a, 20-25). Se quisermos aprender a exercer
a justiça, nada melhor do que observar pessoas exemplarmente justas e
tentar imitá-las mediante a prática reiterada de ações semelhantes, a fim
de desenvolver esta qualidade moral. A aprendizagem da virtude, assim
74 Universidade Federal da Fronteira Sul
como a de qualquer outra habilidade prática, inicia-se pela imitação. Mes-
mo que soe estranho ao gosto de certas teorias pedagógicas contemporâ-
neas, as crianças se tornam humanas imitando o comportamento dos que
convivem com elas no dia a dia. Segundo Aristóteles, isso não pode ser
de outro modo porque a imitação (mimesis) é constitutiva da natureza hu-
mana e é condição prévia ao desenvolvimento do espírito ativo e criativo.
Mas ninguém pode ser considerado virtuoso pelo fato de haver pra-
ticado apenas algumas ações desse tipo. A consolidação do caráter moral
se dá pela reiterada repetição, pelo treinamento, assim como alguém se
torna exímio na arte de cobrar faltas no futebol ou em sacar bem no volei-
bol. Literalmente, “as coisas que primeiro é preciso aprender para fazê-las,
aprendemo-las fazendo. E assim, de igual modo, tornamo-nos justos pra-
ticando ações justas”. Em decorrência disso, a virtude é hábito voluntário,
que resulta do exercício persistente e que não se adquire mediante ensino.
É aprendizado na e pela prática.
Numa analogia à função educativa do filósofo, tal qual é apresen-
tada na Alegoria da caverna, referindo-se à figura de Sócrates, também
Aristóteles entende que as pessoas virtuosas precisam saber que servem de
exemplo para as novas gerações e fazê-lo deliberadamente por meio da
prática de ações boas e justas e também exigindo-as dos outros, dos mais
jovens, dos educandos, e de também conversar sobre esse tipo de assunto,
bem ao estilo da metodologia desse filósofo, como que caminhando entre
e ao derredor das coisa que vivenciamos e que nos afetam, para com elas
aprender e tornar-se cada vez mais sábio nesse assunto do bem viver e
agir.
Segundo Aristóteles, a “sabedoria prática” (phronesis) é aquela que
os indivíduos vão adquirindo na vida prática. Conforme o dito popular:
“vivendo e aprendendo”. Mas isso não significa que existe relação auto-
mática entre as vivências do cotidiano e a sabedoria prática. Se fosse desse
modo certamente os mais velhos teriam necessariamente mais sabedoria.
Então já estamos diante de uma primeira questão: não basta ter passado
por um acontecimento para “saber”. Tem que ter vivido com intensidade
e, na perspectiva aristotélica, com uma atitude reflexiva também, que ele
denominou de contemplação. Isso porque a vida não ensina sem mais, ou
“de graça”. A gente é que aprende, ou não aprende. E a aprendizagem, a
sabedoria prática, implica a vivência intensa e profunda e a atitude refle-
xiva para poder tirar as lições das vivências.
Ensino de Filosofia 75
Assim, a sabedoria prática se apresenta como sinônimo de “expe-
riência”. Ser experiente é haver aprendido com suas próprias vivências. E
não há como saber sem ter vivido. Mas o simples fato de ter vivido não
é garantia de saber. Não são poucos os exemplares da espécie humana
que não aprendem com suas vivências. A vida se lhes passa em branco.
Mesmo sentindo as consequências de algumas ações e atitudes, incorrem
reiteradamente nos mesmos erros e cometem os mesmos exageros. O que
lhes falta é uma atitude contemplativa: a reflexão que oportuniza o apren-
dizado, a sabedoria prática e a mudança de rota, que normalmente exige
muita força de vontade ou virtude.
Por outro lado, se “para saber tem que viver”, não há como ensinar
a sabedoria prática para os outros, assim de modo abstrato, como é o caso
das “lições de moral”, dos conselhos dos mais vividos e dos sermões de
pastores, padres e afins. Se muito, os ensinamentos alheios podem for-
necer alguns elementos para qualificar a reflexão, mas para quem falta a
vivência eles serão palavras sem sentido, porque os que não têm experi-
ência dos fatos da vida são sequer bons ouvintes no assunto em questão.
Aristóteles é o filósofo do “deguste-a(o) com parcimônia” ou do meio
termo, também chamado de mediania. Concretamente, não existe uma re-
gra geral senão este conceito que, quanto a sua aplicação nada nos ensina.
Cada indivíduo, vivenciando, experimentando, vai ter que aprender o “meio
termo” para si mesmo com relação ao objeto; vai adquirir experiência, tor-
nar-se sábio pela sua atitude reflexiva diante de suas próprias vivências.
Fica, pois, claro que não há outra maneira de aprender coisa alguma
senão praticando. Tornamo-nos moralmente bons do mesmo modo que
nos tornamos bons nas outras coisas. Aprendemos a ler, lendo; a escrever,
escrevendo; a jogar futebol ou vôlei, jogando; a andar de skate, andando;
com muita repetição. “Aprendemos uma arte ou um ofício fazendo as
coisas que teremos que fazer quando a tivermos aprendido. Tornamo-nos
construtores construindo e tocadores de violão tocando violão; justos rea-
lizando atos justos” (Ética a Nicômaco, II, 1, 1103 b1 2-5). E quanto à re-
petição, significa que quem é justo pratica ações justas com regularidade
e o faz com sabedoria prática. E assim é em todos os casos. Para aprender
a fazer ações justas, nada melhor do que observar pessoas que servem de
exemplo. Mas observar não é suficiente. Para tornar-se uma pessoa justa
é necessário praticar ações semelhantes, como que por imitação, para ad-
quirir regularidade e tornar-se constante nesta virtude.
76 Universidade Federal da Fronteira Sul
4.2. DO DEVER À AUTONOMIA – APRENDER A GUIAR-SE PELA
RAZÃO

Na perspectiva kantiana, tal aprendizagem deve acompanhar


gradativamente as etapas de crescimento da criança até atingir a idade
adulta. A tarefa central da educação é orientar um ser que, por não es-
tar determinado, pode tomar diferentes direções. Ele é livre e por isso
necessita de educação e pode ser educado. A autonomia pressupõe que
o ser humano seja capaz de guiar-se pela razão, por isso a educação
deve objetivar a racionalidade, habilitando o educando para que ele
possa ser legislador, autônomo. A educação visa primeiramente a impe-
dir que a selvageria e a animalidade prejudiquem o caráter humano (p.
26). Quando nada se opõe a ela na infância e na juventude, a selvageria
imperará por toda vida. Daí a necessidade da disciplina, que educa para
a obediência.
Mas não nos deixemos levar apressadamente pela impressão ne-
gativa desses termos. A disciplina, que muitos denominam atualmente de
disciplinamento, dá-se por meio das ações e atitudes cotidianas bem con-
cretas, pelas quais as crianças aprendem que há tempos, lugares, ocasiões
de fazer isto ou aquilo ou de não fazê-lo. A obediência é de início quase
que absoluta às determinações dos educadores, seja como medidas de
proteção da vida da criança, seja para que se aprenda a fazer a coisa certa
quando, onde e como deve fazê-la. Crianças não cuidam de si, é preciso
que adultos o façam, por exemplo, com relação à nutrição, a higiene e até
para se mover, atravessar uma rua, etc. Mas aos poucos a criança deve
desenvolver sua capacidade de pensar por si mesma, até que esteja habi-
litada a obedecer somente ao que ela reconhece como sendo racional e
bom, isto é, obedecer à própria vontade (Kant, 1996, p. 82).
Quanto a essa etapa, que se tomem os devidos cuidados para não
obter o resultado contrário à autonomia. A criança que se habitua a agir
simplesmente por constrangimento dos adultos, por exemplo, na escola,
torna-se submissa ou, para se defender, falsa. Mas positivamente conside-
rada, a criança interioriza a disciplina e então, quando descobre a liber-
dade, ela estará habilitada a obedecer a si mesma enquanto ser racional,
sem necessidade de mando externo e de formas heterônomas de controle
ou de limite. É nisso que consiste a autonomia.

Ensino de Filosofia 77
A educação visa, pois, a conjugar a disciplina com a liberdade,
para que a primeira não se oponha à autonomia e para que seja mediação
necessária para a aprendizagem fundamental da vida moral: aprender a
guiar sua vontade pela razão, a fim de ser autônomo. Assim entendida, a
disciplina não escraviza a criança, mas faz com que ela perceba sua pró-
pria liberdade sem ofender as demais. O respeito à dignidade da criança
sempre deve estar presente para que não se promova um simples adestra-
mento. A disciplina não pode quebrar a vontade da criança. Isso levaria à
escravidão. Ela deve visar a que a criança possa, gradativamente, guiar-se
pela razão, ser autônoma. Mas a autonomia se funda na razão, não na dis-
ciplina, embora esta seja necessária para que a criança aprenda a “domar
as paixões e abrir espaço para razão”.
Considerando os períodos de desenvolvimento da criança, Kant es-
tabelece peculiaridades para três aspectos distintas na educação: educação
do corpo, educação intelectual e educação moral. A educação do corpo
se refere aos cuidados materiais dispensados por quem cuida da criança.
Os dois aspectos principais que devem ser observados quanto à educação
do corpo para que a criança chegue à autonomia são: educá-la para que
não seja escrava das próprias inclinações e assim possam seguir a própria
razão, e proporcionar uma educação ativa para que a criança, por meio de
suas atividades, possa desenvolver seus conhecimentos e habilidades.
A educação intelectual consiste no exercício de cultivar a memória,
importante para guardar as impressões sensíveis (Kant, 1996, p. 68), mas
uma cultura fundada exclusivamente na memória é superficial e forma
pessoas incapazes de pensar e de julgar por si. A educação que prima
pela memória conduz à heteronomia e à servilidade. Por isso que o autor
afirma que “a memória deve ser ocupada apenas com conhecimentos que
precisam ser conservados e que têm pertinência com a vida real” (Kant,
1996, p. 69), mas que a criança não deve se tornar um imitador cego, sob
a pena de que jamais aprenda a pensar por si mesma.
A educação moral é a culminância da formação humana e se funda
sobre máximas da razão, não sobre a disciplina (idem, p. 80). Esta é ne-
cessária como meio, para preparar a inserção do educando no âmbito da
razão. O primeiro esforço da educação moral consiste em colocar as bases
para a formação do caráter, isto é, o hábito de agir segundo certas máxi-
mas (idem, p. 81). Essa formação possui os três traços fundamentais de que
já falamos no item anterior: a obediência, a veracidade e a sociabilidade.
78 Universidade Federal da Fronteira Sul
Com a disciplina e a obediência a criança aprende que há deveres
a cumprir e que não se pode fazer tudo que se deseja. Por estranho que
pareça, para ilustrar a necessidade desse aprendizado moral, Kant apela
para o conceito de trabalho, afirmando que é “de suma importância que
as crianças aprendam a trabalhar”, não somente porque o ser humano é
o único animal obrigado a trabalhar para ter seu sustento, mas porque
no trabalho se aprende “a fazer muitas coisas necessariamente para tal”
(idem, p. 65). Ele traz consigo a necessidade, a submissão ao outro, o peso
do mundo, mas ao mesmo tempo o trabalho é liberdade, pois nele o ser
humano se descobre obra de si mesmo. No trabalho aprende-se a fazer
o que é necessário fazer e, ao mesmo tempo, se exerce a autonomia e a
criatividade. E assim, na passagem da natureza à cultura, liberdade e obe-
diência se unem sinteticamente na noção de trabalho.
O intuito de toda educação, culminando na educação moral, é o de
acompanhar a criança para que se torne capaz de se guiar pela sua pró-
pria razão, isto é, de aprender a servir-se da razão para que em tudo possa
perguntar a si mesma se as normas que está seguindo podem se tornar
universais. A criança precisa ser orientada, disciplinada e incentivada para
aprender a agir por conta própria, a guiar-se pela razão, a se tornar adulta,
preparada para a autonomia no convívio com seres também autônomos
e numa sociedade que não precisa cercear a liberdade de pensar e de se
expressar.

4.3. O DIÁLOGO COMO PRINCÍPIO, PERCURSO E META

Cortina e Martinez discutem a questão metodológica dessa apren-


dizagem específica preocupados com a congruência entre a teoria que en-
dossam e a forma de se aprender a ser um cidadão condizente com essa
proposta. De saída descartam a doutrinação em alguma concepção moral
específica, por entenderem que vivemos numa sociedade pluralista, pois se-
ria contrário à democracia tentar impor um modelo único. Por outro lado,
rejeitam igualmente a opção pela “assepsia axiológica como a que inspira o
chamado método de esclarecimento de valores”, porque tal metodologia faz
com que os estudantes fiquem “desprovidos de critérios e de hábitos reflexivos
que lhes permitam enfrentar os desafios éticos” (Cortina & Martinez, 2005,
p. 172). Uma vez descartados tanto o dogmatismo da doutrinação quanto o
relativismo do método de esclarecimento de valores, e em coerência com os
Ensino de Filosofia 79
conteúdos expostos no item anterior, os autores optam pelas propostas “dialó-
gicas de educação moral”.
Justificam sua opção afirmando que o diálogo é o único caminho ra-
zoável numa sociedade democrática, em que “não existem princípios éticos
materiais obrigatórios para todos” (idem, p. 173). Mas é preciso acentuar
que a metodologia proposta, nos moldes da ética do discurso, pressupõem
alguns princípios quanto aos procedimentos, em respeito aos valores bá-
sicos da sociedade democrática. A igualdade de direitos exige que todos
os possíveis atingidos pelas consequências da prática das normas possam
participar da decisão como interlocutores qualificados ou em “condições de
racionalidade” para que triunfe a força do melhor argumento e não alguma
coação interna ou externa ao próprio diálogo.
Nessa forma de procedimento, as normas morais passam a ser con-
sideradas sempre como provisórias e passíveis de revisão diante de no-
vas demandas ou novos conhecimentos, desde que se respeitem aqueles
princípios fundamentais da democracia e os direitos dos participantes no
diálogo, sob a condição prévia de que estão determinados pelo desejo de
satisfazer a interesses universalizáveis. Mas essa forma de procedimento su-
põe que os interlocutores, que são todos os possíveis atingidos pelos efeitos
da prática das normas, tenham sido educados para o diálogo como forma
de procedimento adequada à própria condição dos seres humanos numa
sociedade democrática. Os autores caracterizam esse “ethos dialógico”,
apresentando novamente algumas condições para o exercício de uma moral
democrática, como a abertura à consideração dos interesses e argumentos
dos outros, a disposição para informar-se sobre o que está sendo debatido,
bem como de informar argumentativamente seus interesses aos outros inter-
locutores, de não satisfazer-se senão com interesses universalizáveis, e tomar
decisões de forma responsável.
Como que relembrando Aristóteles, aprende-se a dialogar dialogan-
do. Por isso espera-se que a educação em geral, e a educação moral em
particular, ajude a praticar o diálogo e a argumentação, também quando
se trata de aprender conteúdos de outras disciplinas e de avaliar o processo
de aprendizagem. “O diálogo aberto entre as pessoas pode dar lugar ao
desenvolvimento delas mesmas como pessoas críticas e responsáveis e pode
oportunizar o exercício da dupla dimensão de cada pessoa: a de autonomia
e a de autorrealização.”

80 Universidade Federal da Fronteira Sul


Referências

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Abril Cultural, 1984.

CORTINA, Adela e MARTINEZ, Emílio. Ética. São Paulo: Loyola, 2005.

FRANKLIN L. e Silva. A Função Social do Filósofo. In: ARANTES, Paulo et


alii. A Filosofia e o seu Ensino. Petrópolis: Vozes, 1995.

FREITAG, B. O Conflito Moral. In: Revista Tempo Brasileiro, 98: jul-set,


1989 (p.79-124).

KANT, Emmanuel. Metafísica de las Costumbres. In: Fernandez, C. Los


Filósofos Modernos - Selección de textos. Madrid: B. A. C. 1976.

KANT, Emmanuel. Sobre a Pedagogia. Piracicaba: Unimep, 1996.

OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Ética e Sociabilidade. São Paulo: Loyo-


la,1993.

Ensino de Filosofia 81
6. HOMENS, DEUSES E MÁQUINAS: o
conflito entre o mito e ciência
Ediovani Antônio Gaboardi 1

1. INTRODUÇÃO

Você já ouviu o verso “O céu de Ícaro tem mais poesia que o de


Galileu”? Ele aparece na música Tendo a Lua, dos Paralamas do Suces-
so. Ele apresenta sutilmente um problema filosófico muito importante da
mentalidade contemporânea. Pense um pouco. Nas discussões entre as
pessoas, é muito comum surgir o conflito entre uma visão mais científica,
representada na música por Galileu, e uma visão mítica, representada por
Ícaro. Meu objetivo neste texto é explicar como são essas duas visões de
mundo e o que cada uma tem de interessante e de problemático.

2. DEUSES: O MITO DE ÍCARO

Comecemos por Ícaro. Ícaro é um personagem da mitologia grega


antiga. Existem muitas versões do seu mito. Vou resumir uma delas.
O mito começa com Dédalo, o pai de Ícaro. Ele era um habilidoso
artífice de Atenas, uma mistura de engenheiro, arquiteto, artista e artesão.
Sua criatividade e inteligência eram famosas. Ele tinha um discípulo, seu
sobrinho Talos, a quem estava ensinando todas as suas habilidades. Talos

1 Mestre e doutorando em filosofia pela PUCRS. Professor do curso de filosofia da Universidade


Federal da Fronteira Sul.
estava aprendendo tão bem que já conseguia superá-lo, o que provocava
nele imenso ciúme. Por causa disso, Dédalo quis matá-lo, empurrando-o
de cima de uma torre. Mas a deusa Atena, protetora dos artesãos, evitou a
morte de Talos transformando-o em uma perdiz, que saiu voando em di-
reção ao campo2. Dédalo foi expulso de Atenas por seu crime e encontrou
asilo em Creta, governada pelo rei Minos.
Minos havia se tornado rei alegando ter sido escolhido pelos deu-
ses. Para provar isso, afirmou que Poseidon faria surgir um touro branco do
mar em simples resposta à sua oração. Ele também prometeu que sacrifi-
caria o animal ao deus em seguida. Poseidon atendeu à prece. Mas Minos
achou o touro tão belo que se negou a sacrificá-lo. Preferiu guardá-lo em
seu estábulo como reprodutor. Como represália, Poseidon pediu a Afro-
dite, a deusa do amor erótico, que fizesse a esposa do rei Minos, Persífae,
apaixonar-se pelo touro branco. Afrodite produziu um encantamento tão
poderoso que a rainha sucumbiu de paixão pelo touro. Para consumar seu
desejo de unir-se a ele, Persífae obrigou Dédalo a construir uma vaca de
bronze para que ela pudesse esconder-se em seu interior. De sua relação
com o touro branco de Poseidon nasceu o Minotauro, um monstro metade
homem metade touro que se alimentava de carne humana. Para esconder
o monstro de todos e assim evitar a vergonha pública, Minos fez com que
Dédalo construísse o labirinto para aprisioná-lo.
No mito, Creta era adversária de Atenas e Minos pediu aos deuses
que causassem pestes e fome àquela cidade. Os deuses atenderam e os
atenienses se viram obrigados a cumprir as vontades de Minos para evitar
mais sofrimentos. Minos exigiu que os atenienses enviassem para Creta,
a cada nove anos, sete rapazes e sete donzelas para servirem de alimento
ao Minotauro. No terceiro ano de sacrifício, Teseu, filho do rei Egeu (rei
de Atenas), se ofereceu como voluntário. Ao chegar a Creta, Ariadne, filha
do rei Minos, apaixonou-se por ele. Por conselho de Dédalo, ela entregou
a Teseu uma espada e um novelo de linha, para que ele pudesse enfrentar
o Minotauro sem se perder no labirinto. Teseu matou o monstro, escapou
do labirinto e levou Ariadne para Atenas.
Minos, sabendo da traição de Dédalo, aprisionou-o com seu filho
Ícaro no labirinto. Aí entrou em cena novamente a engenhosidade de Dé-
dalo. Ele conseguiu fugir do labirinto e construir asas de cera e penas para

2 Supostamente por isso a perdiz não alça voos com grande altitude. O “trauma” da queda faz com
que ela prefira os lugares baixos. O mito, assim, explicaria a origem e a natureza própria da perdiz.
84 Universidade Federal da Fronteira Sul
deixar a ilha de Creta, vigiada pelo exército do rei. Mas ele advertiu seu
filho para que não voasse muito alto, para não derreter a cera com o calor
do Sol, nem baixo demais, para não umedecer as penas com a água do
mar tornando-as excessivamente pesadas. Logo que Ícaro aprendeu a voar
com desenvoltura ficou tão entusiasmado que esqueceu os conselhos do
pai. Foi subindo cada vez mais alto, imaginando até se conseguiria alcan-
çar o Sol. A cera derreteu, desmantelando suas asas, e ele morreu afogado.
Esse é o céu de Ícaro: um céu povoado de deuses. Mas é importante
lembrar que esses deuses são antropomórficos, ou seja, eles possuem uma
forma humana. E não estamos falando apenas da forma física. Os deu-
ses também têm a mesma “forma psicológica”. Isto é, eles se comportam
da mesma maneira como os seres humanos poderiam se comportar. Eles
tomam decisões similares às humanas, às vezes boas, às vezes más. Ora
são justos, generosos e bondosos, ora são vingativos, ciumentos e interes-
seiros. E os fatos do mundo físico são consequências dessas decisões dos
deuses e também das decisões dos homens. Por isso, tudo o que acontece
acaba tendo uma “moral da estória”. Nada acontece por acaso. Os fatos
sempre dizem algo para o ser humano, sempre ensinam o que deve ser
feito e o que deve ser evitado.
Ícaro, por exemplo, deixou-se levar pelo desejo de sempre querer
mais. Ele é o exemplo de alguém que não põe limites às próprias ambi-
ções. Quem tudo quer, tudo perde, diz o ditado. Evitar os excessos tem a
ver com obedecer à própria natureza das coisas. Ícaro quis ir além da sua
natureza, buscando o sol. Essa falta medida nas ações custou-lhe a própria
vida. Já Dédalo, em Atenas, deixou-se levar pelo ciúme, pelo desejo de ser
superior a todos. Acabou atraindo para si a desgraça. Foi expulso e teve de
servir ao rei de Creta. E não foi ele também o responsável pela morte de
seu filho? Afinal, homens não voam. Ele quis imitar os pássaros, fugindo de
sua natureza, e olha no que deu! E o rei Minos, então? Fez uma promessa
e a descumpriu. As consequências não tardaram a chegar. Como diz ou-
tro ditado, “Deus não mata, mas achata!”. Enfim, no mito os fatos, tanto
os humanos quanto os naturais e os divinos, sempre têm uma conotação
moral, sempre ensinam algo sobre o bem e o mal. A própria origem dos
seres naturais tem um sentido moral. A perdiz, por exemplo, voa baixo
por ter se originado de uma queda. A sua natureza animal é consequência
de uma história pregressa, que tem um sentido humano muito evidente.
E, de modo geral, sempre que o homem tenta contrariar essa ordem moral
Ensino de Filosofia 85
presente no mundo, algo de muito ruim acontece. O Minotauro, esse ter-
rível monstro, só poderia surgir de algo igualmente monstruoso: o amor
erótico de uma mulher por um animal.
O céu de Ícaro, então, é cheio de poesia. Quer dizer, ele é cheio
de sentido. Nele tudo tem um significado profundo para o ser humano,
indicando quais são as boas e quais são as más decisões. No céu de Ícaro,
pode-se sonhar com ir além do mundo físico, alcançando o divino, o sa-
grado. As coisas “falam” conosco, tocam nossos corações e nossas mentes
e nos ensinam caminhos, pois são a própria manifestação do que há de
mais elevado, que são os deuses. Mas e o céu de Galileu, como é?

3. MÁQUINAS: A CIÊNCIA DE GALILEU

Galileu viveu na Itália, entre 1564 e 1642, e é considerado o pai


da ciência moderna. Ele fez várias coisas interessantes na física e na as-
tronomia. Ele descobriu as montanhas lunares, os satélites de Júpiter e os
anéis de Saturno. Inventou a balança hidrostática, o compasso geométrico
e o termômetro. Aperfeiçoou o telescópio e desenvolveu as bases para
um relógio mais preciso, baseado no movimento de pêndulo. Essas fer-
ramentas foram importantíssimas para as novas pesquisas científicas. Ele
estudou o movimento uniformemente acelerado, o movimento pendular,
a aceleração dos corpos em queda livre e chegou a formular o princípio da
inércia, todos temas importantes para a mecânica, que será desenvolvida
depois por Newton. Mas seu principal legado foi a proposta de uma nova
mentalidade para a investigação da natureza, que está na base do que co-
nhecemos ainda hoje como método científico. Para ele,

A filosofia encontra-se escrita neste grande li-


vro que continuamente se abre perante nossos olhos
(isto é, o universo), que não se pode compreender
antes de entender a língua e conhecer os caracteres
com os quais está escrito. Ele está escrito em língua
matemática (...) (GALILEI, 1973, p. 119).
Nesse trecho, Galileu defende algumas posições muito claras. Em
primeiro lugar, quando ele afirma que a filosofia3 está escrita no “grande
3 Importante lembrar que na época de Galileu as ciências como conhecemos hoje não existiam.
Quem estudasse problemas de física, química, biologia, etc. era chamado de filósofo. Ou seja, quando
86 Universidade Federal da Fronteira Sul
livro do universo”, indiretamente ele está criticando todos aqueles que
acham que a filosofia deve basear-se na autoridade dos pensadores clás-
sicos, como Aristóteles ou Platão. Para ele, o conhecimento só vem se
investigarmos a realidade. Não podemos basear nossas opiniões naquilo
que outras pessoas disseram ou naquilo que está escrito em livros. Só a
própria realidade pode ser a base para um conhecimento verdadeiro. Essa
posição pode ser chamada de empirismo: a fonte do conhecimento é a
percepção através dos sentidos.
Mas Galileu não defende só isso. Ele também considera o raciocí-
nio matemático muito importante. Para ele a matemática é a linguagem
da própria natureza. O que isso quer dizer? Pense no seguinte. Os fatos
naturais não acontecem de maneira aleatória. Eles seguem uma ordem.
Podemos chamar essa ordem de lei natural. Se você arremessar um objeto
dez vezes, sempre com a mesma força (e sem que outras forças interfiram)
e num mesmo ângulo em relação ao solo, ele sempre vai cair à mesma
distância. Por quê? Porque a natureza segue uma ordem, que é matemá-
tica. Essa é a opinião de Galileu. A matemática passa a ser o padrão da
linguagem científica. Os cientistas não devem mais usar uma linguagem
literária ou próxima ao modo de falar do senso comum. Eles devem criar
uma língua artificial, cheia de símbolos com um significado bem preciso e
raciocínios rigorosos (cálculos matemáticos). O objetivo é uma linguagem
que consiga expressar com o máximo de exatidão e detalhe as relações
entre as coisas e os fatos. Não adianta dizer, por exemplo, que se eu chutar
uma bola com força eu posso acertar o gol do meio de campo. Eu preciso
dizer com quanta força, qual o ângulo do chute, que peso tem a bola, qual
a direção do vento, qual o tamanho do gol, etc. Só dizendo tudo isso eu
estarei fazendo ciência.
Então, o método científico poderia ser resumido nisto: observar os
fatos e descrever a ordem matemática que eles obedecem. Parece um pro-
pósito muito modesto. Mas isso teve um efeito enorme na mentalidade
moderna. As visões de mundo míticas não podem ser admitidas levando
em conta o método científico. Elas se baseiam na tradição e em algum tipo
de interpretação criativa dos fatos, mas não na observação e no raciocínio
matemático. Não vemos os deuses. Sabemos deles porque existem livros

ele fala de filosofia, na verdade ele está se referindo ao que definimos hoje como ciência. O que
ele está dizendo, então, é que para investigar questões como a origem do universo, a mecânica do
movimento, a causa dos eclipses, etc. não adianta estudar os textos de Aristóteles ou a Bíblia. É preciso
tentar “ler” o universo, a natureza.
Ensino de Filosofia 87
que falam sobre eles. Ou então concebemos divindades porque interpre-
tamos os fatos imaginativamente, indo além daquilo que é visto. Também
não usamos uma linguagem científica (matemática) para falar dos deuses e
de seus atos. A linguagem mítica é sempre repleta de metáforas, imagens,
sentimentos, relações arbitrárias, definições imprecisas, etc. A ciência que
nasce com Galileu desqualifica totalmente esse tipo de conhecimento.
Mas como é o céu de Galileu, então? O céu de Galileu é apenas
o vazio onde as partículas materiais (átomos) interagem entre si. Essa é a
visão de mundo que ficou conhecida como mecanicismo:

O mecanicismo é a filosofia que se explicitou


no início do século XVII, postulando que todos os
fenômenos naturais devem ser explicáveis, em última
instância, por referência à matéria em movimento.
O esquema fundamental é simples: a realidade física
se identifica com um conjunto de partículas que se
agitam e se entrechocam. A metáfora que serve de
base a essa filosofia é a da máquina: em seu con-
junto, o mundo se apresenta como uma espécie de
sistema mecânico, vale dizer, como uma gigantes-
ca acumulação de partículas agindo umas sobre as
outras, da mesma forma com as engrenagens de um
mecanismo de relógio. O objetivo da ciência é defi-
nido: qualquer que seja o fenômeno estudado, trata-
se de elucidar certo número de elementos últimos e
de descobrir as leis que presidem suas intenções. A
natureza nada mais é do que uma máquina comple-
xa, na qual a matéria e a energia, cooperando e in-
teragindo de diversos modos, desempenham o papel
de constituintes últimos (JAPIASSÚ, 1997, p. 172-3).
Em termos simples, o universo é uma grande máquina, compos-
ta por muitas peças que se relacionam de maneira muito complexa. O
papel da ciência é identificar cada peça, entender como ela funciona e
como interage com as demais. Não há deuses nem poderes fantásticos.
Tudo acontece seguindo leis naturais fixas que agem sobre a única coisa
que existe, a matéria, que aparece fragmentada em múltiplas partículas
(átomos). Mesmo os fenômenos mais complexos devem ser reduzidos à

88 Universidade Federal da Fronteira Sul


interação entre partículas muito simples, organizadas matematicamente.
Lembre da sua tabela periódica. Ela contém tudo o que existe no universo
(até onde se sabe). “Misturando” os elementos químicos que estão aí você
pode criar qualquer substância. E essa “mistura” não é aleatória. Ela segue
leis fixas, que são matemáticas. É por isso que temos que estudar tanta
matemática principalmente na física e na química.
O modelo de ciência de Galileu alcançou a biologia com Charles
Darwin e Gregor Mendel. Darwin introduziu uma ideia revolucionária: as
espécies não foram criadas por Deus e não são fixas. Elas evoluíram de
um primeiro ser vivo simples, uma molécula que adquiriu a capacidade
bioquímica de se reproduzir. Nesse processo de reprodução, erros foram
aparecendo. Alguns desses erros tornaram os organismos que os possuíam
mais adaptados ao meio ambiente e por isso capazes de produzir mais có-
pias de si mesmos. Assim, cada espécie foi moldada por esses dois fatores:
a variabilidade do processo de reprodução e a seleção natural dos mais
adaptados.
Mas Darwin não sabia como a variabilidade era produzida. Ou me-
lhor, ele não sabia como as características dos pais eram herdadas pelos
filhos. Quem começou a explicar isso foi Mendel. Lembra das aulas de
genética? Mendel é o culpado por você ter de estudar tanta matemática
em biologia. Ele demonstrou que há lei matemáticas na hereditariedade.
Os seres vivos não são mais do que moléculas, organizadas de acordo
com certas regras. Essas regras estão na molécula do DNA (que foi desco-
berto em 1953, por Francis Crick e James D. Watson). São os genes. Os
erros podem acontecer em vários momentos no processo de reprodução.
A maioria deles é deletéria, ou seja, gera organismos incapazes de sobre-
viver. Mas alguns podem gerar organismos com alguma vantagem sobre
os outros. É assim que as novas espécies surgem.
Aliás, se você já estudou biologia, presente atenção nas frases abai-
xo, encontradas pelo biólogo Marcelo Silveira Alcântara (2007) em livros
didáticos:

A Fisiologia tem como propósito fundamen-


tal manter constantes os fatores intensivos… (DOU-
GLAS, 2002, p. 71).

A reação imunitária é uma resposta adaptativa


complexa que o organismo monta para reconhecer
Ensino de Filosofia 89
e tentar eliminar do corpo substâncias estranhas que
nele penetram. (BOGLIOLO, 2002, p. 235).

Uma vez alcançado um impulso biológico su-


ficiente para a secreção do hormônio B, outras in-
fluências, incluindo o feedback negativo, reduzirão
a resposta do hormônio A de forma a deixá-la ade-
quada ao propósito biológico final. (BERNE; LEVY,
2000, p. 738).

No mundo inteiro, a cor da pele humana evo-


luiu para ser escura a ponto de evitar que a luz do sol
destrua o nutriente folacina, e clara o bastante para
possibilitar a produção de vitamina D (JABLONSKI;
CHAPLIN, 2005, p. 64).
Há alguma coisa errada nesses trechos? No seu livro didático de
biologia há algo semelhante?
Repare as expressões em negrito. Todas elas dão a impressão de
que os seres vivos ou os processos biológicos têm um propósito, uma in-
tenção. Essa visão sobre a vida denomina-se teleologia (de telos, que em
grego significa “fim”). Os seres vivos perseguiriam determinadas finalida-
des. Mas isso faz sentido, de acordo com a biologia de Darwin e Mendel?
Claro que não. Propósitos e intenções existem na visão mítica, em que os
deuses interferem na natureza de acordo com sua vontade. Na visão cien-
tífica, as coisas simplesmente acontecem, sem nenhum propósito. Um ser
vivo não reage imunologicamente com o propósito de se defender. O fato
é que a presença de uma substância nociva desencadeia uma reação imu-
ne. Os organismos em que isso ocorre são mais aptos à sobrevivência. Por
isso essa característica é tão presente nos seres vivos atuais: as espécies
em que isso não funcionou bem foram eliminadas pela seleção natural.
Da mesma forma, a cor da pele humana não evoluiu com a intenção de
adquirir a tonalidade mais adequada ao ambiente. Os humanos em que
isso ocorreu tornaram-se mais aptos à sobrevivência e à reprodução, e por
isso seus descendentes estão por aí hoje. Na biologia, não há intenções
nem propósitos, apenas uma interação cega entre moléculas, governada
por leis físicas e químicas.
A mentalidade de Galileu nos deu uma ciência com grande

90 Universidade Federal da Fronteira Sul


capacidade de compreender os processos naturais. Isso nos permite fazer
previsões cada vez mais precisas e também manipular a natureza em vista
dos nossos objetivos. Mas essa visão de mundo é capaz de fornecer todas
as respostas de que o ser humano precisa para viver em sociedade? Em es-
pecial, ela permite refletir sobre nossos objetivos individuais ou coletivos?

4. HOMENS: O GRANDE DESAFIO DA FILOSOFIA

Na mentalidade mítica, havia um vínculo entre os deuses e os ho-


mens. Os deuses assumiam aspectos do comportamento humano. Os ho-
mens procuravam na natureza a manifestação dos deuses. E essa mani-
festação tinha a função de dar uma orientação moral ao agir humano,
ou seja, ela determinava o que era certo e o que era errado. Se a ciência
galileana nega os deuses, ela acaba negando também a moral. Agora o
universo não tem mais sentido. Tudo acontece seguindo uma regularidade
cega, indiferente ao ser humano.
Na visão mítica, o Sol, por exemplo, era um ser divino. É seu brilho
e seu poder que fascinam Ícaro, a ponto de ele querer alcançá-lo. A que-
da de Ícaro lembra o ser humano de sua pequenez e que é inútil querer
igualar-se ao divino. Mas, e no mundo de Galileu, o que é o Sol? Ora, ele
é apenas mais uma estrela. Mas ele não é um deus e não diz nada para
o ser humano em termos morais. Ele não diz que devemos agir assim ou
assado. Qualquer conclusão que se tire nesse campo é subjetiva, depende
da imaginação e criatividade de cada um.
Essa imagem de um universo onde existem apenas matéria e espaço
vazio é assustadora. É o que diz o filósofo e matemático Blaise Pascal já
no século XVII: “O silêncio eterno desses espaços infinitos me apavora”
(PASCAL, 1973, fragmento 206). E ele acrescenta:

Vendo a cegueira e a miséria do homem, ob-


servando todo o universo mudo e sem luz, abando-
nado a si mesmo, e como que exilado neste recanto
do universo, sem saber quem o pôs lá e o que veio
aqui fazer, o que se tornará ao morrer, incapaz de
qualquer conhecimento, eu caio em terror como um
homem que tivesse sido levado dormindo para uma
ilha deserta e aterrorizante, e que acordasse sem sa-
Ensino de Filosofia 91
ber onde estava e sem meios de escapar (PASCAL,
1973, fragmento 693).
Não devemos esquecer que a tese mais famosa de Galileu foi o he-
liocentrismo: o centro do universo não é a Terra, mas o Sol. Isso enfatiza
ainda mais a falta de sentido humano do universo. O homem vive num
planetinha periférico. Na sua pequenez, tem poucas chances de saber por
que surgiu, qual seu propósito e como será seu futuro. Na falta dos deu-
ses, Pascal vê o homem como alguém abandonado à própria sorte, vítima
de uma natureza que o fez ignorante e frágil. E quanto mais ele busca
conhecer o universo, mais percebe que está sozinho, que nenhuma força
superior o protege ou o guia.
Essa visão de mundo chega ao máximo pessimismo no poeta bra-
sileiro Augusto dos Anjos, no poema “Psicologia de um vencido” (1998).

Eu, filho do carbono e do amoníaco,


Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênese da infância,
A influência má dos signos do zodíaco. (...)
Já o verme – este operário das ruínas –
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,
Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!

O homem é “filho do carbono e do amoníaco”, ou seja, um mero


composto bioquímico. E toda a sua vida é uma luta contra a morte, que
nada mais é do que a sua decomposição. Por isso o verme é o inimigo que
vive a espreitar. Ele é o símbolo da morte que nos persegue e que trans-
formará nossos corpos em matéria inerte, que será devolvida à terra. Por
isso, Augusto dos Anjos vê todo esse processo bioquímico, descrito pela
ciência, como uma espécie de maldição (“a influência má dos signos do
zodíaco”). Temos um destino predeterminado pelos ciclos naturais e nada
que fazemos tem sentido ou importância.

92 Universidade Federal da Fronteira Sul


Blaise Pascal e Augusto dos Anjos assumiram a visão de mundo de
Galileu. Entretanto, algo estranho aconteceu: eles fizeram poesia sobre
isso! Ou seja, eles tentaram buscar o significado humano da visão cien-
tífica. Diante desse universo sem significado humano, qual o sentido da
existência humana, o que devemos fazer? O problema é que a resposta
deles é negativa: o sentido disso tudo é que não há sentido nenhum. So-
mos apenas peças de um grande mecanismo, vítimas de uma ordem que é
indiferente à nossa existência, que não podemos controlar e nem mesmo
conhecer completamente.
Mas, no dia a dia, você precisa dar sentido à sua vida, estabelecen-
do preferências, tomando decisões, colocando objetivos em prática etc.
Mas com que critérios você faz isso? A ciência, o estudo da natureza, não
pode fornecer referência nenhuma. O máximo que a ciência faz é indicar
os meios para alcançar os fins que você estabelece, mas ela não diz quais
são esses fins. Se você quer emagrecer, um nutricionista pode receitar a
melhor dieta. Mas ele não pode dizer que é melhor ser magro do que ser
gordo. Tudo bem que a obesidade traz problemas à saúde. Mas alguém
pode decidir viver menos tempo e aproveitar o prazer de uma alimentação
farta. Aos olhos da ciência, essa é uma decisão subjetiva. Não há o que
dizer.
A situação se torna mais dramática se você lembrar que as decisões
individuais afetam as outras pessoas, pelo fato de vivermos em sociedade.
Por exemplo, uma pessoa obesa provavelmente terá mais doenças e por
isso utilizará mais o sistema público de saúde, que todos ajudam a manter
com seus impostos. É justo que alguns paguem pelas decisões dos outros?
Mas, por outro lado, é correto exigir que as pessoas sejam magras, mesmo
contra a vontade? Essas são questões relacionadas à moral. Aqui a ciência
de Galileu tem pouco a dizer. O que ela diz é apenas isto: essas decisões
são subjetivas.
Tudo bem, parece mesmo que na vida em sociedade existem ques-
tões que podemos considerar subjetivas. Por exemplo, ninguém se impor-
ta se você prefere sorvete de chocolate em vez de sorvete de morango.
Mas existem questões que são consideradas relevantes. Por exemplo, no
Brasil a corrupção na política traz consequências ruins para todos. Ser
corrupto, então, é uma questão de preferência subjetiva? Ninguém tem
nada a ver com isso? Mas, se estudando o universo não encontramos uma
orientação em relação a isso, onde poderemos encontrá-la? Se dissermos
Ensino de Filosofia 93
que isso depende de cada um, então estamos admitindo o relativismo,
quer dizer, que a moral é relativa às preferências de cada pessoa ou grupo.
Mas e se alguém preferir ser ladrão, estuprador ou assassino, tudo bem?
Certamente não!
Aqui está o grande desafio que a filosofia assume desde a Antigui-
dade: descobrir um sentido para a vida humana, tanto para cada indivíduo
isoladamente, quanto para a sociedade como um todo. Sócrates, consi-
derado o pai da filosofia, foi quem percebeu isso primeiro. Na sua época
(séc. VI a. C.), já existiam explicações parecidas com as de Galileu. No
diálogo intitulado Fédon, existe a narração de sua última conversa com
seus amigos. Ele tinha sido condenado à morte e aguardava a execução.
Seus amigos arranjaram uma forma de ele fugir, mas ele não quis. Então,
ele se pergunta: por que permaneci aqui sentado ao invés de fugir? A
explicação mecanicista da época seria a seguinte: “(...) me acho sentado
aqui porque meu corpo é formado de ossos e tendões (...) Articulando-se
os ossos em suas articulações, e estendendo-se e contraindo-se, sou capaz
de flexionar os meus membros, e por esse motivo é que estou sentado
aqui (...)” (PLATÃO, 1979, p. 104-5, 98c). Sócrates considera esse tipo de
explicação ridícula. Nas suas palavras, “(...) estou aqui porque os atenien-
ses julgaram melhor condenar-me à morte, e por isso pareceu-me melhor
ficar aqui, e mais justo aceitar a punição por eles decretada” (1979, p.
105, 98e). Sócrates não desconsidera as condições físicas que permitem
a ele sentar-se. Mas ele defende que conhecê-las não é suficiente para
compreender seu ato. Sua situação depende de uma avaliação moral dos
atenienses e sua. Os atenienses acharam justo condená-lo, e ele achou
justo aceitar a punição. Mas a pergunta que logo surge é: o julgamento
dos atenienses foi correto? E a decisão de Sócrates? O problema é que a
abordagem científica não pode responder a essas questões. Mas, ao mes-
mo tempo, essas são as questões mais importantes, pois conduzem nossa
vida. Tão importantes que não podemos nos contentar em dizer apenas
que são subjetivas.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na música dos Paralamas do Sucesso que mencionei no início do


texto, o refrão é seguinte:

94 Universidade Federal da Fronteira Sul


Tendo a Lua aquela gravidade
Aonde o homem flutua
Merecia a visita não de militares
Mas de bailarinas e de você e eu.

Foi a ciência de Galileu que nos levou à Lua. Mas a Lua pode ser
vista também pelo olhar da bailarina ou dos amantes. Não precisamos re-
duzir seu significado, dizendo que é apenas um satélite da Terra, com 1/6
de sua gravidade. Ela é isso do ponto de vista físico, mas pode ser muito
mais do ponto de vista humano.
Um dos grandes desafios que mantém a filosofia viva após mais de
dois mil anos de história é a tentativa de encontrar referências para a ação
humana, tanto individual quanto em sociedade. Se a ciência negou as
respostas divinas, é preciso encontrar novas respostas.
É uma necessidade humana tentar dar sentido para as ações. Não
queremos agir simplesmente por agir. Somos limitados pela natureza de
nossos corpos e também pelas condições físicas externas. Entretanto, o
próprio desenvolvimento da ciência e da tecnologia mostra o quanto su-
peramos esses limites. Mas a pergunta sempre se coloca de novo: qual o
sentido daquilo que fazemos?
Também não nos contentamos em admitir que esse sentido é subje-
tivo. Essa solução seria fácil, mas não é viável se generalizada. Existem in-
tenções individuais que são inaceitáveis na vida em sociedade. Temos que
buscar, então, alguma referência objetiva, que valha para todos. Todas
essas questões estão sempre em jogo no nosso dia a dia e se manifestam
na música, no cinema, nos noticiários, no sistema jurídico, nas decisões
políticas, no cotidiano das escolas, etc. Refletir sobre isso é uma das prin-
cipais formas de fazer filosofia.

Referências

ALCÂNTARA, M. S. (. ). Processos de manutenção da vida. Brasília: UnB,


2007. Módulo III - Consórcio Setentrional - EaD.

ANJOS, A. D. Eu e outras poesias. 42. ed. Rio de Janeiro: Civilização Bra-


sileira, 1998.
Ensino de Filosofia 95
ASPIS, R. L.; GALLO, S. Ensinar filosofia: um livro para professores. São
Paulo: Atta Mídia e Educação, 2009.

ASPIS, R. P. L. O professor de Filosofia: o ensino de filosofia no ensino


médio como experiência filosófica. Cad. Cedes, Campinas, v. 24, n. 64,
set./dez. 2004. 305-320.

BRANDÃO, J. D. S. Mitologia grega. Petrópolis: Vozes, 1987.

GALILEI, G. O Ensaiador. Tradução de Helda Barraco. São Paulo: Abril


Cultural, 1973.

JAPIASSÚ, H. A revolução científica moderna: de Galileu a Newton. São


Paulo: Letras & Letras, 1997.

LIPMAN, M. A filosofia vai à escola. São paulo: Summus, 1990.

LIPMAN, M. O pensar na educação. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2001.

LOSEE, J. Introdução histórica à Filosofia da ciência. Belo Horizonte: Ita-


tiaia, 1979.

PASCAL, B. Pensamentos. São Paulo: Abril cultural, 1973. Os Pensadores.

PLATÃO. Fedon. Tradução de José Cavalcante de Souza; Jorge Paleikat e


João Cruz Costa. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

VIANNA, H.; TILLETT, T. Tendo a lua. Rio de Janeiro: EMI-Odeon, 1991.

Apêndice: sugestão para o trabalho da temática no ensino


médio

A temática proposta no texto pode ser trabalhada com diferentes


propósitos dentro de um currículo de filosofia no ensino médio. Será pre-
ciso verificar como ela se encaixa melhor. Ela pode ser trabalhada como
introdução à filosofia, mostrando uma das preocupações centrais da área,
que a fazem, de certa forma, pôr-se entre o mito e a ciência. Também é
possível trabalhar em contextos diferentes, relacionando-a a questões de
antropologia, de estética, de ontologia ou de ética. De qualquer forma,
seguindo um pouco a proposta de Renata Aspis e Sílvio Gallo (2009),

96 Universidade Federal da Fronteira Sul


gostaria de propor como sugestão a seguinte metodologia de trabalho para
essa temática.

a) Primeiro passo: sensibilização


O objetivo aqui é trazer a atenção dos alunos à temática. Pode-se
ouvir a música Tendo a Lua, dos Paralamas do Sucesso. Nesse primeiro
momento, o professor não dará respostas, apenas convidará os alunos a
“decifrar” o significado da letra. Pode-se apresentar também o mito de
Ícaro. A história está disponível em textos como o de Brandão (1987) ou
mesmo em vídeos do YouTube. E, por fim, pode-se exibir um trecho da
chegada do homem à Lua, também disponível no YouTube. A ideia é dei-
xar que os alunos percebam o contraste entre as duas realidades, mesmo
que não sejam capazes de defini-lo conceitualmente.

b) Segundo passo: problematização


Depois ou mesmo durante a sensibilização, pode-se instigar os alu-
nos para que eles mesmos formulem questões sobre as diferenças entre
os “mundos” de Ícaro e de Galileu. O professor deve ajudar os alunos a
sintetizar e tornar mais claras essas questões. Elas podem ser anotadas no
quadro ou mesmo no caderno (no caso da atividade ser desenvolvida em
diversas aulas). Essas questões serão um guia para a investigação posterior.

c) Terceiro passo: investigação


A investigação é o momento do contato mais direto com o conte-
údo filosófico a ser trabalhado. Neste caso, pode-se ler o texto acima ou
outro. Seria desejável que os alunos pudessem ter contato com o texto
em casa, para tornar a aula mais dinâmica. Mas, se isso não for possível,
a leitura pode ser feita em sala de aula. Uma estratégia interessante é so-
licitar que um aluno leia uma parte (alguns parágrafos) e ele mesmo, ao
final da leitura, indique outro aluno para fazer uma síntese oral do trecho
lido. O professor deve complementar essa síntese, inclusive interrogando
outros colegas e dialogando com a turma. Os conceitos principais devem
ser anotados no quadro e/ou no caderno. Outros textos e informações da
história da filosofia também podem ser introduzidos e utilizados. A critério
do professor, na medida em que as diferenças entre as visões mítica e cien-
tífica forem sendo estabelecidas, é possível introduzir situações reais sobre
as quais tal capacidade de diferenciação poderia ser exercitada. Aborto,
livre arbítrio e amor são temas que podem ser tomados como exemplos.
Ensino de Filosofia 97
Não se deve pretender convencer a turma de uma determinada visão. O
importante é que os alunos se tornem capazes de identificar diferentes
possibilidades. O objetivo é formar uma “comunidade de investigação”,
para usar a expressão de Matthew Lipman (2001).

d) Quarto passo: conceituação


A conceituação é o momento de os alunos produzirem conceitos,
como forma de consolidar sua “experiência filosófica” (ASPIS, 2004). Em
parte, essa atividade foi realizada já na investigação, na medida em que
sintetizaram oralmente o texto lido. Mas é importante que eles exercitem
também a habilidade da escrita. Podem-se solicitar pequenas sínteses es-
critas ou respostas a questões pontuais ao final de cada aula. Ou então um
texto um pouco maior, ao final de várias aulas. É importante que as tarefas
solicitadas não foquem apenas a reprodução do conteúdo visto, mas que
estimulem a aplicação dos conceitos desenvolvidos na compreensão de
algo, ou seja, que abram espaço para a criatividade filosófica do aluno.
e) Avaliação
A avaliação pode ocorrer em todos os momentos do processo. A ca-
pacidade de formular bons problemas, em vez de apenas reproduzir respostas,
deve ser valorizada. Pode-se pensar em estratégias específicas para isso. Já as
atividades de investigação e de conceituação, especialmente quando escritas,
permitem uma avaliação bastante global da aprendizagem. É importante que os
alunos tenham uma apreciação qualitativa de suas avaliações. Podem-se organi-
zar pequenos seminários para discuti-las.

98 Universidade Federal da Fronteira Sul


7. FILOSOFIA POLÍTICA PARA O ENSINO
MÉDIO: uma proposta de abordagem
Clóvis Brondani1

1. INTRODUÇÃO

Em um conto de Borges, intitulado O Congresso, um grupo de


pessoas descontentes com o parlamento uruguaio resolve criar um novo
Congresso que representaria toda a humanidade. Contudo, já de início,
eles deparam com um problema de definir como se daria essa represen-
tação. O problema estava em definir que grupo de pessoas cada um dos
congressistas representaria. Uma personagem, norueguesa e secretária,
poderia representar tanto as secretárias quanto as norueguesas. Outro,
criador de gado, poderia representar “os criadores de gado, mas também
os uruguaios e também os homens de barba vermelha e os que estão sen-
tados numa poltrona” (BORGES, 2011, p. 29). Enfim, conforme um dos
personagens conclui, trata-se de um típico problema filosófico, seme-
lhante ao de fixar o número exato dos arquétipos platônicos (BORGES,
2011, p. 29). Se aqui se trata de um genuíno problema filosófico não
vem ao caso, pois se trata de uma obra de ficção, e de um recurso típico
da obra de Borges. Contudo, podemos perceber que, ainda que este seja
mais um dos típicos jogos de Borges, temos uma questão filosófica sobre
o problema da representação que foi muito debatida na tradição filosó-
fica. Basta lembrarmo-nos da argumentação de Rousseau no Contrato
1 Doutor em filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professor do curso de
filosofia da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS).
social, insistindo que a vontade geral não pode ser representada (1983,
p. 43).
O exemplo do conto de Borges nos mostra como problemas e ques-
tões tipicamente filosóficas podem aparecer cotidianamente, não apenas
na história da filosofia. Contudo, quando nos referimos propriamente à
inserção da filosofia política para o ensino médio, tema do presente texto,
é necessário que esses problemas recebam um tratamento rigoroso para
que a discussão se torne propriamente filosófica e avance para além de um
mero debate de opiniões.
O problema da introdução da filosofia política no ensino médio
está inserido no interior de um contexto mais amplo e complexo do ensino
de filosofia para o nível médio e, certamente, é seu reflexo. Isto significa
que os problemas gerais sobre o ensino de filosofia se repetem quando se
concentra atenção ao ensino de filosofia política.
Nesse sentido, uma das questões centrais no debate sobre o ensi-
no de filosofia na atualidade está relacionada ao tipo de abordagem do
conteúdo a ser ensinado. Enquanto alguns defendem um ensino a partir
da história da filosofia, outros defendem um ensino centrado em temas e
problemas de filosofia. O ensino de filosofia política se encontra, portan-
to, também inserido nesse debate. No caso específico da filosofia política
essa discussão é ainda mais relevante, tendo em vista que nesta área o
recurso não somente à própria história da filosofia, mas à própria história
social e política, é sempre recorrente para a compreensão dos textos polí-
ticos. É comum o argumento segundo o qual as obras políticas devem ser
compreendidas como tentativas de respostas às questões políticas do seu
tempo. E isso pode nos conduzir à conclusão de que somente é possível
compreender a filosofia política a partir de sua história.
Porém, será impossível fazer filosofia política sem recorrer necessa-
riamente à história da filosofia política? Ou, de outro modo, simplesmente
contar a história da filosofia política implica em realmente fazer filosofia
política? Quando se trata de ensinar filosofia política para o nível médio,
qual a melhor forma de abordagem: a partir da história ou de temas e
problemas? Percebemos que aqui temos a replicação da mesma questão
relativa ao ensino de filosofia em geral.
Neste texto procuramos apresentar uma proposta de ensino de fi-
losofia política para o ensino médio centrada na discussão de temas e
problemas. Tal proposta não descarta a história da filosofia, contudo, não
100 Universidade Federal da Fronteira Sul
a toma como fio condutor para o desenvolvimento das atividades de ensi-
no. Ela é concebida como suporte teórico no intuito de tornar a discussão
mais rigorosa e estritamente filosófica, evitando assim o risco do ensino de
filosofia se tornar uma mera discussão sem o necessário rigor filosófico. É
necessário considerar que nem toda discussão sobre um problema é ne-
cessariamente uma discussão filosófica. Tendo em vista esta circunstância,
essa proposta incentiva a utilização da tradição filosófica em sala de aula,
especialmente no que diz respeito ao trabalho com os textos clássicos.
Contudo, a proposta centra-se na discussão de temas e problemas, evitan-
do também o risco de tornar o ensino de filosofia a simples memorização
de autores e teorias políticas.
Para isso, o texto será dividido em dois momentos argumentativos.
Inicialmente apresentaremos uma discussão teórica sobre o ensino de fi-
losofia política e sobre a questão da abordagem deste ensino a partir da
história da filosofia ou a partir de problemas e temas. Procuramos esboçar
alguns argumentos no sentido de indicar que a abordagem por problemas
e temas é mais frutífera para o ensino médio, tendo em vista que incentiva
a reflexão filosófica e a análise de argumentos. Posteriormente, apresenta-
mos um conjunto de temas e problemas que podem ser trabalhados pelos
professores do ensino médio. Essa seleção pode ser tomada como uma
espécie de currículo mínimo de temas a se tratar em filosofia política para
esse nível de ensino. Trata-se de um recorte de temas e problemas que cer-
tamente pressupõe algum nível de arbitrariedade, contudo, trata-se muito
mais de uma sugestão aos professores, no sentido de servir de uma espé-
cie de guia no momento do planejamento das aulas de filosofia política.
Desse modo, não se pretende esgotar as possibilidades de temas e muito
menos elencar um conjunto absoluto ou fechado de problemas filosóficos
que devem ser trabalhados, mas apenas apresentar um conjunto de suges-
tões que, em grande parte, originam-se na própria experiência de trabalho
com o ensino médio.
Cabe ressaltar também, que se trata de uma proposta destinada
exclusivamente ao ensino de filosofia política para o nível médio, não
havendo qualquer tipo de pretensão de estabelecer essa metodologia
como a mais adequada ao nível superior, especialmente para o curso de
filosofia.

Ensino de Filosofia 101


2. O ENSINO DE FILOSOFIA POLÍTICA: O PROBLEMA DA
ABORDAGEM

Quando se trata de discutir ensino de filosofia política para o nível


médio, uma questão imediata que aparece diz respeito à abordagem a ser
utilizada: uma perspectiva centrada na história da filosofia política ou uma
perspectiva focada na discussão de problemas? Tal questão, é fácil perce-
ber, aparece em qualquer discussão mais geral sobre o ensino de filosofia
e tem sido fruto de debates intermináveis.
No caso específico da filosofia política a questão é ainda mais perti-
nente, na medida em que nessa área necessita-se constantemente recorrer
não apenas à história das ideias, mas, especialmente, à própria história
social e política. O fato de que as obras políticas sempre foram escritas vi-
sando a responder a um problema político específico parece inconteste, o
que nos conduz a uma questão pertinente: é possível compreender filoso-
fia política sem entender a história política? É possível entender uma obra
de filosofia política separada do seu contexto histórico? Essa última ques-
tão é muito mais cara à filosofia política. Isso, contudo, pode conduzir à
compreensão segundo a qual a filosofia política e a história política estão
tão vinculadas de modo que seja impossível distingui-las. Tal concepção
pode levar à conclusão de que não somente a história da filosofia política,
mas, sobretudo, a história da política deve ser o centro de uma abordagem
dessa disciplina para o ensino médio. Ou, pelo menos, uma perspectiva
na qual os dois planos sejam abordados de tal modo unificados que se
torne impossível ao aluno fazer qualquer distinção entre os dois, ou retirar
daí qualquer questão mais generalista e universal que possa extrapolar o
mero contexto histórico.
Se analisarmos as Orientações curriculares do ensino médio perce-
bemos que elas trazem uma perspectiva centrada na história da filosofia.
Segundo o texto “Cabe insistir na centralidade da História da Filosofia
como fonte de tratamento adequado de questões filosóficas” (BRASIL,
2006, p. 17). Contudo, no próprio texto está dito que “Esta publicação
não é um manual ou cartilha a ser seguida, mas um instrumento de apoio
à reflexão do professor a ser utilizado em favor do aprendizado” (BRASIL,
2006, p. 6). Isso significa que uma proposta que centraliza temas e proble-
mas em vez da história da filosofia não está contrariando as Orientações

102 Universidade Federal da Fronteira Sul


curriculares. Além disso, se essa mesma proposta continuar a conceber a
história da filosofia como pano de fundo, especialmente no que se refere
à utilização de textos da tradição, então estará completamente de acordo
com o espírito do documento.
De todo modo, quando o texto das Orientações se refere à centra-
lidade da história da filosofia, tal afirmação deve ser compreendida num
sentido bastante amplo. Não significa, certamente, que o conceito de his-
tória da filosofia deva ser entendido como o mero repassar ao aluno a
sucessão de ideias e teorias ao longo da história. Parece-nos, ao contrário,
que com história da filosofia se quer indicar o valor da tradição filosó-
fica, isto é, que é impossível realmente produzir algum tipo de reflexão
genuinamente filosófica no ensino médio sem recorrer à tradição, ao rico
arcabouço de textos e teorias produzidos ao longo da história que, fun-
damentalmente, são a origem dos problemas filosóficos relevantes para o
nosso tempo. Nesse sentido, o texto das Orientações é bastante claro: “É
recomendável que a história da Filosofia e o texto filosófico tenham papel
central no ensino da Filosofia, ainda que a perspectiva adotada pelo pro-
fessor seja temática (...)” (BRASIL, 2006, p. 27).
Diante dessas questões básicas, cabe indagar a respeito da aborda-
gem dos conteúdos de filosofia política. Nesse sentido, uma abordagem
mais adequada ao ensino médio se dá por meio de uma história das ideias
políticas ou por meio de problemas? As duas perspectivas podem ser inte-
ressantes, desde que estejam vinculadas com o desenvolvimento da capa-
cidade de compreensão de problemas e da argumentação.
Contudo, diante do fato de que nossa proposta se orienta pela abor-
dagem por meio da discussão de problemas, é necessário que se façam
algumas considerações sobre uma abordagem centrada na história da fi-
losofia política.
No caso específico da filosofia política, a história política é funda-
mental para a compreensão de muitas teorias ou problemas desenvolvidos
ao longo da história da filosofia. Nesse sentido, muitas vezes parece im-
possível desvincular as duas dimensões, o que pode levar à construção de
um modelo de abordagem que não faça nenhuma distinção entre a histó-
ria social ou política e a própria filosofia política. É efetivamente possível,
por exemplo, tratar da democracia a partir da história política de Atenas,
ou fazer uma discussão sobre o Estado a partir da história do surgimento
do Estado moderno.
Ensino de Filosofia 103
O problema dessa abordagem é o risco de tornar a aula de filoso-
fia uma espécie de ensino de história da política ou, quando muito, uma
história das ideias e regimes políticos, em vez de uma aula de filosofia po-
lítica na qual se desenvolve uma reflexão propriamente filosófica dos pro-
blemas políticos. É necessário, sobretudo, questionar se tal tipo de abor-
dagem permite o desenvolvimento de uma verdadeira reflexão filosófica.
Caso contrário, pode-se estar fazendo, conforme ressalta Murcho (2002),
a mera história dos problemas filosóficos, o que não necessariamente sig-
nifica fazer uma reflexão filosófica.
É evidente que a dimensão histórica é fundamental para a compre-
ensão da filosofia política, entretanto, se as obras de filosofia política se
limitassem a fornecer respostas particulares para problemas políticos de
seu tempo, qual o motivo de serem ainda estudadas hoje além da mera
curiosidade histórica ou de seu valor como obra cultural? E não parece
que é somente por esse motivo que as grandes obras políticas são estu-
dadas. Se ainda despertam interesse e debate na comunidade acadêmica
é porque, de algum modo, as repostas que forneceram aos problemas
políticos de sua época ultrapassaram seu contexto histórico devido ao
ser caráter universal. É porque tratam de certos problemas filosóficos
que ainda são relevantes. A discussão sobre a justiça entre Sócrates e
Trasímaco no início da República é ainda relevante porque a questão
sobre a convencionalidade da justiça é um problema político relevante.
O Segundo tratado sobre o governo de Locke ainda desperta interesse
porque, entre outras coisas, a questão sobre os limites do Estado é um
problema relevante.
A história política é certamente fundamental para a compreensão
da filosofia política, porém, isso não significa que a centralidade esteja
na própria história. Nesse caso, o professor deve ser hábil para utilizar
o contexto histórico de modo a facilitar a compreensão dos argumentos,
problemas ou textos filosóficos que estão sendo abordados, mas jamais
centrar todo o seu trabalho na história.
Contudo, ainda há a possibilidade de, mesmo deixando a história
da política em segundo plano, centrar-se na própria história da filosofia
política ou na história das ideias políticas. Nesse sentido, voltamos à ques-
tão de fazer uma abordagem a partir da história da filosofia política ou a
partir de problemas de filosofia política. Acredito que haja argumentos
fortes para defender as duas abordagens.
104 Universidade Federal da Fronteira Sul
Quanto à abordagem a partir da história da filosofia política, a
vantagem óbvia é que permite uma visão geral e abrangente. Permite ao
aluno uma visão totalizante da história das ideias políticas, organizada
no interior de um pensamento que se constrói historicamente, podendo
compreender como problemas e teorias passam de um momento histórico
para outro e como chegaram até nós. Nesse sentido, valeria a antiga tese
segundo a qual conhecer a história do passado seria útil para compreender
melhor o presente. Desse modo, conhecer a história da filosofia política
seria útil para compreender a filosofia política atual e, por conseguinte,
permitiria uma compreensão melhor do contexto político atual.
Um risco dessa abordagem é que ela não parece ser nem atraente
aos alunos e nem produtiva no sentido de instigar uma verdadeira discus-
são filosófica, porque se o único interesse que temos em estudar Aristóte-
les é pela compreensão do contexto da filosofia política atual, então isso
implica em dois problemas graves: primeiro, o aluno precisará esperar até
chegar à filosofia política da atualidade para verdadeiramente perceber a
importância de Aristóteles e, segundo, quando finalmente chegar a esse
momento, talvez sua compreensão seja a de que Aristóteles não tem muita
importância, a não ser como história ultrapassada, como um apêndice,
como mais uma das inúmeras correntes filosóficas que, ao longo de 2.500
anos, contribuíram para formar o contexto da filosofia política contempo-
rânea.
Outro problema prático com essa abordagem é sua dificuldade de
realizá-la no âmbito do ensino médio, especialmente devido à exígua car-
ga horária de filosofia na matriz curricular. Em geral, há uma aula semanal
de filosofia distribuída ao longo de três anos, ao longo dos quais devem ser
abarcados todos os aspectos da filosofia. Logo, o espaço reservado para a
filosofia política é mínimo. Diante desse fato incontornável, é presumível
que não exista tempo suficiente para que o professor possa dar conta de
passar ao aluno toda a história da filosofia política desde a Antiguidade até
os dias atuais e complementar essa abordagem com uma boa introdução
sobre eventos de história social e política relevantes para a compreensão
da história da filosofia política e depois relacioná-los com todos os auto-
res relevantes da área. Na prática, isso não acontece, e uma tentativa de
abordagem histórica totalizante já é ameaçada com esse percalço inicial.
Por fim, nesse tipo de abordagem corre-se o risco de tornar a his-
tória dos acontecimentos e ideias políticas o centro do processo, como se
Ensino de Filosofia 105
tivessem um valor intrínseco que por si já pareceria justificar seu ensino.
A filosofia, nesse caso, torna-se uma espécie de erudição, uma atividade
que consiste no conhecimento pormenorizado da sucessão de teorias que
apareceram ao longo da história. Essa condição implica mais uma vez,
conforme bem nos alerta Murcho, em fazer a história dos problemas filo-
sóficos em vez de discuti-los (MURCHO, 2002).
Diante do exposto, procuramos argumentar em defesa de uma pro-
posta de ensino de filosofia política que abarque as duas questões: a na-
tureza problematizadora e argumentativa da filosofia e o valor da tradição
filosófica. Contudo, argumentamos que no caso do ensino médio a abor-
dagem se estabeleça a partir de temas e problemas filosóficos, sendo a his-
tória da filosofia utilizada como suporte teórico para o tratamento desses
temas e problemas.
Pode-se elencar um conjunto de argumentos a favor de uma abor-
dagem do ensino de filosofia política a partir de temas e problemas. Em
primeiro lugar, a partir dessa perspectiva, é possível evitar que o ensino
de filosofia política se torne a mera tarefa de decorar nomes e teorias po-
líticas, processo que afasta o ensino de filosofia de seu objetivo essencial
que é o exercício da reflexão filosófica. Conforme apontamos acima, o
ensino de filosofia política centrado na memorização de autores, teorias
e fatos históricos é pouco produtivo em relação ao exercício da argu-
mentação filosófica e, em geral, pouco atrativo para alunos do ensino
médio. Assim, uma abordagem a partir de problemas incentiva a reflexão
propriamente filosófica, na medida em que incute não apenas a reflexão
sobre problemas, mas a análise e construção de argumentos, sem, contu-
do, desconsiderar a tradição filosófica. Nesse sentido, segundo Palácios
(2007, p.86):

Se a filosofia é compreendida como uma ati-


vidade em que se busca soluções teóricas para pro-
blemas teóricos — e não é meramente, digamos, o
lugar em que se aprendem métodos de leituras —, e
isso tiver sustentação na própria história da filosofia,
como penso que tem, o ensinar a filosofar só pode
consistir num levar os estudantes aos problemas.
Isto é: levá-los a lidar, eles próprios, com os diversos
problemas que têm aparecido na história da filoso-
fia, permitindo que se posicionem das várias formas
106 Universidade Federal da Fronteira Sul
como é possível fazê-lo no que diz respeito ao enfo-
que, ao tratamento do problema, à possibilidade ou
impossibilidade de suas soluções, à pertinência do
próprio problema, etc.
Esse tipo de abordagem não deixa de contribuir para uma formação
cidadã, conforme tanto se exige da filosofia, na medida em que permite
aos alunos a consciência da universalidade de muitos problemas filosó-
ficos e sua relação com sua vida cotidiana. Essencialmente, a verdadeira
reflexão filosófica contribui para a tolerância e compreensão das posições
diferentes, que certamente são tipos de comportamentos exigidos para o
exercício da cidadania sob a perspectiva democrática.
Essa perspectiva também tem o mérito de evitar outro risco relacio-
nado ao ensino de filosofia política, que é a doutrinação ideológica. No
que concerne especificamente ao ensino de filosofia política, o risco de a
aula se tornar uma doutrinação de uma teoria específica é bastante forte.
Nesse caso, trata-se de politizar o ensino de filosofia num sentido nefasto
em relação à característica multidisciplinar da própria filosofia. Doutrinar
os alunos a partir de uma determinada perspectiva política é um risco
que se deve evitar, seja qual for a doutrina em questão. Assim, as próprias
Orientações curriculares já previnem tal possibilidade:

Mostrou-se, pois, necessária uma reformulação que


evite imposições doutrinárias, mesmo quando resultantes
das melhores intenções. Um currículo de filosofia deve
contemplar a diversidade sem desconsiderar o professor
que tem suas posições, nem impedir que ele as defenda
(BRASIL, 2006, p. 18).
Desse modo, um ensino a partir de problemas, centrado na análise
de argumentos e conceitos, que recorre à história da filosofia como su-
porte, parece ser a melhor maneira de evita qualquer tipo de doutrinação.
Essencialmente, nossa proposta procura evitar a tentação de contar
a história dos problemas e argumentos em vez de tratar dos próprios argu-
mentos e problemas. Por exemplo, é tentador, ao tratar do debate contem-
porâneo sobre a democracia, fazer uma história desse debate, em vez de
colocar os argumentos fundamentais dessa discussão de modo a instigar o
aluno a análise de argumentos e o desenvolvimento de uma argumentação
própria.
Ensino de Filosofia 107
Essa proposta, contudo, não exclui a possibilidade de tratar da his-
tória da filosofia política nem de uma história da política. Se houver tempo
disponível, abordar a história, em ambos os sentidos, seria interessante.
Nossa abordagem, entretanto, independe da questão. Procuramos uma
abordagem que possa ser feita nas duas condições, na medida em que, no
interior de si mesma já abriga uma consideração da história e, especial-
mente, dos textos.
Dessa maneira, uma abordagem de ensino de filosofia política que
privilegia a discussão de problemas não implica o abandono da história
da filosofia, mas, ao contrário, a pressupõe como fundamento essencial.
Nesse sentido, conforme Aspis e Gallo “é necessário que os estudantes
tenham contato, de forma ativa e criativa, com a diversidade da filosofia
ao longo da história, pois ela é a matéria-prima para qualquer produção
possível” (2009, p. 41). Uma discussão de problemas que não apela para
a tradição dificilmente pode se tornar propriamente filosófica. Essa discus-
são somente se tornará propriamente filosófica caso o professor seja hábil
para conduzir a discussão de modo a tratar de genuínos problemas filosó-
ficos com o rigor necessário. Nesse caso, o recurso à história da filosofia
é o melhor instrumento a serviço de uma discussão filosófica consistente.
Isso porque os problemas realmente filosóficos se originaram da tradição.
Caso contrário, qualquer discussão temática proposta pelo professor não
avançará para além do senso comum. Nesse sentido, qualquer discussão
filosófica deve se apoiar na tradição. Conforme afirma Murcho (2002, p.
14), do mesmo modo que o físico deve conhecer os fundamentos da físi-
ca, aqueles que devem filosofar devem conhecer o que os outros filósofos
disseram a respeito da questão.

3. PROPOSTAS PRÁTICAS DE TEMAS E PROBLEMAS DE


FILOSOFIA POLÍTICA

Selecionamos a seguir quatro grandes temas, a partir dos quais pen-


samos ser possível e frutífera a inserção da filosofia política no ensino
médio. Há, certamente, um nível de arbitrariedade na escolha desses te-
mas, contudo, não se trata de uma escolha puramente arbitrária. Os temas
foram escolhidos tomando-se como ponto de partida os debates mais co-
muns dentro da filosofia política, especialmente os debates contemporâ-
neos. Assim, trata-se de temas relevantes para a contemporaneidade, mas
108 Universidade Federal da Fronteira Sul
que se constituíram ao longo da história da filosofia. Eles abrangem um
conjunto de problemas que podem constituir o ponto de partida para a in-
vestigação filosófica com os alunos de ensino médio. Buscamos selecionar
os temas como se englobassem um conjunto de problemas específicos,
entretanto, como se perceberá ao longo do texto, muitos dos problemas se
alocam no interior de mais de um dos grandes temas.
É necessário esclarecer que esses temas são apenas sugestões que
devem ser compreendidos como norteadores, não esgotando todas as pos-
sibilidades do ensino de filosofia política. Também não há nenhum nível
de prioridade ou hierarquia entre eles, sendo possível seu tratamento ao
longo do período letivo conforme o professor considerar mais propício.
Trata-se, conforme já afirmamos, apenas de um guia que possa de algum
modo orientar o trabalho do professor em sala de aula.

3.1 DEMOCRACIA

A democracia é um dos temas centrais da filosofia política. Porém,


não se trata de uma mera questão histórica, mas, de um problema atual,
que demanda a análise de um conjunto de argumentos. Desse modo, pa-
rece mais produtivo, em vez de começar o tratamento do tema pela his-
tória da democracia grega, por exemplo, iniciar um questionamento em
torno dos argumentos pró e contra a democracia.
Há um grande consenso em torno da democracia como a única
forma de governo justificada. O professor pode aproveitar essa ideia e
começar uma discussão filosófica sobre a democracia que permite não
ser puramente uma história dos regimes democráticos e se tornar, efetiva-
mente, uma análise de argumentos a favor e contra o governo de todos.
Pode-se começar, inclusive com uma apresentação básica do conceito de
democracia como governo de todos e uma distinção, que parece neces-
sária, entre democracia direta e indireta, pois serve para evitar equívocos
em relação a certas ideias preconcebidas a respeito da democracia grega.
O professor pode iniciar uma discussão propriamente filosófica so-
bre a questão apresentando as tensões e paradoxos internos à própria ideia
de democracia. Trata-se, nesse caso, de um bom exercício de argumenta-
ção lógica. Um paradoxo inicial que poderia ser apresentado aos alunos
é o caso em que decisões tomadas democraticamente podem resultar em
decisões tipicamente antidemocráticas. Ou, então, se não poderia haver
Ensino de Filosofia 109
uma contradição inescapável diante de um processo democrático, como
é o caso do exemplo dado por Warburton (2008, p. 119), em seu livro in-
trodutório ao ensino de filosofia, no qual uma decisão democrática pode
ser ameaçadora à própria ideia de democracia.
Outra tensão a ser explorada pode ser em relação à possibilidade da
tirania da maioria. Trata-se também de uma espécie de paradoxo na me-
dida em que decisões democráticas da maioria poderiam, em tese, violar
direitos das minorias. Há inúmeros autores que podem ser explorados nes-
se âmbito e, nesse caso, por exemplo, Tocqueville seria um autor indicado
para tratar do tema.
Depois dessas discussões iniciais a respeito das tensões internas à
própria ideia de democracia, pode-se partir para uma análise mais es-
pecífica de argumentos contra e a favor da democracia. Em relação aos
argumentos críticos, podem ser trabalhados argumentos clássicos como os
de Platão sobre a incapacidade de todos governarem por falta de conheci-
mento específico da arte da política, por exemplo. Nesse caso, poder-se-ia
fazer uso dos textos de Platão, como a passagem da República em que ele
faz a analogia da política com outras profissões (PLATÃO, 1997).
Existem muitas outras críticas à democracia esboçadas ao longo de
tempo, que podem ser escolhidas pelo professor e utilizadas de modo a
estimular a reflexão propriamente filosófica dos alunos. Cito, por exemplo,
argumentos elitistas tipicamente modernos sobre a incapacidade dos me-
nos esclarecidos governar que está, inclusive, presente em autores liberais.
Pode-se recorrer também aos argumentos de Schumpeter sobre a irracio-
nalidade dos indivíduos como um obstáculo para o bom funcionamento
de uma democracia (MELO, 2013).
Quanto aos argumentos em defesa da democracia há inúmeros au-
tores que podem ser utilizados, inclusive de matizes diferentes, como Rou-
sseau, Mill, Habermas, Chantal Mouffe, entre outros.
Um bom auxílio para a questão é se servir de estudos oriundos
de outras ciências, como a ciência política e a economia. Nesse sentido,
a discussão sobre as teorias da democracia no século XX pode ser inte-
ressante. Um tópico a ser explorado pode ser a discussão entre realismo
e normativismo político. É possível, por exemplo, trabalhar as visões de
Weber e Schumpeter sobre a democracia. Sobre Weber, é interessante sua
concepção de que as sociedades plurais não possuem mais uma eticidade
tradicional sendo impossível conciliar os diferentes valores e interesses.
110 Universidade Federal da Fronteira Sul
Nesse caso específico, uma comparação com teses aristotélicas sobre a
vida política é interessante. Também de Weber é pertinente pensar a ques-
tão do Estado como agrupamento político que reivindica o monopólio da
força e a ideia de que a dominação organizada necessitou de um poder
administrativo altamente racionalizado. Pensar, por exemplo, como essa
visão mostra as dificuldades de um verdadeiro sistema democrático. De
Schumpeter é importante, por exemplo, a crítica ao que ele chama de
ficção da doutrina clássica democrática: a concepção segundo a qual a
finalidade do governo é a realização do bem comum, e a segunda é a con-
cepção de que os indivíduos são racionais (MELO, 2013). Nesse caso, é
interessante contrapor os argumentos democrático-elitistas de Schumpeter
às teorias democráticas ou republicanas clássicas, segundo as quais todos
os cidadãos devem participar e compor a vida pública.

3.2 SOBRE O SENTIDO DA POLÍTICA

Neste tema, o professor pode começar uma investigação a respeito


dos conceitos de política e, inclusive, recorrer a uma dinâmica envolven-
do a própria etimologia da palavra. Nele, aspectos da história da política
são valiosos. É possível tratar de uma concepção bastante comum segundo
a qual os gregos teriam inventado a política significando a participação
na vida comum da cidade. Contudo, é sempre importante que não se per-
maneça na mera apreciação histórica, mas que a partir dessas incursões
iniciais seja possível retirar alguns problemas filosóficos que possam ser
tratados mediante a elaboração argumentativa.
Um primeiro autor interessante a ser abordado é Aristóteles e sua
visão do homem como animal político (ARISTÓTELES, 1988, p. 13). Toda
a tese aristotélica da realização humana na vida política pode ser analisa-
da, e nesse intuito, é possível trabalhar, por exemplo, os capítulos iniciais
da Política com os alunos.
A essa tese fundamental sobre o sentido da política pode-se con-
trapor outras perspectivas divergentes, especialmente argumentos sobre a
convencionalidade da vida política, que pode ser encontrada em muitos
pensadores, como os estoicos, por exemplo, ou na maioria dos autores
modernos. É interessante também contrapor essa concepção naturalista da
vida política com argumentos típicos de alguns autores modernos segundo
os quais a vida política não se constitui mais numa finalidade humana,
Ensino de Filosofia 111
mas apenas numa condição necessária para a realização da vida privada.
Nesse caso, por exemplo, analisar as teses de Hobbes parece bastante
produtivo, especialmente tendo em vista que ele dedica parte do capítulo
XVII do Leviatã para analisar a tese aristotélica (HOBBES, 1996).
É também relevante tratar do debate sobre as teorias que pretendem
demonstrar que a sociedade contemporânea tende ao esvaziamento da
política, tornando-a uma mera dimensão do mercado, caso de Schumpe-
ter e Downs, contrapondo essa visão com outras teses sobre a importância
da vida política, como Aristóteles ou Hanna Arendt.

3.3 IGUALDADE E JUSTIÇA SOCIAL

O tema da igualdade pode ser tratado sob diversos pontos de vis-


ta, na medida em que ele apresenta problemas diferentes a depender do
modo como a ideia de igualdade é analisada. É possível, por exemplo,
tratar a questão da igualdade sob um ponto de vista mais generalizante e
inserir a questão no interior dos debates sobre a democracia. Sendo assim
pode-se tratar dos argumentos contra e a favor da igualdade e da questão
da tirania da maioria.
Um caminho interessante é começar com a análise de vários argu-
mentos à disposição a respeito da igualdade entre as pessoas. De certo
modo, como afirma Smith, trata-se de “uma suposição comum a toda
filosofia moral e política contemporânea que toda pessoa tem igual va-
lor moral intrínseco” (SMITH, 2009, p. 131). Desse modo, o professor
dispõe de uma rica tradição argumentativa que pode servir de instrumen-
to inicial de discussão e que pode ser traçada, pelo menos, a partir do
início da Modernidade. Desde o famoso início do Discurso do método
em que Descartes defende a igualdade intelectual (DESCARTES, 1992, p.
23), passando por Hobbes, Locke, Rousseau, Kant, entre outros, há uma
quantidade considerável de grandes textos da tradição que podem ser
disponibilizados aos alunos para um contato inicial a respeito do tema
da igualdade natural.
Levando-se em consideração que um dos objetivos da filosofia no
ensino médio é justamente despertar a reflexão filosófica, mais importante
do que memorizar teorias sobre a igualdade é a compreensão, por par-
te dos alunos, de todo um conjunto de argumentos utilizados por esses

112 Universidade Federal da Fronteira Sul


filósofos para justificar a igualdade. Nesse sentido, mais importante do que
decidir o autor a ser trabalhado, é a análise de seus argumentos.
É essencial, contudo, conduzir a discussão sobre a igualdade para
a questão da justiça social. Inicialmente, a questão fundamental é investi-
gar que tipo de igualdade é exigida pela justiça. Assim, é necessário, por
exemplo, questionar que tipo de desigualdades seriam justas e quais não
seriam.
Desse modo, a questão da igualdade serve de tema introdutório ao
tema da justiça social, no interior do qual há um grande número de possi-
bilidades para realizar uma reflexão filosófica no ensino médio.
No que concerne à justiça social, o ponto de partida pode ser a
ligação entre igualdade e justiça. Da pergunta “que desigualdades são jus-
tas?” é possível conduzir a investigação para questões centrais no debate
da filosofia contemporanea, como a questão da redistribuição e do papel
do Estado, por exemplo.
Um bom exercício de análise lógica de argumentos filosóficos é se
propor com os alunos a questionar se do pressuposto da igualdade entre
as pessoas deriva necessariamente algum tipo de ação redistributiva que
tenha como objetivo ampliar a igualdade econômica, por exemplo. Se um
ideal de justiça social exige a garantia de um conjunto mínimo de direitos,
é possível questionar qual é o limite para essas garantias. Isso implica, por
exemplo, uma redistribuição econômica? Implica que o Estado tome me-
didas redistributivas para compensar as desigualdades existentes geradas
pelas circunstâncias históricas alheias à vontade dos indivíduos? Justiça
social implica, portanto, que o Estado contemple um alargado conjunto
de funções ou, ao contrário, conforme os libertaristas defendem, exige
um estado mínimo, que garanta apenas a proteção contra força, roubo e
fraude (NOZICK, 1991)? Tais questões são típicas da filosofia política con-
temporânea, e podem ser exploradas de modo bastante produtivo. Sendo
assim, pode-se abordar a Teoria da Justiça de Rawls e todo o debate com
os libertaristas, comunitaristas, marxistas, entre outros.

3.4 ESTADO E LEGITIMAÇÃO

As discussões sobre o Estado são bastante amplas e podem ser


feitas sob várias perspectivas. Destacamos especialmente três questões
Ensino de Filosofia 113
interessantes a ser tratadas com os alunos de ensino médio. Primeiramente
uma discussão sobre a natureza do Estado, em segundo lugar uma discus-
são sobre a justificação do Estado e, finalmente, uma discussão sobre seus
limites. Nesse aspecto, podem ser abordadas as teorias contratualistas,
tanto para tratar da legitimação do Estado quanto para tratar do problema
da relação entre indivíduo e Estado e dos limites do Estado.
O contratualismo pode ser explorado não apenas no que diz res-
peito à discussão do Estado, mas também sobre a própria relação entre
indivíduo e sociedade. Uma perspectiva interessante é tentar fazer o aluno
perceber como, em geral, o contratualismo tem uma concepção artificia-
lista do surgimento da sociedade. Nesse sentido, pode ser muito rica uma
comparação com a concepção aristotélica de homem como animal polí-
tico. Parece ser bastante proveitosa a reflexão sobre essas duas visões de
sociedade. Numa delas, o homem é concebido como sendo naturalmente
dirigido para a vida em sociedade, consistindo a vida social na própria re-
alização do homem. No caso dos contratualistas, especialmente Hobbes,
o homem não é mais visto como se realizando na vida pública, sendo a
vida social concebida mais como um meio para a garantia da fruição de
seus prazeres (HOBBES, 1996). Nesse caso, podem ser utilizados trechos
dos capítulos do Leviatã em que Hobbes afirma que a felicidade consiste
na sucessão dos desejos, trechos do capítulo XIII sobre a dificuldade da
sociabilidade ou também do capítulo em que Hobbes contesta a teoria da
sociabilidade natural de Aristóteles. A leitura desse capítulo comparan-
do-o com Aristóteles é um excelente exercício de análise de argumentos
filosóficos acessível aos alunos do ensino médio, pois nele Hobbes esboça
uma série de argumentos muito claros que podem ser analisados pelos
alunos e, inclusive, contestados, se o professor conseguir despertar o alu-
no para uma análise mais profunda.
Ainda quanto ao contratualismo, é também enriquecedor que se
procure incentivar no aluno a percepção de que o contratualismo busca
uma justificativa para o poder do Estado que esteja baseada no consenso e
na vontade dos indivíduos, ou seja, de que o poder deriva essencialmente
dos indivíduos e de nenhum outro lugar. Se o poder deriva dos indivíduos
– é o que sugerem alguns contratualistas –, então não há justificativa para
que seja arbitrário. Assim, pode-se adentrar na discussão sobre os limites
do Estado e tratar, mais especificamente, do liberalismo, especialmente de
Locke.

114 Universidade Federal da Fronteira Sul


A partir de Locke, o professor pode explorar mais amplamente o
liberalismo, tratando também das teorias liberais do século XIX e XX, da
questão do liberalismo econômico e dos debates sobre o papel do Estado.
Nesse âmbito, é relevante ressaltar a distinção entre a questão dos limites
de poder e limites de funções do Estado e sobre a relação entre os dois
tipos de limites (BOBBIO, 2000). Aqui o professor pode instigar a análise
e argumentação do aluno apresentando a eles conjuntos de argumentos
distintos acerca tanto dos limites de poder quanto das funções do Estado.
Mais importante do que conhecer a história do liberalismo é fazer com
que o aluno compreenda quais são os argumentos em defesa da limitação
do Estado e também argumentos em favor ou contra a ampliação de suas
funções.
Ainda sobre a questão dos limites do Estado, seria interessante ex-
por os argumentos de autores que defendem a interdependência dos dois
tipos de limites, sob a alegação de que a ampliação das funções do Estado
necessariamente aumenta o seu poder, constituindo-se uma ameaça aos
direitos individuais, como é o caso de Robert Nozick (1991) e dos liberta-
ristas em geral. Por outro lado, é possível explorar as teses que defendem
que esses tipos de limites são independentes e que a ampliação das fun-
ções do Estado não constitui uma fonte de ameaça às liberdades básicas.
Finalmente, é possível aproveitar para apresentar alguns argumen-
tos anarquistas, na medida em que, fundamentalmente, eles versam a res-
peito da legitimação e necessidade do Estado. Apesar de não ser comum
o tratamento de tal tema nos manuais de ensino médio, trata-se de um
tema relevante filosoficamente, pois permite discutir problemas genuínos
em filosofia política, tais como os apontados neste tópico. Também não
deixa de relevante enquanto conhecimento histórico de tais tendências,
que muitas vezes são confundidas como uma defesa da confusão e licen-
ciosidade. Sobretudo, mostrar que a anarquia consiste num conjunto de
argumentos bem construídos em defesa da abolição do Estado também
tem o seu valor. Contudo, é essencial discutir os argumentos em relação à
possibilidade de abolição do Estado.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este texto procurou defender uma proposta de ensino de filosofia


centrada em temas e problemas e, ao mesmo tempo, oferecer um conjunto
Ensino de Filosofia 115
mínimo de temas e problemas para orientar o professor na construção da
sua disciplina. Não consideramos, porém, que essa seja a única forma
de abordagem possível para o ensino médio. Uma abordagem histórica
também é possível, apesar de ser menos atrativa e parecer menos produ-
tiva no sentido de originar a reflexão filosófica em sala de aula, conforme
argumentamos acima.
Assim, reafirmamos que uma abordagem como a apresentada aqui
é certamente mais atrativa no que diz respeito ao estímulo da reflexão filo-
sófica, da análise de argumentos e do desenvolvimento do raciocínio lógi-
co. Sem pretender entrar na discussão sobre a natureza da filosofia, que de
certo modo tem orientado as discussões sobre seu ensino, pensamos que
a filosofia não deve ser compreendida apenas como o legado de textos
fornecidos pela tradição, mas, essencialmente como uma atividade de re-
flexão contínua. Desse modo, não parece fazer sentido tornar o ensino de
filosofia política a simples memorização de fatos, teorias e autores do pas-
sado. Ao contrário, fazer filosofia implica propriamente na reflexão, que se
utiliza do arcabouço filosófico legado pela tradição. Portanto, a reflexão
filosófica implica, entre outras coisas, analisar argumentos e conceitos e,
sobretudo, entender como certos argumentos sustentam logicamente cer-
tas teses. Por isso, o ensino de filosofia política deve necessariamente ir
além da memorização da história das teorias políticas.
Relativamente à proposta de conteúdos esboçados acima, consi-
deramos que se trata apenas de indicações que podem servir de guia para
o professor na escolha dos seus conteúdos e metodologias de ensino. Não
temos aqui de modo algum a ambição de que essa proposta esgote todas
as possibilidades de conteúdos de filosofia política que podem ser tra-
balhados no ensino médio. Do mesmo modo não consideramos que os
temas e problemas sugeridos sejam os únicos possíveis para um ensino de
filosofia política, nem o modo como os temas foram estruturados seja es-
tanque. Como se percebe na própria apresentação das propostas, há vários
problemas que podem ser tratados sob várias perspectivas e no interior de
mais de um dos grandes temas aqui elencados.
Esperamos, sobretudo, que este texto sirva como mais um instru-
mento de auxílio para o professor no momento de planejar suas aulas de
filosofia política para o ensino médio. Uma discussão mais profunda sobre
filosofia política extrapolaria os limites de um capítulo de livro, como é
o caso deste texto. Sobretudo, esperamos que ele possa contribuir para o
116 Universidade Federal da Fronteira Sul
desenvolvimento de um ensino de filosofia política comprometido com a
valorização da reflexão filosófica e do raciocínio e, também, que possa
estimular a própria reflexão sobre o ensino de filosofia política.

Referências

ASPIS, R. L.; GALLO, S. Ensinar Filosofia: Um livro para professores. São


Paulo: Atta Mídia e Educação, 2009.

ARISTÓTELES. A Política. Rio de Janeiro: Ediouro, 1998.

BERLIN, I. Quatro Ensaios sobre a Liberdade. Brasília: Editora Universi-


dade de Brasília, 1981.

BOBBIO, N. Liberalismo e Democracia. São Paulo: Brasiliense, 2000.

BOBBIO, N. Direita e Esquerda: razões e significados de uma distinção


política. São Paulo: Editora Unesp, 2011.

BORGES, J. L. O Livro de Areia. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

BRASIL. Orientações Curriculares para o Ensino Médio: Ciências Hu-


manas e Suas Tecnologias. Brasília: Ministério da Educação, v. 3, 2006.

DELACAMPAGNE, C. A Filosofia Política Hoje: Ideias,debates, questões.


Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

DESCARTES, R. Discours de Lá Methode. Paris: Flamarion, 1992.

HOBBES, T. Leviathan. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.

KYMLICKA, W. Filosofia Política Contemporânea. São Paulo: Martins


Fontes, 2006.

MELO, R. Teorias Contemporâneas da Democracia: entre realismo políti-


co e concepções normativas. In: RAMOS, F. C.; MELO, R.; FRATESCHI,
Y (Orgs). Manual de Filosofia Política. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 285-
310.

MURCHO, D. A Natureza da Filosofia e Seu Ensino. Educação, Santa Ma-


ria, v. 27, p. 13-17, 2002.

Ensino de Filosofia 117


NOZICK, R. Anarquia, Estado e Utopoia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Edi-
tor, 1991.

PALACIOS, J. G. A. Ensina-se a Filosofar, Filosofando. Philósophos,


Goiânia, v. 12, p. 79-90, 2007.

RAMOS, F. C.; MELO, R.; FRATESCHI, Y (Orgs) . Manual de Filosofia


Política. São Paulo: Saraiva, 2012.

SMITH, P. Filosofia Moral e Política: Liberdade, Direitos, Igualdade e


Justiça Social. São Paulo: Madras, 2009.

TEICHAMN, J.; EVANS, K. C. Filosofia: Um Guia Para Iniciantes. São Pau-


lo: Madras, 2009.

WARBURTON, N. O Básico da Filosofia. São Paulo: José Olympio, 2008.

118 Universidade Federal da Fronteira Sul


8. NATUREZA DA FILOSOFIA E SEU ENSINO:
o modelo de forma geral
Evandro Bilibio1

Este artigo pretende apresentar, de modo resumido, a tese de G.


Obiols na obra Uma introdução ao ensino de filosofia. Esta apresentação
não será sistemática, como também, parte-se do pressuposto de que a tese
Obiols é uma alternativa viável ao ensino de filosofia no ensino médio.
Alternativa que não somente resolve certos dilemas, como, por exemplo, o
que e como ensinar, mas também fornece uma visão clara do que o profis-
sional da área filosófica deve fazer. Tudo isso se tona tão mais importante
quando se sabe que o ensino de filosofia no ensino médio está relegado
a não especialistas e, além disso, carece-se de uma visão clara sobre um
currículo filosófico. A tese de Obiols não resolve esse último problema,
mas, julga-se que a sua tese aponta para sua dissolução.
Isso significa não somente uma concordância com a tese expressa
na obra supracitada, mas também que Obiols tocou em um ponto fulcral
do qual derivam todos os outros. Qual seja, o que e como ensinar filosofia.
Nesse sentido, a afirmação/tese de Obiols “Nós sustentamos que os estu-
dantes podem, de forma gradual, aprender filosofia e aprender a filosofar,
e que um processo de ensino filosófico deve colocar de forma simultânea
e articulada ambos os propósitos” (OBIOLS, 2002, p. 105) é assumida em
toda sua extensão e consequências pelo autor deste artigo.
A sua – segundo ele – proposta não será, nem metodológica, nem

1 Doutor em filosofia pela UFSC. Professor do curso de filosofia da UFFS.


didática (no sentido estrito é rigoroso dos termos). Ela pretende “(...) for-
mular os elementos fundamentais de um modelo formal geral para o en-
sino de filosofia (...)” (OBIOLS, 2002, p.119). Esse modelo formal será
construído tendo como base, segundo ele, a teoria dos conteúdos de Cesar
Coll e o construtivismo2. De posse desses pressupostos, julga ter em mãos
os instrumentos necessários para mostrar que o dilema que reza sobre a
incompatibilidade sobre a natureza do fazer filosófico e o seu ensino é um
falso dilema. E que, portanto, é possível ao mesmo tempo em que se ensi-
na filosofia (conteúdos, história da filosofia) fazer filosofia em sala de aula!
Entende-se, também, que o que está em jogo é a questão que diz
respeito à própria natureza da filosofia, do seu fazer filosófico, e que se
relaciona diretamente com o problema/questão que diz respeito ao dilema
para o qual o modelo formal geral3 tenta ser uma alternativa. Perante essa
convicção, será feita uma explanação tentando mostrar que não se encon-
tram respostas satisfatórias à pergunta pela natureza da filosofia recorren-
do a diversos expedientes, como por exemplo, filósofos, sua história ou ao
significado do próprio termo filosofia. Entre vários problemas pode-se, por
exemplo, dizer que a primeira alternativa peca por ocultar preferências e
convicções filosóficas que não são claras aos não especialistas. A segunda
e a terceira, por não deixarem claro nem o fazer filosófico, nem a natureza
da filosofia. Será argumentado que são expedientes interessantes, mas que
não resolvem a questão principal, portanto, não servem. Logo em seguida
será apresentada a proposta de Obiols como uma forma de respostas a tais
problemas. Antes de iniciar é importante ter-se em mente o modo como
será construída a questão pelo filósofo citado. Para tanto, fez-se um es-
queleto de sua abordagem, um esquema de sua estratégia de abordagem:

2 Que não serão discutidos neste artigo.

3 Expressão usada por Obiols para identificar a sua proposta.


120 Universidade Federal da Fronteira Sul
Figura 01 -

{
Abelardo

1. Ensino Schopenhauer

Gilson

Tensão/
Dilema

{ {
Filosofia Kant
2. O que
ensinar
Filosofar Hegel

Sua estratégia argumentativa irá dissolver a tensão/dilema entre 1


e 2 mostrando que, apesar das opiniões depreciativas sobre o ensino de
filosofia de certos filósofos – aqueles que aparecem no esquema –, elas
não podem ser generalizadas e consideradas uma avaliação definitiva do
fazer filosofia. Obiols julga, desse modo, poder descaracterizar a opinião
contrária a possibilidade do ensino de filosofia que pode ser extraída da
leitura e conhecimento da opinião de tais pensadores. Com Kant e He-
gel repete o mesmo procedimento, ou seja, descaracteriza a ideia que
pode ser extraída de certas passagens de suas obras recorrendo a outros
trechos para mostrar que, em ambos, há uma concordância com respeito
ao que deve ser ensinado e os procedimentos de como isso deve ser o
ensino, desse modo, descaracterizando os filósofos que poderiam avalizar
e justificar a existência do problema. Nesse momento, automaticamente
a tensão/dilema desapareceria, abrindo caminho para a colocação de sua
proposta. Dadas essas explicações passa-se a construção do artigo pro-
priamente dito.
Antes de começar é interessante fazer um pequeno esclarecimento:
a questão com respeito à natureza da filosofia é imprecisa e ambígua. Pode
significar tanto que a filosofia tem uma característica fundamental, uma
essência (um fundamento), mas, também, pode estar fazendo referência
Ensino de Filosofia 121
ao fato de que ela, a filosofia, tem uma função, uma tarefa. Parte-se do
pressuposto de que antes de poder ser pensada a possível existência de
uma função, tarefa ou, até mesmo, utilidade para isso que chamamos filo-
sofia, é necessário sabermos se ela tem ou não um fundamento, ou seja,
uma característica (ou várias) que a identificam. E, sendo assim, a distinga
de outros campos do conhecimento4.
Outra questão é aquela que diz respeito ao ensino propriamente
dito e que se julga diretamente ligada à possibilidade de respondermos
a questão anterior. Quando se fala em ensino, fala-se de algo que possa
ser ensinado. Isso que pode ser ensinado pode ser tanto conteúdo, quanto
procedimentos. Entretanto, pressupõe-se que, seja lá o que for, procedi-
mentos (prática) ou conteúdos (teorias) são conhecimentos que podem, de
um modo ou de outro, ser sistematizados e organizados de tal forma a ser
ensinados por outrem a alguém interessado em apreendê-los5.
Novamente, pressupõe-se que, no caso da filosofia6, a compreensão
sobre a sua natureza ou, pelo menos, aquilo que se acredita como sendo o
seu fundamento, determina e condiciona o que será ensinado. Pois, a sele-
ção de conteúdos, correntes, pensadores, modos de abordagens, análises,
por mais que se pautem por uma ordem cronológica e, dentro dessa, por
uma história dos problemas ou temas, a seleção e ênfase a certos autores,
textos e problemas passará, necessariamente, pelo entendimento daquele
que ensina. Isso não significa desonestidade ou manipulação de conhe-
cimentos (em alguns casos até pode significar), mas uma característica
inerente e peculiar ao ensino de todas as ciências humanas e, em especial,
da filosofia7.
A natureza propriamente dita da filosofia, como se pode determi-
ná-la? Como chegar a um conceito (se assim o preferirem) fundamental,
essencial da filosofia, que possibilite abarcar sob suas determinações to-
dos os mais diferentes tipos de filosofias que existiram, existem ou existi-
rão? Isso é extremamente problemático e difícil no caso da filosofia (não
que outras ciências não enfrentem problemas semelhantes). Como uma
4 A proposta de Obiols parece possibilitar uma resposta satisfatória a essa questão.

5 No caso da filosofia isso parece não estar claro. Novamente, a proposta de Obiols joga uma luz
sobre esse problema.

6 Possivelmente no caso de todas as ciências humanas – umas mais, outras menos.

7 Contudo, pode tornar-se um problema na medida em que se pensa que o educando deve receber
uma educação o mais abrangente possível e não ser doutrinado a essa ou aquela escola de pensamento.
122 Universidade Federal da Fronteira Sul
primeira tentativa – e seguindo Deleuze – pode-se recorrer à etimologia e
análise do nome: filosofia. De imediato temos a célebre referência de que
filosofia é o amigo da sabedoria8. A origem da palavra “filosofia” se dá
por uma contestação, a negação de que não se é aquilo ou não se possui
aquilo que outros presumem que se tenha ou que se é. Contudo, se está
próximo disso, numa relação íntima, de amizade e, porque não dizer,
de conhecimento também. O filósofo, o amigo da sabedoria, tem uma
relação íntima com algo que é desejado e reconhecidamente de valor, a
sabedoria. Entretanto, não a possui.
Esse não possuir pode significar duas coisas: que esse que se decla-
ra filósofo não é sábio em nenhuma medida, mas persegue essa sabedoria.
Ou, ainda, que possui certo conhecimento, sabedoria, mas não em sua
totalidade, apenas parte dele, não sendo, dessa maneira, um ignorante
completo, mas, também, nenhum sábio. Apesar de ser uma análise elu-
cidadora e interessante, em um primeiro momento, por diversos motivos,
o principal é que não ajuda a resolver a questão sobre a filosofia e sua
natureza. Isso significa que, infelizmente, a autodenominação pitagórica
não serve para uma determinação precisa da natureza da filosofia enquan-
to um tipo de conhecimento, ou ciência (como alguns podem preferir).
Então, tentar delimitar de forma suficiente a natureza da filosofia e dessa
derivar o que pode ou não ser ensinado recorrendo a história do surgimen-
to de seu nome não é suficiente, para não dizer inútil.
Diferentemente, se for pensado nas ciências especializadas/aplica-
das e nas ciências naturais/exatas, parece não haver esse problema. Desse
modo, o pronunciamento e o ouvir nomes como engenharia, química,
física, administração, biologia, matemática, psicologia, história, e outros
tantos, já parece implicar em uma compreensão do objeto de estudo ou,
pelo menos, dos campos desses objetos de estudo. O mesmo, infelizmen-
te, não acontece com a filosofia. Também se poderia fazer alusão que isso
é assim porque o desenvolvimento e consolidação da ciência no séc. XVIII
e a separação da filosofia da religião a esvaziaram, precisando ela, então,
a filosofia, procurar objetos de estudo e justificativas que não fossem nem
religiosas ou científicas.
Outro expediente que pode ser usado é recorrer à definição de
pensadores/filósofos importantes na história da filosofia (independente

8 Conta-se que essa teria sido a resposta de Pitágoras àqueles que o identificaram com um sábio na
Grécia antiga há mais de 2.500 anos.
Ensino de Filosofia 123
dos motivos dessa importância e de suas convicções). Um procedimento,
como o anterior, louvável, afinal, se alguém quer saber o que algo é nada
mais sensato (em princípio) do que recorrer àqueles que são considerados
os grandes representantes de sua ciência e verificar o que eles dizem a res-
peito. Apesar de ser um recurso interessante e enriquecedor ele também
traz dificuldades específicas e não menos difíceis de resolver.
Hume, por exemplo, em Investigação acerca do entendimento hu-
mano, seção I, Das diferentes classes de filosofia, fala da existência de
duas espécies de filosofia, a fácil e a abstrusa. A fácil é a que seduz, encan-
ta e arregimenta seguidores por onde passa. A abstrusa (a filosofia verda-
deira, assim considerada por ele por ser um discurso rigoroso e buscar os
fundamentos daquilo que existe) não, ela é difícil, vista como inútil, afasta
as pessoas. “Certamente, a filosofia fácil e terá sempre preferência, para a
maioria dos homens, sobre a filosofia exata e abstrusa; e por muitos será
recomendada, não apenas como a mais agradável, mas também como
mais útil do que a outra.” (HUME, 1972, p. 6)
Schopenhauer em O mundo como vontade e representação diz que
“A filosofia nada mais é do que a perfeita e correta repetição e expressão
da essência do mundo” (SCHOPENHAUER, 2004, p. 94). Heidegger, em
Conceitos fundamentais da metafísica: mundo, finitude e solidão, apro-
priando-se da sentença de Novalis dirá “A filosofia é propriamente uma
saudade da pátria, um impulso para se estar por toda a parte em casa”
(HEIDEGGER, 2003, p. 9) ou, ainda “Ao contrário, apesar de só o saber-
mos obscuramente, ela é algo que, em sua totalidade e em seu ponto mais
extremo, dá lugar ao acontecimento de uma expressão e de um diálogo
derradeiros do homem”(HEIDEGGER, 2003, p. 6). E, para finalizar com
Heidegger “Filosofia é filosofar” (HEIDEGGER, 2003, p.5).
Wittgenstein afirma no Tractatus logicus-philosophicus que “A filo-
sofia não é uma das ciências naturais... a filosofia não é uma teoria, mas
uma atividade” (WITTGENSTEIN, 2001, 4.112). Pode-se recorrer, tam-
bém, a uma grande enciclopédia filosófica reconhecida por sua seriedade
e renome, por exemplo, Oxford companion to Philosophy, editada por
Honderich, e será lido em um dos trechos que “[a] filosofia pensa sobre o
pensamento”9 (HONDERICH, 2005, p. 702). Deleuze, de forma não me-
nos enigmática, afirma que “A filosofia e a arte de formar, de inventar, de
fabricar conceitos” (DELEUZE E GUATTARI, 2001, p. 10), ou, ainda, dita
9 “The shortest definition, and it is quite a good one, is that philosophy is thinking about thinking.”
124 Universidade Federal da Fronteira Sul
a mesma coisa de outro modo “A filosofia não é nem comunicativa, assim
como não é contemplativa e nem reflexiva: ela é, por natureza, criadora
ou mesmo revolucionária, uma vez que não para de criar novos concei-
tos” (DELEUZE, 2007 p. 170).
Agora, quem for a Russel poderá ler que “A característica essen-
cial da filosofia em virtude da qual ela é um estudo que se distingue
do da ciência, é a crítica” (Russel: 2005, p. 117), em Os problemas da
filosofia diz:

A filosofia poderia nos mostrar a hierarquia


de nossas crenças instintivas, começando pelas que
mantemos de modo mais forte e apresentando cada
uma delas tão isoladas e livres de acréscimos irre-
levantes quanto seja possível. Deveria ocupar-se de
mostrar que, da forma como são finalmente enuncia-
das, nossas crenças instintivas não se contrapõe, mas
formam um sistema harmonioso. Não há nenhuma
razão para rejeitar uma crença instintiva, a não ser
quando contradiz outras; mas se descobrimos que
se harmonizam, o sistema inteiro merece ser aceito
(RUSSEL, 2005, p. 21).
Todas essas definições, escolhidas a esmo, e outras tantas, apesar de
muito interessantes e, em alguns casos, esclarecedoras (para especialistas),
ainda podem nos deixar a ver navios10, pois a compreensão delas envolve
– via de regra – uma compreensão do autor, da sua obra em alguns casos
e de suas concepções a respeito do que é a filosofia. Portanto, fazer um in-
ventário das definições de grandes filósofos a respeito do que é a filosofia
é interessante, válido, legítimo, mas pode não ser suficiente para elucidar-
se a natureza da filosofia11. Suas definições estão circunscritas por aquilo
que conceberam como sendo um expediente filosófico válido e legítimo.
É verdadeira, também, a pressuposição que muitas são respostas a proble-
mas e preocupações filosóficas específicas e circunscritas a um determi-
nado período histórico e outras dizem respeito a uma visão específica de
mundo. Desse modo, não é plausível tomar tais definições – delimitadas e

10 Pensa-se, aqui, principalmente no professor do ensino médio (especialista ou não) que tem que se
ver com a tarefa de montar um currículo de ensino de filosofia.

11 Em alguns casos, para não dizer todos, tornará a tarefa mais complicada e difícil.
Ensino de Filosofia 125
limitadas por tais circunstâncias – e usá-las como uma espécie de modelo
para a construção de um currículo mínimo de filosofia12.
Resta, ainda, outro expediente, tentar definir ao que se refere espe-
cificamente o termo filosofia e conquistar uma ideia de sua natureza. Para
tanto, é possível usar o que se pode chamar de procedimento negativo,
comparativo e positivo13. Da seguinte forma, inicialmente pode-se fazer
um elenco do que a filosofia não é, na esperança de identificar algum
elemento que torne possível a sua identificação e delimitação de sua iden-
tidade e, ao final, sua natureza.
Então, é possível dizer, por exemplo, que a filosofia não é religião.
Religiões e cultos religiosos têm a fé (crença não justificada) como um
pressuposto necessário e indiscutível. Além do mais, a aceitação passiva
dos dogmas é necessária. Apesar de filósofos poderem fazer de sua filo-
sofia uma espécie de religião e de seu pensador preferido uma espécie de
santo ou ser superior, os conhecimentos e afirmações derivados de sua
filosofias não se baseiam na fé, mas em uma argumentação, no mínimo
razoável e justificável. Desse modo, poderíamos dizer que filosofia não é
religião ou uma forma dela.
Filosofia seria uma espécie de arte? Tal qual o artista o filósofo
pode estar submetido a certas forças criadoras advindas do que se pode
identificar como inspiração. O artista cria, o filósofo cria, o artista fala
de forma cifrada do mundo, o filósofo também. Mas a visão que o artista
talvez possa ter do mundo não é ordenada ou sistematizada como a do
filósofo. A inspiração artística, e sua criação, é livre, e a do filósofo será
traduzida em argumentos que não podem ser livremente associados. De-
vem ter uma ordem e coerência. Pode-se, então, dizer que filosofia não
é arte, embora possa a ela se parecer, mas, ainda, não se sabe o que é a
filosofia.
Por último, pode-se compará-la com a ciência e dizer que o filó-
sofo procura, tal qual o cientista, rigor e sistematicidade em seu discurso.
Contudo, a ciência trata de objetos que se submetem a certos meca-
nismos de prova, diferentemente daqueles da filosofia, o que tornaria
impossível dizer que a filosofia é uma ciência tal qual a entendemos.

12 Pressupõe-se, aqui, a formação de um estudante de ensino médio deva ser a mais abrangente
possível.

13 Recurso que não deve ser estranho aos “heideggerianos de plantão”. Que, aqui, serve de
“inspiração”.
126 Universidade Federal da Fronteira Sul
Portanto, a filosofia não é uma ciência14 e, entretanto, ainda não sabe-
mos o que ela é.
Como foi percebido, todos os expedientes usados acima, apesar
de serem interessantes e esclarecedores não resolvem a questão principal.
Obviamente que ajudam a, é claro, digamos, aparar as arestas, dar uma
direção, evitar equívocos. Mas não respondem o que se quer e é central:
saber o que é a filosofia.
Agora, quanto ao ensino, a pergunta “O que será ensinado?” não
representa um desafio menor. No caso da filosofia o que é isso que deve
ser ensinado? Um conhecimento, mas sobre o quê? Todo conhecimento
debruça-se sobre certos problemas e questões, os quais tenta resolver ou
esclarecer, pelo menos. No caso da filosofia, onde estão esses problemas
sobre os quais há um conhecimento que tenta resolvê-los ou esclarecê
-los? Nos textos? No cotidiano? Na cabeça de quem ensina? Na cabeça do
filósofo? São problemas inventados? Não existem na realidade? A resposta
a essas questões são importantes na medida em que podem levar a certas
ideias erradas ou, até mesmo, preconceitos com relação à filosofia e deter-
minar, assim, o que é ensinado15.
Por exemplo, muitos podem dispensar os textos filosóficos sob a
justificativa (dita muitas vezes em alto e bom som) de que eles não se
referem à realidade e são, até mesmo, uma forma de manter os alunos
alienados com respeito a sua condição. Ora, como alguém pode dispensar
2.500 anos de história sob essa alegação? Que existem filósofos e filosofias
difíceis é certo. Retóricos, lacônicos e prolixos quando não o deveriam ser,
com certeza. Mas, dispensá-los sob a justificativa de que seus problemas
não são reais, verdadeiros ou que não dizem respeito à realidade, seriam
uma espécie de ficção e não é aceitável. Os problemas filosóficos dizem
respeito e derivam de problemas reais e a eles querem fazer referência.
Se a exposição é aceitável ou não, justificável ou não, bem feita ou não,
é outro problema. Normalmente, o ataque à filosofia como um todo e a
certos filósofos ou correntes filosóficas apenas esconde certas preferências
(em sua maioria ideológicas) daqueles que emitem a crítica e não são jus-
tificáveis ou legitimas. Com isso se diz que é um falso dilema ou problema
a questão sobre onde estão os problemas ou questões filosóficas e ao que
14 Nesses moldes.

15 Lembre-se de que grande parte dos profissionais que ensinam filosofia não tem formação na área.
Isso não é uma crítica a suas capacidades e habilidades profissionais.
Ensino de Filosofia 127
elas dizem respeito. Elas são exploradas nos textos filosóficos e tem sua
origem no mundo, na realidade, no cotidiano.
Outra questão controversa é com relação ao eixo em torno do qual
a filosofia ou abordagens filosóficas serão desenvolvidas: será seguida uma
história dos problemas? Das escolas filosóficas? Dos filósofos? Períodos fi-
losóficos? (considerando que todas essas orientações sejam distintas entre
si). Considera-se, seguindo Obiols, entre outros, que a apresentação de
um problema, mesmo que atual, para ser abordado de modo satisfatório
deverá ser remetido à história da filosofia e as origens nessa mesma histó-
ria, ou seja, quando e por quem começou a ser tratado como problema e
porque isso aconteceu.
Normalmente, um eixo que é aconselhado e seguido (sem maiores
questionamentos) como sendo o menos problemático é o que diz respeito
aos períodos históricos da filosofia e, dentro desse, abordarem-se temas,
filósofos e problemas de tal forma a mostrar um fio condutor e coerência
no desenvolvimento de certo tema. Conjuntamente com isso, as discipli-
nas temáticas formam um quadro do ensino de filosofia. Essas, mais fle-
xíveis do que as anteriores. Com relação aos períodos ter-se-ia o antigo,
medievo, moderno e contemporâneo. Quanto ao eixo temático, poderia
ter-se filosofia da matemática, epistemologia ou filosofia da ciência, ou
ambas, filosofia da mente ou filosofia da linguagem, lógica ou filosofia
da lógica, introdução à filosofia, entre outras. O eixo temático seria mais
flexível e poderia refletir a tendência de ensino de um curso em um local
sem prejuízo a uma formação básica e sólida. Isso em nível de graduação.
Em nível de ensino médio poderia ser tomada a mesma referência sem
o aprofundamento e especialização exigida em uma graduação, ou seja,
noções gerais e introdutórias. Todavia, aqui, o pano de fundo é o dilema
entre filosofia e o seu ensino e alguém poderia perguntar da viabilidade e
legitimidade de tais procedimentos e escolhas de tal forma a colocar em
dúvida qualquer tipo de orientação. E a resolução do que e como ensinar
em filosofia ficaria, novamente, em suspenso e sem resposta.
Guilhermo Obiols, contudo, ao analisar essa questão da relação
entre ensino e filosofia resgata a opinião de três filósofos: P. Abelardo, A.
Schopenhauer e E. Gilson. Julga-os relevantes e importantes para colocar
a mostrar o que pretende: que não há incompatibilidade entre a natureza
do fazer filosófico e o seu ensino. Mas uma questão se põe com relação ao
ensino de filosofia no ensino médio e que diz respeito ao que se ensina: a
128 Universidade Federal da Fronteira Sul
tensão entre filosofia e filosofar, conteúdo x habilidades e/ou competên-
cias. E que aponta para outra: formam-se filósofos e/ou apenas pessoas
conhecedoras da história da filosofia?
O testemunho de Descartes em suas Regras para a direção do espí-
rito parecem acabar com todas as esperanças daqueles que acham que por
saberem muito da história da filosofia, ou seja, terem um conhecimento
vastíssimo, seríamos filósofos. Diz ele: “(...) nem nos tornaremos filósofos
se, tendo lido todos os raciocínios de Platão e Aristóteles, não pudermos
formar um juízo sólido sobre quanto nos é proposto. Com efeito, daríamos
a impressão de termos aprendido não ciências, mas histórias” (DESCAR-
TES, 1998, p. 19). Kant, na Crítica da razão pura, também parece jogar um
balde de água fria naqueles que julgam que é possível aprender filosofia
quando diz que se pode apenas aprender a filosofar16. Se forem acrescen-
tados os relatos de Abelardo (séc. XIII), Schopenhauer (séc. XVIII) e Gilson
(séc. XX) sobre a relação entre o ofício de ensinar e o fazer filosofia a situ-
ação fica ainda mais difícil. Pois, possivelmente, o leitor incauto será con-
vencido, no mínimo, da incompatibilidade entre a filosofia e seu ensino.
De forma resumida, todos esses três filósofos desdenharam e manifestaram
um grande descrédito e aversão ao ofício do ensino de filosofia, ao qual se
submetiam como reconhecem, por pura necessidade econômica.
Abelardo é explícito ao testemunhar que foi a extrema pobreza e
a falta de opções que o levaram a ensinar filosofia. Schopenhauer consi-
derava um estorvo sem medidas ao verdadeiro pensador ter que dar aulas
e, para Gilson, o ensino era uma espécie de moléstia. Para todos, fazer
filosofia e ensiná-la não eram coisas que andavam juntas. Alguém poderia
facilmente concluir sobre a incompatibilidade entre fazer filosofia e ensiná
-la, podendo, até, desistir de fazê-lo ou, pelo menos, disseminando a ideia
da incompatibilidade entre as duas atividades.
Obiols lembra-nos de duas coisas importantes para diminuirmos
(senão anular) o peso de tais afirmações anteriores sobre o ensino da filo-
sofia. A primeira diz respeito que Abelardo, Schopenhauer e Gilson estão
criticando mais o sistema educacional que lhes obriga a ensinar certos
temas e não os deixa propriamente filosofar, em sala de aula. Obviamente
que uma situação dessas somente pode ser vista como um fardo ou uma
moléstia, tal qual eles relatam. A segunda é que se olhar-se para história da
filosofia poderá ser percebido que filosofia (seu ensino) e filosofar sempre
16 Que será citado mais adiante, assim como os outros filósofos citados na sequência.
Ensino de Filosofia 129
andaram juntas e que muitos importantes filósofos foram grandes profes-
sores.
Obiols cita Pitágoras, Platão e Aristóteles que além de grandes fi-
lósofos, foram grandes professores e fundaram “escolas” filosóficas. Sinal
de que não deveriam ver uma incompatibilidade tão grande entre filosofia
e filosofar, ou seja, julgavam que era possível ensinar de algum modo
filosofia e fazê-la ao mesmo tempo. Cita, ainda, além de Abelardo, Scho-
penhauer, Gilson, Kant e Hegel, todos considerados importantes filósofos
e excelentes professores. Para ele isso seriam exemplos de que não há,
como poderiam nos fazer crer os três filósofos mencionados, assim com
Descartes e Kant, uma incompatibilidade entre ensino de filosofia e filo-
sofar como poderia supor um leitor incauto desses pensadores. A partir
dessa constatação, Obiols propõe que a atividade de ensino de filosofia
devea ser entendida como algo em que o professor introduz o aluno em
uma prática da qual ele é especialista: a da pesquisa e produção filosófica.
Solucionada a incompatibilidade entre o ato de ensinar e a filosofia,
resta outro dilema/problema, aquele que diz respeito ao próprio ato de
ensinar, ensina-se filosofia (conteúdos) ou a filosofar?! Obiols chama Kant
e Hegel como autores paradigmáticos e com posições opostas (aparen-
temente) para mostrar que não há incompatibilidade nenhuma e que ao
mesmo tempo em que se ensina filosofia (conteúdos) se está ensinando a
filosofar. Kant é paradigmático exatamente por sua afirmação de que so-
mente se pode ensinar a filosofar, afirmação presente na Crítica da razão
pura ao explicar o que é a filosofia escolástica e a cósmica.

Pode-se apenas aprender a filosofar, isto é, a


exercer o talento da razão na aplicação dos seus prin-
cípios gerais em certas tentativas que se apresentam,
mas sempre com a reserva do direito que a razão tem
de procurar esses próprios princípios nas suas fontes
e confirmá-los ou rejeitá-los. (KANT, 1997, A 838 B
866)
Dessa afirmação muitos derivam que não é possível aprender filo-
sofia, mas a filosofar. E, com isso, há um desprezo que vai desde a leitura
dos clássicos em filosofia a todo e qualquer texto filosófico. Entende-se
filosofia somente como crítica. Mas, Obiols lembra que em Sobre o fazer
filosófico Kant deixa claro que é necessário saber a história da filosofia.

130 Universidade Federal da Fronteira Sul


Aquele que quer aprender a filosofia, pelo
contrário, só pode considerar todos os sistemas de
filosofia como historia do uso da razão e como ob-
jetos para o exercício de seu talento filosófico. O
verdadeiro filósofo deve fazer, pois, como pensador
próprio, um uso livre e pessoal de sua razão, não um
uso imitador. (KANT apud OBIOLS, 2002, p. 75)
Aceitando-se a argumentação de Obiols deve-se concluir que é ne-
cessário para filosofar, aprender a história da filosofia. Agora, Hegel, na
obra Escritos pedagógicos diz que não se pode filosofar sem conteúdo e
que ao aprender o conteúdo da filosofia já se está filosofando.

Assim, quando se conhece o conteúdo da filo-


sofia, não apenas se aprende a filosofar, senão que já
se filosofa realmente. (...) A filosofia deve ser ensina-
da e aprendida, na mesma medida de qualquer outra
ciência. (HEGEL, apud OBIOLS, 2002, p 78)
Obiols lembra, contudo, que na sua Fenomenologia do espírito diz
que é necessário apreender e exercitar-se para se saber qualquer ciência,
inclusive a filosofia. “Para se ter qualquer ciência, arte, habilidade, ofício,
prevalece a convicção da necessidade de um esforço complexo de apren-
der e de exercitar-se” (HEGEL, 2002 p. 59). Com isso, Obiols julgará ter
solucionado os dilemas antes apresentados.
O importante julga-se, é que o faz a partir da própria história da
filosofia e da opinião de filósofos relevantes. Solucionados os dilemas ele
apresentará o que chama de modelo formal geral – no qual estariam inte-
grados todos os elementos que contribuiriam para a dissolução dos dile-
mas especificados de tal forma a trabalharem em conjunto para uma for-
mação integral do estudante. Abaixo será reproduzido graficamente esse
modelo para uma melhor visualização. Na sequência será feita – grafica-
mente – uma descrição e exposição dos momentos constituintes de cada
parte do modelo formal geral 17.

17 Lembra-se o leitor que a exposição não visa a uma avaliação dos elementos constituintes da proposta
de Obiols. Julga-se que tal modelo deve ser avaliado na prática e no dia a dia escolar. Acrescenta-se – e
isso não deixa de ser um julgamento – as novas tecnologias de informação que deverão ser integradas
àquela prática e que Obiols não chama à discussão. Somente a título de lembrança lembra-se de P.
Levy e sua posição com respeito as novas tecnologias – sua obra Tecnologias da inteligência: o futuro
do pensamento na era da informática. Traduzido para o idioma português e publicado pela Editora
Ensino de Filosofia 131
Figura 02 - Modelo forma geral

Aprender filosofia
e a filosofar

Conceitos Atitudes

Processo de
Parte inferior Aprendizagem
do gráfico é a
mais importante Processo de
2º Obiols ensino filosófico

Estratégias

Desenvolvimento Encerramento
Início concreto abstrato concreto

Motivar e colocar Sintetizar, aplicar


os problemas avaliar
Discutir o problema
Analisar os textos
filosóficos
Recorrer à história
da filosofia
O primeiro momento, segundo Obiols, obedeceria a esses proce-
dimentos:
34 em 1995 é uma leitura imprescindível para a compreensão das novas tecnologias e suas relações
com a educação. Entre muitas coisas que diz na obra citada destacamos a seguinte passagem “Não
existe apenas uma racionalidade, mas sim normas de raciocínio e processos de decisão fortemente
ligados ao uso de tecnologias intelectuais, que por sua vez são historicamente varáveis” (LEVY, 1995,
p.95 e seguintes) e que seriam, segundo ele, impossíveis de apreender através da técnica de grafia
– escrita - e de cálculos sobre o papel, como diz. Isso se torna tão mais urgente para o ensino em
geral e filosófico quando compreende-se a extensão da seguinte afirmação feita na mesma obra: “A
revolução contemporânea nas comunicações, da qual a emergência do ciberespaço e a manifestação
mais marcante, é apenas uma das dimensões de uma mutação antropológica de grande amplitude”
(LEVY, 1997, p. 37). Em resumo, a filosofia e seu ensino não podem deixar de lado essas questões e
comportar-se como se estivesse em bolha.
132 Universidade Federal da Fronteira Sul
Figura 03 - Primeiro momento

Problema ou questão Professor

Provocar perplexidade
Fazerem ‘seu’ o problema
Primeiro momento
Despertar o interesse

Início concreto Usar todo tipo de recursos


adequados aos tipos dos

{
alunos

Figura 04 - Segundo momento

Buscar possíveis soluções


Segundo momento
Diferentes abordagens

Compreender de forma
crítica as respostas
Desenvolvimento
abstrato
Apresentar sua posição e argumentos

Leitura de textos, obras primárias


e secundárias

Resenhas, análises, etc.

Ensino de Filosofia 133


{
Figura 05 - Terceiro momento

Terceiro momento
Recapitular

Encerramento Sintese

Avaliação caminho percorrido

Todo esse processo, segundo Obiols, enquanto um indicativo deve


ser construído sobre as bases da disciplina e/ou temas estudados.

Trata-se de colocar algumas bases e elementos


fundamentais que surgem na disciplina mesma e de
estimular a reflexão sobre os problemas específicos
que implicam o ensino de distintas questões, a partir
de supor o fluido domínio do tema por parte do do-
cente que o ensinará. (OBIOLS, 2002. p. 118)
Com isso tem-se a dissolução de um problema(s) ou dilema(s) sobre
o que um professor ensina ou deve ensinar: filosofia ou filosofar e como
deve fazê-lo. Nessa sugestão haveria um equilíbrio entre várias exigên-
cias que são feitas relativas ao processo do ensino, propriamente dito,
e as especificidades da filosofia mesma. O processo de ensino não fica
tão somente reduzido a ensino de conteúdos, abrange o fazer filosófico e
desenvolve o aspecto crítico ligado a esse fazer e ao cotidiano/realidades
do aluno.
A conclusão a que chega Obiols e que está à base da sua tese é
que o ato de ensinar filosofia é um ato no qual o professor introduz o
aluno em uma atividade na qual ele é especialista: produção e pesquisa
filosófica e que filosofia e filosofar são faces de uma mesma moeda, sendo
inseparáveis. “A ‘aprendizagem filosófica’ não pode deixar de ser integral,
não pode deixar de incluir os textos, os conceitos, as teorias filosóficas e
a filosofia, não menos que os procedimentos e as atitudes que se encon-
tram naqueles e nesta” (OBIOLS, 2002 p. 86). E conclui que os estudantes
134 Universidade Federal da Fronteira Sul
podem aprender tanto filosofia (conteúdo) quanto a filosofar (procedimen-
tos e atitudes) para a produção de textos filosóficos.
É interessante citar, também Simone Gallina – seguindo a Deleuze
– que lembra que simplesmente embasar o ensino filosófico na filosofia
(conteúdos) pode fazer o aluno perder de vista o horizonte do novo, ou
seja, da capacidade da filosofia em produzir conceitos. Ideia que pode ser
sustentada recorrendo-se a Deleuze, em sua Conversações e em O que é
filosofia?, escrita em conjunto com Guattari. Pode-se, ainda lembrar Han-
nah Arendt em A crise na educação em que lembra que uma educação
sem ensino (conteúdos) é vazia e degenera com grande facilidade numa
retórica emocional e moral.

Não é possível educar sem ao mesmo tempo


ensinar: uma educação sem ensino é vazia e degene-
ra com grande facilidade numa retórica emocional e
moral. Mas podemos facilmente ensinar sem educar
e podemos continuar a aprender até ao fim dos nos-
sos dias sem que, por essa razão, nos tornemos mais
educados. (ARENDT, 2002 p. 52)
Com isso encerra dizendo que não se acredita que seja possível
ensinar filosofia sem sua história e que concordasse com todas as opini-
ões aqui expostas e que pertencem a Obiols, Deleuze, Gallina, Arendt e
Levy, entre outros. Acrescenta-se que a proposta de Obiols parece ser uma
boa alternativa ao ensino de filosofia no ensino médio. Nela julga-se que
a natureza da filosofia explicita-se de forma clara e simples na medida
em que agrega o aprendizado de conteúdos e procedimentos (atitudes)
de forma equilibrada. Contudo, talvez não seja suficiente para escapar-se
das preferências e perspectivismos relativos a seleção de conteúdos para
o ensino de filosofia, bem como para pensar as questões colocadas por P.
Levy. Todavia, já é um passo importante para sabermos o que (em termos
gerais) e como fazê-lo: ensinar filosofia. O que pode ajudar a solucionar
as outras questões mencionadas, além de ser um modelo simples, viável e
aplicável ao ensino médio.

Referências

DELEUZE, G. Conversações. São Paulo: Ed. 34, 2007


Ensino de Filosofia 135
DELEUZE G.; GUATTARI, F. O que é a Filosofia? São Paulo: Ed. 34, 2001

DESCARTES, R. Regras Para a direção do espírito. Lisboa: Ed. 70, 1998.

EWING, A C. O que é filosofia e por que vale a pena estudá-la. http://


www.cfh.ufsc.br/~wfil/ewing.htm. Acessado em 10/12/2010

GALLINA, Simone. O Ensino de Filosofia e a criação de con-


ceitos. In Cadernos Cedes, Campinas, vol. 24, n. 64, p. 359-371, set./dez.
2004.

HEIDEGGER, M. Os Conceitos Fundamentais da Metafísica: Mundo, Fini-


tude e Solidão. Rio de Janeiro: Forense, 2003.

HEGEL, F. A Fenomenologia do Espírito. São Paulo: Vozes, 2002.

HONDERICH, Ted. (Org.)Philosophy in Oxford Companion to Philoso-


phy.Oxford University Press: New York, 2005.

HUME, David. Investigação acêrca do entendimento Humano. São Paulo:


Editora Nacional, 1972.

KANT. I. Crítica da Razão Pura. Lisboa: Galouste, 1997

LEVY, Pierre. As Tecnologias da Inteligência: O futuro do pensamento na


Era da Informática. São Paulo: Editora 34, 1995.

OBIOLS, Guilherme. Uma introdução ao ensino da Filosofia. Ijuí: Unijuí,


2002

RUSSEL, Bertrand. Nosso Conhecimento do Mundo Exterior. São Paulo:


Editora Nacional, 1966.

SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e representação. Rio de


Janeiro: Contraponto, 2004.

WITTGENSTEIN, L. Tractatus Logico-philosophicus.São Paulo: Edusp,


2001

136 Universidade Federal da Fronteira Sul


9. A ESTÉTICA COMO PRESSUPOSTO
INTERDISCIPLINAR: em arte e filosofia no
ensino médio
Joce Mary Mello Giotto1
Gerson Witte2**

1. INTRODUÇÃO

Falar em arte é falar em uma das primeiras manifestações culturais


do ser humano, pois, desde o período paleolítico, o homem das cavernas
já se expressava de forma artística, embora de maneira rudimentar.
O termo arte tem sua origem do latim “ars”, significando talento,
saber fazer (JAPIASSU; MARCONDES, 1996, p. 17) Inicialmente as ma-
nifestações artísticas não tinham como preocupação maior criar objetos
belos, mas tinham um fundamento mítico, religioso, embora tenham sido
encontrados objetos adornados com pedras preciosas, a fim de torná-los
belos. Nesse sentido, Vázquez (1999, p. 85) coloca que “podemos entrar
em uma relação estética com objetos de épocas, sociedades ou culturas
remotas e diferentes, cuja produção não estava guiada por uma finalidade
estética”.
A discussão sobre o belo é tratada nas dimensões mítica, religiosa,
social, histórica, científica, filosófica e artística. Sem tentar chegar a uma

1 Professora de filosofia, mestre em educação do Instituto Federal Tecnológico de Santa Catarina,


IFSC, campus Chapecó-SC.

2 Professor de artes, especialista em arte educação, IFSC, campus Chapecó-SC.


conclusão na discussão sobre a definição final de beleza, tendo visto já
ter sido abordada por Platão, em suas obras: O Banquete, Fedro, Ion, A
república e As leis; por Aristóteles na Poética; e na modernidade por Kant,
na Crítica do julgamento (BASTOS, 1987) e tantos outros autores já se de-
bruçaram sobre esta questão.
Diante da necessidade de concretizar uma proposta interdisciplinar
em filosofia e artes, foram selecionados os conteúdos de estética com o
objetivo de levar os alunos do ensino médio a entender que a interdisci-
plinaridade é possível e que a reflexão estética esta presente em muitos
dilemas atuais de nossa sociedade.
Assim, o aprofundamento nas questões estéticas é parte fundamen-
tal do trabalho dos professores de arte e de filosofia em sua atividade de
desenvolver a potencialidade dos alunos. Nesse sentido, a discussão do
belo é componente participante e ponto em comum para uma proposta
interdisciplinar aplicada ao ensino médio.

2. A ARTE NO ENSINO MÉDIO

A LDB 9.394/96, aprovada no dia 20 de dezembro de 1996, pelo


presidente Fernando Henrique Cardoso, trouxe novas diretrizes para a
educação em todo o território nacional, da pré-escola até o ensino su-
perior. Em relação aos currículos do Ensino Médio e Fundamental esta
legislação em seu artigo 26, diz que:

Os currículos do ensino fundamental e médio


devem ter uma base nacional comum, a ser comple-
mentada pelos demais conteúdos curriculares espe-
cificados nesta Lei e, em cada sistema de ensino e
estabelecimento escolar, por uma parte diversificada,
exigida pelas características regionais e locais da so-
ciedade, da cultura, da economia e da clientela.

§ 2º O ensino da arte constituirá componente


curricular obrigatório, nos diversos níveis da educa-
ção básica, de forma a promover o desenvolvimento
cultural dos alunos (LDB, 1996, p.38).

138 Universidade Federal da Fronteira Sul


Dessa maneira pode-se afirmar que entre as várias propostas para
a educação do século XXI, destacam-se aquelas que têm se manifestado
pela necessidade de introduzir o ensino de artes em todas as escolas do
ensino fundamental e médio do país.
De acordo com os PCNs (2000) o ensino da arte faz com que o
aluno tenha uma compreensão de mundo na qual a dimensão poética
esteja presente, sendo que a arte ensina que é possível transformar conti-
nuamente a existência, que é preciso mudar referências a cada momento,
ser flexível. “Isso quer dizer que criar e conhecer são indissociáveis e a
flexibilidade é condição fundamental para aprender” (PCNs, 2000, p. 21).
A partir do momento em que o aluno passa a conhecer a produção
artística de outras culturas, poderá compreender relativamente os valores
que estão enraizados nos seus modos de pensar e agir, oportunizando-lhe
entender a riqueza da diversidade da imaginação humana.
Para o homem conhecer a arte não é uma experiência apenas de
aprendizagem, isto é, vai além do saber fazer, buscando um verdadeiro
sentido da sua existência que é o belo. A beleza exerce um grande fascínio
sobre os seres humanos, tanto que ele a reproduz em tudo o que constrói,
seja de uma casa até um monumento em homenagem aos deuses ou mes-
mo a pessoas que deseja imortalizar.

Tem-se dito que a arte acompanha toda a


experiência do homem, inseparável das manifesta-
ções da vida moral, política, religiosas; que reflete a
situação histórica em que se desenvolve, representa-
ção fiel da vida humana num processo de seu desen-
volvimento; que é ela própria uma forma de vida, a
primeira do viver humano, a infância da humanida-
de; que tem uma missão a cumprir na vida humana,
contribuindo para a civilização, para a edificação do
regnum hominis, para a difusão dos valores especu-
lativos e morais, para a vida política e civil, porque
cônscia das próprias responsabilidades, canta as as-
pirações do homem, acompanha e decide suas lutas,
promove seus ideais, educa seu espírito. (PAREY-
SON, 1984, p.41)

Ensino de Filosofia 139


Assim sendo, a arte sempre esteve presente em todas as formações
culturais desde o início da história da humanidade. O homem teve que
aprender a lidar com o seu cotidiano e foi por meio da necessidade que
começou a construir ferramentas para seu trabalho e nessas procurou co-
locar algo de belo e de artístico.
A escola hoje é um lugar privilegiado, no qual se tem oportunidades
de adquirir informações, de construir conhecimentos, de interagir com o
meio social, reconstruindo aquilo que já foi acumulado pela sociedade, o
que chamamos de cultura.

3. A FILOSOFIA NO ENSINO MÉDIO

Após a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacio-


nal LDB 9394/ 96, a filosofia e a sociologia passaram a ser disciplinas in-
tegrantes dos currículos do ensino médio, contudo o artigo 36 da referida
lei, colocava que:

Art. 36, § 1º. “Os conteúdos, as metodologias


e as formas de avaliação serão organizados de tal
forma que ao final do ensino médio o educando de-
monstre:

I - domínio dos princípios científicos e tecno-


lógicos que presidem a produção moderna;

II - conhecimento das formas contemporâneas


de linguagem;

III - domínio dos conhecimentos de Filosofia e


de Sociologia necessários ao exercício da cidadania.
Assim sendo, ao final do ensino médio o aluno deve ter conhecimen-
tos de filosofia e sociologia necessários ao exercício da cidadania, mas não
esclarece de que maneira essas disciplinas deveriam ser ministradas, abrin-
do espaços para que ambas pudessem ser trabalhadas até como tema trans-
versal, tal como proposto para a disciplina de ética no ensino fundamental.
A partir dessa nova legislação a discussão muda o seu foco, agora é
necessário repensar como e de que maneira a filosofia deve ser ensinada,

140 Universidade Federal da Fronteira Sul


qual a metodologia mais adequada e quais conteúdos devem ser ministra-
dos, se história da filosofia ou temas filosóficos.
A proposta deste artigo não é discutir quais conteúdos do
campo filosófico que devem ser ensinados no ensino médio, mas
propor por meio da interdisciplinaridade conteúdos de estética,
como eixo condutor de uma proposta de educação em arte e filo-
sofia, trabalhada nas Oficinas de Integração (OIs) do Ensino Médio
Integrado em Informática do IFSC, Campus Chapecó.

4. A ESTÉTICA

A estética é considerada um ramo da filosofia, que se ocupa dos


problemas, teorias e argumentos acerca da arte. Sendo que a estética é fi-
losofia quando procura definir o que é e deve ser a arte, no sentido de que
se encarrega de deduzir os pressupostos e suas consequências no campo
da beleza e da arte. Como afirma Pareyson (1984) a estética não é parte
da filosofia, mas a filosofia inteira enquanto se empenha de refletir sobre
os problemas da beleza e da arte, pois ela é filosofia justamente porque
é reflexão especulativa sobre o que vem a ser o belo e a experiência do
artista, do crítico, do historiador, do técnico e daquele que desfruta qual-
quer beleza.
Assim sendo, pode-se afirmar que a reflexão em torno do que é
o belo e a beleza está presente no pensamento ocidental há mais de 25
séculos, contudo, a estética como um saber autônomo e sistemático, tem
apenas dois séculos e meio de existência. Foi Alexander Baumgarten, nos
anos de 1750-1758, que publicou uma obra chamada Aesthetica, colo-
cando a estética como uma ciência que estuda a beleza, ou seja, uma
ciência do belo.
Baumgarten, ao prescrever o domínio da estética o fez em duas
grandes partes: a teórica e a prática. Segundo Bastos (1987) a parte teórica
coloca que o fim da estética é determinar o que é a beleza, numa con-
cepção racionalista, pois a beleza é racional, inteligível e universal como
todo o conhecimento sensível, porém é contingente, porque é múltipla e
diversificada. Esse conceito leva ao fortalecimento da ideia de que a arte e
a apreciação do belo são relacionadas a sensibilidade, misto de sentimen-
to e sensação, que tem o nome de beleza.

Ensino de Filosofia 141


Pode-se afirmar que na estética antiga e medieval predomi-
nou a teoria objetivista e, nos tempos modernos, a teoria subjetivista
de belo. O objetivismo estético concebe que o objeto existe por si,
independente de qualquer relação com o sujeito, isto é, exterior ao
sujeito. O objetivismo estético se divide em idealista, naturalista e
materialista, os quais serão explicados a seguir.
Segundo Pareyson (1984) o objetivismo idealista pode ser
exemplificado com Platão na antiguidade grega, que considerava
que as coisas belas empíricas são manifestações ou sombras da be-
leza ideal, que é eterna e absoluta, perfeita e imutável. Essa concep-
ção vai impregnar a estética cristã e medieval, que “vê na beleza um
atributo do ser supremo, pois, definitivamente, toda beleza terrena
deriva de Deus” (PAREYSON, 1984, p. 166).
O objetivismo naturalista ou materialista considera que o es-
tético ocorre na natureza ou nas coisas empíricas, independente de
toda relação com o homem, a objetividade é natural, material ou
extra-humana. Sendo que a identificação das propriedades estética
com certas qualidades objetivas é própria do materialismo metafísi-
co ou vulgar, que concebe essas qualidades como puramente natu-
rais, mas com forte ligação com a simetria, a proporção, a harmonia,
o ritmo, etc.
Frente ao objetivismo que tinha a pretensão de separar o su-
jeito do estético, surge a partir do século XVIII a visão subjetivista da
estética, que deixa de lado as qualidades e os fatores objetivos para
reduzir o estético à percepção do sujeito. Diz Tatarkiewicz (apud
PAREYSON, 1984, p. 173): “A beleza não é nenhuma qualidade
das coisas em si mesmas. Existe na mente que as contempla, e cada
mente percebe a beleza de forma diferente”.
Tanto o objetivismo quanto o subjetivismo têm uma parcela
de verdade, pois o objetivismo ressalta o papel do objeto e o sub-
jetivismo o do sujeito que o contempla. Mas, “sujeito e objeto não
só existem em geral em relação mutua, mas sim em uma relação
histórica, concreta, o que impede de falar de um e outro em termos
gerais, abstratos, imutáveis” (PAREYSON, 1984, p. 175).
Para concluir citamos Vázquez (1999, p. 181) que afirma
que:

142 Universidade Federal da Fronteira Sul


(...) o estético – como categoria geral – carac-
teriza um tipo de objetos que, por sua forma sensível,
possuem um significado imanente que determina, as-
sim mesmo, o comportamento do sujeito que capta,
percebe ou contempla esses objetos de acordo com
sua natureza sensível, formal e significativa. Mas o
estético só classifica um e outro (sujeito e objeto) na
relação humana, histórica e social que torna possível
sua existência estética, e na situação concreta, singu-
lar, em que essa possibilidade se realiza efetivamente.

4.1 A ESTÉTICA E A LEGISLAÇÃO EDUCACIONAL

De acordo com os PCNs e com as Diretrizes Curriculares Nacio-


nais o ensino médio deve ensinar competências em três grandes áreas
do saber, sendo elas: linguagens, códigos e suas tecnologias; ciências da
natureza e suas tecnologias; e ciências humanas e suas tecnologias, sen-
do que a estética está citada em pelos menos duas dessas áreas do saber,
na linguagem, códigos e suas tecnologias e nas ciências humanas e suas
tecnologias, pois tanto em uma como em outra consideram que o humano
é “articulado no âmbito sensível-cognitivo, por meio da arte manifesta-
mos significados, sensibilidades, modos de criação e comunicação sobre
o mundo da natureza e da cultura” (PCNEM, 2000, p.46) .
Vislumbra-se que necessitamos da beleza como componente de
um modo de vida. Enfocando especialmente a estética da sensibilidade,
que deve estimular no educando a criatividade, o espírito inventivo, a
curiosidade, facilitando a constituição de identidades capazes de suportar
a inquietação, conviver com o incerto e o imprevisível, acolher e conviver
com a diversidade, valorizar a qualidade, a delicadeza, a sutileza, as for-
mas lúdicas e alegóricas de conhecer o mundo e fazer do lazer, da sexua-
lidade e da imaginação um exercício de liberdade responsável.

5. A INTERDISCIPLINARIDADE

A interdisciplinaridade trouxe um novo modelo para o ensino e con-


sequentemente para a escola, uma nova forma de ensinar, a qual rompe
Ensino de Filosofia 143
com a fragmentação proposta pelo conhecimento científico, que até então
subsidiava o modelo da construção do conhecimento disciplinar, que se
origina no paradigma cartesiano e posteriormente positivista.
Lück (1994) coloca que esse modelo de construção do conheci-
mento pensa o universo como um sistema mecânico, composto de uni-
dades que são entendidas de forma descontextualiza, e que entre outros
atributos concebe a matéria como identificada ao método científico. Tal
modelo perdurou no ensino por mais de cinco séculos, mas que não sem
muitas dificuldades vem sendo inovado, substituído por uma nova forma
de ensinar, a interdisciplinaridade.
Tal como entende Japiassu (1996, p. 93) são inúmeras as dificulda-
des que se interpõem para que a interdisciplinaridade se efetive no ensino
e em sua metodologia. Por obstáculo epistemológico ao interdisciplinar
em primeiro lugar temos todas as resistências ou empecilhos colocados
pelos especialistas às relações das disciplinas, coloca também a valoriza-
ção do especialista culminando na fragmentação das disciplinas, e ainda
acrescenta que a pedagogia só leva em conta a descrição ou a análise
objetiva dos fatos observáveis para deles extrair leis funcionais, para o
não questionamento das relações entre as ciências humanas e as ciências
naturais.
Diante de tais afirmações, pode-se afirmar que para se efetivar um
conhecimento interdisciplinar é necessário que os envolvidos no processo
educacional se comprometam em buscar formas alternativas para o en-
sino, construindo um novo modelo de realidade curricular, deixando de
lado a segurança do caminho disciplinar, linear e hierarquizado, para uma
educação globalizadora.

6. RELATO DE EXPERIÊNCIAS: AS “OFICINAS DE


INTEGRAÇÃO” COMO PROPOSTA INTERDISCIPLINAR
PARA O ENSINO MÉDIO

O Projeto Pedagógico do Curso Técnico de Nível Médio Integra-


do em Informática do Instituto Federal de Santa Catarina – IFSC, campus
Chapecó, oferece um curso de formação integrada entre a educação pro-
fissional e o ensino médio, com carga horária de 3.600 horas e com quatro
anos de duração.

144 Universidade Federal da Fronteira Sul


De acordo com o Projeto Pedagógico o curso oferece uma estrutura
curricular interdisciplinar, compondo-se de um eixo integrador, no qual é
enfatizado o sujeito, a natureza e a sociedade. dentro de quatro núcleos
temáticos, que são: 1. cultura, ciência e sociedade; 2. trabalho, tecnolo-
gia e poder; 3. meio ambiente e sustentabilidade e 4. informática, ética e
cidadania.
Em tais eixos temáticos estão inseridas as “oficinas de integração”,
atividade interdisciplinar, com carga horária de 40 horas, semestral, na
qual todos os professores do curso estão envolvidos em sua elaboração.
Estas são complementadas, ao seu término, com uma pesquisa desenvol-
vida pelos alunos e apresentada aos demais Módulos do curso e aberta a
comunidade externa.
A seguir apresentamos alguns relatos de experiência desenvolvidos
nas Oficinas de Integração que envolve conteúdos de estética presentes
nas disciplinas de filosofia e da arte, como eixo temático desencadeador
da proposta interdisciplinar.

A Oficina de Integração (OI): “Surgimento do conhecimento”


Figura 01 - Professor de artes desenhando um bisão, simulando uma
pintura rupestre feita nas paredes da caverna.

Fonte: Arquivo dos autores.


Ensino de Filosofia 145
Para o desenvolvimento desta oficina, algumas ações foram postas
em prática para que o ambiente escolar simulasse os primórdios da civi-
lização humana. A sala foi escurecida, as mesas e cadeiras empilhadas e
escondidas atrás de tecidos, que simulavam montanhas, instrumentos de
pedra lascada foram colocados no centro, foi também utilizado uma mú-
sica com sons da natureza, o ambiente iluminado apenas com pequenas
lamparinas. Neste cenário o professor de história, iniciou a contação de
história sobre o início do desenvolvimento do conhecimento humano, en-
quanto isso, o professor de artes fazia uma pintura rupestre na parede da
sala, utilizando pigmentos em forma de giz.
Posteriormente, é levantado com os alunos um debate sobre a re-
lação dos povos antigos com as pinturas rupestres e, questionado os seus
signos e significados, sendo que tais pinturas datam do período paleolíti-
co, de estilo naturalista com implicações de caráter mágico e sobrenatu-
ral, instrumento de contato dos “xamãs” com a metafísica. Afirma Osinki
(2001, p.11): “Para o homem pré-histórico, o que hoje entendemos como
fazer artístico tinha a força da magia e era cercada de rituais rigorosos”.
Dando continuidade ao desenvolvimento do processo histórico so-
bre o nascimento do conhecimento, em oficina posterior contou-se com a
colaboração do professor de química que, juntamente com os alunos au-
xiliou-os no preparo de pigmentos, que utilizavam banha, carvão e bixina
(colorau), semelhantes aos feitos pelos homens das cavernas, para que os
mesmos retratassem pinturas rupestres nas paredes da sala de aula.
De acordo com o Projeto Pedagógico, acima citado, o curso tem
como eixo integrador dos módulos I e II, a temática “Sujeito, a natureza e
a sociedade”. Assim sendo, foi utilizada a contextualização acima relata-
da para a oficina que aborda sobre o desenvolvimento do conhecimento
humano e as suas relações entre a cultura e a sociedade.

146 Universidade Federal da Fronteira Sul


OI “Aparência e essência”
Figura 02 - Alunos realizando as medidas corporais para comparar com
os cânones vitruvianos.

Fonte: Arquivo dos autores.

Outra atividade que envolveu conteúdos de filosofia e arte, foi traba-


lhada na oficina de integração, intitulada aparência e essência, que debate
questão da beleza e da dualidade aparência e essência, forma e conteúdo.
Para o desenvolvimento desta oficina foi necessário a professora de filosofia
explicar aos alunos o conceito de estética, bem como as diversas aborda-
gens sobre o belo na história da filosofia. Para tal, foram trabalhados os pa-
drões de beleza da Grécia antiga, da Idade Média e da contemporaneidade.
Posterior a essa abordagem, analisou-se os padrões de beleza pro-
postos por Marcus Vitruvius Pollio, arquiteto romano do século I, autor da
obra De architectura, depois reelaborada por Leonardo da Vinci, no Re-
nascimento, que propõe as medidas ideais do homem, expostas na famosa
ilustração, o “homem vitruviano”.
Para Vitruvius, a medida perfeita do homem estava na proporção
exata da relação entre envergadura e altura; diante desse conhecimento,
foram realizadas medições dos alunos e com o uso de cálculos matemáti-
cos, analisada a proporção ideal, ou seja a medida perfeita.

Ensino de Filosofia 147


Isso permitiu abrir a discussão sobre a questão da beleza através da
história da arte, com análise das mudanças de paradigmas estéticos, co-
nhecido como o estilo de cada época, com uma análise filosófica de como
os padrões de beleza se modificam nas diferentes épocas e sociedades,
sendo fruto do meio histórico-cultural ao qual estão inseridos, como cita
Libâneo (2004, p. 7):

Na base da ideia de atividade externa está um


princípio central da filosofia materialista dialética: o
condicionamento histórico-social do desenvolvimen-
to do psiquismo humano, que se realiza no processo
de apropriação da cultura mediante a comunicação
com outras pessoas. Tais processos de comunicação
e as funções psíquicas superiores envolvidas nesses
processos se efetivam primeiramente na atividade ex-
terna (interpessoal) que, em seguida, é internalizada
pela atividade individual, regulada pela consciência.
Assim, o encontro propiciou o debate sobre a estética e a filosofia
na prática educativa, no confronto dos padrões ideais de beleza e a reali-
dade, visualizando os padrões culturais e suas interferências na sociedade,
na cultura e na vida das pessoas.

148 Universidade Federal da Fronteira Sul


Oficina de Integração “Reprodutibilidade técnica”
Figura 03 - Professor de química dr. Fabio Machado da Silva
demonstrando o processo químico da reprodução da imagem
fotográfica.

Fonte: Arquivo dos autores.

Outra oficina de integração que envolveu conteúdos de filosofia e


arte foi intitulada “A reprodutibilidade técnica”, fundamentada em A obra
de arte na era da reprodutibilidade técnica, do filósofo Walter Benjamin.
Foram analisadas as transformações político-culturais resultantes do pro-
cesso da Revolução Industrial, nos séculos XIX e XX, e os avanços técni-
cos científicos, especialmente o surgimento da fotografia, que trouxe uma
nova forma de reprodução estética para a arte, inclusive de apresentar o
belo e o feio, visão subjetivista abordada por Kant, e apresentada no item
3, a estética.
Visando a atingir a interdisciplinaridade buscou-se a contribuição
dos conhecimentos da química e da física para entender como nasceu a
fotografia e as primeiras câmeras fotográficas. Para tal, foi proposta aos
alunos a construção de uma câmera de fotografia, ou seja, uma câmera es-
cura, utilizando materiais alternativos. O conteúdo mostra como acontece
a propagação retilínea da luz que permite a projeção de uma imagem em

Ensino de Filosofia 149


ambiente escuro, que era conhecido desde a antiguidade, sendo inclusive
citado por Aristóteles.
Foi demonstrado como foram construídas as primeiras câmaras es-
curas, que auxiliaram os artistas na produção de desenhos. Na evolução
dos conhecimentos científicos, em especial da química do século XIX,
pela primeira vez foi possível captar e fixar uma imagem, processo desco-
berto por Joseph Nicéphore Niépce, em 1826.
Com o auxílio da química, elaborou-se uma produção artesanal de
fotografia, utilizando a técnica da pin hole e a revelação das imagens com
os produtos químicos adequados. Assim, foi possível uma discussão sobre
a mudança que ocorreu na arte, com a possibilidade de conseguir imagens
por meio de um processo de reprodução mecânica, em vez do processo
artístico tradicional do desenho e pintura de observação, fato que inspirou
diversos movimentos artísticos, até mesmo como forma de levar a pintura
para uma direção diferente, a subjetivista, abordada por Kant, conseguida
através da máquina fotográfica. A reprodutibilidade técnica dos processos
de reprodução de imagem nos levanta o debate sobre o processo de origi-
nalidade da obra de arte na contemporaneidade.

Oficina de Integração “Sistematização de conteúdos do sem


Figura 04 - A árvore do conhecimento. Em frente, da esquerda para direita:
professores Gerson Witte, Elizangela Weber da Luz (Coordenadora da OI,
Módulo I) e Joce Mary Mello Giotto.

Fonte: Arquivo dos autores.

150 Universidade Federal da Fronteira Sul


Em seguida apresentamos o desenvolvimento de outra OI, cuja pro-
posta é a elaboração da “sistematização dos conteúdos” do semestre. Para
tanto, foi apresentado aos alunos à ilustração da “árvore do conhecimen-
to”, na qual cada um de seus ramos representava um dos aspectos do
Núcleo Temático do semestre, “Cultura, ciência e sociedade”.
Diante da figura, foram distribuídas algumas folhas para que os alu-
nos escrevessem uma palavra relacionada com o conteúdo aprendido no
semestre e em seguida a explicasse o porquê de sua escolha e colocasse
a palavra em um dos ramos da árvore do conhecimento mais adequado a
sua abordagem.

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Buscar a interdisciplinaridade no ensino médio é ainda um grande


desafio a ser conseguido. Inúmeras propostas têm surgido na tentativa de
romper com a fragmentação do conhecimento buscando um novo mode-
lo, em que todos os envolvidos no processo educacional construam uma
educação globalizadora, que supere a metodologia disciplinar.
Diante dessa proposta, o Instituto Federal Tecnológico de Santa Ca-
tarina, campus de Chapecó-SC, oferece um curso técnico de nível médio
integrado em informática, que tem sua organização curricular estruturada
no eixo integrador, “sujeito, natureza e sociedade” com quatro núcleos
temáticos: cultura, ciência e sociedade, para os módulos 1 e 2; trabalho,
tecnologia e poder, módulos 3 e 4; meio ambiente e sustentabilidade, mó-
dulos 5 e 6; informática, ética e cidadania para os dois últimos módulos,
7 e 8.
A experiência prática relatada neste artigo expõe apenas algumas
atividades práticas interdisciplinares que ocorrem na unidade curricular
“Oficinas de Integração”, do módulo 1, na qual professores de diversas
áreas do conhecimento atuam na elaboração e aplicação das oficinas.
Buscando a integração de conhecimentos, optou-se pela estética, ramo da
filosofia que se ocupa do campo da beleza e do belo, que estão presentes
nessas duas áreas do conhecimento como eixo norteador de diversas ati-
vidades propostas nas OIs, tal como o relatado neste artigo.
A experiência relatada neste artigo mostrou-se mostrou muito rica e
eficiente, visto que possibilitou atingir a interdisciplinaridade, derrubando
Ensino de Filosofia 151
alguns dos maiores obstáculos para que ela se efetive, tais como “a falta
de diálogo, o engajamento e participação efetiva os professores na cons-
trução de um projeto comum voltado à superação da fragmentação do
ensino e de seu processo pedagógico” (GIOTTO, 2004, p. 125).

Referências

BASTOS, Fernando. Panorama das Idéias Estéticas no Ocidente. De Pla-


tão a Kant. Brasília: Universidade de Brasília, 1987.

BENJAMIN, Walter. A Obra de Arte na era da sua Reprodutibilidade Téc-


nica. Disponível em <http://www.deboraludwig.com.br/arquivos/benjamin_re-
produtibilidade_tecnica.pdf>. Acesso em Junho de 2013.

BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, LDB 9.394/96.


Brasília, DF, 20 de dezembro de 1996.

_______. Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. Brasi-


lia, DF, 2000.

_______. Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Santa


Catarina, IFSC. Campus Chapecó. Projeto Pedagógico do Curso de Nível
Médio Integrado em Informática, Chapecó, SC, agosto de 2010.

GIOTTO, Joce Mary Mello. Pressupostos Interdisciplinares do conheci-


mento e do saber. In CÂNDIDO, Celso; CARBONARA, Vanderlei. Filoso-
fia e Ensino: um diálogo interdisciplinar. Ijuí: Unijuí, 2004.
JAPIASSÚ, H. Interdisciplinaridade e Pedagogia do Saber. Rio de
Janeiro: Imago, 1996.
JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia.
3.ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1996.

LIBANEO, José Carlos. A didática e a aprendizagem do pensar e do apren-


der: a teoria histórico-cultural da atividade e a contribuição de Vasili Da-
vydov. Revista Brasileira de Educação. Set/out/nov/dez 2004. 27: 5-24.
Disponível em <www.scielo.br pdf/rbedu/n27/n27a01.pdf>. Acesso em
junho de 2013.

152 Universidade Federal da Fronteira Sul


LÜCK, H. Pedagogia Interdisciplinar: Fundamentos Teórico-Meto-
dológicos. 2.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.
OSINSKI, Dulce Regina Baggio. Arte, história e ensino: uma trajetória.
2.ed. São Paulo: Cortez, 2001.

PAREYSON, Luigi. Os Problemas da Estética. São Paulo: Martins Fontes,


1984.

VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Convite à Estética. Rio de Janeiro: Civiliza-


ção Brasileira, 1999.

Ensino de Filosofia 153


10. EDUCAR PARA LA AUTONOMÍA: ética y
ciudadanía en perspectiva hermenéutica
Tomás Domingo Moratalla1
tomasdomiungo@filos.ucm.es

1. INTRODUCCION

En estas páginas quisiera proponer un determinado enfoque para


abordar la educación ética. Este enfoque viene marcado por la perspectiva
hermenéutica y tiene como gran meta educativa la autonomía personal.
El trasfondo de esta reflexión es la filosofía de Paul Ricoeur, en concreto
su hermenéutica narrativa que tiene, según mi interpretación, una fuerte
impronta ética y política.
Desde la aproximación narrativa, el objetivo de la educación mo-
ral es la de convertirnos en autores, escritores o, al menos, narradores de
nuestra propia vida. Es decir, perseguimos que la vida humana sea “una
vida humana examinada”, en la tradición socrática y hermenéutica. La
ética narrativa supone replantearnos el sí mismo moral (identidad moral)
y la propia vida moral en su conjunto. El paradigma narrativo-hermenéu-
tico en educación ética permite alejarnos de una concepción abstracta y
teórica de la moral, y hace que nos ocupemos de una moral que se vive y
se despliega desde lo cotidiano y lo particular: el encuentro con los otros,
con uno mismo y con un mundo compartido.

1Doutor em Filosofia. Departamento de Ética. Facultad de Filosofía. Universidad


Complutense de Madrid (España).
La tarea del profesor cambia, lo mismo que la del alumno e, in-
cluso, cambia la consistencia misma de la materia que enseñamos. El tri-
ángulo educativo (profesor, alumno materia que se enseña) se transforma
hermenéuticamente. El profesor deja de ser un mero transmisor de conoci-
mientos, y pasa a ser el encargado de suscitar confianza, de hacer posible
el encuentro entre los alumnos y la materia que se enseña, basándose en el
diálogo y en el cuestionamiento. Los alumnos tendrán que comprometerse
en su propio aprendizaje, y la tarea educativa (en perspectiva hermenéuti-
ca) se convertirá en una comunidad de experiencia y de aprendizaje.
El gran objetivo de la educación ética es la formación de indivi-
duos autónomos, que sean capaces al mismo tiempo de hacerse respon-
sables de la ciudad en la que viven. La cuestión de la ciudadanía es, por
tanto, la clave. Propongo un modelo de ciudadanía desde la tradición
hermenéutica cuyo método de trabajo es la deliberación. Al final, tras el
despliegue teórico, propondré una aportación narrativa (cinematográfica)
para esta propuesta de educación para la ciudadanía y la autonomía.

2. CIUDADANÍA Y EDUCACIÓN

La cuestión de la ciudadanía es clave para cualquier sociedad de-


mocrática, y de igual manera lo es la formación de sus miembros para la
vida y convivencia en dicha sociedad, por eso educar en la “ciudadanía”
es importante pues no se presenta sólo como una cuestión de hecho – se
es ciudadano – sino también como una cuestión de derecho – se debe
ser ciudadano, y serlo de cierto modo. Los debates sobre la ciudadanía
son habituales, sobre todo en teoría política y filosofía social (CORTINA,
1997).
Siguiendo los análisis de Jürgen Habermas podemos decir que ha
habido dos grandes modelos de ciudadanía: modelo liberal y modelo re-
publicano (HABERMAS, 1999). Son dos visiones de la ciudadanía, una
minimalista y otra maximalista. En esta distinción habermasiana se retoma
de cierta manera la distinción clásica de B. Constant que diferenciaba en-
tre libertad de los Antiguos y libertad de los Modernos y la distinción, ya
no menos clásica, de I. Berlin entre libertad negativa y libertad positiva.
Para el modelo liberal (libertad de los Modernos, libertad negati-
va) el punto central es el individuo, que busca de manera “egoísta” el

156 Universidade Federal da Fronteira Sul


desarrollo de sus capacidades. El antecedente clásico de este modelo es
Locke. Es una idea de ciudadanía basada en una teoría de los derechos
individuales y, por tanto, en la protección de la esfera de autonomía priva-
da. Este modelo se centra en la dimensión jurídica de la ciudadanía; cada
ciudadano realiza y elige su propia concepción del bien en el respeto de
las opciones de los demás y, en consonancia con esto, el orden democrá-
tico no puede entrometerse en las opciones personales (libertad negativa),
sólo tiene que garantizar la posibilidad de la elección personal (libertad de
los Modernos). La democracia liberal, la ciudadanía liberal, debe respetar
las diversas concepciones del bien y no forzar a nadie a elegir una u otra
opción.
¿En qué consistiría la educación para la ciudadanía según este mo-
delo? Se trataría sólo de enseñar los valores políticos liberales. Se pueden
enseñar aquellas “virtudes político-cívicas” que contribuyan a garantizar
las opciones de valor privadas/individuales, así como la continuidad y
pervivencia de la propia sociedad. Se insistiría en la neutralidad del Esta-
do y en la necesidad de no incluir en la educación temas controvertidos,
y limitarse a la enseñanza de valores como la tolerancia o el civismo. Es
un modelo que sería más bien indiferente a las cuestiones de educación
para la ciudadanía al considerarlas esfera privada; la escuela ha de educar
en matemáticas, inglés, historia, etc., y no en ciudadanía. Quizás, como
mucho, enseñar el funcionamiento de las instituciones y dar una formaci-
ón personal adecuada que permitirá a los ciudadanos elegir a los mejores
representantes en un futuro.
Algunos liberales más moderados, y realistas diría yo, creen que
el liberalismo “duro” tendría serios problemas para garantizar la unidad
de una sociedad en nuestro momento histórico de complejidad y globali-
zación. Así se han introducido correcciones y ampliado lo que sería una
educación liberal para la ciudadanía y se habla de “liberalismo cívico”
(MACEDO, 1990). También se llega a proponer en este modelo políti-
co-educativo la enseñanza de algunos valores relativos sobre todo a la
autonomía personal (entendida siempre como capacidad para evaluar las
distintas opciones personales y formas de vida y elegir la que se estime
más conveniente).
Las críticas a este modelo no si dirigen tanto a que no se defiendan
sus presupuestos como al hecho de considerarlos demasiado insuficien-
tes. Este modelo, a ojo de los críticos, corre el riesgo de formar individuos
Ensino de Filosofia 157
replegados sobre sí mismos, perseguidores de su propio desarrollo perso-
nal de una forma egoísta, además de fomentar cierta apatía democrática.
Es un modelo político y educativo que produciría una hipertrofia de la
autonomía (mal entendida) y una tendencia a delegar en expertos capaces
de decidir por los ciudadanos. Ni habría desarrollo personal, al haber una
pobre antropología subyacente, ni habría un desarrollo social democráti-
co, al haber descuido de los lazos sociales.
Frente al modelo liberal, se alza, por tanto, el modelo republicano.
Éste pone el acento en la preservación de una solidaridad vinculada con
el orden cívico; es prioritaria la comunidad frente a los derechos individu-
ales. Defienden los republicanos una visión sustancial y participativa de
las virtudes. Lo que nos define como ciudadanos es nuestra pertenencia
a una determinada comunidad (libertad de los Antiguos) y es necesaria la
conformación de una voluntad singular (libertad positiva) para constituir
la voluntad general. El bien común, lo que se estima bueno, es más impor-
tante que los derechos individuales. A la inversa que en el modelo liberal,
hay una prioridad de la idea de lo bueno sobre la idea de lo justo. Este
modelo político defiende una idea sustancial-moral de ciudadanía (no me-
ramente formal-jurídica). Ya se habrá entendido que el término “republi-
cano/a” es muy diferente al uso habitual que hacemos en nuestro entorno,
que se suele oponer a “monarquía” (sin rey).
¿En qué consistiría la educación para la ciudadanía para este mo-
delo de ciudadanía? Este modelo da más relieve a la participación y a los
vínculos de la comunidad-sociedad en la que vivimos, por tanto se preo-
cupará en transmitir y educar en la pertenencia al grupo y la participación
como un bien en sí mismo, así como transmitir los valores de la comuni-
dad, y frente a los liberales que defienden una adhesión a principios abs-
tractos defenderán un determinado concepto de virtud o una determinada
idea de vida buena, por lo que la educación para la ciudadanía no sólo no
debe evitar temas controvertidos sino que ha de entrar en ellos y decidirse
por determinadas concepciones de lo bueno. Educar es integrar en una
sociedad determinada, por tanto con una moralidad “densa”, y no pura-
mente formal. Formar un ciudadano es darle los medios para que pueda
compartir e interiorizar las sensibilidades e intuiciones comunes.
También es un modelo criticado, pues va “demasiado lejos” y ol-
vidar los elementos que había defendido el modelo liberal. Se preocupa
demasiado del grupo y se olvida del desarrollo de la autonomía personal
158 Universidade Federal da Fronteira Sul
como capacidad de elección y decisión; la democracia no puede pres-
cindir de una voluntad personal formada y exigente. Es un modelo que
provocaría cierta atrofia de la autonomía.
Tanto desde la tradición europea (HABERMAS, 1999) como desde
la estadounidense (GUTTMAN, THOMPSON, 2004) la crítica a estos dos
modelos no se ha hecho esperar, sobre todo por su pretendida exclusión
mutua. Y frente a unos y a otros han propuesto una ciudadanía comuni-
cativa o ciudadanía deliberativa-hermenéutica. Es un modelo que busca la
profundización de la democracia, reconociendo tanto la importancia del
individuo, y sus derechos (tradición liberal) como la conformación de la
voluntad general de una forma sustancial a través de procesos deliberati-
vos (tradición republicana). Se basa, frente a liberales y republicanos, en
la afirmación del carácter co-originario de la libertad individual y la parti-
cipación social, de lo privado y lo público. Los asuntos han de ser tratados
por todos los afectados racionalmente, “deliberadamente”, mediante el
intercambio de argumentos en procesos de discusión pública. Defienden
una democracia deliberativa basada en el principio de reciprocidad que
pasa por la expresión de la pluralidad de perspectivas para hacer posib-
le la confrontación, promover el cuestionamiento y alcanzar cierta inter-
comprensión que conduzca a la toma de decisiones prudentes, públicas,
revisables, etc.
La concepción deliberativa busca así un equilibrio entre los otros
dos modelos: para alcanzar una auténtica concepción de la ciudadanía
necesitamos poner el acento de igual manera en la idea de ciudadano
como aquel que detenta los derechos (modelo liberal) como aquel que
participa en la comunidad (modelo republicano). Ni sólo el “lenguaje de
los derechos”, ni sólo el “lenguaje de la participación”. El modelo liberal
es un punto de partida, innegociable, para evitar tiranías de muy diversa
índole (grupos, mayorías, partidos, gobiernos, medios, etc.); pero el conte-
nido se obtiene a través de la deliberación democrática.
El modelo deliberativo surge por tanto de la complementación
de los modelos que podemos considerar clásicos. Para algunos autores
(KYMLICKA, 1996) la única diferencia entre los dos modelos reside en la
diferente acentuación de unos aspectos sobre otros. El liberalismo pone
de relieve el valor de la justicia, en una interpretación individualista de
las libertades que fundamentan el estado de derecho, el republicanismo lo
hace sobre el valor identidad y pertenencia colectiva. Pero, ¿son valores
Ensino de Filosofia 159
que se excluyen? Son valores que se complementan, que se interpenetran,
como muestra la teoría habermasiana al defender la co-originariedad de la
autonomía privada y la autonomía pública; y defender de este modo una
concepción de la ciudadanía que integra ambas, superando el modelo
de la tradición liberal, demasiado centrado en la esfera de la autonomía
privada, y moderando el modelo republicano, demasiado centrado en la
participación pública.
Este tercer modelo de ciudadanía, ciudadanía deliberativa, es el que
desgraciadamente ha sido olvidado en muchos debates sobre “educación
para la ciudadanía”. Es un modelo que también, como los anteriores, conlle-
va una determinada idea de educación y formación para la ciudadanía. Pero,
y aquí entra en juego la tesis mayor que defiendo, los planteamientos peda-
gógicos desarrollado por esta visión de la ciudadanía, como es el caso de la
propuesta de educación en deliberación y democracia llamada “filosofía para
niños” (M. Lipman), no dan cuenta de la complejidad ética y antropológica
del proceso educativo ni poseen los recursos para cumplir las metas y objeti-
vos que se le pueden exigir a una educación para la ciudadanía. Por eso creo
que una teoría y práctica de la deliberación, tal y como se ha desarrollado en
la tradición hermenéutica, puede cumplir con dichos objetivos y dar cuenta
de esa complejidad; así cobra pleno sentido la idea de una ética para la ciu-
dadanía entendida como una educación para la deliberación.
No voy a desarrollar en este momento lo que sería una teoría de la
deliberación en ética. Me parece crucial en esta recuperación socrática
y aristotélica de la deliberación la tradición hermenéutica, fundamental-
mente M. Heidegger y H. G. Gadamer en sus orígenes y P. Ricoeur más
recientemente, que ha aplicado toda su finura hermenéutica también al
campo de la ética aplicada, como puede verse en su obra Lo justo 2. La
deliberación no sólo es un buen método en la toma de decisiones (en bio-
ética, en asuntos políticos, etc.), sino también un método de enseñanza de
la ética, de una ética para la ciudadanía.

3. LA DIFÍCIL TAREA DE DELIBERAR, TAMBIÉN EN


EDUCACIÓN

El sentido fundamental de una disciplina como “ética para la ciu-


dadanía” no vendría dado tanto por los temas como sí por el método: la

160 Universidade Federal da Fronteira Sul


deliberación. A veces, o siempre, no son tan importantes los temas concre-
tos que se estudian como los procedimientos y actitudes que se ponen en
juego, sobre todo en la formación de jóvenes y adolescentes.
Lo primero que hay que decir es que no es cualquier cosa, que no
se trata de hablar, charlar o debatir. Tiene su historia y su mecánica; hay
que aprender a deliberar. Y como sabemos no es cosa baladí pues estamos
proponiendo nada menos que un modelo de ciudadanía, de participación
social y de desarrollo personal, por lo que el gran objetivo de nuestro siste-
ma educativo debiera ser formar ciudadanos capaces de deliberar. Formar
ciudadanos críticos y participativos supone desarrollar una competencia
deliberativa.
Con la deliberación estamos formando ciudadanos críticos que
sean capaces de participar menos ciegamente en el destino colectivo. Es-
tamos también fomentando la consolidación de la democracia más allá de
la democracia representativa al uso, que si bien es necesaria no es sufi-
ciente, y al mismo tiempo estamos corrigiendo cierta idea de democracia
que se ha extendido entre los jóvenes, sin lugar a dudas por influencia
de los mayores. Cuando se habla de democracia se asocia con decisión
conjunta y está se suele reducir a votación; en clase, como reflejo de la
sociedad, pasa a entenderse de igual manera: tener más democracia es
votar más, sin detenerse en el proceso que lleva a la votación ni en sus
consecuencias. Decidir democráticamente es votar, y… ¡a ver qué sale!
¡No!: más democracia es más deliberación, aunque conlleve, necesaria-
mente también, procesos de votación. No es nada superfluo que desde
muy jóvenes se asocie democracia más con argumentación e intercambio
de razones que con la mera elección. La democracia deliberativa, verda-
dera profundización de la democracia, sólo es posible desde la educación
y la argumentación.
La práctica deliberativa desarrolla hábitos cognitivos y emociona-
les, así como estrategias de pensamiento y actitudes vitales tan importan-
tes como:
- el sentimiento de tener que contar con una buena informaci-
ón, buenos datos; información contrastada, acudiendo incluso
a varias fuentes, y así criticar y relativizar muchas informa-
ciones que se presentan como únicas y fiables excluyendo el
resto;

Ensino de Filosofia 161


- capacidad de escucha y, por tanto, de apertura al otro;
- necesidad de defender los propios intereses y las propias posi-
ciones de una manera pacífica;
- curiosidad intelectual y espíritu crítico;
- necesidad de tener en cuenta las consecuencias de las propias
decisiones y así sopesar las implicaciones de nuestras afirma-
ciones (qué decimos, cómo lo decimos, con qué criterios, a
quién se lo decimos, etc.);
- capacitación para la formulación de los propios intereses, opi-
niones o puntos de vista, y, al mismo tiempo, teniendo cuenta
a los otros, lo cual lleva a considerar siempre los diversos as-
pectos de una cuestión;
- la creencia de que la propia opinión, fundada y argumentada
puede influir en la vida influir en la vida colectiva;
- un ejercicio reflexivo de comunicación lingüística, de inter-
cambio libre de razones y argumentos;
- incidencia en una idea de comunidad generada por la soli-
daridad y reconocimiento en la palabra compartida, palabras
recibidas y ofrecidas;
- toma de decisiones racionales;
- pensamiento lógico, coherente, estructurado, imparcial, y ello
considerando alternativas posibles antes de llegar a conclusio-
nes;
- supone darse cuenta de que podemos no tener razón;
- contribución a tomar decisiones racionales, pensar de manera
lógica, coherente, imparcial, considerando alternativas... an-
tes de llegar a las conclusiones.
- participación en controversias y debates públicos;
- cuestionamiento de las propias creencias, no para dejar de
creer sino para creer críticamente;
- desarrollo de valores como respeto, tolerancia activa, no indi-
ferencia.
Deliberando estamos educando para la responsabilidad y el ejer-
cicio de la autonomía. La gran tarea de los docentes, y autoridades educa-
tivas implicadas, es cómo desarrollar estas actitudes (y aptitudes) para la
162 Universidade Federal da Fronteira Sul
deliberación. Precisamos una pedagogía de la discusión, una pedagogía
de la deliberación. No nos iría mal, aunque el análisis lo dejaremos para
otra ocasión, acudir a los clásicos de la deliberación y aprender de ellos,
de Aristóteles y, sobre todo, de Sócrates.
Muchos me pueden decir, sobre todo los docentes, que esto está
puede estar muy pero ¿cómo se hace?, ¿cómo lo hacemos? Es cierto, es
una cuestión difícil, ardua y requiere entrenamiento. No es fácil. Pero hay
ciertas cosas que se pueden hacer con relativo poco esfuerzo y supone ya
un comienzo en la práctica de la deliberación.
El gran error, un error de principio podríamos decir, de la ética y de
la educación en general, es no distinguir niveles de reflexión y análisis, y
así mezclar todo o reducirse a un solo aspecto. Siguiendo, muy esquemá-
ticamente, al profesor Diego Gracia podemos decir que en las cuestiones
éticas (él se centra más en bioética) hay siempre, al menos, tres niveles: el
nivel de los hechos, el de los valores y el de los deberes (GRACIA, 2007).
El nivel de los hechos corresponde a nuestra relación cognitiva
con el mundo (relación dóxica). Nos acercamos al mundo, queremos ha-
cer algo él, y tenemos que saber qué son las cosas, con qué contamos. Este
nivel es el de los llamados juicios de hecho o juicios descriptivos. Aquí
la tarea científica es fundamental; la ciencia es la gran suministradora de
hechos. Pero nuestra relación con el mundo no es sólo cognitiva, pues
no sólo conocemos el mundo sino que también lo valoramos, preferimos
unas cosas y rechazamos otras, lo apreciamos e, incluso, nos emociona;
mantenemos, pues, una relación valorativa. Este nivel es el de los juicios
de valor o juicios axiológicos. Hay un tercer nivel, pues no sólo conoce-
mos el mundo o lo valoramos sino que también intentamos, en función
de nuestro conocimiento y de nuestros valores, hacer algo; llevar nues-
tros valores al mundo. Se trata de la dimensión volitiva. Si valoramos, por
ejemplo, la justicia o la belleza, queremos que el mundo sea justo y bello,
y así aparecen en nuestra vida los deberes y con ellos los juicios prácticos
o juicios prescriptivos.
Pues bien, la buena argumentación ética pasa por no confundir ni-
veles, no prescindir de ninguno y recorrerlos metódicamente. Esta sencilla
idea es la piedra angular de una ética basada en la deliberación, e incluso
podríamos llegar a decir de una ética “correcta”. ¿Qué sucede muchas
veces? Que los que hacen ética, que los que deliberan (mal) en ética, pres-
cinden de algún nivel o reducen todo a uno. Los hay que piensan que todo
Ensino de Filosofia 163
está en los hechos, en los datos científicos, y que la ciencia nos va a indi-
car los valores y nos va a decir qué debemos hacer (es el reduccionismo
positivista); otros nos dicen que más allá de lo que nos diga la ciencia lo
fundamental y esencial son los valores, que ellos son la clave, y los límites,
de la investigación y de la acción (son los reduccionismos axiológicos, la
mayor parte de las veces religiosos); y otros, dicen que más allá de lo que
la ciencia diga, que es neutral –señalan –, y de lo que piense la gente, es
decir, de sus valores – que son subjetivos, opinan –, está lo que realmente
se puede hacer o no y quien lo dice son las leyes (es el reduccionismo
deontologista o prescriptivo).
Esto que pasa, o puede pasar, en ética y sobre todo en su educa-
ción (en la educación de una “ética para la ciudadanía”). ¿Qué se hace
en clase, en las aulas? Se inunda a los alumnos de datos e información,
porque es lo único que se necesita y al tener más datos las otras cuestio-
nes se diluyen (reduccionismo positivista aplicado a la educación); o se
les inculcan determinados valores (religiosos, ecológicos, ciudadanos) que
pondrán a la ciencia y a las leyes en su sitio (reduccionismo axiológico); o
se les dice “cómo están las cosas”, es decir lo que la ley permite y lo que
no permite (reduccionismo deontologista). La realidad de las aulas se deja
interpretar fácilmente según esta tipología.
Educar para la ciudadanía, aprendiendo de la ética – deliberativa
y hermenêutica –, nos lleva a señalar que cuando tratemos una cuestión
tendremos que contar con los tres niveles y estudiarlos progresivamente.
Parece poco, pero si se cumpliera se habría logrado ya mucho para esta
educación para la deliberación o bioética para la ciudadanía. Luego ven-
drán estrategias más complejas y difíciles de deliberación, pero empezar
con esto y ofrecer cierta claridad y distinción es ya un primer paso, ¡un
primer gran paso!

4. ESTRATEGIAS EDUCATIVO-HERMENÉUTICAS: LEER


DETENIDAMENTE, VER CON REFLEXIÓN Y HABLAR CON
ARGUMENTACIÓN

No quisiera de terminar estas reflexiones y esta propuesta sin es-


bozar al menos alguna que otra idea sobre la metodología concreta de
esta educación en la deliberación y para la autonomía. Desde la tradición

164 Universidade Federal da Fronteira Sul


hermenéutica (aquí sólo aludida) y la tradición socrática, se podría ela-
borar una pedagogía de la deliberación de aplicación docente. La tarea
está en marcha. No obstante, y a modo de ejemplo, me gustaría indicar
al menos varias estrategias docentes que pudieran servir a aquél profesor
que quisiera ser deliberador o animarse en esta ética para la ciudadanía.
Las estrategias son sencillas: que el alumno lea, que el alumno vea y que
el alumno hable; que lea con detenimiento, que vea con reflexión y que
hable con argumentación.
Leer con detenimiento: La tarea de leer un texto, cada uno o entre todos,
en clase o en casa, puede ser de las más provechosas, pero hay que dis-
tinguir niveles y estilos de interpretación. Pues leer un texto, entenderlo es
una faena utópica, como decía Ortega, pues todo texto dice más de lo que
quiere decir y menos de lo que el autor quiso expresar.
Leer un texto, comentar un texto, es todo un arte, y se llama her-
menéutica. Un texto es una forma de discurso, es decir, de comunicación,
en la que alguien (el autor) dice algo (el texto mismo) a alguien (el lector)
a propósito de algo (el tema sobre el que trata). Y ante él podemos adoptar
varias perspectivas (perspectiva emotiva, histórico-biográfica, estructural
o problemático-existencial). Una lectura detenida del texto pasaría por
estos cuatros momentos, considerarlos, y no reducirlos (de manera pare-
cida a como sucedía antes cuando hablábamos de los hechos, los valores
y los deberes) es una buena forma de deliberar, dialogar, argumentar con
nuestros alumnos a través de, y gracia a, los textos; gracias a una lectura
detenida. Y cuánto más si se trata de buenos textos.
Ver con reflexión: En una cultura de la imagen como la que vivimos no
está de más introducirla en clase y no por concesión sino como oportuni-
dad para una visión crítica. La educación ética, la formación ética, ha de
contar con la aproximación narrativa que nos ofrece, por ejemplo, el cine.
El cine, la aproximación narrativa de la bioética, es una buena forma de
desarrollar la deliberación. Ahora bien, no se trata sólo de ver, o de ver
de cualquier manera. Platón decía, forzando un tanto la etimología de las
palabras, que el ser humano, el “anthropos” es “aquél que reflexiona en lo
que ve”. Eso es lo que pretendemos nosotros: que reflexione a través de la
narración, en este caso cinematográfica. Y toda reflexión necesita un mé-
todo y un proceso de análisis. No basta con poner una película (una buena
película), eso es entretener, y queremos hacer algo más (¡que no tiene por
qué ser necesariamente aburrido!): deliberar. El método de análisis de una
Ensino de Filosofia 165
película pasaría en mi propuesta por varias fases. El proceso entero es un
proceso en que el objetivo que se persigue es que el alumno partiendo de
su experiencia (1º momento) a través de experiencias posibles – narrativas,
ficticias – (2º momento) pueda enriquecer su experiencia previa, alcan-
zando una experiencia enriquecida (3º momento).
Hablar con argumentación: Es una estrategia que se enlaza con las an-
teriores. Es la estrategia central y, en definitiva, la que define la actividad
deliberativa. Se puede hacer de muchas maneras, además de las dos ante-
riores, algunas muy productivas como: la creación de diálogos en clase (a
medio camino de la representación teatral), la descripción de fenómenos
(externos e internos), la elaboración de disertaciones, el análisis de proble-
mas/dilemas, como por ejemplo utilizando los niveles de desarrollo moral
de Kohlberg, organización de debates, etc.
La tarea importante del profesor-deliberador en estas estrategias
consiste, como decía anteriormente, en mostrar siempre los niveles de
análisis (ciencia, moral-religión, ley) o los niveles de lectura posible: de un
hecho o de una situación. El profesor ha de aprender, y formarse para ello,
a estar en situación de deliberación, pues no tendrá que “impartir doctri-
na” (al menos, no sólo, y no fundamentalmente) sino ayudar al alumno a
precisar su pensamiento, suministrarles argumentos posibles que pueda
utilizar, ayudarle a organizar sus demostraciones, a hablar con coheren-
cia; a hacer una síntesis que haga avanzar el proceso de deliberación, a
aportar ciertos contenidos que ayuden a progresar en el tema, ayudarles
mediante una pregunta o a través de una reformulación, ayudarles a salir
de un atolladero (¡o meterlos en él!), es decir, y dicho brevemente…. ¡lo
que hacía Sócrates!

5. APROXIMACIÓN NARRATIVA: “LA OLA” Y LA


EDUCACIÓN PARA LA AUTONOMÍA

No nos resultaría difícil imaginarnos un colegio español o brasi-


leño. La pregunta que podríamos hacernos es: ¿Sería posible que pudiera
darse en él un sistema totalitario como el nazismo? Esta es la historia que
presenta la película “La ola” (Die Welle, 2008). Cuenta el experimento
didáctico de un profesor de instituto, Rainer Wenger. Quiere enseñar a
sus alumnos las distintas formas de gobierno y les plantea directamente la

166 Universidade Federal da Fronteira Sul


posibilidad de que en la actual Alemania se pudiera repetir una dictadura,
a la manera del Tercer Reich. Los alumnos están convencidos de que no
podría repetirse. El profesor les mostrará que se equivocan: sí es posible
que se repita, a pesar de haber pasado ya varias décadas. Es posible mani-
pular a las personas con estrategias muy similares a las de los nazis.
La película “La ola” narra las vicisitudes de una educación para la
obediencia y nos muestra también cómo un grupo de jóvenes, una clase
de un instituto, puede llegar a estar completamente convencido de un
régimen que llega, incluso, al fanatismo; el interés por lo que se hacía
en clase creció, otros cursos hicieron lo mismo, se incorporaron al movi-
miento, y participaron en “la Ola”, y el grupo llega incluso al extremo de
inventar un saludo y a uniformarse vistiendo una camisa blanca.
Esta película se basa en un experimento real llevado a cabo por
Ron Jones, profesor de instituto en California, en 1967. Ron Jones conocía
los experimentos de S. Milgram sobre la “obediencia a la autoridad”. Este
experimento trata de medir la disposición de un individuo cualquiera para
obedecer las órdenes de una autoridad, aun cuando éstas pudieran entrar
en conflicto con su conciencia personal. El experimento comenzó tres
meses después de que Adolf Eichmann (un criminal nazi muy importante)
fuera juzgado y sentenciado a muerte en Jerusalén por crímenes contra
la humanidad durante el régimen nazi en Alemania, y de los importantes
análisis de H. Arendt al respecto. Milgram ideó estos experimentos para
responder a la pregunta: ¿Podría ser que Eichmann y otros tantos como
él sólo estuvieran siguiendo órdenes? ¿Podría repetirse hoy en día algo
así? S. Milgram quería mostrar cómo la gente se comporta en situaciones
concretas. Montó el experimento en la Universidad de Yale para probar cuánto
dolor infligiría un ciudadano corriente a otra persona simplemente porque se lo
pedían para un experimento científico. Pudo comprobar cómo la férrea autoridad
se imponía a los fuertes imperativos morales de los sujetos (participantes). Su prin-
cipal descubrimiento fue mostrar como la buena voluntad y los ideales morales se
plegaban ante cualquier requerimiento ordenado por la autoridad. En otra lugar
he analizado más ampliamente las implicaciones de este experimento desde la
propuesta de Arendt (DOMINGO MORATALLA, 2012).
Pues bien Ron Jones, teniendo presentes este experimento de Mil-
gram, recibió una pregunta muy interesante por parte de uno de sus alum-
nos cuando explicaba el tema del nacionalsocialismo: “¿cómo pudo el
pueblo alemán alegar su ignorancia del genocidio judío? ¿Cómo podía la
Ensino de Filosofia 167
gente de las ciudades, los obreros, los profesores, los doctores, decir que
no sabían nada de los campos de concentración y las matanzas? ¿Cómo
gente que eran vecinos o incluso amigos de judíos podían decir que no
estaban allí cuando sucedió todo?”. Ante esta pregunta quiso probar, si-
guiendo en parte algunas de las enseñanzas del experimento de Milgram,
que sería posible emular en clase un sistema parecido al nacionalsocialis-
ta; le dio el nombre de la “Tercera Ola”. Para gran asombro del profesor,
los alumnos reaccionaron con entusiasmo a la obediencia que les exigía.
El experimento, que originalmente debía durar solamente un día, se exten-
dió por toda la escuela; los que disentían fueron aislados, o incluso agre-
didos, y los miembros comenzaron a controlarse mutuamente y establecer
un sistema policial. Al quinto día, Ron Jones tuvo que dar por terminado
el experimento porque se le escapaba de las manos.
¿Y cómo creo el movimiento? Muy sencillo (nótese que es un buen
ejemplo de formación para la heteronomía y la obediencia):
- el primer día del experimento (lunes 3 de abril de 1967) em-
pezó con cosas simples, como sentarse apropiadamente, in-
sistiendo hasta que los alumnos fueran capaces de entrar al
aula y sentarse correctamente en menos de treinta segundos
sin hacer ruido; algunas reglas más: los alumnos debían estar
sentados y atentos hasta la segunda campana y tenían que
levantarse para hacer preguntas, las cuales debían estar for-
muladas en tres palabras o menos, siempre empezando con
las palabras “Sr. Jones”.
- el segundo día había logrado hacer de su clase de historia, un
grupo con un profundo sentido de disciplina y de comunidad;
le dio nombre al movimiento, inventó un saludo similar al del
nazismo, y ordenó a los alumnos saludarse así, incluso fuera
de clase. Todos los alumnos obedecieron la orden.
- tercer día: el experimento tomó vida propia, con alumnos de
toda la escuela uniéndose a él. Todos ellos mostraron mejoras
académicas, y una gran motivación. Todos obtuvieron un car-
net de miembros, y les fueron asignadas tareas (como diseñar
un logo de La Tercera Ola, no permitir que entrase al aula nin-
gún alumno que no perteneciera al movimiento, etc.). Jones
les enseñó a sus alumnos cómo iniciar a nuevos miembros, y
para el final del día, ya eran más de 200 miembros.
168 Universidade Federal da Fronteira Sul
- El cuarto día del experimento, Jones decidió terminar con el
movimiento al día siguiente, pues este se estaba yendo de
control, los alumnos se estaban involucrando demasiado, y su
disciplina y lealtad para el movimiento era excesiva.
- El quinto día tuvo que detener el movimiento por los requeri-
mientos de las instancias educativas y por el alcance despro-
porcionado que estaba tomando el propio experimento. Los
alumnos estaban involucrados personalmente, habían interio-
rizado completamente los hábitos de obediencia y de negaci-
ón de la autonomía en aras de un fin superior a ellos mismos.
Este tipo de experimentos se repitieron en otros lugares y de diferen-
tes formas. El más famoso e importante fue el que llevó a cabo P. Zimbardo
(amigo y compañero de Milgram) y que fue conocido con el nombre del
“experimento de la prisión de Stanford”. Siguiendo a Milgram, y experimen-
tos como los de la “tercera ola”, quiso seguir investigando el fenómeno de
la obediencia extrema a la autoridad para lo cual simuló una especie de
prisión en un recinto universitario y distribuyó los diferentes papeles (unos
prisioneros, otros guardianes) y comprobó cómo los guardianes ejercían su
autoridad e infligían daño sólo por encontrarse cumpliendo esa función.
Nos muestra también los procesos psicológicos por los que la autonomía
personal desaparece y pasamos a funcionar en función del grupo, o de lo
que se espera que hagamos (las expectativas sociales). También tuvo que
detener el experimento ante la capacidad de crueldad que llegaron a mos-
trar las personas “normales” implicadas en el experimento (ZIMBARDO,
2008). De los experimentos de Zimbardo también hay versión cinematográ-
fica: “El experimento” (Oliver Hirschbiegel, 2001).
Lo más interesante de estas películas, y de los experimentos psico-
lógicos que reflejan, es que nos hacen ver cómo la disposición a seguir
unas determinadas órdenes, a obedecer una autoridad, o a negar nuestra
autonomía y responsabilidad, no reside simplemente en la obediencia a
una figura individual de autoridad que se nos impone violentamente, sino
en algo tan sencillo como “el poder de una situación” (Zimbardo), el po-
der de una institución en la simplemente participamos, y a la mera volun-
tad (quizás débil en un comienzo) de hacer lo que se espera de mí que
haga. Pasamos a una “actitud de obediencia” sólo siguiendo unas reglas,
asumiendo un rol, sin necesidad de una obediencia férrea a una figura
determinada.
Ensino de Filosofia 169
Ahora bien, adoptar una actitud de obediencia ciega, como mues-
tran estos experimentos, es negar nuestra autonomía, y al mismo tiempo
cualquier posibilidad de vida moral (DOMINGO MORATALLA, 2012).
La educación para la autonomía es lo único que puede contrarrestar este
“poder de las situaciones”. El problema moral es, por tanto, el siguiente:
¿desde dónde hacemos nuestra vida personal y comunitaria, individual y
ciudadana: desde la autonomía – desde nosotros mismos, responsable-
mente – o desde la obediencia, desde la heteronomía-?
Termino esta propuesta con un pequeño cuadro donde presento lo
que puede ser una educación para la autonomía frente a una educación
para la obediencia y heteronomía (¡tan habitual!). La tarea de Sócrates
sigue siendo aún nuestra tarea.

170 Universidade Federal da Fronteira Sul


Tabela01 - La tarea de Sócrates

EDUCACIÓN PARA EDUCACIÓN PARA


LA OBEDIENCIA LA AUTONOMÍA
1. se ofrece un compromiso para aceptar 1. sopesar lo que está en juego en ciertas
las tareas y los métodos que se llevarán a aceptaciones (pensar, reflexionar)…
cabo; se presupone una especie de
obligación contractual.
2. se ofrecen unas normas básicas que se 2. cuestionar lo incuestionable…
presentan incuestionables.
3. se altera la semántica de la acción: no 3. percatarse del uso/abuso de los lenguajes
“hacemos daño”, sino que “ayudamos al
experimentador”, “ayudamos al proceso”,
etc.
4. se afirma que el sujeto está exento de 4. desarrollar procesos imaginativos que nos
responsabilidad, o que los responsables hagan caer en la cuenta de nuestra
son otros. responsabilidad y en las consecuencias de
nuestros actos
5. se busca que el sujeto dé un pequeño 5 . e j e r c i c i o d e l a p r e c a u c i ó n y l a
primer paso y luego se le pide sólo un poco prudencia…
más
6. se presentan los procesos sociales como 6. naturaleza abierta e histórica de los
opacos y cerrados en sí mismo procesos sociales
7. se hace que el coste de salida del 7. estrategias para ayudar a decir “no”
experimento (o de la situación) sea duro y
difícil
8. se ofrecen procesos de deshumani- 8. ofrecer elementos de continua rehumani-
zación y desindividualización zación y personificación (competencia
narrativa)
9. se ofrece una gran ideología, una gran 9. recursos para una crítica de las ideologías
explicación, una gran mentira…
10. se nos enseña a que no nos metamos en 10 aprender que hay muchas cosas, más de
lo que no es de nuestra incumbencia, “no las que pensamos, que son de nuestra
te metas, que eso no es cosa tuya” incumbencia

Ensino de Filosofia 171


Referências

CORTINA, A., Ciudadanos del mundo. Hacia una teoría de la ciudadanía.


Madrid: Alianza, 1997.

DOMINGO MORATALLA, T., P. MELLA, “Notas para pensar la educación


en términos narrativos”, Cuaderno de Pedagogía Universitaria, nº 10, vol.
5, 2008, págs. 5-9.

DOMINGO MORATALLA, T., “Educar para la deliberación. Hacia una


bioética para la ciudadanía”, en M. DE LOS REYES, M. SÁNCHEZ (eds.),
Bioética y pediatría. Proyectos de vida plena, Madrid: Sociedad de Pedia-
tría de Madrid-Castilla La Mancha, 2010, p. 67-78.

DOMINGO MORATALLA, T., Bioética y cine. De la narración a la delibe-


ración, Madrid: Editorial San Pablo/UPCo., 2010.

DOMINGO MORATALLA, T., “La banalidad del bien. De los derechos hu-
manos a la responsabilidad”, en GRACIANO GONZÁLEZ ARNAIZ (ed.),
Derechos humanos. Nuevos espacios de representación, Madrid: Escolar
y Mayo, Madrid, 2012, pp. 115-138.

DOMINGO MORATALLA, T., DOMINGO MORATALLA, A., Laicidad y


pluralismo religioso. Ricoeur y la edad hermenéutica de la moral. Valen-
cia: Hermes, 2013.

GRACIA, D., “Origen, fundamentación y método de la bioética”, en DE


ABAJO, F., FEITO, L., GRACIA, D., JÚDEZ, J., La bioética en la educación
secundaria, Madrid: Ministerio de Educación y Ciencia, 2007, 9-50.

GUTTMAN, A., THOMPSON, D., Democracy and Disagreement. Cam-


bridge, Mass.: Belknap Press of Harvard University Press, 1996.

GUTTMAN, A., THOMPSON, D., Why Deliberative Democracy? Prince-


ton (N.J.): Princeton University Press, 2004.

HABERMAS, J., Facticidad y validez. Sobre el derecho y el Estado de-


mocrático de derecho en términos de teoría del discurso. Madrid: Trotta,
1998;

HABERMAS, J., “Tres modelos normativos de democracia”, en La inclusión


172 Universidade Federal da Fronteira Sul
del otro. Estudios de teoría política, Barcelona: Paidós, 1999, pp. 231-246.

KYMLICKA, Ciudadanía multicultural, Barcelona: Paidós, 1996.

MACEDO, S., Liberal Virtues:Citizenship,Virtue, and Community in Liber-


al Constitutionalism, Oxford: Clarendon Press, 1990.

MACEDO, S., Diversity and Distrust. Civic Education in a Multicultural


Democracy. Cambridge/London: Harvard University Press, 2000.

-ZIMBARDO, P., El efecto Lucifer. El porqué de la maldad, Barcelona:


Paidós, 2008.

Ensino de Filosofia 173


11. PRÁTICA DOCENTE E HERMENÊUTICA:
diálogos em sala de aula
Eduardo Morello1
Elsio José Corá2

1. INTRODUÇÃO

A capacidade para o diálogo é algo inerente ao ser humano à me-


dida que este passa a ser compreendido como um ser de linguagem. A
linguagem, por sua vez, só existiria no diálogo, de modo que se somos
seres de linguagem, logo também seríamos seres comunicativos. Isto é,
dialógicos. Apesar disso, para sermos capazes do diálogo teremos de saber
ouvir o outro e com este construir ou encontrar uma linguagem comum, a
qual seria a pressuposição básica para toda a compreensão (entendimen-
to) entre as pessoas (professor-aluno, aluno-aluno e aluno-professor).
A partir desses pressupostos trata-se de compreender a prática do-
cente, tendo em vista a capacidade para o diálogo em sala de aula. Desse
modo, algumas questões podem orientar o texto: a) em que medida o diá-
logo pode ser considerado um atributo humano?; b) quando o ser humano
se torna capaz ou incapaz para o diálogo?; c) em que consistiria a capa-
cidade e a incapacidade para o diálogo em sala de aula?; d) quando pro-
fessor e alunos são capazes ou incapazes para o diálogo em sala de aula?

1 Mestrando em educação na Universidade de Passo Fundo (UPF). Professor de filosofia no sistema


estadual de educação do Rio Grande do Sul.

2 Doutor em Filosofia pela PUCRS. Professor do curso de filosofia da Universidade Federal da Fronteira
Sul (UFFS).
No intuito de equacionar as questões, divide-se o texto em duas par-
tes. A primeira diz respeito à capacidade e incapacidade para o diálogo,
na qual será abordada, inicialmente, a capacidade para o diálogo como
atributo humano, bem como as condições para a sua realização: o saber
ouvir e o encontro de uma linguagem comum; e, em seguida, interpreta-
se a incapacidade para o diálogo enquanto fenômeno técnico-científico e
social e, posteriormente, enquanto um fenômeno educacional, de modo a
analisar a incapacidade para o diálogo em sala de aula. A segunda parte
trata de discorrer sobre a possibilidade de superação da incapacidade para
o diálogo, a partir do próprio diálogo que se estabelece no ambiente da
sala de aula.

2. A (IN)CAPACIDADE PARA O DIÁLOGO

O ser humano possui um atributo natural, a linguagem. Para Ga-


damer (2000), Aristóteles já havia definido o ser humano como um ser
de linguagem. Entretanto, a história da filosofia sempre frisou a definição
acerca da qual o ser humano seria um animal racional, atribuída ao pró-
prio Aristóteles. Acontece que o estagirita, numa passagem de sua obra,
haveria definido o ser humano como possuidor de um logos. Esta palavra
foi traduzida (erroneamente) como razão, mas pode ser mais bem expressa
no termo linguagem/discurso.
Para Gadamer (2002, p. 173) “Apenas ao homem foi dado ainda o
logos, para que se informe mutuamente sobre o que é útil ou prejudicial, o
que é justo e injusto”. Nesse sentido, o ser humano possui um logos, que
o torna capaz de se comunicar com os outros, seja em relação ao seu agir
e pensar no cotidiano, seja em relação ao seu agir e pensar em instâncias
sociais, tais como política, economia, cultura, entre outras. Apesar de o
ser humano compreender-se como ser de linguagem, esta somente existe
no diálogo.
Ainda, conforme Gadamer (2000, p. 130):

Ainda que a linguagem seja codificável e te-


nha uma relativa fixação no dicionário, na gramática,
na literatura – a sua própria vitalidade, seu envelhe-
cimento e a sua renovação, o seu deterioramento e
o seu aperfeiçoamento até as formas mais elaboradas
176 Universidade Federal da Fronteira Sul
de estilo de arte literária, tudo isso vive do intercâm-
bio dinâmico daqueles que falam uns com os outros.
A linguagem só existe no diálogo.
A partir disso, ao compreender-se como um ser de linguagem, com-
preende-se o ser humano como capaz para o diálogo, pois a própria lin-
guagem manifesta-se no diálogo. Com isso, o modo pelo qual se vive a
linguagem resultaria da maneira pela qual se vive o diálogo. Nesse viés,
se a linguagem está em processo de deterioração, o que significa, então,
que o diálogo estaria se deteriorando; por outro lado, se a linguagem está
em processo de aperfeiçoamento, isso significa que o diálogo estaria se
aperfeiçoando.
Dessa forma, existe uma profunda imbricação entre linguagem e
diálogo, a ponto de um só existir no outro. Mas, algumas questões per-
manecem: em que consistiria essa capacidade humana para o diálogo?
Quando somos capazes para o diálogo?

2.1. CONDIÇÕES PARA A REALIZAÇÃO DA CAPACIDADE PARA O


DIÁLOGO: O SABER OUVIR E A LINGUAGEM COMUM

A capacidade humana para o diálogo, além da pressuposição do ser


humano enquanto ser de linguagem, manifesta-se no saber ouvir o outro.
Isso exige, entre outras coisas, superar o não ouvir ou o ouvir mal, que são
“o traço essencial de todos nós” (GADAMER, 2000, p. 139). Nesse senti-
do, não ouvir ou ouvir mal refere-se àquele que “permanentemente se es-
cuta a si mesmo, aquele cujo ouvido está, por assim dizer, cheio do alen-
to, que constantemente se infunde a si mesmo ao seguir seus impulsos e
interesses, não é capaz de ouvir o outro” (GADAMER, 2000, p. 138-139).
Saber ouvir o outro é ser capaz de superar o fato de escutar tão somente
a si mesmo, seguindo seus próprios impulsos e interesses, mas abrir-se e
receber aquilo que o outro também tem a nos dizer. Isso significa ir ao en-
contro do outro superando nossa situação monológica. Caso contrário, ao
não ouvir ou ouvir mal o outro, permanecemos na situação de monólogos,
na qual só escutamos a nós mesmos e, por isso, somente interessa-nos o
que temos a dizer ao outro e não o que este teria a dizer. Ao extremo, não
ouvir ou ouvir mal o outro pode significar a negação deste e, sem dúvida,
significaria nada mais que a incapacidade humana para o diálogo.

Ensino de Filosofia 177


Saber ouvir o outro significa, em última instância, ser capaz para o
diálogo ou “para ser capaz ao diálogo, há que saber ouvir” (GADAMER,
2000, p. 137). E mais: “fazer-se sempre de novo capaz para o próprio
diálogo, isto é, de ouvir o outro, parece-me ser a verdadeira e própria ele-
vação do ser humano em direção à humanidade” (GADAMER, 2000, p.
139). Sendo assim, o saber ouvir o outro consiste em um dos pressupostos
básicos para a realização da capacidade para o diálogo, assim como é
uma fonte de humanização do próprio ser humano.
Por outro lado, para sermos capazes para o diálogo também neces-
sitamos de uma linguagem comum, da sua construção ou encontro. Essa
linguagem comum serve para aproximar as pessoas à medida que elas fa-
lam uma mesma linguagem. Então, comunicar-se numa mesma linguagem
significa encontrar uma linguagem comum. Ao encontrar uma linguagem
comum as pessoas envolvidas num diálogo conseguem, com maior fa-
cilidade, chegar à compreensão. A compreensão, por seu turno, ocorre
quando “as pessoas tanto cria uma linguagem comum quanto também, ao
contrário, a pressupõe” (GADAMER, 2000, p. 139). Caso contrário, sem
uma linguagem comum, ou mesmo sem a procura dela, a compreensão se
torna muito difícil entre as pessoas. Desse modo, a compreensão/entendi-
mento “também se torna belo, onde se procura uma linguagem comum, e
ao final, encontra-se” (GADAMER, 2000, p. 139).
Diante disso, a capacidade para o diálogo pode ser considerada
um atributo humano à medida que o próprio ser humano é concebido
enquanto um ser de linguagem. Essa capacidade pressupõe saber ouvir
o outro e com este acontecimento se cria (senão, ao mesmo tempo) uma
linguagem comum que possibilita a compreensão intersubjetiva do encon-
tro. Para Gadamer (2000, p. 134), “um diálogo aconteceu quando deixou
algo dentro de nós”. Não se trata de termos experimentado algo novo, mas
a efetivação do diálogo pressupõe que “algo outro veio ao nosso encon-
tro que ainda não havíamos encontrado em nossa experiência própria de
mundo” (GADAMER, 2000, p. 134).
É exatamente o outro que nos traz esse “algo outro”, mas que so-
mente passará a fazer parte de cada um de nós, quando estivermos aberto
e receptivos a ele. Ao receber esse “algo outro” ele não só fica em nós, mas
também nos transforma. Isto é, “o diálogo possui uma força transformado-
ra. Onde um diálogo é bem-sucedido, algo nos ficou e algo fica em nós que
nos transformou” (GADAMER, 2000, p. 134). Esse algo que fica em nós e
178 Universidade Federal da Fronteira Sul
ao mesmo tempo nos transforma possibilita inferir que o diálogo se encon-
tra na vizinhança com a amizade. Pois, “só no diálogo (e no rir-um-com
-o-outro que é como um consenso transbordante sem palavras), amigos
podem encontra-se e construir uma espécie de comunidade na qual cada
um permanece o mesmo para o outro, porque ambos encontram o outro e
no outro se encontram a si mesmos” (GADAMER, 2000, p. 135).
Esse acontecimento do encontro possibilita o diálogo à medida que
um e outro são capazes de receber aquilo que cada um tem a dizer e, ao
mesmo passo, a pessoa do outro. Agora um e outro estão em comunhão,
em comunidade, na qual as experiências de cada um transcendem as sin-
gularidades e passam a ser comum a todos, pois algo de um e de outro,
vive em ambos. Resta ainda, refletir acerca de seus possíveis desdobra-
mentos pedagógicos, ao mesmo tempo, em que vai avançando na direção
de compreender a capacidade para o diálogo em sala de aula.

2.2. A INCAPACIDADE PARA O DIÁLOGO: DO FENÔMENO


TÉCNICO-CIENTÍFICO E SOCIAL AO FENÔMENO EDUCACIONAL

Gadamer inicia seu texto intitulado “A incapacidade para o diálo-


go”3, com um conjunto de questões, quais sejam:

Está desaparecendo a arte do Diálogo (Gesprä-


ch)? Não observamos na vida social de nosso tempo
uma crescente monologização do comportamento
humano? Isto é um fenômeno geral de nossa civili-
zação que está relacionado com o modo de pensar
científico-técnico da mesma? Ou são certas experi-
ências de auto-alienação e solidão no mundo moder-
no que calam a boca aos mais jovens? Ou é até uma
decidida rejeição de toda vontade de entendimento
e uma rebelião obstinada contra o entendimento fic-
tício reinante na vida pública que é lamentada pelos
outros como incapacidade para o diálogo? (GADA-
MER, 2000, p.129).

3 Utiliza-se o texto na versão publicada na obra conjunta de ALMEIDA, C. L. S. de; FLICKINGER, H. G;


ROHDEN, Luiz. Hermenêutica filosófica: nas trilhas de Hans-Georg Gadamer. Porto Alegre: Edipucrs,
2000. p.129-140.
Ensino de Filosofia 179
Esse conjunto de questões levantadas no início deste texto reflete
sobre a incapacidade para o diálogo como um fenômeno técnico-cien-
tífico e social da época contemporânea. Nesse sentido, tal incapacidade
não se refere exclusivamente a um fenômeno interno (pedagógico) próprio
do campo educacional, mas, sobretudo, um fenômeno externo (técnico-
científico e social). Por outro lado, a incapacidade para o diálogo pode
ser considerado um fenômeno pedagógico na medida em que o professor
tende a considerar-se o “dono da palavra”, por um lado, e a transformação
da educação em ensino de massa.
Enquanto um fenômeno técnico-científico e social, a incapacidade
para o diálogo resulta da ininterrupta invenção técnica de instrumentos
e mecanismos de comunicação e informação, ou, dito em termos mais
usuais, as tecnologias da informação e comunicação (TICs). Tal fenômeno
foi observado por Gadamer na conversação telefônica, a qual resultou no
empobrecimento comunicativo, uma vez que a comunicação se limitou
ao acústico. Ao telefone é quase impossível aquele “ouvir atento a dispo-
nibilidade aberta do outro” (GADAMER, 2000, p.131). Essa abertura ao
outro nunca ocorre na conversação telefônica, pois abrir-se a ele, median-
te ao diálogo corresponde

(...) àquela experiência, através da qual as pes-


soas cuidam de se aproximar umas das outras, que
se entra, passo a passo, mais profundamente em di-
álogo e ao final se encontra tão preso nele que se
criou uma primeira comunhão entre os parceiros do
diálogo que não se pode mais romper (GADAMER,
2000, p.131).
Essa proximidade entre as pessoas e, por conseguinte, a possibili-
dade de comunhão, somente é vivida pelos parceiros do diálogo, jamais
pode ser vivida ao telefone. Isso porque ao telefone a aproximação entre
as pessoas acontece por meio da proximidade artificial, criada pelo fio te-
lefônico. Nesse sentido, o avanço técnico-científico da comunicação e da
informação4 tem facilitado a comunicação humana, mas, ao mesmo pas-
so, essa comunicação vem sendo empobrecida cada vez mais. Gadamer

4 Sobre isso Gadamer faz uma espécie de prognóstico: “A técnica moderna de informação, que
talvez somente se encontre nos inícios de sua perfeição técnica, se se deve crer nos profetas técnicos,
tornará supérfluos livros e jornal e com maior razão o autêntico ensinamento que cresce de encontros
humanos, que pode surgir dos contatos humanos” (GADAMER, 2000, p. 131).
180 Universidade Federal da Fronteira Sul
destacou a conversação telefônica, pois, talvez fosse, em sua época, o
avanço mais significativo em termos comunicação entre as pessoas. Hoje,
contudo, diante dos avanços na área das tecnologias da informação e co-
municação certamente poderíamos recolocar um conjunto de questões
acerca de tais tecnologias que têm contribuído ou não para o encontro
intersubjetivo com o outro, mediante o diálogo.
Já a incapacidade para o diálogo enquanto um fenômeno pedagó-
gico refere-se de certo modo à função do professor, ensinar, e a transfor-
mação da educação em um ensino de massa. Essa atribuição histórica do
professor como responsável em ensinar coloca-o no limiar entre a capa-
cidade e a incapacidade para o diálogo, o qual, não poucas vezes, acaba
cedendo a esta, pois ele crê que, como sendo o único responsável em en-
sinar, deve sempre ser o que mais fala ou o único a falar em sala de aula.
A sua crença está, por vezes, fundada no mito da transmissão, em que os
conhecimentos (conteúdos) somente podem ser ensinados pelo professor
mediante a própria transmissão e aprendidos somente pelos alunos.
Desse modo, o professor torna-se o único detentor da palavra,
pois, mediante esta, ele é capaz de transmitir os conhecimentos (con-
teúdos) aos estudantes. A palavra aqui é considerada um meio ou um
instrumento de transmissão de conhecimentos5. Nesse sentido, a palavra
não opera o pensamento, apenas serve como um meio para transmiti-lo.
Assim, o professor que acredita que o ensino somente pode ser realizado
mediante a transmissão de conhecimentos (conteúdos) aos alunos crê
também que somente ele pode ou deve falar, o que o torna incapaz para
o diálogo.
Por outro lado, a transformação da educação em ensino das mas-
sas não só parece ter favorecido a democratização da educação, mas, ao
mesmo tempo, tornou o ensino precarizado, assim como estabeleceu uma
barreira quase intransponível ao diálogo. Essa barreira ao diálogo consiste
na agregação de um número considerável de estudantes numa mesma sala
de aula, o que acaba dificultando ou mesmo impossibilitando o diálogo;
este, para que possa ocorrer autenticamente, necessita de um contato, de
um encontro, de uma intimidade que acontece somente num círculo pe-
queno de pessoas. Contudo, o círculo de pessoas na maioria das salas

5 Ao contrário, a palavra não pode ser tomada como um meio ou instrumento do conhecimento,
ou mesmo do pensamento, pois ela é própria expressão do pensamento, ou seja, somente podemos
pensar dentro de uma linguagem.
Ensino de Filosofia 181
de aula tem se ampliado consideravelmente, a ponto de ser impossível o
diálogo. Nas palavras de Gadamer (2000, p. 136):

Ao final se encontra na situação do ensino, no


momento em que este se amplia mais além da inti-
midade de um diálogo no pequeno círculo, uma di-
ficuldade insuperável para o diálogo. Já Platão sabia
disto; um diálogo nunca é possível com muitos de
uma vez ou também na presença de muitos.
A realidade atual das salas de aula formada por um grande círculo
de pessoas colabora, enormemente, com a incapacidade para o diálo-
go. Isso não significa que permaneceremos incapazes para o diálogo no
ambiente de sala de aula, mas que o próprio exercício do diálogo em tal
ambiente é capaz de superar essa incapacidade, como veremos adiante.
Além disso, a incapacidade para o diálogo tende a se manifestar
mais precisamente no fato de não confessarmos a própria incapacidade,
mas de atribuí-la ao outro. Para Gadamer (2002, p. 138), a incapacidade
para o diálogo

(...) tem a forma normal de não se ver, que não


se vê esta incapacidade em si mesma, mas no outro.
Diz-se: “contigo não se pode falar”. E o outro tem
então a sensação ou também a experiência de não
ser compreendido. Isto faz a pessoa emudecer de an-
temão ou até apertar os lábios com amargura. Neste
sentido, a incapacidade para o diálogo” é sempre,
em última análise, o diagnóstico feito por alguém
que ele mesmo não se põe no diálogo, ou seja, que
não consegue chegar ao diálogo com o outro. A in-
capacidade do outro é sempre, ao mesmo tempo, a
incapacidade do primeiro.
No âmbito das relações de sala de aula, isso parece ser bem comum
à medida que sempre se atribui à incapacidade para o diálogo há somente
um dos polos das relações professor-aluno, aluno-aluno e aluno-profes-
sor. Desse modo, professores julgam que seus alunos são incapazes para
o diálogo, enquanto os alunos afirmam serem seus professores incapazes
para ele, ou ainda julgam serem seus colegas incapazes para tal. Com isso,

182 Universidade Federal da Fronteira Sul


um e outro atribuem a própria incapacidade para o diálogo ao seu polo
correspondente na relação pedagógica.
A incapacidade humana para o diálogo pode também ser compre-
endida em dois sentidos: a incapacidade subjetiva (incapacidade para ou-
vir o outro) e a incapacidade objetiva (a inexistência de uma linguagem
comum). A incapacidade para ouvir pode ser considerada um fenômeno
comum entre os seres humanos, pois estamos muito mais acostumados a
escutar a nós mesmos, ou seja, a ouvir nossos apelos, impulsos e interesses
em detrimento da escuta atenta em relação ao outro. Assim, não ouvir ou
ouvir mal o outro é muito mais comum a nós do que se pode imaginar.
Em termos pedagógicos, não ouvir ou ouvir mal tende a se fazer
presente nas salas de aula. Isso porque os professores nem sempre estão
abertos para ouvir seus alunos e, não poucas vezes, acabam ouvindo mal,
pois estão concentrados em si mesmos e, particularmente, na pressa em
ensinar, sobretudo transmitir aquele conjunto de conteúdos presentes nos
programas de ensino. A expressão cabal disso corresponde à frase pronun-
ciada por muitos professores: “É preciso vencer os conteúdos”. Por outro
lado, os alunos também tendem a não ouvir ou a ouvir mal, sejam seus
colegas de classe, seja o próprio professor. De modo que nas discussões
em sala de aula muitos não escutam o que seu colega tem a dizer e, em
alguns casos, pouco escutam o professor. Embora sua atenção à discussão
possa ocorrer quando o professor lhe faz alguma pergunta, sua desatenção
retorna após ter respondido à pergunta. Disso emergem alguns prejuízos
ao diálogo em sala de aula, dentre eles, o fato da discussão não avançar.
Daí que pode acontecer de não compreendermos o que o outro falou, não
só pelo fato de, às vezes, não ouvi-lo, mas também de ouvi-lo mal.
Dessa forma, “se não escutamos com atenção o sentido do que
está sendo dito, mas apenas seguimos os componentes menos essenciais
da conversação, provavelmente entenderemos mal aquele que está falan-
do” (LIPMAN; OSCANYAN; SHARP, 1997, p. 47). Assim, ao não ouvir
ou ouvir mal em sala de aula, professor e aluno tornam-se incapazes para
diálogo.
Já a incapacidade objetiva, a inexistência de uma linguagem comum
é crescente, devido à adaptação atual a situação monológica da civilização
científica. Tal situação provoca a deterioração do diálogo e, consequen-
temente, leva a deterioração da própria linguagem, pois, como salienta-
mos, a linguagem só existe no diálogo. Nesse viés, ao enfraquecermos o
Ensino de Filosofia 183
diálogo, concomitantemente, se enfraquece a linguagem. Assim, a lingua-
gem não mais vivida no diálogo e, portanto, no encontro intersubjetivo
com o outro, além de enfraquecida perde seu aspecto comum, ou seja, as
pessoas não falam mais uma mesma linguagem e tampouco estão dispos-
tas a procurarem por uma linguagem comum, a qual é condição para a
compreensão. Isso provoca um distanciamento entre as pessoas, ao invés
de aproximá-las (condição para o verdadeiro diálogo). Ou seja, “o distan-
ciamento entre as pessoas manifesta-se no fato que elas não falam mais a
mesma linguagem” (GADAMER, 2000, p. 139).
Essa incapacidade objetiva, do ponto de vista da sala de aula, ma-
nifesta-se na medida em que professor e aluno não falam uma mesma
linguagem. No caso do professor de filosofia, ao realizar sua função de en-
sinar pode valer-se de uma linguagem, por exemplo, estritamente técnica
e acadêmica, na qual os alunos não estariam familiarizados. Ocorre com
isso um desencontro intersubjetivo entre professor e aluno, bem como a
incompreensão do aluno em relação aquilo que lhe é ensinado, pois não
há uma linguagem comum. Em sala de aula se estabelece, pois, um distan-
ciamento entre ambos, de modo a criar uma situação monológica, que se
manifesta na incapacidade para o diálogo.

3. O DIÁLOGO ENQUANTO POSSIBILIDADE DE


SUPERAÇÃO DA PRÓPRIA INCAPACIDADE DIALOGAL EM
SALA DE AULA

Por um lado, a incapacidade para o diálogo manifesta-se quando


atribuímos ao outro a incapacidade que na verdade refere-se à nós e, por
outro lado, manifesta-se na incapacidade de ouvir ou ouvir mal o outro
(incapacidade subjetiva) e na falta de uma linguagem comum (incapacida-
de objetiva). Essa incapacidade se manifesta também: no ambiente de sala
de aula na medida em que o professor compreende sua tarefa de ensinar
enquanto transmissão unilateral de conteúdos; quando há a massificação
do ensino, ou seja, o elevado número de alunos por sala de aula; o não
ouvir ou ouvir mal entre professor-aluno e aluno-aluno; e a inexistência
de uma linguagem comum em sala de aula. Em decorrência disso, poder-
se-ia perguntar: em que medida se pode superar a incapacidade para o
diálogo em sala de aula?

184 Universidade Federal da Fronteira Sul


A superação da incapacidade para o diálogo em sala de aula é pos-
sível com a realização do próprio diálogo. Essa possibilidade é expressa
por Gadamer (2000) ao falar do diálogo terapêutico6 “O específico no diá-
logo terapêutico psicanalítico é, pois, que se propõe curar a incapacidade
para o diálogo, que constitui aqui a própria enfermidade, sem seguir outra
via que não seja o diálogo mesmo” (GADAMER, 2000, p. 137). Sendo
assim, o diálogo é condição de possibilidade para a superação da inca-
pacidade dialogal em sala de aula. Essa superação ocorre na medida em
que tanto professor quanto os alunos se abrem um ao outro, de modo a
encontrar uma linguagem comum e ouvir atentamente o que o outro tem
a dizer. Isso possibilita, portanto, que o diálogo aconteça entre professor
-aluno, aluno-aluno e aluno-professor.

Referências

BENINCÁ, E. O diálogo como princípio pedagógico. In: FÁVERO, A. A.;


TROMBETTA, G. L.; RAUBER, J. J. (Coord.) Filosofia e racionalidade:
Festscrift em homenagem aos 45 anos do curso de filosofia da Universida-
de de Passo Fundo. Passo Fundo: Ed. Universidade de Passo Fundo, 2002.

CORÁ, E. J; KRASSUSKI, J. A. A Pertinência do processo ensino-apren-


dizagem no ensino de filosofia. In: NICOLAY, D. A; VOLTOLINI, C. H;
CORÁ, E.J (Org.). Educação básica e práticas pedagógicas: licenciaturas
em debate. Passo Fundo: UPF, 2012. p. 74-93.

DALBOSCO, C. A. Incapacidade para o diálogo e agir pedagógico. In:


_______. Pedagogia filosófica: cercanias de um diálogo. São Paulo: Pauli-
nas, 2007. p. 53-78 (Educação em foco)

FÁVERO, A M. O diálogo como encontro hermenêutico. In: FÁVERO, A.


M. et all. Diálogo & investigação: perspectivas de uma educação para o
pensar. Passo Fundo: Méritos, 2007. p. 43-62

FLICKINGER, H-G. A caminho de uma pedagogia hermenêutica. Campi-


nas, SP: Autores Associados, 2010. (Coleção educação contemporânea)

6 O autor trabalha em uma das partes de seu texto, Incapacidade para o diálogo, três tipos de diálogo,
a saber, negociação oral, diálogo terapêutico e diálogo confidencial (cf. GADAMER, 2000, p. 136-
140).
Ensino de Filosofia 185
GADAMER, H-G. A incapacidade para o diálogo. In: ALMEIDA, C. L. S.
de; FLICKINGER, H. G; ROHDEN, Luiz. Hermenêutica filosófica: nas tri-
lhas de Hans-Georg Gadamer. Porto Alegre: Edipurs, 2000. p.129-140
GADAMER, H-G. Verdade e método II: complementos e índice. Petrópo-
lis, RJ: Vozes, 2002.
GARCIA, C. B; FENSTERSEIFER, P. E. Diálogo na política e na educação
republicana. Disponível em: <http://www.revistas.unilasalle.edu.br/in-
dex.php/Dialogo/article/view/193/207> Acesso em: 22 out. 2013.

LIPMAN, M; OSCANYAN, F. S.; SHARP, A. M. A filosofia na sala de aula.


2.ed. São Paulo: Nova Alexandria, 1997.

186 Universidade Federal da Fronteira Sul

You might also like