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yewmcoenlesacroalcr-(emaceccr bac) para uma vida de maior santidade e apreco pelas verdades divinas Mauro Meister Lei e Graga, Mauro Fernando Meister © 2003, Editora Cultura Cri Todos 0s direitos sao reservados. 1° edigéo em portugués — 2003 3.000 exemplares Revisio Madalena Torres Editoragaio Rissato Capa Magno Paganelli Publicagéio autorizada pelo Conselho Editorial: Claudio Marra (Presidente), Alex Barbosa Vieira, André Luis Ramos, Mauro Fernando Meister, Otdvio Henrique de Souza, Ricardo Agreste, Sebastido Bueno Olinto, Valdeci Santos Silva EDITORA CULTURA CRISTA Rua Miguel Teles Junior, 394 — Cambuci 01540-040 — Sao Paulo — SP - Brasil C.Postal 15.136 — Sao Paulo — SP - 01599-970 Fone (0°°11) 3207-7099 — Fax {0°*11) 3209-1255 www.cep.org.br — cep @cep.org.br Superintendente: Haveraldo Ferreira Vargas Editor: Claudio Anténio Batista Marra AGRADECIMENTO E* trabalho, ainda que pequeno, demorou um bom tempo para ser terminado. Comecou com um estudo e se desenvolveu até o produto que o leitor tem em maos. Até mesmo pela sua duragao, um bom numero de pessoas péde se envolver nele. Agradeco a um grupo de seis colegas muito proximos que estiveram ao meu lado quando ele comegou. Muito do pouco que sei, devo a eles, pelo seu ensino e convivéncia. Aos seis o meu grande aprego. Agradeco aos professores ¢ equipe do Reformed Theological Seminary, Orlando, que me ajudaram com idéias e estimulo duran- te o periodo de nascimento dessas idéias. De maneira particular agradego ao irmao Solano Portela, que atenciosamente leu e sugeriu muitas coisas que puderam melhorar ocontetido do livro. Nao posso deixar de agradecer a meus pais, Arthur e Léa, pela semente da fé plantada em meu coragaio e suas oracdes cons- tantes sobre minha vida. Soli Deo Gloria DEDICATORIA O primeiro fruto escrito de meu trabalho dedico a minha esposa, Denise, que muito ilustra a graca de Deus sobre minha vida. SUMARIO Prefacio... Introdugao 1. Estamos sob a Lei ou sob a Graga? O que élei? ... O que é graca 2. Como devemos entender e usar a lei O Pacto como “bergo da lei” . A “lei” antes da “lei” Alei “interior” Alei wn... 3. De que lei estamos falando’ Leicivil Alei moral . Quais partes da lei e devemos aplicar hoje? E como? 4. Como a lei moral opera nos nossos dias? ..........0+6 O primeiro uso da lei (Inst. 2.7.6-9)... O segundo uso da lei (Jnst.2.7.10-11) . O terceiro uso da lei (Jnst. 2.7.12-13).. 6 + Lei e Graca 5. As confusdes e extremos . O Antinomismo . OLegalismo . Sola Gratia A Teonomia 6. Cristo e a lei Eu vim cumprira le’ Nao vim para revogar . Tudo sera cumprido . Esta é a correta interpretago .... Como Cristo obedeceua lei civil Como Cristo cumpriua lei cerimonial Como Cristo viveu a lei moral ... Cristo é a substancia da lei moral Cristo, a lei eo evangelismo 7. A leiea santificacao ........ Conclusio Recursos Bibliograficos . Notas 72 72 77 78 79 84 85 86 87 89 90 90 96 97 98 102 107 109 110 eo e Prefacio Rescatanpo A VisAo Bisuica pa Le! E pa GRacA A dissociagao entre a lei e a graga tem sido uma das caracteristicas da igreja evangélica dos nossos dias. As frases seguintes constituem 0 ensinamento tipico que estamos acostumados a ouvir: Na Lei: Para nao adulterar, 0 meio utilizado foi o apedrejamento. Na Graga: Para nao adulterar, o meio utilizado foi o amor a Cristo. Na Lei: Para contribuir, 0 meio utilizado foi o medo do devorador. Na Graga: Para contribuir, 0 meio utilizado & 0 amor a Cristo, Essas palavras parecem piedosas e¢ cristas, mas, na realidade, roubam os ficis da verdadeira apreciago tanto da lei como da graga. Primeiro confundem as distingGes biblicas da lei e contrapdem a gra- ga a aspectos ja cumpridos desta, esquecendo, entretanto, aqueles que permanecem validos. Segundo, colocam a graga como se fosse uma aprovacio tacita da parte de Deus para uma postura comporta- mental subjetiva ¢ aleatéria, na qual definimos o “amar a Cristo” como uma proposi¢ao indescritivel, que age meramente como ele- mento de persuasao, contrariando a objetividade e clareza do ensinamento de Jesus sobre este tema: “Se me amardes, guardareis os meus mandamentos” (Jo 14.15). O contraste ¢ aprofundado a cada passo desses ensinamentos, via de regra enraizados em uma compreensao teolégica dispensacio- nalista. Um autor contrastou a lei e a graca da seguinte forma: E isto que Deus quer revelar a sua igreja. Voce vive debaixo daGRACA endo debaixo da LEI. Porque quando se faz uso da lei estando em graga, para aleangar certo objetivo, mesmo que certo, mas se o meio utilizado estiver errado, 0 resultado ¢ a separagao de Cristo e 0 cair da graca. Assim, 0 préprio poder da graga salvadora de Cristo é diminu- ido, aventando-se a possibilidade de uma gueda da graga, quando atencgdo é dada a lei. Nada mais distante das verdades biblicas. Nada mais contrario intengao do nosso Soberano Criador e Redentor, que nos deu com tanta propriedade a sua lei para que conhecéssemos a sua vontade proposicional para conosco — como trilha de vida a ser caminhada 8 + Lei e Graga debaixo das misericérdias divinas — tanto nos seus aspectos temporais do Antigo Testamento, como no aspecto permanente de sua lei moral. Nada mais estranho ao conceito da graga divina — transforma-la em uma forga conflitante daquilo que emana da natureza divina, em vez de compreendé-la como uma béngao triunfante que resgata pecado- res por serem quebradores de uma lei que é santa, justa e boa. E exatamente esse contexto que faz com que o livro Lei e Graga, do Dr. Mauro Meister, seja tao pertinente e necessario. Ele nao somente responde com acuidade ds perguntas freqiientes que surgem, nesse dilema artificial tragado pelo evangelicalismo dos nos- sos dias, como também analisa a fundo as diferentes nuances e as- pectos da representagao escrituristica da lei de Deus. Alicergado na teologia dos reformadores e apresentando uma visdo calvinista desse tema, o autor vai até 4 Histéria mostrando como distingdes biblicas importantes sobre o uso da lei auxiliam a igreja na compreensao da questao, apresentando aos fiéis uma for- ma valida e eficaz de pautarem suas vidas pela vontade prescritiva do nosso Deus. O Dr. Mauro Meister analisa ainda as reagdes 4 compreensao ‘da lei surgidas no seio da igreja, apresentando os efeitos de cada um dos posicionamentos na satde doutrinaria de cada segmento. A for- ma como Nosso Senhor Jesus Cristo interagiu com a lei de Deus & especialmente pertinente a esse debate. Varias paginas sio dedicadas a essa apreciagao, de muito valor didatico. A terceira pessoa da santissima trindade, recebe destaque espe- cial, no final do livro. Ali, notamos 0 papel todo especial da lei na santificagao operada pelo Espirito Santo de Deus, na vida dos redimidos. Recomendamos com intenso entusiasmo este livro a igreja, certos de que tal estudo ira fundamentar uma vida de maior santida- de e aprego pelas verdades divinas, ao mesmo tempo em que atende a necessidade corrente de obras exegeticamente sdlidas, de teologia reformada, por autores nossos — que compreendem a situagao ecle- sidstica de anorexia espiritual que atravessamos. Que esse estudo s6lido produza fruto abundante nao somente no intelecto, mas, prin- cipalmente no fervor e comunhdo real que deve ser experimentado na obra de disseminagao do evangelho de Cristo. Pb. Solano Portela INTRODUCAO m cristao verdadeiro jamais deixaria de dizer que o crente vive debaixo da graga de Deus, e tio somente pela graga. Essa visdo clara ensinada pelos reformadores em oposi¢o aos erros da Igreja Catolica trouxe um novo folego a pregagao do evan- gelho de Cristo desde ent&o. Foi como a descoberta do livro da lei nos tempos do rei Josias (2Rs 22.8-13), uma re-descoberta da verdade que estava oculta. O evangelho estava “perdido” no meio das tradigdes da igreja daquela época ¢ a Reforma foi o movimen- to usado por Deus para “re-descobrir” a sua verdade ao seu povo. No entanto, da mesma forma como essa re-descoberta no se deu em um sé instante, mas foi um processo gradativo, com o tempo, as verdades do evangelho come¢aram mais uma vez a serem pau- latinamente cobertas pelo erro doutrinario, pela énfase demasiada em aspectos nao centrais e pela falta de entendimento das doutri- nas centrais das Escrituras, Atualmente nos encontramos nesse es- tado nebuloso em que conceitos e tradigdes angariadas ao longo dos anos confundem, em muitas areas, a visdo biblicae cristalina do evangelho. Uma dessas areas é justamente a relagdo entre a lei ea graca de Deus. Neste livro tentamos esclarecer qual é essa relac&o dentro da perspectiva biblica. 10 + Lei e Graga Esse foi um dos problemas mais sérios enfrentados pelos cris- tos da era apostdlica. Qual foi 0 assunto em pauta do primeiro concilio cristéo conforme o registro de Atos 15? Exatamente a relagdo entre a lei de Moisés e a graga de Deus como era ento apresentada pelos apdstolos. Os apéstolos e presbiteros de Jeru- salém se reuniram para debater este problema, objetivando chegar auma conclus4o. Primeiro apareceu um grupo dizendo que se os novos crentes nao fossem circuncidados nao poderiam ser salvos (At 15.1). Paulo e Barnabé entraram em grande contenda com os que mantinham essa posi¢ao e decidiram recorrer aos anciéos em Jerusalém (At 15.2). Quando os apéstolos chegaram a Jerusalém, um grupo de crentes provenientes do farisaismo insistiu na questao: para serem salvos os gentios precisavam ser circuncidados e ob- servar a lei de Moisés (At 15.5). Reuniram-se os apéstolos e presbiteros. Pedro tomou a palavra e deu o seu parecer: os gentios so purificados pela fé (At 15.9); tanto os judeus como os gentios sao salvos pela graca do Senhor Jesus (At 15.11). A multidao fi- couem siléncio, Paulo e Barnabé tomaram a palavra e contaram as maravilhas que Deus estava realizando entre os gentios (At 15 12). Tiago entao falou ao concilio interpretando 0 texto de Amés 9.11- 12. Sua concluso e parecer foram: Pelo que, julgo eu, nao devemos perturbar aqueles que, dentre os gentios, se convertem a Deus, mas escrever-lhes que se abstenham das contaminagdes dos idolos, bem como das relagGes sexuais ilici- tas, da carne de animais sufocados e do sangue. Porque Moisés tem, em cada cidade, desde tempos antigos, os que 0 pregam nas sinagogas, onde é lido todos os sdbados, (At 15.19-21) Esse parecer, aprovado unanimemente pelo concilio, foi en- viado em forma de carta a Antioquia por maos de Paulo, Barnabé, Barsabas e Silas. Ensina-nos Lucas que a igreja se alegrou grandemente com aquele parecer. Foi o primeiro debate publico da igreja sobre os temas lei e graca, ou lei e evangelho. Mas este nao seria o fim das controvérsias em torno da rela- go entre a lei e a graga. O assunto ainda aparece outras vezes nos escritos do Novo Testamento. Paulo o retoma em suas epistolas. O mesmo 0 faz Tiago. Introdugdo + $11 Porque o assunto continuava a levantar perguntas? O que é que estava em jogo quando se discutia a relagao entre a lei e a gra¢a ensinadas nas Escrituras? Quais sao os grandes proble- mas encontrados? De um lado, encontramos no meio do povo de Deus grupos que enfatizam o papel da graca de tal forma que se esquecem do propdsito de Deus ao dar a sua lei ao seu povo. Alguns se tornam to extremos em sua posig&o que chegam a ser acusados de liber- tinos. Do outro lado, encontramos grupos que se apegam 4 lei de tal modo que parecem, literalmente, escravos dela. Vivem debaixo da lei de tal forma que fica dificil enxergar onde a graca de Deus opera em suas vidas. Estes sAo acusados de estarem voltando a salvagao pelas obras e de pratica do legalismo. Qual é a perspec- tiva biblica sobre 0 assunto? Como chegar ao equilibrio? As res- postas a essas questdes vao além da apresentacdo de uma formu- lacao teolégica, mas, como toda teologia séria, afetam todo o modo de vida daqueles que as buscam. Minha inteng&o ao escre- ver sobre este assunto é trazer a perspectiva biblica e confessional sobre o assunto ao leitor comum, nao ao tediogo ou académico. Confesso ter levado um bom tempo para entender essa relag4o na perspectiva correta que a teologia reformada nos legou. Nao que haja um pensamento unico e absoluto sobre a matéria entre os reformadores e reformados. Mas fica claro e evidente que entre os teformados do passado, conforme expressaram seu pensamento nas confiss6es histéricas, havia uma certa concordancia sobre o papel da graga e a sua relacdo coma lei. Depois de estudar e entender, percebi que a visdo biblico- reformada ajuda o cristdo a desfrutar de ambas as coisas: do be- neplacito da graca e do auxilio da lei, cada uma de acordo com o seu papel, conforme revelado na propria Escritura. Deixar de en- tender esta relacdo é perder a esséncia do ensino biblico. Ainda que a lei ea graga de Deus sejam distintas, sdo inseparaveis. De nossa visao sobre a lei depende a nossa visdo sobre a graga. Um famoso tedlogo norte-americano — J. Gresham Machen ~ escre- veu, em 1946, respeito desta relagao: 12 + Lei e Graga Assim sempre é: uma visio pequena da lei sempre traz 0 legalismo a religido; uma visao ampla da lei faz do homem um que busque a graga. Queira Deus que esta visio ampla possa novamente prevalecer.' _l- ESTAMOS SOB A LEI OU SOB A GRACA? reio que a pergunta no titulo do capitulo reflete um dos maiores problemas de interpretagao das Escrituras para o novo crente em Cristo e, infelizmente, para muitos crentes anti gos tam- bém. Ensina-se com muita naturalidade que o Antigo Testamento é aquela parte da Biblia que corresponde a lei e o Novo Testa- mento a parte que ensina sobre a graga de Deus. Essa associa- ¢4o parece funcionar como um elemento chave, quase que “na- tural”, para a interpretagao da relagdo entre o Antigo e Novo Testamento. No entanto, essa interpretagdo, que a primeira vista parece natural, é, na verdade, um pensamento falacioso, grandemente enganoso e que traz consigo muitos problemas. Posso dizer isto depois de ter “testado” varios grupos de pes- soas, seja de alunos de Escola Dominical, estudantes de seminarios ou estudantes de pés-graduacao, com a seguinte questo: Como 14. + = Leie Graca associar lei, graca, Antigo Testamento e Novo Testamento? A res- posta, quase que invariavelmente, tem sido a seguinte relagao: LEI = Antigo Testamento GRACA © Novo Testamento Essa resposta é sintomatica: ela reflete um entendimento con- fuso do ensino biblico acerca da lei e da graga de Deus apresenta- do na Biblia. E verdade que a pergunta em si nao ajuda muito porque limita o horizonte do ouvinte a esses quatro elementos como se eles tivessem uma relacaéo mecanica, em que os pares precisam ser alinhados, como no grafico acima. Mas 0 fato é que muitos leitores estudam a Biblia com essa relac¢do em suas mentes: associam a lei como um elemento que pertence exclusivamente ao periodo do Antigo Testamento ea graga como elemento neotestamentario. Quando paramos para pensar nas implicagGes dessa associagao, podemos perceber que ela é problematica. Se o Antigo Testamento é exclusivamente o periodo da lei, como responder as seguintes questées: + Houve salvagdo nos tempos do Antigo Testamento? + Se houve, como foram salvos os crentes que viveram naquele periodo ja que ninguém, segundo o Novo Testamento, é salvo pelas obras da lei? Ora, qualquer pessoa que ja leu 0 livro de Hebreus sabe que os “santos” do Antigo Testamento eram, de fato, crentes e salvos. E foram eles salvos pelas obras da lei? Claro que nao, foram sal- vos pela graga por meio da fé em Cristo. Portanto, certamente, a graga de Deus nao é alguma coisa exclusiva do Novo Testamento e ausente no Antigo Testamento. Quando o crente no Antigo Tes- tamento depositava a sua fé em Iavé? e naquilo que Iavé havia ordenado e prometido no Tabernaculo, ele estava dizendo que o seu salvador era Cristo, que a sua redengdo estava na obra do Messias prometido. Tenho, as vezes, a impress4o de que alguns chegam a pensar que havia uma outra forma de salvagao no perio- do do Antigo Testamento, completamente distinta da pessoa de Cristo, ao contrario do que afirma Atos 4.11,12: Estamos sob a lei ou sob a graca? * 15 Este Jesus ¢ pedra rejeitada por vés, os construtores, a qual se tornou a pedra angular. E nao ha salva¢gaéo em nenhum outro; porque abaixo do céu no existe nenhum outro nome, dado entre os homens, pelo qual importa que sejamos salvos. Em tempo algum existiu ou existira salvagao fora da pessoa e obra de Cristo! Ao comentar Hebreus 10.1 —“Ora, visto que a lei tem sombra dos bens vindouros, nado a imagem real das coisas, nunca jamais pode tornar perfeitos os ofertantes, com os mesmos sacrificios que, ano apés ano, perpetuamente, eles oferecem”, Calvino afirma: “Sob a lei foi apontado em linhas rudes e imperfei- tas o que no evangelho é demonstrado em cores vivas e grafica- mente distintas... Para ambos o mesmo Cristo é exibido, amesma justificagao, santificag4o e salvacao; e a diferenga esta apenas na maneira de pintar ou de demonstrar.” Mas ainda assim temos que perguntar, onde se encaixa a lei do Antigo Testamento com relagdo ao crente? Nesse campo, mui- tas outras perguntas podem ser levantadas: + Como devemos entender a lei hoje? + Para que ela serve? + Pode a lei ajudar os crentes a enlenderem a vontade de Deus? + Pode a lei servir-nos no processo da santificagaio? As respostas a essas perguntas sao fundamentais ao proces- so de compreensio da Biblia e de nossa vida crista. Penso que grande parte das conclusdes erradas a esse res- peito so fruto do estudo apressado, descontextualizado e mal ori- entado de textos do Novo Testamento. A falta de um método de interpretacdo coerente que considera o todo da revelagao de Deus nas Escrituras, causa esse tipo de erro. As Escrituras nos foram dadas para serem lidas e entendidas como um todo, e nao em partes isoladas e estanques. Ja me depa- rei com livros que ensinam a estudar a Biblia dizendo que a parte mais importante da Biblia ¢ o Novo Testamento e que o Antigo Testamento pode ser usado mais por “interesse hist6rico”. Esse tipo de visio certamente nfo ajuda o estudante a ter uma visdo equilibrada do ensino biblico sobre a lei ea graga. 16 © Lei e Graga Dentre muitos textos que podem ser mal compreendidos, observe alguns que podem ser mal interpretados e levar 0 leitora conclusées errdneas sobre a relagdo entre lei e graga. Joao 1.17 .. a lei foi dada por intermédio de Moisés; a graga e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo. Ao ler esse texto fora do contexto, a primeira conclusao tira- da é que a graga de Deus sé passa a operar depois da vinda de Cristo, ou ainda, que lei e graga sfio excludentes. Para muitos, a graca veio como um substituto da lei e Jesus Cristo como um subs- tituto de Moisés. Porém, essa interpretagdo ndo é sustentavel di- ante do contexto e da teologia biblica como um todo. E certo que Joao contempla muitos contrastes existentes entre 0 periodo antes da vinda de Cristo (a antiga dispensago) e o tempo que agora é chegado (a nova dispensagao); entre uma das principais figuras da antiga dispensag4o (Moisés) e aquele que veio cumprir plenamen- te as promessas feitas anteriormente (Jesus). Mas isto nao implica em contraste e exclusdo, mas em complementaridade e plenitude: Cristo veio fazer 0 que a lei e Moisés nao podiam fazer. A lei era uma figura de Cristo, uma sombra, que agora é manifestada na sua verdade plena. A vinda fisica de Cristo e sua encarnagao nao limi- tam a sua obra eterna. A sua graca ja era operante nos tempos de Moisés ¢ antes dele. Galatas 2.16 . 0 homem nio é justificado por obras da lei, e sim mediante a fé em Cristo Jesus, também temos crido em Cristo Jesus, para que féssemos justificados pela fé em Cristo e nao por obras da lei, pois, por obras da lei, ninguém sera justificado. Uma leitura rapida do texto de Galatas sem 0 seu contexto faz com que aquele que lé coloque em oposi¢iio as “obras da lei” a “fé” (representando respectivamente a lei e a graga). Ora, se ja existe um pré-entendimento que associa lei ao periodo do Antigo Testamento e a fé e graga ao tempo de Jesus Cristo (Novo Testa- mento), e normalmente ha, a conclusdo mais logica desse leitor Estamos sob a Lei ou sob a Graga? + 17 sera que a salvag4o, como nos a entendemos, existe somente de- pois da vinda de Cristo. Sem considerar 0 todo da teologia, fica impossivel chegar a uma conclusao diferente. Assim sendo, parece que no Antigo Testamento nao ha verdadeira ou permanente sal- vagao, pois como alguém poderia ser justificado no tempo da lei? Mas, certamente no era essa a inten¢ao do apéstolo Paulo ao escrever aos Galatas. Volto ao que considero o problema principal nesse tipo de interpretagao: associar a lei ao Antigo Testamentoe a graca ao Novo Testamento. Nosso estudo deve ser orientado levando em consideragao 0 contexto e as perguntas que devemos fazer ao texto. Assim, nao podemos deixar de perguntar: Ao qué Paulo se refere quando men- ciona “obras da lei” e “fé em Cristo” nesse contexto? Aos perio- dos do Antigo e Novo Testamentos? Certamente que nao! Assim sendo, a interpretagdo do texto deve ser diferente das conclusées acima. Na relagao lei e graga, o que o texto esta nos ensinando é que sem fé, em qualquer tempo, é impossivel ser salvo e que pelas obras da lei ninguém seré (ou foi) justificado. A unica oportunidade meritéria de viver pela lei foi dada a Ado, que a perdeu quando pecou. Depois disto, ninguém jamais foi ou seré justificado pelas obras da lei. Ainda nesta relagao, podemos aprender que, em qual- quer tempo, aquele que cré em Cristo pode ser justificado, antes de sua vinda, crendo na promessa e, depois de sua vinda, na pro- messa ja cumprida. Romanos 6.14 ... 0 pecado nao tera dominio sobre vés; pois nao estais debaixo da lei, e sim da graca. Imagine a interpretagdo deste texto com 0 pré-entendimento da lei associada ao periodo do Antigo Testamento e a graca ao Novo. Como entender a fé e vida dos homens e mulheres de Deus durante 0 periodo do Antigo Testamento? Estavam eles tao so- mente debaixo da lei em contraste com os crentes a quem Paulo escreve em Roma? Esta seria a conclusio légica de uma leitura que n&o leva em conta 0 todo das Escrituras. E suas conseqiiénci- 18 © Leie Graga as sdo terriveis. Teriamos que admitir que no Antigo Testamento nao existiram santos, e Abel, Noé, Abraao e tantos outros citados na “galeria da fé” em Hebreus 11 foram, na verdade, dominados pelo pecado e nunca alcangaram a salvacao ou a plena graga de Deus. A interpretagao que retira a graca do Antigo Testamento faz com que a salvagao fosse inoperante durante aquele tempo. Romanos 10.4 ...0 fim da lei é Cristo para a justiga de todo 0 que cré. Ora, se Cristo € 0 fim da lei simplesmente, a lei deixa de ser e de cumprir o seu papel. Esse é 0 entendimento simplista do texto fora de seu contexto biblico teoldgico. A graga se opée a lei e termina com ela! Seria esta a intengdo de Paulo? Um tedlogo bra- sileiro, Paulo Sérgio Gomes, responde a essa interpretagao da se- guinte forma: Romanos 10.4 deve ser entendido a partir da perspectiva da polé- mica de Paulo contra o legalismo judaico. Os judeus deveriam ter deixado de procurar estabelecer sua propria justiga pela pratica da lei porque pela pratica da lei ninguém sera justificado, visto que todos, judeus e gentios, estéo debaixo do pecado. Antes, eles deveriam ter se submetido a justiga de Deus crendo em Cristo. Cristo, sim, realizou aquilo que é impossivel aos homens, para obter-lhes a justiga, a qual ele Ihes oferece gratuitamente pela fé, & parte das obras da lei. Os judeus deveriam, portanto, ter compreen- dido que Cristo, para aquele que cré, pde um fim a esta maneira errénea de buscar a justiga pelas obras da lei... Cristo, para 0 cren- te, é0 fim do legalismo.’ As interpretagdes isoladas contemporaneas certamente nao teriam como responder ao proprio apéstolo Paulo em Romanos 3.31 —“Anulamos, pois, a lei pela fé? Nao, de maneira nenhuma! Antes, confirmamos a lei” — ou ao Senhor Jesus quando disse — “Nao penseis que vim revogar a lei ou os profetas; nao vim para revogar, vim para cumprir”. Estes so apenas alguns exemplos, entre muitos outros possi- veis, de como uma leitura isolada de textos biblicos pode levar uma pessoa a entender lei e graga como bindmio de oposi¢ao. Lei Estamos sob a Lei ou sob a Graga? . 19 e graga parecem opostos, sem reconciliagao — 0 cristdo esta de- baixo da graga e nao tem qualquer relagao com a lei. No entanto, essa leitura e polarizagao é falaciosa, enganosa e produz muitos danos a fé. O crente faz uso da lei de Deus para compreender como viver e agrada-lo. Como saber 0 que agrada a Deus? Como viver de acordo com a sua soberana vontade? A resposta dada pelo pré- prio Senhor é: “aquele que tem os meus mandamentos e os guarda, este € 0 que me ama” (Jo 14.21). Equal é o mandamento de Cri senao o mandamento do préprio Pai? Por isso 0 texto continua di- zendo: “...e aquele que me ama sera amado por meu Pai, e eu tam- bém o amarei e me manifestarei a ele”. Porém, sem a graga especial e salvadora, o homem seria maldito por causa desta mesma lei da qual agora ele se beneficia. Sem a gra¢a de Cristo este homem nada é, senao um que esta condenado ao castigo eterno. Podemos representar a relacdo entre lei e graga da se- guinte forma: Antigo Testamento t Novo Testamento Lei— opera para toda a humanidade Graca — opera sobre os crentes (salvos) O QUE E LEI? O substantivo forah, na lingua hebraica, é 0 termo mais usado no Antigo Testamento para falar da lei. Seu sentido mais amplo é “instrugdo”. E usado mais de 220 vezes referindo-se as diversas formas da lei, quer de Deus ou leis de nagdes, Outros substanti- vos também sfo usados para falar da lei e traduzidos como man- damentos, ordenangas, testemunhos, estatutos, preceitose pala- vra. Sao diferentes termos na lingua hebraica que revelam dife- entes nuangas da lei. Em geral, lei significa “preceito emanado da autoridade so- berana... regra ou norma de vida”. A lei de Deus sao os preceitos emanados de Deus, regras ou normas de vida estabelecidas pelo soberano criador. 20 + Leie Graga Em alguns textos encontramos alguns desses termos juntos em uma s6 sentenga, como em Génesis 26.5: ... Abraiio obedeceu 4 minha palavra e guardou os meus manda- dos, os meus preceitos, os meus estatutos e as minhas leis. Em um certo sentido, mandados, preceitos, estatutos e leis referem-se ao conjunto das ordenancas emanadas de Deus. Até este ponto na histéria da revelagao (tempo de Isaque), nado temos ainda alguma coisa que podemos chamar de Escritura. Assim mes- mo, aconsciéncia da lei de Deus j4 estava presente entre os seus filhos. f importante ressaltar que 0 uso dos termos acima é intercambidvel, podendo um termo substituir outro. Ndo obstante esta caracteristica, do sentido individual dos termos podemos tirar algumas ligdes. A palavra aqui traduzida por mandados (mishmeret) é pou- co usada no Antigo Testamento (nove vezes somente, algumas ve- zes com outro sentido —cfIs 21.8; He 2.1) e significa uma obriga- do, principalmente quanto a rituais e festas que deveriam ser guar- dadas pelo povo (Lv 18.30; 22.9; Ez 44.8,16; 48.11; Zc 3.7). Os preceitos (mitsva) refletem ordens ou instrucdes diretas de Deus para sua criagao. Os mandamentos so carregados da autoridade daquele que os proclama e vém acompanhados da capacitacao para cumpri-los, da bén¢aio ou maldi¢ao para aqueles que os obedecem ou desobedecem. Os Dez Mandamentos sao freqiientemente referidos como mitsva. Os estatutos (hug) referem-se mais diretamente 4 lei escrita, gravada (normalmente em pedra). Dai a idéia de estatutos pétreos, que ndo podem ser modificados pela forma como estao gravados. A lei (torah) normalmente refere-se ao ensino ou instrugao. A torah significa mais do que simplesmente uma afirmag4o ou or- dem de Deus sobre um determinado assunto. A torah éa forma de Deus instruir 0 seu povo, tanto o Israel do Antigo quanto do Novo Testamento; também representa a forma como um pai ensi- na um filho a viver no temor do Senhor. Emboraa palavra torah nao aparega uma vez sequer em Deuterondmio 6, este capitulo é 0 que apresenta a esséncia da torah: Deus é tinico, ame-o com tudo Estamos sob a Lei ou soba Graga? + 21 0 que vocé é e proclame sua fé aos seus filhos, sua casa e sua comunidade (cf Mt 22.36-38; Mc 12.29,30). Essa conduta é 0 mesmo que “andar na lei” (Sl 78.10) e guardar a alianga de Deus. Em um certo sentido podemos afirmar que a torah inclui todos os outros termos mencionados acima e alguns outros encontra- dos por toda a Biblia. Nao é sem motivo que o Senhor Jesus exerce 0 seu ministério terreno tendo como maior caracteristica 0 proprio ensino, mostrando-se mestre por exceléncia. Segundo Provérbios 3, lembrar-se da torah e guardar os mandamentos do Senhor sao o segredo para uma vida longa, cheia de shalom (paz). O salmo 119 apresenta praticamente to- dos esses termos espalhados em suas 22 estrofes exaltando o valor da Jei de Deus (somente neste Salmo o substantivo torah aparece 25 vezes). Ao apreciarmos a lei nas Escrituras devemos nos lembrar que ali estéo muitos tipos de leis. Elas estao distribuidas pelo Antigo e Novo Testamentos e nado foram dadas num vacuo. Estas leis registradas foram dadas no processo da revelag4o de Deus, que é uma revelagao historica e progressiva. Por isso, ao identificar as leis que encontramos em nossa Biblia, devemos levar em conside- ra¢4o varios dos seus aspectos, como o ambiente no qual elas foram trazidas ao povo, os motivos que levaram Deus adeclarar a lei desta ou daquela forma e assim compreender, nao sd a lei, mas também o seu “espirito” (para que, como, quando foi usada e qual aesséncia do seu ensinamento). Ao observamos estes aspectos da lei revelada nos depara- mos com 0 fato de que a lei de Deus foi dada num contexto hist6- rico especifico, com um povo vivendo situagdes que lhe eram pe- culiares, em uma cultura especifica, com costumes sociais defini- dos, vivendo em meio a muitas outras sociedades que também ti- nham suas proprias leis. Paralelamente aos escritos biblicos en- contramos leis sumérias, babilénias, hititas e egipcias. Um dos pa- ralelos mais conhecidos hoje é 0 cédigo de Hamurabi, contendo 282 artigos de leis, muitos dos quais com paralelos no Pentateuco. Nossa leitura da lei tem de estar atenta a cada um destes aspectos 22 © = Leie Gracga buscando definir, de acordo com a propria Escritura, quais destas leis sfio aplicaveis, como e quando podemos e devemos fazé-lo. Se nao compreendermos isto, corremos 0 risco de interpretar mal as leis de Deus que se associam a condigées especificas. Em geral, quando falamos de lei, pensamos basicamente nos Dez Mandamentos ou na legislagao mosaica. Tedlogos antigos costumavam se referir aos Dez Mandamentos como a Jei moral. Muitas vezes, ao citar a lei, autores e pregadores querem referir-se ao Pentateuco, que, na divisio triplice da Biblia Hebraica corresponde a Torah. No entanto, existe muita legislacao biblica fora do Pentateuco e certamente muitas leis que est&o no Novo Testamento. Mesmo no contexto do Pentateuco podemos falar da “lei antes da lei” que envolve tanto a lei natural (a lei gravada no coragao do homem) quanto a lei e os principios legais revelados aos primeiros seres humanos, antes e depois da queda. Cabe aqui uma nota sobre a terminologia dos reformadores sobre lei. A palavra /ei é usada em pelo menos dois sentidos distin- tos que devem ser entendidos a partir do contexto. Em alguns ca- sos 0 termo /ei é usado como um sindnimo de Antigo Testamento da mesma forma como evangelho é usado como um sinénimo de Novo Testamento. Comentando a Primeira Carta aos Corintios, Calvino diz: “A lei incluia todo o corpo da Escritura até 0 advento de Cristo”. Em outros contextos, o termo /ei é usado como uma categoria especial referindo-se ao seu uso, como categoria de co- mando, isto 6, um mandamento direto expressando a vontade ab- soluta de Deus sobre alguma coisa. E assim que Calvino usa o termo /ei ao comentar 2 Corintios 3.7, Romanos 4.15 e 8.15. Nesse sentido somente, podemos falar de lei x evangelho, como 0 man- damento que nao traz salvacao versus a graga salvadora de Deus. Nao podemos, porém, esquecer que é 0 préprio Antigo Testa- mento que nos apresenta a promessa da salvagao de Deus, a sua graga operante sobre os crentes do Antigo Testamento. A esse respeito, Calvino diz no seu comentario em Isaias: “A lei contém tanto mandamentos como promessas” (Is 24.5). Estamos sob a Lei ou soba Graga? + 23 Nao devemos nos aproximar da lei de Deus com preconcei- tos. Um preconceito muito comum é de que a lei é muito “dura”. Pode até parecer, mas o Deus das Escrituras, o Deus que se mani- festou a Moisés ¢ aos pais é um Deus de amor, em todas as épocas e ocasides. Ele é também espirito e dele vém o fruto do Espirito: amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fidelida- de, mansidiio, dominio proprio. E desse Deus que emanaa lei e ela nao pode ter um carater diferente do carater de seu criador. Se a lei nos parece dura, 6 porque a vemos de maneira diferente daque- lacomo 0 proprio Deus a vé.* Outro erro comum é pensar que, na sua suposta dureza, a lei demanda coisas impossiveis de se fazer. Nao podemos nos esque- cer de que a mesma lei que exige é também a lei que providencia. Portanto, para o homem de Deus no tempo do Antigo Testamento, a lei apresentava tanto a demanda quanto a graga. Sea lei exigiaa perfeigo, ela mesma apontava para o sacrificio dos animais que representava o sacrificio de Cristo e o verdadeiro perdao. Assim, quando pela fé sacrificavam, tinham 0 mesmo perddo em Cristo que temos hoje. Por isso encontramos tantos que tém lugar na ga- leria da fé e estéo no seio de Abrado. E além de todos aqueles citados em Hebreus 11, certamente temos maior nuvem de teste- munhas, de homens, mulheres e criangas que amavam ao Senhor e sua lei e eram considerados justos, tendo sido alvo do sacrificio expiador do Messias mediador. Nao devemos esquecer que as criticas de Jesus nao eram lei, mas ao que os fariseus faziam em sua interpreta¢ao da lei — tanto limitando seu entendimento ao ato extemmo, como expandindo-a fora dos parametros de Deus, multipli- cando as ordenangas. Assim, era um jugo e escravidao que eles colocavam sobre 0 povo. Jesus foi claro ao afirmar (Mt 11.28-30): Vinde a mim, todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vés 0 meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coragao; e achareis descanso para a vossa alma. Porque 0 meu jugo é suave, e o meu fardo é leve. Entender com que tipo de lei nos deparamos nas Escrituras é um dos objetivos que pretendemos alcangar na medida em que estudamos 0 assunto. 24 «+ Leie Gracga O QUE E GRACA Graca é um termo recheado de significados em nossa cultura. Teolo- gicamente, seu significado mais basico ¢ “favor imerecido”. Diciona- riose livros teolégicos normalmente trarao a classica distingao entre gracacomume graca especial, a graga que atinge todaa raga huma- nae agraca que Deus aplica sobre alguns. A primeira é a manifesta- ¢ao da bondade de Deus sobre a criagao em geral, sobre impios € salvos. E debaixo da graga comum que enxergamos 0 cuidadoe a providéncia de Deus sobre toda a sua criagdo. Interessa-nos aqui, entretanto, a graca especial, que é a manifestagao da graca pela qual Deus salva os pecadores. Essa graga nao tem o carter universal da graca dacomum. A graga especial é 0 meio usado por Deus para a salvagao da sua Igreja, dos seus eleitos, como no caso de Noé (Gn 6.8) —“Porém Noé achou graga diante do Senor”. A graca que Noé recebeu & a condigao primeira para a sua salva¢do, e nao o contrario. No livro de Atos, Lucas menciona aqueles que “mediante a graga, ha- viam crido” (At 18.27; cf Gl 1.15; Ef2.5, 8); pela graca os crentes so justificados (Rm 3.24; 5.18; Tt 3.7); Paulo explica, em Roma- nos 4, que Abraao recebeu a promessa da heranga da terra pela fé, segundo a graga (Rm 4.13-17) e quea Escritura “preanunciou o evangelho a Abrado” (Gl 3.8); a eleigdo é segundo a graga (Rm 11.5); os dons s&o dados segundo a graca (Rm 12.6; Ef 4.7); pela graga, o crente exerce o ministério que lhe é dado por Deus (1Co 3.10; 15.10); nao ha nada positivo que o crente faga que nao seja movido pela graga de Deus operando em sua vida; somos depen- dentes da graga em tudo. Portanto, a graca salvadora é também a graga que o move para o trabalho e para a efetivacdo do chamado crist&o. Sem a graga especial de Deus nao haveria sequer 0 chamado do cristao paraa salvagao. Nesse sentido, nao ha qualquer contradi¢&o entre alei de Deus e a graga de Deus. Uma nao excluia outra. Muitos, ao tentarem pregar sobre a graga de Deus, acabam por modifica- lade tal forma que a transformam em um caminho de libertinagem em vez de liberdade e acabam por pregar um “outro” evangelho. Estamos sob a Lei ou sob a Graga? + 25 N&o entender o papel da graga conforme outorgada aos cren- tes levaa sérios desvios que podem causar graves problemas para ocrist&o. Ocrente em Cristo vive tio somente pela graca, sua salvacao é pela graga e sua vida é pela graga. E seria por isso a lei de Deus invalida para o cristo? Nao. Ainda que ele no possa ser salvo pela lei, podera aprender a vontade do seu Senhor na lei. Nesse sentido, a lei é apreciada pelo crente como uma lei graciosa. QUESTOES PARA ESTUDO 1. Ecorreto associar o Antigo Testamento ao “tempo da lei” e 0 Novo Testamento ao “tempo da graca’”? 2. Se alguém lhe perguntasse: “O crente esta debaixo da lei ou debaixo da graga?” qual seria a sua resposta? 3. Existia salvacao no tempo da histéria do Antigo Testamento? Como isso acontecia? Pelas obras da lei? 4, Em que sentido Cristo ¢ 0 “fim da lei”? (Rm 10.4) 5. A Biblia usa a palavra lei em diferentes sentidos? Cite alguns sentidos basicos. 6. Qual é 0 significado teolégico de graga? 7. Como podemos representar graficamente a relagdo entre lei e graga ao longo da narrativa biblica? ssim sempre e: uma vis@o p__uena da lei sem re ra ole I's oareligiao’ uma isao a pladalei a do omemu ue us uea gra . ueia eus ue es avisao ampla possa no a e e prevale er. s implicacdes da forma como entendemos a re a¢do entre leie agavao muito além do aspecto p enteintelec al. mdosgr dese osdo ristianismoaolongoda__ storia foio de fa erdanecessidade de compreensioda i liaum imem si mesmo. nossa compree sao da relagdo entre a lei ea graga de eus vai,naverdade dete in to afo acomoe ergamos avidac ‘stie ue ipodeet'cav osass iremnossacami a da. aisadiante veremos omo,na_ ratica, isso acontece, apon- anmer ¢t doe emplos de como o entendimento dessarelagao adn ap o~qc oser m g 28 «¢ Lei e Graga nos diz que os moradores da terra “transgridem as leis, violam os estatutos e quebram a alianga eterna”, referindo-se a terra como um todo (nos capitulos antecedentes 0 profeta fala da destruigao das nagées dos israelitas, assirios, moabitas, egipcios, habitantes de Tiro). Esse mesmo texto nos ensina que transgredir a lei, ou violar os estatutos, corresponde a quebrar a alianga ou 0 pacto. Na linguagem da Confissao de Fé de Westminster (CFW) encontramos a exposi¢do do pensamento calvinista. A CFW nos dizno capitulo VII: 1, Tao grande é a distancia entre Deus e a criatura que, embora as criaturas racionais Ihe devam obediéncia como ao seu Criador, nunca poderiam fruir nada dele como bem-aventuranga e recom- pensa, sendo por alguma voluntaria condescendéncia da parte de Deus, a qual foi ele servido significar por meio de um pacto. Pacto significa, basicamente, 0 estabelecimento de um elo ou relacionamento entre duas partes. O homem foi criado por Deus para viver em relacionamento e receber os beneficios e obrigacdes desse relacionamento com 0 Criador. Esse relacionamento é mar- cado pela distingao clara entre Criador e criatura e o senhorio do Criador sobre a criaco. Na condigao de servo, a criatura vive tao somente por bondade do Criador, nao sendo merecedora de coisa alguma. Sendo criatura, o homem nao tem “direitos naturais” sem que estes lhe sejam concedidos pelo criador (cf Is 29.16; 64.8; Jr 18.2-6; Rm 9.11). A disposigdo do Criador em criar e manter um relacionamento com a criatura é fruto de sua propria soberania, amor e bondade. E possivel compreendermos isto quando percebemos que, por toda a Escritura, Deus se apresenta como Senhor soberano. Alias, podemos dizer que o conceito de senhorio é basicamente um conceito pactual.° Varios dos nomes de Deus apresentados na Biblia indicam exatamente isto. Nossas Biblias em portugués tra- zem freqiientemente o nome SENHOoR,’ em caixa alta, representan- do o nome de Deus [HWH (lavé — transliterado por Jeova na Edigdo Revista e Corrigida), seguido da palavra adonai, senhor, ou seja, lavé Senhor. Em muitas passagens encontramos a expres- Como devemos entender e usaralei * 29 sao SENHOR Deus, que traduz, na verdade, Iavé Deus. No Novo Testamento Jesus é chamado de Senhor varias vezes e no Evange- lho de Jodo, ele mesmo repete a expresséo EU SOU, uma refe- réncia direta a Exodo 3, onde Deus se apresenta a Moisés como EU SOU (IHWH). Creio que intengdo de Jesus ao repetir varias vezes EU SOU, conforme a narrativa de Jodo, é para deixar bem claro para sua audiéncia que bem conhecia o texto de Exodo, que ele é Deus (Jo 4.26; 6.35, 41, 48, 51; 8.12, 24, 28, 58; 10.7, 9, 11, 14; 11.25; 13.19; 14.6; 15,1; 18.5). A verso grega do Antigo Testamento, a Septuaginta, (LXX) traduz o nome de Deus, EU SOU, pela pala- vra kurios, que quer dizer Senhor. Por isso, quando um crente dizia “Jesus é Senhor,” sendo judeue tendo conhecimento do An- tigo Testamento na lingua grega, estava dizendo que Jesus erao mesmo lavé do Antigo Testamento. Essa mensagem era terrivel aos ouvidos dos judeus que n&o criam em Jesus como o Messias, € por isso 0 perseguiam constantemente. Admitir que aquele ho- mem nascido em Belém e morador da Galileia era o Senhor sobe- rano ultrapassava a sua compreensdo. Mas é exatamente essa a mensagem do Antigo e do Novo Testamentos. No Antigo Testa- mento — Deus é Senhor. No Novo Testamento — Jesus é Senhor. na condi¢o de Senhor do pacto que Deus pode e estabelece as leis que irao governar a vida humana. Por ser Senhor, Deus dé a sua lei incondicional ao homem. E por ser Senhor é que Jesus pode dizer: “Novo mandamento vos dou” (Jo 13.34). Sua autoridade procede de sua divindade. O Senhor ~criador, salvador — desde o principio, mostrou- se determinado a relacionar-se com sua criaturae ser glorificado por ela. A ele aprouve relacionar-se com a sua criacdo conforme nos aponta a CF W (VII): II. O primeiro pacto feito com o homem era um pacto de obras; nesse pacto foi a vida prometida a Ado e nele a sua posteridade, sob a condigao de perfeita obediéncia pessoal. Logo no principio Deus fez uma promessa de vida ao homem sob a condi¢ao de que este Ihe obedecesse. Deus, portanto, se 30 © Leie Graca coloca debaixo de um compromisso: de manter a vida e béngdos que promovem a vida humana. Por todo o Antigo Testamento po- demos perceber que béngdo ¢ mais do que simples presente. Bén- go € a capacitagao para se viver de maneira abengoada. E por isto que encontramos em Génesis 1.28 as béncdos descritas de forma que o ser humano pudesse desenvolver seu potencial de vida: fecundidade, multiplicagao, sujeigao e dominio. Todas estas capacitacSes foram dadas ao homem para que este vivesse de maneira plena o seu relacionamento com 0 Criador e com 0 res- tante da criagao. Mas todas estas béngdos pactuais séo condicio- nadas a obediéncia pessoal do primeiro ser humano criado ao Se- nhor do pacto. Qualquer coisa que o ser humano viesse a receber seria em fungdo da condescendénciae promessa de Deus no pac- to, e ndo de seu “direito” como criatura, uma vez que, sendo cria- tura, no tinha quaisquer direitos a nao ser que lhe fossem dados . Adio, sua esposa e descendéncia, viveram originalmente de- baixo desse pacto e sua vida dependia da sua obediéncia 8 lei dada por Deus de forma direta em Génesis 2.17 — nao comer da arvore do conhecimento do bem e do mal: E o Sennor Deus lhe deu esta ordem [lei]: De toda arvore do jardim comeras livremente, mas da arvore do conhecimento do bem e do mal ndo comeras; porque, no dia em que dela comeres, certamente morreras. Nossos primeiros pais descumpriram sua obrigagao, deso- bedeceram a lei e perderam todo o direito de vida concedido por Deus. Essa lei é descrita por Emest Kevan como “lei positiva”, da seguinte maneira: A lei positiva de Deus, aqui enunciada a Adio, [Gn 2.17] é algu- mas vezes também chamada de mandamento simbélico, porque a obediéncia a ela era um simbolo, ou um sinal da deferéncia do homem e do servigo a Deus. O objeto deste comando nao era algo bom ou mal em sua propria natureza, mas algo moralmente neutro ou indiferente: cra mal somente porque era proibido. O livro de Génesis, assim, cegistra que, em adigdo a lei natural gra- vada no coragao do homem, Deus também deu a ele uma lei posi- tiva para testar a sua obediéncia.* Como devemos entender e usaralei + 31 Por desobedecerem 4 lei positiva, nossos primeiros pais :per- deram as béngdos do pacto, recebendo em seu lugar a :ondena- ¢40 ou maldigao do pacto: a morte. A morte é amaldi¢do do pacto de obras que é a maldi¢do da propria lei. O primeiro pecado foi exatamente a desobediéncia a uma lei direta de Deus. Quebrar a lei 6a mesma coisa que quebrar o pacto. A partir daquele momen- toa obediéncia a lei nao mais poderia trazer vida, uma vez que a raga humana ja se encontrava em estado de morte. No entanto, a revelagao da bondade de Deus nao termina no pacto de obras mas continua na revelacdo da sua graca (CF W VID): IIL. O homem, tendo-se tomado pela sua queda incapaz de vida por esse pacto, o Senhor dignou-se fazer um segundo pacto, geralmente chamado o pacto da gra¢a; nesse pacto ele livremen- te oferece aos pecadores a vida e a salvago por Jesus Cristo, exigindo deles a fé nele para que sejam salvos; e prometendo dar a todos os que estado ordenados para a vida o seu Santo Espirito, para disp6-los ¢ habilita-los a crer. O pacto da graga’ é a manifestacao graciosa e misericordio- sa de Deus, aplicando a maldigdo do pacto de obras na pessoa de seu Filho, Jesus Cristo, fazendo com que parte da sua criacdo, primeiramente representada em Adio, e agora representada por Cristo, pudesse ser redimida. O pacto de obras nao é eliminado. Podemos afirmar que a raga humana continua debaixo da maldi- ¢40 do pacto de obras a excecdo daqueles que ja foram remidos por Cristo através do seu sacrificio quando recebeu em si mesmo a. maldigao deste pacto. E com base nesta verdade que o Senhor Jesus diz que “aquele que nao cré, ja esta julgado” (Jo 3.18). Jul- gado com base no pacto de obras, por estar em estado de morte (pecado original) e assim ser incapaz de obedecer a lei de Deus. E écom base no pacto de obras que Jesus é chamado de maldito: “Cristo nos resgatou da maldi¢ao da lei, fazendo-se ele proprio maldi¢ao em nosso lugar (porque esta escrito: Maldito todo aquele que for pendurado em madeiro)” (GI 3.13). A obra de Cristo consiste em receber a maldigao do pacto de obras, a maldi¢ao da lei, sem merecé-la, conquistando assim 0 direito de redengao para a sua igreja, sua noiva, e assim oferecer, 32. + Leie Graca de graga, a salvagdo para aqueles a quem quer salvar. Cristo, por seu mérito, conquista o direito de vida para seus eleitos. Ele faz aquilo que nosso primeiro pai n&o péde fazer, dai Paulo chama-lo de “tiltimo Adao” (1 Co 15.45). Como podemos ver, pacto ¢ lei esto ligados por uma rela- ¢ao de interdependéncia. O pacto funciona como o bergo da lei em todas as suas formas. A lei funciona como um elo relacional entre aqueles que adentram 0 pacto. A “lei” antes da “lei” E de fundamental importancia compreender quando alei foi dada ao homem, o porqué ea forma como foi dada. S6 ent&o podere- mos entender o seu carater e propdsito. Os autores da CF W perceberam que a lei de Deus comecou a ser revelada na propria criagéo (CFW XIX): 1. Deus deu a Adao uma lei como um pacto de obras. Por este pacto Deus 0 obrigou, bem como toda sua posteridade, a uma obediéncia pessoal, inteira, exata e perpétua; prometeu-lhe a vida sob a condi¢ao dele cumprir com a lei e o ameagou com a morte no caso dele viola-la; e dotou-o com o poder e capacidade de guarda- la, Ref. Gn 1,26, e2.17; Ef4.24; Rm2.14,15, e 10.5, €5.12,19. Pode-se perceber logo nos primeiros capitulos de Génesis que ali mesmo a lei come¢ou a ser dada ao homem. No proprio Eden Deus comegoua apresentar a sua lei perfeita, manifestando a sua vontade soberana a sua criatura. N&io devemos pressupor que alei antes da queda se resuma a lei positiva, a ordem de nao comer do fruto da arvore do conhecimento do bem e do mal, ainda que seja uma referéncia clara 4 vontade de Deus. E necessario expan- dir nossa visdo quanto a lei. Mesmo antes de Génesis 2.16, que é caracterizado como a expressdo mais clara do pacto de obras, Deus ja havia dado leis aos nossos primeiros pais. Que leis so essas? Observe, por exemplo, as béngaos pro- clamadas por Deus em Génesis 1.28: E Deus os abengoou e Ihes disse: Sede fecundos, multiplicai- vos, enchei a terra e sujeitai-a; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus € sobre todo animal que rasteja pela terra. Como devemos entender e usaralei + 33 As béngaos de Deus sao a fecundidade, multiplicagao e a capacidade de sujeigao e dominio sobre a criagdo descrita nesse mesmo capitulo. Porém, ¢ interessante notar que cada um dos ver- bos que traduzem esta béngdo aos nossos primeiros pais aparece no imperativo. Podemos dizer que cada béngao exige também uma acdio obediente do homem. Ao mesmo tempo em que Deus aben- goa com a fecundidade, ordena aos seres humanos 0 exercicio da mesma. O mesmo se aplica as outras béncaos! A multiplicagao, encher a terra, sujeita-la e exercer 0 dominio sobre ela s4o obriga- ges dadas por Deus ao homem. Podemos chamar estas béngaos, por se referirem aos seres humanos, de lei moral. E claro que o mesmo nao se aplica aos animais que sdo capacitados com a fecundidade, mas incapazes de exercer vontade propria (Gn 1.22). Varias outras ordens de Deus aparecem logo nas primeiras paginas de Génesis. No verso 29 Deus determinou 0 tipo de ali- mento que o homem comeria. O proprio descanso de Deus no sétimo dia é tido por Calvino como o estabelecimento da lei sabatica, tendo como fungao a santificagao do homem: Primeiro Deus descansou; e entdo ele abengoou este descanso para que em todas as eras este fosse tido como sagrado entre os homens: ou, ele dedicou cada sétimo dia ao descanso para que 0 seu proprio exemplo fosse uma lei perpétua. '° O mesmo podemos dizer da fungao dada por Deus ao ho- mem com relagaio ao jardim (Gn 2.15): Tomou, pois, o Senior Deus ao homem e 0 colocou no jardim do Eden para 0 cultivar e o guardar. Cultivar e guardar nao eram op¢Ges que o homem tinha dian- te do mercado de trabalho. Foram tarefas especificas dadas a fim de que levasse a bom termo o seu papel e relacionamento com 0 Senhor do pacto. Ao agir desta forma, Deus age normativamente e sua ago normativa é lei. Estes exemplos da lei na criagao tem uma funcaio muito especi- al no todo da revelacao. Eles servem para nos mostrar que a lei de Deus esta ligada diretamente a forma com que determinou relacio- nar-se com 0 ser humano, antes mesmo do pecado. Havia lei antes 34 + = Lei e Graga da queda, do pecado e da morte, e esta estava inserida na base do relacionamento entre a criatura e 0 Criador. Segundo Fairbarn, o homem, primeiramente, estava na lei, antes de debaixo da lei — tendo sido formado para o exercicio espontaneo daquele puro e santo amor, o qual é a expressdo da imagem divina, e por conse- guinte, para fazer o que a lei requer."" E possivel pensar que, hipoteticamente, o homem poderia ter desobedecido quaisquer das leis de Deus, como 0 exercicio da multiplicacdo ou mesmo do dominio sobre a criag&o. Mas nao é este o caso. As Escrituras narram com maior detalhe a desobedi- éncia de Adio e sua esposa com relagdo ao fruto proibido. Estes sao apenas alguns exemplos de como a lei estava presente antes do pecado em formas mais extensas do que apenas a proibigao de se comer do fruto da arvore do conhecimento do bem e do mal. Desses exemplos podemos tirar conclusdes importantes para 0 nosso estudo: 1. A lei foi dada ao homem no contexto da criagao, antes do pecado e antes de ser registrada e reconhecida como Escritura. A lei, portanto, nao é um evento pds-queda. 2. A lei de Deus foi dada antes da queda com uma fungao orientadora. Os servos de Deus em contato direto com ele eram instruidos sobre como deveriam viver de acordo com a sua vonta- de no contexto do pacto. Isto serviria para que 0 relacionamento pactual eo conhecimento do Criador por parte da criatura se ex- pandisse de maneira que o Senhor fosse glorificado e o homem pudesse ter plena alegria em servi-lo. 3. A obediéncia 4 lei estava associada 4 manutengao da bén- ¢o pactual. A nao obediéncia estava associada a retirada da bén- ¢40 e aplicag4o da maldi¢ao. O ser humano, desde o principio, conheceu os propésitos de Deus através da lei. Tendo quebrado a lei, ele se tornou réu da mesma e recebeu a condenagao clara pro- clamada pelo Criador: a morte. 4. A lei foi dada ao homem de maneira cumulativa, tendo sido dada com a antecedéncia necessaria para que o homem pudesse obedecé-la, mas nao foi dada toda de uma sé vez. Como devemos entender e usaralei + 35 A lei exterior ao homem, portanto, lhe foi apresentada mes- mo antes do seu registro nas Escrituras. A lei foi dada antes da sua formalizacao no Sinai. Ao formarmos 0 nosso conceito escrituristico sobre a lei, devemos levar em consideracao este fato para nado a limitarmos a apenas alguns de seus aspectos. A lei “interior” Além da lei dada de maneira objetiva, a Biblia nos ensina sobre a lei interior. Ainda que a lei tenha sido dada de maneira objetivae exterior, revelada com clareza aqueles que a receberam e posteri- ormente registrada de acordo com 0 propésito e inspiragdo de Deus, as Escrituras nos falam de uma lei subjetiva, uma lei gravada no coracdo do homem. Segundo Paulo, os homens (Rm 2.15): «.. Mostram a norma da lei gravada no seu coracao, testemunhan- do-lhes também a consciéncia e os seus pensamentos, mutua- mente acusando-se ou defendendo-se. A lei de Deus, portanto, nao é apenas exterior ao homem, mas € também interior, e este tem conhecimento dessa “lei natural” pela manifestacao da sua propria consciéncia. Calvino chega a di- zer que esta “lei interior” escrita ou gravada sobre 0 corag¢ao de todos, em um certo sentido assevera as mesmas coisas que devem ser aprendidas das duas Tabuas [os Dez Mandamentos]”.'? Essa lei interior foi escrita no corago do homem para que este soubesse, desde o principio, distinguir entre o bem e o mal, o certo e 0 errado. Quando Deus deu a ordem de nao comer do fruto da arvore do conhecimento do bem e do mal, o homem ja sabia que o tomar daquele fruto era errado e contra a vontade de Deus. O que aconteceu em sua experiéncia de tomar daquele fruto foi que ele“experimentou” o mal em seu feito. Em muitos contextos, apalavra que traduzimos do texto hebraico por “conhecimento” sig- nifica o conhecimento de algo que foi experimentado (como 0 co- nhecimento entre o marido e esposa no casamento ¢ na vida sexual). Creio que é possivel ver alguns exemplos dessa lei em alguns episddios bem remotos da historia biblica. Podemos comegar ilus- trando este principio com a “vergonha” de Ad&o e sua esposa no 36 + Leie Graga jardim. Ainda que tenham quebrado uma lei clara e revelada, pare- ce que alei interior (ou aantitese a ela) comega a manifestar-se nas atitudes tomadas depois do primeiro pecado. Foi evidente ao ho- mem que havia transgredido a lei e, a partir do primeiro pecado, ele continuou a pecar, tendo consciéncia clara do pecado. O es- conder-se e a acusa¢do contra a mulher sao indicagdes de que a sua consciéncia 0 acusava. Eles agora conheciam experimental- mente a forga da lei interior os acusando. Logo adiante, no capitulo 4 de Génesis, encontramos 0 epi- s6dio do primeiro assassinato. Deus havia revelado de maneira clara que a morte era uma conseqiiéncia inevitavel do pecado. No entanto, pelo menos de maneira objetiva, ndo encontramos nenhu- ma proibi¢do de matar. Parece-nos que, ao assassinar seu irmao, Caim estava plenamente consciente de seu pecado e temeroso de suas conseqiiéncias mesmo que, de forma objetiva, a proibi¢ao de matar ainda nao tivesse sido declarada (isto partindo da suposi¢gao de que o Senhor nao Ihe havia dito que nao deveria matar). O Senhor mesmo havia advertido a Caim sobre a sua inclinacdo para o pecado e a necessidade de usar o seu julgamento para saber como proceder (Gn 4.7): Se procederes bem, nao € certo que seras aceito? Se, todavia, procederes mal, eis que o pecado jaz a porta; o seu desejo sera contra ti, mas a ti cumpre domina-lo, Em correspondéncia sobre o assunto com Solano Portela, ele afirma sobre este aspecto: Qualquer que seja a dimensio da “lei escrita nos coragées”, de- vemos supor que, neste estagio tao préximo da criacio, ela esta- va bem “acesa” e evidente a percepgao humana. Além disso, nao havia ainda a exteriorizagao do pecado em larga escala, na socie- dade; a multiplicagao de exemplos erréneos a serem seguidos. Penso que, nesta era, tanto a graga comum evidenciava intensa- mente a lei de Deus, como a transgressao dessa tinha uma mag- nitude toda especial (a comegar pelo pecado aparentemente “ino- cente” de comer 0 fruto proibido). © coragdo do homem nao havia recrudescido em depravac&o ao ponto em que seria a sua extensdo ldgica. Entretanto, atuando como um cancer, ele nao Como devemos entender e usar a Lei * 37 tardaria em assolar a terra com tanta intensidade que Deus man- da o dilivio em julgamento sobre toda a humanidade, porque a violéncia campeava sobre a ela. Aoassassinar seu irmao, Caim desobedeceu a lei do amor ao proximo ea lei de amar a Deus sobre todas as coisas, 0 proprio resumo da lei conforme os Evangelhos. Antes, 0 texto nos ensina que Caim estava irado, e nao arrependido (Gn 4.6). Assim foie assassinou a seu irmao. A proibicao do assassinato, no entanto, somente aparece de forma verbal clara na seqiiéncia da narrativa biblica em Génesis 9.4-6, quando Deus diz a Noé quea vida de um homem sera paga com o sangue daquele que a tirou, definindo e promulgando a pena capital, delegada aos governos, aqui repre- sentados pelo patriarca Noé. Caim ja era conhecedor da distingaio entre o bem e o mal (Gn 3.22), e que a morte era fruto da maldi¢éio e nao da béngdo de Deus. A lei interior, juntamente com a lei obje- tivamente revelada, completam o quadro da forma como o homem conhece a vontade de Deus. Segundo a CFW IV.2 a lei interior é parte da propria criagao de Deus: Depois de haver feito as outras criaturas, Deus criou o homem, macho e fémea, com almas racionais e imortais, e dotou-as de inteligéncia, retidao e perfeita santidade, segundo a sua prépria imagem, tendo a lei de Deus escrita em seus coragdes, e 0 poder de cumpri-la, mas com a possibilidade de transgredi-la, sendo deixados a liberdade da sua propria vontade, que era mutavel. Além dessa [lei] escrita em seus coragdes, receberam o preceito de nao comerem da arvore da ciéncia do bem e do mal; enquanto obedeceram a este preceito, foram felizes em sua comunhao com Deus ¢ tiveram dominio sobre as criaturas. O objetivo fundamental da lei escrita no corac4o humano era permitir que o homem gozasse de grande intimidade com o Cria- dor, ¢ isso aconteceu antes da entrada do pecado no mundo. A lei interior é a lei gravada por Deus na mente do homem, mesmo antes da formalizagao da lei na época de Moisés e do pacto no Sinai. 38 + Lei e Graga A lei Ja afirmamos anteriormente que a lei de Deus foi dada de forma cumulativa. Encontramos nas Escrituras a forma como Deus pro- gressivamente fez conhecidaa sua vontade ao ser humano. E impor- tante entendermos que a lei de Deus nao é sé para os israelitas no Antigo Testamento ou para os crentes no Novo Testamento. A lei de Deus é a manifestacdo clara da vontade de Deus para toda a cria- do, indistintamente. Ocorte, no entanto, que Deus escolheu a nagdo de Israel para servir como um canal de revelagao dessa lei e, nesse sentido, Deus fez um pacto com Israel. Nos ensinaa CF W XIX: Il, Essa lei, depois da queda do homem, continuou a ser uma perfeita regra de justi¢a. Como tal, foi por Deus entregue no mon- te Sinai em dez mandamentos e escrita em duas tabuas; os primei- ros quatro mandamentos ensinam os nossos deveres para com Deus e os outros seis 0s nossos deveres para com o homem. Na sua soberania, Deus poderia ter escolhido qualquer povo, mas lhe aprouve abengoar Israel. Varias passagens no Antigo e Novo Testamentos repetem o mesmo principio: nao havia nadaem Israel que o fizesse mais atrativo do que outros povos. A propria escolha de Abrao é uma demonstragdo disto. Deus chamou um homem de uma terra distante e iddlatra para formar para si um povo (Gn 12.1-3). De uma mulher estéril e um homem ja velho Deus deu continuidade a sua santa semente. E ele sempre aben- goou sua semente através da escolha soberana, recebendo a ume rejeitando a outro, como no caso de Esati e Jacé. Vejamos, por exemplo, Romanos 9.9-12: ... apalavra da promessa é esta: Por esse tempo, virei, e Sara terd um filho, E nao ela somente, mas também Rebeca, ao conceber de um 86, Isaque, nosso pai. E ainda nao eram os gémeos nascidos, nem tinham praticado o bem ou o mal (para que o propésito de Deus, quanto a eleigao, prevalecesse, nao por obras, mas por aquele que chama), ja fora dito a ela: O mais velho sera servo do mais mogo. Mais adiante Paulo cita Exodo 33.19 —“terei misericordia de quem eu tiver misericérdia e me compadecerei de quem eu me compadecer” (Rm 9.15). Deus nao tem obrigagao de ter miseri- Como devemos entender e usara Lei * 39 cérdia ou manifestar graga. Ele faz como quer. Ha injusti¢a em Deus por isto? De modo nenhum! (Rm 9.14) Por isso, quanto a sua lei, podemos dizer que Deus esco- lheu trazer sua revelacao através de um povo, uma na¢4o que serviria a seus propositos debaixo de uma santa alian¢ga (Ex 19.5,6). Nesse sentido, Israel foi eleito, escolhido por Deus para manifestar 0 seu propésito a toda criagao. Devemos manter em mente que esta escolha da nacao nao implica na eleigdo de cada individuo israclita, segundo a carne e descendéncia de Abraao, para a salvacao eterna. Existem mais do que suficientes exem- plos por todaa Biblia para demonstrar que a verdadeira descen- déncia de Abrafio é a descendéncia da fé (cf. especialmente Rm 4, G13.6-9 e Jo 8.31-47). E exatamente em torno dessa verdade que Paulo desenvolve o seu argumento na carta aos Romanos, principalmente nos capitulos 9-11. Segundo esse mesmo principio, podemos dizer que Deus es- colheu a Israel para trazer 0 conhecimento de sua santa lei ao mun- do, fazendo registrar toda a lei que determinou ser necessaria na sua revelacdo. Temos, portanto, leis que sdo anteriores ao que for- malmente é chamado de lei de Moisés na propria Escritura, a lei de Moisés propriamente dita (Js 8.31,32 cf Dt 4.44; 31.9; 31.24; 33.4; Js 1.7; 22.5; 1Rs 2.3; 2Rs 14.6; Ed 7.6; Dn 9.11; MI 4.4; Le 2.22; Jo 7.23; At 13.39; 1Co 9.9; Hb 10.28), e outras leis que sao parte da revelagdo de Deus ao longo do complexo processo da sua revelagdo. Ainda que o cerne da lei tenha sido revelado através de Moisés e se encontre registrado principalmente nos li- vros de Exodo, Levitico e Deuteronémio, temos outros principios legais que so ensinados em Génesis, Numeros, pelos profetas, na literatura poética e em todo o Novo Testamento, ainda que muito do que encontramos fora destes trés livros sejam aplicagdes de principios estabelecidos na lei. Portanto, quando lemos ou falamos da “lei” precisamos ter consciéncia clara a respeito do contexto em que a lei esta sendo tratada. Podemos dizer que lei é qualquer ordem ou comando de Deus que encontramos entre Génesis e Apocalipse. 40 + Leie Gracga Precisamos, portanto, compreender as circunstancias em que esta lei foi dada e como deve ser aplicada pelo povo de Deus. Nosso proximo passo sera analisarmos que tipos de leis em geral encontramos na Biblia e como devemos aborda-las. QUESTGES PARA ESTUDO 1. Como podemos, de forma basica, definir pacto? 2. Como alei se relaciona com pacto? 3, Existe diferenga entre a lei de Deus, a lei de Moisés ¢ a lei de Cristo? 4. Quando Deus primeiro deu a sua lei ao homem? Existe lei na criag&o? Ela € diferente da lei de Moisés? 5. O que éa lei interior? Quando e por quem foi dada? Para que serve? 6. Quando Deus escolhe a Israel para ser 0 canal da revelagao de sua lei ao mundo, ele promete salvar a todo 0 israelita se- gundo acarne? eee DE QUE LEI ESTAMOS FALANDO? A revelagao da lei de Deus, como expressdo objetiva da sua -vontade, encontra-se registrada nas Escrituras. Esse registro, que remonta aos tempos de Moisés, fala-nos da lei que Deus deu ao homem desde os tempos de Adio e seus primeiros descenden- tes. Essa lei revelada ao longo do tempo, dependendo das circuns- tancias e da ocasiao em que foi dada, possui diferentes aspectos, qualidades ou dreas sobre as quais legisla. Assim, é importante observar 0 contexto em que cada lei é dada, a quem é dada e qual o seu objetivo manifesto. S6 assim poderemos saber a que estamos nos referindo quando falamos de /ei. Varios reformadores optaram por dividir a lei em trés cate- gorias. Miles Coverdale, um dos sucessores de Tyndale, escreveu sobre a divisao da lei: 1. A lei cerimonial. Dirigia os judeus para a fé no seu Messi- as. A lei cerimonial esta agora cumprida em Cristo. 2. A lei judicial. Nao é obrigatéria para o governo cris- tao, mas é modelo para o uso civil, encorajando o bom gover- no ea paz. 42 + Leie Graga 3. A lei moral. Esta é permanente e ainda aplicavel a todos os crist&os.'? Calvino considerava esta uma divisao tradicional e a usava em seus escritos.'* A CFW seguiu esta mesma tradigio e no capi- tulo XIX, mostra a mesma divisao: III. Além dessa lei, geralmente chamada lei moral, foi Deus servi- do dar ao seu povo de Israel, considerado uma igreja sob a sua tutela, leis cerimoniais que contém diversas ordenangas tipicas. Essas leis, que em parte se referem ao culto e prefiguram Cristo, as suas gracas, 0S seus atos, os seus sofrimentos e os seus beneficios, e em parte representam varias instrugdes de deveres morais, esto todas ab-rogadas sob 0 Novo Testamento. IV. A esse mesmo povo, considerado como um corpo politico, Deus deu leis civis que terminaram com aquela nacionalidade, e que agora nao obrigam além do que exige a sua eqitidade geral. Cada um desses aspectos da lei tem um papel e um tempo determinado para sua aplicagdo e, em muitos casos, uma sobreposi¢ao. A lei moral é basicamente representada no contet- do dos Dez Mandamentos, mas certamente se expande muito além dos mesmos, principalmente porque a lei civil é uma aplicagdo da lei moral ¢ a lei cerimonial se confunde em alguns aspectos com a lei civil. E mais facil discernira lei moral dentro das Escrituras & medida em que compreendemos melhor como a lei civil ea ceri- monial sao caracterizadas. Graficamente podemos representar assim a relagao dos dife- rentes aspectos da lei: ~ Lei moral Lei civil Lei cerimonial ‘Vejamos alguns exemplos de lei civil, cerimonial ¢ moral. De que lei estamos falando? + 43 Lei civil Como nagAo, Israel recebeu muitas leis sobre a sua conduta nas diversas situagGes do dia a dia. Encontramos muitas leis sobre a vida social dos israelitas em geral. Na lei civil e judicial vemos como Deus deu ao povo uma definicdo de seus deveres e, por conseqtiéncia, os direitos do semelhante, como cidadaos de uma sociedade teocratica. Como conseqiiéncia de delitos e contravengdes, Deus estabeleceu 0s tipos de penalidades aplicaveis a varias situagdes. Muitas destas leis so aplicagdes diretas dos Dez Mandamentos, de carater mais ou menos direto, dependendo de questdes que so particulares e peculiares a forma, local e situa¢do em que Israel viveu. Veja, como exemplo, o estabelecimento das cidades de refii- gio (Nm 35.6-12): Das cidades, pois, que dareis aos levitas, seis havera de refiigio, as quais dareis para que, nelas, se acolha o homicida; além des- tas, Ihes dareis quarenta ¢ duas cidades, (...) Fala aos filhos de Israel ¢ dize-Ihes: Quando passardes o Jorddo para a terra de Cana, escothei para vés outros cidades que vos sirvam de refii- gio, para que, nelas, se acolha o homicida que matar alguém involuntariamente. Estas cidades vos serdo para refiigio do vin- gador do sangue, para que o homicida nao morra antes de ser apresentado perante a congregacao para julgamento. Estas cidades foram estabelecidas em Israel para que alguém que tivesse cometido homicidio involuntario, envolvido em algum acidente de qualquer natureza, tivesse a oportunidade de um julga- mento publico antes de cair nas maos do chamado “vingador de sangue’”. Mesmo o réu confesso de um crime tinha 0 direitoa um julgamento. Devemos nos lembrar que estamos falando de uma sociedade que nao tinha a mesma estrutura legal que temos hoje e que nao havia uma “policia”, civil ou militar, que tratasse destes casos. A responsabilidade basica de aplicar a justiga era do chefe do cl& ou tribo, que apontava um vingador de sangue no caso de assassinato. No entanto, o vingador de sangue nao podia agir sem que houvesse um julgamento apropriado do crime cometido. Ao analisar a lei civil em Israel precisamos lembrar que na- quelas circunstncias os principios legais estabelecidos por Deus 44 «© Lei e Graga eram aplicados pelos lideres da sociedade (no tempo de Moisés, ele mesmo e os anciaos apontados para julgar as causas do povo, em outros tempos, os juizes e assim por diante). No entanto, a responsabilidade de protegdo era basicamente um encargo do pai, chefe do cla ou da tribo. A tribo tinha na autoridade do seu chefe o dever de proteger o seu territério e a vida dos seus. E por essa tesponsabilidade que o filho mais velho recebia porgdo dobrada da heranga. Ele seria o chefe e receberia a responsabilidade de zelar pelo bem estar do cla. Isto certamente demandaria mais gas- tos (a propriedade era a “fonte de renda”). A lei das cidades de refiigio foi dada como uma protegao até que as condigdes da mor- te de alguém fossem devidamente investigadas ea causa esclarecida. Assim, 0 responsavel por uma morte acidental nao sofreria o dano por um crime involuntario. Mas qual ¢ 0 principio moral envolvido nessa lei civil? A lei moral da preservagao da vida, claramente exposta no sexto man- damento (“Nao assassinards”) e em Génesis 9.5,6: Certamente, requererei 0 vosso sangue, 0 sangue da vossa vida; de todo animal o requererei, como também da mao do homem, sim, da mao do proximo de cada um requererei a vida do homem. Se alguém derramar 0 sangue do homem, pelo homem se derra- mara o seu; porque Deus fez o homem segundo a sua imagem., Deus determina a pena capital sobre os assassinos para a preservagao da vida e responsabiliza o homem, dentro de sua es- trutura social, como executor. A lei das cidades de refiigio ¢é uma aplicag&o do principio moral de preservagao da vida, evitando que haja injustiga na aplicagao da lei. Esse mesmo principio é encon- trado na legislagao de varios paises que diferenciam entre o homi- cidio doloso (com intengao) e o homicidio culposo (sem intengaio). Creio ser por causa do sistema de protegao tribal de alguns povos do antigo Oriente Proximo que encontramos tantas leis ares- peito da protegio devida por todos a vita, ao orfao e ao estrangei- ro, aqueles que, socialmente, nao tém quem os proteja (Bx 22.21- 24; Dt 10.17-19; 14.29; 16.11,14; 24.17, 19-21; 26.12,13; 27.19; J6 6.27; 24.3; 29.12; 31.17, 21; Sl] 10.14-18; 68.5; 82.3; 94.6; De que lei estamos falando? + 45 146.9; Pv 23.10; Is 1.17, 23; Jr 5.28; 7.6; 22.3; Ez 22.7; Os 14.3; Zc 7. 10; M13.5). Tiago, sendo bom judeu e tendo grande entendimento desse principio, nos diz em sua epistola (Tg 1.27): A religifio pura e sem macula, para com o nosso Deus ¢ Pai, & esta: visitar os Orfaos e as vitivas nas suas tribulagdes e a si mesmo guardar-se incontaminado do mundo. O orfao, a vitiva e o estrangeiro precisavam ser protegidos porque ndo tinham quem os protegesse imediatamente, 0 pai da familia. Essa 6 uma das questées levantadas no livro de Atos, quando as vitivas estavam sendo esquecidas na distribuigao do pao (At 6.1). Da mesma forma, 0 estrangeiro precisava de prote¢ao por- que ninguém do seu cla estaria ali para protegé-lo. O caso de Sodoma e Gomorra ¢ tipico e o pecado e a desordem se tornaram de tal monta que as pessoas de fora eram “normalmente” passiveis de abuso, sem que ninguém as protegesse (leia Gn 19.1-11).O principio da protego desses individuos vem da lei moral de amar © proximo como a si mesmo e Israel precisava entender que o proximo n&o era apenas o membro do seu cla (Lv 19.18—“Nao te vingards, nem guardaras ira contra os filhos do teu povo; mas ama- rs 0 teu proximo como ati mesmo. Eu sou o SENHOR.”). E por isto que Tiago coloca estes elementos como os testes da verdadeira religido: a fé aplicada na vida. Hoje, certamente, ha muitos outros grupos que precisam ser protegidos, assim como ha orfaos e vini- vas que nao carecem de qualquer prote¢ao. Ha uma distingao entre a aplicagao da lei naquele contexto e a lei moral em si. O principio do julgamento justo e da protegdo social so valores morais ensinados nas Escrituras e que devem ser aplicados hoje porque so emanados da lei moral. Encontramos nesses exemplos uma aplicagao contextual da lei moral de Deus para a sociedade daquela época. A lei moral permanece, a aplica- Gao dadaa ela na sociedade israelita, nao. As diversas penas para os diversos tipos de crimes que sé ensinados no Pentateuco certamente nao se aplicam hoje por se- rem eminentemente pertencentes ao contexto da sociedade civil 46 © LeieGraga israelita durante o tempo em que Israel viveu como nag&o antes da vinda de Cristo. Existem grupos hoje que créem que as leis e penas civis pres- critas na Biblia devem ser aplicadas nas sociedades modernas. Os partidarios deste movimento sao conhecidos como teonomistas. Veremos mais adiante a quest4o da teonomia e suas implicagdes. Certamente, para muitos leitores da Biblia, nao é facil fazer uma distingdo imediata entre as categorias de leis que nela encon- tramos. Um dos principais meios para sabermos se umaleié civil é fazendo uma anilise cuidadosa do contexto em que ela foi dada. Lei cerimonial A lei cerimonial ou religiosa apresenta as formas externas pelas quais os crentes, durante o periodo de vida da nagao israelita, po- deriam demonstrar a sua fé de maneira solene no culto ptblicoea sua santidade na vida privada. Por um lado, a lei cerimonial tinha a fungao de distinguir 0 povo escolhido por Deus para aentrega da lei escrita ao mundo, e por outro, ensina-lo a aguardar a vinda do Messias. A lei cerimonial é cercada de simbolos, sinais, tipos e sombras das realidades espirituais reveladas e cumpridas por Cristo na sua vinda. Diferentemente da lei civil, a lei cerimonial nem sempre é uma aplicagao direta da moral, mas uma aplicagdo simbolica da mes- ma. Em alguns casos, a lei cerimonial pode nos parecer muito es- tranha, considerando que, em varios casos, desconhecemos a na- tureza exata do que ela representa, ainda que fosse clara aos que a primeiramente a receberam. Por outro lado, a lei cerimonial nunca contradiz.a lei moral. Devemos nos lembrar que 0s israelitas viviam em meio a um conjunto de elementos que lhes lembravam a santi- dade de Deus. Eles nao precisavam imaginar como era 0 tabernaculo ecomoeram feitos os sacrificios. Eles viam o tabernaculo e obser- vavam os sacerdotes fazendo os sacrificios. Eles podiam perguntar aos sacerdotes o que cada uma daquelas coisas significava e os sacerdotes as explicavam dentro do seu proprio contexto! De que lei estamos falando? * 47 Os livros de Exodo, Levitico e Deuterondmio contém prati- camente toda a lei cerimonial, sendo Levitico o principal “manual” cerimonial para os israelitas. Encontramos nesse livro as leis acer- cados sacrificios de animais (holocaustos), ofertas, sacrificios pa- cificos, sacrificios pelos pecados por ignordncia, pecados ocultos, sacrilégios, pecados voluntarios, consagrag6es, purificagdes, vari- as doengas, festas, casamentos, leis de propriedades, resgates e varias outras. Grande parte da lei se refere ao Tabernaculo e toda asimbologia e representagao que este tem com relagao ao sacrifi- cio de Cristo. Entre os varios exemplos que podemos tomar, veja o caso das leis que proibiam comer a carne de animais considerados impuros (Lv 11). Existe, certamente, uma l6gica nessas leis quanto aos ani- mais considerados puros e impuros € quanto ao que esta separacdo representava. Em termos gerais, os animais carnivoros e outros que comem a carne com 0 sangue, eram proibidos (cf Gn 9.4), assim como animais que tocavam cadaveres. Em geral, os animais de cria- ¢4o doméstica e ruminantes podiam ser usados na dieta israelita, mas com excegées (Lv 11.4-8). A fungao destas leis era de estabe- lecer no cotidiano do povo, praticas que representassem a sua dis- tingdo de outros povos e proclamassem a santidade de Deus em oposi¢ao a imundicia dos demais povos que eram idélatras e nao faziam parte da alianga. As leis sobre a dieta do povo representavam a forma como Deus haveria de limpar 0 seu povo do pecado. A exclusividade de Israel era lembrada até mesmo na peculiaridade de sua dieta. Assim como Israel fora separado por Deus para uma fun- cdo especifica, sua conduta, obedecendo a lei cerimonial, deveria ser separada dos demais povos. Existem obras que mostram como as leis cerimoniais sobre os alimentos incorporam aspectos impor- tantes para a satide do ponto de vista médico cientifico. Com estas leis Deus estava usando de sua misericrdia na preservacao da sati- de de seu povo. O fato de serem leis cerimoniais assegurava que seriam praticadas e que 0 povo de Deus, diferente do demais povos, fosse preservado de muitas enfermidades comuns da época e que no tinham qualquer tratamento possivel.'> 48 + Lei e Graca Talvez a lei sobre os alimentos fosse uma das mais dificeis para os judeus superarem nos seus costumes. Durante séculos os seus pais ensinaram e praticaram esses costumes. Como passar por cima deles agora? Esse foi o dilema enfrentado pelo apéstolo Pedro conforme a narragao de Lucas em Atos 10.10-16: Estando com fome, quis comer; mas, enquanto lhe preparavam a comida, sobreveio-lhe um éxtase; entdo, viu o céu aberto e des- cendo um objeto como se fosse um grande lengol, o qual era baixado 4 terra pelas quatro pontas, contendo toda sorte de quadrupedes, répteis da terra e aves do céu, E ouviu-se uma voz que se dirigia a ele: Levanta-te, Pedro! Mata e come. Mas Pedro replicou: De modo nenhum, Senhor! Porque jamais comi coisa alguma comum e imunda. Segunda vez, a voz lhe falou: Ao que Deus purificou nao consideres comum. Sucedeu isto por trés vezes, e, logo, aquele objeto foi recolhido ao céu, Mesmo diante de uma visao, Pedro ficou perplexo. Sua res- posta imediata foi “De modo nenhum, Senhor!” Ao contrario do judeu que considerava aquelas coisas co- muns ¢ certas, para o homem contemporaneo essas leis parecem estranhas e sem sentido em muitos dos seus aspectos. Para a so- ciedade ocidental, a idéia de sacrificio parece algo longinquo e pri- mitivo. Ouve-se até mesmo de igrejas chamadas cristds que ten- dem a “esconder” das criangas 0 conceito sacrificial da morte de Cristo por causa de sua “brutalidade”. Mas 0 conceito de sacrifi- cio substitutivo é supra-cultural, é moral, é emanado de Deus, mesmo que a antropologia e sociologia moderna insistam em afirmar que estas praticas sejam proprias de culturas primitivas. O sacrificio de animais foi dado a Israel como uma sombra do sacrificio a ser feito pelo Messias na cruz do Calvario. O povo de Israel precisava com- preender a misericordia de Deus ao permitir que 0 pecado fosse pago através de um substituto. O sistema sacrificial ensinado no Antigo Testamento, que a primeira vista parece um peso insuportavel, deve ser entendido do ponto de vista do seu tempo e pratica. Temos de lembrar que to- dos os detalhes do sacrificio e sua repeti¢&o eram tarefas exclusi- vas dos sacerdotes. Ninguém além deles era autorizado a sacrifi- De que lei estamos falando? + 49 car. Eles eram especialistas naquilo que faziam e aprendiam como qualquer pessoa que tem que se especializar em algum campo es- pecifico. Por serem sombrae tipo, esses sacrificios, assim como as leis que se encontram na mesma categoria, foram revogados. Que a lei cerimonial foi revogada é evidenciado em varios textos do Novo Testamento, especialmente na carta aos Hebreus, que pode ser considerada como um comentario cristéo sobre a lei contida no Pentateuco e mais especificamente no livro de Levitico. Nessa carta encontramos praticamente todos os grandes temas do Pentateuco abordados: a Terra Prometida (Hb 4.8-11), 0 Tabemaculo (Hb 9. 1-14), os sacrificios (Hb 10.1-10), 0 sacerdécio (Hb 10.19-25). Encontramos grandes porgdes de Hebreus falando- nos das modificagdes radicais quanto a lei cerimonial em geral: Se, portanto, a perfeigéo houvera sido mediante o sacerdécio levitico (pois nele baseado o povo recebeu a lei), que necessida- de haveria ainda de que se levantasse oiltro sacerdote, segundo a ordem de Melquisedeque, ¢ que nao fosse contado segundo a ordem de Arado? Pois, quando se muda o sacerdécio, necessaria- mente ha também mudanga de lei. Porque aquele de quem sao ditas estas coisas pertence a outra tribo, da qual ninguém pres- tou servi¢o ao altar; pois é evidente que nosso Senhor procedeu de Juda, tribo a qual Moisés nunca atribuiu sacerdotes. E isto é ainda muito mais evidente, quando, a semelhanga de Melquisedeque, se levanta outro sacerdote, constituido nao con- forme a lei de mandamento carnal, mas segundo o poder de vida indissolivel. Porquanto se testifica: Tu és sacerdote para sem- pre, segundo a ordem de Melquisedeque. Portanto, por um lado, se revoga a anterior ordenanga, por causa de sua fraqueza e inutilidade (pois a lei nunca aperfeigoou coisa alguma), e, por outro lado, se introduz esperanga superior, pela qual nos chega- mos a Deus. (Hb 7.1 1-19) O autor de Hebreus argumenta que a lei levitica, cerimonial, foi dada debaixo do sacerdécio levitico, mas que debaixo desse sacerdécio nenhuma perfeigao foi alcangada. Foi necessario um novo sacerdécio, um que nao era procedente da tribo de Levi, mas de Juda, para que viesse a perfeigao. Esse recebeu 0 sacer- décio da ordem de Melquisedeque. Ora, se 0 sacerdécio levitico 50 * Leie Graca foi revogado a pratica da lei levitica também. Quando 0 texto nos diz que “se revoga a anterior ordenanga”, o autor esta certamente se referindo 4 lei levitica e nao a torah como um todo. A distingao da lei cerimonial dos demais tipos de leis é essencial na leitura da carta aos Hebreus para que nao se interprete a epistola de maneira contraria ao todo da Escritura. Ao mesmo tempo em que 0 autor da carta afirma t4o claramente que a lei foi revogada, nos ensina mais adiante, interpretando o profeta Jeremias, que a lei foi escrita nos coragées dos crentes: E, de fato, repreendendo-os, diz: Eis ai vém dias, diz o Senhor, e firmarei nova alianga com a casa de Israel e com a casa de Juda, nao segundo a alianga que fiz com seus pais, no dia em que os tomei pela mao, para os conduzir até fora da terra do Egito: pois eles nao continuaram na minha alianga, ¢ eu nao atentei para eles, dizo Senhor. Porque esta ¢ a alianga que firmarei com a casa de Israel, depois daqueles dias, diz o Senhor: na sua mente imprimi- rei as minhas leis, também sobre o seu coragao as inscreverei; e eu serei o seu Deus, e eles serao 0 meu povo. E nao ensinara jamais cada um ao seu proximo, nem cada um ao seu irm&o, dizen- do: Conhece ao Senhor; porque todos me conhecerao, desde o menor deles até ao maior. (Hb 8.8-11) Diferentemente da alianga com Israel, alianca esta feita com uma na¢&o em que nem todos eram de fato regenerados, na nova alianga, os que realmente entram nela tem a lei de Deus gravada nos coragées e mentes, de maneira que, nao ha mais necessidade de [hes dizer “conhega o Senhor”, porque nesta nova comunidade todos o conhecem. Outra vez o autor aos Hebreus se refere ao mesmo texto de Jeremias 31: Porque, com uma tinica oferta, aperfeigoou para sempre quantos estao sendo santificados. E disto nos da testemunho também o Espirito Santo; porquanto, apds ter dito: Esta é a alianca que farei com eles, depois daqueles dias, diz 0 Senhor: Porei no seu cora- ¢ao as minhas leis e sobre a sua mente as inscreverei, acrescenta: Também de nenhum modo me lembrarei dos seus pecados e das suas inigitidades, para sempre. (Hb 10.14-17) Nestes versos 0 autor de Hebreus nos diz claramente que a oferta de Cristo eliminou a necessidade da repetigo ordinaria de eees os aa o. ofert pelos pecados uma vez que 0 sacri icio de Cristo é perma- ngeite. Esta verdade nos é con irmada pelo Espirito anto que co- E ocax De que lei estamos falando? + 53 Jeremias 7.22-23 .. Nada falei a vossos pais, no dia em que os tirei da terra do Egito, nem lhes ordenei coisa alguma acerca de holocaustos ou sacrificios. Mas isto Ihes ordenei, dizendo: Dai ouvidos 4 minha voz, € eu serei 0 vosso Deus, e'vés sereis 0 meu povo; andai em todo 0 caminho que eu vos ordeno, para que vos va bem. Miquéias 6.6, 8 Com que me apresentarei ao SeNHor e me inclinarei ante o Deus excelso? Virei perante ele com holocaustos, com bezerros de um ano? ... Ele te declarou, 6 homem, o que € bom e que é 0 que o Senuor pede de ti: que pratiques a justiga, e ames a misericordia, ¢ andes humildemente com o teu Deus. Podemos concluir que os verdadeiros filhos de Abraao, os fi- Thos na fé, sabiam que a lei cerimonial era uma sombra de uma rea- lidade maior. Por certo nao tinham toda a clareza que temos depois de recebermos a revelagao do Novo Testamento, mas pela expres- s&io de Davi e dos profetas, sabemos que tinham uma boa nog&o do que a lei cerimonial representava. No entanto, mesmo que nao te- nhamos uma idéia tao clara quanto os israelitas de como eram as sombras, nds hoje vemos a propria luz de Cristo e temos o testemu- nho do Novo Testamento de que ele cumpriu todas aquelas coisas. Alderi Matos diz em seu artigo “Os Reformadores e a Lei — Semelhangas e Diferengas”:”” A lei cerimonial tinha em Cristo 0 seu contetido e fim, pois sem ele todas as ceriménias sAo vazias. A unica razdo pela qual os sacrificios dos sacerdotes antigos eram aceitaveis a Deus era a prometida redengao em Jesus Cristo. Em si mesmos, dada a nos- sa corrup¢ao, quaisquer sacrificios que pudéssemos oferecer a Deus seriam inaceitaveis. Nas palavras de Calvino, o Senhor Jesus, “ao mesmo tempo em que aboliu o uso [da lei cerimonial] selou sua forga e efeito por sua morte” (Jnst. 2.7.16). O autor de Hebreus resume isto de for- ma bem clara na sua introdugdo a epistola: Havendo Deus, outrora, falado, muitas vezes e de muitas manei- ras, aos pais, pelos profetas, nestes Ultimos dias, nos falou pelo Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, pelo qual também fez 0 universo. 54 ¢ Leie Graca Ele, que é 0 resplendor da gloria e a expressao exata do seu Ser, sustentando todas as coisas pela palavra do seu poder, depois de ter feito a purificag&o dos pecados, assentou-se a direita da Majestade, nas alturas, tendo-se tornado tdo superior aos anjos quanto herdou mais excelente nome do que eles. (Hb 1.1-4) A lei moral Tendo uma visdo mais abrangente do que sao a lei civil ¢ a lei cerimonial do Antigo Testamento podemos nos voltar para a lei moral de Deus. Em geral, moral é considerado 0 conjunto de re- gras que se aplicam de maneira absoluta, independente de tempo ou lugar. Esse conceito se torna cada vez mais estranho na socie- dade moderna. Varias correntes de ensino insistem que toda moral é relativa ao seu tempo e lugar, tendo por base usos e costumes, sociais que variam ao longo das épocas. Muitos insistem que o ser humano é amoral, e que sua moralidade é fruto do processo evolutivo e que, portanto, toda moral ¢ relativa. Esse ensino terrivel tem leva- do a sociedade contemporanea ao extremo de uma vida totalmente imoral. O proprio conceito evolutivo de que o homem é um “animal racional” leva a esse tipo de conclusao. Se realmente o ser humano n&o passa de um animal evoluido, perdemos todo o sentido de ori- gem e propésito e 0 conceito de moral se torna nulo. As Escrituras nos ensinam que Deus é eterno e moral e assim ele criou o homem, com uma alma eterna e com uma consciéncia moral. Essa consciéncia moral do homem é 0 mesmo que a “lei natural” ou lei interior da qual falamos anteriormente. Quando o homem age imoralmente ele age segundo a sua natureza caida e rebelde contra o Deus criador. Mas nao foi para isso que o homem foi criado. Quando criou o homem a sua imagem, conforme a sua semelhanga (Gn 1.26), Deus 0 fez para que ele vivesse uma vida moral responsavel diante do Criador. Para isso, o homem deveria seguir todo 0 ensinamento de Deus. Mas devido a queda, antes mesmo dos Dez Mandamentos serem formalmente dados no Sinai, encontramos no texto biblico anarrativa da quebra de todos eles! Encontramos a crenga em falsos deuses, 0 culto aos mesmos, a blasfémia contra o nome de De que lei estamos falando? + 55 Deus, a quebra do sabado, a desonra aos pais, 0 assassinato, 0 adultério, 0 roubo, a mentira e a cobiga. Nada ficou de fora. Com 0 pecado, o homem entrou em um estado em que nega a sua origem moral, opondo-se ao ensino e 4 vontade de Deus! Creio ser por esta razio que os Dez Mandamientos foram dados principalmente na forma negativa, porque a inclinag&o do homem era contraa vontade de Deus ¢ todos os mandamentos ja haviam sido quebrados. E onde encontramos a lei moral? Ja afirmamos que os Dez Mandamentos sao 0 resumo da lei moral e varias indicagdes no texto das Escrituras marcam a centralidade deles. Os Dez Manda- mentos foram escritos pela mao de Deus, gravados em pedra e colocados na arca (Dt 10.1-5; 4.10-13). Os demais escritos de Moisés nao foram gravados em pedra, e foram colocados ao lado da arca (Dt 31.24-26). Isto, no entanto, nao diminui 0 seu valor. Muito pelo contrario, esses atos de Deus eram para a validagao do que Moisés haveria de escrever posteriormente Os escritos de Moisés s&o Palavra de Deus da mesma forma como os Dez Mandamentos. E importante entender que Moisés foi um ministro da lei, nao o seu autor. O principal ponto que quero ressaltar é que nado devemos pensar que os Dez Mandamentos sao todaa lei moral. Podemos afirmar que “as proposigGes explicitas dos Dez Mandamentos, sao formas resumidas de encasular concei- tos morais mais bem abrangentes que o mandamento propriamente dito”.'* Seria até mesmo estranho pensar que toda a lei moral de Deus foi dada de forma negativa (exceto 0 4° e 5° mandamentos). Encontramos nas Escrituras leis de cardter moral antes e depois dos Dez Mandamentos. Génesis 9.6, sobre a pena capital, é um exem- plo de uma lei moral anterior aos Dez Mandamentos ¢ refletida no sexto mandamento: “Nao mataras”. Esse mandamento proibe o as- sassinato, enquanto a lei em Génesis 9, além de proibir 0 assassina- to, fala da sua pena: a morte daquele que assim o fizesse. Sea lei moral nao “existisse” e nao tivesse sido de alguma forma proclamada antes dos Dez Mandamentos teriamos que con- siderar livres de pecados todos os que viveram antes da sua entre- 56 + ~=Leie Graga gaa Moisés no Sinai. Porventura aqueles que quebraram os man- damentos eram inocentes porque a lei ainda nao fora dadano Sinai? E claro que nfo. Quando Paulo nos fala que o homem conhece 0 pecado por intermédio da lei, ele certamente tem em mente a lei moral como um todo e nao sé o seu resumo, ainda que cite exata- mente 0 ultimo mandamento (Rm 7.7): Que diremos, pois? E a lei pecado? De modo nenhum! Mas eu nao teria conhecido © pecado, sendo por intermédio da lei; pois nao teria eu conhecido a cobica, se a lei ndo dissera: Nao cobigaras. Muitos judeus tendiam a restringir 0 conceito de lei como lei mosaica, pés-Sinai. Mas Paulo nos orienta ao contrario. Adao re- cebeu condenagao porque a lei jé havia sido promulgada na cria- go e foi condenado com base na lei do pacto de obras. Por causa da quebra da lei o pecado reinou desde a queda até Moisés. Ob- serve como 0 Catecismo Maior de Westminster entende a fun- 40 da lei moral (pergunta 95): “Qual é 0 uso da lei moral para todos os homens?” Resposta: “A lei moral é de uso para todos os homens, para informa-los sobre a natureza santa de Deus € sua vontade, e de sua tarefa, constrangendo-os a andarem conformemente: para convencé-los da sua incapacidade em guardi-la e da poluicio pecaminosa de sua natureza, de seus coragdes e vidas: para humilha-los no sentido de seu pecado e miséria e, desse modo, guia-los para uma visdo mais clara da necessidade de Cristo e da perfeicado de sua obediéncia.” Ao mesmo tempo em que a lei moral tinha como fungao a ins- trucdo e informagao, ela foi dada por escrito para que o homem se tornasse completamente consciente de sua pecaminosidade e por este ensinamento fosse conduzido a ver sua necessidade de Cristo. Este ensinamento do Cafecismo ¢ fundamentado no texto de Galatas 3.24—“De maneira que a lei nos serviu de aio para nos conduzir a Cristo, a fim de que fossemos justificados por {é.” Calvino, falando sobre este verso em seu comentario da Epistola aos Galatas (3.24) nos diz que “a lei era a gramatica da teologia, que, depois de levar seus alunos por um breve caminho, os entregou a fé. De que lei estamos falando? + 57 QUAIS PARTES DA LEI DEVEMOS APLICAR HOJE? E COMO? JAvimos acima alguns exemplos de como a lei deve ser aplicadae de como nao pode ser aplicada. Um excelente resumo é apresen- tado por Solano Portela em seu artigo “Pena de Morte - Uma Avaliacao Teolégica e Confessional”: Nao estamos sob a lei civil de Israel, mas sob 0 periodo da Graga de Deus, em que o evangelho atinge todos os povos, ragas tri- bos e nagées. Nao estamos sob a lei religiosa de Israel, que apontava para 0 Messias, foi cumprida em Cristo, e ndo nos prende sob nenhuma de suas ordenangas cerimoniais, uma vez que estamos sob a graca do evangelho de Cristo, com acesso direto ao trono, pelo seu Santo Espirito, sem a intermediagao dos sacerdotes. Nao estamos sob a condenacio da lei moral de Deus, se fomos resgatados pelo seu sangue, mas nos achamos cobertos por sua graga. Nao estamos, portanto, sob a lei, mas sob a graca de Deus, nes- ses sentidos. Entretanto... Estamos sob a lei moral de Deus, no sentido de que ela continua representando a soma de nossos deveres e obrigagdes para com Deus e para com o nosso semelhante. Estamos sob a lei moral de Deus, no sentido de que cla, resumida nos Dez Mandamentos, representa a trilha tragada por Deus no processo de santificacao, efetivado pelo Espirito Santo em nds (Jo 14.15). Nos dois ultimos aspectos, a prdpria lei moral de Deus é uma expressdo de sua graga, representando a objetiva e proposicional revelacgao de sua vontade.'” Assim, é fundamental que, ao ler 0 texto biblico, saibamos identificar a que tipo de lei 0 texto se refere e conhecer, entao, a aplicabilidade dessa lei para o nosso contexto. Quebrar a lei de Deus em qualquer de suas categorias sempre resulta em quebrar a lei moral. Masas leis civis e cerimoniais de Israel nao tém um card- ter normativo sobre 0 povo de Deus hoje, ainda que possam ter 58 + Leie Gracga uma outra fungao, por exemplo, ensinar-nos principios gerais so- bre ajustiga de Deus. Portanto, a lei que permanece “vigente” na nossa e em todas as épocas é a lei moral de Deus. Ela valeu para Adao assim como vale para nds hoje. Nossa proxima sessao trata da forma como a lei moral opera hoje, diante da criacao caida. QUESTOES PARA ESTUDO E muito dificil parao leitorda Biblia sem um treinamento teolégico formal distinguir, na leitura, os tipos de lei que encontramos na Bi- blia. Até mesmo para quem tem treinamento é dificil! Em alguns casos as diferencas sao 6bvias, como nos Dez Mandamentos. Mas mesmo em meio aos Dez Mandamentos é possivel que alguém confunda o 4° mandamento ~ a guarda do dia de descanso~ como lei cerimonial e nao moral. O fato desta determinagao estar inserida na Lei Moral, mostra a importancia que Deus da ao descanso se- manal, bem como a perpetuidade da ordenanga, em seu espirito (relembrar, descansar, adorar). Ainda que cerim6nias especiais da lei fossem reservadas ao sdbado, a guarda e dedicagdo de um dia entre sete para o culto e descanso, é lei moral. O descanso foi dado ao homem como uma bénciio e no um peso. O jugo que acompanhava a guarda do sdbado era imposto pela interpretagao dos fariseus e nao pelas Escrituras. O sébado era um tempo de adoragao e descanso, uma grande béngéio de Deus! Em outros casos € dificil distinguir entre a lei civil ea lei ceri- monial. Veja o caso das cidades de refiigio novamente. Ainda que esta seja claramente uma lei civil, proporcionando uma oportuni- dade de defesa a quem fosse acusado de homicidio, as cidades de refugio eram cidades leviticas (Nm 35.6). Além do mais, 0 acusa- do de homicidio involuntario permaneceria na cidade de refugio até a morte do sacerdote (Nm 25.25-32). Percebemos nesse exem- plo aconexo existente entre a lei civil e cerimonial. Em varios casos como este, os sacerdotes eram os responsaveis pela aplica- ao da lei civil juntamente com os ancidos. De que lei estamos falando? + 59 N&o existe uma “formula” para a distingaio imediata entre a lei civil, cerimonial e moral, exceto a leitura cuidadosa e criteriosa acompanhada do auxilio do Espirito Santo considerando de ma- neira especial os Dez Mandamentos como resumo ea interpreta- ¢4o de Jesus sobre a lei. A especial atencdo aos Dez Mandamen- tos e a interpretag&o que o Novo Testamento da lei sao as nossas melhores ferramentas. Minha recomendacao é que sejamos apli- cados na leitura e na busca da compreensio da lei como um todo. Quanto mais pudermos aprender sobre como interpretar cada tipo de lei, com mais facilidade poderemos discerni-las. Em seu comentario dos quatro ultimos livros de Moisés (Exodo, Levitico, Numeros e Deuteronémio) Calvino tentou divi- dir toda a lei debaixo dos Dez Mandamentos, fazendo uma Har- monia da Lei (Commentaries on the Last Four Books of Moses Arranged in the Form of a Harmony). Ele faz um comentario introdutorio a lei em Exodo | a 19 e depois divide os demais capi- tulos de Exodo a Deuterondmio debaixo de cada um dos manda- mentos. S40 mais de duas mil paginas de comentarios em quatro volumes apresentando as ligagdes entre a lei moral, civil e cerimo- nial. Mesmo assim, este estudo esta longe de ser conclusivo. oes COMO A LEI MORAL OPERA NOS NOSSOS DIAS?” Ji vimos que nao mais estamos debaixo da obrigagao da lei civil e cerimonial de Israel e que nao mais estamos debaixo da condenagao da lei moral porque Jesus se fez maldito e recebeua condenagio da lei no lugar de seus eleitos. Porém, ¢ importante tra- balharmos um pouco mais nos detalhes de como a lei moral exerce a sua fungéo em nossos dias. Creio que a melhor e mais clara explica- go dos usos da lei parte da tradicdo dos reformadores ¢ recebe boa forma nas Jnstitutas da Religido Crista.' Para esclarecer a fungao da lei de Deus dada por intermédio de Moisés nas diferentes épocas da revelago, Calvino desenvolve os trés usos da lei: 1. Oprimeiro uso da lei: a lei nos mostra a justiga de Deus, como um espelho revela nossa pecaminosidade, levando-nos a implorar a ajuda divina (2.7.6-9). 2. O segundo uso da lei: a lei restringe os malfeitores ¢ aque- les que ainda nao sao crentes (2.7.10-11). 3. Oterceiro uso da lei: ela admoesta os crentes e os encora- jaa fazer o bem (2.7.12-13). Como a tei moral opera nos nossos dias? . 61 O primeiro uso da lei (Inst. 2.7.6-9) O primeiro uso da lei apontado por Calvino é chamado de usus theologicus. Sobre a lei nesse uso Calvino diz: A leié como um espelho. Nela contemplamos nossas fraquezas e a iniqiiidade que delas provém e, finalmente, a maldi¢ao que pro- vém de ambas — exatamente como um espelho nos mostra as manchas de nossa face. Porque quando a capacidade de seguir a justiga lhe falta, o homem se enlameia com 0 pecado. Logo em seguida ao pecado vem a maldigao. Conseqiientemente, quanto maior a transgressao da qual a lei nos acusa, mais grave o julga- mento do qual nos faz responsavel. A declaragao do apéstolo é relevante neste ponto: [...] “pela lei vem o pleno conhecimento do pecado” [Rm 3.20]. Aqui ele aponta apenas para a primeira fungiio, que os pecadores ainda nao regenerados experimentam. Relacionados a esta esto as declaragées: “Sobreveio a lei para que avultasse a ofensa” [Rm 5.20], e entao ¢ o “ministério da morte” [2Co 3.7] que “suscita a ira” [Rm 4,15] e mata. Nao ha duvida de que quanto mais claramente a consciéncia é golpeada com a realidade do seu pecado, mais cresce a iniqitidade. No uso teoldgico, a lei exerce o papel de revelar e tornar claro o pecado humano e com isso torna a iniqitidade do homem ainda maior. Ela informa, admoesta e condena. Em Romanos, Paulo aponta para a perfeig&o da lei que, se obedecida, seria suficiente para a salyag4o, entendendo que salvagao pressupde queda. Porém, nossa natureza carnal confronta-se com a perfei- ¢ao da lei que foi dada por Deus para a vida. Nesse confronto a lei se torna em ocasiao de morte (Rm 7.10). Uma vez que todos sio comprovadamente transgressores da lei, ela cumpre a fun- ¢ao de revelar a nossa iniqiiidade. Entretanto, a lei que revela a inigitidade do homem atinge al- vos distintos. Para os nao regenerados, a lei serve de acusadora e opera como um “ministério de morte”, demonstrando ainda mais 0 estado de depravagao em que a raga humana caida se encontra. Em um certo sentido, a lei exerce um papel semelhante ao papel da fragrancia do conhecimento de Cristo: exalta o estado de pecado e morte em que o homem se encontra (2Co 2.16a—“Para com es- tes, cheiro de morte para morte...”). Ja para os eleitos, mesmo 62 © Lei e Graga ainda nao regenerados, a lei hes mostra o quanto so vazios diante de Deus e 0 quanto precisam dele, implorando sua ajuda, prepa- rando-os para receber a graca de Cristo (2Co 2.16b — “...para com aqueles, aroma de vida para vida.”). A lei serve para remover 0 orgulho humano e sua inclinagao para a auto-justificagao. Nesse mesmo papel, a lei faz. o regenera- do ver a extensao e dogura da graca de Deus. Dessa forma, a lei condena a todos, porém com diferentes propésitos. Assim, a lei, ao acusar 0 eleito, o leva a apelar para a graga de Cristo. O segundo uso da lei (Inst. 2.7.10-11) O segundo uso da lei é também chamado de usus civilis —é a fungao da lei que restringe o pecado humano ameagando com pu- nico as faltas contra ela. Nesse uso, a lei serve como uma prote- ¢40 comunitaria. E por ter esse medo da punigao da lei que o ser humano é capaz de viver em comunidade. E certo que a lei nao opera nenhuma mudanga interior no coracao humano, fazendo-o justo ou reto no obedecé-la, mas opera como um freio, contendo “as maos de uma acdo extrema”.”? Na verdade, o homem natural tende a odiar a lei e aquele que a pro- clamou. Se pudesse, eliminaria a ambos. Isso é muito claro em nossa sociedade que tenta por muitos meios negar e “eliminar” a Deus, aberta ou veladamente, tedrica ou praticamente. Portanto, o homem nao se torna submisso pela lei somente, mas é coagido pela forga da lei que se faz presente na sociedade comum e em sua consciéncia. E exatamente isto que permite aos homens uma con- vivéncia social. Podemos até dizer que o homem vive em socieda- de para se proteger uns dos outros. Com 0 tempo o homem pode aprender a viver com tranqiiilidade por causa lei de Deus que o restringe do mal. O homem é capaz, por causa da lei de Deus, de copid-la para seu proprio bem. E até mesmo capaz de criar leis que reflitam principios da justiga divina. Parece ser esse o principio que Paulo tem em mente ao escrever a Timéteo (1 Tm 1.9,10): «tendo em vista que nao se promulga lei para quem é justo, mas para transgressores e rebeldes, irreverentes e pecadores, impios Como a lei moral opera nos nossos dias? . 63 e profanos, parricidas e matricidas, homicidas, impuros, sodomitas, raptores de homens, mentirosos, perjuros e para tudo quanto se opde a sa doutrina.. Assim, alei exerce 0 papel de coergao para esses transgressores e evita que esse tipo de mal se alastre ainda mais amplamente no seio da sociedade humana. Explicando isso, Calvino comenta (parte do comentario de Romanos 8.15): Ainda que o pacto da graga se ache contido na lei, nao obstante Paulo o remove de 14: porque ao contrastar 0 evangelho com a lei, ele leva em consideragdo somente o que fora peculiar a lei em Si mesma, ou seja: ordenanga e a proibigdo, refreando assim Os transgressores com ameaga de morte. Ele atribui a lei suas proprias qualificagdes, mediante as quais ela difere do evange- Iho. Contudo, pode-se preferir a seguinte afirmagdo: “Ele s6 apresenta a lei no sentido em que Deus, nela, se pactua conosco em relagao as obras.” Dessa forma, ela serviu a sociedade israelita e serve a socieda- de como um todo. Essa aco inibidora da lei cumpre ainda um outro papel im- portante no caso dos eleitos nao regenerados. Ja apontamos ante- riormente que a lei serve de aio, de condutor a Cristo, como diz, Paulo em Galatas 3.24: “de maneira que a lei nos serviu de aio, para nos conduzir a Cristo, a fim de que fossemos justificados por fé.” Podemos distinguir algumas formas pelas quais a lei cumpre esse papel para com 0 eleito: Primeiro, antes da manifestagao da sua salvacao, 0 eleito é ajudado pela lei a néo cometer atrocidades, nao como uma garantia de que nao fara algo terrivel, mas como uma ajuda, pelo temor da punigdo. Em segundo lugar, antes de sua salvacao e no tempo da igno- rancia, os eleitos sdo levados, pelo medo da punigao da lei, e de forma gradual, a amar a Deus, como especifica a Confisséio de Fé de Westminster: Aqueles, portanto, a quem destinou a heranga do seu Reino, se n&o os regenera imediatamente, ele, através das obras da lei, preserva em temor, até 0 tempo da sua visitagado, néo com aquele temor puro que seus filhos devem ter, mas um temor uti] para ins- 64 «+ Leie Graga trui-los na verdadeira piedade de acordo com sua capacidade pro- pria... Porque todos os que permaneceram por algum tempo na ignorancia de Deus iraéo confessar, como resultado de sua propria experiéncia, que a lei tinha 0 efeito de manté-los em temor e reve- réncia a Deus, até que, tendo sido regenerados por seu Espirito, comegaram a ama-lo com seu coragao (CFW. 2.7.11) O terceiro uso da lei (Inst. 2.7.12-13) O terceiro uso da lei (tertium usus legis) € 0 uso pelo qual Deus faz a sua vontade conhecida aos crentes. Esse terceiro uso sé é valido para os verdadeiros crist4os e Calvino 0 aponta como 0 uso mais apropriadamente conectado com o propésito da lei. E interessante observar que muitos crist&ios contemporaneos advogam que a lei foi revogada de maneira completa e, assim, até mesmo a lei moral, na sua forma escrita, é desnecessaria. O argu- mento normalmente segue na diregdo de enfatizar a lei na mente € no coragao dos crentes, conforme Jeremias 31.33. A duvida ge- ralmente esta em torno de questdes como: Se a lei de Deus esta impressa na mente e escrita no coragdo dos crentes, qual a fun¢ao da lei escrita por Moisés? Ela é realmente necessaria? Nao basta um coracao convertido, amoroso e cheio de compaixao para co- nhecer a vontade de Deus? A “lei do amor” e a consciéncia do cristo orientadas pelo Espirito Santo nao bastam? Nao seria sufi- ciente apenas termos a paz de Cristo como arbitro de nossos co- ragdes? (Cl 3.15). [Para uma interpretagaio da profecia de Jeremias, ver Apéndice A.] Este tem sido um dos grandes erros em relagdo a lei de Deus ao longo dos tempos. Da mesma forma como no Jardim do Eden, a lei moral tem, em todos os tempos, um papel orientador para os crist&os. Embora guiados pelo Espirito de Deus, vivendo e depen- dendo t&o somente da sua maravilhosa graga, a “lei é 0 melhor instrumento mediante a qual melhor aprendem cada dia, e com certeza maior, qual seja a vontade de Deus, a que aspiram, e se Ihe firmem na compreensao.” (Inst. 2.7.12). A lei de Deus revela 0 carater de Deus. A paz de Cristo como “arbitro dos coragdes” so é clara quando conhecemos inti- Como a lei moral opera nos nossos dias? . 65 mamente a vontade de Deus expressa na sua lei. Quando a co- nhecemos de fato, a lei de Deus se torna um prazer, ndo uma mera obrigacao. Calvino exemplifica essa verdade com a figura do ser- vo que, de todo o coragao, se empenha para servir seu senhor, mas para ainda melhor servi-lo, precisa conhecer e entender me- lhor aquele a quem serve. Assim, o crente, procurando melhor ser- vir a Cristo, empenha-se em conhecer a sua vontade revelada de maneira clara e objetiva na lei. Alei serve também como exortagiio para o crente. Ainda que convertidos ao Senhor, resta em nés a fraqueza da carne que pode ser, no linguajar de Calvino, chicoteada pela lei, nao permitindo que estejamos a mercé da inércia da mesma e voltemos ao pecado. Exemplos da lei como exortagdo e prazer do crente sao abundantes tanto no Antigo quanto no Novo Testamento. O prazer em andar na lei de Deus é claramente delineado pelo salmista no Salmo 19. Este Salmo é dividido em trés partes bem claras onde 0 salmista celebra a revelagao na criacao (revelacaio geral — vs. 1-6) e arevelacdo nas Escrituras (revelagao especial — vs. 7-14) ea resposta do salmista a revelagao de Deus (vs. 11-14). Na viséo do salmista, assim como 0 céue 0 sol celebram a gloria de Deus e saio esséncias para a terra (vs 1-6) a forah é essencial para a alma do homem (v. 7): A lei do Sennor é€ perfeita e restaura a alma; 0 testemunho do SeNuoR € fiel e da sabedoria aos simplices. Segundo este verso, ¢ pela lei perfeita (ensino pleno) de lavé que a alma humana é¢ restaurada! Como pode a lei restaurar a alma? E possivel que a alma do incrédulo seja restaurada pelo ensino da lei? Por tudo 0 que ja vimos, é claro que nao. Areferéncia 6 pode ser a alma daquele que ja é crente e que precisa de restauragdo e sabedoria. E como pode a lei fazer isto? Ensinando ao crente a vontade de Deus. Aprender a lei de Deus € ser revigorado por ela visto nao estarmos mais sob sua maldigao. (v. 8) Os preceitos do Senor sao retos e alegram o coracao; 0 mandamento do Senuor é puro ¢ ilumina os olhos, 66 + Leie Graga O salmista declara encontrar alegria nos retos preceitos de lavé. Alias, por esses mesmos preceitos é que se recebe vida (SI 119.93 —“Nunca me esquecerei dos teus preceitos, visto que por eles me tens dado vida.”). A funcio esclarecedora da lei (precei- tos) é muito clara, ela ilumina os olhos (como 0 sol iluminaa terra, v. 4). A palavra aqui traduzida por preceitos aparece 21 vezes no Salmo 119, sempre apontando para as bénodos e beneficios que o justo recebe em guarda-los. E fundamental, no entanto, nos lem- brarmos que 0 justo é, na verdade, o justificado. Nao devemos nunca nos esquecer dessa verdade fundamental ao lermos qual- quer parte das Escrituras e principalmente o livro dos Salmos, in- troduzido pelo primeiro Salmo que comega exatamente nos mos- trando que 0 justo tem prazer na lei de Deus e que nela medita constantemente (S] 1.2). (v. 9) O temor do SenHor € limpido e permanece para sempre; os juizos do Sennor so verdadeiros e todos igualmente justos. O temor ao Senhor e a lei so dois temas ligados através de todaa Escritura. Muitas vezes 0 temor e lei sao tratados como uma 86 coisa porque é pela Palavra que vem o temor (Dt 4.10). A conclusio do salmista sobre a Palavra de Deus é muito simples: a lei é justa porque procede daquele que é justo. (v. 10) So mais desejaveis do que ouro, mais do que muito ouro depurado; e sao mais doces do que o mel e o destilar dos favos. Os juizos do Senhor so desejaveis mais do que o ouro eo mel porque procedem de sua graca. A conclusio desta segao do Salmo é feita em termos de comparac4o com coisas que so uni- cas na sua qualidade: 0 ouro pelo seu valor e o mel por sua dogura. Express6es semelhantes podem ser encontradas no Salmo 119. Os versos finais nos mostram quais sao os frutos dessa Pala- vra (lei): [11-13] Além disso, por eles se admoesta o teu servo; em os guardar, ha grande recompensa. Quem ha que possa discernir as proprias faltas? Absolve-me das que me sao ocultas. Também da soberba guarda o teu servo, que ela nao me domine; entao, serei irrepreensivel e ficarei livre de grande transgressio. Como a lei moral opera nos nossos dias? . 67 Podemos aprender com o salmista que a lei traz esclareci- mento aqueles que por ela vivem (admoesta ¢ livra da soberba). Ao mesmo tempo, 0 salmista admite que é impossivel obedecer plenamente e que haverd erros e pecados, mas o Senhor pode perdoa-los (“Quem ha que possa discernir as proprias faltas?”). Mesmo sendo imperfeitos (em contraste com a lei perfeita de Deus), ha recompensa e livramento quando buscamos a sabedoria da torah. Ser irrepreensivel certamente nao significa viver sem pecar, mas viver na dependéncia de Deus. (v. 14) As palavras dos meus labios e o meditar do meu coragao sejam agradaveis na tua presenga, Senor, rocha minha e reden- tor meu. As palavras finais do salmista sao um pedido para que asua vida seja de total dependéncia ao seu salvador. Em todo 0 Salmo encontramos uma vis&o muito clara da dependéncia da lei de Deus para um coragao humilde na sua presenga. Precisamos compreen- der que, ao contrario do que muitos pensam, os verdadeiros cren- tes do tempo do Antigo Testamento nao viam a lei como uma for- ma legalista de Deus lidar como seu povo, mas como uma forma graciosa de Deus lhes trazer vida e prosperidade. Dessa mesma forma o crente deve hoje olhar para a lei de Deus. Assim, nao encontramos na lei em si um principio de morte. Debaixo da graga de Cristo o salmista vé a lei como a grande béngao que tem para viver uma vida “agradavel” diante do seu Senhor. Que principio de morte opera nessa lei, segundo o salmista? Nenhum. Para 0 regenerado, o crente no Senhor, a lei ¢ prazer, € desejavel, inculca temor, restaura a alma e Ihe da sabedoria. A lei em si nao faz nenhuma dessas coisas, mas para 0 coragdo regene- rado ela traz prazer e alegria. Nas palavras de Paulo, “Porque, no tocante ao homem interior, tenho prazer na lei de Deus” (Rm 7.22). Na lei, o salmista reconhece a sua rocha, o seu redentor, a Jesus Cristo: “rocha minha e redentor meu.” Isso de forma alguma pare- ce contradizer os ensinos do Novo Testamento. Muitos principios semelhantes séio encontrados no Salmo 119. Esse Salmo é um acréstico com todas as 22 letras do alfabeto 68 + LeieGraca hebraico. Cada linha poética dentro de uma seg4o comega com a mesma letra do alfabeto. O Salmo foi escrito para exaltar a revela- ¢ao da lei de Deus ao seu povo. Encontramos a palavra torah em todas as estrofes (com excegéio de 9-16) além de varios outros termos sindnimos (decretos, estatutos, preceitos, mandamentos, ordenangas, palavrae promessas). Cada linha poética contém pelo menos uma dessas palavras. A segunda estrofe (iniciada pela letra beit) nos mostra, de maneira semelhante ao Salmo 19, a aspiracao do salmista pela lei (vs. 9-16): De que maneira poderd o jovem guardar puro o seu caminho? Observando-o segundo a tua palavra. De todo 0 coragao te bus- quei; ndo me deixes fugir aos teus mandamentos. Guardo no coragdo as tuas palavras, para nao pecar contra ti. Bendito és tu, SENHOR; ensina-me os teus preceitos. Com os labios tenho narra- do todos os juizos da tua boca. Mais me regozijo com o caminho dos teus testemunhos do que com todas as riquezas. Meditarei nos teus preceitos e as tuas veredas terei respeito. Terei prazer nos teus decretos; nao me esquecerei da tua palavra. Segundo o salmista, buscar a lei de Deus €é 0 mesmo que buscar a pureza, dai a instrugdo ao jovem que tende a ser guiado pelas paixdes do mundo (as riquezas, por exemplo, v. 14) e nao pelo amor a Deus. A intengao do salmista é exatamente mostrar que devemos aprender, mesmo na juventude, a amar a lei de Deus. Ela deve ser buscada (v.10) e guardada (v. 11) no corago. Nao se trata de uma legislagdo fria que deve ser obedecida sem o cora- ¢4o, mas a instrugdo amorosa e valiosa de Deus que deve ser re- cebida pelos “bem-aventurados” (v. 1). O bem-aventurado se re- gozija e tem prazer na lei de Deus e 0 bendiz, porque ele mesmo ensinaa sua lei aos seus. De onde vem esse desejo de buscar e guardar a lei de Deus? (v. 16) De onde vem o desejo do salmista pelos juizos de Deus? (v. 20) Da lei operando sobre o homem natural? Certamente nao. Mas parao novo homem, regenerado pela obra do Espirito Santo, a lei de Deus se torna objeto de desejo da alma. A lei é maravilhosa para aquele que tem os olhos abertos pelo Senhor. Amar a lei de Como a lei moral opera nos nossos dias? . 69 Deus é ensino claro das Escrituras para os crentes. Viver na lei de Deus é béngao para o cristo. Ela é 0 nosso orientador para me- lhor conhecermos a vontade do nosso Senhor e assim servi-lo melhor. Observe que 0 viver segundo a lei de Deus é considerado uma bem-aventuranga, é como ter fome e sede de justiga. Encerrando este capitulo, pergunto: o que seria do cristao sem a lei para orienta-lo? Como conheceria ele a vontade de Deus? (alias, a pergunta mais freqiiente entre os crentes no seu dia-a-dia). Ele seria um perdido, buscando respostas em seu proprio coragdo enganoso. Ele poderia buscar conhecer a vontade de Deus através do ensino da igreja, no consenso eclesiastico, na autoridade de alguém que considerasse superior. Quem sabe buscaria conhecer a vontade de Deus em experiéncias misticas e subjetivas, esque- cendo que Deus janos falou pelas Escrituras. Mas em todos esses lugares se depararia com os mesmos erros. No entanto, na lei de Deus encontramos a declaragao da vontade de Deus para o ser humano, 0 desejo do Criador para a criatura, 0 desejo do Pai para seus filhos. ‘Veremos no proximo capitulo quais s4o os erros mais co- muns encontrados na igreja, frutos da ma compreensao do papel da lei de Deus debaixo da sua graca. SEJAMOS PRATICOS! Veja abaixo como as formas classicas de interpretagao dos Dez Mandamentos, como encontramos no Catecismo Maior de Westminster, podem ser de grande valia na compreensao de como a lei moral opera nos nossos dias. Pergunta 99. Que regras devem ser observadas para a boa compreensiio dos Dez Mandamentos? R, Para a boa compreensao dos Dez Mandamentos as seguintes regras devem ser observadas: 1a. Que a lei é perfeita e obriga a todos a plena conformidade do homem inteiro a retidao dela e a inteira obediéncia para sempre; de modo que requer a sua perfeigao em todos os deveres e proibe o minimo grau de todo o pecado. Ref. S119.7, Tg2.10; Mt 5.21,22 70 + Leie Graga A validade dos mandamentos € eterna e seus preceitos séo perfeitos, exigindo a perfeicdo no cumprimento deles. Somente Cris- to foi capaz de cumprir a lei desta forma, nao tendo ele tropegado em qualquer dos mandamentos. 2a. Que a lei ¢ espiritual, ¢ assim se estende tanto ao entendimen- to, a vontade, aos afetos ¢ a todas as outras poténcias da alma - como as palavras, as obras e ao procedimento. Ref. Rm 7.14; Dt 6.5; Mt22.37-39 e 12:36,37 Nesse principio aprendemos que a lei é valida tanto para o interior como para o exterior do homem. Isso implica que cumprir a lei so externamente ¢ hipocrisia. Jesus estende a aplicagao da lei exatamente dessa forma, mostrando como ela deve ser 0 critério do homem interior. Portanto, nao sé 0 assassinato é pecado, mas também 0 édio, nao sé 0 adultério, mas também a cobiga, nao sé oroubo, mas também a inveja. 3a, Que uma e a mesma coisa, em respeitos diversos, é exigida ou proibida em diversos mandamentos. Ref. C13.5; 1Tm6,10; Pv 1.19; Am8.5, Aqui aprendemos que os mandamentos encontrados no decdlogo sao encontrados em outros lugares das Escrituras. Veja os paralelos: 2° mandamento — C1 3.5 Fazei, pois, morrer a vossa natureza terrena: prostituigao, impureza, paix&o lasciva, desejo maligno e a avare- za, que é idolatria; 10° mandamento~ 1Tm 6.10 Porque 0 amor do dinheiro é raiz de todos os males; e alguns, nessa cobiga, se desviaram da fé ea si mesmos se atormentaram com muitas dores. 6° mandamento ~ Pv 1.19 Tal é a sorte de todo ganancioso; ¢ este espirito de ganancia tira a vida de quem o possui. 8° mandamento — Am 8.5 ... dizendo: Quando passard a Festa da Lua Nova, para vendermos os cereais? E 0 sdbado, para abrirmos os celeiros de trigo, diminuindo o efa, e aumentando 0 siclo, e procedendo dolosamente com balangas enganadoras... Como a lei moral opera nos nossos dias? . 71 4a. Que onde um dever é prescrito, 0 pecado contrario é proibi- do; e onde um pecado ¢ proibido, o dever contrario é prescrito; assim como onde uma Promessa esta anexa, a ameaga contraria estd inclusa; e onde uma ameaga esta anexa a promessa contraria esta inclusa. Ref. [s 58.13; Mt 15.4-6; Ef4.28; Ex 20,12, Pv 30.17; Jr 18.7,8; Ex 20.7 Os mandamentos tem lados positivos e negativos. Se é proi- bido mentir, é implicito o dever de dizermos a verdade. Se € proibido tomar o nome de Deus em vao, ¢ implicitaa obrigagao de honrar 0 nome de Deus. 5a. Que o que Deus proibe nao se ha de fazer em tempo algum, e © que ele manda é sempre um dever; mas nem todo o dever es- pecial é para se cumprir em todos os tempos. Ref. Rm 3.8; Dt 4.9; Mt 12.7 Sendo a lei de Deus eterna e perfeita, ela deve ser cumprida em todos os tempos. As circunstancias ndéo mudam a lei moral. No entanto, determinados deveres s6 podem ser cumpridos em de- terminados tempos. Nesse sentido, temos que entender que os deveres do trabalho, descanso e culto, por exemplo, devem ser cumpridos em diferentes tempos. 6a. Que, sob um pecado ou um dever, todos os da mesma classe sao proibidos ou mandados, juntamente com todas as coisas, meios, ocasides e aparéncias deles e provocacées a cles. Ref. Hb 10.24,25; 2Ts 5.22; GI 5.26; C13.21; Jd 23 A lei deve ser lida de maneira inclusiva. Se oadultério é proibi- do, outros pecados que pertencem a mesma categoria, da ordem sexual e da confianga, também so proibidos. Recomendo para uma exposi¢ao pratica dos Dez Manda- mentosa leitura de A Lei de Deus Hoje, Solano Portela, Editora os Puritanos, 2000. _5- AS CONFUSOES E EXTREMOS A lei, como Cristo, tem sido sempre crucificada entre dois ladrdes: antinomismo de um lado e legalismo do outro. Ernest C. Reisinger Devemos prestar grande atengdo a estas coisas, em virtude de, com rato, podermos dizer que a ignordncia da distingdo entre a lei e 0 evangelho é uma das principais origens dos abusos que corromperam e ainda corrompem o Cristianismo. Teodoro Beza O ANTINOMISMO A compreensao da graga como excludente da lei é conhecida como antinomismo, uma velha heresia contra a qual Judas e Pedro escre- veram (Jd 4-19 e 2Pe 2). Certamente o antinomismo, ao longo da Historia, tomou varias formas e teve diferentes expressdes. A ver- so do antinomismo contra a qual Judas e Pedro escreveram enfatizava que o que Deus salva no homem ¢ a almae, portanto, 0 que alguém faz de seu corpo ¢ irrelevante. Na visdo antinomista, a lei nao tem qualquer papel a exercer sobre a vida do cristo. Ela deve ser totalmente rejeitada. As confusées e extremos * 73 Outra forte expressdo do antinomismo apareceu no primei- ro século da era cristé com Marciao. Ele apresentou uma aver- sao extrema a qualquer ensino do Antigo Testamento e ensinou que alei do Antigo Testamento se opunha a graga ensinada no Novo Testamento. Na forma marcionita de antinomismo, o pr6- prio Antigo Testamento deveria ser rejeitado, assim como todas as partes do Novo Testamento que apresentavam qualquer opi- nido positiva sobre a lei. No antinomismo, a lei ¢ algo do passa- do, ultrapassada pela graga de Cristo. Agora sé o Novo Testa- mento e 0 proprio coracdo servem para guiar o cristo. A lei se torna dispensavel.” O principal fator que leva a essa conclusiio é a rejeicao dos antinomistas em ver a graga na lei de Deus e com- preender corretamente 0 conceito do Pacto da Graga, segundo veremos mais abaixo. No século 16 os catélicos acusaram falsamente os reformadores de antinomistas, de serem contrarios a lei de Deus. Mesmo 0 grande reformador, Martinho Lutero, expressou preo- cupagdo quanto a alguns de seus seguidores que, em seu zelo de proclamar a graga, por tanto tempo desprezada pela Igreja Roma- na, acabaram por desprezar a lei. Um destes foi Johannes Agricola, que na busca de um principio efetivo pelo qual pudesse combater a doutrina da salvagao pelas obras, negou que o crente precisasse cumprira lei moral.” O debate sobr3 0 antinomismo alcancou gran- des proporges na Inglaterra durante o século 17. Dezenas de li- vros, tomando partido em algum lado do debate, foram escritos durante esse periodo. Desde a Reforma tém aparecido movimentos enfatizando um ou outro desses aspectos, lei ou graga, quase sempre de for- ma excludente. Uma dessas formas € 0 antinomismo centrado no Espirito.” Uma énfase exacerbada na ago do Espirito Santo que acaba por rejeitar a necessidade do ensino da lei. Nesse caso a libertagao do jugo da lei torna-se sindnimo de libertagao da lei. Os defensores desta forma de antinomismo assumem que a orientagao do Espirito Santo prometida na Biblia substitui a lei escrita. Outra forma de antinomismo que ciclicamente aparece 74. + Leie Gracga nos circulos evangélicos € 0 antinomismo centrado em Cristo. Essa forma da heresia afirma que visto estarmos em Cristo e Cristo ter cumprido a lei, 0 que o cristo faz nao interessa, nao faz dife- renga, desde que a fé permaneg¢a. Uma das faces modernas do antinomismo, enfatizando a gra- caem detrimento da lei, é 0 antinomismo dispensacional. Essa for- ma de abordagem surgiu no século passado caracterizando a lei comoa forma de salvagao no periodo mosaico e 0 evangelho como a forma de salvagao na dispensagao do evangelho. Uma vez que vivemos na dispensacao da graga, a dispensagdo da lei é passada €, portanto, seu papel ¢ irrelevante. Este tipo de ensino é incapaz de verificar que ao mesmo tempo em que existe uma distingo en- tre a lei e a graca, as duas estdo unidas debaixo de um mesmo pacto. Este é, possivelmente, o movimento que mais influéncia exer- ce na interpretagdo do papel da lei e da graga entre os evangélicos ao redor do mundo hoje. Esses ensinos sao claros principalmente na antiga escola dispensacionalista que divulga a Biblia anotada de Scofield. C. I. Scofield chegaa declarar: A divisdo mais clara e dbvia da palavra da verdade é aquela entre lei e graga. De fato, estes dois principios contrastantes caracterizam as duas dispensagdes mais importantes — judaica e crista.., A Escritura nunca, em qualquer dispensagao, mistura estes dois principios.” Nasua forma popular, o dispensacionalismo continua a influ- enciar grandes grupos de cristéos, independente de barreiras denominacionais. Um exemplo classico de ensino dispensacionalista sobre a relagao entre lei e graga é 0 livro de M. R. De Haan, Law or Grace (Lei ou Graga], colocando lei e gra¢a em campos de oposi- ¢40.2 E bem verdade que existem formas de dispensacionalismo mais recentes que nao defendem esse ponto de vista. Na visdo neo-ortodoxa de Barth encontramos o antinomismo dialético, que acaba por negara lei biblica como mandamento di- reto de Deus. A “palavra do Espirito” é que deve confirmar se a lei é de Deus ou nao. A lei biblica pode ser usada como um instru- mento para o pronunciamento de Deus. Em seu livro God, Grace As confus6es e extremos * 75 and Gospel, Karl Barth defende uma unidade basica entre lei e graca direcionando seu pensamento para um novo moralismo.” Existe ainda 0 antinomismo situacionista, que descreve toda uma geracio de crist&os que afirma que o amor deve motivar toda anossa pratica e esse é superior a lei escrita. Alguns situacionistas entendem sua posig&o como um equilibrio entre o antinomismo eo legalismo. O raciocino légico do situacionista ¢ que no antinomismo faltam a lei e o amor. No legalismo, a lei esta acima do amor. No situacionismo 0 amor esta acima da lei. Em ultima andlise o situacionismo acaba por rejeitar e relativizar principios morais em nome da lei do amor. Hesselink, um estudioso sobre a relago entre lei e graga, exemplifica que, na década de 1960, os cristaos proponentes da ética situacionista se levantaram contra leis, regras e principios ge- rais propondo uma nova moralidade.*® Esse movimento propde que a ética das Escrituras nao é absoluta, mas depende do contex- to. Nema lei moral de Deus seria absoluta, ela dependeria da situ- a¢o. Essa proposta encontrou solo fértil em meio a varias deno- minag6es historicas j4 tomadas por tendéncias liberais ou neo-or- todoxas. Segundo seus proponentes, a lei nao tem mais qualquer papel determinante na ética crista; o que determina a ética crista é 0 “principio do amor”. Nesse sentido, a conseqiiéncia dessa con- clusao é que a graga suplanta a lei. As decisdes éticas devem ser tomadas levando em consideragao 0 principio do amor e isso afeta a ética cristé como um todo. Tome-se, por exemplo, a questo do aborto no caso de estu- pro. A ética situacionista, uma forma de antinomismo, aprova o aborto em caso de estupro como um ato de amor, baseado no “principio do amor” a mae que foi estuprada. Nesse caso, o amor amie, que teria dificuldades em viver com um filho fruto de um estupro, fala mais alto. Desse ponto em diante 0 aborto passa a ser aceitavel. Este tipo de pensamento é muito comum hoje até mesmo entre evangélicos. Semelhante abordagem acontece com 0 t&o controverso ponto de vista sobre a pena de morte. Na perspectiva antinomista 76 + Lei e Graga situacionista, a pena de morte nao se encaixa no principio do amor a0 proximo e, portanto, nao pode ser uma pratica aprovada pelos cristaos. A chamada “‘lei do amor” é 0 ponto chave para esta inter- pretacao. A pena de morte ¢ colocada como oposta a lei do amor. Os argumentos mais comuns que se ouve é que ao aplicarem a pena de morte os executores se toram como 0 assassino e carecem do amor crist&o. O pressuposto dbvio desse ponto de vista é que 0 amor nao era o principio por tras das claras ordens de Deus no Antigo Testamento sobre quando, como e por que a pena de morte deveria ser aplicada. Mais uma vez, parece que nesse tipo de abor- dagem o Deus do Antigo Testamento ¢ convertido a lei do amor.” O mimero de divorcios entre o povo evangélico cresce a cada dia. Nos Estados Unidos a porcentagem de divércios entre os cha- mados evangélicos ja ¢ ligeiramente maior do que entre nao evan- gélicos. A ética situacionista destréi as claras leis das Escrituras sobre o casamento. O divércio passa a ser aceitavel pelo principio do amor. Jase fala até em “adultério altruista”.*? A separagdo de casais passa a ser aceitavel pelo mesmo principio. Se viver com alguém me faz infeliz, o principio do amor deve prevalecer e a se- paragdo é o remédio indicado. O mesmo acontece quanto ao homossexualismo. Denomina- ges inteiras lutam para assegurar até mesmo 0 direito de ordena- ¢4o ao oficialato para pessoas que se declaram homossexuais. Na vis&o situacionista, accitar o homossexualismo passa a ser um ato de amor. O homossexualismo deixa de ser considerado pecado, ou, se assim considerado, um pecado aceitavel. Nao é de se admirar que nossa sociedade tenha chegado aos niveis de imoralidade que temos hoje de forma tao descarada, quan- do aqueles que supostamente deveriam lutar pela preservagdo dos valores morais ensinados nas Escrituras se voltaram contra eles. Tudo isto fruto da falta de entendimento entre a lei ea graca de Deus. Kevan, em seu livro A Lei Moral falaa esse respeito dizendo: Haveria menos tragédias morais entre os cristdos professos se a instrugao salutar da lei de Deus fosse atendida cuidadosamente. Que o crente possa olhar exclusivamente para Cristo na busca do As confusées e extremos * 77 poder capacitador de uma vida vitoriosa — como de fato deve — mas que ele, ao mesmo tempo, se lembre que a vida santa nado consiste em prazer emocional, mas sim em cumprir os mandamen- tos de Deus. Podemos ainda pensar em antinomismo revelacionista, que despreza a lei de Deus em fungao de novas revelagdes que sao trazidas aos “espirituais” contempordaneos. A pergunta deve ser feita de maneira direta: Se novas revelagSes estaio acontecendo e, como alegadas, provenientes de Deus, nao devem ter amesma autoridade das Escrituras? Como se poderia contestar algo que Deus revelou? Isso faz com que a ultima palavra que veio de Deus seja superior as anteriores, invalidando a lei e trazendo-nos uma novalei, que pode ser contraria a antiga, trazendo-nos mais um tipo de antinomismo. O antinomismo, portanto, é uma abordagem desequilibrada das Escrituras no que trata da relagdo entre lei e graga. Na proxima se- go veremos outro desequilibrio, o extremo oposto, o legalismo. O LEGALISMO O legalismo ou moralismo € tao perigoso quanto 0 antinomismo. Podemos entender 0 legalismo como a tendéncia de enfatizar a lei em detrimento da graga. Isto pode ser entendido como um neonomismo, uma volta a lei. Como tal, o legalismo é uma distor¢ado da obediéncia requerida pelas Escrituras aqueles que vivem debai- xo e t30 somente debaixo da gracga de Deus. O legalismo foi grandemente combatido por Jesus e pelos apéstolos. A classe mais representativa dos legalistas no Novo Tes- tamento éaclasse dos fariseus. Jesus foi realisticamente duro com os fariseus. A énfase do legalismo dos fariseus era na aparéncia sem contetido, na exteriorizagdo da forma da lei, nas aparéncias. Além disso, 0 farisaismo acabou por acrescentar a sua propria lei, a tradigdo, a lei de Deus. A lei e a tradigao caminhavam juntas na mente desses homens de tal forma que se tornaram uma so coisa. Portanto, na pratica, eles nao viam diferenga entre uma coisa e outra. Em nossa cultura, esse tipo de legalismo se traduz na forma de usos e costumes, roupas, misicas, instrumentos usados no culto 78 «© LeieGraga publico e outras coisas desse género. O legalismo tem sido uma marca comum de algumas denominagées, sejam tradicionais ou nao.*’ Mas nao é exatamente esse aspecto do legalismo que que- remos tratar nesta seg4o, ¢ sim, a sua forma mais basica e mais perigosa, como descrito abaixo. O legalismo, essencialmente, proclama que o homem pode obter mérito diante de Deus para a salvagdo e a conquista de favores. Dessa maneira, 0 legalismo ensina o oposto das Escritu- ras, 6 aantigraga! O principio basico envolvido no legalismo é a crenga, a fé, de que o pecador tem a capacidade inata de agra- dar a Deus e assim obter mérito. E a busca do favor de Deus pelos esforgos humanos. Foi exatamente contra essa idéia que a Reforma Protestante lutou, apresentando como uma de suas prin- cipais énfases a sola gratia. SOLA GRATIA Essa doutrina desenterrada dos entulhos das tradi¢des humanas, “redescoberta” por Martinho Lutero, combate o erro da Igreja Romana que ensina claramente a obtencao do favor de Deus pelas obras, coisas tais como a confissao auricular, as peniténcias, pro- messas, votos e indulgéncias (a compra da salvacao com dinheiro ou posses). Essa crenga nao é popular sé no catolicismo mas tam- bém no espiritismo, ainda que com grandes diferengas. Nesses casos, a obediéncia nao é um fruto da graca de Deus, uma evidéncia da fé, mas uma tentativa de agradar a Deus e se adquirir mérito diante dele. Um dos grandes problemas do legalismo esta exatamente na sua esséncia: crer que o homem pode obter méritos diante de Deus. Isso contraria toda a boa teologia biblica. As Escrituras sao muito claras em nos ensinar que nao ¢ possivel agradar a Deus. A obediéncia vem depois da redengao e nunca a redengao vem pela obediéncia. Mas seria possivel a salvacao pela lei, ainda que hipotetica- mente? Existem alguns que pensam que sim. Alva McClain em seu livro intitulado Law and Grace [Lei e graca] faz exatamente esta afirmagao: As confuses e extremos + 79 Hipoteticamente, a lei poderia dar a vida se os homens pudessem guarda-la. Em Levitico 18.5 esta escrito: “Portanto, os meus esta- tutos € os meus juizos guardareis; cumprindo-os, o homem vive- ra por eles. Eu sou o Senor.” A mesma idéia é repetida em Ezequiel ... (Ez 20.11, 13, 21). Inquestionavelmente nosso Senhor tinha o mesmo principio em mente quando disse ao jovem rico que esta- va buscando a vida eterna pelas obras, “Se queres, porém, entrar na vida, guarda os mandamentos” (Mt 19.17b).*4 No entanto, nem hipoteticamente seria possivel ao homem ser salvo pela lei depois da entrada do pecado no mundo. Nao devemos nos esquecer que o ser humano j4 nasce com o chama- do pecado original e que, portanto, ja nasce contaminado e con- denado pelo pecado de Adio. Por isso, somente Cristo, o Filho de Deus, concebido por obra do Espirito Santo, sem trazer em si 0 pecado original, pode cumprir a lei e trazer a justificacdo que careciamos. Os textos de Levitico 18 e Ezequiel 20 estao nos ensinando 0 principio de obediéncia a lei, ou seja, viver receben- do os beneficios dela, porque em si a lei é boa. O mesmo princi- pio se aplica ao jovem rico, que pensando ter cumprido toda a lei, ainda amava mais as riquezas do que a Deus e tinhaa cobiga como senhor. Existe ainda um outro grande perigo no legalismo que é 0 de pensar que alguém obtém a salvag4o pela graca e a mantém pela lei. Esse parece ser um dos principais problemas encontrados entre as igrejas da Galacia (cf. G13). Uma das doutrinas funda- mentais da Reforma ¢ a Perseveranga do Santos. Na verdade, nao s&o os santos que perseveram e sim Deus que os mantém debaixo de sua graga, independentemente das obras da lei. A idéia legalista de que o crente mantém a salvacdo pelas obras da lei traz sobre ele grande opressAo. Confuso, ndo sabe desfrutar do perdao dos pecados obtido por Cristo, vivendo sem conhe- cer a verdadeira libertagao. A TEONOMIA Um recente desenvolvimento de uma visdo distorcida entre lei e graga é0 chamado movimento teonomista ou reconstrucionismo 80 + Leie Graga cristéo. Esse movimento nasceu e se desenvolveu em meios refor- mados da América do Norte e tem como énfase a continuidade da aplicagao das sancdes penais do Antigo Testamento.** Seus parti- darios entendem que a sociedade contemporanea deve retornar a estrutura do sistema civil israelita teocrarico aplicando, inclusive, algumas das penas especificas daquele tempo. Os teonomistas en- tendem que a lei civil de Israel é normativa para hoje. Os reconstrucionistas nao aceitam a divisdo reformada tradi- cional da lei como vimos previamente. Seus principais argumentos giram em torno dos textos de Tiago 2.10 (‘“... qualquer que guarda toda a lei, mas tropeca em um s6 ponto, se torna culpado de to- dos”), Galatas 5.3 (“De novo, testifico a todo homem que se deixa circuncidar que esta obrigado a guardar toda a Jei”) e Mateus 5.19 (“Aquele, pois, que violar um destes mandamentos, posto que dos menores, e assim ensinar aos homens, sera considerado minimo no reino dos céus; aquele, porém, que os observar e ensinar, esse sera considerado grande no reino dos céus”). Eles sustentam que nesses trés textos esta pressuposta a obediéncia a lei como um todo, e que nao temos 0 direito de dividir a lei “artificialmente” e escolher 0 que queremos obedecer da lei. Com isto, defendem que as sangdes da lei mosaica devem ser aplicadas hoje. Segundo 0s propositores da teonomia, se a lei é uma unidade indivisivel, e se a lei moral permanece valida, aquilo que dela recorre, as penas prescritas, também permanecem. Segundo Greg Bahnsen, Quando combinamos esta convicgao [de que o magistrado civil é um ministro de justiga nas maos de Deus] com a crenga biblica de que a lei de Deus nos obriga a obedecé-la em cada detalhe, até e a nao ser que, o legislador revele de outra forma, chegamos a conclusao de que o magistrado civil hoje deve aplicar as sangdes penais da lei do Antigo Testamento aos criminosos em nossa sociedade...”5° Temos, no entanto, exemplos no Novo Testamento de leis civis do Antigo Testamento em que as suas respectivas penas nao foram exigidas. Walter Kaiser argumenta que é esse 0 caso, por exemplo, quando Paulo recomenda para um caso de incesto, a As confusées e extremos * 81 disciplina da Igreja (1 Co 5.1 —““Geralmente, se ouve que ha entre vos imoralidade e imoralidade tal, como nem mesmo entre os gen- tios, isto é, haver quem se atreva a possuir a mulher de seu proprio pai.”)*” Segundo a lei civil de Israel, a pena para este delito era a pena capital (Lv 20.11 —“O homem que se deitar com a mulher de seu pai tera descoberto a nudez de seu pai; ambos serao mortos; 0 seu sangue caird sobre eles”). A lei mosaica prevé a pena capital para varios outros delitos, mas mesmo entio, a pena prescrita para determinados crimes pode- ria ser “substitufda’”. Encontramos, por exemplo, a pena de morte prescrita para 0 assassinato, seqtiestro, adultério, homossexualismo, incesto, bestialidade, filhos rebeldes incorrigiveis, amaldigoar os pais, oferecimento de sacrificio humano, falsa profecia, blasfémia, aprofanacao do sabado, sacrificios a falsos deuses, magia, falta de castidade e estupro de uma virgem prometida em casamento. Pa- rece estar implicito, no entanto, que estas penas poderiam ser subs- tituidas de acordo com o julgamento de cada caso. Existe, porém, uma provisdo para que isso nao acontecesse no caso de assassina- to (Nm 35.31): Nao aceitareis resgate pela vida do homicida que é culpado de morte; antes, ser ele morto. Devemos observar que os sistemas civis e criminais das soci- edades ocidentais em sua filosofia diferem do sistema biblico, apli- cado a uma sociedade teocratica. Encontramos no sistema biblico uma série de principios que sao rejeitados em nossos sistemas. Quanto aos crimes contra a propriedade, a lei obriga a sociedade israelita ao principio de restituicao, como em Exodo 22.1-4: Se alguém furtar boi ou ovelha e 0 abater ou vender, por um boi pagar cinco bois, e quatro ovelhas por uma ovelha. Se um la- drao for achado arrombando uma casa e, sendo ferido, morrer, quem 0 feriu nao sera culpado do sangue. Se, porém, ja havia sol quando tal se deu, quem o feriu sera culpado do sangue; neste caso, 0 ladrao fara restituigao total. Se nao tiver com que pagar, sera vendido por seu furto. Se aquilo que roubou for achado vivo em seu poder, seja boi, jumento ou ovelha, pagard o dobro. 82. + Leie Graga Observe que o principio sempre é 0 da restituigdo e quando o defraudador nao pode pagar, pode ser vendido. Se for renitente no seu pecado, pode sofrer a pena capital. O crime do roubo era tratado de forma a ndo ser lucrativo!** O sistema ocidental contemporaneo é bem diferente na sua concepgaio. Em geral, 0 sistema prevé como pena para os diversos delitos a priso e/ou multas, que sao pagas ao Estado. A vitima nao recebe compensagéio quando é defraudada, recebendo, quando muito, a restituigdo caso o bem roubado seja encontrado. Nesse caso, 0 crime contra a propriedade se torna lucrativo mesmo nos casos em que 0 delinqiiente é pego. Certamente isso é injusto e cria muitos dos problemas que temos em nossa sociedade. Sem sombra de duvidas, as leis que aplicam os principios encontrados no Antigo Testamento devem ser motivo de nossa reflexdo em busca de um sistema mais justo. Mas a aplicagao pura e simples das leis civis e suas penas para a sociedade contempora- nea nao parece ser a intencdo do autor das Escrituras quando as lemos como um todo. O principio basico a ser adotado para nao cairmos no erro da teonomia é que as leis civis de Israel sAo parti- culares para 0 seu tempo € contexto, para uma nagao que vivia debaixo de um pacto especifico. Ainda que a lei moral tenha um carater universal, as leis civis e cerimoniais de Israel, mesmo que fossem uma aplicagao da lei moral, se restringem ao tempo e con- digdes em que foram dadas. Enquantoa lei moral é normativa, a lei civil tem um papel apenas didatico para os dias de hoje. A fé reformada tem, ao longo dos séculos, lutado por ensinar eviver a verdade do evangelho e da lei mantendo 0 equilibrio entre aleiealiberdade, evitando a imoralidade gerada pelo antinomismo ea prisdo do legalismo. Tanto um quanto 0 outro podem gerar resultados cadticos para a vida do crist&o e da sociedade. Nin- guém melhor do que o Senhor da Igreja para nos mostrar qual o mais excelente caminho para interpretarmos a lei. Esse 6 0 assunto de nosso préximo capitulo. As confusbes e extremos * 83 QUESTOES PARA ESTUDO 1.O que é antinomismo? 2. Existem diferentes tipos de antinomismo? Quais? 3. O que é legalismo? 4. Vocé é capaz de listar diferentes tipos de legalismo? 5. O que é teonomia? 6. Porqué os teonomistas alegam que a lei ¢ indivisivel? Reisinger lista oito “usos ilegais” da lei e ajuda-nos assim a analisarmos como a estamos usando: 1. E um uso ilegal quando é mal interpretada, como no caso dos escribas e fariseus. 2. Eilegalmente usada quando colocada em oposigao a Cris- to, a graga ou ao evangelho — um dos erros dos judeus. 3. O uso ilegal mais perigoso e amaldigoador é quando o homem olha para a lei em busca de justificag&o — buscar a aceitacdo de Deus na guarda da lei. Isso derruba a propria natureza da graca, se ope a Cristo na sua plenitude e der- ruba a justificagao pela fé somente. 4. E um uso ilegal da lei usd-la para desencorajar o pecador desesperado. E por isso que alei e 0 evangelho devem ser pregados juntos. 5. Eum uso ilegal da lei usa-la para derrubar a graga da espe- ranca (cf. Rm 5). 6. Eum uso ilegal da lei us4-la para roubar a gloria devidaa Deus na grande e maravilhosa obra da justificagao. 7. £um uso ilegal da lei us4-la para derrubar a doutrina da santificagao. Nao ha poder na lei para justificar ou santifi- car. O poder tem que vir do Espirito. E por isto que nao devemos jamais separar o Espirito da lei ou evangelho. Todos seremos incapazes sem o Espirito. 8. Eum uso ilegal usd-la meramente como munigaio em dispu- tas nao frutiferas e sem propdsitos. Se pregadores e pro- fessores nao ensinarem a Cristo pela lei, este é um uso ile- gal dela. -~6- CRISTO E A LEI ..Cristo € 0 Senhor todo Glorioso, 0 Fitho tinico do Pai, que por toda a eternidade contempla o Pai face-a-face, que esta com Deus e é Deus. Cada palavra do Antigo Testamento é palavra do préprio Deus (2Tm 3.16,17), e Deus é o Deus trinitdrio — Pai, Filho e Espirito Santo. Assim, todo o Antigo Testamento é palavra de Cristo para nés, assim como pala- vra de Deus para nés. Vern Poythress arece-me que nao ha nada mais agressivo 4 mente do homem moderno do que a idéia de que algo possa ser absoluto, ver- dade ultima e tinica. Vivemos, afinal, na pés-modernidade, a con- sumacao do relativismo do ultimo século. Segundo o pastor Terry Johnson, no livro A Doutrina da Graga na Vida Pratica, Virtualmente, nao ha nada que esta sociedade condenara, exceto o absolutismo. Tudo é permissivel, exceto violagées das leis do pluralismo. Nossa sociedade mata em nome da vida, defrauda em nome do amor, rouba em nome da justiga. O relativismo governa. Estamos completamente desprovidos de padrées.? CristoeaLlei «+ 85 Essa realidade tomou conta de muitos circulos dentro do Cris- tianismo, sejam eles liberais ou evangélicos. Nos circulos liberais a teoria é uma cépia da pratica social. Nos circulos evangélicos, com umateoria “biblica”, a pratica tem demonstrado um descompromisso quase que absoluto com a lei de Deus. Ja analisamos este aspecto na seco sobre antinomismo ¢ levanto 0 assunto novamente por- que n&o creio que haja interpretag4o mais radical da lei do que a interpretagao de Jesus. Ele foi radical com relagao a lei em todos os seus aspectos. Isso nao significa dizer que Jesus foi legalista! Sao duas coisas bem diferentes. Para nds, pecadores, é complica- do ser radical sem ser legalista. Para o Senhor Jesus, a sua tarefae sua miss&o: interpretar e viver a lei segundo 0 coracao do Pai. Freqtientemente me encontro defendendo 0 radicalismo de Jesus, como que pedindo desculpas ao mundo por ele ser to radical assim, por ser exclusivo, por ser unico, por ser “a verdade ea vida” e nao “uma verdade entre muitas e um canal de vida entre outros”. O fato é que Jesus usou um padrao para a interpretagao que s6 ele mesmo conhecia na sua plenitude: sua propria graga! Nao devemos esquecer que é nesse sentido que Jesus chama vari- as vezesa lei de “sua lei’’. Nesse sentido, a interpretacao de Jesus se torna ainda mais radical. EU VIM CUMPRIR A LEI A interpretagdo que Jesus faz da lei nao é diferente daquilo que ele mesmo é e como se apresenta: radical. Precisamos entender que Cristo satisfez e cumpriu a lei de forma plena e completa. O exem- plo de sua radicalidade esta no seu auto-sacrificio, satisfazendo assim a sua propria justiga como Deus encarnado. Sei que para muitos o termo radical pode parecer ofensivo e certamente politi- camente incorreto. Precisamos entender, no entanto, que radical nao significa, necessariamente, beligerante e intransigente, mas cer- tamente significa néo-conformado. Pois, quanto a lei, Jesus nao veio revoga-la, mas cumpri-la de maneira radical, sem racionaliza- ges, sem desculpas, até o ultimo detalhe, a fim de que os seus eleitos possam desfrutar de todos os seus beneficios. Um dos discur- 86 + Leie Graga sos de Jesus que deixam isso bem claro é 0 Sermio do Monte. Ali, Jesus da a interpretagao clara da lei em alguns dos mandamentos. Como em toda a interpretagao das Escrituras, entender o contexto em que Jesus proferiu estas palavras é essencial. O Ser- mao do Monte foi pregado para um grupo seleto de discipulos que estavam proximos dele (Mt 5.1,2): “Vendo Jesus as multiddes, su- biu ao monte e, como se assentasse, aproximaram-se os seus dis- cipulos; e ele passou a ensina-los, dizendo...”. Jesus comegou com as bem-aventurancas, chamando de bem- aventurados os humildes, os que choram, os mansos, os que tém fome e sede de justi¢a, os misericordiosos, os limpos de cora¢do, os pacificadores e os perseguidos. Todos esses temas dizem res- peito a verdadeira religido de Israel e podem ser ligados as ensino do Antigo Testamento. Nada aqui é absolutamente novo. Jesus desenvolveu o seu “serm4o” sobre principios teoldgicos da reve- lagéio anterior, o Antigo Testamento. Nos versos 14 a 16 Jesus confirmou que este ensino era para acomunidade da alianga e so poderia ser entendido por esse gru- po (Mt 5.14-16): Vos sois a luz. do mundo. Nao se pode esconder a cidade edificada sobre um monte; nem se acende uma candeia para coloca-la de- baixo do alqueire, mas no velador, e alumia a todos os que se encontram na casa. Assim brilhe também a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem a vosso Pai que esta nos céus. Os seus discipulos deveriam entender o papel para o qual Deus thes havia chamado, de serem luz e sal, manifestando as qualidades dos “bem-aventurados”, qualidades que sao manifestadas por aqueles que, uma vez regenerados e nascidos de novo, vivem na dependén- cia do “Pai que esta nos céus”. Todas as “qualidades” so, na verda- de, demonstragao de dependéncia e nao virtudes humanas. NAO VIM PARA REVOGAR Nesse ponto Jesus introduziu sua interpretaco da lei dizendo (v. 17): “Nao penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas; nao vim para revogar, vim para cumprir.” Cabe a nds interrogarmos a raziio CristoeaLei * 87 pela qual sua audiéncia pensaria que ele veio para revogar a lei eos profetas. Creio que encontramos a resposta em duas questées. (1) Encontramos uma diferenga radical entre Jesus e os que eram tidos por “detentores” da verdadeira interpretagdo da lei e dos profetas (uma das formas usadas naquele tempo para designar 0 Antigo Testamento). Jesus era chamado de “nazareno” (Mt 2.23) e nos circulos religiosos e na boca do povo de Israel corria 0 se- guinte adagio: “De Nazaré pode sair alguma coisa boa?” (Jo 1.46). A origem de Jesus era a “antitese” da religido de Jerusalém. (2) O proprio lugar onde Jesus exercia o seu ministério ¢ ensino, a Galiléia dos gentios (Mt 4.15; Is 9.1), era o oposto da tradigdo ensinada pelos fariseus ¢ escribas em Jerusalém. Era 0 farisaismo dominante em Jerusalém contra o paganismo e impureza da Galiléia. Espera- va-se que esse novo lider religioso, poderoso em palavras (Mt 4.17-22) e atos (Mt 4.23-25), viesse com uma nova mensagem que em nada fosse semelhante a anterior, um evangelho que ainda nao tivesse sido pregado. Mas a boa nova, 0 evangelho que Jesus veio ensinar, era a confirma¢ao do evangelho preanunciado a Abraiio (G1 3.8), a confirmagao e cumprimento das promessas da alianga encontradas na lei e nos profetas (Le 24.44): A seguir, Jesus lhes disse: Sao estas as palavras que cu vos falei, estando ainda convosco: importava se cumprisse tudo o que de mim esta escrito na lei de Moisés, nos profetas e nos salmos. TUDO SERA CUMPRIDO Esperava-se que Jesus ensinasse algo totalmente desvinculado da lei e dos profetas que eram, supostamente, a base do ensino dos fariseus. Mas, em vez de ensinar algo revolucionario em termos de conteudo, ele disse (Mt 5.18): .. em verdade vos digo: até que o céu e a terra passem, nem um i ou um til jamais passard da lei, até que tudo se cumpra."' Com isso, Jesus comegou a mostrar que 0 seu ensino nao se opunha a lei e aos profetas, mas 4 religido hipécrita praticada em Jerusalém pelos fariseus e que, por fim, dominavae influenciavaa forma como 0 povo praticava a sua religiao. Jesus os chamou de 88 + Lei e Graga “hipocritas”, “sepulcros caiados” e outros adjetivos que qualificam esse tipo de religi&o externa e nao fundamentada na verdade, mas na distorgdo dela. Na verdade, os fariseus estavam tao longe da lei e dos profetas quanto os gentios, tao distantes da santidade do templo quanto os criadores de porcos de Decapolis. Eles haviam enterrado a lei os profetas debaixo de tantos falsos ensinamentos que era impossivel encontra-los. Para surpresa de sua audiéncia, nenhum aspecto da lei, mes- moo menor de todos, deixaria de ser cumprido, porque esta éa sua propria lei. Somente por esse caminho é que os discipulos po- deriam ser sal ¢ luz. E assim foi! Jesus cumpriu plenamente a lei em todas as areas, cerimonial, civil e moral, para que seus discipulos pudessem viver abundantemente, nao sem a orientago da lei, mas por ela guiados (Mt 5.19.20): Aquele, pois, que violar um destes mandamentos, posto que dos menores, e assim ensinar aos homens, sera considerado minimo no reino dos céus; aquele, porém, que os observar e ensinar, esse serd considerado grande no reino dos céus. Porque vos digo que, se a vossa justiga nao exceder em muito a dos escribas e fariseus, jamais entrareis no reino dos céus. Fica muito claro no ensinamento do Senhor que o respeito e o ensino da lei é algo muito sério e que, ainda que ninguém receba acidadania do Reino por seus méritos, no Reino hao “minimo” eo “grande”. Quando 0 texto nos fala da justiga que deve exceder em muito a dos escribas e fariseus, certamente encontramos uma refe- réncia a substancial diferenga entre o padrao de justiga daqueles e 0 padrao de justiga dos verdadeiros filhos de Deus: a justiga de Cristo crucificado. Enquanto o padriio de justiga dos fariseus era exterior (“Ai de vés, escribas e fariseus, hipdcritas, porque limpais o exterior do copo e do prato, mas estes, por dentro, esto cheios de rapina e intemperanga!” Mt 23.25), 0 padrao de Cristo € inte- rior (“Bem-aventurados os limpos de coragao...”;“*Criaem mim, 6 Deus, um corago puro...” SI 51.10); 0 padrao de justicados fariseus era humano e baseado na justiga propria (“Diga-vos gue este [publicano] desceu justificado para sua casa, e nao aquele [fariseu]; CristoeaLei + 89 porque todo o que se exalta sera humilhado; mas 0 que se humilha sera exaltado,.” Le 18.14), 0 de Cristo, na justiga de Deus (“Bem- aventurados os que tém fome e sede de justi¢a, porque serao far- tos.”’; “Eis 0 soberbo! Sua alma no é reta nele; mas 0 justo vivera pela sua fé.” He 2.4), Se alguém naquela platéia pensava que os padrdes morais seriam diferentes dos ensinados na lei e nos profetas, teve nesse momento uma decepgao. Mais uma vez ficou claro que 0 padrao daqueles que vivem no reino esta em perfeita harmonia com a lei e deveria exceder 0 padrao dos escribas e fariseus. ESTA E A CORRETA INTERPRETACAO A ccontinuacao do sermao de Jesus é a correta interpretacao da lei no que diz respeito ao padrao excelente, o padrao do autor da lei. Jesus re-interpreta a lei sobre o homicidio (vs. 21-26), adultério (27-32), juramentos (33-37), retribuicdo do mal (38-42) e o amor ao proximo, Em todas essas segdes, Jesus usou a expressao “Ouvistes 0 que foi dito... eu porém vos digo”, fazendo um con- traste entre a interpretacdo da tradigdo e o verdadeiro significado da lei, o significado interior. Em todos os casos, 0 significado interior compreende uma visdo e uma atitude mais dificil do que a interpretagdo da tradicao. Matar se estende a ter ddio e julgar; o adultério é mais do quea consumacao de uma relagdo sexual fora do casamento, mas a in- tengo do coragao; o juramento por qualquer coisa é sem sentido; aretribuicao do mal converte em dano pessoal; 0 amor ao pr6xi- mo se estende ao inimigo. Em nenhum caso temos uma nova lei, mas a correta interpretagao da lei conforme pretendida por Deus. Portanto, desse primeiro texto podemos coneluir que: + Jesus veio cumprir a lei e nao revoga-la ou revoga-la; + Ocumprimento da lei seria absoluto de sua parte; + Nenhum aspecto da lei seria invalidado e nada dela passara até que tudo se cumpra, em todos os seus aspectos, quer sejam morais ou civis e cerimoniais; em Cristo tudo se cumpriu; + A violagdo da lei e levar alguém a sua violagao gera perda; 90 + Leie Graca + Ocumprimento da lei gera recompensa, + Osignificado da lei vai além da mera letra e aparéncia extema, +O padrao de justi¢a de Deus continua sendo o mesmo pa- drao do Antigo Testamento; + O padrao de justiga do crente deve exceder 0 padrao de justiga exterior. Em todos os pontos acima encontramos 0 padrao do autor da lei paraa sua propria interpreta¢do, e esse € o padrao que devemos ter em mente ao ler e estudar a lei de Deus com o fim de aplica-laem nossa propria vida. A interpretagao de Jesus nao é novidade para a lei em si. Essa correta interpretagdo é inerente a propria lei. COMO CRISTO OBEDECEU A LEI CIVIL Além de nos deixar a sua lei e o padrao da graga para a interpreta- ¢éio da mesma, Jesus nos deixou também o seu exemplo. Por todo © ministério de Jesus 0 encontramos como um servo da lei. Nao ha qualquer mengaio de Jesus quebrando qualquer parte da lei civil. Prova bastante clara é que nem judeus nem romanos encontraram qualquer acusacao contra Jesus. Pilatos mesmo afirmou que nada encontrava e que, portanto, lavava suas méos do “sangue deste justo” (Mt 27.24). A acusacao principal dos sacerdotes e anciaos contra Jesus foi de blasfémia, ou seja, interpretavam os pronuncimentos de Jesus dessa forma (Mt 26.65), porque em nada mais puderam encontrar falta em Jesus. COMO CRISTO CUMPRIU A LEI CERIMONIAL A lei cerimonial foi claramente cumprida por Jesus em todos os seus termos e detalhes. Como ja vimos anteriormente, a lei ceri- monial apontava para Jesus em todos os seus aspectos e ele a cumpriv exaustivamente. A carta aos Hebreus é certamente o tra- tado mais detalhado do cumprimento de Jesus quanto lei cerimo- nial, demonstrando sua submissdo aos minimos detalhes assim como sua superioridade a mesma. Para compreender bem como Cristo cumpriua lei cerimonial, temos que compreender a relagdo da lei moral com Cristo. A lei CristoeaLlei + 91 cerimonial no Antigo Testamento ¢ basicamente demonstrada a partir do tabernaculo, o que esta a sua volta e seus ministros, os sacer- dotes. Todas estas coisas eram sombras de uma realidade que apon- tava para o futuro na historia humana, quando o que era pré-figu- rado seria finalmente revelado. O taberndculo € 0 sacerdécio fo- ram a provisao temporal de Deus de uma realidade eterna. Primeiro, o tabernaculo representava a presenga de Deus no meio do seu povo (Ex 25.8-“E me farao um santuario, para que eu possa habitar no meio deles.”), assim como Jesus é 0 Emanuel {Mt 1.23 —“Eis que a virgem conceberd e dara luz um filho, e ele sera chamado pelo nome de Emanuel (que quer dizer: Deus conosco)”]. O Evangelho de Joao expressa claramente esse prin- cipio quando nos informa que “...o Verbo se fez carne e habitou entre nés, cheio de graca e de verdade, e vimos a sua gloria, gloria como do unigénito do Pai.” (Jo 1.14) O verbo habitar significa, literalmente, “tabernacular”. A encarnagao do Verbo foi o cumpri- mento da sombra do tabernaculo. Interessantemente, enquanto o povo habitava em tendas, Deus também “habitava” em uma tenda. Quando os israelitas se estabe- leceram na terra e passaram a habitar em casas, Deus comissionou Saloméo a lhe construir uma “habitagao” semelhante a dos israelitas. No entanto, é a propria Escritura que nos ensina que “... nao habita o Altissimo em casas feitas por m&os humanas...” (At 7.48), citan- do o profeta Isafas (66.1): Assim diz 0 SENHoR: O céu € 0 meu trono, € a terra, o estrado dos meus pés; que casa me edificareis vés? E qual ¢ 0 lugar do meu repouso? Ainda que Deus tenha ordenado a construgao de ambos, tabernaculo e templo, estes eram apenas uma representagao da ha- bitagao de Deus, um simbolo do céu. O préprio rei Salomao, ao dedicar o templo, reconhece essa realidade (1Rs 8.27,29,30): Mas, de fato, habitaria Deus na terra? Eis que os céus e até 0 céu dos céus nao te podem conter, quanto menos esta casa que eu edifiquei... Para que os teus olhos estejam abertos noite ¢ dia sobre esta casa, sobre este lugar, do qual disseste: O meu nome 92 + Lei e Graga estard ali; para ouvires a oragdo que o teu servo fizer neste lugar. Ouve, pois, a suplica do teu servo e do teu povo de Israel, quando orarem neste lugar; ouve no céu, lugar da tua habita- Gao; uve e perdoa. Nem mesmo 0 céu é suficiente para “conter” a Deus, muito menos uma casa feita por maos humanas. Ainda assim, Deus se dispés a habitar entre os homens até que a imagem perfeita de si mesmo viesse a ser manifestada aqui na terra. Segundo o autor de Hebreus, Moisés deveria fazer “...todas as coisas de acordo com o modelo que... foi mostrado no monte” (Hb 8.5b). Deus mostrou a Moisés um padrao, um modelo celestial do tabernaculo que de- veria ser reproduzido para simbolizar a habitagao de Deus no meio do seu povo. Varios elementos no tabernaculo simbolizavam ele- mentos celestiais, principalmente os querubins no véu da entrada e sobre a arca da alianga. Através da nuvem, Deus manifestoua sua presenga no tabernaculo (Ex 40,34) e no templo (1Rs 8.10) de uma maneira inconfundivel, porém temporaria. Em Cristo, Deus manifestou a sua presen¢a inconfundivel de maneira eterna. Cristo cumpriu a lei cerimonial ao se fazer came ¢ habitar entre nds. Segundo, varios elementos internos do tabernaculo represen- tavam a Cristo. O modelo do tabernaculo dado a Moisés é deta- lhado em descrigdes de medidas, formas, cores e materiais. Os artifices deveriam seguir a descrig&o dos elementos em todos os seus detalhes e nao produzirem de si mesmos os elementos que estariam na “habitagao de Deus”. Vou ressaltar seis elementos do tabernaculo que apontam diretamente para a cumprimento de Cristo da lei cerimonial: o altar de bronze, a bacia de bronze, o candela- bro, os paes da proposi¢do, o altar do incenso ea arca da alianga. Os dois primeiros ficavam no patio do tabernaculo; os trés proxi- mos ficavam dentro do Santo Lugar ea arca no Santo dos Santos. Oaltar do sacrificio (Ex 27.1-8) ficava logo na entrada do tabemaculo, ao ar livre, ¢ era o primeiro elemento encontrado pelo sacerdote. Nele eram queimados todos os sacrificios, tanto os di- arios como 0s especiais. Sem o sacrificio no altar nao era possivel seguir adiante ¢ entrar na presenga de Deus, simbolizada pela arca CristoeaLei * 93 da Alianca, no Santo dos Santos. O altar era um tipo do sacrificio de Cristo pelo qual o sacerdote era autorizado a entrar na presen- ¢a de Deus. Cristo é 0 proprio cordeiro sacrificado para tirar 0 pecado do mundo (Jo 1.29, 36), assim como também é 0 sumo sacerdote (Hb 9.11; 8.1-5). O préximo elemento que o sacerdote encontrava na sua ca- minhada até o interior do Taberndculo era a bacia de bronze (Ex 30.18). Ela continha 4gua para a purificacao do proprio sacerdote que deveria lavar-se, maos e pés, antes de oferecer 0 sacrificio e entrar no Santo Lugar. Sem a lavagem cerimonial apropriada, 0 sacerdote era considerado impuro e seu sacrificio ineficaz. Entrar no Santo Lugar ou adiante sem a purificagao traria morte sobre o sacerdote (Ex 30.19). A bacia tipificava a purificagao que Cristo fez pelos nossos pecados, como nos ensina o autor de Hebreus (1.3) “...depois de ter feito a purificagdo dos pecados...” Esse foi 0 pedido de Davi no Salmo 51.2 ~“Lava-me completamente da minha iniqitidade e purifica-me do meu pecado.” O que a baciae os atos nela feitos representavam s6 poderiam ser de fato cumpri- dos pelo perfeito sacrificio de Cristo purificando o seu povo, Por isso o autor de Hebreus exorta a igreja a se aproximar do Santo dos Santos (Hb 10.19-22): Tendo, pois, irmaos, intrepidez para entrar no Santo dos Santos, pelo sangue de Jesus, pelo novo e vivo caminho que ele nos consagrou pelo véu, isto é, pela sua carne, e tendo grande sacer- dote sobre a casa de Deus, aproximemo-nos, com sincero cora- gao, em plena certeza de fé, tendo o coragio purificado de ma consciéncia e lavado 0 corpo com agua pura. O candelabro com sete lampadas ( Bx 25.3 1-40), amenora, era feito de ouro e adornado com flores, bulbos e améndoas, ten- do o formato de uma arvore. O candelabro simbolizava a Deus como o criador da luz e de todas as coisas. Em Cristo temos a perfeita visio do criador e da luz do mundo: Todas as coisas foram feitas por intermédio dele e, sem ele, nada do que foi feito se fez. A vida estava nele e a vida era a luz dos homens. A luz resplandece nas trevas e as trevas nao prevalece- ram contra ela. (Jo 13,4) 94 + Leie Gracga De novo, thes falava Jesus, dizendo: Eu sou a luz do mundo; quem me segue nao andara nas trevas; pelo contrario, tera a luz da vida. (Jo 8.12) Certamente, Jesus completa a bén¢do aardnica que invocao brilho da face de Deus sobre 0 seu povo (Nm 6.25). Os pies da proposi¢ao ou da presenga, colocados no lado oposto ao candelabro dentro do Santo Lugar, certamente falavam da presenga de Deus, servindo o seu povo, alimentando-o, prote- gendo-o e confirmando a sua alianga eterna (Lv 24.8). A presenga permanente dos paes servia como uma lembranga da permanente presenga e provisao de Deus para o seu povo, lembrando-os tam- bém do mana que recebiam diariamente na sua caminhada pelo deserto. Jesus declarou ser ele o que era simbolizado pelos paes da presenga ao alimentar a multidao e afirmar (Jo 8.32-35): Em verdade, em verdade vos digo: nao foi Moisés quem vos deuo pao do céu; o verdadeiro pao do céu é meu Pai quem vos da. Porque o pao de Deus é 0 que desce do céu ¢ da vida ao mundo. Entio, lhe disseram: Senhor, da-nos sempre desse pao. Declarou- Ihes, pois, Jesus: Eu sou o pao da vida; 0 que vem a mim jamais tera fome; ¢ o que cré em mim jamais tera sede. O altar do incenso (Ex 30.1-10) era o ultimo mével do taberndculo antes da entrada no Santo dos Santos. Nele nao eram sacrificados animais, mas apenas queimados incensos aromaticos. Um dos efeitos praticos da queima do incenso no altar era propici- ar uma atmosfera mais agradavel no ambiente do santuario por causa dos animais, dos sacrificios e da queima deles. Dessa forma, 0 aroma do incenso servia para lembrar que a presenga de Deus no meio do seu povo é agradavel. No entanto, pela posi¢ao que ocupa diante do véu que da acesso ao Santo Lugar, o altar parece ser um tipo da intercessdo de Cristo no céu, diante do Pai. Jesus € o nosso advogado diante do Pai (1Jo 2.1) e sua intercess4o como um aroma suave. Alias, enquanto o sacerdote queimava 0 incenso, 0 povo orava (Le 1.8-10). Portanto, ainda que 0 livro de Exodo n&o mencione exatamente a fungao do altar de incenso, podemos identifica-lo como uma representagao das oragdes do povo de Deus. Em Apocalipse 5.8 e 8.3 verificamos a mesma coisa: CristoeaLei + 95 «. €, quando tomou o livro, os quatro seres viventes ¢ os vinte € quatro ancidos prostraram-se diante do Cordeiro, tendo cada um deles uma harpa e tagas de ouro cheias de incenso, que sao as oragées dos santos... Veio outro anjo e ficou de pé junto ao altar, com um incensdrio de ouro, e foi-lhe dado muito incenso para oferecé-lo com as ora- des de todos os santos sobre o altar de ouro que se acha diante do trono; Parece ser esta a forma como 0 incenso queimado era enten- dido tanto no Antigo como no Novo Testamento (S] 141.2—“Suba a tua presenga a minha oragaio, como incenso...”). Por ultimo, no interior do Santo dos Santos, temos a arca da Alianga. Depois de dar a ordem para a construgdo do tabernaculo, o primeiro elemento a ser construido, por ordem de importancia, foi aarca. Como os outros méveis do tabernaculo, a arca foi des- crita em detalhes e dentro dela estaria 0 “testemunho” (Ex 26.16) ouas tabuas da lei (Ex 34.28). Sobre a area deveria ser colocado o “propiciatério” de ouro com os dois querubins que o cobriam com suas asas (Ex 25.17-22). Os dois querubins deveriam estar olhando para o propiciatorio. A palavra propiciatorio é a tradugao do hebraico kapporet, derivada da raiz que significa “fazer propiciagao”, um sacrificio para a obtengao de perdao. No cha- mado yom kippur, Dia da Expiacao, o sacerdote adentrava ao Santo dos Santos para aspergir 0 sangue de um novilho sobre o propiciatério, simbolizando assim o perdao de pecados (Lv 16.13- 15). Nacarta aos Romanos 0 apéstolo Paulo afirma: «.. pois todos pecaram e carecem da gloria de Deus, sendo justifi- Zados gratuitamente, por sua graga, mediante a redengiio que ha em Cristo Jesus, a quem Deus propés, no seu sangue, como propiciagao, mediante a fé, para manifestar a sua justi¢a, por ter Deus, na sua tolerancia, deixado impunes os pecados anterior- mente cometidos. (Rm 3.23-25) Nesse texto, assim como em | Joao 2.2 e 4.10, Jesus é apresentado como a propiciagao, o sacrificio pelos pecados dos eleitos. Em Hebreus 2.17 ele é apresentado como 0 sacerdote que faz o sacrificio: 96 + Leie Graga Por isso mesmo, convinha que, em todas as coisas, se tornasse semelhante aos irmaos, para ser misericordioso e fiel sumo sacer- dote nas coisas referentes a Deus e para fazer propiciagao pelos pecados do povo. Em todos os aspectos possiveis de se abordar, Cristo cum- priu de forma plenae absolutaa lei cerimonial, quer no tabernaculo, nos sacrificios ou como o sumo sacerdote. Ao mesmo tempo Jesus corrigiu as distorcdes na interpretacgdo da lei mostrando que muitas delas eram fruto da hipocrisia dos homens, como na expulsdo dos vendilhdes do templo (Jo 2.13-17) e na questao do corba (Mc 7.9-13). COMO CRISTO VIVEU A LEI MORAL Segundo a descrigao nos livros de Exodo e Levitico, quando 0 sacerdote comparecia para realizar os sacrificios pelo povo, ele tinha que primeiro realizar um sacrificio pelos seus proprios peca- dos. Ele mesmo era um pecador e certamente havia quebrado um ou mais aspectos da lei de Deus (Lv 16.6; cf Hb 5.3; 9.7), Os sacerdotes da linhagem levitica eram pecadores e carentes do mes- mo sacrificio que apresentavam. O sacerdécio de Cristo, no en- tanto, é de outra linhagem, é sacerdécio perfeito! Varios textos do Novo Testamento vao atestar 0 fato de Jesus nunca haver pecado, ainda que tenha sido tentado em todas as coisas (Hb 4.15): .. no temos sumo sacerdote que nao possa compadecer-se das nossas fraquezas; antes, foi ele tentado em todas as coisas, a nossa semelhanga, mas sem pecado. Hebreus 7.26,27 Com efeito, nos convinha um sumo sacerdote como este, santo, inculpavel, sem macula, separado dos pecadores ¢ feito mais alto do que os céus, que nao tem necessidade, como os sumos sacer- dotes, de oferecer todos os dias sacrificios, primeiro, por seus proprios pecados, depois, pelos do povo; porque fez isto uma yez por todas, quando a si mesmo se ofereceu. 1 Pedro 2.21,22 .» para isto mesmo fostes chamados, pois que também Cristo sofreu em vosso lugar, deixando-vos exemplo para seguirdes os CristoeaLei + 97 seus passos, 0 qual nao cometeu pecado, nem dolo algum se achou em sua boca; 1 Joao 3.5 Sabeis também que ele se manifestou para tirar os pecados, e nele nao existe pecado. Certamente Cristo obedeceu a lei civil, cumpriu a cerimonial e viveu plenamente a lei moral do Pai. Essa é a base para a impu- tag&o da justiga de Cristo sobre os eleitos. Tendo ele cumprido perfeitamente ¢ lei, em todos os seus aspectos, morreu sem mere- cer a morte para que seu povo pudesse ser salvo. Ele recebeu o salario do pecado (Rm 6.23) sem té-lo cometido, para que pudes- se assim resgatar da morte aqueles que amerecem. Jonhson resume o material sobre Cristo e a lei no pensamen- to de Calvino da seguinte forma: © ponto principal, claro, é que Cristo cumpriu a lei em todos os aspectos, seja no vivé-la, no submeter-se 4 maldicdo da lei para satisfazer sua exigéncia de punicdo dos transgressores, ou resta- belecendo sobre outras bases a possibilidade de cumprir aquilo que a lei requer. Cristo, em outras palavras, satisfez tudo o que a lei exigiu ou pode vir a exigir da humanidade. A justificagao que estava associada a lei agora pertence completamente a Cristo.*? Portanto, nossa obediéncia 4 lei nao acontece e nao pode acontecer sem Cristo. Tentar viver debaixo da lei, sem Cristo, é submeter-se a escravidao. Porém, obedecer a lei com Cristo é prazer e vida. Também, nesse sentido, Cristo ¢ o fim da lei! Aquele que tem os meus mandamentos e os guarda, esse € 0 que me ama; e aquele que me ama seré amado por meu Pai, ¢ eu também 0 amarei e me manifestarei a ele. (Jo 14.21) CRISTO E A SUBSTANCIA DA LEI MORAL Em seu artigo intitulado “Preaching Christ from the Decalogue” (Pregando a Cristo a partir do Decdlogo)** John Frame caracteri- za.como Jesus é a substancia da lei moral e como devemos pregar a Cristo quando guardamosa lei moral. Frame sintetiza assim: 98 + Leie Graca (a) O primeiro mandamento nos ensina a adorar a Jesus como 0 unico Senhor, Salvador ¢ mediador (At 4.12; 1Tm 2.5). (b) No segundo mandamento, Jesus é a imagem perfeita de Deus (CI 1.15; Hb 1.3). Nossa devogio a ele impede a adoracao de qualquer outra imagem. (c) No terceiro mandamento, Jesus é 0 nome de Deus, o nome ao. qual todo joelho se dobrara (Fp 2.10,11; cf ls 45.23). (d) No quarto mandamento, Jesus é 0 nosso descanso sabatico. Na sua presen¢a paramos todos os nossos afazeres didrios para ouvir sua voz (Le 10.38-42). (e) No quinto mandamento, nds honramos a Jesus que nos trouxe como seus filhos (Hb 2.10) a gloria. (f) No sexto mandamento nés o honramos com a vida (Jo 10.10; 14.6; GI 2.20; Cl.3.4), como Senhor da vida (At 3.14) e como aquele que deu a sua vida de modo que nds possamos viver (Mc 10.45). (g) No sétimo mandamento nds 0 honramos como o noivo que se deu para nos lavar, para nos fazer puros, uma noiva sem man- cha (Ef 5.22,23). Nds o amamos como nenhum outro. (h) No oitavo mandamento nds honramos Jesus como nossa he- ranga (Ef 1.11) e como aquele que prové para todas as necessi- dades do seu povo, nesse mundo e além. (i) No nono mandamento nds o honramos como a verdade de Deus (Jo 1.17; 14.6), em quem todas as promessas de Deus sao “amém’ (2Co 1.20). (j) No décimo mandamento nds 0 honramos como nossa com- pleta suficiéncia (2Co 3.5; 12.9) para satisfazer tanto as nos- sas necessidades externas quanto os desejos renovados do nosso coracao. CRISTO, A LEI E O EVANGELISMO Existe algum papel paraa lei na evangelizacao? Tenho certeza que a pergunta pode até surpreender a alguns. Mas a resposta ¢: certa- mente existe. Alids, a evangelizacao, a profissdo da fé, é uma lei segundo Mateus 28.18-20: Jesus, aproximando-se, falou-Ihes, dizendo: Toda a autoridade me foi dada no céu e na terra. Ide, portanto, fazei discipulos de todas as nagées, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do CristoeaLlei + 99 Espirito Santo; ensinando-os a guardar todas as coisas que vos tenho ordenado. E eis que estou convosco todos os dias até a consumagao do século. Nessas ultimas palavras de Jesus, segundo o registro de Mateus, encontramos abundancia de material legal. Primeiramen- te, encontramos Jesus reafirmando a sua autoridade como legisla- dor: “toda a autoridade me foi dada”. Baseado nessa autoridade, ele ordena aos seus discipulos fazerem discipulos, batizando-os e ensinando-os. Observe que parte da tarefa de fazer discipulos é exatamente ensinar a lei de Jesus: “‘ensinando-os a guardar as coi- sas que vos tenho ordenado”, O que Jesus faz aqui nao sao pedi- dos de um irm4o a outro, mas ordens claras de um Senhora seus servos. Estas ordens s&o objetivas e diretas, tém forga de lei e devem ser obedecidas. Esta tiltima lei deixada pelo Senhor vem acompanhada de sua bendita promessa, a sua maravilhosa com- panhia, até a consumagao dos séculos. Mas existe algum papel para a lei no processo de se pregar o evangelho de Cristo e fazer discipulos? Certamente ha. Como ja vimos anteriormente, a lei informa, admoesta e condena. Sem a compreensio do estado de morte e condena¢éo em que o homem se encontra, ele nao podera também compreender a graca ea sal- vacao de Jesus. Essa é a descrigao do “primeiro uso da lei”. Antes de ensinarmos Joao 3.16, é necessario que o homem saiba o por que Deus enviou o seu Filho ao mundo e por que € necessario que nele se creia. A consciéncia plena do pecado e da queda se faz evidente diante da lei. Portanto, diante da lei, o pecador € confron- tado com seu pecado ¢ com o seu modo de desagradar ao Cria- dor do universo. Segundo Joao 16.8, a obra do Espirito Santo ¢ a de conven- cer o mundo “do pecado, da justia e do juizo”. Pecado, justiga e juizo s6 fazem sentido diante da lei de Deus. Sem lei, nao haveria pecado ou condenagaio. Convencer nao significa “converter”. O convencimento do pecado antecede a conversao, mas vem depois da regeneracao. Segundo 0 texto, o pecado “central” éa falta de fé: “do pecado, porque nao créem em mim” (Jo 16.9). O Espirito 100 + Leie Graga Santo trabalha na mente e coracéio do nao-convertido mostrando- Ihe o seu estado de pecado e miséria. O “maior” pecado do ser humano é nao crer em Deus, a negacao do primeiro mandamento: “Eu sou 0 SENHoR teu Deus... nao teras outros deuses diante de mim”, Portanto, convencer o mundo do pecado envolve a mani- festagao da lei de Deus no contexto de sua alianga. Certamente, a primeira obra é do Espirito Santo, convencendo do pecado atra- vés da propria lei de Deus. Quando 0 texto diz que o Espirito Santo vem para convencer da justica, refere-se a justiga de Cristo que ¢ aplicada pelo Espirito sobre os crentes. Cristo satisfazendo a justiga divina na cruz éa primeira mensagem do evangelho. Uma vez convencido do peca- do, confrontado coma santa lei de Deus, o homem carece de jus- tificagdo porque nao pode justificar a si mesmo. Observe como Paulo diz o mesmo sobre os judeus em Romanos 10.3,4: Porque lhes dou testemunho de que eles tém zelo por Deus, porém nao com entendimento. Porquanto, desconhecendo a jus- tiga de Deus e procurando estabelecer a sua propria, nao se su- jeitaram & que vem de Deus, Porque o fim da lei é Cristo, para Justiga de todo aquele que cré. Ora, Moisés escreveu que o ho- mem que praticar a justiga decorrente da lei viverd por ela. Mas a justiga decorrente da fé assim diz: Nao perguntes em teu coragao: Quem subira ao céu?, isto é, para trazer do alto a Cristo; ou: Quem descera ao abismo?, isto é, para levantar Cristo dentre os mortos. O homem é convencido da justificagdo em Cristo por meio do Espirito Santo que Ihe mostra qual é 0 fim da lei e a justiga decorrente da fé. Mas o que é, afinal, ajustificag’o? A justificagao éa imputago da justiga de Cristo sobre os eleitos. E como Cristo obtém este direito? Ele toma forma humana e é obediente a toda lei de Deus, debaixo do pacto de obras. Altima tarefa do Espirito Santo anontada pelo texto é ade convencer do “juizo, porque o principe deste mundo jd esta julga- do”. Novamente um termo legal ¢ usado. Todo juizo é feito com base na lei que regula um relacionamento. O “principe deste mun- do”, Satanas, foi julgado com base na maldigao proferida contra ele e sua descendéncia e por isso a salvaco em Cristo ¢ possivel. CristoeaLei + 101 Podemos coneluir que: + A pregacdo do evangelho ¢ uma lei de Deus; + O Espirito Santo usa a lei para deixar claro o pecado daqueles a serem salvos; + Devemos conhecer bem a lei de Cristo, Antigo e Novo Testamento, para a pregaciio eficaz do evangelho. EEE EE A LEI E A SANTIFICACAO pelo contrario, segundo é santo aquele que vos chamou, tornai-vos santos também vés mesmos em todo o vosso pracedimento, porque escrito esta: Sede santos, porque eu sou santo. Apéstolo Pedro S* santos porque eu sou santo”. Nao ha como negar que a vontade de Deus ¢ ter para si um povo santo, um povo sepa- rado, um povo nao contaminado com a impureza do pecado. O autor de Hebreus nos diz que sem a santificacao nao se pode ver a Deus (Hb 12.14): Segui a paz com todos e a santificagao, sem a qual ninguém vera o Senhor. Certamente 0 autor tinha em mente ao escrever este capitulo © processo de purificacéo pelo qual o sacerdote passava no tabernaculo para que pudesse entrar na presenga do Deus Santo, do fogo consumidor (Hb 12.29). Se o sacerdote estivesse impuro, certamente morreria! (Ex 30.20,21). No entanto, essa purificag4o ou santificac4o era meramente cerimonial. A purificaco com agua A Lei ea Santificaggo + 103 era apenas um simbolo da verdadeira santificag4o que o Espirito Santo traz sobre o crente. Somente o Espirito Santo pode santificar! Entretanto, devemos sempre dar gracgas a Deus por vos, irmaos amados pelo Senhor, porque Deus vos escolheu desde 0 princi- pio para a salvagao, pela santificagao do Espirito ¢ fé na verdade (2782.13). Observe que no texto acima 0 apdstolo Paulo fala de elei- Ao para a salvacao através de dois elementos: a fé na verdade e a santificagao do Espirito. Na teologia Reformada a salvacao é uma obra aplicada exclusivamente pelo Espirito Santo, sem qual- quer cooperac4o humana. Somente o Espirito Santo pode levan- tar o incrédulo de sua morte espiritual, regenerando-lhe trazen- do-lhe a vida. Ainda segundo Paulo, a propria regeneragao é um lavar pelo Espirito. ... nao por obras de justiga praticadas por nds, mas segundo sua misericordia, ele nos salvou mediante o lavar regenerador e reno- vador do Espirito Santo (Tt 3.5). E por essa tazdo que Paulo nao hesita em chamar os crentes de santos, porque somos santificados pelo Espirito e aceitos na presenga de Deus através da obra de Cristo. E preciso, no entanto, compreender que ha uma diferenga en- tre a justificagao que recebemos e a santificagao que devemos de- senvolver. A justificagao diante de Deus é um status permanente que recebemos em Cristo. Ele morreu em nosso lugar para que fés- semos considerados justos diante do Pai. Esse status nao pode ser mudado, é obra exclusiva de Cristo, completa e perfeita, realizada de uma vez por todas. Jaa santificagao nao apresenta as mesmas caracteristicas. Enquanto a justificagao é realizada totalmente fora dos crentes, a santificagao é uma obra interna, incompleta, continua e cooperativa. E por isto que Paulo diz aos Colossenses: Assim, pois, amados meus, como sempre obedecestes, nao s6 na minha presenga, porém, muito mais agora, na minha auséncia, desenvolvei a vossa salvacao com temor e tremor; porque Deus é quem efetua em vos tanto o querer como o realizar, segundo a sua boa vontade (Fp 2.12.13). 104 * Lei e Gracga Segundo esse texto, a santificacdo (desenvolver a salvag4o) é uma obra que depende, em certa medida, do crente, da sua ati- tude (temor e tremor) e da sua obediéncia. O modelo de obedién- cia evocado por Paulo é nada mais nada menos do que a propria obediéncia de Cristo (Fp 2.8). E aqui chegamos a uma questdo central em toda a nossa abordagem: obediéncia a qué? Ora, certa- mente obediéncia a Cristo, a sua Palavra ea sua lei. E qual éa lei de Cristo, sendo a propria lei de Deus? E caminhar contra todo 0 ensino das Escrituras tentar dizer que a lei de Cristo é uma lei dife- rente da lei da Trindade! (cf. 1Co 9.21 e Gl 6.2). O proprio Se- nhor Jesus nos ensina que aquele que o ama guarda os seus man- damentos (Jo 14.21): Aquele que tem os meus mandamentos e os guarda, esse é o que me ama; e aquele que me ama sera amado por meu Pai, ¢ cu também o amarei e me manifestarei a ele. Amar e guardar os mandamentos so duas coisas que andam juntas. Assim a propria lei declara no segundo mandamento, quan- do une a obediéncia e o amor—“‘e faco misericérdia até mil gera- des daqueles que me amam e guardam os meus mandamentos” (Ex 20.6). O mandamento primario de toda e lei é “amar a Deus de todo 0 coracao”, ou, no ter outros deuses. A mesma forga e énfase encontramos em Deuteron6mio 11.1: Amaras, pois, 0 Senuor, teu Deus, e todos os dias guardaras os seus preceitos, Os seus estatutos, os seus juizos e os seus mandamentos. Podemos dizer que nosso amor a Deus é expresso na nossa obediéncia, o que nos leva a santificagao. Era assim que 0 leitor do Antigo Testamento entendia esta questéo: amor expresso em obe- diéncia. Considere o caso de um israelita regenerado. Esse indivi- duo, amando ao seu Senhor, se colocava alegremente em obedi- éncia 4 lei, em todos os seus aspectos, civil, cerimonial e moral. Com grande expectativa realizava o seu trabalho semanal, saben- do que no meio do seu povo Deus habitava. Enfrentava com grati- dao as restrigdes que a lei cerimonial lhe impunha, sabendo que elas representavam a promessa de Deus. Ele sabia que se que- A Lei e a Santificagdo + 105 brasse os mandamentos teria os seus pecados perdoados pelo Senhor e, se pecasse novamente, poderia retornar para um novo sacrificio. Mesmo que fosse por algum motivo cerimonial conside- rado impuro, haveria outra oportunidade de ir ao templo. Ele sabia que “a misericOrdia do Senhor dura para sempre” e que ela era renovadaa cada manha com os sacerdotes realizando o seu traba- tho no templo, no sacrificio da manha (Lm 3.22,23). E, ainda que tivesse que ir mais uma vez ao templo para a renovagao do sacrifi- cio, ia com gratidao a Deus, aguardando sempre aquele dia em que estas repetigdes nao mais seriam necessarias, aguardando 0 resgate final do Messias. No seu dia-a-dia orava ao Senhor e 0 bendizia por todas as boas coisas que recebia de suas mios. Junto com sua familia cultuava a Deus diariamente, assentado e no cami- nho, ao levantar e ao deitar, ao sair ¢ ao entrar. A lei de Deus era parte de seu cotidiano. Ele a guardava de tal forma que podia nela meditar de dia ¢ de noite, e assim, tomar decisdes e atitudes base- ado no conselho de Deus. Ele amava a Deus e assim manifestava o seu amor. Mas também havia 0 israelita nao regenerado. Ele viviaem meio a uma sociedade com determinados valores que, no seu inti- mo, nado conhecia, porque na verdade, em seu coragaio, tinha ou- tros deuses. Alguns desses israelitas se amoldavam aos costumes e, sem arrependimento de pecados, iam ao templo, ofereciam sa- crificios e pareciam, formalmente, como todos os demais. Alguns nao criam que o sacrificio era um simbolo e achavam que o perdao era proveniente do sangue de animais! Alguns até lonvavam a Deus com os labios, mas nao havia em seus coragGes a sinceridade. No inicio era até interessante ver aquelas ceriménias, mas depois de um tempo, parecia que todo aquele derramamento de sangue era algo sem proposito, interminavel. Tentavam se autojustificar, encobrindo Os seus pecados com um comportamento restrito e obedecendo a letra da lei. Nao amavam a Deus, mas tentavam obedecer a lei. Ja outros se desviaram completamente, praticando a idolatria de forma aberta. Pouco ligavam para lei de Deus. Esses traziam para 0 meio do povo novas idéias e praticas e afrontavam todaa lei. 106 * Lei e Graga Afinal, o regenerado obedecia a lei porque amavaa Deus. A sua santificagao em amor acontecia enquanto obedecia ao seu Se- nhor. Ele nao obedecia apenas exteriormente. Creio que a situagao do crente depois da vinda de Cristo nao éradicalmente diferente. A diferenca basica esta no tipo de lei que ainda permanece sobre nds. Nao temos mais uma lei cerimonial para obedecer porque Cristo a cumpriu totalmente. Mas temos a lei moral de Deus pala qual podemos desenvolver, em temor e tremor, a nossa santificagao. Como 0 antigo israelita, temos certe- za de que 0 nosso pecado é perdoado, e diferentemente, nao preci- samos voltar ao templo para mais uma vez apresentar 0 sacrificio. Pode a lei santificar? A resposta clara é nao! A lei nao tem qualquer poder em si mesma para trazer santidade ao crente. Ela nos serve como orientagao para uma vida santa e reta? Claro que sim! Talvez a tarefa mais dificil para nds seja identificar com clareza os limites entre a obediéncia a lei de Deus e a nossa pr6- pria lei ou tradi¢o. Conclusao ob muitos aspectos podemos entender das Escrituras que a lei de Deus é para o crente uma forma de manifestacao de sua graga. Como conheceriamos a vontade do Deus soberano, a for- ma de nos aproximarmos dele ¢ o que 0 agrada, sendo pela sua lei revelada? Por outro lado, conforme a mesma Escritura, a lei aplica amaldig&o da Alianga sobre os incrédulos que rejeitam a Jesus, 0 Filho encarnado de Deus. Esta é a visio abrangente da lei que encontramos na Palavra de Deus e que devemos aplicar em nossa propria vida. Quando apreciamos a relagdo entre a lei ea graga de Deus precisamos ter uma viséo ampla de ambas para que nao cai- amos em extremos de interpretagdo e compreensao: a rejei¢o da lei em fungo da graga—antinomismo — ou a rejeigdo da graca em fungao da lei —legalismo. Logo, a ética crista, a formacao de valores e das leis aplica- das aos relacionamentos familiares e sociais deve ser baseada na justa compreensio da relagdo entre a lei ea graga de Deus. Nosso agir como pais, filhos e cidadaos esta diretamente ligado a nossa compreensio das relagdes ¢ dimensdes que atribuimos alei e gra- ¢ade nosso Deus. Uma visio desequilibrada pode nos levar a uma aplicagdo da lei que sera injusta, anacrénica e que afrontara ao proprio Deus da Biblia. 108 + Lei e Graga Cabe a nds compreendermos bem a lei e a gragae entéo aplicarmos bem a ambas, primeiro sobre nds mesmos ¢ ent&o so- bre os que vivem a nossa volta. RECuRSOS BIBLIOGRAFICOS 1 Pdeccceuearee abaixo varios recursos para o estudante que quer se aprofundar no estudo da relagao entre a lei e graga, Ainda que nao tenham sido todos citados no texto, so as principais fon- tes de pesquisa do assunto. Barker, W & Godfrey, W, org., Theonomy: A Reformed Criti- que. Grand Rapids, Academie Books, 1990. Feinberg, Jonh, Continuity and Discontinuity. Westchester, IL, Crossway Books, 1988. Hesselink, John, Calvin s Concept of the Law. Allison Park, PA, Pickwick Publications, 1992. Horton, Michael, A Lei da Perfeita Liberdade. S&o Paulo, Cul- tura Crista, 2001. Kevan, Ernest, A Lei Moral. Sao Paulo, Os Puritanos, 2000. Portela, Solano, A Lei de Deus Hoje. Sao Paulo, Os Puritanos, 2000. Reisinger, Ernest, The Law and the Gospel. Phillipsburg, NJ: P&R Publishing, 1997. Strickland, Wayne, org, Law, the Gospel and the Modern Christian: Five Views. Grand Rapids, Zondervan, 1993. Poythress, Vern, The Shadow of Christ in the Law of Moses. Brentwood, TN, Wolgemuth & Hyatt, 1991. Notas ‘J, Gresham Machen, What is faith? (Edinburgo: Banner of Truth, 1946), 142. 2 Uso a transliteragao favé para o nome de Deus ¢ nao Jeova como em algumas traduges. O nome de Deus nao era literalmente pronunciado pelos judeus em respeito ao terceiro mandamento ¢, portanto, sua prontincia tomou-se incerta. A proniincia Jeova certamente é incorreta, sendo ja uma transliteragao da palavra na lingua alema. + Paulo Sérgio Gomes, “O Significado de Fim da Lei em Romanos 10.4”. Fides Reformata 2.1 (1997), 123-36, 135. + James Jordan, Through New Eyes: Developing a Biblical View of the World (Brentwood, TN: Wolgemuth & Hyatt, 1988), 198-202. 5 Adotada como confissdo pela Jgreja Presbiteriana do Brasil ¢ varias outras igrejas reformadas no mundo. 6 Ver John Frame, The Doctrine of the Knowledge of God (Phillipsburg: Presbyterian and Reformed Publishing Company, 1987), 11-12. "Joao Ferreira de Almeida, Edigdo Revista ¢ Atualizada, Sociedade Biblica do Brasil. * Emest Kevan, Lei Moral (Sao Paulo: Os Puritanos, 1999). ” Em dois artigos intitulados “Uma Breve Introdugao ao Estudo do Pacto, |e Il,em Fides Reformata 3.1 (1998), 110-123 ¢ Fides Reformata 4.1 (1999), 89-102, fago uma discussao sobre 0 uso da terminologia Pacto de Obras / Pacto da Graca ¢ trabalho mais prolongndamente na definigao e dimensdes do pacto biblico. " Joao Calvino, Genesis Commentary, 2.3 " Paribarn, Patrick, The Revelation of Law in Scripture (Grand Rapids: Zondervan, 1957), 45. ® ds Institutas 2.8.1. 5 Citado em Geoffrey Greenhough, “The Reformer’s Attitude to the Law of God”, Westminster Theological Journal 39, 1976:81-99, 88. * Institutas 4.20.14-15. Notas ¢ MW *§ Correspondéncia com Solano Portela. Sobre assunto ver McMillen, 4 Provisdo Divina para sua Sattde, Editora Fiel, 1984 A Biblia na Linguagem de Hoje, Nova Versio Internacional e Biblia de Jerusalém fazem uma op¢ao injustificada nesse verso alterando @ expresso “como Adao™ por “em Ada” (uma cidade mencionada no livro de Josué 3.16). ” Publicado em http:/www.thirdmill org/portuguese/ na segao Teologia. ' Solano Portela, A Lei de Deus Hoje (Sao Paulo: Os Puritanos, 2000), 140. "Solano Portela, 4 Pena Capital e a Lei de Deus, (Sao Paulo: Projeto Os Puritanos, 2000), 22-23. »” Uma discussdo muito esclarecedora do assunto se encontra em Merwyn S. Jonhson, “Calvin’s Handling of the Third Use of the Law and Its Problems,” Calviniana: Ideas and Influences of Jean Calvin, 10 (1988), 33-50. 2 As Institutas 2.7.1 » As Institutas, 2.7.10. » Calvino, Romanos, 277. ™ Sobre esse assunto. verificar 0 artigo W, R. Godfrey, “Law and Gospel” em New Dictionary of Theology, Sinclait Ferguson e David E. Wright (Leicester: Intervarsity Press, 1988), 379 > Ernest Kevan, The Grace ofthe Law: A Study of Puritan Theology (Grand Rapids: Baker Book House, 1976), 23. 2% Os diversos tipos de antinomismo aqui listados sdo identificados por J. |. Packer, Teologia Concisa (Sao Paulo: Cultura Crista, 1999), 168-170 »C. 1. Scofield, Rightly Dividing the Word of Truth (Findlay: Fundamental Truth, 1940), 5. ® De Haan, M. R., Law or Grace. Grand Rapids, Zondervan, 1965 » W. R. Godfrey. “Law and Gospel” em New Dictionary of Theology. Sinclair Ferguson ¢ David F. Wright (Leicester: Intervarsity Press, 1988), 380. * John Hesselink, “Christ the Law and the Christian: An Unexplored Aspect of the Third Use of the Law in Calvin's Theology” em B. A. Gertish, Reformatio Perennis (Pittsburg: Pickwick Press, 1981), 12 51 Uma excelente exposigao sobre a pena de morte pode ser obtida no livro de Solano Portela, 4 Pena Capital e a Lei de Deus (Sao Paulo: Editora Os Puritanos, 2000) e seu artigo “Pena de Morte - Uma Avaliagdo Teolégica e Confessional”, publica- ¢4o eletronica - http:/Avww.ipeb.org. br/publicacoes/pena_de_morte.htm * Veja os exemplos de ética situacionista citados por Norman L. Geisler, Etica Crista (Sao Paulo: Vida Nova, 1972) Para uma discussdo aberta da aplicagao do legalismo no evangelicalismo brasileiro ver Ricardo Gondin, £ Proibido: O que a Biblia Permite e a Igreja Proibe (Sao Paulo: Editora Mundo Cristdo, 1998). * Alva McClain, Law and Grace (Chicago: Moody Press, 1967), 17 * Um dos primeiros escritos propondo a teonomia foi R. J. Rushdoony. The Institutes of Biblical Law (Nutley, NJ: Craig, 1973); G. L. Bahnsen, Theonomy in Christian Ethies (Nutley, NJ: Craig, 1977) é um dos principais defensores do movimento. Gary DeMar, The Debate over Christian Reconstruction (Atlanta: American Vision, 1988) tem varias publicagdes defendendo o ponto de vista teonomista. 112. © Lei e Graga % Greg L. Bahnsen, By This Standard: The Authority of God’s Law Today (Tyler, TX: Institute for Christian Economics, 1985), 270-7]. * Walter Kaiser. Jr, “God’s Promise Plan and His Gracious Law”, Journal of the Evangelical Theological Society 33/3, 1990: 289-302. ** Solano Portela, A Lei de Deus Hoje (Sao Paulo: Os Puritanos, 2000), 142-43. » Emest Reisinger, The Law and the Gospel (Phillipsburg, NJ: P&R Publishing, 1997), 162-63. © Terry Johnson, 4 Doutrina da Graga na Vida Pratica (Sao Paulo, Cultura Crista, 2001), 136. + Com essas duas expressdes Jesus nos mostra que nem a menor letra ou mesmo um keraia, possivelmente um pequeno trago sobre as letras hebraicas no texto da Biblia Hebraica, seriam mudados. “~ Merwyn S. Jonhson, “Calvin's Handling of the Third Use of the Law and Its Problems”, Calviniana: Ideas and Influences of Jean Calvin, 10 (1988), 33-50, 44. * Publicado em http://www.thirdmill.org/ | RIC, eee a Olivro Lei e Graga, do A compreensao Dr. Mauro Meister ... {é] ... preeecer ree Rete feces oncom eect (ema nao somente responce ... as perguntas freqiientes que surgem, [no] dilema artificial “ec tracado pelo evangelicalismo eran dos nossos dias, como também analisa a fundo as diferentes nuancas e aspectos ee Becercecanicren(e) escrituristica da lei de Deus Presbitero Solano Portels do Prefacio uma vida de maior santidade e apreco pelas verdades Mauro Meister, Mestre em RCo Emon caeisCe Bole Cerone ae sire re ae UCM et ee tats ont ee ro ees lonleece LOST IMees MRC LLL ond erect rcone erent Cee e moos rent ites

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