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Eu Você e Entre Nós

Comentários sobre o filme Eu Você e Todos Nós (2005), Miranda July –

por Marcos V. Yoshisaki

Um email não é o mesmo que uma carta. Não sei se as pessoas se


deram conta disso. Minha geração, essa geração, que posso chamar assim,
'da virada'; dessas pessoas que ainda tiveram a experiência de bater numa
máquina de escrever, ou de enviar cartas a amigos ou amadas, sabem que
não se trata da mesma coisa. Fora isso, creio que escrevo muito mais
emails do que costumava escrever cartas. Uma diferença marcante reside
no fato de que enviamos mais emails àquelas pessoas com as quais
convivemos cotidianamente, ao passo que as cartas eram reservadas às
pessoas distantes, apartadas de nosso convívio. Não digo nisso tudo que as
cartas deixaram (ou que deixarão) de serem escritas, mas foram deslocadas
para um campo diferente no jogo simbólico da sociabilidade. Tornaram-se
uma espécie de ritual.

Fundamentalmente, há uma nova linguagem nisso tudo. E não se


trata simplesmente das manias do internetez. Para além disso,não tenho
respostas para apontar de modo preciso no que consistiria essa mudança. E
o filme, a meu ver, tampouco. O filme aposta em intuições. Por exemplo, há
um apontamento de que as relações virtuais nada mais são do que jogos de
exortação. Fala-se o que se deseja com uma liberdade incomum. Mas o que
se esperaria dessa expressão?
Há uma melancolia nisso tudo; e talvez por isso as crianças estão
muito mais capacitadas para lidar com esse jogo, pois dele nada esperam a
não ser o próprio desfrute de se exortar. E todos os que já escreveram algo
sabem que é muito mais fácil escrever do que falar. É mais seguro, e nesse
sentido é que a escrita é uma prisão e um escudo. Afinal, há um papel na
nossa frente, que diz por nós, ainda que um teclado e um monitor o façam
diferentemente. Não se pode, por outro lado, interpretar o que aqui está
sendo dito como uma dicôtomia valorativa e nostálgica, que contrapõe
formas tradicionais de comunicação com as recentes tecnologias. Trata-se
de novas formas de interação, com suas características próprias, e que
determinam certos modos, objetivos e expectativas frente a elas. Fora
disso, há as exceções e os anacronismos. Como pode soar num monitor um
“eu confio em vc”?

Tudo isso é clichê por ser muito corrente. E não se pode culpar o filme
de se calcar sobre esse chão pisado. Aqui, justamente, o clichê é
estrategicamente articulado com a intenção de sugerir algo além. Usa-se o
comum para postular o exótico que virtualmente se potencializa na
cotidianidade. Há um esforço e muito trabalho, porém, para que tal
exotismo se liberte. Há toda uma nova forma social, dos costumes,
dramaturgicamente construída. Uma potência. Na vida, sei, as coisas são
sempre mais ‘normais’, apesar de absolutamente mais incríveis do que em
qualquer filme; pelo simples fato de serem na vida.

É por não saber a resposta do que acima afirmamos não saber


desvendar, que o filme se posiciona ambiguamente acerca de seu assunto.
Esse assunto, a sociabilidade contemporânea, intermediada pelos aparatos
técnicos de comunicação, para deixar as coisas claras, é exaustivamente
tratado, nos mais diferentes contextos, e com diferentes julgamentos;
criando, se assim quisermos, uma espécie de sistema discursivo tão
intriscecamente colado à narrativa que por vezes somos incapazes de
enxergá-lo.

Sempre achei curiosa uma mudança comportamental e histórica da


passagem do super8 para as atuais câmeras digitais. Não sei se por fatores
econômicos ou por uma mudança na sensibilidade das pessoas, passamos
de uma visão que se projetava ao outro: geralmente amigos e familiares -
para uma visão voltada para nós mesmos, e não à toa com seus respectivos
LCDs retráteis. A nossa protagonista está bem no meio desse processo; não
sem uma dose de ironia, o que, de outro modo, sinaliza para uma
consciência crítica. Grava-se um outro, genérico, de costas, para
exatamente, num gesto metafórico e estético, voltar a câmera para si,
mostrar-se. Não há nada de novo aqui, pois esse pensamento já foi muito
abordado na nossa relação com as imagens, tendo em conta que elas são
capazes de revelar tanto o objeto que se encontra na frente da objetiva,
quanto o sujeito por detrás do aparelho. Queria chamar a atenção para o
fato de que nisso o filme não vê negatividade. Questões de exibicionismo,
de egocentrismo, se assim pensarmos, não tomam a dimensão pejorativa
que vemos proliferar na mesma proporcão em que se multiplicam os reality
shows ou os sites de relacionamento.

Essa posição se justifica no tom geral de ridículo que esses momentos


alcançam. Mas isso, inclusive, é arte, na mesma medida em que nos
revelam tanto o patético dessa mesma condição, quanto a condição geral
de nossas existências; que são, em essência, e na maior parte do tempo,
patéticas. Essa visão de mundo, que se poderia condenar de complacente,
não sem um grau de justiça, demonstra certa sabedoria, ainda que
formalmente presa aos moldes narrativos tradicionais.

O grande interesse pelo filme, para além de sua preocupação em


tratar de uma realidade materialmente presente em nosso dia a dia, está na
constituição desse ponto de vista dos fatos; na sua insistência em ritualizar
o cotidiano, em arrancar dele algo do imaginário e do absurdo que
intuitivamente sabemos, e, por vezes, constatamos existir. Esse olhar é tão
poderoso que se interpõe entre as coisas do filme e nós. Revela-nos algo
imprevisto, que simultaneamente sabemos arquitetado e espontâneo.
Artifício e real.

Poder-se-ia afirmar, dada a constatação acima, de que o filme é um


macro desenvolvimento conceitual do procedimento artístico da
protagonista. Não se veem as imagens do filme, assim como não se veem
as fotografias gravadas por ela; de outra forma, não interessa tanto a
presença delas, mas o que elas desejam comunicar. E essa comunicação,
também, não é sobre elas, e, sim, sobre a pessoa que delas se utiliza para
dizer de si. O mesmo ocorre no filme. Temos a narrativa, temos as
personagens, contudo, as situações em que essas personagens se
encontram apontam, sobretudo, para o seguinte pensamento: veja como é
interessante e instigante o olhar que é projetado para tudo isso! Nesse
sentido, fundamentalmente, trata-se de um filme sobre uma forma de se
enxergar a vida; não como ela é, mas, acima de tudo, como ela pode ser.

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