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SMEG. Anentmentachnanmicassindeamonccrtnenine AIM TEXTOS NATHALIE HEINICH Mm As reconfiguragdes do estatuto de artista na época moderna € contemporanea ‘Tradugéo: Soria Taborda RESUMO- “Carreras, identidades e mercados”: estas questies do se apresentam de modo igual no mundo artistico eno mundo das “ocupacées”. Porém, conforme as épocas, ndo se apresentam também da mesma maneira: 0 estatuto de artista foi extremamente modificado na época moderna e, mais ainda, ‘contempordnea, Tentarei demarcar aqui algumas das modificag6es introduzidas pela instauragdo do que chamei de “um regime de singularidade” em arte, examinando sucessivamente suas repercussdes sobre a identidade artistica, sobre o lugar do mercado da arte e sobre a nosao de carreira de artista. PALAVRAS-CHAVE ‘Arte moderna, arte contemporénea, estatudo do artista e mercado de arte. REMISTAPORTO ARTE: PORTO ALEGRE, 13, N°22, MAVO/2005 TEXTOS a Mita 1 tin Fre rite le raat at Ges pons et des pte, Nein ae ad AS RECONFIGURACOES DO ESTATUTO DE ARTISTA NA EPOCA MODERNA E CONTEMPORANEA Identidades ‘Tentei mostrar, em Du peintre @ I'artiste', como, ao regime “artesanal” do artista medieval sucedeu o regime “profissional” do artista académico, proprio da época classica, depois o regime “vocacional” do artista roméntico: nao voltareias transformagées objetivas do estatuto, as quais caracterizam esses trés regimes de ocupagées. Gostaria, antes, de insistir mais sobre as transformacées das representacées e dos valores que acompanham © ingresso, no curso do século XIX, do também chamado de “regime de singularidade”, O ingresso em “regime de singularidade” Asingularidade que entao é exigida do artista moderno é feitaa um mesmo tempo de personalizacao ~ ninguém se assemelha ao outro — e de excentricidade - cada um explora caminhos inéditos, bizarros, paradoxais, na arte e no modo de ser um artista. Este imperativo de singularidade confere sua unidade a imagem comum do artista, suficientemente rica de significado e propagada para que, no imagindrio do senso comum, ‘apalavra “artista” evoque representagdes andlogas. O que aparece com a singularizacio do estatuto, néo é sé a possibilidade de uma correlagao entre grandeza e singularidade de um procedimento artistico: essa possibilidade jé tinha sido encarnada por alguns grandes nomes da Renascenca — pensemos em Da Vinci ou Michelangelo —ou pelos gloriosos parias que foram, em seu tempo, Cellini ou Caravaggio. E sobretudo a necessidade de tal correlagéo: nao ha doravante artista verdadeiramente grande que nao deva inventar um procedimento fora da norma em sua obra, se possivel também, em sua prépria vida. Onde a singularidade cde uma arte (seu caréter Unico e insdlito, sua capacidade de inovacdo em relagdo aos canones) nao era sendo uma eventualidade, um caso-limite, uma figura de excegao ddestinada mais freqilentemente ao fracasso, ela se torna o que se chama em histéria das ciéncias um “paradigma’, um esquema que define o sentido comum da normalidade — mesmo que sua realizacio resulte, nos fatos, excepcional. SSIBIICHNEH Aemenlgarrsdo esto cation prcamasennecontmpocrcs FEB) Formula-se, entéo, uma pergunta eminentemente sociolégica: como fazer da anormalidade uma regra? Como construir um “modelo” singular? Ou, como se pode escapar dos modelos (0 que é préprio da singularidade) tornando-se um deles? Ha dois grandes modos de singularizacdo na época moderna: o coletivo e 0 vidual. O modo coletivo consiste em fazer grupos singulares ou, preferindo-se, em fazer grupo na singularidade — em ser excéntricos em varios. Surgidos na era romantica, s0b 0 efeito do abandono das estruturas tradicionais, os grupos de artistas continuaram a ser criados no século XX, cada um desaparecendo para ser substituido por outros, pois seu tempo de vida é forcosamente efémero. Com efeito, tais grupos vanguardistas podem ser apenas fracamente formalizados: a logica da singularidade interdiria formas de agrupamento formalizadas, estabilizadas, ritualizadas, como nos partidos politicos. Na ética da vanguarda, o movimento artistico pode ser tio somente um “movimento flou” - e0 fracasso das tentativas de “endurecimento” do grupo surrealista por Breton, ‘a0 contrério, foi uma prova disso. Pode-se imaginar diferentemente de uma caricatura o que seria um grupo artistico devidamente formalizado, com adeséo, programa detalhado, escritdrio e delegagao de poderes, reunides com convocacao, papel timbrado, embleras, ‘etc. Esta dupla necessidade de agrupamento e de imprecisao impde uma nova forma de publicidade: é 0 manifesto, gragas a0 qual pode existir publicamente um grupo que — singularidade obriga — nao poderia jamais se apresentar de maneira mais formal. O segundo modo de singularizagio, individual e ndo mais coletivo, consiste em construir um modelo de singularidade que passe pela invengao biografica: eis af uma forma rara, mas muito eficaz de normalizagao do singular, reservada a alguns individuos marcantes. Ha ai uma personalizacio do estatuto que é uma das caracteristicas principais da modernidade. Apés 0 deslocamento para as carreiras, evocado por Harrison e Cynthia White a propésito da segunda metade do século XIX?, produz-se, na primeira metade do século XX, um deslocamento das obras para as pessoas. Assim, surgiramas biografias e autobiografia de artistas, a edicao de suas correspondéncias, suas fotografias amplamente difundidas, que contribuem para fazer dos grandes artistas, homens “marcantes”, em todos os sentidos da palavra ~ podendo sua pessoa tomnar-se tio célebre, senao mais, que suas obras. Duchamp, Dali, Picasso, ou ainda Josef Beuys: 0 artista, cada vez mais, nao sera mais sé aquele que produz obras de arte, mas, sobretudo, aquele que consegue fazer-se reconhecer como artista. Dai a importancia dos investimentos ligados ao estatuto de artista, objeto, ao mesmo tempo, de incerteza e de fascinacéo. Valorizagao vanguardista da inova¢io, valorizagio modernista da personalizagio: ‘© ingresso em regime de singularidade marca o triunfo da originalidade, no duplo sentido do que é novo e do que pertence exclusivamente a uma pessoa, irredutivel a qualquer ‘outra. E a originalidade vai junto com a transgressao dos cdnones, com a aceitacao, até mesmo a valorizagio da anormalidade, de sorte que é 0 fora da norma que tende a TEXTOS Maile eich, “Comment re sears quad one singles revise avatar nisi Le, oar raion Be La eee, 154, a F HariseneCyokia White, La Carre des peires 20 AH sith Du ytine xadeniqu a0 ‘marche des ingress, 16, Flammarion, Pr 198. BB) ecrrovonmeromonscre winner nora TEXTOS eee Nate Mich, 2 te Yan Gagh Esai dambrapologie de aan Pais: Mw, 991 (ra ug Paton Uy Ps, 1986, a (Laue eich, ep dart contra Pris Net 1, eon como Fart cntenporain expt aut ‘icq barb Ni 18. [fu essuneresessrenesy (CRaymnie Main eal lati, sai de morphologies La ocenacion Fang, ais IS tormar-se a norma. Deslocamento da obra para a pessoa, da normalidade para a anormalidade, da conformidade para a raridade, do sucesso para a incompreensao, do presente para a posteridade e, mais geralmente, do regime de comunidade para o rregime de singularidade: assim se apresenta 0 novo paradigma do artista, encarnado pela figura popularizada de Vincent Van Gogh’. Arte contempordnea e reconfiguragao das identidades AAsituacio atual conhece um grau suplementar nesta reconfiguracéo da identidade de artista. Existe hoje, na verdade, uma grande diversidade nos modos de ser artista—e aqui falo apenas dos artistas plisticos. Pintor ou escultor, ator ou cenégrafo, urbanista, fotégrafo, cineasta, videasta, até mesmo poeta? O termo “plistico” est ai para marcar o que ha de comum nos procedimentos préprios daquilo que hoje se chamaa “arte contemporanea” e que no se reduzem mais &arte de fabricar imagens em duas ou trés dimens6es. Eles nao cconservam menos ligagées com o universo das artes plisticas no qual quase sempre se coriginaram seus criadores e onde eles evoluem gracas aos museus, ds galerias, as revistas de arte e as diversas instituic6es artisticas que permitem que suas propostas circulem. ‘Tem-se ai um exemplo da influéncia direta da criagio plistica sobre o estatuto de antsta com efeto, arenovacio dos modos de expressio, criada pelo sistema de transgressoes das expectativas de senso comum* tornou necessaria uma mudanga de definicio do estatuto, significada pelo vocabulirio, Mas a questio a saber &se o inverso no é totalmente verdadeiro: ‘io foi igualmente a fragmentacio do estatuto de artista pelo deslocamento do trabalho de criagdo da obra para a prépria pessoa do criador, que acarretou essa fragmentago das ‘modalidades da criagio, de seus suportes e até de sua prépria definicao? ‘Averdade & que se tornou particularmente dificil impor uma definigao do artista, suscetivel de incluir hipéteses tao variadas. E essa dificuldade aumenta pelo fato de se tratar de um estatuto prestigioso, que, desde a Renascenga, nao cessou de aumentar seu poder de fascinagao, quando o produtor de imagens era ainda tao somente uma forma superior do artesio. Umindicio notivel desta elevagao do estatuto ¢ o aumento, desde co século XIX, da populacdo dos artistas, que no cessa de se acentuar atualmente: na Franga, 0 niimero de artistas recenseados dobrou nos tiltimos quarenta anos *. Ora, marcaras fronteiras de uma categoria simultaneamente prestigiosa, portanto cobicada, tornada indistinta pela pluralidade de suas acepgées, é uma tarefa tio 4rdua quanto necesséria: e, no plano material, pois as diversas ajudas atribuidas aos artistas néo poderiam multiplicar-se indefinidamente, sem um controle da qualidade de seus beneficidrios; e, no plano moral, pois o prestigio ligado a um estatuto sé tem sentido se este no é concedido a todas as pessoas. ‘Afronteira que permite determinar quem artista se organiza hoje de duas maneiras diferentes: seja pela distingao entre arte e oficios de arte, que diferencia categorias de NANAIMO Asmeannariesdb estan dasa mn épccamedernrcconenencens ARMY atividades, seja pela distingao entre profissionais e amadores, que diferencia, no interior cde uma mesma atividade, graus de implicagéo da pessoa. Em ambos os casos, hd uma hierarquia propria a essas duas grandes categorias de critérios: tradicionalmente, a “arte” 6 considerada mais nobre que os “oficios de arte” (hierarquia que certamente muitos contestam, 0 que 6 a porcio de toda hierarquia), e 0 “profissionalismo” é considerado como mais sério, mais auténtico que 0 “amadorismo”. (Quaisquer que sejam os critérios, mais ou menos formalizados, que permitem a classificagio de parte e de outra dessas fronteiras, é necessario admitir que a arte se tomou principio de uma forma de elite, Neste sentido, ela deve forgosamente suportar um controle na entrada, uma selecdo daqueles que tém qualidade para valer-se dela. Salvo para declarar que qualquer pessoa é artista, o que faré, sem duivida, prazer a todos, mas néo resolverd a questo do grau em que se cumpre este estatuto, portanto, da hierarquia interna da categoria, por conseguinte, da selegéo. Uma vez que néo ha valorizagao sem critérios de valor. Mercados Parece-me que é em torno desta fronteira, que permite determinar quem € artista, que se reconfigura atualmente a problemitica do sucesso artistico. Eis o que relativiza a questo do mercado, importante com certeza, mas que sofreu também profundas transformagées. Os circulos do reconhecimento Produziu-se, na verdade, uma inversio dos segundo e terceiro “circulos do reconhecimento”, conforme.a expresso de Alan Bowness’: aqueles que, do tempo da arte moderna, formavam o “segundo circulo” — colecionadores e galeristas, sto é, os atores do mercado privado — passam hoje em seguida ao “terceiro circulo” constituide entdo pelos criticos de arte e curadores de museu. Estes se tornaram — apés o'‘primeiro circulo’, pares — os principais atores do reconhecimento em arte contempordnea, colocando em primeiro plano as instituicées piblicas, especialmente na Franca dos Uiltimos vinte anos. Assiste-se, ento, a uma nova prioridade do setor piiblico sobre o setor privado e, correlativamente, das formas de reconhecimento identitério - ser oundo ser considerado artista ~ sobre as formas de reconhecimento material -a cotagéo das obras no mercado. Esta mudanga é acompanhada por um corte cada vez mais pronunciado entre “a arte orientada para o museu” e “aarte orientada para o mercado”, para retomar aanilise de TEXTOS ee Aan Bowes, Teens of sce. Nw he morass 10 fan, Tames and Hui, on- des, 98. FE esmrorronare ronromecre win. ne72. nwona0s TEXTOS a E. Reymonde Moulin, Lard, iii marke Fae, Pars. az (Nate, La fe, Tere, hese rage isin" Sole de 7,185 Raymonde Moulin®.E é igualmente correlativa de um fosso cada vez mais profundo entre 05 especialistas pertencentes aos trés primeiros circulos do reconhecimento eo grande pUblico, mesmo o piiblico culto dos amadores de arte, que constituio “quarto circulo”. Sucesso e fracasso Eis o que contribui para redefinir a propria nocdo de sucesso artistico: vender suas ‘obras o mais caro possivel, ver sua reputacao crescer no espaco e no tempo nao sio mais os Cinicos critérios, pois antes mesmo de existir no mercado privado e na cultura dos amantes da arte, pode-se ser reconhecide como um artista, no meio muito fechado dos especialistas de arte contempordnea, e dela viver— mesmo mal — gracas ao sistema de auxilios e de encomendas puilicas. lnversamente, a forma moderna do insucesso em arte — o fracasso artistico — desqualifica ndo sé a capacidade de as obras serem reconhecidas como artisticas, mas também a capacidade de seu produtor em ser reconhecido como artista: fracassar nao 6 mais ser acusado de ser mau artista, é ser acusado de nao ser um artista ou, melhor, fracassar em ser reconhecido como tal. Ea sancao do fracasso tem implicagées que no io sé financeiras, mas também identitarias, visto que elas concernem a “qualidade” (no sentido de estatuto) da pessoa, tanto quanto a “qualidade” (no sentido de valor) da ‘obra, Ser oundo ser um artista: esta & a sangéo final do sucesso, muito mais radical que as questées de riqueza, de notoriedade e de estima que constitulam os investimentos essenciais dos regimes anteriores. E por que o verdadeiro descrédito nao passa mais, hoje, pela depreciagao, mas pelo siléncio: ha um século apenas, os criticos falavam mal de um artista quando oachavam ruim; hoje eles se contentam de nao falar dele’, Na outra extremidade da escala do sucesso —aquela que designa um “grande artista” -, um critério muito importante na hora atual é presenca do artista nas grandes instituigdes pblicas: museus, bienals, exposicdes internacionais, Porém esta prova de sucesso artistico é uma prova ambigua, pois sempre desacreditada em nome dos valores de interioridade € de autenticidade que regem o universo artistico em regime de singularidade. E ela é desacreditada até pelo préprio artista, dividido entre o desejo de “ter sucesso” no mundo ‘eaconsciéncia do fato de que um sucesso demasiadamente mundano pode, ao fim, significar aiincapacidade de ver seu trabalho perdurar para além da simples notoriedade entre os contemporéneos, para além dos limites deste mundo, paraalém de sua prépria morte: na posteridade que sé sanciona legitimamente os valores de criagdo. E por isso que uma carreira exitosa, para um artista de hoje, nao passa somente pela possibilidade de impor a seus pares ea seus sucessores solucdes estéticas incontomnveis: ela consiste também em poder propor as futuras geracdes um verdadeiro “modelo” no qual a pessoa, ao mesmo tempo que obra, tam seu papel a desempenhar. SAWING Arceoniarderdistimaatanacorcrmedenseconnpaiocs FREY ‘Assim, os artistas atualmente se debater em contradicdes bem reais numa época em ‘que, segundo as palavras de Bob Dylan “todo sucesso é um fracasso, todo fracasso é um sucesso”, pois, na légica vanguardista que se tornou a norma na época contemporénea, a cexceléncia pode ser medida no futuro, tanto quanto no presente, junto 0 pequenonimero, ‘mas igualmente ao grande publico, na circulago confidencial de um nome como na fetichizagao ardente de uma obra ea heroicizacdo massiva de seu autor. Assim, os critérios do fracasso podem ser interpretados como provas de sucesso — eo contrério. Desta situagéo estranha e, sem divida inédita na histéria de nossa sociedade, os artistas $30 05 primeiros.a se beneficiarem, bem como a perderem uma vantagem. Carreira Aprépria nogio de “carreira” artistica também evoluiu paralelamente a identidade de artista e 20 lugar do mercado nos critérios do sucesso. De fato, a economia propriamente “vocacional” se caracteriza por uma inversio dos meios e dos fins em relagéo & economia habitual: ganhar a vida &, para um artista, o melo de exercer sua arte, muito mais que o exercicio de sua arte nao é — como na maior parte das atividades —o meio de ganhar dinheiro. Nestas condicées, pode-se entio falar de “carreira” de artista, ainda que este termo, em sua definicdo classicamente “profissional”, remeta a estes universos em que o sucesso passa pela realizacao de uma trajetéria padronizada, de postos em postos, em uma progressio hierarquica formalizada? Essa padronizacdo das trajetérias biogréficas e das formas do sucesso, a qual encontra sua realizagao por exceléncia na diplomacia, implica uma certa despersonalizagio, como bem o indica, allés, © préprio termo “posto”, tipico das ‘ocupacées burocraticas em que a posigéo ocupada se acha definida anteriormente 4 pessoa que a ocupa e independentemente dela, Essa despersonalizacao dos meios do sucesso néo exclui, contudo, uma evidente personalizaao de seus fins. Porque o que est em jogo em uma carreira & essencialmente uma ambigdo individual que visa a aumentar a grandeza da pessoa. Essa ambi¢o poderd ser desacreditada como “carreirismo”, exercendo-se em detrimento de uma grandeza de interesse geral sejaa grandeza coletiva de uma instituigio, de uma naco, de uma causa (na qual a pessoa se apaga atras de sua misao), seja ainda a grandeza duradoura de uma obra —uma obra na qual a pessoa tende a se encarnar em um objeto cuja grandeza medida por sua capacidade de resistir & degradacio do tempo”, Foi somente com a evolucao das profiss6es da imagem para uma organizacéo no mais corporativa, mas académica, que se tornou possivel falar, para os pintores e escultores, de “carreira” neste sentido restrito. Com efeito, no quadro das academias nas quais se institucionalizaram as “artes do desenho”, a partir da Renascenca, a sucesso TEXTOS za Natal Hick, “Po parr eared aie Usbehicige es formes ea ase aig, (ier de cece sci 16H, EVSTAPORTOARTE PORTO ALEGRE W13,NP 22, MAIO 2005 TEXTOS regrada dos postos pedagégicos e administrativos, formava o quadro em que era licito a um aspirante-pintor sonhar com seu futuro: de aluno-académico a académico, até mesmo professor e adjunto, “funcionério”, reitor, diretor. Aj, como em qualquer “‘profissao” (no sentido dos professores intelectuais e das profiss6es liberals), os ttulos administrativos que atestam o reconhecimento por seus pares vinham sancionar a cconformidade do trabalho normas de qualidade coletivamente admitidas, assegurando fontes de proveito material, pelas garantiase, freqlientemente, pelas encomendas oftciais ‘ou privadas trazidas pela ascensio na carreira, Sabendo que esta nogio tem seu modelo por exceléncia na diplomacia, compreende-se ainda melhor por que as maiores “carreiras” de pintores na época ~ pensemos, por exemplo, em Rubens — estavam freqiienternente associadas misses diplomticas. Porém a dupla e contraditéria caracteristica da carreira ~ despersonalizagao dos meios pela padronizacéo, personalizacio dos fins pela ambicao ~ diz respeito fundamentalmente aos valores que os artistas encarnam por exceléncia, hoje. Jé foi Visto que, de uma parte, é 0 valor de singularidade que faz da pessoa do criador, autenticada pela assinatura, 0 portador privilegiado de toda inovacéo, de toda invengio, seguindo o modelo das vanguardas, tais como se impuseram ha um século: singularidade que 6, evidentemente, oposta a toda padronizagio. E é, de outra parte, 0 valor de intemporalidade, no qual a capacidade de resistir a degradacao dos corpos e a contingéncia dos momentos de uma vida se mede pela perenidade de um objeto constituido em obra e, como tal, destinado a sobreviver, na posteridade, & pessoa de seuautor e assim a superé-la: intemporalidade a qual a mais bem sucedida das carreiras néo pode certamente pretender — salvo a transformar-se em “destino” heréico, prometido alenda. E por isso que 0 sucesso artistico, desde o momento em que comporta uma exigéncia de singularidade em seu procedimento e de intemporalidade em seus resultados, implica simultaneamente a personalizagao dos meios pela invengao de caminhos novos abertos Por um individuo isolado ante a tradicao, e a despersonalizacio dos fins do sucesso, pela criagdo de objetos chamados a cristalizar duradouramente valores reconhecidos muito além da pessoa do autor. Esta é, certamente, uma maneira bem particular — reservada tradicionalmente aos santos e aos heréis ~ de um artista fazer “carreira”, “fazendo época”, como se diz, na histéria da arte. E, por conseguinte, esta forma que vai ‘tomar, na época contempordnea, a realizagio por exceléncia do sucesso artistico: sucesso que, desde ento, ndo podera mais ser assimilado a uma “carreira” no sentido tradicional, visto que se trata da invencZo, por um individuo singular (pensemos, por exemplo, no caso de Marcel Duchamp), de um itinerério estético que Ihe seja préprio, em uma biografia que, ela prépria, pelos obstaculos e fracassos acumuulados no caminho do criador, garante sua irredutibilidade aos cnones, sua incurdvel marginalidade, sua capacidade radical a se moldar em qualquer tradigao. AMNEHOY Asmconeuactescnesteodwibtenadoocamodcmacrentmeednes IIB Para uma sociologia da singularidade TEXTOS Asatividades de criagdo se tornaram o lugar por exceléncia da pratica profissional dos valores de singularidade. Elas possibilitam também uma opgio para a observacio desta tenso entre dois principios de grandeza, duas maneiras de construir valor: regime de comunidade, que repousa sobre um imperativo de eqiiidade, privilegia 0 social, 0 geral, 0 coletivo, o impessoal, 0 piiblico; e o regime de singularidade, que repousa sobre um imperative de autenticidade, privilegia 0 sujeito, o particular, © individual, pessoal, o privado. Pois se pode ser grande sendo mitiplo ou, ao contrario, Linico ~ podendo estes dois principios de grandeza coexistir no seio de uma mesma atividade, até de um mesmo sujeito. Isso nao significa, com certeza, que tudo que se produz em arte seja singular nem que a singularidade seja uma qualidade possuida exclusivamente por uma categoria superior de obras ou de artistas: significa que o processo de admiracao, de valorizacao, de consagracio artistica, repousa muito geralmente (portanto para o senso comum e no mais somente para uma elite de especialistas) sobre a imputagio, ao objeto em questio, de qualidades proprias a singularizé-lo ~ 0 que nao era o caso do tempo em que a atividade artistica era julgada, antes de tudo, em fungao de sua conformidade a cénones e de sua capacidade de ser aceita por todos. Deve-se ressaltar, todavia, que este trabalho de imputagao de singularidade tem todas as chances de estar, ele proprio, no oposto de toda singularidade, feito de esterestipos e de imperativos de obediéncia a esta norma paradoxal que é a obrigacao de nao-conformidade. Deve-se concluir dai que se trataria daquilo que os socilogos chamam de situagio de “anomia’”, isto é, de derreliccao das regras, de confusao dos limites, de auséncia de qualquer critério e, notadamente, de critério de exceléncia? Nao, bem ao contrério, pois, de uma parte, o regime vocacional- que é, em matéria de ocupacéo ou deatividade remunerada, o regime por exceléncia da singularizacao dos valores—é, como o regime profissional e o regime artesanal, devidamente estruturado, com critérios de exceléncia que so deixados ao arbitrdrio ou a recomposigéo perpétua. De outra parte, a demarcacio entre grandes, médios e mediocres artistas, continua, em regime de singularidade, um nvestimento importante, que ocupa um certo ntimero de criticas, sem contar os préprios artistas e seus parentes, freqlientemente inquietos com seu valor nao 6 no mercado de arte, mas no pantedo da histéria da arte, portanto, no oposto de uma rendncia “anémica” & organizagio, as hierarquias, as categorizagées. Por outro lado, as formas de valorizacao centradas na singularidade repousa em uma relago ao tempo muito especifico e também devidamente estruturado, visto que integra ndo sé o presente da atividade artistica e o passado das referéncias que organizam aconstrugao dos valores, mas também, e sobretudo, o futuro. Com efeito, uma dimensio fundamental do reconhecimento do singular na modernidade reside em seu carater Ae/SARORTOMTE FOTO ECRE WAP NADI TEXTOS zx (Nathan, Ce ue fr it 4 fr saci Mt, Parc 198 ze Pier Bort, Le diincin ga scl ogee, it, Pari 19. inovador, que garante a ruptura com as tradic6es anteriores: ruptura que correo risco de condené-lo & marginalidade, salvo a ser considerado como ponto de partida de movimentos ulteriores, pivé em torno do qual a tradi¢ao se anula para dar lugar ao que se tornard uma nova tradicao. Estas diferentes caracteristicas que ordenam o funcionamento de uma ética da raridade fazem do regime de singularidade um regime bastante complexo, pelo menos em relagdo ao regime “normal” que é aquele no qual evolui a maior parte dos trabalhadores. Mas sua complexidade nao significa em nada, ter-se-4 compreendido, auséncia de estruturas,ilogismo, desordem, contradigées: ela esta simplesmente no inicio de uma estruturagao que integra dados diferentes e, s vezes, opostos aquelas que cordenam o mundo familiar das atividades com finalidade essencialmente econémica. Contudo, se o mundo da criagao, na época moderna e contemporénea, constitui um terreno de escolha para uma sociologia da singularidade, é um terreno minado, pela possibilidade excepcionalmente favordvel que ele oferece ao empreendimento de redusio, particularizante ou generalizante: o sociélogo ai se expée, mais do que em qualquer parte, aliés, a um duplo mal-entendido, tendo de se defender, ao mesmo tempo, da leitura “singularizante”, espontaneamente praticada pelos adeptos dos valores artistic e lterérios, eda leitura “dessingularizante”, prépria dos adeptos do “social” e dos praticos da s ‘Aesta dificuldade criada por uma leitura espontaneamente normativase acrescenta © peso da tradigao sociolégica que inscreveu a oposi¢ao do geral e do particular em ccategorias interpretativas que se supe explicarem a efetividade das condutas: “a 20 “individualis mo” (e o carter aprentemente descritivo dessas dicotomias nao impede evidentemente seu uso normativo, como testemunham as interminaveis querelas ideolégicas que atravancam as publicacées especializadas). Ora, a oposigao entre “regime de singularidade” e “regime de comunidade” néo designa categorias de acdes ou de relagées efetivas, mas sistemas de valores e de representac6es: trata-se de saber nao 0 que os atores experimentam realmente (provavelmente uma mistura de cexperincias mais ou menos singulares e mais oumenos comuns), mas queeles valorizam, © que eles privilegiam em suas representagSes e suas avaliagdes. Em suma, trata-se de regimes axiolégicos e nao de condutas. Ao contrario de qualquer behaviorismo, uma sociologia da singularidade néo é, de maneira alguma, redutivel a uma sociologia da distingao (nem uma sociologia da comunidade, redutivel a uma sociologia da imitagéo): primeiro porque a segunda tem por objeto condutas (praticas, compras, gostos) e nao sistemas de valores; em seguida, porque ela atribui a essas condutas um julgamento critico, préprio a denunciar 0 “esnobismo” das pessoas que “procuram distinguir-se!?". Ao contrério, esta sociologia normativa das condutas, a sociologia da singularidade tal como eu a entendo, pretende-se uma sociologia descritiva, dos valores — esses valores que subentendem os julgamentos, as representacées, as ages, e gragas aos quais, os comportamentos dos individuos no so redutiveis nem a puras interagdes nem a impuros interesses. Mas este mundo onde reinao singular 6, por definicdo, recalcitrante & generalizaca0, implicada por toda enquete sociolégica. A irregularidade é a regra, da mesma forma que a indeterminacao é nela determinante, tornando dificil esta busca de coeréncia que faz acompeténcia profissional do pesquisador. Além do mais, o “avango em generalidade” no é aia Unica condigao da grandeza, que exige, a umsé mesmo tempo, um “avango em objetividade””. Esta traz consigo © paradoxo de que a grandeza do singular vai de par com uma dessingularizagio: demasiada admiragio mata © objeto de admiracio, a mediatizacdo é suspeita e o sucesso denunciével, de sorte que acumular as provas da ‘grandeza do singular é uma estratégia ambivalente, tendente a transformar o modelo em ‘objeto da moda; a adulagéo das multidées, em signo de vulgaridade; a seducao em. indicio de inautenticidade. Em suma, nao ha singularidade sem critica, portanto, nem sociologia do singular que nao assuma o risco de um objeto problematico, ambivalente. Porém é também o que faz da singularidade um objeto incomparavelmente fecundo para a sociologia: por seus paradoxos, ele a empurra para seus préprios limites. E, a0 menos, o que espero ter sugerido a vocés hoje. m NATHALIE HEINICH éseclga retor depesquisa no CNRS, autora de numerosos artigos publcadosem rests centfcas ‘altura ders tradzdasem dvesslinguastratand sobre quests d tatu do artista sobre aroia dau ate ‘onemporina, quested itera. TEXTOS i______ Onn “om elt” nao Lc aa eLaven There, Del jain. es one prt liar, Pai BL Ace cjg “axiom pala" costae jit fi read eho darren * equ at it ge Cit ese en Ciel Cerri. Caton, citgee sla oe Pa

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