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TEMAS EM DEBATE CURRICULO, CONHECIMENTO E DEMOCRACIA: AS LICOES E AS DUVIDAS DE DUAS DECADAS* TOMAZ TADEU DA SILVA da Faculdade de Educagao/UFRGS ‘Apés vinte anos de intenso debate @ protundas ciicas, 0 que realmente saberios sobre construgao, selagdo, orga- nizagao, representagao e disribuigéo do conhecimento em educagdo? A resposta a esta questéo exige uma pequena digresséo a respeito da stuacdo da area de estudos de ccurriculo no Brasil, Durante alguns anos absorvemos de forma constrangedorament acitca’ as formulacées ame- ricanas sobre cuniculo (representadss pelo modelo de Tyler), mas presungosamente ignoremos os desenvovi- mentos posteriores. A importante corrente iniciada por Michael Young na Inglaterra, @ que ficou conhacida como “nova sociologia da educagao" (centrada em quesi6es de ‘organizagao e selego de conheciment), por exemplo, ppermanece até hoja desconhecida no Brasil, para néo falar das reagées e refoimulagbes que a ela se seguiram. Perce: ‘mos até mesmo a continuidade dos debates e crficas que se sucederam 20 predominio inicial de uma contribuigao ue aqui repercutiu intensamente, as chamades teorias da reprodugéo em educagao (Althusser, Bourdieu @ Passe- ron), incompreensivel ¢ precocemente relegadas ao limbo das teoriasindteis@ utrapassadas, E, quando retomamos 0 contato com essa literatura, le 6 de novo realizado de forma mimética e acrtica, como acontece, por exemplo, com 0 conceito de resisiéncia, Mas dizer isso tudo néo significa desvalorizar ou ignorar os desenvolvimentos aqui ocorridos. Eles foram e so impor- tantes, mas raramente estiveram explicitamente centrados om questées de curfculo, com as importantes excegses das elaboragdes de Paulo Frere © das discutveis contibui- 628 da chamada “pedagogia dos contetidos”. Mas 0 que ‘os interessa aqui 6 discutir qual a situagéo hoje de uma teoria critica do curriculo, quais suas contribuig6es para a andiise dos atuais processos de criacdo e transmisséo de conhecimento escolar e para uma prética que tenha como objetivo transformar os arranjos existentes. ‘Apesar de pouco prestigio da érea de curriculo dentro do campo intelectual mais amplo da educagéo, a maior parte das quest6es educacionais pode ser traduzida numa discusséo sobre criagéo, selagao e organizacéo do conhe- cimento escolar, isto 6, sobre curriculo, o mesmo poden- do-se dizer sobye a maior parte dos contitos concretos em toro da organizaco do sistema escolar. No fundo, 0 que ‘50 discute Sempre séo questdes relacionadas ao contaiido ‘88 forma do curriculo escolar, mesmo quando a discuss40 parece estar muito distante dessa esfera de preocupagoes, ‘quando se trata, por exemplo, do papel do Estado na ‘educagéo. € importante, por isso, ao menos por uma vez, tratar explicitamente de questées de curriculo. E para isso ‘que nos voltamos agora. CURRICULO E DEMOCRACIA Quais os temas e as questdes centrais de uma érea de estudo chamada “curriculo” no Brasil atual? Apés vinte anos de debates, crticas, reformulagbes, reorganizagoes 1 Veja-se, entretanto, uma interpretagao diferente (e mais cuida- dosa) na excelente tese de doutorado de Moreira (1988), a sor ppublicaca em breve pela Papirus. * Versio ampliada de trabaino apresentado ao | Semindro de Curicul, realizado na Faculdade de Educagso da Universidade Federal 140 Fio de Janeiro, de 21 a 23 de novembro de 1989, numa promogdo do Nasleo de Curioulo daquela Faculdade, Cad. Pesq., Sao Paulo (73): 59-66, malo 1990 59 de éreas e de campos dentro do pensamento educacional, fem que ponto estamos no que se refers & criaGéo, orgeni- 72aG40, selecdo e transmissao de conhecimento escolar? E rnaquilo que mais nos interessa neste trabalho, quais énta- ses devem ser dadas por uma érea de estudo chamada “curriculo”, na construgéo de uma sociedade democratica, justa, iqualtéria? O que realmente aprendemos nosses vin- ‘te anos de critica sobre 0 processo de criagso, selegéo © ‘ransmiss4o de conhecimento? Essas séo algumas das, questées que pretendo discutir neste trabalho. Comegando com as primeiras crticas dos teGricos da reprodugéo (Althusser, Bourdieu @ Passeron, Bowies € Gintis, Baudelot @ Establet) no final dos anos sessenta, inicio dos anos setenta, passando pela “nova sociologia da ‘educagéo” (Young), por todas as crticas e reformulagdes ‘que se Ihes seguiram, por Paulo Freire toda a crtica & poitica educacional dos governos miltares, e terminando com as atuais preocupacdes com as chamadas “teorias da resist6ncia” ¢ com as referéncias ao pés-modemismo @ 20 pés-estruturalismo, 0 que realmente sabemos sobre os vinculos entre curriculo @ democracia, entre transmisséo @ selegdo de conhecimento e construgao de uma sociedade mais justa igualtéria? O que caracterizaria uma viso rogressista e socialista em questdes de curriculo? Como se sabe, a visto convencional sobre os vincu- los entre educagéo e democracia tem sido construida com base na énfase sobre 0 acesso ao sistema escolar e de pemmanéncia @ éxito no mesmo. No Brasil esta 6 uma tradigdo que comega com os Pioneiros @ a Escola Novae tem sido a principal bandeira educacional de grupos pro- ressistas desde entéo. Esta preocupagao refetia-se tanto nas relvindicagées relativas & poltica educacional quanto nos temas predominantes na pesquisa educacional. As relagdes entre acesso, permanéncia e éxito no sistema ‘escolar, por um lado, varidveis ligadas & “classe social”, por outro, constituiram-se durante muito tempo na preocu- ppagéo central, nfo s6 da sociologia da educagéo, mas da pesquisa educacional em geral. Ndo era esta a principal Snfase de um dos livios que abrem a critica & poltica ‘educacional do regime militar, 0 Educagao e Desenvolv- ‘mento Social no Brasil, de LA. Cunha (1977) Por detrés dessa énfase estavam varios pressupostos {do credo social liberal e da tradiggo luminista relavamente a educagao. Nessa perspectiva, a educacao escolar gonk ralizaca contribuiria para a construgao de uma sociedade demoorética tanto pelo poder modemizente, desmistfica- dor 8 racionalista de seu contetido, quanto pela sua capa- cidade de aplainar @ nivelar diferencas socials recebidas, Isto 6, em primeiro lugar, a educagso escolar amplamente distribuida contribuiria para formar consciéncias néo ape- ‘nas compativeis com o modo democrético de organizacao ‘social, mas também capazes da construblo @ reforgé-io, Em segundo lugar, a distribuigo igualtéria de educacao escolar numa sociedade baseada no mérto @ na valoriza- 0 das credenciais educacionais serviia para compensar desvantagens sociais devidas ao nascimento. Nao se pode dizer que esses ideais tenham sido se- quer minimamente realizados. No Brasil nfo chegamos nem mesmo a realizar © primeiro termo da equagao, 0 ‘acesso @ a permanéncia. Nos paises centrais do capitlis- mo nao se pode dizer que a realizacao do primeiro termo dda equagéo tenha contribuido para efetivar 0 sogundo, 60 smbora esses ideais continue presentes nos discur- sos @ propostas do imaginério educacional em geral @ ainda possam ser considerados uma bandeira progressis- ta, ha muito perdemos a inocéncia @ a ingenuidade com relacdo a seus principals pressupostos. ‘A porspectiva que se inaugura com as orticas das teorias da reprodugdo e da “nova sociologia da educe- {ga0", em outros paises, e com as idéias de Paulo Freire, no Brasil, © tem seqdéncia com as reformulagses posteriores, ccoloca sob suspeita a maioria desses pressupostos. Essa crtica comega por alacar pela base 0 ediicio ideoi6gico Cconstruido pela tradigSo liberal em educagéo, ao denunciar a iatrogenia do tratamento prescrito. Ela descobria que a escola estava implicada na produgao de algumas daquelas mesmas coisas que supostamente deveria evitar, como, por exemplo, 0 fracasso escolar e a conseqdente perma- nnéncia no mesmo nivel da hierarquia social, ao invés da. prometida mobilidade, ou a fabricagao de trabalhadores déceis e conformistas, ao invés de cidadaos conscientes & paricipantes. Prescrever mais educagao escolar sem exe- minar 0 seu conteido © mapear cuidadosamente seus possivels efeitos pemiciosos signiticava reforcar, ao invés de eliminar, as manitestagdes tidas como indesejéveis. Em outras palavras, a educagao nao contribuia, como se per eva, para eliminar divis6es @ injusticas sociais. Ela servia, 220 contrtio, para reforgé-as e reproducilas. De forma radicalmente diferente da viséo liberal em educagéo @ da antiga sociologia da educagéo, aqui se questionava a propria substéncia da educagao escolar. De ‘uma forma ou de outra, o contetdo da educacéo escolar, 0 curriculo declarado ou o curriculo implicto, 0 conhecimen- to ofciaimente transmitido e as atitudes explicitamente cul- tivades ou 0 conhecimento subjacente ¢ as “virtudes” ocu tamente inculcadas, tudo isto se tornava agora problemt- co @ problematizével Sto as descobertas acumuladas por esses anos to- dos de pesquisa e teorizagéo que constituem hoje o nicleo {de nosso conhacimento sobre 0 funcionamento da escola, €, particularmente, do proceso de criagao, selegdo, orga- nizagao e transmissao do conhecimento escolar. € verda- de que ainda restam muitas dvidas © questées. Mas, an- tes de fazer um exame das incertezas, passemios em revis- ta algumas das principais ligbes das criticas da educagéo ‘escolar, com énfase especial sobre questées de curriculo. ‘A préxima segao esté organizada em tomo de proposigies {que sintetizam algumas das questées centrais abordadas ‘nos titimos anos pelas teorias criticas da educagéo. A cada proposigdo se segue um breve comentério, que estende © contextualiza de alguma forma aquilo qué nela, esté contido. AS LIQOES © processo de criagéo, selegéo, organizagéo @ distibui- ¢d0 de conhecimento escolar esté estreitamente relacio- nado com as processos socials mais amplos de acumula- (¢40 @ legitimagéo da sociedade capitalist ‘Ao contrério do pensamento convencional sobre curr culo, as teorias crtices enfatizaram desde 0 comeco as ‘estreitas ligagbes do processo de criagao, selegao e orga- rizagéo dos curriculos escolares com a dindmica de pro- Cad.Pesq. (73) maio 1990 dugSo e reprodugao da sociedade cepitalista, Apesar das qualficagées @ refinamentos posteriores, 0 niicleo dessa descoberta permanece como o ponto forte das andlises cticas da educagéo. Nessa perspective, o pressuposto do caréter necessa- riamente benigno de todo conhecimento, que esté por de- \rés das concepgbes educacionais que se preocupam to- somente com o8 aspectos técnicos de organizagéio e sele- {¢80 curricular (centrados em quest6es relativas a0 “como”, 0 invés de em questdes relativas a0 “por que") 6 rejeitado fm favor de uma andlise que vincula conhecimento @ curt- culo com controle @ poder. Para isso, fol necessério aban- donar as visées idealistas dominantes no campo educacio- nal, para desenvolver uma andlise frmemente enraizada nas caracteristicas centrais da dinémica de produgéo e Teprodugéo da sociedade capitalsta. De forma sintética, pode-se dizer que © modo domi- ante de educacéo, 0 escolar, esté implicado, quanto a0 ‘que aqui nos interessa, nos processos de legtimaao, acumulagao @ produgao de conhecimento técnico, neces- sérios para o funcionamento adequado da sociedade capi- talista (Apple, 1989). A educagéo institucionalizada contr- bul para esses processos: (1)ao transmit conceitos e vi- 's6es que induzem & aceitacdo do modo presente de orga- nizagéo econémica @ social (processo de legtimacac); (@)a0 produzir pessoas com as caracteristicas cognitivas aitudinais apropriadas ao proceso de trabalho capitalista (proceso de acumulagac) @ (3)a0 estar envolvida no pro- ‘cesso de produgao do conhecimento cientfico @ técnico necessério para a continua transformacao do processo de produgéo captalista, Naturalmente, como vérios analistas crticos enfatiza- ram ao longo dese periodo, esses néo so processos Cujos resultados sejam garantidos. Ao contrario, eles pré- Prios astéo sujetos &s contradic6es e confltos envolvendo 8 grupos @ classes em jogo. Mas descrevem, néo obstan- te, tendéncias que, se ignoradas, apenas tenderiam a ser efetivamente realizadas @ a se reforgarem. A escola @ 0 curriculo néo garantem a reprodugéo social, mas estéo, 1éo obstante, implicados de varias formas nesse proceso. ‘A completa compreenséo da dinémica af envolvida deveria, impedir qualquer retorno ao estado de inocéncia anterior em quest6es de currculo. ‘Aquilo que 6 definide como sendo conhecimento escolar constitul uma selegéo particular e arbitréria de um universo muito mais ampio de posssibilidades. Esta 6 uma das principais liges do movimento de cetica em educagao e comum a varias das teorizagées, Foi 1 “nova sociologia da educacao” quem talvez mais entati- zou essa afirmagdo, fazendo inclusive dela seu tema Central, mas de uma forma ou de outra ela esteve presente fem varios dos desenvolvimentos tedricos © de pesquisa dese perfodo. O importante @ influente trabalho de Bourdieu, por exemplo, pode ser lido sob essa perspectiva ‘Alo conhecimento transmitido através das instituig6es edu- cacionais 6 visto como uma selegao arbitréria de um qua- do cultural particular, apenas tornada possivel por uma felagéo assimétrica entre as diferentes classes. Por outras Vias, nisso esté a forca de boa parte das ligdes de Paulo Freire, a0 prociamar a parcialidade ideol6gica de toda ago ‘educacional Currfculo, conhecimento, ‘Ao contrério do que nos faz crer a viséo liberal, nem 0 conhecimento em geral, nem o conhecimento escola, Constituem absolutes, produtos de um processo incessan- te © desinteressado de busca da verdade. Como nos mos- trou Foucaut, conhecimento @ poder estéo estrettamente entrelagados.’ A importancia dessa constatagéo adquire ‘mais forga com relacéo ao currculo escolar, estera privie- giada de circulacao @ transmissao de conhecimento. Aqui #344 plonamente om agéo aquilo que Raymond Wiliams cchamou de “a tradico seletiva’, que vai ao longo do tem- Po cristaizando como aternativa tnica aquilo que nao pas- ava, no inicio, de uma selecao particular e arbtréria do um Luniverso muito mais ampio de possibilidades. esse proceso de “tradicao seletva”, as relagées assimétricas entre classes e grupos confitantes atuam pa- ra valorizar um determinado tipo de conhecimento e desva- lorizar 0 de outros, para inciuir as tradigoes culturais dos Grupos @ classes dominantes entre os tipos de conheci- mento digno e validos de serem transmitidos e para excluir as tradigdes cutturais de classes e grupos subordinados. A

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