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Na presente circunstancia, esbogar uma andlise é é poupar-se ao trabalho requerido por uma verdadeira criti- ca das formagées ideoldgicas, tais como se deixam assina- }Y lar em condigdes histéricas determinadas. Ora, nada asse- gura que, estando tal trabalho conclufdo, o esbogo ainda ‘ resista ao pé do quadro, ou conserve o valor de um im primeiro est4gio. De resto, seus limites ndo deixam de ser bastante visfveis. Delinear um perfil da “ideologia burgue- sa” sem fazer referéncia a datas e lugares, é negligenciar muitos tragos que deveriam ser levados em consideragdo, como por exemplo, a telagao mantida aqui e acol4 entre os discursos dominantes e 0 curso do conflito das classes, o regime politico, a tradigdo nacional, a heranga de uma cultura. Voltando a tragar tais articulagGes, talvez se propiciasse o surgimento de vdrias figuras ali onde, antes, apenas se distinguia uma, e a perspectiva adotada nao permaneceria intacta. A suspeita que pesa sobre nossa andlise do totalitarismo ndo é menos grave, visto que nao dissocia stalinismo, nazismo e fascismo, embora proba que se os confunda Além disso, nada diz sobre as transforma gGes ideolégicas ocorridas de vinte anos para c4 na URSS e na Europa Oriental, nem sobre essa singular variante do totalitarismo composta pela China. Quanto 4 ideologia que reina atualmente nas democracias ocidentais e que, na falta de um termo melhor, denominamos “invisi- vel” (nao porque ela o seja de fato, mas porque nos parece arranjada de maneira a esfumar as oposigGes caracteristicas da ideologia ante- rior), encontra-se aqui mais indicada do que descrita e, sem a menor davida, seria preciso pacientes investigagGes para evidenciar os enca- deamentos do discurso aqui sugeridos, indo do ntcleo da organizagao ao do ensino, do niicleo dos media ao da psico-sociologia, por exemplo, ou aos da expressfo literdria, filos6fica e artfstica. Esta ultima fraqueza é ainda mais sensivel, porquanto acreditamos poder descobrir nessa terceira figura propriedades gerais da ideologia e o principio de sua transformacao. No entanto, tal fraqueza se explica, se € que nao se justifica, assim como o cardter do esbogo, pela preocupagdo de relangar as pressas uma critica cujos fundamentos encontram-se presentemente soterrados sob os escombros do mar- xismo. Com efeito, como deixar de notar a degradacdo do conceito de ideologia ao ser usado tanto por socidlogos e historiadores, que se colocam sob a autoridade da ciéncia, quanto por militantes revolucio- nérios? Ouviu-se alguns proclamarem “‘o fim das ideologias” (formula que conheceu grandes dias no inicio dos anos sessenta e que comeca a se revigorar de um certo tempo para cd), convencidos de que os 7 imperativos da sociedade industrial constrangem pouco a pouco a adaptagdo ao real, e que as grandes doutrinas no mobilizam mais grandes massas. Outros, contentam-se em denunciar a decomposi¢ao da ideologia burguesa, invocando a impoténcia dos dominantes para defender o sistema de valores que, da empresa 4 familia, regiam, outrora, em seu proveito, o funcionamento das instituigdes. Outros, ainda, numa perspectiva diferente, inscrevem todo pensamento no registro da ideologia, ndo hesitando sequer, em parte, em exigir uma ideologia do proletariado face a seus adversdrios, como se cada inte- resse de classe, determinado em si, encontrasse expressdo direta e coerente na linguagem. No primeiro caso, a ideologia é reduzida 4 manifestagGo de um projeto global de transformagao da sociedade, isto é, de fato, ao discurso explicito de um partido, comunista ou fascista (ou a uma de suas variantes), apagando-se a quest#o de saber como tal projeto surgiu da crise da ideologia burguesa, e por que esta pode fazer economia de uma tese geral sobre a organizacio da sociedade. No segundo caso, a ideologia dominante no presente é identificada com a ideologia burguesa, definida pelos tragos que outrora 0 movimento marxista lhe atribuia, de tal sorte que na decomposicao desta itltima nao se poderia, por princfpio, ler os sinais de uma transformacdo, e cede-se ora a ficgdo de uma revolugdo em curso, a pique de desaguar, ora 4 de uma dominago e de uma exploragao “selvagens”, incapazes doravante de reconhecer e fazer reconhecer sua legitimidade. No terceiro caso, enfim, 0 conceito nao conserva qualquer trago da acepcao primeira da qual recebia sua forca critica: a ideologia é teduzida as idéias que se “‘defende” para assegurar o triunfo de uma classe, 4 boa ou ma “causa”, cuja natureza se sabe ou se poderia saber, qual é e da qual sabe-se ou se poderia saber que se é 0 agente. De uma maneira ou de outra, a clivagem entre uma ordem da pratica e uma ordem da representagao, clivagem que gragas 4 obra de Marx estamos em condigdes de interrogar, é ignorada. Ou antes, mais valeria a pena dizer: é dissimulada, para sublinhar que nao se trata da alteragéo de um conceito mas, sim, de que o desconhecimento do problema da ideologia assinala-se, justamente, como uma cegueira ideoldégica — do mesmo modo que o desconhecimento do problema do inconsciente nfo nos permitiria falar de um erro na leitura de Freud, mas, sim, perceber a afirmacdo de uma nova resisténcia a descoberta que pde em perigo as certezas do sujeito. . Assim, gracas a uma asticia notdvel, a ideologia passou a figurar quase ao contrério daquilo que designava. Légica das idéias.dominan- tes, subtrafda ao conhecimento dos atores sociais e revelando-se 8 apenas pela interpretacdo, na critica dos enunciados e de seus enca- deamentos manifestos, vé-se, hoje, reduzida ao corpus de teses, ao aparelho de crengas que fornece a armagao visivel de uma pratica coletiva, identificada com*o discurso democritico-liberal. para uns, leninista ou stalinista, para outros, (até mesmo maoista ou trotskysta) ou ainda com o discurso fascista, fais como se apresentam. Reabrir a via para uma critica da ideologia, pelo exame do presente, ndo é, enquanto tal, regressar 4 teoria de Marx em sua pureza primeira. Tal retorno seria duplamente ilusério, tanto porque nao hd, falando propriamente, uma teoria das ideologias em Marx, de sorte que suas andlises so ambiguas e nao se poderia explorar sua obra sem interpretd-la, quanto porque o presente sé se deixa decifrar sob a condigao de que se busque nele o recurso para questionar os princfpios que comandam sua inteligibilidade. Da mesma maneira, restabelecer o lago com o empreendimento de Marx s6 pode significar imitar d@ disténcia seu percurso, e incluir na interrogag4o da ideologia a do pensamento da ideologia. A distancia mostra-se seguramente considerd4vel tendo em vista que Marx s6 podia conceber a ideologia frente 4 “‘ideologia burguesa”, ao passo que ndés nos intimamos a reconhecé-la sob novas formas e, ademais, a compreender o princfpio de sua transformagao. Resta, ainda, que Marx — insistiremos neste ponto — nao fazia da ideologia burguesa um produto da burguesia, induzindo-nos, pois, a reporté-la 4 diviso social e a ligar sua origem a uma formacao histérica — denominada por ele “modo de produ¢do capitalista’” — que julgava diferente de todas as outras formagées anteriores — reunidas por ele sob a categoria de pré-capitalismo””. Nosso esbogo encontra seu ponto de partida nesta concepcao que circunscreve a ideologia a um tipo de sociedade, e que recusa, portanto, formalmente, a aplicagdo do termo a uma estrutura feudal, desp6tica, ou sem Estado, onde o discurso dominante tira sempre sua legitimidade de uma referéncia a uma ordem transcendente e nao deixa lugar para a nogdo de uma realidade em si inteligivel, nem, no mesmo lance, para a de uma histéria ou de uma natureza em si inteligfvel. Em contrapartida, rompemos manifestamente com a con- cepcdo de Marx a partir do momento em que deixamos de tratar a ideologia como um reflexo, procuramos desvendar sua Obra (ouvrage), pensamos juntas formagao e transformagdo, isto 6, emprestamo-lhe um poder de se articular e de se rearticular nao somente em resposta ao suposto “real”, mas sob a prova dos efeitos de sua prépria dissimulagao do real. Ora, tal ruptura, é preciso sublinhé-lo, nao conceme apenas 4 concepgdo da ideologia, mas também 4 do modo de produgao, ou a definigdo marxista do lugar do real. A sociedade, cuja especificidade frente a todas as outras forma- ges anteriores Marx concebe, advém com a cisio do capital e do trabalho, e nela as oposigdes das classes se encontram condensadas no antagonismo da burguesia e do proletariado. A separac¢fo do Estado e da sociedade civil responde a necessidade de um poder que represente a lei aos olhos de todos ¢ detenha os meios da coergao generalizada — 6rgdo destacado da classe dominante, susceptfvel de fazer valer seus interesses gerais contra os interesses particulares de tal ou qual de suas fragdes e de manter os dominados na obediéncia. Simultanea- mente, a fragmentacdo de setores de atividades, tendendo cada uma arrumar-se sob a imagem de sua autonomia, se engendra em. conse- qiiéncia da divisdo crescente do trabalho ¢ da exigéncia de especialis- tas que se encarreguem das necessidades sociais da domina¢ao burgue- sa ‘(a polftica se cinde do econémico, a0 mesmo tempo em que se delimitam os setores: jurfdico, cientffico, pedagdgico, estético, etc.). Nesta sociedade, j4 esto postas as condigdes da unidade do processo de socializagao: o capital j4 encarna, a despeito dos préprios homens, a poténcia social materializada; enquanto isto, com a abstrago cres- cente do trabalho, surge uma classe cada vez mais homogénea que tende a absorver em si mesma todas as camadas exploradas. Entretan- to, essa unidade Jatente s6é pode tornar-se efetiva pela negagfo da divisio, negagdo cujo motor reside na classe revolucionéria, numa praxis onde se articulam sua forga produtiva e sua luta contra a exploragio. As contradigdes decorrentes da acumulagdo do capital e da separagio dos diversos setores da atividade no seio da estrutura global, seu distanciamento, seu desenvolvimento desigual, as lutas sociais — luta de classes antes de tudo, e também luta entre grupos ligados a interesses e prdticas especfficos — fazem da sociedade .capitalista uma sociedade inteiramente histdrica, isto é, destinada a um transtorno continuo de suas instituigdes, destinada a dar 4 luz o novo e a ter a experiéncia explicita do real como histéria. Nos termos dessa descrigdo, a ideologia, por sua vez, se determi- na como um dominio separado — compde um mundo das idéias onde uma esséncia do social se encontra afigurada, as oposic¢des de toda ordem se transfiguram em determinagdes do universal, a dominagao se converte em expressio da lei. & evidente a afinidade entre o polftico e 0 ideolégico: assim como o poder se separa de uma sociedade dilacerada de ponta a ponta, para encarnar a generalidade da lei exercer a coergfo ffsica — transpondo e disfargando, ao mesmo tempo, a domina¢do de uma classe — também o discurso ideolégico se separa de todas as formas da prdtica social para encarnar a generalidade do saber e exercer a coergdo da persuasdo — transpondo 10 e aisfargando, ao mesmo tempo, em idéia o fato da dominacao. E o polftico e o ideolégico, em tltima andlise, s6 sdo inteligiveis quando se reconhece, simultaneamente, 0 inacabamento do processo de socia- lizagZo e a possibilidade de seu acabamento como inscrita no real, acabamento ao qual o comunismo dar4 a expresso efetiva. Porém, énquanto o polftico ainda se determina nos limites do processo de socializagZo, a ideologia completa imaginariamente a unidade que somente o movimento real, a negatividade do trabalho e da praxis proletéria, far4 advir. Ora, por mais fecunda que seja, esta andlise (na qual, certa- mente, 0 pensamento de Marx nJo se resume) desconhece a dimensdo simbélica do campo social. E impossfvel, opomos nés, deduzir das telagdes de produgdo a ordem da lei, do poder, do saber; é impossivel reduzir aos efeitos da diviséo capital-trabalho a linguagem em que se articula a prdtica social. Essas relagdes 86 se arranjam, esses efeitos sé se desenvolvem em fungao de condigdes que nao poderfamos colocar no registro do real. Em contrapartida, 0 que 6 nomeado como tal abre-se aos homens, ordena-se, torna-se legfvel, uma vez colocadas as balizas de uma nova experiéncia da lei, do poder e do saber, uma vez inaugurado um modo de discurso.onde certas oposig&es, certas prati- cas de fato se mostram — isto é, reenviam umas as outras, contém virtualmente um sentido universal, permitindo uma troca regrada entre o agir e 0 pensar. Segundo Marx, na origem do capitalismo, o progresso das trocas € a instituicdo progressiva de um mercado eram assinaldveis; porém, em outras formagées sociais (por exemplo, na China) a pratica mer- cante, malgrado sua extensdo considerdvel e a maturidade de suas técnicas, esbarrou com limites que lhe interditavam generalizar-se. E esses obstdculos provinham do sistema simbélico, de-uma configura- ¢ao dos significantes da lei, do poder e do saber que nao permitiam o deslocamento das relagdes sociais de dependéncia pessoal. Também na origem da acumulagdo do capital era assinalavel a violéncia nua dos dominantes que arrancavam os meios de produ¢ao das maos dos camponeses, reduzindo-os ao valor de uma pura forga de trabalho. Mas, 0 que Marx chama de pecado original do capitalismo designa também o de sua teoria, pois a violéncia que “partejava” 0 novo modo de produ¢do nao era muda, era sustentada por uma representa- go da causa e do efeito, cuja articulagdo estava privada de sentido em outras condigdes sociais, inscrevia-se num discurso que podia encontrar no interior de seus limites, o critério de sua coeréncia e fazer-se o pivé de uma articulag4o da lei e do real. iu Nenhuma descrigdo das mudangas ocorridas na produgdo, na troca, na propriedade, pode ievar a compreender 0 que se encontra posto em jogo com a formagdo do Estado moderno, Ali onde o poder polftico se circunscreve no interior da sociedade como Orgao que lhe _ confere unidade, ali onde € tido como originado do proprio lugar repu- tado como engendrado por sua aco, ali aparece a cena do social, nela sua instituigéo é representada, e a trama do “real” é apreendida nos acontecimentos que nela se desenrolam, nas relagdes que atam os individuos e os grupos. Se, dessa maneira, o poder se encontra reconduzido as frontei- ras do espago-tempo onde se articulam as relagdes sociais, e, porisso, distanciado frente 4 lei de que se faz representante, isto nao significa que se torna poder de fato. Se aparecesse como tal, as balizas da identidade social se aboliriam. Porém, é verdade que esté exposto a tal ameaga tdo logo sua figura esteja implicada na instituigfo do social; e..isto no somente enquanto aparece como engendrado na sociedade, mas também quando aparece como fundador, pois, dora- vante, estar4 privado dos sinais de sua fundacao, cortado da ordem do mundo de onde tirava a seguranga de sua fun¢ao. Assim, o poder sé se estabelece sob o signo da lei com a condigao de sempre af se reestabelecer, isto é, pelo desdobramento de um discurso no qual a diferenga entre o dizer e a coisa dita fagam-se mola da identidade do sujeito social. E esse discurso é, ele proprio, amb{guo, nao podendo fixar-se como produto do poder sem decair, por sua vez, ao nfvel do fato; mas, também, ndo podendo reportar-se a uma garantia transcen- dente sem perder suas propriedades, permanecendo, pois, ocupado em produzir no seu exercfcio sua “verdade”, portanto, ocupado em afirmar seu poder de discurso, de tal maneira que sua determinago de discurso do poder se encontra negada. Ora, essa ambigilidade é tal que, simultaneamente, pela primeira vez, o poder se apresenta inloca- lizavel e localizado. Inlocalizavel, enquanto surgindo do cruzamento de dois movimentos que reenviam um ao outro, engendrando-se da sociedade que ele engendra; mas necessariamente localizado enquanto calcado sobre 0 campo do social. O desintrincamento da ordem social e da ordem do mundo caminha junto com o desintrincamento do polftico e do mitico-re- ligioso; porém, pela mesma necessidade, com o desintrincamento do politico e o nfo-polftico na ordem social. A diferenciac¢do das prati- cas: econdmica, juridica, pedagdgica, cientffica, estética, etc. — que se organizam n4o como préticas de tato (nos poros da sociedade, segun- - do a metéfora marxista), mas como praticas nas quais a realidade do social, como tal, é posta em jogo — s6 se esclarece nessas condigdes. 12 E, simultaneamente, essa diferenciagZo é a de discursos sociais, discur- sos “‘particulares’, porém ocupados em reivindicar uma verdade uni- versal. A oscilago assinalada entre discurso do poder e poder do discurso contém a possibilidade de uma disjungdo entre poder e discurso. Em outros termos, cada discurso particular passa pela prova de seu poder nao somente 4 distancia do poder polftico institucionali- zado, mas em contradigao com a determinagao de poder afigurada nele proprio, enquanto se articula a uma prdtica singular onde a divisio social se inscreve. Assim, cada discurso tende a se desenrolar em busca de seu préprio fundamento; em seu préprio exercfcio amarra-se uma relagdo com o saber, cujo limite nao est4 fixado de fato, no sentido de que falta um saber geral sobre a ordem do mundo e a ordem social em conjungdo com o poder do Estado. Que os diversos discursos se reenviem uns aos outros nfo significa, de modo algum, que possam condensar-se num s6, pois a verdade nao é somente que se instituem contemporaneamente, em fungdo de uma mesma experiéncia, mas também que participam da instituigéo do social e a decifram sob o efeito da desarticulagdo entre o poder e a lei e o da sua pr6pria diferenciagao, cada um reportando-se a si proprio ao elaborar sua diferenga. Nao se trata de imputar a causa de um tal processo ao fato do Estado moderno. Se o fizéssemos, serfamos vitimas da ilusio que denunciamos em Marx, transferirfamos somente para um outro nfvel o determinismo que ele tentou assinalar para o das relacdes de produgao. Da mesma maneira, poderfamos dizer que os tragos do Estado: moderno s6 se fixam em um sistema no qual o saber passa pela prova de sua diferenciacio, onde o discurso passa em si mesmo pela prova da alteridade (enquanto, ao invés, a palavra se ordena no polo exterior do outro) — acontecimento cujas primicias foram postas pelo humanismo na época do Renascimento. Se, entretanto, denomi- namos politica a “forma”? em que se descobre a dimensdo simbélica do social, ndo é para privilegiar as relagdes de poder, entre outras, e sim para dar a entender que o poder nao é “alguma coisa”, empirica- mente determinada, mas que é indissocidvel de sua representagdo, e que a experiéncia que se tem dele, simultaneamente experiéncia do saber, modo de articulagdo do discurso social, é constitutiva da identidade social. Nessa perspectiva, a ruptura com Marx vai alcangar até mesmo aquilo que é para ele a questGo ultima: a da unidade futura do processo de socializagao no real. A questo da unidade oblitera a da identidade social, que, esta, nao poderia ser posta no real, antes 13 implica em sua desergo e marca a inser¢fo da prdtica na ordem da linguagem. Ora, a ideologia exige uma nova interpretagSo, tao logo recuse- mos definila por referéncia a um suposto real. Nao podemos cerc#la a nfo ser que reconhecamos a tentativa, propriamente pertencente 4 sociedade modema, de encobrir- o enigma de sua forma politica, de anular os efeitos da divisio social e da divisio temporal que ai se engendram, de restaurar o “real”. Nesse sentido, nfo a apreendemos como “reflexo” e a partir da pritica que ela refletiria. & sua obra (Ouvrage) que a desvenda: obra (ouvrage) em resposta a “instituigao”, cuja finalidade é a de reconduzir a indeterminagdo do social a deter- minagio, Sua transformagdo nos petmite ler melhor sua formagao porque nela se desvenda a contradi¢éo que a habita: ndo pode cumprir-se sem perder sua fung4o, ir até o fim na afirmacgdo do real sem ficar ameagada de aparecer em sua exterioridade 4 prdtica e ao discurso instituinte de onde surge para desmontar o escandalo dele. Tentando apresentar a l6gica da transformacdo da ideologia, 0 esbogo, desta vez, padece por seu car4ter de esquema, mais do que de bosquejo; padece nZo mais por falta de precisio, e sim, pela rigidez da construgao. O papel que fazemos a contradi¢o desempenhar pode expor-nos 4 acusacZo de hegelianismo. Que seja permitido observar, entretanto, que a contradi¢fo nfo esté referida 4 histéria, ao devir do Espfrito, mas que somente evidencia a génese das figuras sociais da dissimulagdo. Ora, os princfpios desta so decifréveis, pois é em fungdo de uma mesma tarefa, sob o signo da repetigdo, que se fazem, a prova do histérico, os deslocamentos do discurso. O PROBLEMA DE MARX O percurso de Marx era bem diferente do dos marxistas con- temporaneos. Ndo possuia em seu intimo o sentido da distingao entre © ideolégico e o real: elaborava-o. Nao se poderia esquecer que a crftica da filosofia alem4 e, de infcio, a de Hegel, comanda suas primeiras interpretagdes da estrutura social e que, ainda no “Capital”, a crftica das ilusdes da economia burguesa, e, depois a da fantasmago- ria do mercado, fundam a descoberta da unidade do trabalho social ¢ do processo de formagdo do valor. Também nao se poderia, por ter-se tornado muito familiar com seu método, subestimar a aud4cia de uma tentativa que visava assinalar em todos os modos de representagdo dominantes, e notadamente nos discursos filos6ficos onde se encon- trava reivindicada uma critica radical das idéias estabelecidas, os “4 signos de uma légica da dissimulacdo. Enfim, nio se poderia deixar de observar que, em sua obra, a distingao entre o real e a ideologia logo ‘se; articula com aquela, implfcita, entre o saber e a ideologia — e que cesta Gltima distingdo profbe fixar os termos da primeira no plano do conhecimento objetivo. Com efeito, é, em sua Critica da Filosofia do Estado de Hegel, ao desmantelar a “loucura” dos mecanismos do sistema filos6fico, que Marx adquire pela primeira vez a inteligéncia do fenédmeno ideolégico, Ora, ele desvenda ali nao somente a tentati- va para substituir a génese real do Estado por uma génese ideal — um processo de inversio da realidade — a transposi¢ao de determinagdes s6cio-econémicas para o espago da teoria e a solugao imagindria das contradigdes de fato — um processo de idealizagao — mas também, o movimento de acabamento do saber que se fecha sobre si mesmo, simulando a conquista da totalidade, e dissimula para si mesmo o fato de seu engendramento, movimento que apaga a divisdo do pensa- mento e do ser. Na ideologia, devemos reconhecé-lo, (e pouco impor- - ta que seu conceito nao esteja ainda fixado, o esquema de sua consti- tuigdo esté descoberto) efetua-se uma trfplice denegagdo: a da divisio de classe, articulada com a divisio do trabalho social; a da diviséo temporal, a destruigdo-produgao das formas da rela¢do social; e enfim, a da divisio do saber e da pratica que aquele reflete e a partir da qual ele se institui como tal. Da mesma maneira, quando Marx analisa o Estado e a burocracia, e nao mais a representagdo hegeliana do Estado ¢ da burocracia, e quando, mais tarde, esquecendo a “loucu- ta” do sistema filoséfico, preocupa-se apenas em compreender a do sistema capitalista, ele o faz para por em evidéncia o mesmo proceso. O discurso inscrito na instituicgdo mantém a ilusdo de uma esséncia da sociedade, conjura a dupla ameaca que pesa sobre a ordem estabeleci- da pelo fato de estar dividida e pelo fato de ser hist6rica, e impGe-se como discurso racional em si, discurso fechado que, mascarando as condigdes de seu préprio engendramento, pretende revelar o da reali- dade social empfrica. Nao € nosso propésito analisar o pensamento de Marx. Se © quiséssemos fazé-lo, logo serfamos obrigados a convir que sua distin- ¢40 entre o saber e 0 ideolégico traz somente em germe a critica de todo discurso que pretenda sobrevoar o real permanecendo no desco- nhecimento das condigdes que Ihe asseguram sua posi¢do de exteriori- dade; também seria preciso logo convir que 0 proprio Marx cedeu a tentagéo de ocupar essa posigo, investindo nas ciéncias positivas a certeza de que despojara a filosofia. Mas, o que importa é reformular brevemente o problema de Marx, desentranh4élo dos comentérios dogmaticos que o recopriram, para medir a exigéncia teérica que nos 15 impés e também o limite que convém ultrapassar, se quisermos reatar © exame das sociedades contemporaneas com sua interpretagdo. Este problema esta posto em termos que proibem reduzir a ideologia ao discurso da burguesia e, portanto, reter apenas sua fungio de mistificagdo, justificagdo e conservagdo a servigo de um interesse de classe. Certamente, Marx sublinhou amplamente essa fungao, notadamente na Jdeologia Alemé, mas ela s6 € inteligivel se, |; de inicio, a ideologia for reatada ao seu nucleo: a divisdo social: Marx da a entender que uma sociedade nfo pode reportar-se a si mesma, existir como sociedade humana, a nao ser sob a-condicao de forjar para si mesma a representac4o de sua unidade — unidade que, na realidade, a0 mesmo tempo se atesta na relagdo de dependéncia tecfproca dos agentes sociais e se esconde na separagdo de suas atividades. Mesmo quando a divisdo social nao estd fixada na divisdo universal de classes (a da burguesia e do proletariado), a existéncia de “telagdes sociais limitadas” implica na proje¢éo de uma comunidade imagindria, sob cuja capa as distingdes “reais” se determinam como “naturais”, o particular é disfargado sob os tracos do universal, o histérico, apagado sob a a-temporalidade da esséncia. A relagdo social é selada por uma representag¢do que marca nela mesma o lugar de um poder, visto que a comunidade imagindria reina sobre os indivfduos ou grupos separados e Ihes impde as normas de sua conduta; neste sentido, 0 universal que se abate sobre os homens inscreve 0 domina- do em sua condi¢do de dominado e fornece ao dominante a seguranga da sua de dominante. Resta que o ponto de vista da dominagao de classe e o ponto de vista da “‘tepresentagdo”, por mais ligados que estejam, nao coincidem. Analisando o despotismo asidtico, Marx ob- serva que o principe encarna a comunidade imaginéria acima das comunidades rurais dispersas. O poder “‘real’” — que na pratica é notado através dos signos do comando (controle do aparelho burocr4- tico), da coagao (recrutamento da mio-de-obra camponesa para a guerra ou para objetivos estatais), e da exploragdo (levantamento antecipado da mais-valia sobre a produgao agricola) — poder empirica- mente determindvel, é tomado numa representagdo que, 20 mesmo tempo, reflete a diviséo social (a distancia absoluta do senhor e do povo escravo transpde simbolicamente a separacdo bruta das comuni- dades rurais) e a encobre. E bem verdade que se trata de um caso limite, visto que a burocracia s6 existe como classe, pela mediagdo do déspota e que, por outro lado, o discurso deste (deus, semi-deus ou representante da divindade) tende a se confundir com o discurso-do universal. Também ainda mais sugestivas sao as indicagdes fornecidas por Marx sobre a formagao das classes, na Jdeologia Alema. Faz com 16 que aparega uma divisdo entre os individuos, tais como sao determi- nados numa relacdo coletiva em fungdo de seus interesses comuns frente a um terceiro, e esses mesmos individuos definidos como membros de uma classe, recebendo sua identidade como “individuos médios”’, encontrando-se referidos a uma “comunidade” que est4 destacada do movimento efetivo da divisio do trabalho, flutua acima dos homens e figura, apagando o terceiro, uma esséncia do social. A prépria classe — diferentemente da categoria econémica sobre a qual esta enxertada — revela-se, nessa perspectiva, presa ao processo ideo- légico, A andlise do 18 Brumério desvenda, por outro lado, que sua formagao como classe politica dominante implica numa denegagdo da diferenga temporal, no desconhecimento do presente, seu disfarce sob os tragos do passado romano revelando-se como condi¢do necesséria para a acdo revoluciondria da burguesia. A DIVISAO SOCIAL NAO ESTA NA SOCIEDADE Se tal.é a via aberta por Marx, no entanto, nao cabe divida de que ele também se ocupou em emparedé-la. Com efeito, no poderia segui-la j4 que, a0 mesmo tempo, pretendia fixar a natureza do social pela via das ciéncias positivas, cedendo 4 ficgdo de um desenvolvi- mento em si dado ao observador, e raciocinava em fun¢do da oposi- ¢4o grosseira da producéo e da representacdo. Certamente, deve-se reconhecer que o conceito de produg&o recebe, na. obra de Marx, uma extensdo considerdvel. Os homens, observa ele, ndo produzem apenas os instrumentos necessdrios para suas caréncias e, satisfeitas estas; nao produzem somente novas caréncias, mas produzem também suas rela- ges sociais. A linguagem, pode-se considerar com razdo, depende da producao, visto que Marx admite que ela aparece com’ a necessidade do comércio entre os homens e que, em suma, imagina seu desenvol- vimento referindo-o ao modelo de uma comunicacao de individuo a indivfduo ou de grupo a grupo, que é um aspecto da relacao social. Entretanto, 0 uso do conceito — por mais extenso que seja — nao cessa de fornecerthe a garantia de uma evolucdo natural da humani- dade. O homem, é verdade, produz ao mesmo tempo os instrumentos de sua produgdo e sua relagdo social; por seu turno, o que ele produz é uma forga produtiva, de sorte que ele é também produzido por aquilo que produz. Contudo, a idéia de que a produgao é auto-produ- g4o nao livra do mecanismo. O estado social mostra-se, em tltima andlise, como uma combina¢do de termos cuja identidade, quer se trate de caréncia, do instrumento, do signo lingiiistico, do trabalho, de seu agente individual ou coletivo, nao entra em questao. Numa tal 17 perspectiva, o préprio conceito de divisio do trabalho reenvia a um fato bruto, um fato de evolucdo, certamente, aos olhos de Marx, mas que se inscreve num campo j4 preparado secretamente, de maneira a dar a ilusio de que os elementos esto naturalmente determinados. A esse respeito, nada mais significative do que o esforgo de Marx, na Ideologia Alema, para tegressar 4s origens da divisdo do trabalho, e sua afirmagdo de que, primitivamente, ela nada mais era sendo a divisio do trabalho no ato sexual. Eis onde se desvenda, sem equfvo- co, 0 positivismo de Marx. A tese supde aquilo que precisamente escapa 4 explicagdo: uma diviséo de sexos tal que os parceiros se identificariam naturalmente como diferentes, portanto, elevariam essa diferenga a reflexdo e se representariam como homem e mubher. Para notar que nao se trata de um simples descarrilamento na interpreta- ¢40, basta observar que no mesmo fragmento da Ideologia Alemé, quando Marx enumera as trés condigdes fundamentais da histéria da humanidade, a procriagio é apresentada como 0 ato de produgSo da familia, da dupla relagéo homem-mulher, pais-filho. Assim como a cOpula esté encarregada de fornecer o modelo ‘primitivo da coopera- ¢Go e da diviso social, a procriagéo est4 encarregada de fornecer o engendramento histérico da humanidade. Nos dois casos encontra-se negada a articulacao da divisio — a dos sexos e a das geragdes - com o “pensamento” da divisio, um “pensamento” que nao poderia ser deduzido desta, visto que est4 implicado na definigdo dos termos. E a ordem do simbélico que se encontra negada, a idéia de um sistema de oposigdes em virtude do qual as figuras sociais so identificdveis e articuldveis umas com relagao as outras, a relagZo que os agentes sociais mantém com a representa¢4o; ou, digamos, ainda, que Marx se recusa a reconhecer que a divisdo social é também, originariamente, a do processo da socializagao e do discurso que o nomeia. Fazer a critica de Marx nfo induz, de modo algum, a afirmar 0 primado da representagdo e em recair na ilusdo, denunciada por ele, de uma iégica independente das idéias, nem elimina a tarefa de descobrir os mecanismos que tendem a assegurar a figuragdo de uma esséncia imaginéria da comunidade. Muito pelo contrério, procuramos concebé-las, mas sem ceder 4 ficg4o naturalista. Ora, a tentativa supde que se deixe de confundir a divis4o social com a repartigao empfrica dos homens na operagdo de produgdo. Nao podemos determiné-la, como também nao podemos determinar a divisio dos sexos num espaco objetivo que the preexistima; n4o podemos reten-la a termos positivos, quando surgem como tais em seu proprio movimento. E o espago social que se institui com a divisdo, devemos pensar, e s6 se institui na medida em que aparece para si mesmo. Sua diferenciaco 18 através das relagdes de parentesco ou das relag&es de classe, através da telagfo do Estado e da sociedade civil, & indissoci4vel do desdobra- mento de um discurso 4 distancia do suposto real, discurso enuncia- dor da ordem do mundo. Impossfvel, portanto, ocupar uma posi¢ao que permitisse abarcar a totalidade das relagdes sociais e o jogo de suas articulagdes; e imposs{vel, de resto, abarcar a totalidade do desenvolvimento histérico, fixar uma origem e um finr para a divisio social, visto que mascararfamos, entZo, nossa propria inscrigéo no registro do discurso que jd esté posto em jogo na divisio, e essa ignorancia nos incitaria a tomar nossa representagéo como real em si. No presente, 0 que nos parece marcar o limite do pensamento de Marx, é sua maneira de tratar 0 processo da representag4o como se ele se engendrasse nas aventuras da cooperacao e da divisdo, como se essa realidade se determinasse no nfvel natural do trabalho. Assim sendo, ele sé poderia expor-se a confundir a ordem do ideoldégico e a do simb6lico, a reduzir o discurso mitoldgico, religioso, polftico, jurfdico, etc., a projegao de conflitos “reais” do imaginério, finalmen- te, a fazer com que as marcas da lei e do poder decaiam para o plano empfrico, a converté-los em “produtos”’ sociais. O IMAGINARIO E A “SOCIEDADE HISTORICA” Porém, devemos levar a critica ainda mais longe. Dizer que a instituigfo do social é simultaneamente a aparigfo a si do social permite equivocos. Pois, fica-se novamente tentado a imaginar a emergéncia do discurso sobre o social a partir da do espaco social e a Teconstituir, assim, uma versdo, somente mais sofisticada, do sociolo- gismo. A bem dizer, 0 equivoco j4 comega quando falamos do “discurso sobre o social” como se fosse possfvel visé-lo como tal, incluir nele 0 discurso enunciador da ordem do mundo e também o discurso enunciador da ordem do corpo, como se a questZo da divisio social ~ mesmo liberada do empirismo — compreendesse nela a da divisio do homem e do mundo e também a da divisio dos sexos e das geragdes, como se fosse possivel, sobretudo, reduzir a questo da proveniéncia do homem e do nascimento 4 questdo da origem, tal como se inscreve numa sociedade através do mito ou da religiio. Em cada época, o discurso dos homens é regido por uma questo meta- -sociolégica e meta-psicolégica. N6bs a ignoramos quando acreditamos poder encerréla dentro de limites; mas, de modo ainda mais grave, quando, como conseqiiéncia, esquecemos que o discurso sobre o social ndo coincide consigo mesmo no espago social onde se desenrola e que, simultaneamente, ele institui; quando esquecemos que. aquilo 19 que ele articula supde o fato de sua prépria articulagao, ou, se se prefere, que o trabalho da divisao e da instituigao é “mais velho’”’ do que o da divisio e instituigdo sociais. O limite de Marx se denuncia, entéo, profundamente, na tentativa para pensar o social nas fronteiras do social, a histéria nas fronteiras da historia, o homem a partir e em vista do homem, escamoteando, assim, nao as relagdes do homem com a “natureza” (pois ele nunca deixou de falar nisso para assegurar uma determinagdo objetiva do homem na 6tica naturalista), mas a telagio do homem, do social, da histéria com aquilo que, no princf- pio, esté fora de seu alcance, aquilo a partir do que se efetua seu engendramento e que permanece implicado nele. Ora, foi tomando consciéncia desse limite que nos sentimos incitados a reformular as condigdes de uma analise da ideologia, Nao poderfamos, dissemos, circunscrever esta Ultima frente a um real cujos caracteres seriam dados ao conhecimento positivo, sem com isto perder a nocao da operagao de constituigo do real e nos instalar na posicao iluséria de sobrevéo do Ser. Em contrapartida, podemos tentar compreender como 0 discurso dominante, numa época determi- nada, se dispde de modo a dissimular 0 processo da divisdo social, ou aquilo que agora chamarfamos perfeitamente de processo de engen- dramento do espaco social — ou, ainda, 0 histdrico, para dar a entender que divisio social e temporalidade sdo dois aspectos da mesma instituigdo. Sem dévida, é preciso admitir que um tal discurso, enquanto inscrito na divisio, em seu movimento de descricio do espaco social, s6 pode ser opaco para si mesmo. Porém é coisa bem diferente dizer que carrega um saber cujo princfpio Ihe permanece escondido e que ele se ordena sob a exigéncia da dissimulacgdo dos tragos da divisio social, isto é, sob a exigéncia da figuragéo de uma ordem que Ihe asseguraria a determinagdo natural de sua articulagdo e, com ela, da articulagdo das relagdes sociais, aqui e agora, Enquanto instituinte, 0 discurso esté privado do saber da instituicéo; mas enquanto estd ocupado em conjurar a ameaca que faz com que pesem sobre ele os efeitos retroativos da experiéncia ou manifestagéo de uma distancia entre o ser e o discurso, torna-se ativamente negador da instituigao do social; é discurso do ocultamento. Nele as marcas simbolicas sio convertidas em determinagGes naturais. Nele, o enun- ciado da lei social, o enunciado da lei do mundo, o enunciado do corpo vém mascarar o vinculo indispensdvel entre a lei e a enuncia- ¢do, entre a dependéncia da lei face aquele que a profere e a dependéncia da palavra face 4 lei. Entretanto, devemos logo tomar consciéncia das condigdes em que é posstvel apreender essa distin¢do. Com efeito, ela supde que a 20 instituigdéo do espago social se tenha tornado sensivel para si mesma, de tal maneira que o discurso instituinte ndo possa apagar seus tracos sob a operagdo do imagindrio; ou, em outros termos, ela supde que a divisio social e a historicidade se tenham tormado questiondveis de tal maneira que a obra (ouvrage) de ocultamento permanega submetida aos seus efeitos, que em seus fracassos, na tentativa continuada para corrigi-los através de suas discordancias, deixe aparecer aquilo que agora temos o direito de nomear o real, para acentuar que se trata exatamente daquilo que denuncia a impossibilidade do encobrimento. Neste sentido, a interrogaco da ideologia nos confronta com a determinagdo de um tipo de sociedade onde se assinala um regime especffico do imagindrio, Embora Marx, como acabamos de observar, tenha sido tentado a converter a divisfo social em divisdo empirica das classes e cedido a ilusdo de um determinismo que regeria 0 encadeamento dos modos de produgdo, é ainda a ele que devemos a idéia dessa modificagéo do regime do imagindrio. Com efeito, opondo o modo de produgao capitalista a todos os outros modos de produgao, ele entrevé a singularidade de um modo de instituigdo do social no qual os efeitos da divisio e da historicidade nao podem mais ser neutralizados sob 0 signo da representacao. Procurando definir o despotismo asidtico, a que ja aludimos, abala, com efeito, sua construcdo, pois afirma que essa formacdo social tende a se reproduzir tal e qual, independente- mente de todos os acontecimentos, guerras, migragdes, mudancas de dinastia; que a organizag4o econdmica e social esta como que petrifi- cada pelo fato da separacdo absoluta entre a comunidade imaginaria e as comunidades rurais. Assim procedendo, incita, de inicio, a recolo- car em questo as fungdes respectivas da produgdo e da representa- ¢40, deixando supor que a primeira est4 subordinada 4 segunda. Embora obstine-se em apresentar o despotismo como uma formagao imagindria que vem enxertar-se sobre a realidade da divisdo do traba- lho, Marx nao pode evitar, simultaneamente, reconhecé-lo em sua eficdcia simbélica (0 que & testemunhado pela propria denominagdo do modo de produgdo em termos nao econdmicos), mas, sobretudo, esclarece a partir de um caso limite um traco distintivo de todas as formagées pré-capitalistas. A afirmagdo de que seu modo de produgdo — a despeito de todas as diferengas histéricas — permanece essencial- mente conservador, que a divisdo do trabalho e as relagGes sociais af tendem sempre a se cristalizar e a resistir aos fatores de mudanga, de fato, 86 é inteligivel se se reconhece a plena eficacia do dispositive simbélico que, a favor da separagdo de dois lugares — o da lei, do discurso sobre o social, do poder portador e garantia desse discurso, e 21 © das relag6es sociais efetivas — torna possivel a inscrigéo da ordem estabelecida entre os grupos e os agentes sociais na ordem do mundo e desmantela, assim, os efeitos da divisdo social. Dispositivo cuja natureza singular é a de assegurar as condi¢des do ocultamento, sem que possa surgir a questio de uma oposi¢o entre o imaginério e o teal. Com efeito, o real s6 se revela, entdo, como determinavel, enquanto é suposto como j4 determinado em virtude de uma palavra que, m{tica ou religiosa, testemunha um saber cujo fundamento nao poderia ser posto em jogo pelo movimento efetivo do conhecimento, pela invengao técnica, pela‘ intérpretagéo do visfvel O discurso é instituinte, comanda a possibilidade de uma articulagdo do social, mas fixa as oposi¢des como “naturais” e, portanto, fixa o estatuto do dominante e do dominado nas relagdes de parentesco e nas relagdes de classe, em virtude mesmo da dissimulagdo da divisio social sob a Tepresentacio de uma divisio macigamente afirmada, de um outro mundo, de um invisivel materializado. S6 podemos apreender todo o alcance dessa operagdo se compreendermos que, num sentido, ela tealiza uma possibilidade inscrita na instituigfo do social, fazendo com que esta aparega como no sendo ela mesma um fato social, que a questao do espaco social seja, de imediato, questdo de seu limite ou de seu “fora” (como a do corpo é questo de sua origem e de sua morte), que o discurso nZo seja somente o produto dos homens, mas que estes sejam falados nele. Seguramente, transgredimos de novo as fronteiras do marxismo ao rejeitarmos a idéia de que mitos e religides sfo simples ficcdes humanas, porém o fazemos para tentar pensar em suas pegadas um modelo no qual o dispositivo simbélico é tal que, a dissimulagao da divisio social coincide com o poder efetivo de travar seus efeitos, e a dissimulaco do histérico, com o poder efetivo de barrar a via da mudanga ou de conter seu curso. Se nos arriscdssemos a conceber a génese dos diferentes tipos de formagio social, deverfamos fazer amplas corregdes nessas propo- sigdes. As diferengas entre as estruturas de uma sociedade “selvagem”, do despotismo asidtioo, da cidade-estado do mundo antigo e da feudalidade européia sdo tdo considerdveis, que pode parecer arbitrd- rio traté-las como variantes de um tnico modelo. Na perspectiva em que nos colocamos, estamos notadamente constrangidos a negligenciar uma articulagao essencial: a do poder com o discurso sobre o social — Gnica articulagio, no entanto, que pode tornar legfvel o movimento no qual se dissociam o pélo da lei e o da enunciagfo e onde a contingéncia do enunciado e a sua fungdo de ocultamento se arriscam a aparecer. Contudo, embora se deva reconhecer que ali onde o lugar do poder € mantido “vazio” e¢ onde as relagdes se ordenam em 22 fungdo de sua neutralizagdo — em certas sociedades selvagens — nao hé qualquer critério que possa assinalar a distingdo entre o imaginério e o real, enquanto ali onde o poder é referido 4 agdo dos homens e deslocado com relagao a lei, a possibilidade dessa distingdo j4 est4 aberta; mostra-se em todos os casos nos quais a origem do discurso sobre a ordem do mundo, a ordem do social, é concebido a partir de um lugar-outro. O préprio Marx (seja qual for sua pretensdo de fazer uma teoria da evolugao da humanidade) s6 concebe tal modelo a partir de sua andlise do modo de produgao capitalista. E, com efeito, por descobrir que este & essencialmente “revoluciondrio”, isto é, ndo exposto a acidentes, mas gerador, em si mesmo, de acontecimentos que modifi- cam sem cessar as relagGes estabelecidas, que se vé induzido a estabe- lecer uma oposigdo geral entre dois tipos de formagdo de sociedade. Recordemos brevemente que, aos olhos de Marx, dois tragos caracterizam a sociedade moderna: de um lado, a unificagdo do campo social sob 0 efeito da generalizagdo da troca e da redugdo de todos os trabalhos concretos ao trabalho abstrato, e de outro lado, a cisio do capital e do trabalho, a concentrag4o dos meios de produgao e a formagdo de uma massa sempre crescente de agentes sociais teduzidos apenas 4 disposigdo de sua forga de trabalho. N&o cabe davida quanto 4 ligacdo indissohivel desses dois fatos: a sociedade tende a reportar-se a si mesma em todas as suas partes ou, na linguagem dos escritos de juventude, a “dependéncia recfproca” de todos os agentes sociais tende a realizar-se na medida em que se opera, pela primeira vez, uma clivagem entre dois pdlos antagénicos cuja relagdo pde em jogo a identidade do todo. O espago social tende, assim, a aparecer em seus préprios limites — e nfo por referéncia a um lugar outro a partir do qual seria visivel — t&o logo suas divisdes se subordinem a uma divisio geral, os vinculos pelo sangue e pelo territério, e mais geralmente, os vinculos de dependéncia pessoal estejam dissolvidos e cada um dos dois termos da divisio, pela nega¢4o de seu contraditério, reenvie 4 unidade do social. Certamen- te, tais operagdes nfo sdo simétricas, pois se a massa dos trabalhado- tes realiza a negacdo dando figura ao Produtor coletivo — que s6 se reconhece na aboligao da diviséo — o capital, de seu lado, encarnagao da poténcia social, s6 se realiza aprofundando a divisio e dando figura a uma classe votada ao fantasma de ser classe universal como classe particular, Nesse processo, inscreve-se a origem da ideologia como tentativa de representagéo do universal do ponto de vista particular da classe dominante. A singularidade dessa tentativa est4 em enraizar-se na divisio social, em provir, de algum modo, direta- 23 mente dela; nao é, j4 0 dissemos, nos termos da psicologia coletiva que ela pode ser interpretada, mas como signo de uma légica inscrita na instituigao do social, tio logo a divisio nado encontre mais sua expressio na do mundo da producdo e do mundo da representacao, mas se represente no interior do préprio mundo da produgao, isto é, mascare-se af sob a imagem de uma racionalidade imanente ao real. Nesse sentido, a singularidade da tentativa consiste também em que ela compde com o movimento que franqueia o capitalismo de todos os limites impostos por suas relagdes sociais estreitas e que investe nele, como sistema socializado da exploragdo, um poder ilimitado de objetivagdo e racionalizag¢ao da produgdo. O processo ideolégico nao é somente diferente do processo religioso porque tende a desenvolver-se nos limites do espago social, mas porque, ao fazé-lo, pde-se do lado do conhecimento ‘“‘cientifico”, conhecimento que pretende o auto- -deciframento do real. Mas, por outro lado, distingue-se dele nao menos radicalmente pelo fato de estar submetido aos efeitos do transtorno social incessante engendrado pelo capitalismo, no qual instituigdes, mentalidades, comportamentos coletivos se modificam, ntcleos de poténcia se deslocam, camadas burguesas, que retiram seus ganhos e seu poder de fontes diferentes, entram em oposi¢ao; portan- to, pelo fato de que deve cumprir sua obra de ocultamento da divisdo modificando seus préprios enunciados, ou recorrendo simultaneamen- te a uma multiplicidade de representagdes para entulhar as brechas abertas pela mudanca na “racionalidade do real’. Aqui se desvenda a relago singular que a ideologia mantém com a “sociedade histérica”. O imagindrio no se inscreve mais no dispositivo simbélico que tende a fixar a instituigéo do social reportando o detalhe da organizacdo social a um discurso que est4 cortado dela; é na exata medida em que surge a questo do engendramento do social a partir de seu lugar proprio — o dominio desse engendramento, os meios de denegé-lo e conté-lo escondendo-se — que emerge um tipo novo de discurso, ocupado em desarmar as oposigdes e as rupturas no duplo registro do espago e do tempo. Em outros termos, a ideologia é o encadeamento das representagdes que tém por fungdo restabelecer a dimensdo da sociedade “sem histéria’’ no préprio seio da sociedade histérica. Ainda uma vez, exploremos a linguagem de Marx. A idéia da “‘conser- vagao”’ exerce uma fun¢do estratégica em sua interpretagao. Em todas as formagGes pré-capitalistas 0 modo de produgdo é o conservador; no capitalismo, é a ideologia que é conservadora e est encarregada de encobrir a revolugdo que habita 0 modo de produgdo. Nao cabe duvida de que Marx teve a intuic¢do de que o imaginario, neste Ultimo caso, se segrega na instituiggo do social, em razdio mesmo da prova 24 que acaba de ser feita da decomposi¢a0 de todo sistema simbélico susceptfvel de dominar essa instituigdo. Marx pode muito bem, como Feurbach, continuar fazendo da religido uma expressdo tipica da ideologia, mas, mostrando que a religiéo emigrou para a relagdo social, entrevé o que hi de especffico na ideologia: 0 reconhecimento tdcito da historicidade e da divisio e, mesmo, o reconhecimento da implicagdo da representa¢do naquilo que ela representa. Entrevé que 0 processo do imaginério, nas sociedades modernas, caminha lado a lado com uma experiéncia sem precedente do “real” como tal. Visando essa distingdo ocorrida entre o real e o imagindrio, adquire 0 poder de reportéla para as formacées sociais em cujo interior ela seria ilegivel. Contudo, esse poder alimenta-se da ilusio, que est4 no coragdo da sociedade moderna, de que a instituigdo do social pode dar razdo de si mesma. Marx agarra o principio da ideologia como modo especifi- co do imagindrio, mas nao cessa de supor que ela se reduz a dissimu- Jago de alguma coisa: a divisio de classe, a divisio do capital e do trabalho, a do Estado e da sociedade civil, a do presente historico e suas tarefas — sem nunca chegar a pensar que se ela assegura efetiva- mente essa dissimulac¢ao, esta comandada e sustentada por um princi- pio de ocultamento que veio ocupar o lugar daquele que rege 0 dispositivo simbélico de todas as formagGes pré-capitalistas - a im- possibilidade de um discurso sobre o social que se engendra de seu proprio lugar é tdo radical quanto a de um dircurso que se engendra de um lugar-outro. Pensada mais genericamente, tal impossibilidade é aquela enfren- tada por todo discurso nas sociedades modernas, na medida em que esté em busca de seu préprio fundamento e seu desconhecimento nao pode ser confundido com a ideologia. Da mesma forma, nao diremos no presente que 0 pensamento de Marx se inscreve na ideologia, assim como nao o dirfamos de obra alguma em que se reconhe¢a um poder de instauragdo nos tempos modernos. Mais ainda, o discurso social, e n@o somente aquele que se inscreve nas obras de pensamento, nao pode ser tido por ideoldgico pelos simples fato de se desenvolver sob a experiéncia de tal impossibilidade. Da mesma forma, julgamos uma ficgo a tese que desacredita os princfpios do discurso democrdtico teduzindo-o aos enunciados da democracia burguesa, embora notemos ai a tentativa impossivel para fixar o instituinte no instituido. Em nossos dias, a crftica de uma fragdo da intelligentzia se desenvolve sob essa confusdo, vendo os signos da ideologia em toda parte, multipli- cando suas condenagées contra o discurso pol{tico como tal, contra 0 discurso econémico, jurfdico, filoséfico ou pedagdgico, sem ser capaz de medir o que foi e ainda é posto em jogo aqui e ali cada vez que, a 25 partir do saber instituido, é refeita ou se refaz a tentativa para colocar 0 pensamento em contato com o instituinte. Uma tal tentati- va, na exata medida em que é incapaz de alcangar seu resultado, faz do discurso o lugar de um trabalho cujo efeito 6 o de manter aberta, a despeito de todas as teses afirmadas, a interrogagdo que esté em sua fonte. E neste sentido — 0 paradoxo é apenas aparente — no préprio movimento que 0 condena a uma cegueira, esse modo de discurso testemunha ainda aquilo que esta fora do alcance do agir e do saber: uma relatio com o enigma da instituicdo. Se tomdssemos por ideolo- gia o discurso que enfrenta a impossibilidade de seu auto-engendra- mento, ‘estarfamos convertendo tal impossibilidade num fato positivo, acreditarfamos na possibilidade de dominé-lo, instalar-nos-famos nova- mente num ponto ficticio de sobrev6o de todo discurso, para “ver” a divisio de onde ele emerge, quando, afinal, 0 discurso s6 pode pé-la a prova nele mesmo. Dizemos, o que é muito diferente, que a ideologia se ordena em razdo de um principio de ocultamento que nao provém de sua obra (ouvrage): marca uma dobra do discurso social sobre si mesmo, em cujo favor encontram-se elididos todos os signos suscepti- veis de desmantelar a certeza do ser social — signos da criatividade hist6rica, do que nao tem nome, do que se esconde da agdo de um poder, do que se desconjunta através das aventuras dispersas da socializagéo — signos daquilo que torna uma sociedade, ou a humani- dade como tal, estranha para si mesma. Tal é o carter do discurso ideoldgico, j4 entrevisto por Marx, como dissemos, mas referido ilusoriamente por ele a uma realidade escondida (0 estado da divisio do trabalho fixado pelo das forgas produtivas). E um discurso segundo ‘que segue as linhas do discurso instituinte, o qual no se conhece, e, sob seu efeito, tenta simular um saber geral sobre o real como tal. Discurso, portanto, que se desenvol- ve no modo da afirmacdo, da determinaco, da generalizagao, da redugdo das diferengas, da exterioridade face ao seu objeto — e, enquanto tal, implicando sempre num ponto de vista de poder — que carrega a garantia de uma ordem atual ou virtual e tende rumo ao anonimato para testemunhar uma verdade impressa nas coisas. Esse discurso segundo nada tira de seu proprio fundo; é isto que justifica a observagdo:de Marx de que a ideologia nao tem histéria. Mas, julgar- -se-ia erradamente que, como conseqiiéncia, esta ligado a um conjunto determinado de enunciados. J4 observamos que sua dependéncia fren- te ao discurso instituinte tem varios efeitos. Em primeiro lugar, tende a apossar-se dos signos do novo para inscrevé-los em seu trabalho de dissimulagdo do histérico, de tal sorte que a representacdo do “‘mo- demo” — voltaremos a isto — é altamente eficaz para mascarar a 26 diferenga temporal. Em segundo lugar, tende a realizar seu projeto de homogeinizag¢éo do campo, encarregando-se, para desarmé-las, das questdes que surgem em fun¢ao da diferenciagdo do espaco social e dos conflitos de classe e de grupo. E assim que a delimitag3o de uma pratica da politica, que nao temos direito algum de considerar, como tal, ideolégica, suscita um discurso que elabora ativamente a imagem de uma esséncia da polftica (pouco importa que seja para afirmar sua racionalidade ou irracionalidade wiltima). OperagZo que se repete a partir da delimitagdo de uma prdtica jurfdica, estética, pedagdgica e cuja eficdcia se assinala pelo fato de que os mesmos esquemas gover- nam cada um dos discursos, cada um deles aponta para os outros e constitui uma malha do discurso geral sobre o social. Mas é assim, igualmente, que camadas diferentes, cada qual em fungdo das condi- gOes em que est4 colocada e de suas aspiragées particulares, vém falar uma linguagem a servigo da “‘racionalidade” e do “real”, da dissimula- ¢4o de toda fratura do tempo e do espago, cujo efeito é assegurar a complementariedade das representagdes em época. Em terceiro lugar, a tentativa para preencher as lacunas do discurso geral, sempre subme- tido 4 prova da impossibilidade de dominar o instituinte, impde o Tecurso sucessivo a esquemas de explicagdo dispares, logicamente incopossiveis, exatamente no momento em que, com toda evidéncia, predomina um nico modelo. Nao sio somente agentes sociais dife- rentes que repartem a tarefa do discurso ideolégico; este encontra-se destinado a deslocar suas referéncias para nutrir sua justificagdo — referéncia, por exemplo, do passado e do futuro, da ética e da racionalidade técnica, do indivfduo e da comunidade. Neste sentido, est4 condenado a ser um “‘saco de gatos”, a acomodar-se com versdes heter6clitas para conservar a eficAcia de sua resposta geral. Todavia, essas observagdes nZo sao suficientes. Mesmo assim corrigida, a proposicao: “a ideologia nfo tem histéria”, arrisca-se a induzir-nos ao erro, pois mascara a contradigao com que se choca e que comanda suas transformagées. E arrisca-se a esconder-nos a légica do imagindrio social na sociedade histérica. Nao podemos encontrar o motor das mudangas ideolégicas somente numa historia “real”, como pensava Marx; é 0 fracasso do processo de dissimulagao da instituicdo do social que determina, por uma parte, a necessidade de sua reorga- nizagio. E porque a ideologia n4o pode realizar-se sem se descobrir, isto 6, sem se expor como um discurso, sem deixar aparecer 0 distanciamento deste frente aquilo de que fala, que ela implica num devir no qual se reflete a impossibilidade de apagar suas pegadas. A ideologia burguesa, que os marxistas se obstinam em confun- dir com a ideologia como tal — prisioneiros de um esquema empirista 27 que a resposta a um estado determinado da divisio de classe — constitui apenas um momento da ideologia. Escrutando-se os signos de seu fracasso esclarece-se a génese da ideologia totalitéria. Desco- brindo-se o limite desta pode-se adquirir alguma inteligéncia dos Mecanismos que regem o imagindrio social nas sociedades ocidentais contempordneas, e cuja eficd4cia pressupde, simultaneamente, a explo- ragdo e a neutralizagdo da tentativa totalitdria. A IDEOLOGIA DITA “BURGUESA” Tudo que dissemos sobre as propriedades gerais da ideologia se aplica 4 ideologia burguesa. Em seu apogeu, no século XIX, depara- mos com um discurso social exterior ao social, um discurso regido pela ilusio de uma leitura do real a partir do real, e que tende a oferecer-se como discurso anénimo no qual o universal fala de si mesmo. Esse discurso, seja qual for o apoio que encontra na religido, em certas épocas e para certas camadas da classe dominante, est4 submetido ao ideal do conhecimento positivo e vive da recusa explici- ta ou implicita da referéncia a um lugar-outro onde o saber da ordem social e da ordem do mundo estaria recolhido. Porém, 0 que no nos deve escapar € a singularidade do dispositivo gragas ao qual o discurso ideolégico tenta preencher sua fungdo. Com efeito, este se ordena em favor de uma clivagem entre as idéias e 0 suposto real Esta apagada a exterioridade do lugar-outro, ligada ao saber religioso ou mitico, mas © discurso s6 se reporta a si mesmo pelo desvio da transcendéncia das idéias. Quer seja a Humanidade, o Progresso, a Natureza, a Vida — ou os princfpios — chaves da democracia burguesa inscritas no frontdo da Repiblica — ou a Ciéncia e a Arte — mas também a Propriedade, a Familia, a Ordem, a Sociedade, a Patria — quer seja a versfo conser- vadora ou progressista do discurso burgués, ou a versao socialista ou anarquista do discurso anti-burgués, o texto da ideologia & escrito com maitsculas. Traz os signos constantes de uma verdade que fixa a origem dos fatos, encerra-os numa representagdo e comanda a argu- mentacdo. Sob o efeito da transcendéncia da idéia, encontra-se afir- mada ou presumida a determinagao de uma ordem das aparéncias; ou, de uma maneira geral, é oferecida a possibilidade de uma objetivagao dorsocial, seja qual for o ponto de vista adotado. Entretanto, ndo se poderia insistir muito sobre o duplo cardter da idéia que é representagéo e norma; sobre o duplo cardter da argumentagdo que testemunha uma verdade inscrita no real e as condicgdes de um agir conforme a natureza das coisas. Além disso, uma articulagéo essencial do discurso ideolégico vem assinalada na 28 fungado expressamente reconhecida da regra. Ainda uma vez, do con- servadorismo ao anarquismo, 0 mesmo modelo se conserva: um corpo de prescrigdes é erigido e sua aplicagdo é condicao do saber e do agir. E do discurso polftico ou econdmico ao discurso pedagégico verifica- -se a poténcia da regra que, em toda parte e de toda maneira em que é interpretada, fornece a seguranga do real e do inteligfvel. Neste sentido, o discurso sobre o social s6 pode manter sua posi¢fo de exterioridade frente ao seu objeto dando figura a garantia da regra que testemunha, em sua existéncia, a encarnagdo da idéia na relagdo social. A propria posigéo da garantia € explfcita. Est4 inscrita na Tepresentagdo; toda uma imagindéria encontra-se desdobrada e nela yem aparecer os tragos do burgués, do patrao, do ministro, do pai de familia, do pedagogo, do militante, etc.. Sem divida, num pdlo do discurso ideolégico, a autoridade tende a ser recoberta sob o poder da idéia, mas é verdade que, quando esse poder se torna exorbitante, a ciéncia é reivindicada sob seu signo com um vigor decuplicado e que, se por vezes as determinagGes particulares dos agentes. sociais so engolidas por ela, a figura do homem como homem universal vem sustentar eficazmente, no socialismo e no anarquismo, a verdade da Tegra. Ora, observemos, a representacdo da idéia, a do encadeamento inteligfvel dos fatos, a da regra, a do mestre que detém o princfpio do agir e do saber, supSem um tipo singular de discurso destinado a exibir-se como tal. O discurso sobre o social se afirma como discurso; muito significativamente é modelado sobre a pedagogia. E esse traco esclarece a distancia que, ela também, é representada entre aquele que fala, seja qual for o lugar em que se situe, e 0 outro. Nao queremos dizer que o discurso emana de um agente, ou de uma série de agentes que seriam apenas representantes da classe dominante. Enquanto se oferece como discurso sobre o social, extraindo-se do social, o discur- so ideolégico se desenvolve sob o signo do impessoal, veicula um saber que é tido como surgindo da ordem das coisas. Mas, é-lhe essencial tornar visivel a disting¢do, em todos os niveis, entre 0 sujeito que se erige por sua articula¢o com a regra, que se enuncia a si mesmo enunciando-a, e 0 outro, que nfo tem dignidade de sujeito por nao ter acesso a regra. A figuragdo da regra caminha junto com a da natureza; e tal oposi¢go vem cunhar-se numa série de termos manifestos: é, por exemplo, “‘o operdrio” figurado face ao burgués, o inculto face ao homem cultivado, o selvagem face ao civilizado, 0 louco face ao homem normal, a crianga face ao adulto; através de todas essas substituigdes, a imagem de um ser natural sustenta a afirmacio da sociedade como mundo acima da natureza. Gragas a esse 29 artiffcio, a divisio social é dissimulada: posigdo de balizas que permi- tam fixar a diferenga do social e do sub-social, da ordem e da desordem, do mundo e do sub-mundo (diferenga que nao tem estatu- to no “‘pré-capitalismo”’, quando 0 social é concebido a partir de um lugar-outro, de uma ordem que o excede), de tal sorte que aquilo que a realidade esconde do discurso encontra-se identificado ¢ dominado. Assim, 0 discurso pode recobrir a questio de seu engendramento ou, 0 que dé no mesmo, a da institui¢&o do social, dispondo fronteiras para aquilo que é estranho a todo engendramento, aquém da institui- ¢do, aceitando uma vegetacao dubia de fatos irracionais cujo cresci- mento interessa sustar. Certamente, é preciso dizé-lo de novo, essa Tepresenta¢do é contestada no discurso anti-burgués, mas este partilha e mesmo aprofunda a focalizac¢do pedagégica; tende a fechar-se num contra-discurso que fixa a imagem da irracionalidade do presente e reduz 0 outro A figura maléfica do dominante, pois nao esté menos obsecado pela ficcdo de uma transparéncia de direito da sociedade para si mesma. No modelo, que esbogamos em largos tragos, a ideologia retira sua forga, como j4 havfamos sugerido ao evocar as andlises de Marx, da disjungao de discursos cuja homologia assinalamos. A ideologia repitamos, segue as linhas da instituigdo do social; se fornece uma “tesposta” geral, esta, porém, nao é recolhida num sé lugar. Multipli- ca-se em fungdo de uma diferenciagdo, cujo princfpio Marx imputou em v4o a divisio do trabalho — quando esta ultima nao poderia ser considerada em si como motor de mudanga — e que deveria, sem divida, muito mais ser reportada 4 clivagem do poder polftico e da lei, e, na sua sequéncia, ao movimento de segregacdo das instituigdes e dos discursos sociais que os subtendem. E assim que um discurso ideolégico vem calcar-se sobre o acontecimento constituido pela deli- mitac¢o do Estado, da empresa, da escola, do asilo, das instituigdes modernas em geral, sobre as pegadas de espacgos determinados nos quais se ordenam relacdes mensuraveis entre agentes definidos. E a partir de uma articulagdo historicamente advinda que, aqui e ali, ele figura uma necessidade de esséncia. Sem divida, cada tentativa s6 é possivel porque pede emprestado a todas as outras. Hé um entrecru- zamento constante entre os procedimentos de legitimagao e dissimula- g4o operados aqui ¢ ali. Mas, ainda assim, o “saber” nao se concentra em um finico polo e, neste sentido, sempre e em toda parte, é preservada uma disténcia entre o poder e o discurso. A tarefa de homogeinizagdo e de unificagdo do social permanece implfcita. E por esta mesma razao, € sempre oferecida a possibilidade de um desloca- mento e, mesmo, de uma reviravolta dos enunciados ou, se se prefe- 30 tir, de versdes contraditérias que asseguram, a despeito do conflito, uma identidade de referéncia para os agentes sociais. » . Entretanto, as mesmas condigdes que asseguram a eficdcia para a ideologia burguesa também contém a possibilidade de seu fracasso. Seguramente, para dar conta de sua decomposi¢’o, seria preciso sair de seus limites, interrogar a histéria, mas aqui s6 nos propomos a evidenciar as contradi¢des internas da ideologia e que a constrangem a se modificar para continuar a exercer sua func%o na sociedade hist6- rica. A crer-se num argumento marxista comumente espalhado, a decomposi¢ao resultaria da contradigao fundamental entre o discurso ideolégico e a prdtica real que se tornaria cada vez mais sens{vel aos olhos dos dominados. A tese é bastante conhecida para precisar de um resumo, € sabe-se que encontrou um ponto de apoio privilegiado na critica leninista da “democraica formal”, cuja mistificagdo as massas descobririam pouco a pouco ao passarem pela prova da opres- so." Embora se deva reconhecer af uma certa verdade, tem-se o direito de perguntar como a realidade vem a aparecer, se é suficiente teferir-se 4 experiéncia vivida de uma classe para conceber a formagdo de um discurso social que minaria pouco a pouco a ascendéncia da ideologia. Quéstio tanto mais premente, porquanto devemos convir, considerando as sociedades onde a democracia formal foi esfacelada, que ela cede lugar nao a uma democracia real, mas ao totalitarismo. A interpretagdo marxista nos parece mais fecunda quando acen- tua as contradigSes internas do discurso ideolégico. Sua necessidade de enunciar proposigdes de valor universal e, ao mesmo tempo, de fornecer uma representagZo da ordem estabelecida que justifique a dominagao de classe, teria como efeito destruir sua racionalidade aparente, interditar-lhe-ia a possibilidade de afirméla até o fim, de sorte que em seu prdprio exercfcio, suscitaria a cr{tica um contra- -discurso em cada um de seus registros. Marx, nés nos recordamos, sugere, no 18 Brumdrio, que o discurso burgués obedece, 4 sua maneira, a divisio do trabalho. A intelligentzia se especializa no culto das verdades abstratas, alimenta a ficgdo de uma esséncia da humani- dade que nao admite a imagem dos interesses particulares, fala a linguagem da poesia, enquanto os representantes politicos da burgue- sia falam a da prosa. A crer-se nisto, desde que a ordem seja ameagada, estes tiltimos permanezem sozinhos ocupando a cena. Em bora sejam vistos como porta-vozes realistas da classe dominante, inscrever seu discurso na ideologia nao é exceder os limites de sua andlise. Tomem eles medidas que manifestem sem equivoco a defesa dos interesses de classe, ainda usam uma linguagem que pretende dar 31 a razao dos fatos, enunciar a lei do real e a realidade da lei. O conceito de propriedade, o de Estado, ou o de trabalho, ou o de familia, nao é menos ideolégico que os da intelligentzia humanista. E, no final das contas, se tal ou qual conceito da intelligentzia ~ como o de igualdade — encontra-se relegado numa certa conjuntura, porque arrisca-se a dar alcance a reivindicagGo revoluciondria, a prosa nao poderia nunca romper completamente com a poesia; é sempre o discurso sobre a liberdade que vem escorar o discurso sobre a proprie- dade, como é sempre o discurso sobre a justiga que vem escorar 0 discurso sobre a ordem. Da mesma forma, sem nos prendermos aos conflitos que dilaceram os agentes do discurso social, poderfamos tratélo em sua generalidade para analisar suas oposi¢des e demonstrar que nao h4 uma nica idéia que possa ser formulada, um tnico amgumento que possa ser desenvolvido a seu servigo, sem que sua afirmagao nao exija uma idéia, um argumento que os contradigam. O discurso recobre representacdes incopossiveis, vive de uma “horrfvel mistura” da imagem de um indiv{duo incondicionado colado 4 de uma sociedade incondicionada, da alianga de um pensamento artificia- lista e mecanicista com um pensamento substancialista e organicista, e como Ihe € essencial explicitar-se como discurso sobre 0 social, como no cessa de denominar as coisas, cria, a despeito de si mesmo, pelo efeito de suas discordancias internas, o afastamento entre o social e o discurso. Mas, precisamente, se quisermos alcangar a plena medida da contradigfo, sem nos esquecermos de que se enraiza no projeto impossfvel de um -discurso que pretende figurar a transparéncia do social, e a ser, enquanto discurso social, discurso sobre o social, é preciso perscrutar essa propriedade singular da ideologia burguesa de realizar-se por procedimentos tais que a enuncia¢do seja quase sensfvel para si mesma, o enunciado, quase fixado, a figura do enunciador, quase visfvel, enquanto, simultaneamente, tudo é suposto apagar-se na quase aparigdo a si do social. Pois, em si mesma, a contradigao interna nao arruina o discurso. Como assinalamos, ela também consti- tui sua forga, arranja uma articulagZo entre termos opostos, assegura a possibilidade de dizer tudo ou, para usar um vocabuldrio contempora- neo, de “recuperar” tudo, até o mais subversivo. Em contrapartida, a ideologia € minada por sua exigéncia de produzir idéias, que se exibem apresentando-se como transcendentes 4 realidade, no exato momento em que fixam a determinacdo ou parecem apenas exprimi- -la. Nada mais not4vel do que essa operagao: a idéia da propriedade ou da familia verga-se sobre o fato da propriedade e da familia. Nao que este seja mudo; nao hé instituigao que nfo se ordene em uma 32. atividade de linguagem. Mas, estamos as voltas com uma linguagem em segunda poténcia, que busca sua distancia com relagdo 4 primeira e tenta conjurar 0 risco que a habita pelo fato de que nele a palavra circula, diferencia, a0 mesmo tempo em que referencia os agentes sociais uns com relacdo aos outros, e s6 fecha seu circuito em virtude de um movimento em que se encontram em jogo a possibilidade e os limites da troca — uma aventura cujas condigdes e cujos efeitos escapam 4 instituic¢fo. A idéia da familia cerca o fato da instituigao e implica na crenga de que suas condigdes de possibilidade e seus limites sio concebfveis a partir de seu centro. Ora, sob 0 efeito da representacgdo, surge a questo da famflia. Nao surge pelo simples fato de que hé uma rede de parentesco determinada; esta supde, como observa justamente Lévi-Strauss, palavra, conhecimento, por vezes teflexdo bastante elaborada sobre os princfpios de organizagdo, mas no supde uma vista sobre a instituigdo, que a circunscreva como tal no interior do campo social e & distancia das outras. A diferenciagdo das fungdes, dos papéis, a hierarquia dos direitos néo supdem de modo algum que haja uma vista sobre o pai, a mie, a crianca, ou como © sugerirfamos, um redobro da representagdo gragas ao qual emerja uma esséncia, ou, 0 que dd no mesmo, na ocorréncia, um imagindrio da relacdo social. Sem duvida, seria um lugar-comum dizer que a idéia da familia se forma quando se passa pela experiéncia da contingéncia quase sensfvel da instituigao. Todavia, j4 é menos banal observar que esta contingéncia nfo é abolida, mas deslocada sob o efeito da idéia, que esta, cuja fungao é encobrir a contingéncia, é logo marcada por ela e que, enfim, est4 posto em andamento um movimento de encadea- mento de idéias sem um limite assinal4vel, encarregado de apagar o efeito da contingéncia da enunciacao. Trabalho da argumentagdo, da justificagdo, ele préprio representado na ideologia, como j4 observa- mos, que oferece a imagem da racionalidade se extraindo do real (pouco importa, cabe precisar, que ele se exerga para concluir pela irracionalidade da natureza humana); trabalho que s6 conhece escora para sua sGbita aboli¢do no retorno ao enunciado bruto da idéia, isto é, na afirmagdo de que a instituigdo é sagrada: a familia, a célula social no fundamento da sociedade. A idéia se consuma, entdo, como pura transcendéncia. E sabe-se que esta realizago responde a uma virtualidade do discurso ideolégico, em toda parte onde se exerce. Este, tende, a retrair-se rumo a um ponto de certeza onde se anule a necessidade de falar. Esté obcecado pela tautologia. A palavra “fami- lia”, a palavra “propriedade” e a palavra “sociedade’”’, mas também a palavra “liberdade”, a palavra “igualdade”’, a palavra “ciéncia” con- 33 densam um saber que nao precisa de qualquer justificacdo. Contudo, © ponto de certeza é insustent4vel, a transcendéncia da idéia, va. Pois, o que é procurado nfo pode ser atingido, é um além do social, é uma certeza sobre 0 social como tal, é um referente cuja perda est4 justamente na origem da ideologia. Referente, portanto, que nao se acomodaria no enunciado das idéias, em fungao do qual nao poderia desenvolver-se um discurso sobre 0 social, visado como espago deter- minado. Portanto, a idéia ndo pode dobrar-se sobre si mesma sem que reapareca a exigéncia de que produza seu fundamento apossando-se dos signos que, no suposto real, a atestem. E essa operacdo implica, notdvamos, no reconhecimento da diferenga entre 0 que é e 0 que & dito; portanto, neste sentido, o discurso se sabe como discurso e se compraz em representar-se como tal. Pois, assim fazendo, alimenta a ficgdo de dominar sua origem e seu préprio espaco. Paradoxalmente, a ostentagdo do verbo permite dissimular 0 enigma de seu engendra- mento, ou aquilo que haviamos denominado a quest4o da diviséo social. A conseqiiéncia deste fendmeno, porém, nao é menos notavel: se a fascinagdo responde 4 ostentacdo, é verdade também que o discurso se expde, se encontra sob a ameaga de ser percebido como discurso de fato. Ora, nota-se uma contradigao andloga no estatuto conferido 4 tegra e 4 autoridade reputada como seu suporte. O universo social, & preciso relembrar, é um universo de regras, e ndo h4 regras que nfo impliquem, mesmo na auséncia de aparelhos de coergdo destinados a fazé-las respeitadas, um saber do interdito ou do prescrito. Mas, na ideologia, a representagao da regra se cinde da operacao efetiva da regra, Seguramente, essa cisdo é acompanhada de profundas modifica- ges nas relagdes mantidas efetivamente pelos agentes sociais. Contu- do, deixemos de lado esse problema diffcil e fiquemos apenas com o fendmeno da representacio. Talvez ele se deixe observar melhor, como. j4 sugerimos, no quadro da pedagogia e, mais particularmente, no do aprendizado da Ifngua. Com efeito, é ficgdo dominante que esta pode ser dominada desde que seja reduzida aos princfpios de sua construcao, definidos pela gramftica. Assim, a regra é extraida de uma experiéncia da I{ngua, circunscrita, tornada plenamente visfvel e suposta no comando das condigdes de possibilidade desta experiéncia. Aquilo que constitui o enigma da Ifngua, estar no interior e no exterior do sujeito falante, instaurar uma articulacdo dele com os outros, articulagio de que ele nao dispde e que, no entanto, marca seu advento a si, eis 0 que & recoberto pela figuragdo de um “fora” da lingua, de onde ela'se engendraria. Sabe-se que em seu estado ptimeiro, essa ficg%o alcanga 0 4pice quando o ensino jesuitico proibe 34 “8 o uso da Ifngua matema na escola, fixa e impée o latim artificial para montar um disyositivo susceptivel de persuadir que o falar se engen- dra a partir da regra. Ainda que essa ficcdo nao possa resistir as exigéncias da socializagao da crianga na sociedade histérica, ela escla- rece a légica completa de uma representago da pedagogia que preten- der4 dominar a diferenga indominavel entre a instituigao dos conheci- mentos e o saber da instituigdo. Ora, assim que a regra é enunciada, descobrimos de novo a ambigilidade da representagdo, pois, sua pro- pria exibi¢éo mina o poder que ela se arroga de introduzir 4 pratica. Com efeito, é preciso que esse poder exorbitante seja mostrado e, simultaneamente, nada deva ao movimento que o faz aparecer. Para ser fiel 4 sua imagem, a regra deve ser subtraida a toda questdo que se tefira 4 sua origem; assim, estd em excesso sobre as operagGes que comanda, Sua virtude consiste em conferir ao sujeito um direito de falar, saber, deter 0 dom/fnio de seu agir, enquanto, em sua falta, fica nao somente privado de meios de expressio ou de conhecimento, mas literalmente destitufdo, isto é, langado para fora do circuito da instituigdo. Mas, para ser fiel 4 sua imagem, a regra também deve passar pela prova de sua validade no uso, ficar constantemente subme- tida 4 demonstragdo de sua eficdcia e, assim, ser contraditoriamente figurada como convengdo. Somente a autoridade do mestre permite encobrir a contradi¢ao, mas ele préprio é objeto de representac¢ao; figurado como detentor do saber da regra, deixa aparecer sobre si mesmo a contradi¢éo. De um lado, encarnando uma autoridade que nao tem que dar razdo de si mesma, ou, como se diz, de direito divino, e, de outro, prodigalizando os signos de sua competéncia. Ora, a configurac¢do que o ensino torna particularmente sensfvel poderia ser notada por nés em todos os setores do campo social. Nao é somente a representagao do ensino, mas a da literatura, da pintura ou da filosofia que implica no mesmo jogo de contradigdes. Repita- mos, de passagem, para nao nos prestarmos ao equfvoco tao espalha- do em nosso dias (equivoco que se inscreve numa nova figura da ideologia): a historicidade do ensino, da filosofia, da literatura, da pintura ndo nos permite ter uma vista deles que nos libere das questdes postas em jogo por sua institui¢do; falamos apenas da repre- sentagao que, a cada vez, vem aplicar-se sobre esta para tentar anular seus efeitos e simular uma dominagao do processo de socializagao, em favor de uma determinagdo da instancia da regra e da instaéncia do mestre. Mas, nao hesitemos, desde agora, em estender esta anilise: até no quadro da empresa de produg¢do é preciso assinalar a dissociagdo da instituigéo e da representagao, do discurso social implicado na ptdtica e do discurso sobre o social que pretende fixar seus princf- 35 pios, exibindo na figura do dirigente, de tm lado, o detentor de uma autoridade de direito divino, e, de outro lado, o detentor da compe- téncia; e exibindo na figura das regras um corpo de prescrigdes onde se enunciam, de um lado, um saber incondicionado da organizacao industrial e, de outro lado, as condigGes triviais da produtividade do trabalho humano. O discurso ideolégico que examinamos nao tem trava de segu- tanga: sua vulnerabilidade transparece em sua tentativa para tornar visivel o lugar de onde a relacdo social seria concebfvel — ao mesmo tempo pensdvel e engendrdvel — em sua impoténcia para fixa-lo sem deixar aparecer sua contingéncia, sem se condenar a escorregar de uma posigao para outra, sem tornar sensfvel, assim, a instabilidade de uma ordem que esta encarregado de elevar a dignidade de esséncia. Observando-o, talvez estejamos mais capacitados a compreender por- que esse discurso, em seu projeto de extrair-se do social e de afirmar- -se como discurso, s6 pode permancer esparso e porque, na tarefa de generalizacdo, implicita do saber e homogeinizagdo implfcita da expe- riéncia, arrisca-se a esfacelar-se diante da experiéncia insuportdvel de uma ruina da certeza, de uma vacilagao das figuras do discurso e, em conseqiiéncia, de uma fragmentacdo do sujeito. Reivindicando seu poder de discurso, nunca coincide com o discurso do poder; manifes- ta em si mesmo a posic¢o de poder. Todavia, tal poder, quer seja poder do governo atual ou virtual, ou de um de seus inumerdveis substitutos, é representado pelo discurso, é exposto por ele ao olhar do outro, mas nfo se ordena, nao se unifica sob o princfpio que condensaria a multiplicidade dos enunciados na mesma afirmagao, que os reportaria 4 mesma garantia. Acabamos de notar que o discurso ideolégico nao tem trava de seguranga em decorréncia do modo como se encontra arranjado, e destarte nele fica marcada a auséncia de uma garantia da origem. A resposta 4 questo da origem comanda seu desenvolvimento, mas ela se troca em miidos, deslocase nos seus limites, e € por este prego que o poder opera na eficacia da relacdo social. O TOTALITARISMO E A CRISE DA IDEOLOGIA BURGUESA O fendmeno do totalitarismo nos permite decifrar os tragos especificos da ideologia burguesa porque nele sua contradigao refle- xiona. Embora, para alguns, possa parecer escandaloso tratar como variantes de um mesmo modelo, de um lado, o fascismo e o nazismo, e de outro, aquilo que leva 0 nome de comunismo e que, de fato, 36 constitui apenas o discurso de uma sociedade burocrdtica, falamos do totalitarismo sem levar em conta as diferengas de regime, altamente significativas sob outros aspectos, porque nossa tinica preocupacao é esclarecer um aspecto geral da génese da ideologia. No totalitarismo, o processo de ocultamento da instituigao do social procura consumar-se. Com o nazismo, nao se tem essencialmen- te a ressurreigao de um sistema de valores recusado pela sociedade burguesa e proveniente do pré-capitalismo, embora, com toda evidén- cia, haja tentativa para reatar lagos com a representagdo de uma ordem comunitéria, fundada sobre a relagdo com a terra, os lagos de sangue e a dependéncia pessoal — e embora tal representago nao tenha cessado de sobreviver nas margens da ideologia burguesa em todas as figuras do conservadorismo. Com o comunismo, nao se tem essencialmente um esforgo para inscrever no real os valores universa- listas da sociedade burguesa, destruindo a figura do interesse particu- lar em todos os registros da atividade social, embora, com toda evidéncia, tal projeto efetivamente faca parte de seu empreendimento e se enraize na historia das lutas revoluciondrias do proletariado no interior do mundo capitalista. A formagao do totalitarismo s6 é inteligivel quando se reconhece a “resposta” dada ao problema da divisio entre o discurso ideolégico e 0 processo de socializagdo da sociedade, ou 0 que, de bom grado, denominarfamos a historicidade do social. A ficgHo nasce de um discurso social que investiria nele, implicado como est4 na prdética, um saber geral — esse saber sempre mantido pela ideologia burguesa na dimensao da exterioridade — e que distribuiria, em toda parte onde se exercer, os signos de sua unidade e, portanto, da homogeneidade do campo objetivo. Assim, apagam-se os limites dos setores anteriormente expressamente reco- nhecidos — econémico, politico, jurfdico, pedagégico, estético e mes- mo cientifico. A afirmagdo da identidade do real em seu aparecer procura retornar a si mesma a. partir de todo enunciado particular; nutre a paixdo da tautologia e, simultaneamente, a busca de uma totalizagZo no explicito vem substituir o trabalho de ocultamento do discurso burgués, cuja propriedade singular era deixar a generalizacdo no latente. Enquanto este ultimo, observavamos, tende a tornar sensf- vel sua esséncia de discurso e, como tal, a permancer desnivelado com relagZo ao poder, o discurso totalitério se desdobra na conviccao de estar impresso na realidade e de encarnar a virtualidade de um dominio continuado e geral de suas articulagdes. Neste aspecto ele é de ponta a ponta discurso polftico, mas denegando o fato particular do politico, tentando cumprir a dissolugdo do polftico no elemento da pura generalidade do social. 37 Mais precisamente, denega todas as oposi¢des assumidas pela ideologia burguesa numa representacao feita, a cada vez, para desmon- tar seus efeitos e que fazia pesar uma ameaga sobre os fundamentos de cada termo, expondo-a a exigéncia de dar a razdo de cada um deles. Antes de tudo, o discurso totalitério apaga a oposicHo entre o Estado e a sociedade civil; dedica-se a tornar manifesta a presenga do Estado em toda extensdo do espago social, isto é, a veicular, através de uma série de representantes, o principio de poder que informa a diversidade das atividades e as contém no modelo de uma submissio comum. Contudo, nao podemos perder de vista que realiza essa operagao nao nos limites de um comentario que exploraria sua distan- cia com respeito ao real para designé-lo em sua verdade, mas difun- dindo-se nos circuitos da socializagao, elaborando sistema: de signos cuja fun¢ao representativa ji nao 6 mais assinalavel, apossando-se dos atores para inscrevé-los nesses sistemas, de tal sorte que o discurso fala (quase) através deles e abole (quase) o espago, certamente inde- terminado, mas sempre preservado pela ideologia burguesa, entre a enunciagao e o enunciado. O partido de massa é 0 6rgdo por excelén- cia do totalitarismo. Gragas a ele, manifesta-se a consubstancialidade do Estado e da sociedade civil; encarna em todo lugar o princfpio do poder; propaga a norma geral que fornece a seguranga de uma espécie de reflexdo da sociedade sobre si mesma e, simultaneamente, de sua polarizac¢do rumo a um alvo, liberando-se da surda ameaga da inércia do institufdo, tornando sensfvel sua identidade sob 0 imperativo do ativismo. Mas nao se pode distinguir a prdatica e a estrutura do partido do discurso de que ele seria 0 nicleo (sendo mostrando em todos os niveis as contradigdes nas quais se exerce e que dissimula). Esse representante — como ademais, todos aqueles que exercem a mesma fungo num registro mais particular, sindicatos, associagao de juventu- de, de mulheres, de intelectuais, etc. — ordena-se justamente na pratica em fungdo da exigéncia da representacdo; nas relagdes que se organizam em seu seio figura a unidade da qual ele se oferece como garantia diante do conjunto da sociedade; é em si mesmo o sistema dos signos que permite dar forma a uma hierarquia, produzir uma clivagem entre o aparelho e a base, os dirigentes e os executantes, separar com tabiques os setores da atividade, simulando uma transfor- macao a si da instituigdo, uma reciprocidade das decisdes, uma homo- geneidade do corpo polftico. Neste sentido, o discurso ideolégico tende a tornar-se discurso do partido — o discurso sobre o partido sendo apenas um destaca- mento do primeiro, embora seja absolutamente necessdrio para ele e marque um limite, de que voltaremos a falar. Nada esclarece melhor 38 esse fendmeno do que a formacdo de um tipo novo de agente social, o militante, em cuja figura se pode enxergar a inscrigdo do sujeito no discurso que se supde falado por ele. O militante ndo esté no partido como num meio determinado com fronteiras visiveis; ele é em si mesmo um representante do partido; bebe na fonte a possibilidade de liberar-se dos conflitos a que fica exposto por sua participagio em instituigdes diferentes, regidas por imperativos de socializacdo especf- ficos, a possibilidade de encamar em sua pessoa a generalidade do social. Enquanto portador da representagdo, o militante cumpre sua fungdo refletindo constantemente aquilo que se ordena independente- mente dele no suposto sistema do social. Ao mesmo tempo, erige-se como detentor do poder e do saber; controla o operdrio, o camponés, © engenheiro, 0 pedagogo, o escritor, profere a norma, concentra as virtudes do ativismo ¢ encontra impressos em si mesmo 0 vocabulério e a sintaxe de seu discurso, de tal maneira que se constitui a si mesmo na operacdo da ideologia. A exigéncia de recolher em si, para além de toda. divisio, o discurso social, e de soldar novamente as imagens esparsas do homem na sociedade burguesa, de se apossar de uma chave que abra todas as portas do ediffcio social e faca o olhar circular sobre todas as formas da atividade econémica, politica, estética, de entrar na posse de um saber geral, de ligar todas as experiéncias a um mesmo pdlo de verdade, vem colar-se a de se apagar diante do anonimato da idéia, da argumenta¢do, da regra, da autoridade suprema que esto como que soldadas uma na outra. Ora, o tipo do militante simplesmente leva 4 expresséo consumada a tentativa para apagar a diferenga do indivfduo e da sociedade, do particular e do geral, do privado e do ptblico. A imagem princeps é a do homem sem determinag4o que encontra sua definigéo como homem fascista ou como homem comunista: um puro agente social cujo pertencimento a uma classe s6 fornece uma modali- dade acidental de sua insergao na sociedade total, ou, entdo, vé-se Mesmo expressamente recusada, pela pura denegacdo de uma cisdo interna dessa sociedade. Nao cabe dfvida de que, sob este aspecto, o totalitarismo “comunista” consiga explorar mais eficazmente os meca- nismos da ideologia, pois, nio contente de rejeitar a determinacao de classe, ele chega até a dar forma a relagdes sociais onde os tragos da classe dominante se tornem cada vez menos decifraveis, até dissolver as linhas de clivagem entre dominantes e dominados na imagem de uma hierarquia puramente funcional, onde cada membro estaria liga- do gradativamente ao nicleo central de socializagZo. Mas, quer trate- -se do fascismo ou do comunismo, assistimos 4 operagZo de uma logica da identificagio cuja mola é a anulagao dos conflitos que se engen- 39 dram em fungdo das oposigdes préprias 4 sociedade burguesa. En- quanto nesta, o poder da representacdo se alimenta de um desloca- mento constante da “solugdo”, de um transporte da contradicéo em favor de um desnivelamento das instancias do discurso, no totalitaris- mo, ha afirmag4o bruta da identidade da representagGo e do real, condensaga4o dos termos da contradigdo nas figuras que refletem umas as outras. Enquanto na primeira, o discurso se ordena em fungao de compromissos constantes entre princfpios antagOnicos, no segundo, o discurso busca sua eficicia em uma resposta geral que excluiria os tragos da questdo. Mas, seu sucesso seria ininteligivel se nao fosse capaz de tornar manifestos os signos da totalidade no detalhe da vida social. O mecanismo de identificagdo, com efeito, se exerce em uma sociedade moderna que, em cada um de seus registros de atividade, passa pela prova da diferenciagZo, da oposig¢ao a si, da mudanca; sendo, pois, necessdério que se levem em conta nao somente os efeitos da divisio do trabalho, mas os da segregaco dos espagos sécio-cultu- rais. A propria tentativa para apagar a oposi¢o entre o Estado e a sociedade civil e de tornar sensfvel a indivisio do polftico e do ndo-polftico, supde que na forma das relagdes sociais, aqui e agora, aparega a légica da norma, isto 6, que se desdobre um sistema de articulagdes em virtude do qual o poder possa se multiplicar sem correr 0 risco de se dividir. Ora, € por submeter todas as esferas da sociedade ao imperativo da organizagéo, que o discurso ideolégico, fascista ou comunista, assegura-se do domfnio das oposigdes que se engendram de uma a outra e em cada uma delas, e que pode reduzir seu afastamento face a seu objeto. Com efeito, a representacdo da organizac¢do permite recobrir a diferenga entre o sujeito e a lei, diferenca aberta no préprio movimento da instituigao e que implica na impossibilidade de teferir esta ultima tanto a uma acdo humana — cujo nticleo se situe no individuo ou no grupo — quanto a um princfpio transcendente. Num sentido, a organiza¢do apaga os tragos do sujeito social, seja qual for a modalidade de sua aparigdo; n@o apaga a positividade de um sujeito empiricamente determinado, seja este a classe dominante, a classe dominada ou 0 individuo produtor, mas oculta a questao do sujeito enquanto questdo, e na qual sempre se encontra posta em jogo uma relagdo de si com o outro, ao mesmo tempo em que uma relac¢do com a lei. Torna, assim, invisfvel o antagonismo geral dominante- -dominado, ocorrido no seio da sociedade burguesa no quadro da producdo, figurando um sistema de operagdes que atribuiriam uma definigao aos agentes e as suas relacdes. Mas, simultaneamente, esse sistema aparece como pura construgd0, como operagdo global susten- 40 tando-se a si mesmo e, neste sentido, como pura manifestagéo do logos humano, como pura manifestagdo da socializagdo que se desdo- bra, de uma instituigio em ato, tendo que se haver apenas consigo mesma, polarizada rumo 4 totalidade. A representagao da organizagao tende a se consumar no préprio processo da organizagdo porque este se ordena pela ficgdo de um saber do social que estaria manifesto na rede de operagdes onde o agente estd inscrito. O que mostra, ainda aqui, a dependéncia da ideologia totalitaria com respeito 4 ideologia burguesa, visto que se apossa dos dois princfpios que nesta permanecem justapostos: um artificialismo radi- cal e um substancialismo radical, soldando-os pela afirmagao de uma sociedade que seria atuante de ponta a ponta, sempre ocupada em assegurar seu funcionamento — fabrica humana e, enquanto tal, fecha- da sobre si mesma na posse do seu fundamento. Com toda evidéncia, © totalitarismo bebe no capitalismo sua fé na organizacdo, mas, enquanto se encontra contrariada pela exigéncia da figuragdo das diferengas do campo social, essa fé se derrama como resposta 4 ameaca de deslocamento desse campo e faz da organizagdo a esséncia do social. Porém, ainda é preciso insistir nisto, a nova ideologia implica na focalizagéo de um centro a partir do qual a vida social se organiza; centro que se reporta de um setor a outro da sociedade civil, mas que, no coragdo do aparelho de Estado, detém poder e saber. O discurso da organizagao, arrumado de tal forma que o saber andénimo comande o pensamento e a pratica de seus agentes, nao se sustenta, assim, sendo por uma referéncia constante 4 autoridade em que se concentra a decisdo. E sob esta dupla condigdo que a contradi- ¢Go da ideologia burguesa é “ultrapassada” no conceito de Estado total; a rede da organizagdo torna manifesto que nada se perde no movimento da socializagZo que implica na exteriorizagdo das praticas e dos discursos sociais; a identidade a si do poder na substituigdo das instancias dirigentes torna manifesta a origem da norma. O fascismo e o comunismo, repitamos, exigem uma interpreta gdo metasociologica, Toda tentativa para analistlos como formagdes sOcio-histéricas empfricas choca-se — por mais rica que seja a docu- mentacgdo — com um limite, pois ignora que é a questdo do ser do social, do histérico como tal, que estd posta em jogo no totalitarismo. Este nao é um acidente de percurso no desenvolvimento do capitalis- mo industrial, nem uma aberracdo cuja chave seria dada pela psicolo- gia — ele cumpre uma virtualidade inscrita no social, tao logo sua instituigdo nao possa ser concebida nem contida por um discurso que busca sua origem em um lugar-outro. Da mesma maneira, um dos maiores enganos consiste em enxergé-lo como variante do despotismo. 41 Ainda que o poder de Stalin, como o de Hitler, se assemelhe ao do déspota — mais ainda: que um e outro bebam nas fontes arcaicas da cultura germanica e do mundo asiatico — o totalitarismo inaugura uma historia nova, nao sendo a ressurrei¢ao de um sistema politico que viria abater-se sobre a sociedade industrial, mas é a tentativa para fechar 0 espago social sobre si mesmo a partir do centro imagindrio de sua instituigdo, para fazer coincidirem, aqui e agora, o ser e 0 aparecer. O déspota e a burocracia reinam sobre a sociedade, mas sua poténcia é signo de uma poténcia transcendente, signo do fora para o homem. O poder totalitério, nazi ou staliniano, se difunde na repre- sentacio da organizacdo, e exerce o fascfnio e o terror de figurar, justamente, o social total, a nao-divisdo, o discurso desumano en quanto absolutamente humano. Tal é, pelo menos, o polo a que tende a ideologia totalitaria, mas em seu ultrapassamento das contradig6es da ideologia burguesa, nao cessa de chocar-se com a impossibilidade de seu cumprimento. Vive, por seu turno, sob a ameaga dos efeitos da divisao social, como nossa descrigdo j4 sugere. O ideal da burocracia é 0 anonimato do discurso social, a manifestagdo da racionalidade na organizago, uma inscrigo do sujeito na légica do fascismo, na Iégica do comunismo, de tal modo que sua palavra sé possa passar pela experiéncia de um afastamento desaguando no ndo-senso. Mas, para ela ndo é menos essencial a figuragdo do centro da decisdéo, de um poder que se afirma em sua plena positividade, fora de toda contestag&o. As duas repre- sentagdes sé se colam sob a condigdo de ignorarem as oposi¢des de poder no interior da burocracia e a exclusdo da massa dos sem-poder dos aparelhos dirigentes. Tanto a forga como a fraqueza da ideologia burguesa vinham de que o discurso sobre o social, em sua articulagdo sempre sensivel a uma posi¢do atual ou virtual de poder, nao coinci- dia com o discurso social nem com o discurso do poder, de sorte que podia passar por focos diferentes e opor-se a si mesmo sem se destruir. Em contrapartida, o discurso totalitério ndo tem jogo, nao tolera a distincia do sujeito ao discurso e requer sua identificagdo com o poder e com aqueles que o detém no topo do Estado. Sem davida, esta andlise é exagerada; ndo ha conjuntura, mesmo quando o totalitarismo est4 em seu apogeu, em que se possa operar, sem residuo, uma aboligao do sujeito no discurso, nem uma identificagdéo com o mestre, Uma troca paralela de palavras veicula os signos da distincia e da diferenga. Contudo, permanece a impossibilidade das oposi¢des se transcreverem simbolicamente: € preciso que sejam abso- lutamente rejeitadas ou que, na falta disto, o terror substitua o discurso. 42 De uma maneira geral, a contradigdo do totalitarismo decorre de que nele o poder se mascara duplamente, enquanto representante da sociedade sem diviséo e enquanto agente da racionalidade da organizago, ao mesmo tempo em que aparece, como em nenhuma outra sociedade, enquanto aparelho de coerga0, como portador da violéncia nua. Essa contradigdo ndo é a da representacdo e do fato. preciso até mesmo retificar nossa formula: 0 terror nao substitui simplesmente o discurso; como se sabe, ele é falado, carreia uma argumentacdo fantdstica que tem por efeito preencher o intolerdvel distanciamento do sujeito e do discurso. E ainda é preciso acrescentar que tal empreendimento nfo pode ser interpretado como simples resposta a acontecimentos que viriam perturbar a ordem estabelecida. Como ensina sobejamente a histéria do stalinismo, a imagem do poder como poder terrorista, como poder exorbitante, tem uma fungdo necessdria. Pois, é também sob seu efeito que os homens experimentam a dissolugdo no elemento geral do social, isto é, experimentam a contingéncia de toda determinacdo particular frente & lei proferida pelo senhor — o senhor absoluto do Estado, mas tam- bém seus representantes em todos os niveis da hierarquia e em todos os setores de atividade. Todavia, com o delizamento de uma posigdo do poder a uma outra, introduz-se um principio de instabilidade que arrisca tornar visfvel o mecanismo da dominagao. Se, na ideologia burguesa, 0 poder corre o perigo de expor-se 4 irrisdo, na ideologia totalitdria, corre o perigo ainda maior de excitar o horror. A medida que os efeitos da contradigao se desenvolvem, meios de defesa, é verdade, so colocados para tentar reforgar a coesdo do discurso ideolégico. Assim, apos a morte de Stalin, explorase seu exemplo para figurar e denunciar 0 excesso do poder sobre a racionalidade — tal é a fung&o do culto da personalidade — e ao mesmo tempo, explora-se 0 exemplo do burocratazinho para figurar e denunciar o excesso da irresponsabilidade sobre a justa impessoalidade das deci- ses. Mas, a defesa testemunha a crise latente do sistema de represen- tagdes burocraticas. Nao é menos instrutivo assinalar sua vulnerabili- dade ao ser perpassado por acontecimentos de toda natureza, tanto na ordem econémica como na da cultura, que escapam 4 previsdo dos dirigentes e sdo susceptfveis de manifestar, aqui e agora, um fracasso da norma geral, uma “falha” no funcionamento da organiza¢do. Num certo sentido, os recursos do discurso s4o inesgotaveis face ao aconte- cimento. Com efeito, é tal a articulagéo do discurso com o poder e com a lei, que o “real” nao constitui uma questdo, seu acesso é rigorosamente comandado pela representacdo. Porém, essa representa- ¢ao requer os signos da eficdcia da organizacéo. O poder nao se 43 espelha em piramides, mas em edificios que atestem uma ago social e um alvo social, onde, mais profundamente, os homens devem descobrir sua existéncia comum, na pura dimensdo da agao social orientada para um fim social. E assim, por exemplo, que os indices de produgo, febrilmente alardeados, sio tomados como fornecedores da prova continua da validade do discurso dominante no real. Em suma, é imposta a representagdo a dupla necessidade de incluir abso- lutamente e excluir absolutamente o acontecimento, de imprimi-lo na logica da organizagdo e de negélo absolutamente como poténcia de desordem. Nao mediriamos a amplidao da contradigado se nos esque- céssemos de que a ideologia totalitéria se engendra na “sociedade histérica”, isto é, repitamos, numa sociedade que nao pode ancorar-se numa representagdo de seus limites, estando, por princfpio, aberta 2 questdo de seu advento, votada 4 desmesura, a dissonancia, 4 expe- riéncia de sofrer em cada um de seus lugares os efeitos da mudanca nos outros, enfim, numa sociedade cuja diferenciagao interna, cujos desniveis entre prdticas e entre representacdes, caminham lado a lado com sua hist6ria. O fantasma burocrdtico é a aboligao do histérico na historia, a restauragdo da légica da “sociedade sem histéria’”’, 0 desejo de igualar o instituinte e o instituido, negar o imprevisivel, o incog- noscivel, a perda contfnua do passado sob a ficcéo de uma acdo social transparente para si mesma, capaz de controlar de antemao seus efeitos e de manter-se em continuidade com sua origem. Por mais forte que seja, a ficgdo se expde ao desmentido. Sem divida, 0 desmentido é, por sua vez, encoberto; os fracassos da planificagZo, por exemplo, s4o imputados ao burocratismo, 4 inércia residual do corpo social, 4 doenga da regulamentacdo. E é preciso, de novo, persuadir-se de que a representagio do burocratismo nao é menos ideoldgica do que a da agao social: ela é uma pega essencial do sistema, sendo sua fungdo sublinhar a virtude da regra em sua coinci- déncia com a instancia do poder, e reduzir sua perversdo 4 presenga de agentes parasitdrios. Mas, ali onde a racionalidade é tida como exibindo-se a si mesma além da regra se sobressair, exorbitante, tam- bém a logica inteira da organizagao “pode” aparecer como ldégica do absurdo. E verdade que a ideologia dispde de um meio de defesa muito mais eficaz do que a dentncia do burocratismo para resistir aos choques retroativos das decisdes do poder, ou mais geralmente, aos efeitos do real. A tentativa para assegurar 0 dominio do espaco social sustenta-se na figurag¢do do inimigo: um inimigo que nao poderia apresentar-se como oponente, mas cuja existéncia é uma afronta para a integridade do corpo social. De resto, o inimigo é muito mais do que a personificagéo da adversidade, ou, como freqitentemente se 44 observa, do que 0 bode expiatério. Em uma sociedade que nio tolera a imagem da diviso social interna, que reivindica sua homogeneidade para além de todas as diferengas de fato, é o outro como tal que adquire os tragos fantdsticos do destruidor — 0 outro, seja qual for a maneira de defini-lo, seja qual for o grupo a que esteja atribuido, é o tepresentante do fora. Na ideologia burguesa, a esséncia do homem é afirmada frente a uma sub-humanidade, mas como esta fica relegada ao sub-mundo e nunca est4 muito enterrada na “natureza”, ndo chega a por o problema de sua consideragdo, pois é percebida na sociedade. A ideologia totalitéria ao contrério, se mantém pela exclusio de um agente maléfico, um representante do anti-social. Ora, a eficdcia da representa¢do ndo poderia levar a esquecer que nao dispde soberana- mente de seus efeitos. Tende a circunscrever 6 lugar de um outro, mas s6 o consegue gracas a uma denegacao generalizada — nds 0 sublinhamos amplamente — da diferenca entre o sujeito e o discurso social. Todo signo dessa diferenga é susceptfvel de denunciar 0 sujeito como inimigo. A alteridade nao é cercdvel, a imagem do campo de concentragéo nao é suficiente para desarmé-la. E o individuo, em toda parte em que seja requisitado para inscrever-se no discurso do poder, que experimenta a possibilidade da exclus%0; quando se mostra capaz de falar, descobre-se como culpado potencial. Neste sentido, o mundo burocrdtico nao cessa de ser mal-assombrado pela inseguranca, justamente quando estd arrumado para figurar a cidadela de seguran- ga, para congelar uma comunidade na certeza de sua coesdo. A afirmagdo do social total nao o livra do fantasma da autodevoragao; o discurso totalitério apaga a exterioridade da idéia; 0 discurso sobre o social tende a se reabsorver no discurso social, apaga a exterioridade do poder; o Estado tende a operar sua fusdo com a sociedade civil, apaga a exterioridade da regra; a organizagdo tende a bastar-se s6 por veicular a racionalidade, apaga a exterioridade do outro; a divisio social é dissimulada, mas a exterioridade retorna, o discurso fica ameagado de aparecer como mentira generalizada, como discurso a servigo do poder, simples mdscara da oposi¢ao. A IDEOLOGIA INVISIVEL A ideologia totalitéria reina numa grande parte do mundo. Assim sendo, uma andlise rigorosa deveria levar em consideracdo os tragos caracterfsticos de que se reveste em certos pases, e particular- mente na China. Deveria também levar em conta as modificacdes ocorridas na URSS e na Europa do Leste hd uns quinze anos. Aos nossos olhos, as diferengas observdveis no espago e no tempo nao 45 pdem em causa a coeréncia do sistema. A compreensio de tal sistema, observavamos, nos permite decifrar restrospectivamente aquilo que constituia a especificidade da ideologia burguesa; ora, é preciso acres- centar que, no presente, tal compreensdo esclarece igualmente a formagdo do novo discurso ideolégico nas democracias ocidentais de nossa época. Estamos convencidos de que esse discurso ainda explora o sistema de representagdes que conheceu sua plena eficdcia na segunda metade do século XIX, mas que nao ocupa mais o ntcleo do imagind- rio social. Essa hipétese nao tem pretensdo a originalidade; uma ampla sociologia cr{tica — a que se vinculam sobretudo os nomes de Marcuse, Whythe, Roszack, Baudrillard — pos em evidéncia a fungdo preenchida no presente pelos temas da organizagdo, da comunicagdo social, do pertencimento ao grupo, do consumo, etc.. Sem divida, tais idéias sfo familiares ao leitor e, portanto, economizaremos sua descri- ¢4o. Em contrapartida, merece ser sublinhada a relacdo mantida pelo discurso contemporaneo com o totalitarismo e com a ideologia bur- guesa a0 mesmo tempo, sua maneira de se inscrever na génese geral da ideologia. Embora se tenha justamente sublinhado, por vezes, a finalidade totalitéria desse discurso, nfo se percebeu muito bem que sua formagdo testemunha uma “reflexdo” das contradigdes que obce- cam © totalitarismo ~ uma tentativa para desmontar a ameaca que pesa sobre o social em virtude do projeto de deixar explfcita a representagdo de uma homogeinizagdo e de uma unificacdo do social. O projeto, sublinhavamos, colava-se no seu contrario: o de anular a distancia entre 0 discurso sobre o social e o discurso social, investindo © primeiro no segundo. Ora, é justamente esse empreendimento que vai ser repetido na nova ideologia, mas agora dissociado da afirmagao da totalidade, reconduzido ao latente e, neste sentido, rearticulado com o principio da ideologia burguesa, no qual o deslocamento das forma- ges imagindrias era requerido, seu conflito, tolerado, seus compro- missos, constantemente arranjados. Recobrir a distancia entre a repre- sentagao e o real, distdncia perigosa para a ideologia burguesa, renun- ciar ao cumprimento da representacdo sob a forma de totalizacdo do real, totalizag4o perigosa para a ideologia totalitdria, tal é, aos nossos olhos, o duplo princfpio que ordena uma nova légica da dissimulagao. Se a afirmagao da totalidade, notadamente no comunismo, se opera sob a exigéncia de soldar o Estado e a sociedade civil, de descartar a imagem de um esmigalhamento do poder e de sua queda na ordem do fato, ela implica, observavamos, numa conversdo do discurso da ideologia em discurso do poder; ela o expGe perigosamen- te fazendo aparecer, ndo somente no topo do Estado, mas também 46 através de seus miiltiplos “representantes”, a instancia separada de decisio e coercdo e os tracos do senhor. Uma nova estratégia é elaborada a fim de figurar uma sociedade ao abrigo desse perigo. Certamente, o uso do termo estratégia evoca a acfo de um sujeito que fruiria a liberdade de definir os melhores meios de dissimulagao. Contudo, j4 dissemos suficientemente que a ideologia antiga nao era a da burguesia a fim de nao cairmos na ilusdo de supor que ela se teria tornado a de uma nova classe — por exemplo, da tecnocracia — como se gosta de repetir. A estratégia de que falamos designa as asticias do imagindrio, um processo que por ser inconsciente e “sem histéria”, no sentido entendido por Marx, nao deixa, porém, de levar em conta os efeitos do saber e da histéria e os inscreve nas configuracdes novas, a servigo de uma tarefa que permanece efetivamente sempre a mesma. Assim, vemos 0 grupo, erigido em entidade positiva, visado a0 mesmo tempo como expressfo e como fim da comunicag4o social, vir inter- por-se na separacdo entre o aparelho de dominagdo e¢ a massa dos sem-poder. A representagdo de uma estrutura do grupo, indiferente as condigdes que prescrevem seu estatuto para seus membros, tende a excluir de seu campo a questéo da origem, da legitimidade, da racionalidade das oposigdes e das hierarquias institufdas em cada setor. Nela se investe uma nova fé: a de “dominio” do social na propria experiéncia da socializagdo, aqui e agora, isto 6, nas fronteiras sensiveis ge cada instituigao, em cada situago onde o homem se descobre inscrito em virtude da necessidade “natural” da produgao, ou, mais geralmente, da atividade econdmica, e ainda da pedagogia e do lazer, e ainda da prdtica polftica, sindical ou religiosa. Nao hd utilidade em nos determos na ideologia da comunicacao social, visto que indmeras andlises foram consagradas ao fendmeno das relacdes humanas na indistria, a expressio das técnicas de grupo nas mais diversas organizagdes, 4 prdtica dos semindrios, conferéncias de infor- magdo, 4 difusio da psicossociologia nas empresas, escolas, hospitais. Mas, nao é menos instrutiva a fungdo exercida, nesse aspecto, pelos grandes drgdos que estdo a seu servigo — 0 rddio ¢ a televisio. Sem eles, 0 novo sistema de representago seria seguramente invidvel, pois € por se propagar ndo somente de um meio particular para outro, mas de um nicleo cada vez mais aparentemente circunscrito a um nicleo aparentemente indeterminado, é pelo efeito de sua réplica indefinida- mente multiplicada do polo privado da instituigdo ao polo piblico da’ informagdo, que o discurso ideol6gico ganha a generalidade necessdria A sua obra de homogeinizagdo do campo social no implicito. Com o arranjo incessante de debates oferecidos como espetaculo, abarcando 47 todos os aspectos da vida econdmica, politica e cultural, carreando os assuntos do género mais trivial ao género mais nobre, impde-se a imagem da reciprocidade como sendo a da prépria relagdo social. Essa imagem é duplamente eficaz, pois, simultaneamente, a comunicagao é exaltada, independentemente de seus agentes e de seu contetido, e a presenca das pessoas encontra-se simulada: um chefe de Estado con fiando suas dificuldades a um interlocutor feito para ouvi-lo; ou este homem, safdo da massa, mas devidamente nomeado, fazendo um ministro cair em contradi¢do, ou interrogando um especialista feito para responderthe ... A encenag4o prossegue, assim, até tornar sensf- vel a identidade dos atores. Temos af, sem divida, uma das molas mais notdveis do imagindrio: absorver 0 elemento pessoal no discurso impessoal que figura a esséncia da relagdo social, dando crédito a ficgao de uma fala viva, uma fala do sujeito, quando, na verdade, esta fala € dissolvida na cerim6nia da comunicago. Ficgdo, pois os limites do debate sfo determinados fora de seu campo visivel, a neutralidade do‘condutor do jogo dissimula o principio de sua ordenagéo e, enfim, os detentores do poder esto presentes no mesmo plano em que aqueles cuja sorte decidem nos bastidores. Ainda nfo medirfamos todo o alcance do fendmeno se nos deix4ssemos obnubilar pelos aspectos manifestamente politicos da comunicagdo social. A eficécia do discurso, tal como o rddio e a televisio o veiculam, deve-se a que ele se explicita apenas parcial- mente como discurso polftico — e 6, justamente por esse fato, que adquire uma significagdo polftica geral. Sdo as coisas do cotidiano, as quest6es de ciéncia, as de cultura, que sustentam a representagao de uma democracia consumada onde a palavra circularia sem obstdculo. Os signos desta circulagdo sio produzidos com ostentagdo, enquanto os estatutos permanecem cristalizados em fungao das oposigdes de poder. Em época alguma falou-se tanto: o discurso sobre o social, servido pelos meios de difusio modema desabala; é tomado por um vertiginoso amor de si: do conflito de geracdes ao transito, da sexuali- dade 4 musica concreta, da exploragdo do espago 4 educacao, nada escapa dos coléquios, das entrevistas, dos debates televisionados. Ora, tal narcisismo ndo € o do discurso da ideologia burguesa, pois 0 novo discurso nfo fala do alto; economiza as maitsculas; finge propagar a informacgo; finge até mesmo a interrogacgdo; no se abate sobre outrem 4 distancia, mas inclui em si mesmo seu “representante”’, afigura-se como didlogo incessante, apossa-se, assim, do distanciamen- to entre o um e o outro para dar-lhe um lugar em seu proprio recinto. Por esse procedimento, 0 sujeito encontra-se (quase) alojado no sistema de representacdo, de uma maneira muito diferente daquela 48 da ideologia totalitéria, pois, no caso presente, est4 convidado a incorporar os termos de toda oposigéo. E, no mesmo lance, est4 alojado no grupo — um grupo imagindrio, no sentido de que por ele os homens sdo despojados do poder de conceber o movimento efetivo da instituigéo tomando parte, na efetuagdo dela, afrontando a prova de sua relagdo na diferenciagao. Neste sentido, esclarece-se nossa observagdo a respeito da impli- cacao do pessoal no impessoal. Este acontecimento assinala também a distancia tomada com relagdéo ao discurso totalitdrio: este tende a dissolver o elemento pessoal porque nao suporta a imagem da disper- sio de ntcleos de socializagdo, nem o risco de uma experiéncia do sujeito num lugar particular que escape 4 norma geral. Porém, tal dispersio deixa de ser um risco para a integridade da representagéo do social, tfo logo o sujeito se encontre captado em toda parte por sua prépria imagem no circuito de socializagao. A tela da televisio nada mais faz do que materializar uma tela impalp4vel sobre a qual se projeta uma relagdo social que se basta a si mesma, enquanto conden- sa a dupla representagao de uma relacdo em si e de uma relagao entre pessoas. Que se mega, por exemplo, a eficdcia do dispositivo que, das emissdes de publicidade as emissdes de politica ou de cultura, fornece a ilusdo repetida de um entre-nds. A fala do informante esta colocada sob 0 pdlo do anonimato e da neutralidade; é sob essa condi¢&o que difunde um conhecimento objetivo — seja qual for sua natureza — mas, simultaneamente, ela se faz singular, mina a fala viva, adorna-se com os atributos da pessoa para assegurar sua conjungao com os destinatdrios que, a despeito de sua massa, de sua sepatagdo e de sua ignorancia recfproca, encontram- -se cada um, atingidos em sua carne e surdamente reunidos pela graga de uma mesma proximidade com aquele que fala. Neste sentido, a emissio mais banal é um feitigo que faz “baixar” a familiaridade, instala na sociedade de massa os limites do “pequeno mundo” onde tudo se passa como se cada um ja estivesse de antemao voltado para o outro; provoca a alucinagao do préximo, sem a qual se aboliria o sentido do distante, do estranho, do inapreensivel, os signos do exterior, os da adversidade, os da alteridade. Notemos, de passagem, que muitas vezes nos surpreendemos ao ver gente que perambula pela Tua, ou toma banho de sol numa praia, com o transistor colado ao ouvido, ou, ent&o, ao ver casas onde a televisio ou o rddio nfo cessam de funcionar, mesmo na auséncia daqueles que os ligaram; entretanto, nenhum fendmeno esclarece melhor do que este a dimen- so imagindria da comunicagdo, pois esta fornece a seguranga de um vinculo social, 4 distancia da experiéncia de sua realidade; fornece um 49 fundo, um acompanhamento — como a misica tao bem chamada por esse nome, mas que é apenas uma variante da comunicagao generaliza- da ~ e esse fundo é o fundamento, esse acompanhamento é o forro tecido incessantemente pelo fato intolerével da divisio social. A certeza da comunicagio pode bastar-se a si mesma no limite, pois ausentando-se de fato, o sujeito nao cessa de estar em seu circuito. Pouco importa que pare de ver com seus olhos, ouvir com seus ouvidos, seu espectro (fantome) pessoal est4, de uma vez por todas, instalado no lugar entre-nds. Nao tem a menor importancia aquilo que aparece no entre-nds — o desodorante, a alta dos pregos, a morte nas estradas, a emancina- ¢ao da mulher — mais importante é 0 poder de subentender uma ligagdo primordial, que nao poderia ser posta em jogo na operagao do discurso e as eventuais oposigdes de seus agentes. A fé na comunica- ao social e no pertencimento ao grupo ainda deixa lugar para a idéia da divisio social, apesar desta encontrar-se camuflada, isto é, reduzida a unr defeito de didlogo entre os indivfduos ou entre as classes, ou, entdo, a uma ruptura da coesdo. Em contrapartida, a representagdo da ligacgdo social é inconsciente; 0 entre-nés assegura tanto a encenacdo da comunicacgéo quanto a implicagdo do sujeito no grupo. Tal impli- cagdo nfo requer a apreensio do grupo em sua atualidade como bom grupo, nem a identificagdéo com o poder que é tido como figurando sua unidade. No registro do entre-nés, o nés ndo é afirmado, é pressuposto — prometido a invulnerabilidade pelo fato de permanecer invisivel. Sem ddvida, o I{der polftico é conduzido a proclamar o “nds, liberais”, “nds, homens do progresso”, ou “nos, socialistas”; aquele que fala nas ondas nao se priva, fora de todo contexto politico, de proclamar o “nés, franceses”. Porém, esse “nds”, por mais eficaz que permanega, é secundé4rio, pois, anteriormente ao seu enunciado, arranjam-se as condigdes de um circuito onde os agentes sio reportados uns aos outros ao estarem privados tanto das balizas de suas oposigdes quanto das do discurso enquanto discurso. Somente tais condigdes permitem enterrar constantemente o discurso ideolégico no processo de socializagéo e, simultaneamente, engendrar a ilusio de que nada, em principio, est4é subtraido 4 comunica¢do. A contestagdo encontra-se fixada sobre idéias, sobre agentes particulares — isto é, justamente sobre aquilo que aparece, sobre aquilo que subsiste da ideologia burguesa, sobre seu resfduo inelimindvel e, de resto, absolutamente necessério 4 alimentagao do didlogo, a figura¢do das oposigdes. Mas escapa-lhe, ou tende a escapar- -lhe, a fantasmagoria da reciprocidade, em virtude da qual tudo se mostra, de direito, dizfvel, visfvel, inteligfvel. Pois, é este o efeito 50 ltimo do ocultamento da divisio: a imagem de um discurso sem limite no qual tudo viria a transparecer. Compreende-se, conseqiiente- mente, que esse discurso finge ignorar os interditos, visto que invade © campo social, abole todas as distancias que o discurso da ideologia burguesa preparava para si mesmo. Introduz no entre-nds a sexualida- de, a violéncia, a loucura: apaga a divisio do mundo social e de suas “bocasdo-lixo”; ignora o perigo da natureza. E, por esse trago, distingue-se também do discurso comunista que, sempre obcecado pela representacdo de um social total, de um corpo sem falhas, nfo tolera que os sujeitos se prendam a signos que seriam uma afronta para sua integridade, sustenta-se pela multiplicagdo dos tabus sobre assuntos que escapem ao controle do poder. E ainda se distingue desse discurso por sua aptidao a deixar seus agentes falarem, em vez de limitar a outorea de palavra. Defende-se contra a infragdo de seu espago simulando no seu préprio interior o lugar do contraditor. A eficécia do sistema supde, simultaneamente, a revresentacdo da cientificidade do discurso. E, num sentido, esta se encontrava no corag¢do da ideologia bureuesa, embora nesta a ciéncia ainda figure como um pélo visivel Ha discurso sobre a ciéncia ao mesmo tempo em que exploragdo da ciéncia para discorrer sobre o social. No proprio quadro da produgdo industrial, define-se um saber da raciona- lidade do trabalho, um saber que se exibe, mas também se circunscre- ye nos limites de um aparelho dirigente. Como se sabe, o taylorismo dar-lhe-4, finalmente, expressio acabada. Ora, embora, nesse aspecto, Seja preciso, seguramente, reconhecer a persisténcia da antiga ideolo- gia, é preciso, muito mais, medir a amplidao das modificagdes sobre- vindas. Considere-se, inicialmente, o lugar da empresa, nao para fixar os caracteres de sua transformagao efetiva, mas para perscrutar sua representacao. Esta é a da organizacZo, de uma organizacZo que nao é um produto, uma aplicagéo da ciéncia, mas que a encama, cuja formula nao é propriedade do dirigente, mas est4 inscrita na realida- de. Essa representagdo nao se acomoda mais com a divisdo de execu- tantes e dirigentes, nem com a do trabalho humano e dos meios de produgao; liga todos os termos apagando sua subordinagdo, a fim de articulélos numa estrutura que funcionaria em si, sob o efeito de imperativos racionais, independentemente dos desejos e das escolhas dos homens. A figura da instancia de decisio e de constrangimento, a figura da regra sdo recobertas sob a lei da organizagdo. Esta lei coincide com o discurso da organizacdo, é subtrafda ao olhar dos sujeitos, embora, aqui e acol4, estes facam a prova do absurdo no detalhe das operacdes programadas. Sua plena eficdcia decorre de nao ser percebida como exterior, como a plena eficdcia do discurso 51 que a veicula decorre de nao lhe ser necessario aparecer como dis- curso sobre a organizac4o, ou, se este vier a se exprimir, 96 se afigure como um destacamento do primeiro, cuja validade e legitimi- dade sao deixadas no plano do implfcito. Esse subentendido da lei e do discurso sé é possfvel porque os agentes encontram neles a forma de sua relago fixa, porque sua ago e cooperagdo sao tidas como estando prefiguradas no modelo da organizago. Mas nés nos engana- rfamos pensando que a relagdo das pessoas se coisifica, segundo a expressdo marxista; 0 modelo tende a converter o sujeito em “homem da organizacdo”, como assinala Whyte, isto é, as marcas do real tornam-se as da organizagao — signos de uma racionalizagdo em si do social — e as marcas de sua prépria identidade lhe sao fornecidas em fungdo de um suposto saber que a organizacao deteria sobre ele. Ora, é preciso ainda sublinhar que essa representagZo nao se circunscreve aos limites da empresa de producdo. Propaga-se em todos os grandes estabelecimento sociais, nas firmas comerciais, nas adminis- tragdes piblicas e privadas, na universidade, no hospital. O discurso da organizacdo n&o se consuma no fantasma totali- tdrio. J4 havfamos demarcado seu limite. Mas é importante assinalar o sustentéculo que lhe é oferecido pela difusdo da representagdo da ciéncia fora do quadro que acabamos de mencionar. Essa representa- ¢40 nao se deixa localizar. Nela é investida uma crenga generalizada na auto-inteligibilidade do real e na auto-inteligibilidade do homem. Ou, dizendo melhor, no registro da objetividade tendem a se apagar as distingGes, essenciais para a ideologia burguesa, entre a natureza, a psyché ¢ sociedade. E impossivel, notadamente, apreciar 0 alcance do discurso da organizagéo e como ele se preserva no implfcito, sem levar em conta o trabalho (ouvrage) efetuado pelas ciéncias humanas. Como notou com justeza Marcuse, o discurso oficial da psicologia e da sociologia ¢ comandado pelo artificialismo, pelo operacionalismo, pelo formalismo. Psyché, sociedade, cultura séo correntemente defini- das como sistemas; impdem o modelo geral de uma organizac4o, de um funcionamento da personalidade e os conceitos de integragdo social, comunicacdo, tensio, regulacdo, desde as versdes mais simplis- tas as mais sofisticadas. A bem dizer, se quiséssemos desenvolver a andlise das diversas formas da ideologia, conviria examinar a contribuigao singular que lhe € trazida pela literatura, pela teoria literdria, pela filosofia ou pela estética (ainda que freqiientemente elas se tomem por critica anti- ideologica). A busca de uma linguagem que tome sensivel a questio de seu engendramento, que nao se acomode com a seguranga da narrativa, do romance, da figura da teoria, com a seguranga de uma 52 distancia natural entre um suposto sujeito e um suposto objeto, que deixe na sombra as balizas estabelecidas entre a escrita e a leitura, o vidente e o visivel, 0 autor e o outro, que acolha a fuga do sentido, a eclosio da origem — segundo a bela expresséo de Merleau-Ponty — que se aplique ao deciframento das estruturas inconscientes nas quais o desejo, o pensar estio em obra antes de todo pensamento, de todo desejo que se nomeiem — em suma, tudo que faz o vigor do discurso instituinte encontra-se recoberto pela ficgo nova de uma maquindria do texto, do pensar, do desejo, de um jogo em si da diferenca, da supressdo “real” do sujeito, do sentido, da origem, da histéria. Ficgdo que d4 crédito a novas balizas, que se mantém porque elide a experiéncia da divisio indomindvel do um e do outro, do sentido e do nZo-senso, do espago da obra e 0 do mundo, do que se inscreve dentro e do que aparece fora — e chega, em todos os modos da escrita, a uma técnica da ilegibilidade que, muito significativamente, tende a desarmar o perigo da interpretagdo, fornecendo sua justa réplica ao processo de ocultamento que rege o discurso da organiza- go. Contudo, visto que temos de nos contentar em langar aleuns clardes, sublinhemos sobretudo o papel da psicologia, pois este nao se exerce na periferia, mas no centro da nova ideologia. Com efeito, como nao ver que é ela que prové a organizagao com uma representa- gdo de um saber sobre 0 sujeito, que nutre o fantasma de uma avaliago do agente, nao apenas de sua aptiddo, mas de sua personali- dade, inscreve este fantasma na materialidade de uma bateria de testes, questiondrios, guias de coléquios, de um aparelho pretensamen- te cientifico cuja triplice fungdo consiste em fixar a imagem de um “homem de organizagdo”, fazé-lo aparecer a si mesmo sob o saber do outro, e dissimular a figura dos detentores do poder, engendrando a ilusio de uma norma impessoal. Sem duvida, nota-se com razdo que o sistema do ensino em seu todo, e nio somente a psicologia, ordena-se sob o signo de uma mensurabilidade dos conhecimentos e impde uma imagem de si como individuo avaliado. Ser4 preciso notar, de passazem, que um dos temas dominantes da pedagogia moderna, o da auto-avaliagdo, é um dos mais eficazes para obliterar a presenga do mestre e para imprimir o discurso do poder no invisfvel? Em todo caso, 0 culto do diploma — independentemente mesmo dos esforgos feitos pelo sistema de ensino para fornecer ao mundo da organizagdo os agentes “socialmen- te necessdrios” — engendra em toda extensao da sociedade, a identifi- cagdo do individuo com o agente do conhecimento. 53 Contudo, por ser mais particular, nem por isso a agdo da psicologia é menos decisiva, pois sob seu efeito surge o imagindrio da “personalidade” — um sistema que é legfvel para o outro — ou, visto que o outro se esconde atrés da ciéncia, um sistema que seria oferecido para o entendimento da organizagdo. De resto, nunca é demais salientar o lugar do psicdlogo no sistema do ensino. O teste j4 despenca sobre as criangas mais novas, logo perfuradas pelo saber do psicélogo que vem lhes imprimir a marca da inaptidao ou do desvio. Lentamente, o psicélogo substitui o mestre para deslocar a relagdo com a lei, para afastar o golpe visivel da autoridade e reportar a sangao ao decreto de uma poténcia neutra e anénima. Também € impossfvel deixar de sondar a encenagdo da cientifi- cidade, elaborada pelo rédio, pela televisdo e pela imprensa escrita. A invocagéo magica 4 comunicacdo social é duplicada pela invocagdo magica 4 informagdo. Como subestimar a ascendéncia do saber dos especialistas ou dos pequenos mensageiros da vulgarizagado cientffica, que, dia apés dia, distribuem a verdade sobre a educagao das criangas, sobre o casal, sobre a sexualidade, sobre os segredos do organismo ou os do espago? Nao é apenas a magia do entre-nds que torna tudo dizivel; é a da objetividade. Ora, nfo nos deve escapar um trago do sistema pelo qual se pode assinalar, novamente, sua disténcia face a ideologia totalitdria. Agora, a clausura do saber nao é representada, e nfo é necessdrio que o seja. Se tudo é dizfvel, o indefinido do dizer deve ser marcado e, portanto, marcada sua novidade perpétua. Ali onde o totalitarismo se assegura contra o risco da fratura do tempo pela afirmagdo brutal de uma verdade da histéria, a fazer dos progres- sos futuros o desenvolvimento do presente (de sorte que sempre ha algumas coisas dizfveis, nas fronteiras da ordem estabelecida, ficando © desconhecido domesticado, circunscrito ao registro do conhecido), © novo discurso ideolégico se apossa dos signos do novo, cultiva-os, para apagar a ameaca do histérico. Como a comunicagao social se satisfaz em realizar-se aqui e agora, o saber se exibe aqui e agora, trazendo a solugao do segredo da natureza, do segredo do homem, suscitando o fascfnio pelo presente. Nao saber significa, entao, nao coincidir com o tempo, nao coincidir com o ser social em sua manifestagao. Nao saber, significa incorrer na sangdo tacita da socie- dade, excluir-se do bom vinculo social. Que é 0 “novo’’, sendo a prova materializada da diferenga temporal, do histérico e, portanto, seu recobrimento sob a ilusio de uma diferenga no tempo, de uma distancia domindvel do presente ao passado, de uma relagdo domindvel com o presente como tal. Uma vez mais, é invisivel a operagdo que desmonta os efeitos da instituigao 54 do social, que tenta interditar a questo sobre o sentido da ordem estabelecida, a questdo sobre o posstvel., Enquanto © possivel esta ligado ao desejo e pde em jogo a recusa do adquirido, 0 novo tapa a vista. Ou, melhor dizendo, ele é o brinquedo que uma coletividade infantilizada tenta agarrar, ou recobrar, sempre atrasada frente ao movimento da aparigao do bom objeto a saber. E, uma vez mais, nao deixemos de associar o frenesi pelo novo nas fronteiras das organiza- gGes, com aquele testemunhado — particularmente na Franca, exem- plar sob este aspecto — pelos cfrculos da intelligentzia, devorados pelo medo de nao produzir ou nao agarrar a coisinha portadora da garantia da morte do passado e da plenitude ou do brilho do presen- te. Finalmente, pensamos que é nesta perspectiva que se poderia interpretar a fung&o da ideologia do consumo. Muitas andlises, no quadro de uma sociologia critica, mantém-se no equfvoco de se obstinarem no problema da prdtica do consumo.]Nao é seguro que possamos pensé-la sem prendé-la 4 génese da sociedade histérica. Nao é seguro que possamos fazer mais do que tentar interpretar nesse fendme- no os signos da institui¢do do social, da qual ninguém é o instigador, nem, portanto, fazer mais do que interrogar um mundo no qual nossa propria identidade nos é dada. Em contrapartida, a representagdo que enfeitiga a prdtica do consumo oferece-se 4 critica justamente porque surge do movimento da instituigdo para dissimulé-lo, porque elabora uma “resposta” destinada a conjugar a inseguranca engendrada pela diferenciac¢do e o nao-saber da diferenciagdo no espago e no tempo. Baudrillard © mostrou profundamente. O artigo de consumo, seja qual for sua natureza, s6 exerce atragdo para responder a alguma caréncia cuja origem poderia ser fixada no individuo ou no grupo. Ele se faz representante de um “sistema de objetos” no qual, ao mesmo tempo, a demanda e a satisfacdo esto conectadas e regrada 4 articula- gdo dos signos entre si, de sorte que se fecha sobre si mesmo e oferece a ilusio do social como tal. Nesse sentido, o discurso do consumo condensa a representagdo da organizac¢do e a da comunica- ¢4o. Introduz a um universo onde a diferenga entre 0 produtor e o produto é apagada sob a aparéncia de um pertencimento comum ao mesmo mundo. Mas, ainda é preciso observar que o que é consumido € incessantemente 0 novo, o representante de uma diferenca no tempo a nutrir o desejo, simulando-lhe o retorno indefinido da coisa cobigada, no exato momento em que est4 cativo da representacao. Simulagéo que, ainda uma vez, assinala a tentativa para figurar o histérico, para tornar invisfvel a mudanga fixando a baliza visivel e brilhante do nove. 5S E, no entanto, se nos mantivermos nessas observa¢Ges, perdere- mos, talvez, a fungdo ideolégica essencial do discurso do consumo, qual seja, a de dar crédito 4 ficga%o de um mundo onde o homem sé veria a devolugdo dos signos do homem. Um mundo cujo espago é oferecido a todos os percursos, onde tudo, por pouco que disponha- mos dos meios, é apoderdvel; onde a visdo, a manipulagdo dos objetos, 0 movimento, sfo multiplicados sem obstdculo pelo instru- mento, e esto como que ajustados a um tudo-vis{vel, tudo-manipulé- vel, tudo-explordvel. Basta considerar a pequena fabula publicitdria que nos apresenta a casa dos nossos sonhos, acabada, preparada para nos receber, com a chave na fechadura; essa fabula resume um discurso muito longo sobre o social, discurso que nos ensina que as coisas de fora esto af, estdo dentro, que o universo esté arrumado para o homem e que a natureza é a circunvizinhanga. Nele a ideologia leva seu trabalho até o fim, instala a grande clausura, mas tomando-a invisivel, fazendo economia de um enunciado sobre o homem total e a sociedade total. Mas, devemos pensar que suas contradigGes estdo resolvidas sé porque leva seu trabalho até o fim? Como estariam, se for verdade que a sociedade histérica é a sociedade que mina toda representacdo de sua instituigao? Quanto mais 0 discurso sobre o social procura coincidir com o discurso social, quanto mais se dedica a dominar 0 movimento indo- mindvel da instituigéo, a apossar-se dos signos do instituinte, tanto mais corre o perigo de perder a funcdo assumida pela ideologia até agora: a legitimagdo da ordem estabelecida, nado somente a de um regime de propriedade, mas a do real como tal; a busca da coincidén- cia engendra as condigdes de uma contestagdo que (no Leste e no Oeste) visa, para além das expressdes do poder e da exploragao, as marcas da socializagao no mundo modemo e recoloca a questao do Outro, a questdo do Ser. Tradug&o de Marilena de Souza Chaui 56

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