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J. Lacan O Ato Psicanalitico Seminario 1967-68 Livro XV Notas de Curso Seminario de 15 de novembro de 1967 Escolhi este ano como tema, 0 ato psicanalitico. E’ um estra- nho par de palavras, que, para dizer a verdade, nao lem sido usa- do alé hoje. Certamente, os que tem seguido hé um certo tempo 0 que apresento aqui, talvez nao esicjam espantados com o que in- tvoduzo com estes dois termos, sobre os quais se encerrou meu discurso do ano passado, no interior desta légica da fantasia da qual tentei apresentar aqui todes os contornos. Os que me ouviram falar em certo tom e em dois registros daquilo que pode e deve querer dizer 0 termo igualmente duplo “ato sexual”, estes podem sentir-se, de algum modo, j4 introduzi- clos a esta dimensao que representa o ato psicanalitico. Entretanto, ¢ preciso fazer como se parte desta assembléia nada soubesse introduzir hoje do que se trata, neste emprego que proponho. A psicandlise, espera-se, pelo menos em principio, supoe-se, 20 me- nos pelo fato de que vocés estao ai para me ouvir, que a psicanéli- se, isso faz alguma coisa. Isso faz, isso nao basta, essencial, esté ho ponto central, € a visio poética propriamente dita da coisa, a poesia também faz alguma coisa. Por ter ultimamente me interes sado um pouco pelo campo da poesia, notei, assim, de passagem, quae pouco temos nos perguntado sobre o que faz a poesia e a quem, e sobretudo - por que nao? - aos poetas, Talvez, indagar sobre isso fosse uma forma de introduzir em que consiste 0 ato na poesia, Mas isso ndo é nossa preocupacio hoje, ja que se trata da psicandlise, que faz algo, mas certamente nao no nivel, no plano, no sentido da poesia. Se devemos introduzir, ¢ necessariamente, a funcao do ato no nivel da psicanélise, é enquanto este fazer psicanalitico implica profundamente o Sujeito. Que, para dizer a verdade, e gracas a essa dimensio do sujeito, que renova para nés completamente o. que pode ser enunciado do assunto', como tal, e que se chama o- inconsciente, este sujeito, na psicandlise, esté, como jé formulei, colocado em ato. Lembro que ja tinha colocado esta férmula em relagio a trans- feréncia, dizendo, num tempo jé antigo e num nivel de formulacio ainda aproximativo, que a transferéncia néio era outra coisa senda a colocacao em ato do inconsciente. Fu repito, foi apenas uma pri- meira aproximagio e 0 que teremos que desenvolver este ano so- bre esta funcao do ato da psicandlise, nos permitird dar a esta {6rmula uma precisdo digna dos numerosos passos e, assim 0 es- pero, alguns decisivos, que pudemos fazer desde entao. _Aproximemo-nos simplesmente pela via de uma certa evi- déncia; se nos atemos a este sentido que tem a palavra ato que pode se constituir em relagao a que? - deixemo-lo de lado - pode constituir um franqueamento, é certo que encontramos 0 ato na entrada de uma psicandlise. E’, final, algo que merece o nome de ato decidir-se, com tudo o que isto comporta, decidir-se a fazer 0 que chamamos uma psicandlise. Essa deciséo comporta um certo engajamento. Todas as dimensoes que ordinariamente sao aceitas, no 50 comum, no emprego corrente desta palavra ato, nds as en contramos ai. __Ha também um ato que pode qualificar-se, 0 ato pelo qual o psicanalista se instala enquanto tal, eis algo que merece o nome de ato, até o ponto, inclusive, em que este ato possa inscrever-se em. algum lugar: Sr. Fulano de tal, psicanalista. Na verdade, nao parece insensaio, desmesurado, fora de pro- Pésito, falar do ato psicanalitico da mesma forma que se fala de ato médico. O que é 0 ato psicanalitico a este titulo? Poder-se-ia dizer que isso pode inscrever-se sob esta rubrica no registro da Previdéncia Social. Seré o ato psicanalitico a sesso, por exemplo? Posso perguntar em que consiste? Em que tipo de intervengao? J que, em todo o caso, néo se redige uma prescrigao. O que é 0 ato propriamente dito? Serd a interpretaciio? Ou serd que 60 siléncio? (Ou 0 que quer que seja, que vocés queiram designar, nos instru- mentos da fungao... Mas na verdade, af estao esclarecimentos que nao nos fazem «le forma alguma avangar, e para passar ao outro extremo do pon- (o de apoio que podemos escolher para apresentar, para introdu- {ro alo psicanalitico, enfatizaremos que é precisamente disto que alamos na teoria psicanalitica. Por outro lado, nao estamos ainda win condiigdes de especificar este ato de forma tal que possamos, de \ljjuma maneira, estabelecer seu limite com aquilo que se chama polo termo geral e, com efeito, inusitado nessa teoria psicanalitica, Wiagdo”) — CArricy RUTMA pie KUM pa ag ho A acto, fala-se muito dela e ela tem um papel de referéncia, Um papel de referéncia, aliés, singular, uma vez que além disso, 0 para ilustrar, servem-se dela com grande énfase quando se trata de dar conta - quero dizer, teoricamente e para um campo bastante jutandle cle te6ricos que se exprimem em termos analiticos - de ex- jilicar 0 pensamento. Em nome de uma espécie de necessidade de joguiranga, por razGes das quais teremos de nos ocupar, nao que- Jom fazer do pensamento uma entidade que pareca demasiada- mente metafisica. Tentam dar conta deste pensamento sobre um (undamento que, a esta altura, espera-se que seja mais real, e as- im nos explicam © pensamento como representando algo que se jnotiva, que se justifica por sua relagio com a ago; por exemplo, ‘ob a forma de uma agao reduzida, uma ago inibida, uma agio osbogada, um pequeno modelo de ago. Ou seja, ha no pensamen- (0 algocomo um tipo de gustagdo daquilo que a acto que ele supo- tig, ou que ele tornaria imanente, poderia ser. Esses discursos si bastantes conhecidos, nao preciso ilustra- Jos com citagdes, mas se alguém quisesse examinar mais detida- niente o que dou a entender, eu evocaria nao apenas um célebre \rligo, mas todo um volume escrito pelo Sr. Rappaport, psicana- lista da Sociedade de Nova York O que é surpreendente é que, seguramente, para quem se introduz sem preconceitos nessa dimensao da acao, a referencia om questio nao me parece mais clara do que aquilo a que se refere, ssclarecer 0 pensamento pela agao, supée talvez que se pos- ialmente uma idgia menos confusa, do que as que nessas equees sua ini ocasides se manifesiam, sobre o que constitui uma acdo, uma vez que uma aco parece, se meditamos sobre isso um instante, supor em seu centro a nogio de ato. Sei bem que ha uma maneira que é também aquela a qual se agarram, quer dizer, apdiam-se energicamente os que tentam for- mular as coisas no registro que acabo de mencionar: a de identi acio 4 motricidade,- 7 E’ necessério fazer, no inicio do que aqui introduzimos, uma operagio, chamem-na como quiserem, de simples clucidagiia ou varredura, mas ela ¢ essencial. Com efeito, é sabido - ¢ afinal de contas, met Deus, porque néo aceitavel? - que se queiza aqui apli: car, de um modo que ¢ accito por ser de rotina, obedecer, ou mes- mo somente fazer semblante de obediecer, i regra de nao explicar 0 que se continua a chamar, além disso nem sempre com tanto fun- damento, o superior e 0 inferior; de nao, digo eu, explicar o infer or pelo superior, mas - como se diz, nao se sabe mais agora exatamente porque, que o pensamento é superior - partir dest= inferior que seria a forma a mais elementar de resposta do organis- mo, a saber, este famoso circulo cujo modelo deia vacés sob onome de arco reflexo. Ou seja, 0 circuito que se chama, segundo 0 caso, _estimulo-resposta, quando se é prudente, e que se identifica ao par excitagao Seneorial, qualquer que ela seja, e desencadeamentos motores que tomam aqui o papel de resposta ~Além do que, nesse famoso arco, é bastante certo que a res- posta nao é, de modo algum, forcosamente e obrigatoriamente motora mas que, desde logo, se ela é, por exemplo, excretéria, e Wy mesmo secret6ria (que a resposta seja: que isso molhe), pois bem, a referéncia a este modelo para nele situar, para tomé-lo. como o ponto de partida, o fundamento da fungao que nés podemos chamar “agio", aparece certamente como muilo mais precaria, De resto, pode-se notar que a resposta motora, se nés a restringimos apenas 2 ligagao definida pelo arco reflexo, tem verdadeiramente muito poucas condigdes para nos dar o madelo do que podemos chamar ago, uma vez que o que é motor, a partir do momento que vocés 0 insiram no arco reflexo, aparece tanto como um efeito passivo, guanto como uma pura e simples resposta aos estimulos, resposta que nao comporta nada mais que um efeito de passividade. A dimensio que se exprime em uma certa forma de conceber onposta como uma descarga de tensio, termo que ¢ igualmente corente também na energética psicanalitica, nos apresentaria en- Wola ago como nada mais que uma conseqiiéncia, até uma fuga consecutive a-uma-sensagag Mais ou menos intoleravel, digamos jo sentido mais amplo de estimulo, na medida Gm que af facamos \nlorvir outros elementos além dos que a teoria psicanalitica intro- sly sob o nome de estimulacdo intermitente. Estamos entao seguramente em uma postura\de nao poder- 08 vituar oato nesta referéncia)nem & motricidade nem & descar- jin. Pelo conteério, € preciso perguntar-se a partir de agora, por \\hie # (eoria manifestou e ainda manifesta uma inclinagao tio gran- tly a lomé-las como apoio, para nelas encontrar a ordem original nstauraria, donde partiria, onde se instalaria como uma sluplicagiio#, a do pensamento. F claro que, se faco essa revistio, é apenas porque teremos «jue nos servir dela. Nada do que se produz na ordem da elabora- \0, por mais paradoxal que se apresente quando visto de deter- ‘nico Angulo, deixa, entretanto, de nos sugerir a idéia de que oviite af alguma motivagao a sustentar esse paradoxo, e que desta Motivacio mesma - eis af o método que a psicandlise nao abando- {in jamais - desta motivagio mesma nés podemos tirar alguns fru- Que @ teoria entio apdie-se ocasionalmente sobre algo que oli, precisamente a teoria analitica, é a mais indicada para saber {We apenas um curto-cireuito em relagao ao que é preciso estabe- Jecer como estatuto do aparelho psiquico, que ndo apenas as tex- lon de Freud mas todo 0 pensamento analitico 6 possam se \uitentar colacando na defasagem, no intervalo entre os elemen- oy aferente e eferente do arco reflexo, esse famoso sistema “psi” «los primeiros escritos freudianos, mas que, nao obstante, ela te- tiha a necessidade de manter 0 peso nesses dois elementos - isso nente é testemunho de algo que nos incita a delimitar o lugar Jn teoria psicanalitica com relacéo ao que podemos chamar, de modo mais geral, a teoria fisiologizante relativa ao aparelho psi- quiico. (claro que vemos surgir aqui um certo ntimero de edificios inentais fundados, em principio, sobre um recurso a experiéncia e | que tentam usar, servir-se deste modelo primeiro dado como mais elementar (embora o consideremos ao nivel da totalidade d um micro-organismo, por exemplo, o processo estimulo-respos! aonivel da ameba), fazendo dele de alguma forma uma homologia: a especificagao para um aparelho que concentraria em si, pel menos num certo ponto poderosamente organizador, os efeitos 4 realidade sobre o organismo, a saber, ao nivel deste arco reflexo no] aparelho nervoso uma vez diferenciado. (© que temos de dar conta nesta perspectiva, 6 que esta dife. renga persista num nivel, em uma técnica, a psicandlise, que pare ce ser, propriamente falando, a menos apropriada a recorrer a ela dado o que ela implica de uma dimensao inteiramente outra - que se opée, com efeito, radicalmente, a esta referéncia que resulta a uma concepgao manifestamente capenga do que pode ser o atoj nao satisfatoria de uma man iterna; completamente oposta, com efeito, ao que empreendemos, a esta posigdo da fungi do ato que evoquei de inicio, sob seus aspectos de pura evidéncia, e qué sabemos bem que é a que nos interessa na psicandlise. Falei ha pouco de engejamento, seja do analisado ou do ana- lista; mas afinal, por que ndo colocar a questo do ato’ de nasc': mento da psicandlise? Pois na dimensao do ato vem logo a baila esse algo que implica um termo como este que acabo de mencio- nar, a saber‘a inscri¢ao em algum lugar, 0 correlato de significante que, na verdade, nao falia jamais no que constitu um ato) Se posso caminhar aqui de um lado para outro, falanclo-a voces, isso nao constitui um ato, mas se um dia ultrapassar um certo limiar onde! me coloque fora da lei, esse dia minha motricidade tera valor de ato. Adiantei aqui, nesta mesma sala. que é simplesmente recor- rer a uma ordem de evidéncia admitida, as dimensOes propria- mente ditas linguageiras* relativas ao que se entende por ato, ¢ que permite reunir satisfatoriamente tudo o que este termo pode apresentar de ambigilidade e que vai de uma a outra extromidade da gama que evoquei inicialmente, af inchtindo nao apenas, além do que chamei na ocasiao de “ato notariado”® (fiz mengio a este termo), 0 ato do aascimento da psicanilise. Por que nao? Foi assim que ele surgiu a determinada volta de meu discurso. Mas certa- mente, se ai nos detivermos um pouco, veremos abrir-se facilmen- le a dimensao do ato relativa ao proprio estatuto da psicandlise. Vols afinal, se falei de inscrigao, o que isso implica? Naonos aferre- mos demais a esta metfora, entretanto. Aquele cuja existéncia esté consignada em uma ata quando ele vem ao mundo, ele esté 14 an- tos do ato. A psicanélise nao é um bebé. Quando se fala do ato de nasci- mento da psicandlise, o que faz sentido jé que ela aparece um dia, juustamente, a questao que se evoca é: sera que esse campo que ela organiza, sobre 0 qual ela reina, governando-os mais ou menos, era que esse campo existia antes? E’ uma questo digna de ser ovocada quando se trata de um tal ato. F’ uma questo essencial a levantar, nese momento de mudanga. Claro, ha todas as chances (jue esse campo existisse antes, nao iremos certamente contestar cjue 0 inconsciente fizesse sentir seus efeitos antes do ato de riasci- mento da psicandlise. Mas de qualquer forma, se prestarmos bas- Lante atenggo, poderemos ver que a questo: - quem o sabia? -nao pode ser sem aleance. Com efeito, esta questo nao tem otro aleance que a époché, ispensao idealista, aquela que se funda sobre a idéia, tomada > radical, da representacao como fundando todo conhecimen- loc que, desde entdo, pergunta:\fora desta representacao, onde i a realidade?\, 1’ absolutamente certo que a questio que levanto sob a for- ma do - quem o sabia, esse campo da psicandlise? - nao tem abso- lutamente nada a ver coma antinomia falaciosa na qual se funda o idealismo. E’ claro que no 6 questo de contestar que a realidade a anterior ao conhecimento. A realidede, sim! Mas, e o saber? O. saber nao é o conhecimento e para levaros espfritos menos prepa- vadlos a vishumbrar esta diferenca, tenho apenas que fazer aluso 10 saber-viver ou ao saber-fazer. Ai, a questdio do que ha antes loma todo 9 seu sentido. O sabersvivel ou saber fazer pode nascer a um momento dedo © depois, Se € que a énfase que ponho desde sempre sobre a lin- syuagem terminou por ganhar para alguns de vocés todo 0 seu al- cance, é claro que aqui assume toda a sua importéneia, a questio de saber precisamente o que cra de algo que podemos chamar| nipulagdo da letra, segundo uma forralizagio dita légica, Br cxemplo, antes que o fizéssemos. O campo da dlgebra, antes da invencao da algebra 6 uma questio que tem todo o seu aleance. Antes que saibamos manipular algo que é necessério chamar pot seu nome, 0s algarismos e nao simplesmente os ntimeros, digo al: garismos, sem poder me estender. Apelo a alguns, que suponh existir entre vocés, que leram suficientemente, em alguma beira d revista ou em livretos de vulgarizacao, como procede 6 Sr. Canta para demonstrar que a dimensio do transfinito nos nimerosnao absolutamente redutivel a da infinidade da seqiiéncia dos ntime- ros inteiros; ou seja, que sempre se pode fabricar um novo ntimero que nao terd sido incluido a principio nessa seqiiéncia de niimeros: inteiros, por mais espantoso que isso parega a vocés. E isso, a par tir apenas de uma certa maneixa de operar com a seqiiéncia dos algarismos segundo um método que se chama “diagonal”, Em re-_ sumo, a abertura desta ordem seguramente controlavel e que sim-_ plesmente tem direito, ao mesmo titulo que qualquer outro termo, 4 qualificacio de veridica, serA que esta ordem estava ld, esperan- do a operacao do Sr. Cantor por toda a eternidace? Bis wna ques- to que tem seu valor e que ndo tem nada a ver com aquela da anterioridade da realidade em relacao a sua representacdo. Ques- to que tem seu peso. F’ uma combinatdria e o que dela se desdo- bra de uma dimensio de verdade, eis 0 que deixa surgir, da maneira mais auténtica, em que consiste essa verdade determinada por ela antes que o saber nasca. F’ exatamente porque um elemento dessa combinatéria pode vir a desempenhar o papel de(jepresentante da representacig, ¢ isto justifica minha insisténcia em que seja assim traduzido o ter- mo alemao em Freud “vorsteliung-representant”, que nao 6 por uma simples susceptibilidade pessoal que cada vez que vejo res- surgir em uma ou outra anotacdo, a traducao!“representante-re- presentativo’s pa ai denuncio, eu af designo, de forma valida, uma inlengao, essirintencao precisamente coniusional, da qual é preci- so saber porque fulano ou sicrano dela se fazem representantes no campo psicanalitico. Nesie registro, as querelas de forma nao sio fateis, uma vez que justamente instauram com elas todo um pres- suposto subjetivo que, sem diivida, est4 em questo. Nés teremos em seguida que trazer alguns destaques que nos permilirio orientar-nos sobre este ponto. Esse nao é meu obje- tivo hoje, que, como ja disse, é apenas o de introduzir a fungio que 10 jonho que cesenvolver para vacés. Mas, desde ja, indico que ao jyarear simplesmente com trés pontos de referéncia - aquele que {ont a fungdo de um termo como “conjunto” na teoria matematica, inostrar a distancia, a distincao dele em relago aquele, em uso ha bum mais tempo, de “classe”, e af enganchar, numa relagao de ar- licullagiio que mostre que o que vou dizer af se insere por uma corta diferenga articulada e que o implica na mesma ordem, essa orem das posigoes subjetivas do Ser que era 0 verdadeiro tema, 0 lilulo secreto do segundo ano do meu ensinamento aqui, sob 0 nome de "Problentas Cruciais”, que referida & distingao de con- junto e classe, a fungao do objeto enquanto “a” toma todo o seu valor de oposigao subjetiva. E’ © que teremos a fazer no tempo devido, Agora, apenas 0 indico A maneira de um marco, cuja indi- 10 e, ao Mesmo tempo, a esséncia, vocés reencontrarao no mo- mento em que tivermos que retomé-lo. Para hoje, tendo entao marcado do que se trata, vou retomar referéncia fisiologizante para mostrar a vocés algo que talvez, venha a esdarecer, coma maxima eficdcia, o que entenco pelo ter- mo “ato psicanalitico”. Ej que fizemos tio facilmente a critica da ssimilagao do termo “acao” com o de “motricidade”, talvez seja dinda mais facil darmo-nos conta do que se trata, neste modelo {alacioso, pois se o apoiamos em algo que é da pratica cotidiana, como, por exemplo,o desencadeamento de um reflexo patelar, creio que a partir disso seré mais facil percebermos que ele constitui um {uncionamento do qual nao sabemos porque se chama “autométi- o”, jd que a automatizacdo comporta, em sua esséncia, uma refe- 1Oncia 20 acaso, enquanto o que est implicado na dimensao do 1oflexo € precisamente 0 contrario. Mas deixemos isso de lado. E evidente que nao saberiamos conceber de modo racional 0 que 6 0 arco reflexo, senao como algo onde o elemento motor nao © outro sendo o que temos de situar no pequeno instrumento, 0 martelo com 0 qual o desencadeamos, ¢ onde o que é recolhido nada mais é do que um signo, um signo, no caso, do que podemos chamar a integridade de um certo nfvel do aparelho medular e, nesta medida, um signo do qual é preciso dizer que o que ele tem cle mais indicative é precisamente quando ele esté ausente, ou seja, quando ele denuncia a nao integridade deste aparelho. Pois em relagdoa esta integridade, ele ndo nos diz muita coisa. Pelo contré- " rio, seu valor de signo de defeito, de lesio, é o que tem valor posi tivo. Af sim, ele toma todo 0 seu valor. Fazer desse algo que nao tem entidade e significado send como alguma coisa de isolada no funcionamento do organism« isolada em fungao de uma certa interrogaciio que podemos cha mar de interrogacao clinica e - quem sabe possamos ir mais long - até mesmo desejo do clinico, eis algo que nao da a este conjunt que chamamos arco reflexo, nenhuma qualificagéo especial par servir de modelo conceitual ao que quer que seja considerado com fundamental, elementar, reducao original de uma resposta do or ganismo vivo. Mas vamos adiante, vamos a algo que é infinitamente mai sutil que este modelo elementar, a saber: a concepgao do reflex no nivel do que vocés me permitirao chamar, j4 que é por ela qu vou me interessar, de “ideologia pavloviana”. Isto quer dizer que eu pretendo aqui interrogé-la, certamen: te que nao do ponto de vista de uma critica absoluta, mas quanto, voces verdo, ao que ela nos fornece de sugestao em relagao ao qu éa posigao analitica. Nao pretendo, certamente, depreciar 0 con: junto dos trabalhos que estao inscritos nesta ideologia. Nao digo, além disso, nada de muito novo, dizendo que ele procede de un projeto de elaboracio materialista, ele o confessa, de algo que uma fungao da qual se trata precisamente de reduzir a referénci: que poderia ser feita - como se este fosse um terreno onde fos: necessario combater - 4 alguma entidade da ordem do espirito. Nesse sentido, a ideologia pavloviana é bem melhor dispos: ta que essa primeira ordem de referéncia que indiquei com o arc reflexo e que poderiamos chamar de referéncia organo dinamica, e isso porque se ordena a partir da tomada do signo sobre uma fungao, esta ordenada ao reclor de uma necessidade. Nao é neces sirio, penso, vocés todos fizeram estudos secundarios para sabe © modelo corrente pelo qual ela é introduzida nos manuais, e dos} quais nés também nos servimos agora para apoiar 0 que temos ai dizer, que a associacao de fato de um rufdo de trompete, por exem- plo, coma apresentacio de um pedaco de carne a um animal, car: nivoro, claro, é considerada capaz de obter, ap6s certo ntimero de repetigdes, © desencadeamento de uma secrecdo géstrica, desdey que 0 animal em questao tenha de fato um estémago, e mesmo \nto, ap6s 0 desfecho, a liberacao da associacao que se faz, claro, no ,ontido da manutengao somente do rufdo de trompete. O efeito inanifesta-se facilmente pela instalagao permanente de uma fistula ostomacal. Quero dizer que af se recolhe o suco que ¢ emitido, ao fin de um certo ntimero de repetigées, a simples emissio do ruido de trompete. Este empreendimento pavloviano, ouso qualificé-lo com re- \ugiio a sua perspectiva de extraordinariamente correto. Pois, com eleilo, o que se trata de fundar, quando precisamos dar conta da possibilidade das formas elevadas deste funcionamento do espiti- to, é evidentemente esta predominancia sobre a organizagao viva le algo que s6 toma aqui valor ilustrativo por nao ser a estimula- lo adequada a necessidade implicada; e até, propriamente falan- (Jo, por no se conotar no campo da percepgao senao por estar vordadeiramente destacada de todo 0 objeto de fruigio eventual. liruigdo; isto quer dizer, gozo. Nao quis dizer g0z0, pois como jé dei um destaque especifico & palavra gozo, nao quero introduzi-la aqui com todo o seu contexto; fruto é 0 contrario de util. Nao é jm mesmo de um objeto de uso que se trata, é do objeto do ape- \ile fundado sobre as necessidades elementares do vivo. f na me- lida, por exemplo, em que 0 barulho do trompete nao tem nada a vor com coisa alguma que possa interessar a um cachorro, pelo ienos no campo onde seu apetite é despertado pela visio de um jedago de carne, que Pavlov pode introduzi-lo legitimamente no campo da experiéncia. Se afirmo que esta maneira de operar é extraordinariamente correta, 6 muito precisamente na medida em que nela Pavlov se 1a, se posso dizer assim, estruturalista no inicio, No inicio de \\in experiencia, ele é estruturalista precursor, do estruturalismo «(iv mais estrita observancia, a saber, da observancia lacaniana, uma ox que precisamente o que ele af demonstra, o que ele de alguma Jorma pressupde como implicado é, muito precisamente, o que 0 sijnificante faz, ou seja, que o significante é o que representa um jujelto para um outro significante. Af estd de fato, como ilustrar o que acabo de afirmar: 0 ruido «lo ompete nao representa aqui nada mais que o sujeito da cién- ia, a saber, 0 proprio Pavlov. Ele o representa para quem? Por «jue? Manifestamente para nada além disto, que nao é um signo, assim dizer. Em primeiro lugar, para ilustrar relativamentee & se- qitencia fisioldgica montada por ele, 20 nivel do érgio, uma fistula estomacal. O que é que ele obtém agora? O que obtém é uma se~ giiéncia inversa onde & engatada a este ruido de trompete que se apresenta a reacao do animal. g Nao ha para nés muito mistério em tudo isso, o que, por ou- tro lado, nfo reduz em. nada o alcance dos beneficios que se pode, ag nivel de um ou outro ponto de funcionamento cerebral, produ- zit neste tipo de experimentacSo. Mas o que nos interessa é seu objetivo. Que seu objetivo nao seja obtido sendo ao prego de um certo desconhecimento do que constitui a principio a estrutura da experiéncia, eis o que deve nos alertar quanto ao que esta experi= ancia significa enquanto ato, pois esse sujeito, aqui Pavlov, nesta ocasiao s6 faz, muito exatamente e sem se dar conta disso, recolh sob a forma mais correta o beneficio de uma construgao que € es- tritamente assimilavel A que se impde a nés, desde que se trata d relacdo do ser falante com a linguagem. Fis 0 que, em todo 0 caso, merece ser posto ém evidéncia, ainda que seja apenas por ser reti rado do pélo demons.zativo, por assim dizer, de toda a operacao, A propésito de todo um campo das atividades ditas cientifi cas em um certo periodo hist6rico, essa perspectiva de redugao dita “materialista” bem merece ser apreendida como tal, pelo que 6, a saber, sintomitica. Seria necessdrio que isso acreditasse em Deus, exclamaria eu... Mas, na verdade, é certo que toda esta cons~ trucdo dita materialista ou organicista, digamos ainda, em medici- nna, 6 bastante bem recebida pelas autoridades espirituais.. ‘Afinal de contas, tudo isso nos leva ao ecumenismo. Hé uma certa maneira de operar a redugio do campo divino que, em tlti- ina instncia, € completamente favordvel a que todos os peixes se- jam enfim misturados, na mesma grande rede, Tsso que é mesmo manifestamente mais sensivel, expGe-se - por assim dizer - ante vocés. Esse fato sens‘vel que se expée manifestamente ante seus olhos, apesar disso deveria inspirar-nos um certo recuo quanto ao que sao as relagdes com a verdade, em um certo contexto. Se as elocubracées dos logicos, num tempo ja prescrito, con- siderado como relegacio na ordem dos valores do pensamento, que: se chama a Idade Média, se as simples elacubragoes dos légicos podiam acarretar condenacdes maiores, e se sobre tal ou tal ponto \{\W0 slo de doutrina no campo em questo, e que se chamavam “as eronias”, as pessoas chegavam rapidamente a se estranhar € ase elie-massacrar, por que pensar que estes sejam efeitos, como se illy, eleltos do fanatismo? Por que a invocacao de um tal registro, ji que talvez fosse suficiente conclux disso que tais ou tais enunci- lon sobre as relagdes de saber poderiam comunicar, ser nessa 6po- © Inlinitamente mais sensiveis, no sujeito, aos efeitos de verdade Nao guardamos mais, de todos esses debates chamados, com Hiyllo ou nao, de “teolégicos” - teremos de voltar mais tarde sobre {jue 6a teologia - sendo os textos, que sabemos ler mais ou menos # (jue, em muitos casos, ndo merecem de forma alguma o titulo de piipoeirados. O que talvez. nao suspeitemos, é que isto talver ti- fone conseqiiéncias imediatas, diretas, sobre o mercado, na porta \{h) escola ow na necessidade na vida do casal, nas relagSes sexuais. Vor que a coisa nao seria concebivel? Seria suficiente introduzit iu outta dimensdo que nao a do fanalismo, a da seriedade, por emplo. Como € que acontece que, para o que se enuncia no quadro | nossas fungdes de ensino, e do que se chama a “Universidade”, Wom € que acontece que, no conjunto, as coisas sejam tais que nao v0) absolutamente escandaloso formular que tudoo que nos é dis- ‘nbuido pela wniversitas litteratum, a Faculdade de Letras, que j\ncla mantém 9 comando sobre o que se chama com nobreza de Ciencias Humanas”, seja um sabe: dosado de forma tal que ele \ fatonao tenha, em caso algum, nenhuma espécie de conseqiién- tin? E’ verdade que ha 0 outro lado, a universitas nao preserva INinis tio bem sua situacdo, pois ha a'go de diverso que se introduz \\ © que se chama a “Faculdade de Ciéncias”. Parei vocés nolaceut que do lado da Faculdade de Ciéncias, em tazio do modo de inscriggo de desenvolvimento da ciéncia como tal, as coisas talvez ndo sejam tao diferentes, porque lé veri- ficourse que a condigéo do progresso da ciéncia é que nao se quei- 0 saber nada sobre as conseqiiéncias que este saber da ciéncia jearreta ao nivel da verdade. Essas conseqiiéncias, deixa-se que se desenvolvam sozinhas. Durante um considerével tempo do campo histérico, pessoas jue sem chivida mereciam, desde ertio, o titulo de sébios, pensa- vam duas vezes antes de colocar em circulagao certos aparatos, cortos modes do saber, que jé tinham vislumbrado perfeitamente, Ha um certoSr. Gauss, por exemplo, bastante conhecido, que, acerca disso, tinha visies bastante antecipatorias. Ele deixou outros ma- tematicos colocé-las em circulacdo uns trinta anos depois, embora ja estivessem em seus papeizinhos. Talvez achasse que as corse- agiiéncias ao nivel da verdade merecessem ser tomadas em consi- deracao. Tudo isso para dizer a vocés que a complacéncia, enfim, a consideragéio da qual goza a teoria pavloviana na Faculdade de Ciencias, onde ela tem 0 maior prestigio, talvez.tenha a ver com 0) estou enfatizando, e que €, propriamente falando, sua dimensio fatil, Fuitil, vocés talvez, nao saibam o que isto quer dizer. Alias eu também nao sabia até um certo momento, até momento em que me aconteceu, por acaso, esbarrar sobre o emprego da palavra futilis| em um trecho de Ovidio, onde isto quer dizer, falando propria mente: um vaso que verte’ ‘A fuga, espero ter precisado suficientemente, encontra-se na base do edificio pavloviano, ou seja, o que se trata de demonstrar nao precisa ser demonstrado, uma vez. que é afismado ja na patti da. Simplesmente, o Sr. Pavlov ai se demonstra estruturalista, com a ressalva de que ele mesmo niio sabe disso, mas isso evidente} ‘mente compromete todo 0 alcance do que poderia pretender ser] qualquer demonstracio e, por outro lado, tudo o que se quer de monstrar na verdade s6 tem um interesse muito reduzido, dacl que.a questéo de saber como Deus fica, esta inteiramente escondi- da em outro lugar, Em suma, tudo 0 que nos fundamentos do fun- cionamento pavloviano consiste em crenga na esperanca de! conhecimento, na ideologia de progresso, se analisarem detida- inente, 56 reside nisto: que as possibilidades que a experimentagaa pavloviana demonstra, sio consideradas como j4 estando 14, no cérebro. Que se obtenha da manipulacio do cio nesse contexto da articulagao significante, efeitos, resultados que sugerem a possibi- lidade de uma maior complicacao dessas reacées, nao hé nada de surpreendente nisso, jé que fomos nés que introduzimos esta com plicagdo. Mas o que esta implicado é precisamente o que eu colo- cava em evidéncia hé pouco, ou seja, Se as coisas que revelamos j4l estavam anteriormente I. 10 Aquilo de que se trata quanto a dimensio divina e geralmen- \v Aquela do espirito, gira inteiramente em torno disto: o que é que {\0s pupomos ja estar If, antes que facamos a descoberta. Se sobre Judo um campo, verifica-se que seria, néo fitil, mas leviano pen- ir que este saber jé estava I4, esperando-nos antes que nds o fizés- jonioe surgir, isso poderia ser de molde a nos levar a fazer uma jwavaliagao bem mais profunda. E’ exatamente disto que vai se \olat, a propésito do ato psicanalitico. hora me obriga a colocar aqui um ponto final no propésito {ihe tenho para vocés hoje; vocés vero na préxima vez, aproxi- ii\ndlo 0 que é préprio do ato psicanalitico com este modelo ideo- \nipico, do qual disse a vocés que sua constituicdo paradoxal é feita ‘le que alguém possa fundar uma experiéncia, possa fundar uma #speriéncia sobre pressupostos que ele mesmo ignora profunda- iwonte, Eo que quer dizer, que ele ignora? Esta nao 6 a tinica di- wwnnstio a colocar em jogo, a da ignorancia, que entendo relativa 10) proprios pressupostos estruturais da instauragio da experién- ‘(9) h uma outra dimensao muito mais original, equal ha muito (en)po fago alusao; é aquela que da préxima vez eu me permitirei intvoduzir, por sua vez. Notas do tradutor |. sujet - poruma escolha do tradutor, esté como assunto, tema, neste lugar da frase. importante, entretanto, recordar ao leitor os dois wentidos da palavra: tema ou suijeito. doubluve ~0 sentica 6 tanto de duplicagio, no cavo da forragéo que cluplica uma roupa, quanto de substituigao,no caso de wm ator que toma o lugar de outro. acle-pode traduzit-secomo“ato” ou como “ata”, ouseja,umescrito Tueaulentica um fatoouconvensio. Lacan jogacomapolissemia la palavra. langagiére -relativaa linguagem. Nao foi traduzido por “linguistica”, que poderia evocar o estudo cientifico da linguagem, mas pelo galicismo“linguageira” que,emboranaoexistanalingua portuguesa, 19 ja tem sido usado entre psicanalistas. acte notarié - escritura; as atas podem ser de cunho privado ow autenticadas por um notério ou tabeliZo. un vase qua fuit - fuir é tanto fugir quanto deixar escapar o liquido por uma fenda, verter. A frase seguinte comeca com uma referencia a fuga. 0 Seminario de 22 de Novembro de 1967 Nilo posso dizer que a afluéncia de vocés este ano nfo me e problemas. © que significa isso para um discurso que, se houivesse dtividas, j4 repeti o suficiente para que se saiba que se Wlitige essencialmente aos psicanalistas? FE verdade que meu lugar ul, esse de onde falo a vocés, j4 testemunha bastante algo de ulvindo que me coloca em posicao excéntzica em relacdo a eles. J} mesmo de onde, hd anos, em suma, endo faco sendo interro- jar 0 que escolhi este ano como tema: 0 ato psicanalitico. I! claro que 0 que eu disse da tiltima vez 66 poderia encontrar wile rumor de satisfacéo que me chegou a respeito da opinigo ge- «la assisténcia, se posso exprimir-me assim, que, na verdade, ‘ont parte (estes que, dado esse niimero, estéo necessariamente ai, {jue vem aqui pela primeira vez), em parle, entao, vinha para ver, porque thes disseram que néo compreenderiam nada. Bem, eles tiveram uma boa surpresa! Na verdade, como indiquei de passagem, falar de Pavlov nessa ‘io, como fiz, era exatamente favorecer 0 sentimento de com- sdio. Como jé disse, nada € mais estimado que o empreendi- iionto pavloviano, muito especialmente na Faculdade de Letras. Mow afinal é dai mesmo que, de modo geral, vocés vém. Quer di- yor que é essa espécie de reconhecimento' que nao me preenche de forma alguma? Esto adivinhando, Certamente que nao, ja que, linal, também nao isso que vocés vieram procurar. 2 Para ir ao ponto, parece-me que se algo pode explicar decen- temente esta afluéncia, é algo que, em todo 0 caso, nao repousaria sobre esse mal-entendido ao qual eu nao me presto. Dai, a forma de expectativa a que me referi ha pouco, afinal ¢ algo que nao é mal-entendido e que me incita a dar o melhor de mim para fazer face ao que chamei esta afluéncia, E que, em maior ou menor grau, cos que vém, de modo geral, vém porque tém a impressao de que aqui se enuncia algo que bem que poderia - quem sabe? - ter con- seqiiéncias. Fevidente que se é assim, essa afluéncia 6 justificada, j4 que o principio do ensinamento quenés qualificaremos, para situar gros- seiramente as coisas, de ensinamento de Faculdade, é precisamen- te que 0 que quer que seja de tudo o que diz respeito aos temas mais ardentes, até mesmo da atualidade, politica por exemplo, tudo. isto seja apresentado, posto em circulacao, precisamente de forma tal que nao leve a conseqiiéncias. Pelo menos é a fungio A qual satisfaz hé muito tempo, nos paises desenvolvidos, o ensino uni- versitério. E exatamente por isso, aliés, que neles a universidade est em casa, pois lé onde ela nao satisfaz, nos paises subdesenvol- vidos, existe tens&o. Logo, ela cumpre bem sua fungao nos paises desenvolvidos, I que ela tem isso de tolerdvel: 0 que quer quenela se profira, nao ocasionard desordem. Evidentemente, nao é sobre o plano da desordem que consi deraremos as conseqiiéncias do que digo aqui, mas o publico sus- peita que a um certo nivel, que é exatamente o daqueles aos quais ‘me dirijo, ou seja, os psicanalistas, hd qualquer coisa de tenso.Com, efeito, é disto que se trata quanto ao alo psicanalitico, pois hoje jremos avangar um pouco mais. Veremos 0 que se passa com 03 que praticam este ato; quer dizer, o que os define é que sao capa~ zes de tm tal ato, e capazes de forma tal que eles af possam ganhar um lugar, como se diz entre os outros atos, esportes ou téenicas, enquanto profissionais. Certamente, deste ato, enquanto faz-se dele profissao, resulta uma posigao da qual é natural sentir-se assegurado pelo que se sabe, pelo que se guarda de sua experiéncia, Nao obstante - ai est um dos aspectos, tim das interesses do que avango este ano - resul- ta da natureza propria deste ato um campo do qual, ¢ initil dizer, ha tillima vez, eu nem mesmo rocei as bordas. Da natureza deste a i) depencem conseqiiéncias as mais sérias quanto ao que resulta 11) posigto que se deve manter, para estar apto a exercé-lo. A\,singularmente, toma lugar, vocés verdo, que a outros além ‘10 anallstas, aos néo-analistas, eu possa levar a conccber o que & ili) lo © que, de qualquer forma, lhes diz respeito, O ato psicanalitico diz respeito, e muito diretamente, em pri- {wiv lugar, eu diria, aos que dele nao fazem profissio. Seria sufi- inclicar aqui que, se é verdade, como eu ensino, que se trata \yo como uma conversio da posigso que resulta do sujeito ile {iho A sua relagao ao saber, como nao admitir de imediato que » poderia estabelecer-se uma hiancia verdadeiramente perigosa, Jurque apenas poucas conseguem ter uma visio suficiente desta aubve 4 quea chamei assim, do sujeito? E mesmo concebivel bversdo do sujeito, e nao de um ou outro momento a vida particular, soja algo cle imagindvel comose pro- ‘lirindo apenas aqui ow ali, até mesmo em tal ponto de encontro hile (odos os que nao tivessem experimentado essa virada, se re- lortassem mutuamente. Que o sujeito nao seja realizavel sendo ei eada um, certamente nao deixa menos intacto seu estatuto como eoirutura, precisamente, e antecipado na estrutura. Desde jé aparece que fazer ouvir, nao fora, mas dentro de Wii) certa relacao com a comunidade analitica, em que consiste fale alo que interessa a todo mundo, s6 pode permitir, no interior siesta comunidade, ver mais claramente 0 que é desejado quanto 0 eptatuto que se podem dar os que, deste ato, fazem profissio filiva fi assim que na abordagem que descobrimos ter tomado este 0, como adiantamos na tiltima vez, impée-se precisamente dis- linyjulr cle saida - tal que se possa, folheando as paginas, vé-lo apre- senlor algumas vezes - 0 ato da molricidade. E, de imediato, (onlondo ultrapassar certos degraus que nao se apresentam, em #0 ulgum, segundo uma forma apoditica, que nao se pade, que {vl se quer sobretudo, pretender proceder por um tipo de intro- ‘gio que seria de escala psicolégica de maior ou menor profun- idade, &, pelo contrério, na apresentacéo dos acidentes \eernentes ao que se enuncia desse ato, que iremos procurar 0 tnlo de luz diversamente situado, que nos permita perceber onde sl) verdadeiramente o problema. Assim, ao falar de Pavlov, ew a na verdade, nao comporta, falando propriamente, a qualificagao: de pobreza de espirito. Para mim, foi antes um gesto caridoso im- putar-Ihe a bem-aventuranga reservada aos ditos pobres de espiri- to. Estou quase certo de que, ao tomar tal posigao,ndo é de qualquer obstéculo, nem bom rem mau, nem subjetivo nem objetivo, que se trata, mas que na verdade 6, antes, alheio a todo obstaculo que ele deve se sentir para chegar a tais extremos. E por outro lado, além disso, poderao ver que seu caso esté longe de ser tinico, ao se re~ portarem a tal pagina dos meus Escritos, a do "Discurso de Roma”, onde relato o que afirma um certo Masserman, que nos Estados Unidos defende o que, em Alain, chama-se um “importante” Este “Importante”, sem dtivida na mesma busca de canforto, cita com gléria as pesquisas de um Sr. Hudgins, sobre as quais me detive naquela época, jé vai longe, 6a mesma época da proposigao que acabo de relatar a vocés. Ele cita, com gléria, aquilo que pode obter de um reflexo também condicional construido em um sujei- to, ele humano, de modo tal que uma contracio pupilar venha a se produzir regularmente ao enunciado da palavra “contract”. As duas paginas de ironia sobre as quais eu me estendo, porque era necessdrio na época que o fizesse, até para ser ouvido, ou seja, se a ligagdo pretensamente assim determinada entre 0 som e o que ele cré ser a linguagem, lhe pareceria to bem sustentada se se substi- tuisse o “conlracl” por “marriage-contract”, “bridge-contract”, ou por “breach-of-contract”, ou mesmo se se concentrasse a palavra até que ela se reduzisse & sua primeira sflaba. Evidentemente é signo de que ha algo na brecha em que nio é imitil ater-se, uma ‘vez que outros 0 escolhem como um ponto chave da compreensio, daquilo de que se trata. Talvez, afinal, este personagem me dissesse que cu nio posse ver nisso senfo um complemento para esta domindncia que eu concedo a linguagem no determinismo analitico. Isto mostra bem, com efeito, a que grau de confusdo pode-se chegar, dentro de uma certa perspectiva. ato psicanalitico, vocés 0 vem portanto, isso pode consis- tir em interrogar de inicio, e a partir - claro, é bem necessério - do que se considera como devendo ser descartado, o ato tal como é concebido efetivamente no circulo psicanalitico, com a critica do que isto pode comportar. Mas essa conjuncao de duas palavras 26 ‘lo paicanalitico”, pode também evocar-nos qualquer coisa debem \lilerente, a saber, ato tal como opera psicanaliticamente, o que o olcanalista comanda por sua agao na operancia psicanalitica. Ago- 1 aqui, 6 verdade, estamos em um nivel inteiramente diferente. Serd a interpretago? Serd a transferéncia, a que somos assim jwmeticios? Qual é a esséncia disto que, do psicanalista enquanto Sperando, é ato? Qual é sua parte no jogo? E sobre isso que os slas, entre eles, no deixam de se interrogar. A propésito \Ulhno, gragas a Deus, eles produzem proposigées mais pertinentes, tinbora lange de serez univocas ou mesmo progressivas, a0 lon- 0 dos anos. 114 outra coisa, a saber: o ato, diria eu, tal como ele se lé na poleandlise. O que é para o psicanalista um ato? Ser suficiente, ‘elo, para me fazer entender neste nivel, que eu articule, que ew lenibre 0 que todos e cada um de vocés sabem (ninguém o ignora ) nosso tempo), ou seja, © que se chama o “ato sintomiitico”, tao jurticularmente caracterizado pelo lapso da palavra ou ainda por wile nivel que, de modo geral, pode ser classificado no registro da ufo cotidiana, como se diz - donde o termo tao deploravel de “Psi ()patologia da vida cotidiana” para o que, propriamente dizendo, oii seu centro em que se trate sempre, e mesmo quando se trata ilo lapso da palavra, de sua face de ato. Precisamente aqui é que toma sé peso o fato de eu ter cha- iado a atengao para a ambigiiidade deixada na base conceitual da jolcandilise entre motricidade e ato, eé seguramente em razao des- 10) pontos de partida teéricos que Freud favorece este desloca- Iiwento. Precisamente quando, no capitulo ao qual talvez tenha \ompo de chegar logo, relative ao que € a agdo equivocada? - Vergreifung”, como ele designa - de lembra que ¢ bem natural {iese chegue, depois de sete ou oito capitulos, ao campo do ato, jé {we como alinguagem, diz ele, continuaremosaino plano do motor. \o contratio, é bem claro que, em tudo o que esta neste capitulo e j\o que o segue, o das agdes acidentais ou ainda sintomaticas, nao w (vatard jamais sendo desta dimensio que nés colocamos como \itutiva de todo ato, a saber: sua dimensio significante; nada inlroduzido relativamente ao ato, nesses capitulos, sendo isto: que ele & colocado como significante. plean “MX Cr Nao obstante, ndo é tao simples, pois se ele toma seu valor, sua articulagéo de ato significative com relacao ao que Freud en- to introduz como inconsciente, certamente nao é porque ele se apresente, ele se coloque como ato. £ totalmente o contrério. Ele cesta ld, como atividade, mais que apagado e, como diz o interessa~ do, atividede para obturar um buraco que sé esté ld se no se pen- sa nele, na medida em que nao se importe com ele, que s6 esté onde se exprime, por toda uma parte de suas atividades, para ocu- par as méos supostamente distraidas de toda relagéo mental. Ou bem, ainda, este ato vai colocar seu sentido precisamente no que se trata de atacar, de abalar, seu sentido ao abrigo da inabilidade, da falha. Eis aio que é a intervengao psicanalitica, 0 ato portanto, sub- versio parecida com a que fizemos na ultima vez em relagio & mesma face motora do reflexo que Pavlov chama “absoluto”; esta face motora nfo esté no fato de que a perna se estenda porque vocés golpeiam um tendao, esta face motora est 14 onde se tem 0 martelo para provocé-lo. Mas se 0 ato esté na leitura do ato, isso quer dizer que esta leitura é simplesmente superposta, e que é do ato reduzido nachtraglich (a posteriori) que ela toma seu valor ? Vocés sabem a énfase que h4 muito tempo tenho posto sobre este termo que nao figuraria no vocabulério freudiano, se eu noo tivesse extraido do texto de Freud, eu o primeiro e além disso, na verdade, por um bom tempo, o tinico. © termo tem seu valor. Ele nao é somente freudiano, Heidegger o emprega, é verdade que numa perspectiva diferente, quando se trata para ele de interrogar as relagoes do ser coma rede. O ato sintomatico, 6 necessério que contenha j4 em si qual- quer coisa que ao menos o prepare para este acesso, a isto que para nés, na nossa perspectiva, realizaré sua plenitude de ato, mas a posteriori, Insisto nisso, ¢ importante marcé-lo desde j4, qual é esse estatuto do ato? E preciso qualificd-lo de novo ¢ até de inaudito se damos a ele seu sentido pleno, este do qual partimos, este que vale desde sempre, relativo ao estatuto do ato. E que mais? Apés essas trés acep¢Ses, 0 psicanalista nos seus atos, a afirmacao, a saber, o que ele afirma quando tem de dar conta, muito especialmente, do que € para ele este estatuto do ato; esobre islo quis a benevoléncia do destino que muito recentemen- 28 | Det 4 {, num certo meio que é o dos psicanalistas de lingua romana, tenho feito relatérios, apresentagdes sobre como se encara, do ponto de vista do psicanalista autorizado, o quedizrespeito & pas- wiyjem ao ato, e ainda ao acting-out. Bis, afinal de contas, por que {wlo? - um time exemplo a tomar, 0 que fiz alias, ja que esti a Hhonso alcance. Abrio relatério de um deles que se chama Olivier Flournoy, home célebre, terceira geracdo de grandes psiquiatras, 0 primeiro wilo Théodore, o segundo Henri. E vocts satem o caso célebre jrelo qual Théodore continua imortal na tradicacanalitica, essa cla- jividente delirante em cujo nome maravilhoso ele fez toda uma obra, da qual vocés nao poderiam aproveitar-se demais, se ela ca- {nye em stas mAos; creio que nao é encontravel, no momento. En- (Wo, na terceira geragao, esse rapaz nos afirma algo que consiste #1) lomar ao menos uma parte do campo, a que nao tomou o outro olator que falava doactittg-out; ele vai se reporlar ao agir, ecomo, 1 chivida, hé agir - acredita-se, néio sem fundamento - em rela- (lo) tansferéncia, ele antecipa sobre a transferéncia algumas ques- (oon que, além disso, valem proposicdes. Bu nao farei, claro, a sua leitura, pois nada é mais dificil que sijsientar uma leitura diante de um pablico tio numereso. Entre- (onto, para mostrar o tom, eu tomarei o primeiro paragralo que se enuncia aproximadamente assim: “Besta revisao da evolugio recente das idéias tem-se sempre Inpressio de qualquer coisa de obscuro e de insatisfatdrio... mas por que wna regressio implica a transferéncia, quer dizer, a falta ile rememoracto eo agir sob a forma de transformagito do analista por projegao e introjecio, e por que ela ndo implica apenas uma conduta regressiva? Quer dizer, sua prépria est:ulura. Em vires , por que ela evoca a transferéncia? Por que uma siluagao (i/unlilizante implica a transferéncia, e nto uma conduta infantil Iusenda sobre o modelo de uma conduta crianca-pais, fazendo alu- ilo a wn outro registro que pde a énfase sobre o desenvolvimento ( sobre os antecedentes do desenvolvimento e nao mais sobre a (ulegoria propria da regressao que faz alusito as fases demarcadas Nu andlise, até mesmo” acrescenta ele, “repetindo wma situacao (ouflitiva e mesmo dai tirando suas forcas.” B isso o suficiente para conferir a esta conduta o epiteto de transferéncia? O que quero dizer, anunciando jé para vocés a ques- tio introduzida neste tom? Seguramente, e a seqiiéncia o demons- tra, que um certo tom, um certo modo de interrogar a transferéncia, quero dizer, de tomar as coisas bem vivamente e colocando seu proprio conceito tao radicalmente quanto possivel em questio, esta 14; coisa que fiz eu mesmo ha exatamente nove anos e quase meio, no que intitulei “Diregdo da cura e principios de seu poder”. Na verdade vocés podem encontrar no capitulo III pagina 102, “Onde estamos coma transferéncia?”, as questdes que la esto for- muladas, levantadas e desenvolvidas com infinitamente mais am- plidao e de uma forma que na época era absolutamente sem equivalentes. Quero dizer que aquilo que desde entao fez seu ca- minho, néo afirmo, certamente, que gragas 4 minha facilitagio%, mas por uma espécie de convergéncia dos tempos que levou, por exemplo, um chamado Sacht a colocar questdes as mais radicais, relativas ao estatuto da transferéncia. Tao radicais, eu diria, que, na verdade, a transferéncia é considerada como de tal forma a mercé do préprio estatuto da situacdo analitica, que ela é propriamente colocada como aquele conceito que tornaria a psicandlise digna de objecao. Pois as coisas chegaram a tal ponto, que um psicanalista da mais estrita observancia e bastante bem situado na hierarquia americana, nao encontra nada de melhor para definir a transferén- cia, do que afirmar que é um modo de defesa do analista; que ser~ ve para manter a distancia as reagdes, quaisquer que sejam, obtidas na situacdo e que poderiam the interessar muito diretamente, concerni-lo, relevar de sua responsabilidad, propriamente dizen- do; que o analista forja, inventa este conceito de transferéncia, gra- as a0 qual cle separa, julga de forma tal que, em suma, afirma (essencialmente no fundamento radical deste conceito) nao ter ele mesmo participacdo alguma nas ditas reagdes, nao estando lé como analista, mas que simplesmente é capaz de nelas apontar 0 que elas tem de retomada, de reproduc&o de comportamento anterior, de etapas vivas do sujeito que as reproduz, que age em lugar de rememoré-las. Eis entdo de que se trata e o que Flournoy enfrenta, sem dtivi- da com alguma disposigao, mas dando todo o seu lugar a concep- 40 ill, 04. posigao extrema a que parecem reduzidos, dentro da pr6- ria psicandlise, os que se acreditam em posicao de teorizé-la. Se esta posicao extrema, que assim que é introduzida vai até #uay ultimas conseqiténcias, quero dizer que para Sachs tudo re- pounard entio, em ultima andlise, sobre a capacidade de objetivi- tlude estrita do analista, e como isto nao pode ser senéo um postulaclo, toda a andlise por este lado esté votada a uma interro- basto radical, a um questionamento essencial de todo ponto onde la interven, Sabe Deus que eu jamais fui tao longe, e com razio, no ques- {ionamento da anélise, e é com efeito notavel, assim como estra- ho, que nos cfrculos onde ha mais dedicagio em manter soelalmente seu estatuto, as questdes possam, no interior do dito ‘{reulo, ser levadas tao longe a ponto de que se trate de nada me- yon do que de saber se a andlise é, em si mesma, fundada ou ilus6- rin ste seria um fendmeno muito perturbador, se ndo encon- {niniemos neste mesmo contexto © que poderiamos considerar 0 {\nlamento do que se chama a informagio instituida sobre a base \li (otal liberdade. Mas nao esquecamos! Estamos no contexto jiericano, e todos sabem que qualquer que seja a amplitude de \\ina liberdade de pensar, liberdade de “usar a cabeca” e de todas formas em que ela se exprime, nés sabemos muito bem o que inno representa... Poder, em suma, dizer qualquer coisa, porque o {ihe conta é 0 que jé esté efetivamente estabelecido. Em conseqiién- ‘|i, partir do momento em que as sociedades psicanaliticas esto fimemente assentadas em sua base, pode-se muito bem dizer que © conceito de transferéncia é uma balela. Isso nao afeta nada. E lwo que se trata. Muito precisamente, é justo af que, para seguir um outro tom, }\oen0 conferencista se atrapalha e que entao iremos ver o conceito ile Wvonsferéncia ser entregue a discrecao de uma referéncia ao que pode bem chamar afinal uma “historieta”, aquela da qual, sem \\\ividla, cle aparentemente partiu, a saber, a histéria de Breuer, de Hud ede Anna O,, que, entre nés, mostra coisas bem mais inte- smwanites que 0 que se fez dela naquela ocasiao; e o que se fez na~ \wln ocasiao, foi bem longe. Quero dizer que se colocou em relevo 4 Wwlagiio terceira, bem entendido, o fato de que Freud péde de 31 inicio proteger, defender-se como se diz, ¢ sob omodo da transfe- réncia, colocando-se ao abrigo do fato de que, como ele disse A sua noiva - pois naturalmente também existe a noiva nessa explicagio, pois se trata de nada menos do que aquilo que chamei outro dia de ato de nascimento da psicanlise - disse & noiva que sao coisas que certamente s6 podem acontecer a um tipo como Breuer. Um certo estilo de pertinéncia, ou até de audécia facil, vai nos fazer surgir a transferéncia como ligada inteiramente a estas con- jungdes acidentais, tal como mais tarde anuncia um deles, um e pecialista em hipnose, que quando mais tarde o incidente reproduziu-se com o proprio Freud, neste momento, ld entrou a criada. Quem sabe, sea criada nao tivesse entrado, o que teria ocor- rido? Entao Freud péde reestabelecer a situacao terceira; 0 supere- go ctiado* desempenhou seu papel e lhe permitiu restabelecer 0 que é, desde endo, a defesa natural - esti escrito nesse relato que quando uma mulher, ao sair da hipnose, pula no seu pescoco, voce deve se dizer: “mas eu a acolo como uma filha...” Este tipo de “miiben”, de bagatelas, é evidentemente o que faz, cada vez mais, a lei do que chamei ha pouco de ato de afirma- cao do psicanalista. Quanto mais afirma-se cle bagatelas, mais en- gendra respeito. ‘Ainda assim é estranho que nesse relato, sem dhivida isso se vé em muitos signos, e é nesse sentido que eu peco, nesta ocasiao, que vooés tomem conhecimento (isso faré aumentar a venda da proxima revista de psicanilise, érgao da Sociedade Psicanalitica de Paris) para ver se nao ha alguma relacdo entre esta meditacéo ousada eo que eu jé havia enunciado nove anos antes. Na verda- de, a questao ficar eternamente em aberto, jé que 0 autor nessas Tinhas nao nos dé nenhum testemunho, mas algumas linhas, algu- mas paginas depois, acontece-lhe algo, a saber, que no momento ‘em que ele fala, meu Deus, do que est em questéo - pois é uma contribuigao pessoal - 0 tom que ele vem dar as coisas consiste em valorizar o que ele chama nobremente de “relacdo intersubjetiva”. Todos sabem que ao ler apressadamente o Discurso de Roma, pode-se pensar que é disso que eu falo. Pode-se descobrir a di- mensdo da relagio intersubjetiva por outras vias que nao a minha, j& que este erro, esse contra-senso que consiste em acreditar que foi isso que introduzi numa psicandlise que a ignorava completa- 2 mente, foi cometido por muitas pessoas que me cercavam entéo, e jue ao ser formado por elas pode-se bem, com efeito, promover a oxperiéneia intersubjetiva como referencia a lembrarnesse contex- to .E, este contexto intersubjetivo que me parece original na undlise; ele faz explodir as camisas de forca dos diagndsticos ditos ‘afeccito mental’; nao que a psicopatologia seja ume palevra va, cla é certamente indispensdvel para a troca entre individuos fora da experiéncia, mas seu sentido se desvanece durante a cura”. Voces véem o tom; com a ressalva de que entre “nao que a psicapatolo- sia seja uma palavra va” e “ela é certamente indispensével”, um paréntese explode do qual eu pergunto o que o justifica 14: “A este propésito, relendo um escrito de Lacan, fiquei espan- tado de ver que ele falava do doente, ele que se orienta sobretudo para a linguagem”. Esté em meu propésito, voces verao; devo dizer que nao sei om qual de meus escritos eu falo do doente; nao é, com efeito, de forma alguma meu estilo. Em todo o caso, eu nao faria objecao a isso, mas a idéia de refolhear as novecentas e cingtienta paginas dlos meus “Escritos”, para saber onde eu falo do doente, segura- mente nao teria me ocorrido. Na pagina setenta, entretanto, encontro: “o desejo, desejo do jue nao se 4, desejo que ndo pode ser satisfeito, ou ntesmo desejo de insatisfagae tal como Lacan, Lacan no mesmo escrito citado...” (Ah alivio, nés poderemos ir ver)... “abilmente apresenta, a pro- posito da agougueira...” @ ha ama pequena nota. O que eu digo da \cougueira, que é bastante carhecido por ser um trecho particu- larmente brithante, poderfan.os esperar que fosse a isso que se re- inetesse. De forma aiguma, remete-se & agougueira em Freud. Bom, a mim isso me serve, Posso ir procurar, nao a passagem da acou- gueira que vocés encontraréo na pagina 620, mas essa de que se trata: “Este teoria (refiro-me & segunda teoria da transferéncia) a qualquer ponio de rebaixamento a que tenha chegado nesses tlti- mos iempos na Franga (trata-se da relagao de objeto e, como expli- co, de Maurice Bouvet), tem, como 0 genetismo, sua origem nobre. Foi Abraham: que abriu esse registro, a nogto de objeto parcial & sua contribuicao original. Nao é aqui o lugar de mostrar 0 seu va 3 lor, Estamos mais interessados em indicar o elo da parcialidade com o aspecto que Abraham destaca da transferéncia para promové-lo, em sua opacidade, como a capacidade de amar, como se mela (esta capacidade de amar) enconirdssemos um dado cons- litucional no doente que permitisse ler o grau de sua curabi- lidade”... Passo por cima do que segue; esse “no doente” é entio colocado no ativo de Abraham. Peco desculpas por ter desenvolvido ante voces uma histéria tao longa, mas é para fazer o elo entre o que eu chamava, hé pou- co, 0 psicanalista em seus atos de afirmacao e o ato sintomatico, que eu enfatizava no instante anterior. Pois 0 que é que nos traz Freud, na “Psicopatologia da Vicla Coticiana”, justamente a pro- pésito dos erros e precisamente desta espécie? Oque ele nos disse, ¢ disse sabiamente, foi a propésito de trés exros que cle fez em “Interpretacao dos Sonhos”. Fle os vincula expressamente ao fato de que, no momento em que analisa os so- nhos em questio, ele reteve qualquer coisa, deixou em suspenso no progresso de sua interpretacao. Algo foi retido neste ponto pre- iso, poderao ver no capitulo X, que é o dos erros, a propésito de trés desses erros, nomeadamente o da famosa estago Marburg, que era Marbach, de Amilcaré que ele transformou em Asdrubal e de nao sei qual Médicis que ele atribuiu a hist6ria de Veneza’. 0 que é com efeito singular é que foi sempre a propésito de algo onde, em suma, ele retinha qualquer verdade que cle foi induzido a cometer esses eros. Ofato de que seja precisamente ap6s ter feito esta referencia & bela agougueira que era bem dificilmente evitavel, dado que segue ‘um pequeno trecho que estd assim redigido: “Desejo de ter 0 que a outra tem para ser o que mio se é; desejo de ser 0 que o outro é para ter 0 que rido se tent, até desejo de nto ter 0 que se tem, esc...” quer dizer, um extrato bem direto - ¢, devo dizé-lo, um pouquinho am- pliado de uma forma que nao o aprimora - daquilo que escrevi justamente acerca desta diregio da cura, quanto ao que diz respei- toa fungio falica. Nao esta ai indicado 0 fato singular de que esteja grato, atra- vés deste erro evidentemente, sendo pela referéncia irreprimivel a ‘met nome, mesmo se colocado sob a rubrica de ndo sei qual trope- go incompreensivel da parte de alguém que fala sobretudo da lin- 4 \gem, como ele diz? Nao haverd ai qualquer coisa que nos faca ios interrogar? Sobre o que? Sobre o fato qute para uma certa and live, num certo campo da anélise, mesmo que se apéiem expressa- mente no que afirmo, 56 podem fazé-lo com a condicao de orenegar, ou diria, $6 isto j4 nos coloca um problema que, de modo geral, niio 6 outro senao o problema do estatuto atribuido ao ato psicana- litico por uma certa organizacao coerente e que & por enquanto, a «jue reina na comunidade que dele se ocupa. Fazer este comentario, manifestar 0 surgimento, a um nivel que certamente nao € 0 do inconsciente, de um mecanismo que é precisamente aquele que Freud valoriza em relacdo ao ato, eu no diria o mais especifico, mas a nova dimensdo do ato que introduz andlise, isto mesmo (quero dizer, fazer esse paralelo e levantar a questo), isto mesmo é um ato, omeu, Pego apenas perdao que me (enha tomado, para terminar, um tempo que pode parecer desme- suradoa voogs, mas o que eu queria aqui introduzir é algo que me ¢ bem dificil de introduzir diante de uma assembléia tio numero- #0, onde as coisas podem ressoar de mil maneiras inconvenientes. Entretanto, eundo gostaria que fosse entendida de forma inconve- niente anoc&o que quero introduzir. Terei, sem dtivida, que retomé a. Fla tem, vocés vero, sua importancia. Nao surge sem que eu tenha, h muito tempo, com essas férmulas-chave que emprego, anunciado sua vinda, um belo dia. O “Blogio da Babaquice”*. Ha muito que concebi seu projeto. A obra eventual, digamos que afinal de contas, em nossa época, seria coisa a merecer o sucesso verdadeiramente prodigioso, do qual nao podemos nos surpreender, que faz que com que perdure ainda, na biblioteca de todos, médicos, farmacéuticos, dentistas, (O Blogio da Loucura” de Erasmo que, sabe Deus, nao nos atinge mais. OFlogio da Babaquice seria seguramente uma operagio mais util de realizar pois, na verdade, o que é a babaquice? Se a intro- «luzo no momento de dar 0 verdadeiro passo essencial com rela~ io ao que é 0 ato psicanalitico, é para deixar claro que nao é uma nogao. Dizer o que 6, é dificil. E algo como um né, um né em torno lo qual edifica-se muitas coisas e delega-se toda sorte de poderes, que é seguramente algo de estratificado e que nao pode ser consi- dlerado simples. A um certo grau de maturidade, por assim dizer, é mais que respeitavel. Talvez nao seja o que mereca o maximo de respeito, mas certamente é o que granjeia. Fu diria que este respeito depende de uma fungao particular, que é inteiramente ligada ao que nés temos que ressaltar aqui, uma fungio de “des-conhecimento’ , se posso expressar assim ¢, se vo- cés me permitem brincar um pouco, lembrar que se diz “ele babaqueava’™®, Nao haveré af um criptomorfema? Nao seria to- mando-o no presente que surgiria o estatuto solidamente estabe- lecido da babaquice? ‘Actedita-se sempre que é um imperfeito, “ele babaqueava a todo 0 vapor”, por exemplo. Mas é que, na verdade, cis ai um ter- mo que, como 0 termo “eu minto”, sempre oferece resistencia a ser empregado no presente. Seja como for, é muito diffcil no ver que o estatuto da babaquice em questio, enquanto instituida sobre o “ele baba- queava” nao revesie apenas 0 sujeito que o dito verbo comporta. Nesta abordagem, ha uni nao sei que de intransitive e de neutro do género "chove” que faz todo o alcance do dito morfema. O importante 6: ele babaqueia em que? Bem, esté af a caracte- ristica do que chamarei a verdadeira cimensao da babaquice. 6 que este “ela babaqueava” é algo que, na verdade, é o que merece set referido a esse termo, a saber, chamar-se babaquice. B indispensavel apreender a verdadeira dimensao da babaquice coma sendo isto com o que tem a ver 0 ato psicanalitico. Pois se vocés examinam detidamente, especialmente nestes capi tulos que Freud nos poe sob a rubrica do ato equivocado" e sob a dos atos acidentais e sintomaticos, esses atos distinguem-se todos ecada um por uma grande pureza. Mas observem quando se trata por exemplo da célebre histéria de diante de tal porta, tirar suas chaves que sao justamente as que nao serve; tomemos os casos de que fala Jones, porque Freud mostrou a significacio e o valor ‘que pode ter esse pequeno ato, Jones vai nos contar uma historia que finaliza por "Eu teria adorado estar aqiti como ent msinha casa” Dez linhas depois nds estamos no final de uma outra histézia que interpreta 0 mesmo gesto como dizendo: “Ew estaria melhor em minha casa”. Afinal, nfo se trata da mesma coisa! Na pertinéncia da notacio dessa funcao do lapso, da falha no uso da chave a sua interpretagao flutuante, equivoca, nao havera 36 uma indicag&o que vocés reencontrario facilmente ao considerar nil outros fatos reunidos neste registro e particularmente os pri- meitos vinte e cinco ou trinta que Freud nos apresenta? f porque, de algum modo, 0 que 0 ato nos transmite é algo ceguramente figurado de forma significante e para a qual o adjetivo que convi- tia, seria dizer que ndo ¢ tao babaca. sta precisamente nisso o interesse fascinante desses dois ca- pitulos. Salvo que tudo o que se tenta adaptar af como qualifica- Go interpretativa representa desde ja uma certa forma de les-conhecimento, de queda ¢ de evocag4o" onde (6 preciso dizer, om mais de um caso inteiramente radical) s6 podemos reconhecer 4 babaquice, mesmo que o ato nao nos provoque nenhuma deivi- Ja, pois nesse ponto de surgimento do que ha de original no ato intomatico, nao hé nenhuma chivida de que hé uma abertura, um trago de luz, algo de inundante e que por muito tempo nao voltara se fechar. (Qual 6a natureza desta mensagem que Freud ressalta que, a0 no tempo, ele nao sabe que a atribui a si mesmo e entretanto se em que nao seja conhecida? O que & que jaz em ditima injslancia neste estranho registro que parece nao poder ser retoma- lo no ato psicanalitico senio decaindo de seu proprio nivel? Por isto eu queria hoje introduzir, antes de deixé-los, esse ter io escorregadio, esse termo escabroso que, na verdade, nao é fa- cilmente manejével em um contexte social tio amplo, que se nota cortamente 0 quanto de injtiria e de pejoragio se liga na lingua (rancesa a esta estranha palavra, “a babaca”® que, seja dito entre parénteses, nao é encontravel nem no “Littré” nem no “Robert”; somente o “Bloch e vor Wartburg”, sempre, honra Ihe seja feita, nos dé sua etimologia: crimus (latim) Seguramente, para desenvolver qual 6, em francés, a fungao dessa palavra, “« babaca”, entretanto tae fundamental em nossa lingua e nossas trocas, é precisamente o caso onde o estruturalis- no teria lugar para articular a palavra ea coisa, pelo que liga uma 4 outra. Mas como fazer? Como fazer, sendo intraduzindo aqui 110 como uma a interdicao aos menores de dezoito anos; a menos «jue Fosse aos maiores de quarenta. Bi entretanto disso que se trata, e alguém de quem temos as palavras.em um livro que se distingue por uma toda especial (creio aferr 7 que jamais alguém fez essa observagio) auséncia de babaquice, a saber os Evangelhos, disse: “Dai a César o que é de César ea Deus o que é de Deus”. Observem que, naturalmente, ninguém jamais percebeu que é absolutamente impressionante dizer “Dai a Deus”, ‘o.que ele colocou em jogo. Que importa... Para o psicanalista, a lei édiferente. Ela é:“Dai 0 verdade o que é de verdade, ei babaquice o que é da babaquice”. Bem, isso ndo 6 to simples. Porque elas se recobrem e se ha aqui uma dimensio propria & psicandlise, nao é tanto a verdade da babaquice quanto a babaqtice da verdade. Quero dizer que, excetuando o caso em que nés podemos asceptizar, o que equivale a dizer, assexuar a verdade, quer dizer, ando mais fazer, como na l6gica, apenas um valor com um V mai- tisculo que funciona em oposicao a um F maitisculo, em toda a parte onde a verdade é tomada sobre outra coisa, particularmente sobre nossa fungao de ser falante, a verdade se encontra colocada em dificuldade pela incidéncia de algo que é 0 centro no que eu designo, no caso, pelo termo “babaquice", e que quer dizer isto - mostrarei da préxima vez que Freud também o diz neste mesmo capitulo, embora alguns o deixem passar - e que quer dizer que 0 érgaio que di, se posso dizer, sua categoria ao atributo em questo €juslamente marcado pelo que chamarei uma inapropriagio par- ticular ao gozo. E dai que toma seu relevo o cardter irredutfvel do ato sexual 4 toda realizagao veridica. fi disto que se trata no ato psicanalitico, pois 0 ato psicanalitico seguramente articula-se a um outro nivel e ao que, neste outro nivel, responde a esta deficiéncia que experimenta a verdade por sua proximidade do campo sexu- al. Bis o que nos é necessério interrogar em seu estatuto. Para sugerir aquilo de que se trata, tomarei um exemplo: um. dia recolhi da boca de um rapaz encantador que tinha todo o direi- toa ser chamado de babaca, a anedota seguinte. Havia lhe ocorri- do uma desventura: ele tinha um encontro com uma menininha que 0 deixou cair como uma crepe. “Eu compreendi bem, me diz ele, que mais uma vez eva uma ntuther de ndo receber’™. Ele cha- mava isso assim. Oque éesta encantadora babaquice? - pois ele dizia assim, de todo o coragio. Ele havia ouvido sucederem-se trés palavras, ele as aplicava. Mas suponham que ele o tivesse feito de propésito, 38 isso seria um chiste. Na verdade, o simples fato de que eu conte a voeés, de que eu o traga ao campo do Outro, constitui de fato um chiste, efetivamente. E muito engracado para todo o mundo, salvo para ele e para quem o recebe, face a face com ele. Mas desde que se conte, é muito divertido. De forma que estarfamos completa mente errados se pensassemos que falta espirito ao babaca, mes- mo se é numa referéncia ao Outro que esta dimensio se acrescenta. Para expor resumidamente nossa posigao em face desta pe~ quena historieta divertida, é exatamente com isto que sempre lida- mos quando se trata de configurar 0 que apreendemos como dimensdo, ndo no nivel de todos os registros do que se passa no inconsciente, mas, precisamente naquilo que é da algada do ato psicanalitico. Hoje, queria simplesmente introduzir este registro seguramen- \e, vocés o adivinham, escabroso. Mas vero que ele é titil, Notas do tradutor satisfacit -tem o sentido deumatestado dado por um superior como testemunho de satisfac. méprise - trata-se do capitulo VII de “Psicopatologia da Vida Cotidiana”, em que Fretid inicia anuncianco que, depois de ter abordados os lapsos de linguagem, vai estender a idéia de que as falhas so dotadas de sentido e propdsito para erros nas outras atividades motoras além da fala. 3. frayage - tadugio usual para © francés de “balnung”, nogio Introduzida no“Projeto de uma Psicologia”. A “facihtagao” ocasionada por uma primeira passagem de excitagdo, resultaria numa diminuigéo permanente das resisténcias e portanto na constituigio de uma via privilegiada, bonuique - algo como “crisdico”, um adjetivo derivado de criada, empregade. 5, Estéina pagina 604 dos Ecrits, no capitulo Ill da “Directo da Cura”, jazeferido: “Onde estamos com a transferéncia”. 390 10. 1. 12, 13, 14. 40 No original “pirata”, est erroneamente escrito Anibal em vez de Aumilear. Qerrode Freud éreferir-seao pai de Anibal como Asdrubal, nome do irmao daquele, omitindo onomecorteto “Amilear”,o que Freud atribui a uma insatisfago com seu proprio pai. O erro do: original “pirata” também envolve a omissio do nome do pai de Anibal, mas nao sabemos se o lapso é de Lacan ou de quem tomou. as notas. Na verdade, no terceiro exro cometido no texto “Interpretagio dos Sonhos”, Freud afirma que Zeus castrou sex: pai Kronos, endo que Kronos castrou seu pai Urano, A ligagio dos Medici 4 historia de Veneza corresponde a um erro, que Freud chama de “ignorancia temporaria”, ocorrido em um episédio com um paciente, relatado, no mesmo capitulo X. connerie ~a teadugaa por “babaquice” parece ter sido introduzida pelo Dr. Magno, e¢ feliz. por incluir tanto a referéneia a estupidez, quanto por ser derivada de palavrachula quedesigna oorgaosexttal feminino. dé-connaissance - ests no lugar da palavra adequada no francés méconnaisance, para desconhecimento. Esta consirucio evoca um duplo sentido, com o verbo déconner, que é explorado a seguir. déconner - verbo intransitive, popular - dizer ou fazer besteiras. Note-se que a seguir, Lacan emprega repetidamente déconnait, jogando com a homofonia entre as terceiras pessoas do singular do imperieito de déconner e do presente de commattre (conhecer) precedido da particula de que indica privacéo. ‘Trata-se doscapitulos VIlleIXde’Psicopatologia da Vida Cotidiana”. Lacan usa a palavra méprive, para traduzir 0 original vergreifen. Strachey sugere "bungled action” eEtcheverry “operacion fallida” évocalion - evocagao. O sentido eniretanto sugere “equivocagio”. con -orgao sexual feminino, babaca, comoadjetivo, muito estiipido. ferme de non recevoir -fin de non recevcit significa no campo do direito, a ndo aceitagio de uma demanda. O rapaz troca fit por ‘femme, que tem som semelhante. Talvez, femme de non recevoir, mulher que nia recebe, signifique mulher que nao dé, fria. Talvez, mulher que no se recebe, de m4 reputacio. Seminario de 29 de Novembro de 1967 No inicio de um artigo sobre a contratransferéncia publicado em 1960, um bom psicanalista para quem abriremos um certo es- paco hoje, o Dr. Winnicott, diz que a palavra “contratransferén- cia” deve ser remetida ao seu uso original, e a propésito disso, para opor a ela, langa mao da palavra “self”. Uma palavra como clf, diz ele, aqui é preciso que eu use o inglés, “naturally knows ore thant we do”: sabe naturalmente mais do que nds podemos saber ousabemos. fi uma palavra que, dizele, “sises and commands us" se encarrega de nés, pode nos comandar, se posso dizer as- sim. FE uma observacdo, meu Deus, que tem bem seu interesse en- contrar escrita por alguém que, como vocés verao, nao se distin- jjue por uma referéncia especial 3 linguagem. Este traco me pareceu instigante, e o seré ainda mais a partir lo que hoje terei que recordar para vocés deste autor. Mas, além disso, tem seu valor para voets pelo fato de que, suspeitem ou no, eé-los integrados em um discurso que evidentemente muitos le voces ndo podem aprender no conjunto. Quero dizer que o que desenvolvo este ano 56 tem seu efeito a partir do que precedeu e no é porque s6 chegam a ele agora, se este € 0 caso de alguns de voces, que estejam menos submetidos a seu efeito. Curiosamente, por esta razdo é que, em suma, este dis- at curso - talvez. vocés achem que eu insisto um pouco demais nesse sentido - nao é diretamente dirigido a vocés. E dirigido a quem? Meu Deus, eu repito a cada vez: aos psicanalisias, e em condicdes ta's que ¢ preciso dizer que ele lhesé dirigido a partir de uma certa atopia. Atopia que seria a minha prépria ¢ da qual, portanto, é preciso dizer as razdes. Precisamente estas razGes que vio encon- trar-se aqui, quero dizer hoje, um pouco mais acentuadas, Ha uma re’6rica, por assim dizer, do objeto da psicandlise que, como de- fendo, é ligada a um certo modo de ensino da psicandlise que é 0 das sociedades existentes. Esta relagdo pode nao parecer imediata - por que haveria de ser? - a nao ser que, a0 preco de uma certa investigagio, seja possivel apreendé-la como necesséria. Para partir dai, ou seja, de um exemplo do que ets chamaria uri saber normativo sobre o que é uma conduta til, com tudo 0 que isso pode comportar de extensdo sobre o bem geral e sobre bem particular, tomarei uma amostra que, valha o que for, valera pelo fato de que ela ¢ tipica e, simplemente, produto da pena de um autor bem conhecido. Por pouco que vocés estejam iniciados ao que é 0 método psi- canalitico, devem saber em linhas gerais do que se trata: de falar durante semanas e meses, & razio de varias sessbes por semana, € de falar de um certo modo particularmente desprendido, em con- digdes que, precisamente, abstraem-se de toda a perspectiva rela- tiva a essa referéncia A norma, ao util; talvez precisamente para voltar a ela, mas a principio para liberar-se, de forma tal que o circuito, antes de retornar a isso, seja o mais amplo possivel. Creio que as linhas que escolho, tomadas onde esto, ou seja, precisamente no cabegalho do artigo de um autor que o publicou noano de 1955, colocaram em questdo o conceito de cardter geni- tal. is af, aproximadamente, de onde cle parte, para efetivamente trazer uma critica sobre a qual nao preciso me estender: hoje é do estilo que se trata. E um trecho do classico Sr. Fenichel, na medida em que, segundo a declaracéo do autor (quero dizer que o autor deixa isso muito claro), Fenichel faz. parte da base deste ensino da psicandllise nos institutos. Um caréter normal, genital, é um conceito ideal, diz ele; en- tretanto cle esté certo de que a realizago da primazia genital com- 2 porta um avango decisivo na formagio do cardter. O fato de ser capaz de obter plena satisfacdo pelo orgasmo genital torna a regu- Jacilo da sexualidade, regulagao fisiolégica, possivel,e isto poe um rmo ao “damming up”, quer dizer, a barreira, ao represamento das energias instintuais com seus efeitos daninhos sobre 0 com- portamento da pessoa. “Contribui também para o pleno desenvol- vimento do ‘love’, do amor, e do édio”, acrescenta entre parénteses, quer dizer, a superagao da ambivaléncia. Por outro lado, a capaci- dade de descarregar grandes quantidades de excitagio significa o fim das “reaction formations”, formagées reativas, eum aumento a capacidade de sublimar. O complexo de Edipo e os sentimentos inconscientes de cul- pa, de fonte infantil, podem agora ser realmente superados, Quan- [ods emogées, estas nao sao mais guardadas em reserva mas podem valorizadas pelo ego; formam uma parie harmoniosa da perso- nalidade total. Nao hé mais nenhuma necessidade de se proteger dos impul- wos pré-genitais ainda imperativos no inconsciente. Sua incluso ha personalidade total -eu me exprimo como o texto- sob a forma de tragos ou de impulsos da sublimagio, torna-se possivel. Noen- lanto, nos cardteres neuréticos, os impulsos pré-genilais retém seus caracteres sexuais e perturbam as relacGes racionais com os obje- tos. Enguanto é assim nos neuréticos, no cardter normal eles ser- vem, enquanto parciais, & finalidade de pré-prazer ou de prazer preliminar, sob a primazia da zona genital. Mas na medicla em que apresentem em uma proporgio maior, séo sublimados e subor- dinados ao ego & “reasonableness”, & “razoabilidade”, creio que ndo se pode traduzir de outra forma. Nao sei o que inspira a vocés um quadro tao encantador e se cle Thes parece atraente. Nao creio que quem quer que seja - analis- la ou nao - por pouco que tenha de experiéncia dos outros e de si mesmo, possa por um instante levar a sério essa estranha noveli- nha. A coisa é falsa, totalmente contrézia & realidade e a0 que ensi- na a experiéncia. Também me entreguei, em um texto meu que evocava outro dia, o da “Direcao da cura”, a algumas zombarias, 6 claro, sobre a que nos leva, num contexto diferente ¢ inclusive sob uma forma 43 Titerariamente muito mais vulgar, o tom em que se podia falar em certa época, a0 redor de 1958, da primazia da relacao de objeto e das perfeigdes em que cla atingia as efusdes de alegria interna, re- sultantes de ter atingido este estado culminante, ou melhor dito, ridiculo e na verdade nao valendo nem mesmo a pena de uma independente de quem foram, na época, os auto- A singularidade é se perguntar como tais enunciagies podem manter - eu nao diria o aspecto de seriedade, de fato elasnao otém para ninguém - mas que parecam responder a uma certa necessi dade relativa, como se dizia no inicio do que é aqui enunciado, de um tipo de ponto ideal. Este teria ao menos virtude de represen- tar sob uma forma negativa, a auséncia, portanto, de todos os in- convenientes que seriam levantados, que seriam 0 ordinario dos outros estados. Nao se pode encontrar outro motivo para essa id Naturalmente, isto deve ser salientado na medida em que podemos apreender 0 mecanismo em sua esséncia, a saber, reco- nhecer em que medida o psicanalista 6 de alguma forma chamado, e até constrangido - com fins que so abusivamente chamados de didaticos -a sustentar um discurso que, em suma, poder-se-ia di- zer que nada tem a ver com os problemas que Ihe prapde, e da maneira mais aguda, a mais cotidiana, a sua experiéncia. Oassunto tem, na verdade, um certo alcance, na medida em que permite perceber - e isto nao é dizer pouco - que um discurso. que produz um certo ntimero Ge clichés, nao se torna menos, até um certo ponto, inoperante a reduzi-los, seja no contexto psicana- Iitico, seja mais ainda quanto a organizagiio de ensino. Claro, nin- guém acredita mais em um certo ntimero de coisas, nem fica muito & vontade em um certo estilo classico. Mas no fundo, em muitos pontos, campos de aplicagao, nao é menos verdade que isso nao modifica nada. Quero dizer que também podemos ver meu dis- curso, em certas de suas formas, de suas frases, de seus enuncia- des, até suas inflexdes, ser simplesmente retomado em um contexto que, no fundo, no muda nada. Eu tinha perguntado, faz bastante tempo, a uma pessoa que pudemos ver aqui, em outra época, frequentando assiduamente 0 que eu tentava ordenar, eu tinha perguntado: “Afinal, dades suas posigaes gerais, 0 que é que vocd pode encontrar de proveitoso cm eguir minkas conferéncias?” Meu Deus, com o sorrise de alguém que se entende, quero dizer, de alguém que sabe bem o que quer dizer, ele me responde: “Ninguém fala da psicarsélise assim”. Gra- Js a0 que, claro, isto Ihe dé matéria e escolha para aerescentar a 1 discurso um certo nimero de omamentos, de floreios, o que no © impede, quando surge a ocasido, de referir radicalmente a \endéncia, suposta por cle, constitutiva de uma certa inércia psi- quica, de referir radicalmente o estatuto, a ordenasao da propria sessiio analitica - quero dizer em sua natureza, em sua finalidade lambém - a um retomo que se produziria por uma sorte de ten- déncia, de deslizamento - tudo o que hé de mais natural -em dire- jo a esta fusio, onde algo foi essencialmente, devido A sua hatureza, essa pretensa fusdo suposta na origem entre infante e corpo materno, e é no interior desta sorte de figura, de esquema fundamental, que se produziria 0 que? Meu famoso “isso fala” Vocés podem ver bem o uso que se pode fazer de um discur- 80 a0 divulgé-lo seccionado de seu contexto, jé que ao dizer “isso fala” a propésito do inconsciente, eu nao quis estritamente jamais falar do discurso do analisado - como se diz de maneira impré- pria, seria melhor dizer o analisando, nés voltaremos a isso a se- juir - e na verdade, salvo se quiser abusar de mex discurso, corlamente ninguém poderd supor que haja nele o que quer que sja, na aplicacao da regra que depende em si do “isso fala”, que o sugira, que 0 convoque. De forma alguma, pelo menos, vejam vo- 00s, teria eu tido esse privilégio de ter renovado depois de Freud, depois de Breuer, o milagre da gravidez nervosa; se esta forma de evocar a coneavidade do ventre materno pode representar o que se passa no interior do consultério do analista, é exatamente, com {eito, 0 que se encontra justificado a um outro nivel, eu teria reno- vado esse milagre, mas sobre os psicanalistas. Isso quer dizer que eu analiso os analistas? Porque afinal poder-se-ia dizer isso, é mesmo tentador, ha empre espertinhos para encontrar assim formulas elegantes que resumem a situacao. Gragas a Deus, também jé coloquei uma bar- reira ao avango por este lado, escrevendo (nso sei se ji apareceu) em algum lugar uma pequena resenha que fiz de meu semindrio do ano passado, chamando a atencio para estas duas formulas: que ndo hé em minha linguagem 0 Outro do Outro, o Outro, neste caso, escrito com O maitisculo, Que nfo hé, para responder a um velhomurmiirio de meu semindrio de Sainte-Anne, lastimo muito dizé-lo, a verdade sobre a verdade. Do mesmo modo, nao se deve considerar, de forma alguma, a dimensao da transferéncia da trans- feréncia. [sso quer dizer, nenhuma redugio transferencial posst- vel, nenhuma retomada analitica do estatuto da propria transferéncia. Estou sempre um pouco embaracado, dado o ntimero dos que ocupam esta sala este ano, quando apresento formulas deste tipo, jA que pode haver af alguns que no tenham nenhuma espécie de idéia do que é a transferéneia, afinal de contas. f, inclusive, 0 caso mais corrente, sobretudo entre os que ja ouviram falar dela. Vocés overdo, a seguir, na seqiiéncia do que tenho a dizer hoje. Marquemos aqui, embora ja o tenha afirmado na ultima vez, que a esséncia desta posigdo do conceito de transferéncia € que este conceit permite ao analista -é inclusive assim que certos ana- listas, jé 0 adiantei na tiltima vez e, meu Deus, quao inutilmente, se acreditam no dever de justificar o conceito de transferéncia em nome de que, meu Deus? De algo que lhes parece, a eles mesmos, suito ameagado, muito fragil, a saber, uma espécie de superiori- dade na possibilidade de objetivar, de objetivacdo ou de qualida- de de objetividade eminente, que seria aquilo que 0 analista teria adquirido e que Ihe permitiria, em uma situagao aparentemente presente, estar no direito de referi-la a outras situacdes que a expli cam e que ela ndo faz mais que reproduzir, comportando, portan- to, este acento ilusério ou de ilusdes. JA diese que esta questao que parece impor-se, que parece in- clusive comportar uma certa dimensao de rigor para aqueles que formulam algum tipo de interrogagio, de critica, Longe disso, uma questao puramente supérflua e va, pela simples razfo de que a transferéncia, seu manejo como tal, a dimensio da transferéncia é a primeira face estritamente coerente com © que estou em vias de tentar produzir este ano ante vocés sob o nome de ato psicanaliti- co. Fora do que chamei manejo da transferéncia, nao ha ato anali- tico. 46 © que se trata de compreender, ndo é a legitimagio da trans- for@ncia em uma referéncia que fundaria sua objetividade, é que se perceba que nao ha ato psicanalitico sem essa referéncia. Certa- niente enuncié-lo assim nao é dissipar toda objecto, mas é justa- mente porque enuncid-lo assim nao € designar aquilo que constitui easéncia da transferdncia, 6 por isso que precisamos seguir mais adiante. Que sejamos forcades a fazé-lo, que eu tenha a necessidade le fazé-lo ante vocds, pelo menos sugere que este ato analitico é precisamente o que teria sido menos elucidado pelo proprio psica- halista. Mais ainda, o que foi quase completamente eludido. E por {jue no? Por que, em todo 0 caso, nao se interrogar para saber se a \iluagiio nao é assim porque, este ato s6 pode ser, afinal, eludido? Por que ndo? Por que nao? Até Freud e sua interrogagio da psico- patologia da vida cotidiana, isso que nés chamamos atualmente, 0 ue 6 corriqueiro, o que esté ao alcance de nossos modestos enten- dimentos sob o nome de ato sintomatico, de ato falho, quem pen- ou e, inclusive quem pensa até agora, em lhes dar o sentido pleno da palavra ato? Apesar de tudo, apesar de que Freud diz que a ici¢ia de falha € apenas um abrigo atrés do qual se dissimulam os \tos propriamente ditos, isso de nada adianta, continua-se a pensé- Jog em fungao da falha, sem dar um sentido mais pleno ao termo ato” Por que, entio, néo sucederia o mesmo no que concerne a0 ato analitico? Seguramente o que poderé nos esclarecer, sera se nos pudermos, nés, dizer dele qualquer coisa que tenha maior al- cance. Em todo 0 caso, é bem possivel que ele néio possa ser sendo cludido, se, por exemplo, o que acontece quando se trata do ato, € que ele seja, em particular, inteiramente insuportivel, insuporté- vel quanto a que? Nao se trata de qualquer colsa de insuportavel wubjetivamente, pelo menos eu nio 0 sugiro. Porque nao insupor- Livel como convém aos atos em geral, insuportavel em alguma de ‘uias conseqiiéncias? Eu me aproximo, vocés notam, por pequenos loques, nao posso falar sobre isso om termos imediatamente alar~ deados, por assim dizer; ndo absolutamente que eu nfo o faga oca~ sionalmente, mas porque aqui, nesta matéria que é delicada, trata-se evitar, antes de tudo, o mal-entendido, a Essa conseqiiéncia do ato analitico, dirdio voces, ela deveria ser bem conhecidla, ela deveria ser bem conhecida pela andlise die ditica. $6 que, quanto a mim, cu falo do ato do psicanalista. Na psicanillise didatica, o ato psicanalftico nao ¢ atribuicao do sujeito que, como ele diz, submete-se a cla. Nao € por isso que ele nao poderia suspeitar daquilo que resulta para o analista do que se passa na anélise didatica. S6 que as coisas esto até agora de tal modo, que tucio é feito para que Ihe seja ocultado, mas de uma maneira totalmente ra cal, o que ocorre no final da psicandlise didatica do lado do psica- nalista. Esse ocultamento, que é organicamente ligado ao que eu cha- mava, ha pouco, de organizagao das soctedades psicanaliticas, poderia ser, em sua, um pudor sutil, uma maneira delicada de deixar algo em seu lugar, supremo refinamento de polidez extre- mo-oriental. Nao é nada disto. Quero dizer que nao é absoluta- mente por este Angulo que as coisas devem ser consideradas, mas antes pelo que disto repercute sobre a propria psicandlise didatica, ou seja, que em razio mesmo dessa relagio, dessa separacdo que acabo de articular, resulta que o mesmo “black out" existe sobre o que concerne o fim da psicanalise didética Escreveu-se, de qualquer modo, um certo ntimero de coisas insatisfatérias, incompletas, sobre a psicandlise didatica. Escreveu- se também coisas bem instrulivas, por seus defeitos, sobre o térmi- no da andlise, Mas nao se conseguiu estritamente jamais, formular = quero dizer, preto no branco - nao digo © que quer que seja de valioso, o que quer que seja, sim ou no... mas nada, sobre o que pode ser o fim, em todos 08 senticios cla palavra, da psicandlise didatica. Deixo aqui apenas em aberto a quesiio de saber se existe uma relagio, uma relacao a mais estreita, entre esie fato eo fato de que nada também jamais tenha sido articulado sobre o que diz respei- to ao ato psicanalitico Euo repito, sc 0 ato psicanalitico é muito precisamente isso a que o psicanalista parece opor 0 mais arrebatado desconhecimen- 10, isto esté ligado nao tanto a uma espécie de incompatibilidade subjetiva, o lado subjetivamente insustentavel da posicao do ana- 48 lista, o que seguramente pode ser sugerido, Freud nio faltoua isso, mas bem mais Aquilo que, uma vez, a perspectiva do ato aceita, ) resultaria quanto a estimativa que pode fazer o analista da- quilo que recolhe quanto a ele, nas conseqiiéncias da andlise, na propria ordem do saber. Ja que, afinal, tenho aqui um piiblico no qual parece -embora | duas ou trés vezes, eu nao avalie muito bem - no qual ha uma corla proporgdo de filésofos, espero que no me queiram mal, jé aconteceu, exatamente em Saint-Anne, obter uma tolerancia que chegou a esse ponto: ocorreu-me de falar todo um trimestre e até uum pouco mais do “Banquete” de Plato, justamente a propésito da transferéncia. Lom, eu pediria hoje que pelo menos alguns, se isso puder Jhes interessar, abrissem um diélogo que se chama o “Ménon”. Ocorreu-me falar todo um trimestre do “Banquete” de Plato, a propdsito da transferéncia, Hoje eu pediria a vocés que abram 0 Ménon”. Aconteceu outrora que meu caro amigo Alexandre Koyré te- nha querido nos dar a honra e a generosidade de nos falar do Menon”. Nao durou muito. Os psiedlogos que estavam lé, disse ram: “Esté bowt por este avo, mas agora chega, hem! Mas nio, mas ilo, mas ni... Entre pessoas sérins, nfo € desta agua que nds bebemos". Entretanto, asseguro a vocés que nao terdio nadaa perder seo praticarem um pouquinho, simplesmente reabrindo-o. Encontrei ho pardgrafo 85, segundo a numeracao de Henri Estienne: “Ele saberd, portanto, sem fer tido mestre, gragas a simples iuterrogagées, tendo encontrado por si mesmo, em si mesmo, sua Ea réplica seguinte: “Mas encontrar por si mesmo, em si, sua ci amente se recordar? Essa ciéncia que ele possui agora, nao é necessirio que, om bem ele a tenka recebido a un certo momento, ou bem que sempre a tenha possuido?" Afinal, a questo colocada nesses termos dé aos analistas a impresso de que hé nela algo de que nao se esté bem certo que se ancia, nfo é preci- 49 aplique - quero dizer, da forma em que é dito neste texto - mas que, enfim, serve para nos recordar algo... De fato, é um didlogo sobre a virtude, Chamar isso “a virtu- de", nao € pior que outra coisa. Para muitos, esta palavra eas pala- vras semelhantes a ela ressoaram diversamente desde entdo, através dos séculos. E certo que a palavra “virtude” tem atualmente uma amplitude, uma ressonancia, que nao é absolutamente a da “aveté” da qual se trata no Ménon, jé que em suma,a “areté” estaria, antes, do lado da procura do bem. E surpreendente apreendé-la no senti do do bem hucrativo ¢ titil, como se diz. O que é de molde a nos fazer perceber que nés, também nés retornamos a isso, que nao 6 absolutamente sem relacao com o que apés este longo desvio che- goua formular-se no discurso de um Bentham. Jé fiz referéncia ao utilitarismo, em tempos ja remotos, quando tomei a cargo enumci- ar durante um ano, algo que se chamava a “Etica da Psicandlise”. Sendo me falha meméria, foi o ano 1958-59, a menos que nao seja isso; depois, no ano seguinte, foi “A Transferéncia”. Como faz quatro anos que falo aqui, uma certa correspon- déncia poderia ser feita de cada um desses anos com dois, na or- dem dos anos de meu ensinamento precedente. Chegarfamos entao, aonivel deste quarto ano, a algo que responde ao sétimo e 20 oita- vo ano de meu seminério precedente, fazendo eco, de alguma for- ma, ao ano sobre a ética, o que se 1d bem no meu cnunciado mesma do ato psicanalitico; ¢ o fato de que esse ato psicanalitico seja algo deinteiramente ligado, essencialmente, ao funcionamento da trans- feréncia, eis o que permitira a alguns, pelo menos, situar-seem um certo percurso que é0 meu. Portanto, trata-se de “areié”, ¢ de uma “areté” que de saida nnns coloca si1a questinem nim registro que nao 6 de forma alguma para desorientar um analista, j4 que se trata de um primeiro mo- delo dado daquilo que significa esta palavra no texto socratico so- bre a boa administracia politica, quer dizer, a cidade, quanto aa que se refere ac homem. E curioso que, desde os primeiro tempos, apareca a referéncia A mulher, dizendo que, meu Deus, a virtucle da mulher é a boa organizacko da casa. Mediante o que, ci-los, todos os dois, no mesmo passo sobre o mesmo plano, nao ha dife- renga essencial e com efeito, tomando-o assim , por que nao? 50 Ku 86 recordo isso porque, entre as mil riquezas que serdo Wiigestivas para voces no texto, se o quiserem ler de ponta a ponta, poderao nele descobrir que a caracterfstica de uma certa moral, e mais precisamente a moral tradicional, foi sempre a de cludir, mas isso é admiravelmente bem feito, escamoteando de solda, nas primeiras réplicas, de forma que nao se tenha mais que {olare nem mesmo colocar a questo -justamente tdo interessante para nés, analistas, enquanto somos analistas, claro - de saber se hilo ha um ponto onde a moral do homem e da mulher talvez pu- m se distinguir, no momento em que se encontram juntos em \uma cama, ou separadamente. Mas isto é prontamente eludido no que diz respeito a uma Virlucle que jé podemos situar em um terreno mais ptiblico, mais, ambiental. E por este fato, as questdes colocadas podem proceder (le uma forma que 6 aquela pela qual Sécrates procede, e que vem Jogo colocar a questo de saber como jamais se poderia chegar a conhecer, por definigdo, o que nao se conhece, jé que a primeira condligdo para saber, para conhecer, é saber de que se fala. Como he verifica apés uma longa troca de réplicas com seu parceiro, que 60 Ménon em questao, surge isso que vocés conhecem e que vem has duas ou trés frases que li hé pouco para voces, ou seja, a teoria la reminiscéncia. Vocés sabem do que se trata, mas vou retomé-la. E tempo de desenvolvé-da, de mostrar o que quer dizer, o que pode querer di yor para nés, em que ela merece ser destacada. Que se diga, que se exprima que a alma, por assim dizer (6a linguagem que se usa, em todo o caso, neste didlogo), nada mais faz quando é ensinada do que se recordar, isso comporta, tanto nesse texto quanto no nosso, a Idéia de uma extensio sem fim, ou \nites de uma duragao sem limites, no que diz respeito a esta alma. 1 oproximadamente isto que nés também afirmamos, quando nos cencontramos na falta de argumentos aos quais recorrer, j& que nao percebemos muito bem como pode acontecer, na ontogénese, que \s coisas, sempre as mesmas ¢ tio tipicas, se reproduzam; se ape- amos para a filogénese, néo vejo muita diferenga. Depois, além disso, onde € que se vai procurar esta alma, para demonstrar quenio é senao recordar-se tudo o que ela pode apren- 51 der? E bem, de fato, o gesto significativo, 4 sua época, que é 0 de. Socrates: "Vé Ménon, vou te mostrar; vé, tens af te escravo, ele seguramente jamais aprendeu nada em tua casa, umt escravo cont= pletamente cretino”. Interrogando-o ecom um certo modo, com efeito, deinterrogaé- lo, chega-se a fazé-lo soltar coisas, meu Deus, bastante sensatas, que nao véo muito longe no dominio da matematica. Trata-se do que acontece ou do que énecessério fazer para obter uma superii- cie que seja o dobro daquela da qual se parti, no caso de um qua- drado. O escravo responderé sem reflexdo, que é suficiente que o lado do quadrado seja duas vezes mais longo. F facil fazé-lo perce~ ber que com um lado duas vezes mais longo, a superficie seré qua~ tro vezes maior. Mediante o que, procedendo do mesmo modo, pela interro- gacio, encontraremos rapidamente a boa forma de operar, que é operar pela diagonal, tomar um quadrado do qual o lado é a dia~ gonal do precedente. O que temos em todas essas brincadeiras, essas diversdes das mais primitivas, quendo vao nem mesmo tio longe quanto, jd nes: ta época, podia-se ir quanto ao cardter irracional da raiz de dois, 6 que nés tomamos um sujeito extra-classe, um escravo, um sujeito que nao conta. Quanto ao que se trata de levantar, ou seja,se a virtude é uma cigncia, ha algo de mais engenhoso e cle melhor que vem em segui- da. Tudo bem pesado, é certamente a melhor parte, o melhor tre~ cho do didlogo: no ha cigncia da virtude. O que se demonstra facilmente pela experiéncia, mostrando-se que aqueles que fazem profissdo de ensinar so mestres bastante criticaveis, trata-se dos sofistas, equc quanto Aqueles que poderiam ensinax, ou scja, aque- les que sao eles préprios virtuosos (quero dizer virtuosos no sent do em que a palavra virtude é empregada no texto, a saber,a virtude do cidadao e a do bom politico), é muito claro que, como é desen- volvido em mais deum exemplo, eles nao sabem nem mesmo trans- miti-la a seus filhos. Ensinam outra coisa a seus filhos. De forma que nés chegamos, afinal, a que a virtude esta bem mais préxima da opinigo verdadeira, como se diz, do que da cién- cia. Ora, a opinido verdadeira, donde nos vem ela? Bom, do céu. 52 bis a terceira caracteristica de algo que tem isso de comum, € {jue 0 que nos nos referimos 6, a saber, ao que se pode aprender. Vols percebem o quanto é préximo - eu sou prudente - da nota- iho que eu fago sob 0 termo sujeito.O que se pode aprender, é um jujeito que tem jé esta caracterfstica primeira de ser universal: to- los 08 sujeitos esto a esse respeito no mesmo ponto de partida; pun extensao é de uma natureza tal que isso Ihes supde um passa- ilo infinito, ¢ portanto provavelmente um futuro que nao o € me- ‘ios, ainda que a questao sabre o que diz respeito & sobrevida nao jojo abordada neste didlogo. Nos no estamos no mito de Er, o Arménio, mas seguramen- (e que a alma tenha, desde sempre, e de uma forma propriamente dita imemorial, armazenado 0 que a formou a ponto de torné-la capaz.de saber, eis o que nao apenas nao é contestado aqui, como utd no proprio principio da idéia de reminiscéncia. ‘Que este sujeito seja extra-classe, eis um outro termo, que seja byoluto, no sentido de que ele nao é- estd expresso no texto, como a cléncia marea com o que af se chama um termo que faz verdadei- sumente ecoa tudo 0 que aquinés podemos dizer - que néo é mar- cado de concatenacio, de articulacao légica, no estilo proprio de nossa ciéncia. Esta “opiniao verdadeira”, é algo que faca com que ola seja bem mais, € dito ainda, da ordem da noua, da poesia? Lis aonde somos levados pela interrogagao socritica. Se ponho tanta énfase nisso, é para que vocés notem 0 que pode significar, neste ponto arcaico mas ainda presente da interro- jaciio sobre o saber, o que pode significar algo que nao foi isolado antes que eu o fizesse, especificamente a propésito da transferén- cia: a fungéio que tem, nem mesmo na articulacao, mas nos pressu- postos de todo o questionamento sobre o saber, o que eu chamo “o ‘ujeito suposto saber”. As questdes sao colocadas a partir de que oxiste esta fungao em algum lugar, chamem-na como quiserem, aqui ela aparece em todas as suas faces, evidente por ser mitica, que ha em algum lugar algo que desempenha a fungao de sujeito suposto saber. J interroguei aqui, a propésito de um ou outro desenvolvi- mento, avango, impulso de um certo setor de nossa ciéncia; sera que ndo se coloca a questa de onde estava? Como podemos con- 53 ceber antes de que alguma, por exemplo, dimenséio nova na con cep¢do matemética do infinito, ser que, antes de ser forjada esta dimensao, nés podemos concebé-la como sendo sabida em algum. lugar? Ser que jé podemos consideré-la como sabida desde sem- pre? Esta 6 a questo, Nao se trata de saber se a alma existia antes de encarnar-se, mas simplesmente de saber se essa dimensio do sujeito enquanto suporte do saber 6 algo que deva estar de alguma forma pré-estabelecido em relagao as questdes sobre o saber, Notem, quando Sécrates interroga 0 escravo, 0 que € que ele faz? Ele apresenta, mesmo niio sendo no quadro, como é um dese nho muito simples, pode-se dizer que ele apresenia o desenho deste quadrado e, além disso, a forma pela qual ele raciocina é sob 0 modo primeiro de uma geometria métrica, a saber, pela decompo- sigo em tridngulos e contagem dos triangulos de igual superticie. Mediante 0 que, é facil mostrar que o triangulo construido sobre a diagonal compreenderé justo o numero de quadradinhos necessa- rio com relagio ao primeiro ntimero, e que se o primeiro nimero era de quatro quadrados, ele tera oito deles, procedendo desta for- ma. Ainda assim, trata-se bem de um desenho e, interrogando 0 escravo, a questao nao foi inventada por nés, jé foi percebido ha bem mais tempo que este procedimento nao tem nada de demons- trativo na medida em que, longe de que Sécrates possa usar como argumento 0 fato de que o escravo nunca fez geometzia e de que nao Ihe foram dadas aulas, a prépria maneira de organizar o dese- nho, por parte de Sécrates, jé € dar ao escravo, como é bem eviden- te, uma aula de geometria, Mas a questao, para nds, nao esta nisso. Ela deve, se posso dizer, ser considerada nestes termos: S6- crates traz um desenho. Se dizemos que no espirito de seu parcei- 10 jé existe tudo o que responde ao que Sdcrates traz, isso pode querer dizer duas coisas que eu exprimiria assim: ow bem & um desenho,eu nao diria uma duplicacao, ou, para empregar um ter- mo moderno que responde 20 que chamamos uma funcao, a sa~ ber, a possibilidade de aplicagio do desenho de Sdcrates sobre 0 seu ou inversamente. Nao é, seguramente, nada necessério que se trate de quadrados corretos, nem em um caso, nem no outro, mas digamos que em um caso seja um quadrado segundo uma proje- cdo de Mercator e, vale dizer, um quadrado quadrado e, no outro 10, algo de diversamente retorcido. Nao é menos verdade que a correspondéncia ponto a ponto é o que da a relegio do que apze- venta Sécrates com aquilo pelo qual lhe responde seu interlocutor, tum valor muito particular que é 0 da decifragao. Isso nos interessa, nds analistas, j& que, de uma certa maneira, é isso 0 que quer dizer nossa anélise da transferéncia na dimensao interpretativa. E na medida em que nossa interpretagao liga de uma outra maneira uma cadeia, que entretanto é uma cadeia e, desde jé, uma cadeia de articulagao significante, que ela funciona. E depois, hé outra forma de imaginar possivel. Em vez de perceber que ha dois dese- nhos que nao so, & primeira vista, o decalque um do outro, pode- mos supor uma metdfora, a saber, que nao ha nada que se veja, digo do lado do escravo, mas uma forma da qual se pode em cer- los casos dizer: isso € um desenho. Voces nao verdio nada, mas é necessdrio expé-lo ao fogo - voces saber que existem tintas que se chamam simpaticas - e 0 desenho aparece. Ha entio, como se diz quando se trata de uma placa sensivel, revelacio. Sera que é entre estes dois termos que se faz o suspense disso que se trata para nés, na andlise, uma retraducao? (Digo “re” por- que, nesse caso, desde jé, a primeira inscrigdo significante jd é a traclugdo de algo). Seré que a organizacio significante do inconsci- ente estruturado como uma linguagem é isso sobre o que nossa interpretagéio vem se aplicar? Ou sera que, pelo contrério, nossa interpretacio, de alguma forma, é uma operagio de ordem com- pletamente diversa, a que revela um desenho até entio escondi- do? Nao é isso, evidentemente, nem um nem 0 outro, malgrado 0 que, talvez, essa oposi¢ao tenha podido sugerir de resposta inicial muitos a quem ensino. ‘Trata-se do que torna a tarefa, para nés, muito mais dificil, ou «ja, as coisas com efeito, tém a ver com a operacio do significante, © que torna eminentemente possivel a primeirz referéncia, 0 p' meiro modelo a dar do que € uma decifracio. Apenas, vejam, 0 sujeito, digamos o analisando, nao é algo sem dimensio, sugerido pela imagem do desenho. Ele proprio esté no interior. O sujeito, como tal, jé é determinado e inscrito no mundo como causado por um certo efeito de significante. 55 O que resulta disto, é que nao falta muito para que a reducao a uma das situagdes precedentes seja possivel. Nao falta, exceto pelo seguinte: o saber, em certos pontos que podem certamente ser sempre desconhecidos, faz falha. sao precisamente esses pon= tos que, para nés, esto em questo, sob o nome de verdade. Osujeito 6 determinado, nesta referéncia, de uma forma que © torna inapto - 0 que demonstra nossa experiéncia - para restau Tar 0 que se insereveu, pelo efeito significante, de sua relacao ao mundo, tornando-o, em certos pontos, inadequado a fechar-se, a completar-se de uma forma que seja, quanto ao seu estatuto de sujeito, satisfatria para ele. E estes so os pontos que o concer nem, na medida em que ele tem de se colocar como sujeito sexua= do. Ante esta situacdo, vocés ndo notam o que resulta do que vai se estabelecer se a transferéncia se instala? (Como se instala com efeito, porque é movimento de sempre, verdadeiramente movi- mento institufdo da ineréncia tradicional). A transferéncia instala~ se em fungio do sujeito suposto saber, exatamenteda mesma forma que sempre foi inerente a toda a interrogacao sobre o saber. Diria, até mais, que, pelo fato de que ele entra em anillise, ele faz referér= cia.a um sujeito suposto saber melhor que os outros Contrariamente ao que se cré, além disso, isso nao quer dizer que ele se identifica ao seu analista. Mas est precisamente ai 0 essencial do que quero hoje designar para vocés, é que imanente a0 préprio ponto de partida do movimento da procura psicanallt ca hé este sujeito suposto saber, e como eu o dizia ha pouco, su- posto saber melhor ainda. De forma que 0 analista se submete a regra do jogo, e posso colocar a questao de saber, quando ele res- ponde, de que forma deveria responder, se se tratasse do escravo de Sécrates e fosse dito ao escravo para chutar A vontade. O que no se faz, claro, ao nivel da experiéncia menoniana. A questo da intervencao do analista se coloca, com efeito, no suspense mencionado hé pouco: os dois mapas que se cozzespon- dem ponto por ponto ou, pelo contrario, um mapa que gracas a tal ou tal manipulagao revela-se em sua natureza de mapa. E assim que tudo é concebido; de alguma forma, a partir de dados coloca- dos jé na origem do jogo. A anamnese é feita, enquanto aquilo de que nos lembramos ilo € tanto de coisas, quanto da constituigao da amnésia ou 0 re- lomo do recalcado, o que é exatamente a mesma coisa; quer dizer, sneira pela qual as fichas se distribuem a cada instante sobre as canas do jogo, quero dizer, as casas nas quais ha de apostar. Do inesmo modo, os efeitos da interpretagao sao recebidos ao nivel de que? Da estimulagao que ela fornece & inventividade do sujeito. Quero dizer, dessa poesia, da qual falei ha instantes. Ora, 0 que quer dizer a andlise da transferéncia? Se ela quer dizer alguma coisa, ndo pode ser sendo isto: a eliminecao deste wujeito suposto saber. Nao existe para a andlise, e bem menos ain- da para o analista, nao existe em lugar algum -e ai est anovidade sujeito suposto saber. Hé apenas o que resiste a operagdo do sa- ber fazendo o sujeito, a saber, este residuo que se pode chamar “a verdade”. Mas éjustamente ai que pode surgir a questo de Péncio Pila- (oso queéa verdade? O queéa verdade é precisamentea questo que eu levanto para introduzir o que diz respeito ao ato propria- mente psicanalitico. que constitui o ato psicanalitico como tal é muite singular- mente esta simulago pela qual 0 analista esquece o que, na sua oxperigneia de psicanalisando, ele pdde ver reduzir-se ao que €: ula fuungao do sujeito suposto saber. Donde, a cada instante, todas s ambigiidades que transferem para outro lugar, por exem- plo, para a fungao da adapiagao & realidad. A questio do que éa verdacle, é também simular que a posigio do sujeito suposto saber soja sustentével, porqne esté nela o tinico acesso a uma verdade da ual 0 sujeito vai ser rejeitado, para ser reduzido a sua funcao de causa de um processo em impasse. Oato psicanalitico essencial co psicanalista comporta esse algo que eu ndo nomeio, que esbocei sob o titulo de simulagio, e que grave se isto vier a ser esquecido, o simular esquecer que seu alo causa deste processo. Que se trate de um ato, isso se acentua por uma distingao que é essencial fazer aqui. O analista, claro, nao deixa de ter necessidade, dir'a mesmo, ese justificar para si mesmo, quanto ao que se faz na andlise. Faz~ we qualquer coisa, e é bem desta diferenca entre o fazer e um ato 7 que se trata. O banco no qual se atrela, s2 coloca o psicanalisando, 60 de um fazer. Ele faz qualquer coisa. Chamem-no come quise- rem, poesia ou manejo, ele faz, e é bem claro que justamente uma parte da indicagdo da técnica psicanalitica consiste em um certo “deixar rolar”®. Mas sera isso suficiente para caracterizar a posi¢go do analista, quando esse deixar rolar comporta, até certo ponto, a manutencio intacta, nele, deste sujeito suposto saber, embora ale conhega, por experiéncia, a queda e a exclusio desse sujeito, e 0 que resulta do lado do psicanalista? O que resulta disso, nao adianto imediatamente, hoje, uma ‘vez que isso 6 precisamente o que deveremas articular mais adian- te, na seqiiéncia. Mas terminarei indicando a analogia que surge do fato de que, para avancar esse novo viés de questionamento sobre o ato, deva dirigir-me a esses terceiros que voces constituem por esse registro que jé introduzi, sab a funcao do ntimero. O nti- mero nao é a multidao, pois nao é necessério muito para introdu- zira dimensdo do ntimero. Se é em tal referéncia que eu introduzo a questio de saber 0 que pode ser o estatuto do psicanalista, en- quanto seu ato o coloca pisando radicalmente em falso em relagao aessas condigées prévias, 6 para lembrar a vocés que uma dimen- sdo comum do ato éa de nao comportar, no seu instante, a presen- a do sujeito. A passagem ao ato 6 aquilo além do que o sujeito reencontra- rd sua presenga como renovada, mas nada mais. Darei a vocés, da préxima vez, j4 que o tempo me faltou hoje, ailustracao disso: o Winnicott, por quem introduzi, a propésito da palavra self, o exemplo de uma espécie de toque justo com relagio aum certo efeito do significante, Fsse Winnicott nos daré a ilustra- av do que advém ao psicanalista, na medida mesma do interesse que ele tem por seu objeto. Ele nos faré perceber, justamente na medida em que é alguém que se destaca como eminente na técnica por ter escolhido um objeto para ele privilegiado, aquele que cle quase qualifica por esta psicose latente que existe em certos casos, que é toda a técnica analitica em si mesma que se encontra, muito singularmente, desautorizada. Ora, este nao é um caso particular, mas um caso exemplar. Se a posigio do analista se determina unicamente por um ato, ela s6 se pode registrar-se para ele, como efeito, pelo fruto do ato; e para cmpregar esta palavra, “ fruto”, j4 evoquei da tiltima vez, seu eco de fruigao. O que o analista registra de mais considerdvel como oxperiéncia, nao poderia ultrapassar esse ponto de inflexio, que cabo de indicar, de sua propria presenga. Quais seriam os meios para que possa ser recalhido aquilo que, pelo processo desencadeado do ato analitico, ¢ registravel de saber, af esta o que levanta a questo do que 6 0 ensinamento psi- conalitico. Na medida em que o ato psicanalitico é desconhecido, nessa mesma medida se registram os efeitos negatives quanto ao progresso do que a andlise pode totalizar de saber - que constata- mos, que podemos apontar, o que se manifesta e se exprime em m grande ntimero de outros trechos e em toda a extensiio da pro- dlugao da literatura analitica - déficit com relac&o ao que pode ser totalizado, ao que ela poder armazenar de saber. Notas do Tradutor blackout - escuriddio completa, inglés. ‘mais non - mas, nao! é homéfono a Ménon. 4 laisser-faire - deixar fazer, nao se importar com o que se faz. Seminario de 6 de dezembro de 1967 “Diga-me, qual é a primeira coisa da qual vocé se lembra?” “O que é que voce quer dizer?”, responde o outro, “A pri- ineira que me vem a cabeca?” “Nao, a primeira lembranga que vacé tenha tido.” Longa reflexiio.. ~"Devo té-la esquecido.” “Justamente, a primeira que voce nito tenha esquecido.” Longa reflexio... -“Esqueci a pergunta.” Essas réplicas, extraf para vocés (darei minhas fontes) de uma pequena peca muito habil e até profunda, que me atraiu pelo seu (tulo, que contem dois personagens bastanie significatives para mim, Rosencrantz e Guildenstern!, Um e outro, nos diz esse titulo, 10 mortos. Antes fosse verdade! Nada disso, Rosencrantz e Guildenstern stardio sempre la. Essas réplicas sao bem feitas para evocar o des- vio,a distancia que hé entre trés niveis de mathésis, de apreensio wibia. Da primeira, a teoria da reminiscéncia que foi reapresenta- «Ja, na iltima vez, pela evocagao do Ménon, fornece o exemplo. Eu ‘centrarei sobre um “ew leio”, a uma prova reveladora. A segun- «la, diferente, presentificada no tom (é a palavra apropriada) do progresso de nossa ciéncia, é um “ew escrevo”. Escrevo, mesmo 6 quando é para seguir o traco de um escrito j& marcado; a liberagdo da incidéncia significante, como tal, significa nosso progresso nes- sa apreensiio do que é saber. © que quis lembrar a voeés, nao por esta anedota, mas por estas réplicas muito bem forjadas que, de alguma forma, desig- nam seu préprio lugar por situar-se em um novo manejo dessas marionetes essenciais A tragédia, que é verdadeiramente a nossa propria, a de Hamlet, aquela sobre a qual eu me dediquei longa- mente a demarcacao do lugar como tal do desejo, designandoatra- vy6s disso algo que tinha podido parecer estranho até entao: que, muito exatamente, cada um tenha nela podido ler o seu. Essas trés réplicas designam entao esse modo préprio da apre- ensio sabia que é a do analista, e que comega no “ew perco”. Eu perco 0 fio, Ai comeca 0 que nos interessa saber. Quem se espan- tasse com isso ou arregalasse os olhos, nessa ocasiao, mostraria bem quese esquece do que foi a entrada, no mundo, dos primeiros passos da andlise: o campo dos lapsos, do tropeco, do ato falho. Lembrei a presenga deles a vooés, desde minhas primeiras palavras deste ano. Vocés verdio que nés terenios que retornar a isso, e que é essencial que essa referéncia seja sempre mantida no centro de nossa perspectiva, se nés nao quisermos, nds, perder 0 fio, quando se trata, na sua forma a mais essencial, do que chamo, este ano de “alo psicanalitica”. Mas vocés também me viram, qua- sea cada retomada, comegar com algum embaraco, pelo qual me desculpo. A razao nfo era outra seni a assisténcia graciosa de voces. Fu me coloquei, sob uma forma que aponta hoje, a proble- mitica de meu ensino. O que quer dizer o que eu aqui produzo, hé agora mais de quatro anos? Levantar a questao vale bem a pena: isso 6 ato psicanalitico? Esse ensinamento se produz diante de vo- 8s, é ptiblico. Como tal, ele ndo poderia ser ato psicanalitico. ‘Ao abordar esta temética, isso quer dizer que pretendo sub- meter aqui o ato a uma instncia critica? B uma posicdo, afinal, defensével, e que alids foi defendida muitas vezes, mesmo que, esiritamente falando, ndo tenha sido esse termo “ato” que foi utili- zado. E bastante surpreendente que a cada vez que a tentativa foi feita por alguém de estranho ao campo da psicandlise, tenha pro- duzido apenas resultados bastante pobres. Ora, sou psicanalista ¢ 6 ho ato psicanalitico estou, eu mesmo, capturado. Pode haver em. nim outro projeto que ndo o de apreender o ato psicanalitico pelo lado de fora? Sim. E eis como esse projeto se institui. Um ensina- inento nao é um ato, jamais foi. Um ensinamento éuma tese, como iempre se formulou muito bem, no tempo em que se sabia o que cra um ensinamento na universidade. Nos bons tempos em que ssa palavra tinha um sentido, queria dizer tese. ‘Tese supde antitese, Na antitese pode comogar o ato. Isso quer dizer que eu 0 espero dos psicanalistas? A coisa nao é tao simples; no interior do ato psicanalitico, minhas teses implicam as vezes conseqiiéncias. E surpreendente que essas conseqiiéncias af encon- trem - digo no interior - objecdes que nao pertencem nem a tese, hem 4 nenhuma outra antitese formulavel, além dos usos e costu- ines imperantes entre aqueles que fazem profissao do ato psicana- lilico. B singular, entao, que um discurso, que até entio nao est entre os discursos sobre o ato psicanalitico féiceis de contradizer, encontre, em certos casos, obstaculo que nao € de contradicao. A hipotese que me guia no desenvolvimento desse discurso é a se- inte: nado que haja a indicagao de criticar 0 ato psicanalitico, ¢ i porque, mes, pelo contratio, de demonstrar (digo, na instan- cia desse ato) que aquilo que ela desconhece é o que, se daf nio saissemos, chegarfamos bem mais longe. fi preciso entao acreditar que ha qualquer coisa nesse ato de bastante insuportavel, insus- tonkével para quem nele se engaja, para que cle receie aproximar- w de seus limites, é preciso dizer, jé que o que quero é também introduzir esta particularidade de sua estrutura, afinal bastante conhecida para que ela seja apreensfvel por todos, mas que nao se formule quase nunca, Se partimos da referéneia que dei ha pouco, a saber, que a primeira forma do ato que a andlise inaugurou para nés foi este ntomatico do qual podemos dizer que ele nao é jamais bem sucedido como quando é um ato falho, quando 0 ato falho 6 uposto, é controlado, ele se revela como aquilo do que se trata: vamos ligé-lo a esta palavra na qual jé insisti o suficiente, a “ver- dace”, para que ele surja restaurado, Observem que é desta base que partimos, nés analistas, para avangar. Sem isso, n4o haveria nenhuma andlise poss{vel pelo se~ ato s a guinte: todo 0 ato, mesmo quando nao porta esse pequeno indicio, de malogro, dito de outra forma, quando se dé uma boa nota quanto Aintengdo, nao deixard de cair exatamente sob o mesmo dominio; ou seja, pode ser levantada a questo de uma outra verdade que nioa desta intengio, Donde resulta que isto consiste em desenhar ‘uma topologia que pode ser expressa assim: que basta delinear a via de sua saida para que se entre af, mesmo sem pensar nisso, € que afinal a melhor maneira de voltar a entrar, de certa maneira, 6 sair de vez. ( ato psicanalitico designa uma forma, um envoltério, uma estrutura tal, que, de algum modo, ele suspende tudo o que até entdo foi instituido, formulado, produzido como estatuto do ato, a sua propria lei. E a mesma coisa, do lugar onde se mantém aquele que, a qualquer titulo, se engaja neste ato, numa posicao na qual é dificil introduzir 0 viés de qualquer outro lugar, o que desde jé sugere que algum modo de discernimento deve ser introduzido. facil destacar, retomando as coisas do comeco, que se nao ha nada de tao bem sucedido quanto a falha relativa ao ato, isso nao quer dizer entretanto que uma reciprocidade se estabelega ¢ que toca a falha, em si, seja signo de algum sucesso, digo sucesso do ato. Eevidente que nem todos os tropecos sao tropecos interpre- taveis. O que se impée no inicio de uma simples observagao que, além disso, também é a tnica objecio jamais produzida no uso. Basta comecar a introduzir ante alguém, como se diz, de bom sen- so - se ele é novo, se ndo foi ainda imunizado, se guardou algum frescor -a dimensio das cogitagdes analiticas, para que as pessoas respondam: “Mas a troco de que voce vem contar tanta coisa sobre essas besteiras que nés conhecemos bem e que sfio simplesmente vaziac de todo suporte apreensivel, que sia apenaso negatival” H certo que, a esse nivel, o discernimento nao possui regra segura, e assim que se constata, com efeito, que se ficarmos no nivel desses fenémenos exemplares, o debate fica em suspenso Nao é inconcebivel que onde 0 ato psicanalitico toma seu peso, quer dizer, aqueles que a esse respeito se organizam, agrupam @ perseguem uma experiéncia, assumem suas responsabilidades em algo que é de um outro registro que ndo o do ato, a saber, um. fazer. Mas atengdo: esse fazer nao € deles. ‘A fungio da psicandlise se caracteriza claramente pelo seguin- \c: institui um fazer pelo qual o psicanalisando obtém um certo {im. Fim este que ninguém péde ainda fixar claramente, como de- monstra a oscilagao verdadeiramente desordenada da agulha que se produz desde que interroguemos acerca disso os autores. Nao é 0 momento de dar um inventério desta oscilagio, po- dlem acreditar om mim e procurar confirmagio na literatura. A lei, a regra, como se diz, que circunscreve a operagio chamada’”psica- nilise”, estrutura e define “um fazer”. O paciente, como se diz ain- dla; 0 “psicanalisando”, palavra que introduzi recentemente e que ve difundiu rapidamente, 0 que prova que nao é tao inoportuna e «ue além do mais ¢ evidente. Dizer “psicanalisado” é deixar para a conclusao da coisa todos os equivocos relatives ao fato de se estar em andlise. A palavra “psicanalisado” s6 tem como sentido indi. car uma passividade de forma alguma evidente, j4 que o que ocor- te é justo o contrério, quem fala o tempo todo € exatamente 0 psicanalisando. Jé é um indice. Esse psicanalisando cuja andlise foi levada a termo, acabo de dizer, ninguém ainda definiu com precisdo 0 alcance da palavra {érmino” em todas as suas acepgses; nao obstante, supde-se que deva ser um fazer bem sucedido. Ligé-la a uma palavra como "ser", por que nao? Termo que, para nés, passa em branco, mas que no entanto, 6 cheio demais para nos servir aqui de ponto de referén- cia, © que seria o término de uma operacio que seguramente tem «1 ver, a menos de infcio, com a verdade, se a palavra “ser” no fosse evocdvel em seu horizonte? Se-lo-4 para 0 psicanalista? A saber, aquele que supomos ter franqueado tal percurso sobre 0s prineipios que elesupse e que so fornecidos pelo ate dopsicana- ta Indtil perguntar se 0 psicanalista tem o direito, em nome de \jualquer objetividade, de interpretar o sentido de uma figura dada nesta operagio postica pelo sujeito “fazente"?. Intitil perguntar se © oundo legitimo interpretar esse “fazer” como confirmando o fato da transferéncia. Interpretagio e transferéncia estao implicados no ato pelo qual o analista da a este fazer suporte e autorizagao. E {vito para isso. £, de qualquer forma, dar algum peso presenca dlo.ato, mesmo se 0 analista nao faz nada. Logo, esta reparticaio do 65 fazer do ato psicanalitico. Onde se pode apreender que 0 ato manifesta algum tropeco? Nao esquecamos de que supomos ter 0 psicanalista chegado ao ponto, por mais reduzido que seja, no qual produziu-se para ele esse término que comporta a evocagao da verdade. Desse ponto de ser, supde-se que ele seja o Arquimedes capaz de fazer girar tudo o que se desenvolve nessa estrutura pri- meiramente evocada, cuja circunscrigao por um “eu perco”, pela qual comecei, daa chave. Pode ser interessante ver reproduzir-se esse efeito de perda, para além da operacao centrada no ato anali- tico? Acho que colocando a questio nesses termos, vacs veri, de imediato, que ndo ha cuivida de que é nas insuficiéncias da produ- do analitica que é posstvel ler algo que responda a essa dimensio de tropeso. Além de um ato que supostamente faz fim, mas onde & preciso supor esse ponto magistral, se queremos poder dizer algo em relagao a ele. Além disso, nada ha de abusivo em evocé-lo, quan- do sao os préprics analistas os mais sujeitos a cair sob o golpe da designagao deste tropeco -af onde proponho que se procure a inci- déncia que possa complementar, até instautar, 0 apoio de nossa critica, Nao ha nada de abusivo em falar desse ponto de virada, em falar da passagem do psicanalisando a psicanalista jé que, en- tre os préprios psicanalistas, a referéncia ao que acabo de evocar & constante e dada como condigao de toda a competéncia analitica. Poderia ser um trabalho infinito 0 de colocar & provaa litera~ tura analitica. Assim, jé apontei alguns exemplos no horizonte. Cite, no meu primeiro curso deste ano, o artigo de Rapaport que pode- ria chamar-se em francés (foi publicado no International Journal) “Bstatuto Analitico do Pensar”: Thinking, um participio presente. Acho que seria tedioso e ineficaz, numa assembléia tao numerosa, analisar tal artigo para nele mostrar uma extrema boa intengio, por assim dizer, uma operacionalizagao de tudo que, no préprio. enunciado freudiano, pode organizar-se por uma enunciagao rela- tiva ao que diz respeito A funcio do pensamento, na economia dita analitica. O surpreendente sao as rasgaduras que se marcam a todo oinsiante,a impessibilidade de nao fazer partir, por exemplo, essa montagem - ou desmontagem, como queiram - do thinking, do proprio processo primario eno nivel do que Freud designa como a alucinagio primiiiva, essa que é ligada a primeira busca patética, so simplesmente suposta a partir de um sisiema motor que, des- ile que nao encontra 0 objeto da sua satisfacdo, estaria no prinefpio \lonve proceso regressivo que faz aparecer a imagem fantasmatica ili que deve ser procurado: \ completa incompatibilidade deste registro, que deve entre- {nnto ser colocado no quadro do pensamentc, com o que, aonivel ‘ly proceso secundario, é instaurado de um pensamento que & \Win lipo de ago reduzida, de aco de pouca monta, que forca a jj) nar para um registro completamente diverso do que o que evo- (uel inicialmente, a saber, a introducao da dimensio da prova de Wwalidade, no deixa de ser notada de passagem pelo autor. Perse- jiiindlo imperturbavelmente seu caminho, ele chegard a notar que ho apenas n&o hé dois modos e dois registros de pensamento, (\\0h ue ha uma infinidade deles a serem quase escalonados, no \\\le outrora os psicdlogos marcaram como niveis da consciéncia, (oi o conseqiiéncia de reduzir completamente a relevancia da \nlribuiggo de Freud, pelo que se chama a reduce a psicologia ioral; quer dizer, sua abolicdo. Esse é apenas um pequeno exem- lo, e voces podem, cada um, cada um a seu gosto, ir confirmé-lo, uns tém interesse em que se tenha um semindrio em que na coisa como esta seja seguida em seus detalhes, por que ‘lo? O importante me parece estar completamente eludido nesta perepectiva de redugdo, com conseqiiente impasse. (Oqueé surpreendente, saliente, enorme, implicado na dimen- nlo do processo primério, é algo que pode ser aproximadamente #rpresso assim: ndo “no inicio é a insatisfagdo”, isso nao é nada. Nho & que © individuo vivo corra atrés de sua satisfagdo 0 que € \ii)portante, mas sim, que haja um estatuto do gozo que seja a insa- \Inlagio. Ao eludito como original, como imolicado na teoria da~ {juele queintroduziu essa teoria, pouco impo:ta se cle a expressou ‘lovsa forma ou no, mas sim se ele a fez dessa forma, quer dizer, «cle formulow 0 prinefpio do prazer como jamais se formulou ontes dele, pois o prazer havia desde sempre servido para definir bem, era em si mesmo satisfagaio. Apesar de que ninguém podia litar nisso porque, desde sempre, todo mundo soube que es- {oy no bem nao € sempre satisfatério. Freud introduziu esta outra o coisa. Trata-se de ver qual é a coeréncia desta ponta com a que, de inicio, se indica na dimensao da verdade. ; ‘Abri, por acaso, uma revista, nao sei o que é, um hebdo- madério, um trianual, na qual vi assinaturas renomadas, uma de las de um lado do horizonte onde a batalla divina est sempre no auge - pelo bem, precisamente. Vi um artigo que comecava um género de feitigaria ao redor de “o simbélico, 0 imaginario e real”... no qual a tal pessoa mencionava a iluminagao que ti trazido ao mundo essa triparticao, pela qual sou responsavel, conclufa corajosamente: “para nésiisso diz o que diz, o Real é Deus” ‘Vejam como se pode dizer que eu sou uma contribuicao para a teolégical.. ‘Ainda assim, isso me incitou a qualquer coisa que eu ensaia- ria para os que notam, e sio numerosos, que isso é uma mistura, que o que pocemos indicar, se tomamos esses termos de uma ou- tra forma que nao no absoluto, ¢ isto. Simbélico Imaginério Real O simbélico é colocado, se querem, assim. O imaginario 6 c Jocado ld ¢ 0 real... é completamente idiota... assim, Nao hav verdadeiramente nada a fazer com isso, especialmente de um tri Angulo retangulo, se nao fosse, enfim, talvez auxiliar-nos um pot oa colocar as questées. a | (traco unario) 68 Simbslico Gozo Sintoma Imaginario Verdade Nao vao passear com isso num papel, procurando: “em qual qaclrado estaremos?” Mas enfim, ainda assim... Se recordamos 0 jue ensino em relagéo ao sujeito como determinado por dois sig- hificantes, ou mais exatamente, por um significante como o repre- jonlando para um outro significante, por que nao colocar o Sujeito harrado como uma projegio sobre o outro lado? Isso nos permitira invlagar como fica a relagdo do Sujeito entre o Imagindrio e o Real. Nor outro lado, esse I do trago undrio, do qual partimos para ver (omo, efetivamente, no desenvolvimento do mecanismo, esse me- cinismo da incidéneia do significante no desenvolvimento, pro- ‘liose a primeira identificagio. Nés 0 colocaremos também como \unia projecao sobre o outro lado. A terceira fungao seré dada por "a", que qualquer coisa como uma queda do Reel sobre 0 velor estendido do Simbélico ao Imagindrio, a saber, como 0 sig- hilicante pode muito bem tomar seu material - ninguém veria obs- liculo -nas fungoes imaginarias, vale dizer, na coisa a mais frégil dificil de apreender quanto ao que é do homem. Nao que nao exis- cy tam nele imagens primitivas destinadas a nos dar um guia na nae tureza, mas justamente na medida em que o significante delas se apodera, 6 sempre bem dificil apontar esse seu lado natural. Voed: véem que é possivel levantar a questio do que representam 05 vetores unindo cada um desses pontos demarcados. Isso teré interesse - ¢ para isso, claro, que eu preparo voces nesse pequel jogo - porque, nao obsiante, desde que falamos do ato psicanaliti- co, n6s no pudemos fazer outra coisa além de reevocar as dimen ses onde se desdobraram nossos pontos de referéncia relativos fungdo que ¢ sabivel, 0 saber, 0 que sempre representa algu verdade, Colocaremos aqui o que constitui o terceiro pélo, ou s¢j © gozo. Isso introduz (mais exatamente, um certo apego fund mental do espirito humano ao imagindrio) isso introduz alg coisa que pode ajudar vocés & moda dos pontos cardeais € q talvez possa servir de suporte cada vez que eu evoque um dese; pélos, por exemplo, como hoje levanto a questo do que é 0 al psicanalitico com relagiio A verdade. A questo pode e deve sel colocada no inicio, ser que o ato psicanalitico toma a cargo a v dade? Parece que sim, mas quem ousaria tomar a cargoa verdad sem se expor ao ridiculo? Em certos casos, me tomo por Pénci Pilatos. Hé uma bonita imagem de Claudel... Pancio Pilatos $6 e1 rou por ter levantado esta questio, caia mal. Foi o tinico que a ¢ locouantea verdade? Isso o deixou em maus lengéis. Donde result (ficono registro de Claudel, foi ele que inventou isso) que a segui quando passeava, todos os idolos (é ainda Claudel que fala) vi seus venires se abrirem numa derrocada, com um grande barul de caga nfqueis. Eundo levanto a questéo, nem em um tal context nem com um tal vigor, para que obtenha esse resultado, mas fim, algumas vezes chega perto. O psicanalista ndo toma a cargo. verdade. Ble ndo toma a cargoa verdade, porque nenhum dos pok 6 julgavel em funcao do que ele representa de nossos irés verti de partida. i, a saber, que a verdade esta no lugar do Outro, inscrigao do significante. Vale dizer que a verdacle nao esta por: assim; nao mais que o gozo, alids, que certamente tem relacio cor © Real, mas do qual justamente o principio do prazer ¢ feito pai nos separar. Quanto ao Saber, é uma fungao imagindria, uma ide, lizagdo incontestavelmente, é isto que toma delicada a posicao dl 7 analista que esté no meio, onde est 0 vazio, o buraco, 0 lugar do desejo. Gozo s Saber Verdade Mas isso comporta um certo ntimero de pontos tabus, em al- jjuma forma de disciplina, ou seja, ja que se tem que responder a algo, quero dizer, Aqueles que vém consultar o analista para en- contrar mais seguranca, bem, meu Deus, ocorre que se faca uma \woria das condicées de seguranca que deve atingir alguém que se desenvolve normalmente. E um mito belfssimo. HA um artigo de Lirik Erikson sobre 0 sonho da injegéo de Irma, que nao é feito de outra forma, Ele enumera, em etapas, como deve edificar-se a se- jjuranga do pequeno homem, que teve inicialmente uma mamae ‘dequada, aquela que aprendeu direito sua ligo nos livro dos psi- conalistas, ehé um escalonamento que vai completamente ao dpi- ce, dando (j4 0 lembrei, algumas vezes) um G.1° perfeitamente suro. Da para construir. Tudo 6 passivel de construgao, em ter- n mos de psicologia. Trata-se de saber em que o ato psicanalitico é compatfvel com tais dejetos. Parece que hé algo a fazer, ea palavra dejeto nao deve ser tomada como tendo aparecido ao acaso. Tal- vez apreendendo como conyém certas produgdes tedricas, seja possivel demarcar imediatamente nesse mapa, jé que existe mapa, tio socrético que nao émais aquele que evoquei outro dia a propo- sito do Ménon; isso ndo tem mais alcance, aleance de exercicio, mas sim o de ver que relagéo pode ter uma producao que nao tem, em caso algum, fung4o com relagio a pratica... (tanto que que nem mesmo 0s analistas mais efervescentes nessas construgées em ge- ral otimistas respeitam... nenhum analista, salvo excesso ou exce- cio, vai acreditar nisso quando ele intervém). A relacio dessas produgées com 0 ponto natural aqui do dejeto, a saber, 9 “a”, tal- vez possa nos servir para progredir quanto ao que é a telagio da produgao analitica com tal outro termo; por exemplo, a idealiza- 80 de sua posicao social que nds colocariamos do lado do I. Em suma, inaugurar um método para discernir entre as diversas pro- dugées sobre o ato psicanalitico, do quanto de perda talvez neces- séria (nao digo que comporte), isso pode ser de natureza a nio apenas esclarecer vivamente o que é 0 ato psicanalitico, 0 estatuto que ele supée e apia em sua ambigitidade desdobrada. E por que parar em um ponto qualquer da extensio dessa ambigitidade, se posso dizer assim, até que tenhamos voltado a nosso ponto de par- tida? Se é verdade que nao ha maneiras de sair dele, daria no mes- mo circundé-lo. F ao que tentaremos dar, este ano, uma primeira imagem de prova, e para isto, por exemplo, eu nao tomaria os pio- res exemplos. Claro, hi dejetose dejetos, ha dejetos ininterpretaveis. Ainda assim, prestem atencaoa qute esta designacao do ininterpre- tAvel na 6 nsada aquti no sentido préprio. Tomemos um excelente autor, o Sr. Winnicott. E notdvel que esse autor, ao qual devemos uma descoberta das mais finas, eu me recordo ¢ jamais deixarei de voltar a isso, em homenagem, & minha lembranga do quanto 0 ob- jeto transicional, como ele apresentou, pode me trazer de socorro no Momento em que me interrogava sobre a maneira de desmisti- ficar essa fungao do objeto dito parcial, tal como vemos sustentada para suportar a teoria a mais abstrusa, a mais mistificadora, a me~ nos clinica, sobre as pretensas relacdes desenvolvimentistas entre n » pré-genital e o genital. Apenas a introdugao deste pequeno obje- jo que se chama, em Winnicott, objeto transicional, essa pequenis- sina ponta de pano que o bebé, desde antes desse drama em torno slo qual se acumularam tantas névoas confusas, desde antes do sljoma do desmame que, quando o observamos nao é, de forma |juma, forgosamente um drama... Como me fazia notar alguém, {jue nao é pouco penetrante, pode ser que, no desmame, quem > ressinta dele soja a me. A presenga, a tinica presenca, nes- » caso, que, de alguma forma, parece ser 0 apoio, o arco funda- Jwental, gragas ao qual nada mais seré jamais, a seguir, desenvolvido jwndio em termos de relacdo dual, a relagao do infantee da mae, ela solve, de imediato, interferéncia por estas funcdes deste mitido pbjeto, clo qual Winnicott vai nos formular o estatuto. Retomarei 0 proximo ano (10 de janeiro) esses tragos, cuja descricdo pode- dizer que é exemplar. Basta ler o Sr. Winnicott para de algu- ‘na forma traduzi-lo, haa que esta pequena ponta de pano ou ile lengol, pedaco sujo ao qual o infante se aferra, de algum modo, \\lo 6 pouco ver, aqui, sua relacdo com esse primeiro objeto de J\x0 que nao é absolutamente o seio da mie, que jamais esta 1é jormanentemente, mas aquele que esta sempre ao alcance, 0 pole- juar da mao do infante. Como podem os analistas, neste ponto, joscortar de sua experiéncia o que Ihes é introduzido, de tal im- cia, da fung&o da mao, a ponto de que para eles o humano \Joveria escrever-se o hu-manot, com traco de unio no meio. Essa conferéncia que aconselho a vocés, esta no n® 5 desta revista que jossou por um longo tempo pela minha, que se chama “Ia Vvychanatyse”. H& uma traducao deste objeto transicional de Winnicott. Leiam isso. Nada de mais fatigante que uma leitura, e nos propicio a prender a atencao, Mas, se alguém, da proxi 0 vez, quiser fazé-lo, que entenderd tudo aquilo apenas para di- or 0 que é esse pequeno objeto “a”... Ele nao esta nem no interior, hom no exterior, nem é real, nem ilusério. Ele nao entra em nada ile toda essa construgao artificiosa que o comum da andlise edifica lor do narcisismo, vendo nisso algo de completamente dife- fente do que aquilo para que ¢ feito, A saber, nao para fazer duas vorlentes morais, ou seja, de um lado o amor de si-mesmo e do Hutto 0 do objeto, como se diz. f muito claro, ao ler (j4 0 fiz aqui) 0 n que Freud escreveu sobre o “Real Icit” eo “Lust Ich’, que foi nos demonstrar que o primeiro objeto era o “Lust Ich” (a saber, mesmo, a regra do meu prazer) e que isso permanece. Entio, to esta descricdo téo preciosa quanto fina do objeto “a”, 56 Ihe fa uma coisa, é que se veja que tudo o que se disse dele nfo q dizer nada sendo o broto, a ponta, a primeira saida da terra dt que? Disso que 0 objeto “a” comanda, a saber, o Sujeito. O Sujelt como tal, que funciona inicialmente no nivel deste obje transicional. Nao esta nisso, certamente, uma prova feita para minuir 0 que se pode fazer de produgo acerca do ato psicanalith co. Mas, vocés vero o que ocorre quando Winnicott leva as coi mais longe, a saber, quando ele nao é o observador do pequi bebé (ele é capaz disso mais que ninguém), mas delimita sua prt pria técnica em relagao ao que ele procura, cle, de uma maneif patente (j4 indiquei a vocés, na tiltima vez, no final da conferd cia), a saber, a Verdade. Esse “self” do qual ele fala como de al que desde sempre esteve la, por tras de tudo 0 que acontece, ante mesmo que de nenhum modo o sujeito se tenha determinado. guma coisa é capaz de congelar, escreve ele da situagao de fall Quando 0 meio ambiente nao é apropriado nos primeiros diag nos primeiros meses do bebé, algo pode operar, ocasionando est “freezing”, este congelamento; seguramente, esta af alguma cois que 6 a experiéncia pode elucidar. Existe ainda, com relagio essas conseqiiéncias psicsticas, algo que Winnicott foi capaz d ver muito bem. Mas atrés desse “freezing” ha esse “self” que espi 1a, diz Winnicott. Esse “self” que, por estar congelado, constitui “falso-self” ao qual & necessrio que o Sr. Winnicott reconduzi por um processo de regressio. Mostrar a relacilo desse process com 0 agir do analista sera o tema de men diseurs da prévit vez. Atrés desse “flso-self”, o que espera? O verdadeiro, para res surgir. Quem nao vé, quando desde jé nds temos:na teoria analiti ca esse “Keal Ich”, esse “Lust Ich”, e Ego, e Id, todas essa referéncias ja bastante articuladas para definir nosso campo, que a adjungio desse “self” nao representa nada mais do que, como confessado no texto com “false” e “irue”*, a verdade? Mas quem nao v8, também, que nao hé outro “irueself” atras dessa situacad sendo 0 proprio Sr. Winnicott, que af se coloca como presenga di m” \erdade? Dizer isso nao ¢ nada que comporte, no que quer que wja, uma depreciaco daquilo a que essa posicao o leva. Como na proxima ver, extraido de seu préprio texto, é a uma posigdo que se reconhece dever, enquanto tal, e de maneira sleclarada, brotar do ato analitico, tomar a posigio de fazer, pelo jue ele assume (como se exprime wm outro analista) responder a (oclas as necessidades do paciente. Nao estamos aqui para entrar em detalhes quanto ao que isto leva. Estamos aqui para indicar como © menor desconhecimento (¢ como nao haveria, jé que cle sinca nao foi definido), o menor desconhecimento do que é 0 ato psicanalitico acarreta, assim que assumido, e tanto mais quanto mais seguro e mais capaz ele for (cito este autor porque eu consi- cleo que nao ha quem se iguale, em lingua inglesa), que ele seja cle imediato levado, preto na branco, a negacéo da posigio analiti- ©, Isso por si $6 me parece confirmar, dar um incentivo, sendo, ncla, apoio ao que introduzo como método de uma critica, pelas ss tedricas, do que é o estatuto do ato psicanalitico. express! Notas do Tradutor Personagens secundérios de “Hamlet”, que Hamlet envia morte que Ihe estava destinada. O dramaturgo inglés Tom Stoppard recscreveica tragédia pelo ponto de visla dos dois, com o titule “Rasecrantz and Guildenstern are Dead”. A pega estreou em Londres em 1967 com grande sucesso, ¢ em 1990 {oi transformada em filme dixigido pelo proprio Stoppard. faisant - participio presente de “faire”, fazendo. s GI- abreviagio de “government issue”, usado, nesse sentido, como qualificagio para um soldado, especialmente alistado. hu-main - condensa “humano” e “mao” (main). 5. Fu Real ¢ Eu Prazer 6. false ¢ fre falso ¢ verdadeiro, em inglés Seminario de 10 de janeiro de 1967 Apresento a vocés os melhores votos para 0 ano novo, como se costuma dizer. Por que “novo”? Ele é como a lua, entretanto, quando termi- ha, recomeca. E esse ponto de término e de recomego, talvez pu- emos colocé-lo em qualquer ponto, a diferenca da lua, que foi {eila, como todos sabem e como uma locugio familiar 0 recorda, a inteng&o de nao importa quem. E hd um momento no qual a lua dlesaparece, razio para declaré-la “nova” depois. Mas quanto ao ano, e para muitas outras coisas e, em geral, 0 chamamos de “real”, ele ndo tem um comego estabelecido. Vintretanto, é necessdrio que ele tenha um, a partir do momento om que foi denominado “ano”, em razio da demarcagao signifi- cante do que, para uma parte desse real, definimos como ciclo. um ciclo nao completamente exato, como todos os ciclos no real. Mas, a partir do momento em que o apreendemos como ciclo, hai um significante que nao cola inteiramente com o real. Nés 0 corrigimos falando, por exemplo, de ano grande’, a propésito de uma coisinha que varia de ano em ano até fazer vinte e oito mil anos, Em suma, se recicla. Eentdo, 0 comego do ano, por exemplo, onde colacé-lo? E ai «ue esté o ato. E, pelo menos, uma das maneiras de abordar 0 que 7” € 0 ato, estrutura da qual, procurando bem, voeés notarao que se tem, somando tudo, pouco falado. Oanonovo me fornecea ocasiio de abordé-lo, por este ponto de vista. Umato € ligado & determinagao do comeco, e muito especial mente, ali onde ha a necessidade de fazer um, precisamente por- que nio existe. E por isto, em suma, que tem um certo sentido o que fiz no inicio: apresentar-lhes meus votos de feliz ano novo. Isso entra no campo do ato. Claro, um pequeno ato, um residuo muito leigo de ato. Mas niio esquecam de que, se trocamos esses pequenos salamaleques (alias sempre mais ou menos em vias de cair em de- suso, mas o que é notivel é que subsistem), 6 em eco a coisas de que se falz como se fossem passadas, a saber, os atos cerimoniais Atos que, em um quadro que se pode chamar de “Império”, consis- tiam em que, num dia determinado, o imperador manipulava 0 arado com suas préprias maos. E um ato ordenado que marcou um comeco, na medida em que era essencial a uma certa ordem do Império que essa fundagio, renovada no comeco de cada ano, fos- se marcada, Vemos af a dimensio do quese chama “ato tradicional”, aque- Je que se funda em uma certa necessidade de transferir algo que é considerado como essencial na ordem do significante. Que seja necessério transferi-lo, supde aparentemente que isso nao se trans- fere por sis6, que comego 6, efetivamente, renovacao, e isso abre a porta, mesmo pela via de uma oposigao, ao seguinte: que é conce- bivel que o ato constitua (se é possfvel exprimir-se deste modo, sem aspas) um verdadeiro comeco. Enfim, que haja um ato, que soja criador e que esteja I 0 comeso. Ora, basta evocar esse horizonte de todo o funcionamento do ato, para perceber que é claramente af que reside sua verdadeira estrutura, o que é inteiramente aparente, evident, ¢ o que mostra, por outro lado, a fecundidade do mito da criacdo. E um pouco surpreendente que nao tenha surgido, de uma forma que agora seja corrente, admitida na consciéncia comum, que hé uma relagao certa entre a fratura que se produziu na evolu- sao da ciéncia, no inicio do século XVI, e 0 advento do aleance 7 G ‘ou eunio penso ‘oweunsd son Verdade onde iso estava 1 1 Monde _jnsocstarat, issoestiva falso ser voirladeiro desse mito da criagdo, que levou, portanto, dezesseis jculos para atingir, em sua verdadeira incidéncia, o que se pode, \vavés dessa época, chamar de “consciéncia crista”. Eu nao pode- Jin insistir demasiado nessa observagao, que enfatizo que néio é jwinha, mae de Alexandre Koyré. “No comego era a agéo”, diz Goethe, um pouco mais tarde, e Ww ocredita que é a contradicao da formula joanica: “No comeso ono Verbo". I isso que é preciso que examinemos mais detida- Inonte, Se vocés se introduzem na questo pela via que acabo de (ontar abrir, sob um angulo familiar, é perfeitamente claro que nio |\4, entre essas duas formulas, a menor oposigao. No comeco era a ‘agllo, porque sem ato nao poderia, muito simplesmente, ser ques- 7 to de comeco. A acdo esta exatamente no comego, porque nil poderia haver comeco sem a¢io. Se nos damos conta, por algum viés, do que nfo é, ou jam. foi colocado até aqui inteiramente em evidéncia, como é neces rio, é que nao ha ago alguma que nfo se apresente, de safda antes de mais nada, com uma ponta significante. Esta sua pont significante ¢ justo 0 que caracteriza o ato, e sua eficiéncia de al se comecar a falar de ato, simplesment sem perder de vista (é bastante curioso que seja um psicanalis que possa, pela primeira vez, enfatizar, no tema do ato, o que con titui seu trago estranho e portanto problematico e diiplice), por lado, que foi no campo analitico, a saber, a propésito do ato falh que surgiu que justamente um ato que se apresenta como falh seja um ato, e unicamente pelo fato de que é significante; por out lado, que um psicanalista presida precisamente (limitemo-nos esse termo, por agora) u, a operagéio dita psicandlise que, em pri cipio, comanda a suspensio de todo o ato, Vocés sentem que quando vamos, agora, nos engajar nes: via de interrogar, de um modo mais preciso, mais insistente dj que pudemos fazer nas sessdes introdut6rias do ultimo trimest em que consiste 0 ato psicanalitico, eu quero de algum modo apo: tar, um pouco mais do que pude fazer nessas primeiras palavra que, em nosso horizonte, nés sabemos © que pode ser de todo ato, deste ato do qual mostrei, hd pouco, o carter inaugural e cu tipo, se podemos dizer, é veiculado para nés através dessa medi ao vacilante que se persegue ao redor da politica pelo ato dito Rubicio, por exemplo. Atrés dele, outros se perfilam: Noite de qt tro de agosto, “Jew de paume”, Jornadas de outubro... Onde esta, aqui, o sentido do ato? Certamente nés tocamos, nds sentimos, que o ponto ond em primeiro lugar, se detém a interrogacao, 0 sentido estratégic de tal ou tal ultrapassamento. Gragas a Deus, no foi & toa qt evoquei de saida o Rubicao. E um exemplo bastante simples, m. cado pelas dimensdes do sagrado. Ultrapassar 0 Rubicio nio nha, para César, uma significagdo militar decisiva. Mas, e1 compensagio, ultrapassé-lo era entrar na terra-mae. A terra d 0 Noptiblica, aquela que abordar era violar. Algo foi ultrapassado, no sentido desses atos revoluciondrios que descubro (nao foi sem \inloncdo, claro) ter aproveitado la atrés. O ato estaria nomomento win que Lenin dé tal ordem, ou no momento em que os significan- \oscleixadosnomundo dao a um determinadoacontecimentonuma wulvatégia, seu sentido de cameco ja tracado? Algo onde a conse- ilncia de uma certa estratépia poderia vir a tomar seu lugar, e jiole tomar seu valor de sign. Afinal, vale bem a pena colocar a questao aqui, em um certo onto de partida, pois na maneira pela qual vou avangar sobre 0 lorreno do ato ha também uma certa ultrapassagem, em evocar dimensao do ato revolucionario e caracteriz-lo com isso de liferente de toda a eficécia de guerra, que se chama suscitar um hove desejo. “Un golpe de teu dedo sobre o tambor descarrega todos os ons e conieca uma nova hermonia Um passo teu é a levantamento de novos homens ea hora em marcha. Tua cabeca se. desvia, 0 nove amor. Tua cabega se volta, 0 novo aimor.” Penso que todos vocés ouviram este texto de Rimbaud, que no concluo, e que se chama “Por uma razio”. Ea formula do ato. O ato de colocar o inconsciente, pode ele ser concebide de outta forma, e especialmente a partir do momento em q:1e recordo «jue o ineonsciente é estrutura de linguagem, em que, tendo-o re- cordado, sem registrar os profundos abalos nos que se interessam por isto, eu retomo e falo de seu efeito de ruptura sobre o Cogito? Aqui, eu retomo, sublinho, ocorre que, em um certo campo, posse formular: “eu penso”, com todas as suas caracteristicas: 0 \yuesonhei esta noite, o que perdi esta manha, ou até o que, ontem, por um tropeco incerto, acertei sem querer, fazendo o que se cha- im chiste” sem fazé-lo de propésito. Seré que nesse “eu penso”, eu ai estou? Nao hd dtivida que a Jovelagio do “eu ponso” do inconsciente implica (todo mundo sabe \Jisso, tenha feito psicandlise ou néo, basta abrir um livreco e ver \lo que se trata) algo revelado pelo “logo sou” do Cogito de Des- m cartes, que é esta dimensao que eu chamaria de “desativagao” onde mais certamente eu perso, ao me dar conta disso, eu Id estar va, mas exatamente no mesmo sentido (vocés sabem que eu jd us este exemplo, mas a experiéncia me ensina que nao é imutil rey tir), segundo exemplo extraido das observagées do lingitis Guillaume, no mesmo sentido desse emprego muito especifico do imperfeito em francés, que faz toda a ambigitidade da expressao “um instante mais tarde, e a bomba explodia...” O que quer que, justamente, ela néo explodiu. Permitam-me acrescentar, re vestir com esse matiz o “wo es war” alemao, que nao o comporti ea partir disso, acrescentar a0 “wo es war soll ich werden”, w uutilizagio renovada que se pode dar dele. Lé onde isso estava, onde nao esta mais sendo 14, porque eu sei que eu o pensei, “soll ich werden”. Ici, hd muito que sublinhei, s6 pode ser traduzido pelo Sujeito, o sujeito deve advir. Mas sera que ele pode advir? Fis a questao! “La onde isso estava...” vamos traduzir “eu devo tornar-me", continuem, “psicanalista”, 6 que, pelo fato da questéo que colo quei - deste ich traduzido pelo sujeito - como vai poder o psicana- lista encontrar seu lugar nesta conjuntura? Esta conjuntura é aquela que, no ano passado, eu articulei expressamente, ao titulo de “16 gica da fantasia”, pela conjuncéo disjuntiva, por uma disjungdo muito especial que a que eu introduzi faz mais de tés anos, fax zendo uma inovacao, com o termo “alienagao”. E, a saber, a que’ propée essa escolha singular, cujas conseqtiéncias articulei, por ser uma escolha forgada e forgosamente perdedora: “A bolsa ow vida", “a liberdade ou a morte”. A ultima, que introduzimos aq e que eu apresento para mostrar sua relagio com o ato psicanaliti- co & “ou ett nfo penso ou eu nao sou”. Se vooés acrescentam ai, como acabo de fazer com o “soll icit werdeit”, 0 termo que é preck samente 0 que esté em questao no ato psicanalitico, o termo “o psicanalista”, basta fazer funcionar essa maquininha, evidentemen- te nao ha porque hesitar: se de um lado eu nao sou psicanalista, resulta disso que eu ndo penso. Claro, isso nao tem um interesse apenas humoristico, mas deve conduzir-nos a algum lugar, e particularmente a nos perguntar 0 que restou de nossa experiéncia do ano passado, naquilo que cha- 2 inorei de suposigdo inicial constitufda pelo “ou eu ndo penso oueu sou”. Como e por que ela nao somente se verificou eficaz, como n necessdria ao que, no ano passado, chamei de uma “légi- 0 da fantasia”, a saber, uma ldgica tal que conserva, em si, a pos- vibilidade de dar conta do que é a fantasia e de sua relagao ao sciente. Para estar 14 como inconsciente, nao é necessario ainda que ou pense, como pensamento, em que consiste seu inconsciente. La onde eu 0 penso, 6 para nao mais estar em mim. Eu nao estou mais, 4), “Bundo estou mais ai”, responder pela pessoa que responde & porla “o senhor nao esté ai”, é um “eu nfo estou at” enquanto & dito. 8 precisamente nisto que reside sua importancia. E precisa- mente isso, em particular, 0 que faz com que, como psicanalista, undo passa pronuncié-lo. Vejam o efeito que isso teria em minha clientela! E também isso que me encurrala na posigao do “eu nao penso”. Pelo menos, se o que eu avanco aqui como l6gica for capaz, dle ser seguido em seu fio verdadeiro, “eu nao penso” poderia ser. Tendo desenhado os dois circulos debaixo e sua intercessdo, mar- quel com todas as aspas da prudéncia, e para dizer a vocés que ito é preciso alarmar-se muito, esse falso-ser é 0 ser de todos nds. Janais se é tao s6lido em seu ser como quando nao se pensa. To- dos sabem disso. $6 que, apesar disso, eu queria marear bem a distingao que proponho hoje. Ha duas falsidades distintas. Todos sabem que quando ew entrei na psicandlise com uma varredura, que se chamava o esté- dio do espelho, comecei por demarcar, porque afinal estava em I'reud, esté dito, demarcado, seriado - tomei o estédio do espelho para fazer um cabide. Esté mesmo jé muito mais acentuado do que ymais pude fazé-lo, no curso de enunciagSes que poupavam as iensibilidades, que néo hd amor que nao dependa dessa dimensio arcisica; se sabemos ler Fre4, 0 que se opde ao narcisismo, o que chama a libido objetal (0 que concerne ao canto A esquerda, em baixo: 0 ebjeto a, pois é isso a libido objetal), nao tem nada a ver com 9 amor, uma vez que o amor é onarcisismo eos dois se opdem: 4 libido narefsica a libido objetal Logo, quando eu falo de “falso-ser”, nao se trata do que vem se alojar 14, de alguma forma, por cima como as craeas no casco do incon a navio, se quiserem. Nao se trata do ser inchado do imagindrio, Trata-se de algo debaixo, que Ihe dé seu lugar. Trata-se do “eu ndo penso”, em sua necessidade estruturante, enquanto inscrito neste ponto de partida sem o qual nao poderiamos, no ano passado, ter articulado coisa alguma sobre o que éa légica da fantasia. Naturalmente, é um lugar comodo, este “eu ndo penso”. Nao é apenas o ser inchado de que falava nesse instante, que ai encon- tra seu lugar. Tudo cabe nele, o preconceito médico em geral, 0 preconceito psicolégico ou psicologizante, no menos. De modo geral, observem que, em todo o caso, o psicanalista é particular- mente sujeito a esse “eu néo penso”, porque ele é habitado por tudo o que acabo de enunciar, de caracterizar como preconceitos, qualificando-os por sua origem, Ele tem outros a mais, sobre os médicos, por exemplo. Sua vantagem, se posso dizer isso, quando. as voltas com o preconceito médico (Deus sabe que isso ocorre niuito, para nao falar sendo deste), bem... é justamente que ele nao pensa nisso. Aos médicos, isso ainda inquieta, ndo ao psicanalista. Ele 0 toma tal e qual, justamente na medida em que ele tem essa dimensio que ¢ apenas um preconeeito, mas jé que se trata de nfo pensar, ele est tanto mais A vontade com cle. Salvo excecio, vocés ja viram algum psicanalista que se tenha interrogado sobre o que é Pasteur na aventura médica? Pasteur néo é um temana moda, mas poderia ter tido interesse justamente para um psicanalista. Jamais aconteceu. Vamos ver se isso muda. Em todo o caso, seria necessério propor aqui este pequeno exercicio: 0 que € 0 ponto inicial? Vale a pena levantar a questo se, como vislumbramos no inicio, (0 eixo, hoje, de nosso progres- 80) 0 ato, em si, est sempre em relagio com um comego. Esse co- mego l6gico, foi de propésito que nao levantei a questo no ano passado, porque, na verdade, como mais de um ponto desta légica da fantasia, ns terfamos que deixd-lo em suspenso; vamos caracterizé-lo com apyn, uma vez, que foi assim que entramos hoje, pelo comego. B uma apyn, um initiuut, um comego, mas em que sentido? Serd no sentido do zero em um aparellninho de medida? Um ser, por exentplo, simplesmente, Nao é um mau inicio levantar essa questio, porque desde jé parece, fica claro que levantar essa ques- as (io significa excluir que seja um comego no sentido do ndo marea- do. Notamos, inclusive, que 86 0 fato de que seja preciso interro- jar esse ponto deapyn, saber se ele é o zero, indica que, em todo o ‘so, ele jd esta marcado e afinal estamos indo bastante bem, pois 6 o cfeito da marca que com satisfagio deduzimos 0 “ou eu nao jenso ou eu nao sou”, ” ow eu nao sou esta marca” ou “eundo sou junta sendo esta marca”, quer dizer, “eu nao penso”. Para o psica- lista, por exemplo, isso se aplica muito bem. Ele tem o label, ou onto ele nao 6. Sé que é preciso nao se enganar. Como acabo de indicar ago- 14, a0 nivel da marca nao vemos sendo o resultado justamente ne- irio da alienac&o, a saber, que nao hé escalha entre a marca eo jor (de forma que se isso deve marear-se em algum lugar, é justa~ mente no alto, & esquerda, cf, esquema do “eu nao penso"); 0 efei- \o alienatério jé esta estabelecicio e nao estamos suxpresos de encontrar ali, sob sua forma de origem, o efeito da marca, 0 que ost suficientemente indicado nessa dedugdo do narcisismo que fi em um esquema que pelo menos parte de vocés conhece, aque- Je que p8e em relagaio, em sua dependéncia, o eu ideal eo ideal do ou Fica, ent&o, em suspenso saber de que natureza é 0 ponto de partida légico, enquanto ele mantém ainda na conjungéo anterior | disjunc&o, o “eu nao penso” eo “eu néo sou”. Seguramente, nio poderiamos retornar para 0 ano passado (j4 que era nosso ponto le partida e, se posso dizer, o ato inicial de nossa dedugio légica), se nao tivéssemos tido 0 que constitui a abertura, a hidncia sempre hecessaria de reencontrar em toda exposi¢aio do campo analitico, que nos fez, depois de ter edificado 0 tempo da légica da fantasia, passar 0 tiltimo trimestre ao redor de um ato sexual, definido pre- cisamente por isto: que ele constitui uma aporia. Retomemos entaio, a partir do ato psicanalitico, esta interro- io do que 6 0 initinm da Logica da fantasia que me era necessa- rio aqui comegar a recordar. Por isso escrevi no quadro, hoje, esta jace que articulei dela, no ano passado, sob os termos de operacio alienagao, operagao verdade, operagdo transieréncia, para fazer deles trés termos do que se pode chamar um grupo de Klein, com a condicao, claro, de que se perceba que, ao nomeé-los assim, nao ‘vemos seu retorno (a operacéio do que constitui, para cada uma, a operagao retorno), que aqui, tal como esto inscritos com essas indicagSes vetoriais, nao se trata sendo, se posso dizer isso, da metade de um grupo de Klein. Retomemos o ato no ponto sensfvel em que o vemos na insti- tuigdo analitica, e voltemos a partir do comego, enquanto isto hoje quer dizer que 0 ato institui o comego. ‘Comegar uma psicanélise é um ato, sim ou nao? Certamente que sim. Mas, quem é que faz esse ato? Fizemos notar, ha pouco, que para aquele que se engaja na psicanélise, isso implica justa- mente uma demissdo do ato. Torna-se muito dificil, nesse sentido, atribuir a estrutura do ato para aquele que se engaja em uma psi- candlise. Uma psicanilise é uma tarefa, e alguns dizem até que é um oficio, Nao sou eu que 0 digo, mas pessoas que, ainda assim, sao entendidas. B preciso ensinar-lhes seu offcio, 8s pessoas que tém ou ndo que seguir a regra, qualquer que seja a forma que vo- cés definam. Enfim, nao sediz.o oficio do psicanalisando. Vao dizé- lo agora jé que a palavra corre; entretanto, 6 isso o que quer dizer. Logo, esté claro que se ha ato, provavelmente ¢ preciso procuré-lo em outro huger. Mesmo assim, nao precisamos fazer muita forga para dizer que, se nao é do lado do psicanalisando, é do lado do psicanalista. Nao hé dtivida alguma. Apenas, surge uma dificuldade. Porque, apés o que acabamos de dizer, o ato de colocar 0 inconsciente, ser que é necessrio para o psicanalista recolocé-loa cada vez? Seré isso verdadeiramente possivel, sobre- tudose pensarmos que, depois do que acabamos de dizer, recolocé- Joa cada vez seria nos dar, a cada vez, uma nova ocasido para nao pensar? Deve haver outra coisa af, uma relacéo da tarefa ao ato que talvez ndo seja o ser. Talvez seja necessdrio tomar um desvio. De imediato, vemos onde nos ¢ fomnecido esse desvio: em um outro comeco, neste momento de comego no qual nos tornamos psicana- listas. E necessario levarmos em conta 0 que esté 14, nos dados, para acreditar no que se diz; certamente é necessério se fiar, neste dominio. 86 Comecar a ser psicanalista, todo o mundo sabe, é algo que comega no fim de uma psicandlise. Basta tomarmos isso, tal como hos € dado, Se quisermos aprender qualquer coisa, é preciso par- lir disso, deste ponto que é, na psicandlise, aceito por todos. Entio, partamos das coisas tais como se apresentam. Chegou- ww a0 fim uma vez, 6ai que € preciso deduzir a relagéo que isso tem com o comego de todas as vezes. Chegou-se ao fim de sua psicans- lise uma vez, e é este ato, to dificil de apreender no comeco de cada uma das psicandlises, que nés garantimos. Isso deve ter uma rolago com esse fim, uma vez. Ora, é necessério, afinal, que sirva para algo 0 que avancei no ano passado, a saber, a forma pela qual we formula, nessa légica, o fim da psicandlise. fim da psicandlise supée uma certa realizagao da operacao verdade, a saber, que, com eieito, se ele deve constituir esse tipo dle pereurso que, do sujeito instaladc em seu falso-ser Ihe faz reali- yar algo de um pensamento que comporta 0 “eu nao sou", issondo xe dé sem reencontrar, como convém, sob uma forma cruzada e ida, seu lugar do mais verdadeiro, seu lugar sob a forma do "i onde isso estava”, ao nivel do “eu nao sou” que se encontra nesse objeto “a”, do qual me parece que nés fizemos bastante para a voces 0 sentido e a pratica e, por outro lado, essa falta que subsiste ao nivel do sujeito natural, do sujeito do conhecimento, clo falso-ser do sujeito; essa falta que, desde sempre, se define como sencia co homem e que se chama o desejo, mas, que ao fim de uma andlise, se traduz por essa coisa no somente formulada mas, encarnada, que se chama a “castragio”. E isso que nés habitualmente etiquetamos com a letra -@. A versio dessa relacao da esquerda a direita, que faz. corresponder © “eu no penso” do sujeito alienado a0 “la onde issa estava’” do inconsciente, na descoberta do “lé ande isso estava” do descjo no Uujeito, no “eu nao sou” do pensamento inconsciente. Isso se revi- jondo é propriamente o que suporta a identificagao do “a” como usa do desejo, e do - como o lugar onde se inscreve a hiancia propria ao ato sexual. E precisamente af que devemos nos deter por um instante. yes véem, 6 palpavel, hd dois “wo es war”, dois “4 onde isso ostava”, e que correspondem além disso, a distfncia que cinde, na 87 teoria, 0 inconsciente do Isso. Hé 0 “IA onde isso estava”, acti ins- ctito ao nivel do sujeito (j4 disse e repito para que voces nao dei- xem passar), onde ele fica ligado a este sujeito como falta. Existe outro “lé onde isso estava” que tem um lugar oposto, é este que est embaixo, & direita do lugar do inconsciente, que fica ligado ao “eu nao sou” do inconsciente como objeto, objeto de perda. O objeto perdido inicial de toda a génese analitica, esse que Freud martela em toda sua época do nascimento do inconsciente, ele estd af, esse objeto perdido, causa do desejo. Teremos que vé-lo como no principio do ato. Mas isso é apenas um antincio. Nao o justifico imediatamen- te, falta-nos um trecho de caminho, antes de estarmos certos disso; pararmos ai, por um tempo. $6 vale a pena, em geral, parar um tempo para perceber o tempo que se passou sem 0 saber, diriamos em outro lugar, para poder volar. Passado... valeria mais dizer passando, se vocés me permitem brincar com as palavras, nao sem. o saber (pas saris le savoir). Quer dizer, com o saber, passou-se. Mas, justamente, foi por- que expus a vocés o resultado de meus esquemas do ano passado, supostamente sabidos por vocés, se é que nao ha af algum abuso. Sim, foi com esse saber que eu passei esse tempo, rapido demais, quer dizer, com pressa. Como vocés sabem, a pressa € justamente © que deixa escapar a verdade; isso nos permite viver, de outro lugar. A verdade é que a falta (do alto a esquerda) é a perda (de baixo a direita). Mas esta perda é causa de outra coisa. Nés a cha- maremos de “causa desi”, coma condigao, claro, de que vocés nao se enganem. Deus é a causa de si, nos diz Spinoza. Acreditava fa- lar to bem? Por que néo, afinal? Era alguém de muito forte. 5 certo que o fato de conferir a Deus ser a causa de si dissipou toda a ambigiiidades do Cogito, 0 que poderia bem ter uma pretensio semelhante, ao menos no espirito de alguns. Se ha algo que a expe- riéncia analitica nos lembra, 6 que se a expressio “causa de si” quer dizer algo, é precisamente indicar que 0 “si”, ou o que assim, se chama, dizendo de outra forma, o sujeito, ¢ exatamente onde é necessirio que todo mundo chegue, jé que até mesmonum campo anglo-saxao, no qual podemos dizer que néo compreendem nada de nada dessas questdes, teve que surgir a palavra “self”, que néo 88 adapta & parte alguma, na teoria analitica, nada lhe correspon- de. O sujeito depende desta causa que 0 faz dividido que se chama © objeto “a”, eis quem assina o que 6 importante de ser jublinhado: que o sujeito nao é causa de si, que ele é conseqiiéncia dla perda e que seria preciso que ele se colocasse na conseqiiéncia dla perda, a que constitui o objeto “a”, para saber o que lhe falta. Lis em que eu digo que nés {amos muito depressa na enunci- gio, tal como fiz, dessas duas pontas do oblfquo, da esquerda a diveita e de alto a baixo (esquema), dos dois termos separados da divisaio primeira. Coisa supostamente sabida no enurciado de que 0 ld onde isso estava” é falta a partir do sujeito. Na verdade, ela 6 06 seo sujeito se faz perda. Ora, é que ele $6 pode pensar fazen- do-se ser. “Eu penso, diz ele, logo eu sou”. Ble se rejeita invencivel- mente no ser desse falso ato que se chama o Cogito. Oato do Cogito 6 o erro sobre o ser, como nés podemos ver na alienagio definitiva dlo corpo, que dele resulta, que é rejeitado na extensio. A rejeicao lo corpo fora do pensamento é a grande Verwerfung de Descar- (es, Bla 6 assinalada por seu efeito que reaparece no Real, ou seja, ho impossivel. £ impossivel que uma méquina seja corpo. Por isso © saber 0 prova sempre mais, colocando-a em pecas destacadas. Nessa aventura nés estamos, acho que nao preciso fazer alusdes a isso. Mas, deixemos, por hoje, nosso Descartes para retomar a se- qiiencia e a pontuagao que é preciso dar hoje a nosso desenvolvi- mento. O sujeito do ato analttica, nds sabemas que ele nao pode sa- ber nada do que se aprende na experiéncia analitica, exceto que af opera 0 que chamamos a “transferéncia”. A transferéncia, eu ares- lanrei em sna forma completa ao reporté-la ao sujeito suposto sa- ber final da andlise consiste na queda do sujeito suposto saber, e sua redugio ao advento desse objeto “a”, como causa da divisto do sujeito, que vem ao seu lugar. Aquele que, fantasmaticamente, joga a partida com o psicanalisanco como sujeito suposto saber, a saber, © analista, é aquele (0 analista) que vem, ao termo da andli- se, a suportar no ser nada mais que este resto. Esse resto da coisa 09 sabida que se chama o objeto “a”. ao redor disso que deve incidir nossa questo. O analisando vindo ao fim da anélise no ato (se h4 um) que o leva.a tornar-se o psicanalista, ndo precisamos ver que ele s6 opera essa passagem no ato que remete ao seu lugar o sujeilo suposto saber? Vemios agora onde est este lugar, porque ele pode ser ocu= pado, mas sé seré ocupado na medida em que este sujeito suposto saber se reduza a este termo (em que aquele que até ali o garantiu por seu ato, a saber, o psicanalisia, tornou-se este residuo), o obje- to “a”, Aquele que no fim de uma andlise didética aceita, se posso dizer, o desafio desse ato, néo podemos omitir que é sabendo 0 que seu analista se tornou na efetuacao desse ato, a saber, este re- siduo, este dejeto, esta coisa rejeitada. Ao restaurar o sujeito su- posto saber, ao retomar, ele mesmo, a tocha do analista, impossivel que ele nao instale, ainda que sem perceber, que ele nao instale 0 “a” no nivel do sujeito suposto saber. Esse sujeito suposto saber, que ele tem que retomar como condigao de todo o ato analttico, ele sabe, neste momento que chamei de passe, ele sabe que li esté a de-ser que por ele, o psicanalisando, feriu 0 ser do analista. Digo “sem perceber”, pois é assim que ele se engaja. Pois desse de-ser instituido no ponto do sujeito suposto saber, ele, o sujeito no pas- se, no momento do ato analitico, nada sabe a seu respeito. Isso, justamente, porque ele tomou-se a verdade desse saber e, se posso dizer assim, uma verdade que é atingida “nao sem o saber” (pas sans le savoir), como dizia ha pouco..., bem, é incuravel: somos esta verdade. ato analitico no inicio funciona, por assim dizer, com 0 su: jeito suposto saber falseado, pois o sujeito suposto saber se revela agora o que era bem simples ver de imediato: que é ele que esta nc ‘apxn da légica analitica. Se aquele que se torna analista pudesse ser curado da verdade que ele se tornou, ele saberia marca o qué ocorreu de mudanga no nfvel do sujeito suposto saber: é 0 queem nosso grafico marcamos com o significante S(A) Seria necessério perceber que o sujeito suposto saber 6 redu- zido, ao fim da anélise, ao mesmo “nao estar ai” que & 0 que é 90 ‘uiacleristico do préprio inconsciente, e que esta descoberta faz arte da mesma operacao verdade. Repito, a colocagao em questo do sujeito suposto saber, sub- \yorsilo que implica, eu diria, todo o funcionamento de saber e que iimeras vezes jé interroguei ante vocés desta forma: entao, este suber, seja o do nlimero transfinito de Cantor ou o do desejo do jinilista, onde estava antes que soubéssemos? Somente daf, talvez se possa proceder a uma ressurgéncia do her, cuja condigao é perceber que sua origem e sua reinterpelagao é )\ jue se poderia fazer do significante do Outro enfim desvanecido pura © que o substitu, jA que também é de seu campo, do campo lo Outro, que este significante foi arrancado, a saber, o objeto “a”, © @ perceber também que o ser tal como ele pode surgir de qual- {Mier ato que seja, é ser sem esséncia como sao sem esséncia todos (on objetos “a”. E 0 que as caracteriza. Objetos sem esséncia que 40, ou nao, reevocados no ato, a portir dessa espécie de sujeito que, como veremos, é 0 sujeito do (0, de todo o ato; diria, uma vez que, como sujeito suposto saber, 6 1um sujeito que nao esta no ato, ao final da experiéncia analitica. Notas do Tradutor grande année~ perfodo de tempo determinado pela revolucéo dos equinécios, ouem queasestrelase constelacdesretornamaseu ugar inicial em relagao aos equindcios. Essa revolugio dura aproximada- mente 26.000 anos. |. jew de paume -juramento que fizeram em 20 de junho de 1789, os dleputados do terceiro estado, de ndo se separar Sem ter dado uma constituigao a Franca. |. j'yswis-notar queacontinuagio dessa discussaioémelhorentendida se tomarmos em consideracdo a dupla traducio possivel do verbo tre: ser ow estar. |. desamorgage - acho de desarmar uma arma de fogo. o 2 label - em inglés, r6tulo, etiqueta, marca. etre - poderia ser traduzido também como “s6-10”, Pas snus le savoir: Lacan joga com a homofonia entre “passant” (passando osaber) e “prs sans” (ndo sem sabé-lo). Como opas, alé danegacao pode significar “passo”, poderfamos também ler “pass sem saber”. Seminario de 17 de janeiro de 1968 Falando do ato psicanalitico tenho, se assim posso dizer, duas pigdes: uma longa e uma curta, mas forgosamente a curta é a juelhor. A longa, que nao pode ser descartada, ¢ esclarecer 0 que é © alo; a curta 6 saber em que consiste 0 ato do psicanalista. Em escritos passados, jé falei do psicanalista; disse que partia as disto: que ha psicanalista, A questo de saber se hé “o” salista também nao é absolutamente para ser deixada de lado, sa de saber como ha um psicanalista é uma questdo que 3 yea quase nos mesmos termas que 0 que se chama em légica a uiestio da existéncia O ato psicanalitico, se € um ato, e foi precisamente dai que juortimos desde o ano passado, éalgo que nos levanta a questo de anliculé-lo, de dizé-1o, o que € legitimo e, mais ainda, 0 que impliza conseqii@ncia de ato, na medida em que o ato é, por sua prdpria dlimensio, um dizer. O ato diz algo. Foi daf que partimos. ssa dimensdo sempre foi percebida. Ela esta presente no falo, 1.0 experigncia, Basta evocar, mesmo por um instante, as formulas pregnantes, fSrmulas que agiram, como a de “agir segundo sua Consciéneia”, para aprender de que se trata. Agir segundo sua consciéncia, esté exatamente af uma espécie de ponto-mediano ao jedor do qual se pode dizer que girou a histéria do ato, ou quese alge 98 podria tomar como ponto de partida para centré-la. Agir segun do sua consciéncia, por que? E diante de quem? A dimensio do Outro, na medida em que o ato vem testemu» nhar algo, nao é mais eliminavel. Sera que isso quer dizer que est nela o verdadeiro ponto de inflexao, 0 centro de gravidade? Pode: remos nés, mesmo por um instante, sustentd-lo de onde estamos, quer dizer de onde a consciéncia como tal é colocada em questio, colocada em questo na medida em que ela leva a que? Certamen= te que nao ao saber, a verdade também nao. f dai que voltamos @ partir, tomando a medida do que ainda no esta definido, do que ainda nfo esta verdadeiramente seguro, do que esté somente in- troduzido aqui, nem mesmo suposto: o ato psicanalitico para reinterrogar esse ponto de equilibrio, em torno do qual se coloca a questio do que é 0 ato. No horizonte, claro, nés sabemos, um rumor, um rumor que vem de longe, que vem dos tempos chamados classicos, ou ainda de nossa Antiguidade, onde seguramente sabemos que em tudo 0 que € dito sobre 0 sujeito do ato exemplar, do ato meritério, do Plutarquismo, se quiserem, certamente nés jé sentimos que hé um pouco de estima de si em excesso a entrar no jogo; e, entretanto, estaremos to distanciados disso? Achamos que hoje, é ao redor de um discurso sobre 0 sujeito que nés retomamos 0 ato, e que nossa vantagem 86 poderia residir no fato que nos fez restringir 0 ponto de apoio deste sujeito, impondo-nos a mais rude disciplina, por nao querer tomar como certo nada além desta dimensao pela qual ele é sujeito gramatical. Notem que isto nao é novo, que no ano passado, em nossa exposicéo da l6gica da fantasia, marcamos em seu lugar, o lugat do “eu nao penso”, essa forma de sujeito que aparecia como arran= cado' do campo a ele reservado. Essa dimensao propria a gramati- ca que fazia com quea fantasia pudesse ser literalmente dominada por uma frase que nio se sustenta, ndo se concebe de outra forma que nfo seja pela dimensio gramatical: “ein kintd wird geschlagen", bate-se numa crianga. Nés a conhecemos. Est af o ponto de um dado o mais seguro, ao redor do qual, em nome do qual, postulamos a titulo disciplinar que nao existe metalinguagem. A propria légica deve ser exiraida deste dado que 94 9 linguagem. ft em torno desta légica, pelo contrario, que fize- \os girar essa tripla operacao, por um tipo de tentativa de ensaio Jo grupo de Klein, operagao que, no encaminhamento por onde o aborcamos, comecamos por apontar com os termos “alienacao”, vordade” e “transferéncia’. Certamente, so apenas toques. Sen- Jo percorrido em um certo sentido, somos (para nos reencontrar ‘\), para apoiar o que eles podem representar para nés) forcados a Jhos dar um outro nome, e claro, com a condigio de percebermos jue se trata do mesmo trajeto. Entao, 6a partir da subversao do sujeito que, hé uns dez anos, | articulames 0 suficiente para que se conceba qual o sentido que joma esse termo, no momento em que dizemos que é da subversio Jo pujeito que temos de retomar a funcao do ato; para que vejamos ue 6 entre esse sujeito gramatical, esse que esta ld, inscrito na pré- pri nogao de ato, da forma pela qual ele nos é presentificado, 0 eu’ da ago, e esse sujeito articulado em termos escorregadios, wompre prontos a nos fugir por um deslocamento, de um salto, para um dos vértices deste tetraedro, lembrando vocés as funcdes esses termos, a saber A posigdo do “ou-ou”, de onde parte a alicnagio originaria, aquela que desemboca no “eu nao penso”, para que ele possa até wer escolhido - e © que quer dizer esta escolha? - 0 “eu nao sou” wrticula © outro termo dela; esses vetores, ou, mais exatamente, ossas diregdes nas quais so tomadas as operagdes fundamentais, vendo aquelas que lembrei h4 pouco, com os termos “ alienacao”, verdade” e “transferéncia”. Hu mtiopento . oven OY Alienagio fig Po Verdade fo ( Euntosos 8 (9) 95, O que é que isto quer dizer? Onde isto nos conduz? Qato psicanalitico, nés o propomos como consistindo em su= portar a transferéncia. Nés nao dizemos quem suporia, quem faz ‘alo; o psicanalista, entéo, implicitamente. Essa transferéncia que seria uma pura e simples obscenidade, eu diria, redobraria de baboseiras se nao lhe restitufssemos seu verdadeiro né na fungao do sujeito suposto saber. Fazemos isso aqui, jé hé um tempo, de= monsirando que tudo o que se articula, em sua diversidade, como feito de transferéncia, s6 poderia se ordenar ao ser referido a esta fungdo verdadeiramente fundamental, sempre presente em tudo que é nenhum progresso de saber, e que toma aqui seu valor justa= mente porque a existéncia do inconsciente a coloca em questo, ‘Questo jamais levantada pelo fato de que estamos sempre af, se podemos dizer assim, implicitamente; a resposta é inclusive desa~ percebida. Do momento em que ha saber, ha sujeito, e é preciso algum deslocamento, alguma fissura, algum abalo, algum momento de “eu” nesse saber, para que de repente ele se dé conta, para que assim se renove esse saber que ele sabia antes 1Iss0 é dificilmente notado,no momento em que acontece, mas €0 campo da psicandlise que o torna inevitavel. Em que consiste 0 sujeito suposto saber, ja que temos a ver com esse tipo de impensé= vel que, no inconsciente, nos situa um saber sem sujeito? Claro, eis ai algo de que também nao podemos nos dar conta, se continua= mos a considerar que esse sujeito esta implicado nesse saber, dei- xando muito simplesmente escapar tudo 0 que é a eficiéncia do recalque, ¢ que s6 se pode conceber assim: que o significante pre- sente no inconsciente e susceptivel de retormo é recalcado precisa mente na medida em que ele nao implica o sujeito, em que nao é mais a qne representa 1m sirjeita para um outro significante; que é ‘o que searticula a um outro significante sem, entrelanto, represen tar esse sujeito. Nao h4 outra definicdo possivel do que 6, verda- deiramente, a fungao do inconsciente, uma vez. que o inconsciente freucliano nao € simplesmente esse implicito, ou esse obscurecido, ou esse arcaico, ou esse primitive. O inconsciente esté sempre em um registro inteiramente diverso, no movimento instaurado como: fazer por este ato de apoiar, ou de aceitar apoiar a transferéncia, 96 A questo &: 0 que se toma o sujeito suposto saber? Vou Thes liver que, em princfpio, o psicanalista sabe o que ele se torna. Se- juuramente, ele cai. O que esta implicado teoricamente nessa sus- jicnsiiodo sujeito suposto saber, esse traco de supressio, essa barra sobre 0 S, que a simboliza, no decorrer da andlise se manifesta xis- so: que alguma coisa se produz num lugar, certamente que 20 iulilerente ao psicanalista, j4 que é neste mesmo lugar que essa surge. Essa coisa se chama o objeto pequeno “a”. O objeto pequeno “a” 6. realizacao desse tipo de de-ser que linge o sujeito suposto saber. Nao ha diivida que é o analista, e como tal, que chega nesse lugar e isso se marca em todas as infe- {0ncias onde ele se sentiu implicado, ao ponto de nao poder senio \n(letir o pensamento de sua pratica no sentido da dialética da frus- (ago, voc8s sabem, ligada ao redor do fato de que ele mesmo se \presenta como a substancia da qual ele é jogo e manipulacéo no {ver analitico. Mas ¢justamente por desconhecer o que ha de dis- linlo entre esse fazer e o ato que o permite, o ato que o institui; j\jucle do qual parti hé pouco, definindo-o como essa aceitagao, ine suporte dado ao sujeito suposto saber que, entretanto, o psi- cynalista sabe ser destinado ao de-ser e que portanto constitt:, se posso dizer assim, um ato em falso, j4 que ele ndo é o sujeito su- posto saber, j4 que ele nao pode sé-lo. E se hé alguém que o saiba, 6, entre todos, o psicanalista. E necessdrio que seja agora, ou um pouquinho mais tarde... Sim, mas por que nao agora, por que nao de imediato? - mesmo que se volte a isso que espero tornar familiar a vocés, lembrando was coordenadas em outros registros, em outros enunciados. Pre- ainda lembrar-lhes que a tarefa analftica, na medida em que delineia a partir desse ponto do sujeito jé alienado, em um corto sentido ingénuo em sua alienacao, aquele que o psicanalista \be ser definido pelo “eu nao penso”, que a tarefa em que ele 0 coloca éem um “eu penso” que toma justamente todo o seu peso dle que ele saiba 0 “eu nao penso” inerente ao estatuto do sujeito? Ele 0 pée na tarefa de um pensamento que se apresenta, de olguma forma, em seu préprio enunciado, na regra que o inst:tui, como admitindo essa verdade fundamental do “eu nao penso”: (jue ele associe e livremente, que ele nao procure saber se esti ou 7 nao por inteiro, como sujeito, se ele af se afirma. A tarefa a qual 0 ato psicanalitico da seu estatuto é uma tarefa que jé implica essa destituigao do sujeito. E aonde isso nos conduz? E preciso lembrar-se (ndio se deve constantemente esquecer) que, em Freud, o quese ar‘icula expressamente do resultado é algo que tem um nome, e Freud nao nos deu mastigadinho. F algo que deve ser valorizado ainda mais pelo fato de que, como experiéncia subjetiva, isso jamais foi fe to antes da psicandlise. Chama-se a “cas- trag&o”, que deve ser tomada em sua dimensao de experiéncia sub- jetiva, na medida em que em canto algum, se nao for por esta via, 0 sujeito nao se realiza, Refiro-me ao sujeito, claro. aSeate wie — ° Oa SO tu a eee aaa (0) Esse sujeito nao se realiza exatamente sendo enquanto falta, 0 que quer dizer que a experiéncia subjetiva desemboca nisto que simbolizamos por -g. Mas se todo o uso da letra se justifiea por demonstrar que basta o recurso sua manipulagio para ndo se enganar, desde que se saiba usé-la, no é menos verdade que te- mos 0 direito de tentar poder af colocar um “existe” - que evocava ‘4 pouco a propésito do psicanalista,no inicio do discurso cle hoje ~ e que esse “existe” em questo, esse “existe” de uma falta, 6 pre- ciso encarné-lo no que lhe dé efetivamente seu nome: a castracio. E, a saber, que © sujeito realize que ele nao tem, ele néo tem o 6rgao do que chamaria o gozo tinico, unario, unificante. Trata-se propriamente do que faz UM do gozo, na conjungao de sujeitos de sexo oposto, quer dizer, isso sobre o que insisti, no ano passado, destacando que nao ha realizacao subjetiva possivel do sujeito como 98 elemento, como pareeiro sextiado, no que se imagina como unifi- Jo no ato sextial. Essa incomensutabilidade - que tentei circunscrever com pre- cisio para vacés, no ano passado, usando ontimero 4ureo, na me- ida em que é 9 simbolo que permite jogar mais a vontade, eis ai ilo sobre 0 que nao posso insistir pelo fato de que é do registro imatematico - essa incomensurabilidade, essa relagdo do pequeno ‘a (ja que retomei o pequeno “a”, ¢ no foi a toa, para simbolizé- lo com o ntimero éureo), do pequeno “a” ao 1, eis onde se joga 0 {jue aparece como realizagao subjetiva ao fim da tarefa analitica. A suber, essa falta, isso nao € 0 érgio. Isso, claro, nao deixa de ter um plano de fundo, se imaginamos que o 6rgao e a funcao sfio duas diferentes. TAo diferentes que se pode dizer que retorna, de vex em quando, o problema de saber que fungio é preciso dar a cada 6xgao, ¢ af é que esté o verdadeiro problema da adaptacio do vivo. Quanto mais hé érgdos, mais ele fica atrapalhado. Mas, va- os interromper... ‘Trata-se, portanto, de uma experiéncia limitada, de uma ex- periéncia légica e, afinal, por que n&o? J4 que, por um instante, yallamos para o outro plano, para o plano da relacao do vivo a si- nlesme, que nés s6 abordamos pelo esquema dessa aventura sub- |etiva, € preciso lembrar aqui que, do ponto de vista do vivo, tudo »s0, afinal, pode ser cansiderado como um artefato. Se a logica for © lugar da verdade, nada muda, uma vez que a questo que surge 0 final é justamente essa, a qual saberemos dar todo o seu peso, a wou tempo: o que € a verdade? E importante ver que dessas duas linhas, as que designei como ‘\larefa, 0 caminho percorrido pelo psicanalisando, enquanto fala, lo sujeito ingénuo que é tambémo sujeitoalienado, a esta realiza~ cio da falta, enquanto (mostrei z vocés, na tiltima vez) esta falta hilo € © que sabemos estar no lugar do “eu nao sou”. Essa falta va lt desde 0 infcio, e sempre soubemos que essa falta é a es- \ncia mesma desse sujeito que se chama As vezes de homem, jé {ue 0 desejo, j4 0 dissemos, é a esséncia do homem. Muito sim- plesmente, essa falta fez um progresso na articulacao, em sua fun- (ho de organtm?, progresso légico essencialmente, nessa realizado la falta falica, como tal. Mas ele implica que a perda, enquanto 99 estava primeiro nesse mesmo ponto, antes que o trajeto fosse per- cortido, e simplesmente para nds que sabemas (a perda do objeto que esté na origem do estatuto do inconsciente, sempre foi algo. expressamente formulado por Freud), seja realizada em outra par te, Bla 0 6, foi disso que parti, precisamente ao nivel do de-ser do sujeito suposto saber. Ena medida em que o que da o suporte & transferéncia esta 1A sob a linha negra, que ele sabe de onde parte, nao que ele esteja ld, ele sabe bem demais que néo esté |, que ele nao é o sujeito supose to saber, mas que é alcancado pelo de-ser que atinge o sujeito su- posto saber, e que no final é ele, © analista, que da corpo ao que esse sujeito se torna, sob a forma de objeto pequeno “a”, Assim, como é de se esperar, esta conforme a toda nogio de estrutura, a funcao da alienagao que estava no inicio, e que fazia com que par- tissemos do vértice (no alto a esquerda) de um sujeito alienado, encontra-se no fim igual a si mesma, se posso dizer, nesse sentido. de que o sujeito que se realizou em sua castragao pela via de uma operacio logica, via alienada, remete a0 Outro, se descarrega (eis af a fungio do analista) desse objeto perdido, donde, na génese, nds podemos conceber que se origina toda a estrutura. Distingio da alienagéo do pequeno “a”, enquanto vem aqui a separar-sedo— , que ao fim da andlise é idealmente a realizagio do sujeito; eis 0 processo de que se trata. Bunn penso owen a 2 = ce Veedade at 7) Euniosou () Hé um segundo tempo, nessa enunciago que fago. Abro um paréntese para tratar de algo de que, ha pouco, deixei de fazer 0 100 {jue deveria, o seja, uma introducdo. Chamo aatencao agora para © soguinte: nao é por acaso, simples jogo escolar, idéia de tomar \im ponte familiar com o qual acenaram para vocés no final do ensino secundario, que me refiro ao Cagito de Descartes, E porque ole comporta esse elemento particularmente favordvel para nele jecolocar © percurso freudiano. Certamente que nao para provar jlo sei qual cocréncia histérica, como se tudo pudesse se encaixar, de século em século, em forma de progresso, quando é mais do jue evidente que se isso evoca algo, é bem mais a idéia de labirin- (0. Que importa? Deixemos Descartes... Observem, examinando dotidamente 0 Cogito, que © sujeita que nele € suposto como ser hom pode ser aquele do pensamento. Mas de qual pensamento, om suma? Deste pensamento que acaba de rejeitar todo o saber. Niio se trata do que fazem, apés Descartes, os que meditam sobre \ passagem imediata do “eu penso” ao “eu sou": uma evidéncia que, a seu gosto, cles fazem consistente, fugidia... Trata-se do pr6- prioato cartesiano, enquanto é um ato. O que nos é relatado edito (¢ precisamente por ser dito que ele é ato) sobre esse ponto em que realiza uma suspensio de todo o saber possivel, é que nele esta 0 que assegura o “eu sou”. Serd por ser pensamento do Cogito? Ou ser pela rejeigéio do saber? ‘A questo vale a pena ser levantada, se lembramos do que se chama nos manuais de filosofia de “sucessores”, a posteridade de um pensamento filoséfico, como se se tratasse simplesmente de uma continuacao, de uma porgao de melaco para fazer outra mis- ura, quando se trata a cada vez de uma renovagio, de um ato que nao 6 forcosamente o mesmo, e que se apreendemos Hegel, claro que nele, como em toda a parte, ainda encontramos a colocagao em suapenco do sujeito euposto saber, com a ressalva de qne nao é toa que esse sujeito é destinado a nos dar, ao final da aventura, 0 aber absoluto. Para ver o que isto quer dizer, é preciso examinar um pouco mais, e (por que nao?) examinar desde o ponto de partida. Se a Kenomenologia do Espirito” se institui expressamente por se en- jendrar pela fungio de ato, nao seré visivel na mitologia da luta de morte de puro prestigio, que esse saber de origem, ao ter que ragar seu caminho até se tornar esse impensavel, esse saber abso- 101 luto, do qual se pode até perguntar - e nfo sem razao, jé que Hegel 0 formula - o que poderia representar, mesmo por um s6 instante, 0 sujeito, jé que este saber inicial, que nos é apresentado como tal, 60 saber da MORTE, quer dizer, uma outza forma extrema, radi- cal, de suspensio, como fundamento mesmo, dese sujeito do sae ber. Reinterrogando do ponto de vista das conseqiiéncias 0 que, desde jé, nos ¢ facil perveber, que o que a experiéncia psicanalitica propée como objeto pequeno “a”, na via de meu discurso - en- quanto ele apenas resume, aponta, dé seu signo e seu sentido ao que se articula desta experiéncia por toda a parte - é que na desor dem e confusao que ele engendra, esse objeto pequeno “a” toma o mesmo lugar onde encontramos, em Descartes, essa zejeigtio do saber e, em Hegel, esse saber como saber da morte, saber da morte articulado precisamente na luta até a morte por puro prestigio, da qual sabemos que, seguramonte, enquanto funda o estatuto do mes- tre (esta é sua fungio), é dela que procede essa “Aufhebung” do g0z0. Fato reconhecido. f renunciando, em um ato decisivo, 20 g0z0 para se fazer sujeito da morte, que o mestre se institui. Para nés, é também neste ponto, jé ressaltei a seu tempo, que se promo- ve, por um singular paradoxo, a abjegio que podemos fazer a isso. Paradoxo inexplicado em Hegel: é a0 mestre que o gozo retornaria desta “Aufheburg”. Muitas vezes nos perguntamos: e por que? Por que, se € para nao renunciar ao gozo que o escravo se torna escravo? Por que nao 0 guardaria? Por que ele retornaria ao mes- tre, cujo estatuto é precisamente o de ter renunciado a ele, senaio de uma forma da qual talvez pudéssemos exigir um pouico mais do que um passe de magica, a mestria hegeliana, para dela nos darmos conta? Nao seré um teste insignificante, se pudermos apre- ender na dialética freudiana, um manejo mais rigozoso, mais exato emais conforme a experiéncia do que é 0 devir de gozo depois da primeira alienagao. Jo indiquei suficientemente a propésito do masoquismo, para que se saiba aqui o que quero dizer. Indico apenas uma via a retomar. Seguramente, nao podemos nos deter nisso hoje, mas era necessério dar a dica no lugar apropriado. Para prosseguir nosso caminho em fungio do que é 0 ato psi- canalitico, ndo fizemos nada até aqui endo demonstrar 0 que ele cengendra por seu fazer. Para dar mais um passo adiante, vamos ao \inico ponto onde o ato pode ser questionado: em seu. ponto de ovigem. ; O que se diz? Jé evoquei na tiltima vez que é ao final de uma psicandlise que se supde acabada, que o psicanalisado pode tor- -se psicanalista, Nao se trata, absolutamente, de justificar aqui « possibilidade desta junco. Trata-se de tomé-la como articulada © lesté-la com nosso esquema tetraédrico, E 0 sujeito que cumpriu a tarefa, ao término da qual ele se realizou como sujeito na castracao, enquanto faltante ao gozo da uniao sexual, é ele que nés devemos ver, por uma rotacio ou uma biscula a um certo niimero de graus - tal como est desenhada esta figura, a 180° para observar a passagem, 0 retorno do que se realizou aqui na posigao de partica, coma ressalva de que o sujei- lo que chega aqui (no alto, & esquerda) sabe o que é a experiéncia subjetiva, e que essa experiéncia implica também que, a esquerda, reste o que adveio daquele cujo o ato foi responsdvel pelo caminho percortido, Em outros termos, para o analista, tal como 0 vemos ygora surgir a0 nivel de seu ato, jd hd saber do de-ser do sujeito suposto saber, enquanto ele é a posicéo de partida necessaria de oda essa ligica, Euaiosou = oD E precisamente por isto que surge a questo do que é para ele este ato, que definimos ha pouico como ato em falso. Qual é a me- dida do esclarecimento de seu ato? Jé que, enquanto ele percorreu 103 © caminho que permite este ato, ele 6, desde j4, ele proprio, a ver- dade deste ato. Ea questao que levantei, na vez passada, dizendo que uma verdade conquistada “nao sem sabé-lo” é uma verdade que qua- lifiquei de “incurével”, se posso me exprimir assim. Pois, se segui- mos o que resulta dessa bascula de toda a figura que é a tiniea onde se pode explicar a passagem da conquista, fruto da tarefa, & posicio daquele que franqueia o ato a partir do qual esta tarefa pode se repetir, é aqui que chega o $ que estava 14, na partida, no “ou-ou” do “ou eu nao penso ou eu nao sou” e, efetivamente, na medida em cue hé ato, que se mistura 3 tarefa que o sustenta, tra~ ta-se é de umia intervengao significante propriamente. E nisso que 0 psicanalista age, por pouco que seja, mas onde ele age propria- mente no cu'so da tarefa, 6 a0 ser capaz dessa ingerénicia signifi- cante que, falando propriamente, ndo € susceptivel de nenhuma generelizagao que possa se chamar “saber”. O que engendra a interpretaco analitica é essa alguma coisa que s6 pode ser evoceda do universal, sob uma forma que peco que notem o quanto ela é contraria a tudo 0 que foi, até aqui, qua- lificado como tal. E, se podemos dizer assim, essa espécie de parti- cular que chamamos “chave universal”, a chave que abre todas as caixas. Como, diabos, concebé-la? O que é se oferecer como aquele 104 que dispde do que, de saida, 96 se pode defin:r como um particu- lar qualquer? Tal é a questio, que deixo aqui apenas sugerida: qual é 0 esta lulo daquele que, no ponto deste sujeito $, pode fazer com que oxista qualquer coisa que responda na tarefa,¢ nao no ato funda- or, a0 sujeito suposto-saber. Vejam precisamente o que sugere a juestao: 0 que tem que ser possfvel para que haja um analista? Repito, no ponto ao alto e @ esquerda do esquema, esse do qual partimos, para que toda a esquematizacdo seja possivel, para ue a légica da psicandlise exista, 6 preciso que haja lé o psicana- lista. Quando ele se pée Is, depois de ter percorrido o caminho psi- canalitico ele mesmo, agora como psicanalisia, ele ja sabe aonde vol conduzi-lo 0 caminho a percorrernoyamente: ao de-ser do su- icito suposto-saber, a ser apenas o suporte deste objeto que se cha- ma pequeno “2”. O que é que nos delineia esse ato psicanalitico, do qual é pre- ciso lembrar que uma das coordenadas é prec'samente a de excluir {a experiéncia psicanalitica qualquer ato, qualquer injumcao de ato? Ii recomendado ao que chamamos o paciente, 9 psicanalisado, para homeé-lo, Ihe é recomendado que espere tanto quanto possivel para agir, e se algo caracteriza a posigio do psicanalista, é muito precisamente que ele nao age senao no campo de intervengao sig- hificante que delimitei ha instantes, Mas nio sera essa, também, a ocasifio para percebermos que © estatuto de todo ato sai, desta forma, inteiramente renovado? Pois o lugar do ato, qualquer que seja, cabe-nos perceber pelo ras- iro o que queremos dizer quando falamos de estatuto do ato, sem poder nem mesmo nos permitir acrescentar: 0 ato humano. F que hé algum lugar onde o psicanalista ndo se conhece ¢ que tam- im &, a0 mesmo tempo, o ponto onde ele existe, 6 na medida em que seguramente ele é sujeito dividido até em seu ato, e que o fim onde ele 6 esperado é, a saber, esse objeto pequeno “a”, nao en- quanto seu, mas aquele que o psicanalisado 2xige dele, como Ou- Uo, para que com ele, seja dele rejeitado. Nao nos revela, esia figura, qual é o destino de todo ato? E ‘0 sob diversas formas, desde o heréi onde a Antiguidade ten- 105 ‘eu nao penso fd tou, desde sempre, colocar, em toda.a sua amplitude, em todo seu dramitico, 0 que 6 0 ato. Nao, certamente, que o saber, nesse mes- mo tempo, nao se tenha orientado em direcao a tracos diferentes, pois foi também (enao é negligenciavel lembré-lo) nesta época que, quanto ao ato sébio, procurou-se (na verdade, nao hé nada af que seja desdenhavel) sua razio em um bem: “o fruto do ato”. Fis 0 que parecia dar sua primeira medida a ética. Eu a retomei a seu tempo, comentando a de Aristétele: A“Btica a Nicémano” parte de que hd 0 bem ao nivel do pra- Zer, e que uma via justa, seguida nesse registro do prazer, nos le- vard a concepgao do soberano bem. E claro que af estava, a seu modo, uma espécie de ato que tem seu lugar no encaminhamento de todo ato dito filoséfico. A forma pela qual possamos julgé-lo é aqui sem nenhuma importancia, Era uma época, nés sabemos, em que se aparelhava uma interrogacao inteiramente diversa, a interrogacin tragiea do que era o ato, e que esta é que se remetia a um obseuro divino. Se hi uma dimensio, uma forca que ndo era suposta saber, é precisamentea da “Avayen” antiga, enquanto era encarnada por esses tipos de loucos furiosos que eram os deuses. Megam a distancia percorrida desde esta perspectiva do ato a de Kant. Se hé algo que, de uma outra maneira, torna necessério nosso enunciado do ato como um dizer, é bem a medida que dele da Kant, de que ele deve ser regulado por uma maxima que possa as 108 ler alcance universal. Nao esté af, também, algo que tive minha satisfagdo em caricaturar, ligando a uma regra tal como esta enun- ciada na fantasmagoria de Sade? Nao sera verdadeizo, por outro lado, que ha entre esses dois cextremos, falo de Aristételes e de Kant, aquela referéncia a0 Outro tomado como tal, ela também muito cémica, que foi dada por uma forma ao menos cléssica da diregio religiosa? A medida do ato, aos olhos de Deus, seria dada pelo que se chama a intengio reta... Serd possivel fisgar uma via de engano mais segura de que a de apelar aisso como principio do valor do ato? Seré que, no que quer que seja, a intencdo reta em um ato pode, por um 36 instante, le- vantar para nés a questéio do que € 0 seu fruto? E certo que Freud nao foi o primeiro a nos permitir sair des- ses efreulos fechados, jé que para pér em suspenso o valor de uma boa intenc&o, encontramos uma critica totalmente eficaz, explicita e manejavel, no que Hegel articula da lei do coracio ou do delirio cla presungao; que nao basta se levantar contra a desordem do mun- do para nao se fazer dela, por este protesto mesmo, o mais perma- nente suporte. Disto, o pensamento, justamente o que sucedleu ao ato do cogito, nos deu numerosos modelos. Quando a ordem sur- sida da lei do coracio é destrufda pola critica da “Fenomenologia clo Espirito”, que vemos sendio 0 retorno, que nao posso deixar de qualificar de ofensivo, da asticia da razao? Bat que é necessério perceber que esta meditacao desembo- cou, muito especialmente, em algo que se chama o ato politico ¢ seguramente no foi em vo 0 que se engendrou, nao somente de meditagées politicas, mas de atos politicos, no que nao distingo de modo algum a especulagao de Marx da forma pela qual ela foi, a lal ou tal desvio da revalugao, posta em ato. Nao seria possivel situarmos toda uma linhagem de reflexdes sobre o ato politico? - na medida em que seguramente sio atos, no sentido em que esses atos eram um dizer, e precisamente dizer em nome de um fulano, © por isso trouxeram um certo nimero de modificagdes decisivas, Nao seria possivel reinterrogé-losnesse mesmo registro, que 6 esse onde chegaria hoje o que se delineia do ato psicanalitico, ai onde, ao mesmo tempo, ele esté endo esté e que pode se expressar assim, em virlude da palavra de ordem que Freud da a andlise do incons- ciente: “wo es war...”"diz ele, e eu ensinei a reler na tiltima vez, “soillich werden”? “Wo tat”, e permitam-me escrever esse “S”com a letra aqui barrada, lé onde o significante agia, no duplo sentido de que ele acaba de cessar e de que ele ia justo agir, de modo algum “Soll ich werden” mas “muss ich”, eu que ajo, eu que lango no mundo esta coisa A qual 6 possivel ditigir-se como a uma razo, ‘muss ich (a) werden’, eu, daquilo que introduzo como nova ordem no mundo, devo tornar-me o dejeto, Tal 6a nova forma pela qual proponho estabelecer uma nova maneira de questionar em que consiste, em nossa 6poca, 0 estatu- to do ato, enquanto esse ato tao singularmente aparentado a um. certo mimero de introducdes originais, entre os quais, em primei- ro lugar, est o cagitocartesiano, na medida em que o ato psicana- Kitico permite recolocar a questio. Notas do Tradutor 1. qnecornure- “ecornure”@um frogmentoarrancado da quina de um mével, uma pedra, etc 2. organum - em latim, “instrument! 3. audhebung - palavra dialética de Hegel, que quer dizer simultane- amente “negar”, “suprimir” e “conservar”, no fundo, “suspender’. pas sans fe savoir~ndo sem sabé-lo, pasando o saber ou paso sem saber (ver note 7 dy seuuatdaiv aitletion) 5. moi,en’ioje, 6a palavza que foi traduzida neste pardgrafo como eu. lim franeés cabe usar 0 mo/como sujeito, enquanto em portuguas o “me ou “mim”, suas tradugdes mais usuais, s6 aparecem como objeto. 108 Seminario de 24-1-68. Vamos ter hoje uma pequena modificagio em nosso pacto. Claro, esté convencionado que, segundo a boa lei de uma presta~ cio de trocas, vocés me dao sua presenga em troca de algo que csperam, supée surgir de um certo fundo e ter side até certo ponto rata-se de saber qual- destinado. Fm suma, vocés esperam uma aula, um curso, Bm varias ocasides (acontece-me eventualmente), eu me co- loco a questéo de saber a quem eu me dirijo, e de onde isso fala. Vocés sabem 0 quanto eu tenho o cuidado de insistir sobre o fato de que nao poderia perder, em instante algum, 0 ponto de referén- cia original que é 0 de que esse discurso sobre a psicanalise se dis sje aos psicanalistas. Ha tanta gente que nio o é e que esté aqui reunida para ouvir algo, que isso, por sis6, exige um certontimero dle explicagdes. Seria um erro sé, a esse propdsito, nos contentdsse- mos com explicaces historicas, a saber, a casualidade, ou casuali- dades, dos efeitos de pressio em uma multidao teria me tornado acessivel a ser ouvido em lugar diverso de onde o era original- mente. Isso, evidentemenie, nao basta para explicar as coisas. E precisamente aqui que poderfamos comparar as referéncias da his- loria (pois afinal, o que se chama em geral de historia é esse em- purra-empurra” e da estrutura. 109 Evidentemente, por razGes de estrutura que falo do ato esse ano, levanto a questao sobre 0 ato ¢ que cheguei a0 ponto do que disse na vez passada. Por alguns pequenos indicios, sinais que tive, pareceu-me que pelomenos alguns perceberam a importancia do que foi formulado na vez passada, na medica em que marca um: ponto que justifica, que pelo menos permile reunir em um ponto nodal o que comegou desde o inicio de nosso ano a ser articulado por mim e que, claro, podia ter deixado uma impressio vaga, so- bretudo se partissemas da idéia de que, de inicio, temos forcosa- mente que apresentar os principio. Em muitos casos somos forcados a proceder de outra forma, mesmo quando temos uma referéncia estrutural e até, sobretudo, quando a temos, ja que por sua natureza ela nao pode ser dada de inicio, 6 preciso conquisté- Ja, Se assim no fosse, nao vejo porque o esquema do tipo grupo de Klein, com o qual agora tento articular o que é o ato na perspec- tiva que abre o ato psicanalitico, nao vejo porque nao teria partido dai, ha uma quinzena de anos. Hoje teremos uma interrupgao, cuja ocasio é aqui apenas um pretexto, embora isso ndo queita dizer que seja marginal. Esta pre- visto para o seminétio deste ano sobre o ato psicanalitico, que nos dias 31 de janeiro, 28 de fevereiro, 27 de marco e 29 de maio, entra~ ro aqui apenas os cenvidados, o que quer dizer que haveré um. certo ntimero de encontros mais restritos, de modo a permitir um. debate. Isso foi previsto para dar um minimo desse algo que 6 sem= pre dificil de manejar: a regra dos seminérios fechados, com tudo © que isso comporta de complicagdes quanto 20 modo de escolha, Estabelece-se sempre, em coisas dessa ordem, uma espécie de com- petigio. O lugar aondendo se tem vontade de ir, comeca-se a desejé- Joa partir do momento em que o companheirinho va. Nada disto facilita 0 critério de escolha, mas é preciso um esforgo para estabe- lecer um meio de trocas que seja de uma relac&o interna um pouco diferente. Pensei nisso hoje porque, ninguém estando avisado (ti- nha minhas razées para nao fazé-lo), fora as pessoes de minha es~ cola (cles o estavam), é certo que nao se manifestaram muitos candidatos, 110 Kis como penso resolver as coisas. Um motivo estranho aos jomindrios faz com que eu ndo possa comparecer no dia 31. Nao é \ynna azo para que nao haja seminério fechado. Foi combinado ue 08 membros da Escola dita Freudiana de Paris, da qual todos sabem que me ocupo, e muito legitimamente, jé que além de tudo no psicanalistas, que serdo eles, na medida em que manifestem jou cesejo, que virao aqui no dia 31 dejaneiro. Ainda nem mesmo solicited - solicito agora - ao Doutor Melman que esteja aqui para, om suma, coordenar esse encontro. Eu tinha estabelecido 0 principio de que s6 0s membros da Jiscola que tivessem se manifestado aqui, de uma forma suficien- lomente regular para saber o que enunciei até agora, viriam a essa founiao. Voeds vero © quanto é justificado, considerando-se objeto que vou dar a essa reuniao. Por outro lado, a idéia nao € Unicamente minha, longe disso, diria mesmo que foi levantada pelo Dr. Melman, que sugeriu recentemente, dentro do ensino da Esco- |, que fosse realizada no decorrer deste seminério particularmen- \ importante, j4 que é dificil pensar onde se pode tocar em um ponto mais central para os psicanalistas que o do ato psicanalitico, desde que, é claro, essa palavra tenha um sentido. F o que espero ue se tenha delineado suficientemente até agora para vocés, que pelo menos eu tenha dado uma forma a esse sentido. Pode-se vliculé-lo a partir de algumas questées, e saber se ¢ possivel res- ponder e se elas sio mesma questées, é precisamente isso 0 que sid aberto. O problema se coloca assim, eu Ihe dei sua articulagao inicial, mediante o que se manifestam certos brancos em seu inte- rior e, em outros pontos, casas jé preenchidas ou até stiper-abun- dantemente preenchidas ou até totalmente transbordantes, «lesequilibradas por nao ter levado em conta as outras. E precisa- mente 0 interesse da introdugaio do que se chama “estrutura”. E hastante curioso que estejamos ainda (e sou forgado a dizé-lo por- que houve certas manifestagdes recentes entre os psicanalistas) considerando até que possa haver uma questo ao nivel do princi- pio da estrutura. Hé coisas que nao tive realmente tempo de consi- derar € que nem mesmo é certo que venha a considerar cletidamente, mas das quais, claro, tive ecos. ‘Vemos que estas pessoas providas de uma autoridade psica: nalitica de um certo peso, praticantes honordveis, como se diz, evie denciam singularmente © ponto em que est3o as coisas. Pot exemplo, hd todo um meio onde, todos sabem, era proibido até vi se colocar ao alcance da ma palavra. Depois houve um tempo, 1 tempo fabuloso... Mas é preciso dizer que as coisas correm lenta mente nesse meio muito particular. Vocés se dao conta, 1960, hi pessoas aqui que nessa época tinham quatorze anos! O Congre de Bonneval é imemorial, poeirento, incrivel! E preciso dizer qui levaram cerca de seis anos para fazer as Atas... Ha pessoas que, para discutir o que eu ensino, acharam formiciével retomar as coi« sas do Congresso de Bonneval Agradego muito a pessoas de minha Escola por terem feito uma revista, que evidentemente nao é a minha, que permite esse efeito de fossa; nao se poderia derramar isso em outra canto, outro canto ndo é o lugar. Em uma cerla revista chamada “Francesa de Psicandlise”, discutir o que ensino esté fora de questio, e isso é compreensivel, pois nela no se fala de psicanilise. Fntao, neste local, 0 esvazia-bolsos® de lado, podem se derramar discutindo @ que eu digo do significante, com tuclo o que exponho hé quatro anos e que ultrapassou largamente a questao de saber se, a princi= pio, trata-se do significante ou nao. Remontam-se ao Congresso de Bonneval, que era um ttinel, 0 famoso ttinel onde os negros lutam sem saber quem leva as panca- das, e onde surgem elucubragées as mais bizarras. Estava ld um chamado Lefebvre, pessoas incriveis, pessoas as mais simpaticas, nosso caro amigo Merleau-Ponty que interveio nessa ccasiao... Mas todo o mundo, naquele momento, estava equivacado, Tratava-se, simplesmente, de que, pela primeira vez, fosse discutido publica- mente 0 que, até aquele momento, cu ensinava ha sete anos em Sainte Anne para um pequeno circulo. Assim as coisas se passam, isso evidencia que todo discurso produz atos como efeitos. Se houvesse apenas a dimensio de dis- curso, isso deveria propagar-se mais rpido! Justamente o que & preciso destacar, é que salta aos olhos que esse discurso que é 0 meu tem essa dimensio de ato, no momento em que falo de ato. Pensando bem, esse é o tinico motivo da presenca das pessoas que wlio aqui, jé que no énada claro, particularmente no caso de um puiblico jovem, o que ele poderia vir procurar aqui. Nao estamos ho plano de prestagdes de sexvigos universitérios, nd posso Ihes olerecer nada em troca de sua presenga. O que os diverte, é que yoo’s sentem que algo se passa. Nao se esté de acordo. Jé é um Jpequeno comego, na dimensio do ato. FE de fato fabuloso - naturalmente, sei disso apenas por ouvir dizer ~ mas, enfim, dizem que este género de autores, de que fala- va ha pouco, so pessoas que fazem objegio a esta estrutura que hos deixaria, por sermos pessoas, tio pouco a vontade. O ser da pessoa seria algo que padeceria com isso. Temo que isso néio mere- (, absoluiamente, andlise exame. O que é 0 ser da pessoa do poicanalista 6, justamente, algo que s6 se pode aprender realmen- (oem sua demarcagao na estrutura Neste pequeno tetraedro do qual partimos ultimamente, é preciso que se preste atencao em algo, na multiplicidade das tra- (ugdes as quais ele se presta. Hu nfo penso (isisténeia) ou-ou 1-0 “ou-ou” 2-0 “eu no sou - eu nfio penso” 3- esse bravo inconsciente; “eu nao sou” 4-0 “cu nao penso” que, apesar de tudo, nao é um lugar reservado ao psicanalista. O psicanalista revela sua necessidade, o gue 6 inteiramente diferente. Ele a revela pela razdo seguinte: se é 12 «8 necessario “nao pensar” para alguém que s6 se ocupa dos pensa mentos, que dird dos outros! E por isto que este ponto de partida: irstrutivo e, em suma, éalgo que torna inteiramente claro que esse pontono alto a esquerda é 0 da escolha forgada, que éa definigl que dei da alienago, em seu carter revisto; a alienagio tal como, explico aqui, com um pequeno aperfeicoamento com relacao nogio de alienagao, tal como foi descoberta antes de nés. Bla f inicialmente abordada no nivel da produgio, quer dizer, da exgl ragao social. Esse “eu ndo penso” é 0 que nos permite dar seu sentido esta palavra que foi, verdadeiramente, utilizada até agora de un. modo bastante abjeto, no sentido em que reduzia a posicéo di psicanalisando, o paciente, a uma atitude que eu qualificaria de desvalorizada, se 0 psicanalisando (chamado “o paciente”, com 10, em um certo vocabullirio) resistia. Voces notam, en= fim, a0 que isto leva a anélise; a algo que a andlise seguramente néo 6, e que ninguém imaginou fazé-la, a saber, uma operagio la~ sar, de tirar o coelho para fora da toca. Ele resiste... O que resiste, evidentemente, nao € 0 sujeito em anilise. 0 que resiste 6, evidentemente, o discurso, e exatamente na medida da escolha em questo. Se ele renuncia A posigéo do “eu no pene so", acabo de lhes dizer, ele ¢, entretanto, puxado para o pilo opos to, que € 0 do “eu nao sou”. Ora, 0 “eu nao sou” 6, propriamente dizendo, inarticulivel. F claro que o que se apresenta de inicio na resisténcia 6 que o discursondo poderia chegar a ser alguma coisa, Oque? Gostarfamos demais de pedir as pessoas que nos falam do ser da pessoa para, com isso, fazer objesio a estrutura, que articulas= sem 0 que 6 para clas, o que elas chamam, no caso, le “Ser”. Nao é nada claro onde elas 0 colocam. Elas falam para si mesmas, e (@m. uma certa maneira de colocar o ser da pessoa que é uma operacio de ornamentagao® bastante cmoda. Quanto a esse ato de uma estrutura bastante excepeional (ten- taremos dizer em que) que ¢ 0 ato psicanalitico, o que temos que a0 menos avangar, sugerir, apontar, é em que ele pode presidir a uma certa renovacao do que, apesar de tudo, continua a ser, e des- de sempre, 0 ponto de orientagao de nossa buissola: em que ele pode renovar a fungdo do ato esclarecido. Pode haver af alguma Iwnovagao. Se emprego o termo “esclarecido”, nao é sem ver nele Jin eco de “Aufklarung”s, mas 6 também para dizer que se nossa Ninsola se orienta sempre em direcao ao mesmo norle (e cu aqui )closso esse norte), isso pode se colocar, para nds, em termos es- {yuturados de forma um pouco diferente. Defini e articulei dois pélos da posicao do psicanalista, j4 que, bvolutamente, nao recuso a esse psicanalista 0 direito a resistén- in (ndio vejo porque o psicanalista seria destituido dela), enquanto instaura o ato psicanalitico, ou seja, dé sua garan‘ia a transfe- (@ncia, quer dizer, ao sujeito suposto saber, ainda que toda a sua vontagem, a tinica que ele tem sobre o sujeito psicanalisando, seja 1 cle saber por experiéncia o que ocorre com o sujeito suposto sa- ber. Quer dizer, quanto a ele, na medida em que se supde que te- hha atravessadoa experiéneia psicanalitica de uma maacira da qual imo que se pode dizer, sem maiores aprofundamentos nos debates doutrinérios, é que deve ser uma maneira, cigamos, um pouco mais avangada que a das curas, ele deve saber em que con- \jste 0 Sujeito suposto saber. A saber (e eu expliquei na tiltima vez, ver o esquema, porque 6 aqui que vem o sujeilo suposto saber), para ele que sabe o que resulta do ato psicanalitico, 0 tragado, o velor, a operagdo do ato psicanalitico deve reduzir esse sujeito a {ungao do objeto pequeno “a”. f isto o que, em uma anélise, tor now-se aquele que fundou essa andlise em um ato, a saber, seu proprio psicanalista. Tornow-se precisamente porque ele se uniu, no final, com 0 que nio era de inicio (digo, na subjetividade do poicanalisando). Em primeiro lugar, de inicio, ele ndoera o sujeito posto saber. Ele se torna, ao término da anélise, eu diria por hi- potese. Estamos em andlise para saber de algo. B no momento em que ele o devém queigualmente ele se reveste para o psicanalisando «la fungao que ocupa na dinémica, para o psicanalisando como su- jvito, 9 objeto pequeno “a”. Esse objeto particular que é o objeto pequeno “a”, quero dizer, nesse sentido de que ele oferece uma certa diversidade que, por outro lado, nao é muito ampla, ja que podemos fazé-la quédrupla com qualquer coisa de vazio no cen- ro, enquanto esse objeto pequeno “a” é absclutamente decisive para tudo que diz respeito a estrutura do inconsciete, ns Permitam-me voltar 4 minha interrogacdo de pouco antes, relativa aqueles que ainda estao af, na beira, hesitando sobre o que ha ou nfo de aceitavel em uma teoria suficientemente desenvolvi= da para que néo seja mais o caso de discutir seu principio, mas apenas de saber se, em um ponto ou outro, sua articulacao é corre- ta ou criticével. Sera que para todos os que esto aqui, até para (se é que os hd) os que vieram pela primeira vez (nao quer dizer, claro, que isso pudesse, simplesmente, ter sido dito antes), sera que nao se resolve, pura e simplesmente a questdo? A andlise, sim ou nao, (parece-me dificil, dada a forma como vou dizé-lo, que nao se per- ceba do que é que se trata), a andlise quer ou no quer dizer que, no que vocés queiram, um ser (como eles dizem), um devir, ou nao importa 0 que, qualquer coisa da ordem do vivo, ha acontecimer- tos, quaisquer que sejam, que trazem conseqiiéncias? aqui que o termo “conseqiiéncia” toma todo seu peso. HA conseqiiéncia concebivel fora de uma seqiiéncia signifi- cante? Pelo simples fato de que algo tenha ocorrido, subsiste no inconsciente de tal de forma que se possa reencontré-lo, coma cor- dicio de agarrar uma ponta sua que permita reconstituir uma se- qiiéncia? Existira uma s6 coisa que possa ocorrer a um animal, que possamos imaginar que se inscreva nesta ordem? Acaso tudo 9 que se articulou na anilise, desde o inicio, nao é da ordem desta articulagao biografica, enquanto ela se refere a algo de articulavel em termos significantes? E impossfvel extrair, expulsar dela essa dimensio, a partir do momento em que, como vimos, nao pode- mos mais reduzi-la a nenhuma nocdo de plasticidade ou de reati- vidade, ou de estimulo-resposta bioldgicos que, de toda a forme, nao serao da ordem do que se conserva em uma seqiiéncia. Nada do que se pode operar de fixagio, transfixacdo, de interrupgao, até mesmo de aparelhagem, em torno de um aparelho, do que é ape- nas um aparelho, e especificamente nervoso, por si s6 ¢ capaz de responder a esta funcio de conseqiiéncia. A estrutura, sua estabil dade, a manutengio da linha sobre a qual ela se inscreve, impli- cam uma outra dimensao que é propriamente a da estrutura. Isso éum lembrete e que nao atinge o ponto em que estava, quando mz interrompi para fazer esse lembrete. 116 Eis-nos aqui, entdo, nesse ponto $ que situa o que é especifi camente o ato psicanalitico, na medida em que é em toro dele que esta suspensa a resisténcia do psicanalista. A resistencia do psica- nalista, nessa estruturacéo, se manifesta em algo que ¢ inteiramen- lv constitutivo da relacéio analitica: ele se recusa ao ato. £, com cleito, inteiramente original para o estatuto do que éa propria fun- lio analitica, Todo o psicanalista sabe e, finalmente, isso acaba sen- «lo sabido até mesmo entre os que néo se aproximaram de seu campo. O analista é aquele que rodeia toda uma zona em que fre- quentemente é chamado pelo paciente a intervencao enquanto ato, © nao apenas na medida em que possa ser chamado, ocasional- mente, a tomar partido, a estar do lado de seu paciente com rela- 0. a. um préximo (ou qualquer outro), ou até, simplesmente, a fazer essa espécie de ato (com efeito, bem que é um) que consiste om intervir por uma aprovacio ou, pelo contrario, em aconselhar; (isso, muito precisamente, o que a estrutura da psicandlise deixa em branco. Foi, muito precisamente, por isso que coloquei sobre a mes- ma diagonal - digo isso para fazer uma imagem, pois é claro que 0 (jue se passa nesta linha (a diagonal) nao tem mais direito a se chamar diagonal do que © que se passa em qualquer outra; basta jtirar o tetraedro, para fazer delas linhas horizontais ou verticais; mas, por razes de imaginagiio, é mais cOmodo representar assim; © preciso nao se deixar enganar por isso. Nao ha nada de mais diagonal na tranferéncia do que na alienacao, nem tampouco no que chamo de “operacao verdade”. Se hd diagonais, é por razdes cle esquema. fi precisamente porque o ato fica em branco que ele também pode, na outra diregao, ser ocupado pela tranferéncia, quer dizer, no curso do fazer psicanalisante, pela caminhada em dire- io a0 que é seu horizonte, miragem, ponto de chegada, do qual jé defini suficientemente o lugar de encontro, enquanto é definido pelo sujeito suposto saber (8). O psicanalisando, no inicio, toma eu bastao, carrega seu alforge, para ir ao encontro, a entrevista com 0 sujeito suposto saber. S6 essa cuidadosa interdic&o do lado do ato, que o analista se imp6e, pode permitir isso. De outra forma, se nao se impusesse, seria simplesmente um impostor, pois, em principio, ele sabe o que ocorrerd com o sujeito suposto saber na andlise, Pelo fato da andlise ser, como se tem mais ou menos a exper éncia original, esse artefato, esse algo que talvez s6 apareca na his- t6ria a partir de certo momento e como uma espécie de episédio extremamente limitado, de caso extremamente particular de ume. pratica que, por acaso, veioa inaugurar um modo completamente diferente de relagdes de ato entre os humanos, entretanto, isso nao é privilégio sen. Creio ter-Ihes dado, na tiltima vez, indicagdes suficientes de que, no curso da hist6ria, a relagao do sujeito ao ato se modifica Nem mesmo o que ainda perdura nos manuais de moral ou de sociologia pode nos dar uma idéia do que sao, efetivamente, as relages de ato, em nossa época. Por exemplo, claro que nao é ape- nas por se recordarem cle Hegel, da maneira pela qual os professo- res falam dele, que vocés poderdo medir a importancia do que ele é, do que ele representa como mudanga em relagio ao ato. Ora, nao sei o que devo fazer nesse ponto. Aconselhar uma leitura é sempre tao perigoso, porque tudo depende do quanto sc foi, anteriormente, mais ou menos instrufdo*...1 Parece dificil que nao tenham sido o bastante para poder situar um livro, para daz uum sentido ao que acabo de enuneiar, um alcance. Apareceu um ivrinho de alguém que creio ter visto neste seminério, na sua épo- ca, e que 0 enviou por esse motivo, que se chama “O Discurso da Guerra”, de André Gneksmann. £ um livro que talvez possa dar a vocés a dimenséo, em um certo plano, em um certo campo, do que pode surgir de algo que é bastante exemplar e bastante completo, na medida em que a rela- gio da guerra é algo de que todo o mundo fala a torto ¢ a dircito, mas da influéncia do discurso da guerra sobre a guerra... influén- cia que nao ¢ insignificante, como vocés verao na leitura deste li- vro, que responde a uma certa maneira de tomar o discurso de Hegel como discurso da guerra, e onde se vé claramente como ele tem seus limites do lado técnico, do lado militar. E, além disso, 0 discurso de um militar! Estarfamos errados em desprezar 0 mili- tar, a partir do momento em que ele sabe manter um discurso, Isso acontece raramente mas quando, apesar de tudo, acontece, € total 118 jivente espantoso que seja ainda mais eficaz do que o discurso do poicanalistal O discurso de Clausewitz, na medida em que esté em conjun- (ilo com 0 de Hegel para fornecer sua contrapartida, podera Ihes dav alguma idéia do que, nessa linha, meu discurso poderia trazer de uma relagao que permitiria crer que existe, em nossa época, um. discurso valido fora do discurso da guerra, que talvez também pos- i dar conta de uma certa diferenga entre Hegel e Clausewitz no nivel do diseurso da guerra. Clausewitz obviamente nao conhecia o cbjeto pequeno “a”, inas se, por acaso, 0 objeto pequeno “a” nos permitisse ver um pouco mais claro no que Clausewitz introduz como a dissimetria fundamental entre duas partes na guerra, ou seja, 0 que ha de ab- solutamente heterogéneo..., e acontece que essa dissimetria vem a dominar toda a partida entre a ofensiva e a defensiva, sendo que Clhusewitz, nao era exatamente alguém de hesitar sobre as neces- idades da ofensiva. E apenas uma indicacao. Preencho, de qualquer forma apressadamente, um certo nti- mero de faltas no que articulo sobre 0 que o ato psicanalitico nos permite, em suma, instaurar ou restituir em relagao as coordena- das do ato que tentamos esbocar este ano. Vocés véem entéo que faltas sao muitas. Em primeiro lugar, algo que deve ficar, no minimo; estabele- cido em nossa delimitacdo 6, a saber, o que a psicandlise institu om uma estrutura I6gica por algo de totalmente privilegiado, na medida em que ela constitui a conjugagao de um ato e um fazer. Fissa estrutura légica, se nés nao a constituimos, com suas partes «jue esto na operagao analitica... E, portanto, algo de primordial, e algo de importante nao apenas para nossa prépria pratica, como também para explicar os paradoxos do que se produz em suas ime- dinges, a saber, como ela pode se prestar, muito especialmente por parte dos que nela esto engajados, a um certo ntimero de des- conhecimentos seletivos, os que respondem a essas partes mortas ou colocadas em suspenso na propria operagao em questo. ‘Com isso, ja temos duas vertentes. A tereeira, que nfo é me- hos apaixonante, é algo a propésito de que dei uma indicagéo, no final do meu discurso da iltima vez, muito facil, muito tentadora 119 de ser tradwzida rapidamente, aquela da qual voltou um eco bem divertido, mas que eu nao poderia subscrever. Chegou por uma dessas numerosas vozes de que disponho. Foi alguém, nao sei mais exatamente quem, nao sei quem me repetiu. Ele me disse hoje: “decididamente, é 0 semindrio Che Guevara”. Tudo isso porque, a propésito do sujeito suposto saber, 0 $ embaixo A esquerda, eu tinha dito o que talvez seja (ao menos esse modelo suscita a ques to para nés) o fim, o término, a bascula, a cambalhota; o que éem sio fim normal do ato. E isso na meclida em que se a psicandlise nos revela algo de saida, é que ele nao é um ato do qual alguém se possa dizer inteiramente mestre. Nao ¢ algo de natureza a nos ar- rancar, a todos, de nossas bases, de tudo o que temos recolhido da nossa experiéncia, do que sabemos da histdria e mil outras coisas ainda, se 0 ato (todo ato e ndo somente o ato psicanalitico) prome- te, a quem dele toma a iniciativa, esse fim designado no objeto pequeno “a”. Nao é algo a propésito de que os timpanos vao sair de suas érbitas. Nao é por isso que vale a pena acreditar que 6 0 seminario Che Guevara. Houve outros antes. Nao estou querendo escovar 0 trégico, para fazé-lo brilhar. Talvez se trate de outra coi- 5... Trata-se de algo que, evidentemente, esta mais a nosso alcan- ce, se 0 remetemos ao quie nos é necessdrio conhecer da estrutura logica do ato para conceber verdadeiramente o que se passa nesse campo limitado que é 0 da psicandllise. E af que € possivel para os que sao de minha Escola formula- rem questées, e presumimos que possam localizar adequacdamen- te 0 que enuncio ao longo de uma construgio da qual puderam seguir a necessidade de suas diferentes etapas. Tragam-me, por intermédio do Doutor Melman, e nao depois da préxima quarta- feira, algo como um testemunho, um testemunho de que so capa- zes de levar um pouco adiante as inflexées, as coisas que vivem, os gonzos, as portas, a maneira de se servir desse aparelho, na medi- da em que ele os concerne. Quero dizer que o que espero da reunifio onde (peco descul- pas) a maior parte dos que estao aqui estarao, em suma, excluidos de antemao, é um certo ntimero de questes que me provem que, ao menos até o ponto onde cheguei esse ano no que diz respeito a0 120 ato, 6 possivel interrogar-se sobre alguma coisa, propor uma tra- duc&o e a essa traducao uma objecdo (’se vocé traduz assim, eis 0 que isso indica...” ou “isso est em contradigio com tal ou tal pon- to de nossa experiéncia”); em suma, mostrar que, até certo ponto, sou compreendido. Isso servird, entao, para o semindrio fechado seguinte (28-2), na medida em que s6 seraio convocados para ele os de minha Escola que tiverem feito parte desta primeira reuniao. E um ato deixar seus afazeres, 6 sobretudo um ato nao deixé-los. corre, por exemplo, que eu possa perguntar (e pergunto) por que tal psicanalista, muito informado do que ensino, nao esta presen- te, precisamente este ano, ao que enuncio sobre o ato. Dirdo que as pessoas tomam notas. De passagem, assinalo que mais vale tomar notas que fumar. Fumar nao é um signo téo bom quanto a escutar © que digo. Nao desaprovo a fumaga... Como fiz alusio ao fato, parece que o que aparentemente motiva essa assisténcia que me honra com sua presenca, é esse lado de facilitacaot do que se passa ante vocés, e acho mesmo que nao estar presente no momento em que falo do ato, por parte de analistas, nao significa que se trata de qualquer discurso. Mesmo que recebam notas figis e competentes, hd algo de bastante esclare- cedor, significativo, e que bem que poderia recair ai onde escrevi o termo “resisténcia”. Pensava em pedir que uma, duas ou trés pessoas me colocas- sem uma ou duas questdes, para fazer disso um critério de entra- dano seminério fechado. Nao seria mal... Mas também sei do efeito de gelo que resulta desse grande nimero... Proponho, entretanto, que fique estabelecido para regular a entrada para 0 seminario de 28-2 que, coma ressalva de algumas excecbes, receberio a cartinha de convite os que me tiverem enviado uma questio redigida, e que me pareca estar no fio correto do que tento trazer para vocés. 86 me resta pincar alguma coisa, aqui ou ali, para avangar- mos tm pouco, mesmo se hoje nao é da ordem “ex-cathedra’” que adoto habitualmente, ai de mim... De qualquer forma, é preciso hotar que essa hiancia sempre mantida entre o ato eo fazer, € disso que se trata, é 0 ponto nuclear em torno do qual quebram a cabega, desde um certo niimero muito reduzido de séculos. De bem pou- cos antepassados, de bisavés, precisariamos para estar imediata- 124 mente na época de César! Vocés nao imaginam 0 quanto esto implicados em coisas que apenas os manuais de histéria fazem acreditar que sao do passado... Se quebramos a cabeca - vejam Hegel - com a diferenca entre omestre e 0 escravo, podem dar a isso todo o sentido elastico que quiserem, se examinarem bem, trata-se de nada além da diferenca entre o ato e 0 fazer, a que tentamos dar um outro corpo, um pou co menos simples do que o sujeito que coloca 0 ato. Nao é, de for- ma alguma, forcosa e unicamente - é isto que é perturbador - 0 sujeito que comanda. Pierre Janet fez toda uma psicologia ao redor disso. Nao quer dizer que ele estivesse mal orientado, pelo contré- rio, 86 que suas andlises sao bastantes rudimentares. Nao permi- tem compreender grande coisa porque, fora 0 fato do que é representaco nos baixo-relevos egipcios, ou seja, um piloto, tam- bém ha um chefe de orquestra em Pleyel, ou, em outro lugar, ha- ver os que fazem € algo que nao explica grande coisa, porque onde ha verdadeiramente mestre, isso nao quer dizer, tanto quanto se pensa, que sejam os que os rolam. Hé os que se ocupam do ato e os que se ocupam do fazer. Portanto, hd um fazer, e um fazer...; € af que podemos comecar a compreender como esse fazer (falo da psi- candlise), malgrado seu cunho de futilidade, talvez tenha mais chan- ce do que qualquer outro de nos permitir 0 acesso ao gozo. Observem bem esse fazer, em um trago que eu queria subli- nhar. Nao é necessério dizer que é um fazer de pura palavra. Algo que nunca cansei de lembrar foi que tentassem ver sua fungao no campo da palavra e da linguagem. Nao se percebe que, por ser um fazer de pura palavra, ele se aproxima do ato com relacdo ao que é 0 fazer comum, e que também poderfamos traduzi-lo como ‘signi- ficante em ato”. Se examinamos com cuidado qual é 0 verdadeiro sentido da regra fundamental, é justamente que as instrucdes so de que o sujeito se ausente disso, tanto quanto for possivel; a tare- fa é essa, que 0 sujeito se ausente. A tarefa, 0 fazer do sujeito, é deixar esse significante em seu jogo. O “em ato” é um truque, mas nao é 0 ato do significante. O significante “em ato” tem esta conotacdo, esta evocacao do signifi- cante que se poderia chamar, num certo registro, de “em potén- cia”. Mas a saber, 0 que o nosso doutor de ha pouco queria muito 12 que fosse lembrado contra os que valorizam a estrutura (ha mui- tos prontos a borboletear na pessoa), é que o ser é tio superabun- dante que tentar nos prender nesses trilhos precisos, nessa légica...; que nao é absolutamente uma légica, pois sobre a légica nao se pode, de forma alguma, com nenhum direito, colocar 0 signo do vazio. Nao é tao facil fazer esta logica. Vocés verao aqui do que consta. Que um psicanalista levante termos como “a pessoa” é algo exorbitante, pelo menos a meus ouvidos. Mas se ele quer se tran- qiilizar, que ele observe que eu definiria esta l6gica, aproximada- mente, como a que fica mais perto da gramitica. Isso 6 um golpe para voeés, espero. Entao, Arist6teles, trangiiilamente, heim? Por que nao? Muito simplesmente, é preciso tentar fazer melhor. Chamo a atengao de vocés para que se a légica de Aristételes permaneceu durante longos séculos, até o nosso, inexpugndvel, foi em razo das objegdes que se fez.a ela, por ter sido, como se diz, uma légica que nao teria percebido que fazia gramética. Admiro cnormemente os professores da Universidade, que sabem que Aris- toteles nao se dava conta de algo! E 0 maior naturalista que jamais existiu. Vocés podem reler sua “Histéria dos Animais”, ainda re~ siste. E fabuloso! E 0 maior passo jamais dado na Biologia. Nao é que nao se tenha feito mais nada, desde entao. Na ldgica também, passo dado® justamente a partir da gramitica. Ao redor dela ainda podemos quebrar a cabeca, mesmo depois de coisas bem astucio- sas terem sido acrescentadas, como os quantificadores, por exem- plo. Eles s6 tem um inconveniente, é que eles sio inteiramente intraduziveis na linguagem. Nao digo que isso nao reatualize a questao sobre a qual tomei uma espécie de partido dogmatico, de ctiqueta, de bandeirola, de palavra de ordem: nao hé metalingua- gem. Vocés pensam que isso me inquieta, a mim também, saber se por acaso ha uma... Enfim, partamos da idéia de que néo ha. Nao seria ma idéia. Evitaria acreditar, erroneamente, que hd uma. Nao é seguro que algo que nao se possa traduzir na lingua- gem, nao sofra de uma caréncia inteiramente eficiente. Seja como for, apés meus relatos que nos levam a questdo dos quantificado- res, teremos evidentemente que colocar certas quest6es relativas ao que é, ao que vai acontecer no angulo do $, do sujeito suposto saber riscado do mapa. O fato de que teremos que elucubrar sobre 123 a disponibilidade do significante neste lugar, talvez nos leve a essa jungao da gramatica com a l6gica que é - fago notar somente a esse propésito e para refrescar a meméria - precisamente o ponto em que sempre navegamos, essa légica que nosso circulo de entao chamava, com simpatia, de tentaliva de uma légica clastica. Nao esiou totalmente de acordo com esse termo. A elasticidade nao 6a que se pode desejar de melhor para um padrao de medida. Aarticulagio entre a légica e a gramatica é também algo que talvez nos faga dar mais alguns passos. Em todo 0 easo, o que de- sejaria dizer ao terminar, é que eu nao poderia insistir demais com os psicanalistas para meditarem sobre a especificidade da posicao que vem a ser a deles, a de dever ocupar um lugar total- mente diverso daquele mesmo onde sao requisitados. Mesmo es- tando proibidos de agir, é na perspectiva do ato que eles tem que centrar sua meditagio sabre sua fungio. Mas no 6 &-toa que isto ¢ tao dificil de obter. H4 na posicéo do psicanalista, e por fungio, se este esquema o torna suficiente- mente claro para que nao se veja nisso nenhuma ofensa, algo de enrustido. Tentaremos decifrar em algum lugar uma “imagem no tapete”?, ou nos..., como queiram, Hi uma certa posigéo enrustida” que eles chamam como po- dem, chamam de “escuta”, chamam “a clinica”, vocés nem imagi- nam todas as palavras opacas que podemos encontrar nesse caso, Pois cu me pergunto de que maneira, como permilir-se dar énfase ao que ¢ inteiramente especifico deste sabor de uma experiéneia. Isso nao 6, certamente, acessivel a nenhuma manipulagio légica. Em nome desta (néo ouso dizer gozo solitdrio) deleitagéio morosa, em nome dist, permitirse dizer que todas as teorias se equiva- lem, e sobretudo que naa 6 precisa estar ligado A nenhuma, quer se traduza as coisas em termos de instinto, de comportamento, de génese ou de topologia lacaniana...! Tudo isso devemos encontrar em uma posicao equidistante nesse tipo de discussao. Tudo isso, no fundo, é ozo hipocondriaco. Esse lado centrado, peristiltico € anti-peristaltico ao mesmo tempo, é algo de visceral A experiéncia psicanalitica. Isso que vocés efetivamente verao figurado, instala- do sobre uma tribuna, certamente nao € 0 ponto mais facil de al- cancar pelo efeito de uma dialética; eis o ponto essencial em torno 124 clo qual se joga, ai de mim, 0 que Clausewitz estabelece como dissimétrico entre a ofensiva e a defensiva... Notas do Tradutor I bouscutede - pressdobrusca ou desordenadanoseio de um grupo de pessoas, empurra-empurra. le vide-pockes -patinho para despejar os pequenos objetos quese leva dentro dos bolsos. 3. bibelotage - o verbo bibeloter, intransitivo, significa comprar objetos de arte, para colocar sobre os méveis. 4 aufklarung - esclarecimento, iluminismo, 5. decraseé-o verbo decrasser significa limpar, lavar, ou,n0 sentido figurado, instruir alguém com os conhecimentos mais indispensaveis, polir, civilizar. 6. frayage-tradugio para o francés de baling nogaoapresentada por Freud no “Projeto de uma Psicologia”. A “facilitagaio” & conseqiléncia de uma passagem de excilagio, que diminuira permanentemente sua resisténcia, ctiando uma via privilegiada. 7 ex cathestra -em latim, do alto do péilpito. Se diz.do Papa quando proclama uma verdade de fé. Tom doutoral. 8 pas fait - 0 “pas” pode ser entendido como advérbio indicando a negagan, ou cama.o substantivo “passa”, passo dado. 9. image dans te lapis - dire sur le tapis significa ser tema de um exame ou conversagao. ff homéfone ao participio passade de “tapir”, verbo que significa encolher-se ou agachar-se para se esconder. 10. position de tapi - “pose d’uns tapis”, significa atitude indolente. "Tapi” também dé a idéia de escondido, camuflado. 125 Seminario de 7-2-68 Retomo, entio, apés quinze dias. Essa seqiiéncia relativa ao ato psicanalitico, que desenvolvo esse ano para vocés, é paralela a algumas proposigées, para empregar 0 termo adequado, que sAo as que foram propostas em um circulo composto de psicanalistas. ‘As respostas a essas proposicdes, que alids nao se limitam as que sio intituladas como tais, sio seguidas de um certo ntimero de outras produgdes. Vai aparecer, no fim do més, uma revista que seré a revista da Escola. Tudo isso tem por resultado um certo ntimero de respostas ou de manifestagdes que certamente nao sao, de modo algum, sem interesse para esses a quem me dirijo aqui. E claro que algumas dessas respostas e reagdes, por se produzirem no ponto mais central onde minhas proposigdes sdo bastante con- seqtientes com 0 que produzo aqui sobre o ato psicanalitico, so seguramente cheias de eentide para definir, em wma prova que pocemos qualificar de crucial, o que é o estatuto do psicanalista. Com efeito, na iiltima vez eu os deixei com a indicacao de uma referéncia légica. E certo que, no ponto onde estamos, que é este onde 0 ato define por seu corte a passagem onde se instaura, onde se institui o psicanalista, 6 inteiramente claro que temos que repassar pelo modo de verificaciio que constitui para nés uma in- terrogagao légica. 127 Serd ela (para tomar a referéncia inaugural de Aristételes, no momento em que, como recordei, ele faz os pasos decisivos onde cla se instaura, como tal) a categoria l6gica em sua espécie formal? ‘Trata-se de um procedimento de intengao demonstrativa ou dialé- lica? Verdo que a questdo é secundaria. Por que é secundaria? Porque trata-se de algo que se instaura pelo proprio discurso, a saber, que tudo 0 que podemos formular com relagio ao psicanalisando ¢ © psicanalista, vai girar - penso que nao surpreenderei, com o que vou enunciar, jé o preparei bas- tante para que, agora, a coisa pareca a vocés jé dita - vai girar em. tomo do seguinte: como contestar que o psicanalisando, em situa- io no discurso, esteja no lugar do sujeito? De qualquer referéncia que nos armemos para melhor situé-lo, naturalmente no primeiro plano da referéncia lingiiistica, ele é essencialmente aquele que fala Ele é aquele que fala e em quem se experimentam os efeitos, da palavra. O que quer dizer “em quem se experimentam"? A f6r- mula € propositalmente ambigua. Quero dizer que seu discurso, tal como regrado, instituido pela regra analitica, é feito para ser a prova de que, como sujeito, ele ja esié constituico como efeito da palayra, E entretanto, também é certo dizer que este discurso, ele prdprio, tal como vai se desenvolver, sustentar-se como tarefa, en- contra sua sancao, seu saldo, seu resultado, como efeito de diseur- so, antes de mais nada a partir desse discurso proprio cm si mesmo, qualquer que seja a insergdo que o analista consiga por sua inter- pretacao. Inversamente, devemos perceber que a questo sempre atu- al, as vezes até candente, se ela se refere ao psicanalista, digamos, para ir com prudéncia, para ir ao minimo, que éna medida em que esse termo “psicanalista”” 6 colocado em posigio de qualificacio: quem, o que pode ser dito... predicado: psicanalista? Seguramente, se mesmo essa introdugio parecer um pouco apressada, serd por um retorno que isso se justificard, ja que, para ir ao cerne, anuncio sob que rétulo, sob que rubrica, pretendo colo car meu discurso de hoje. Confiem em mim, nada afirmo a este respeito, sem antes consultar o que ha de esclarecedor na propria histéria da I6gica. Em nosso tempo, bascula de tal modo o manejo do quese designa como légica, que verdadeiramente torna, eundo 128 ditia cada vez mais dificil, mas nos torna, a nos préprios, cada vez mais perplexas quanto ao ponto de partida de Aristételes. preciso remeter-se ao texto, especialmente ao “Organon”, ao nivel dessas “Categorias”, por exemplo, ou dos “Primeiros Ana- liticos”, ou do primeiro livro dos “Tépicos", para perceber a que ponto a tematica do sujeito, tal como ele enuncia, é proxima de nossa problematica. Pois seguramente, jd desde 0 primeiro enun- ciado, nada € tao propicio a nos esclarecer sobre © que, ao nivel esse sujeito, por natureza, é 0 que se esquiva por exceléncia. Nada que, no ponto de partida da légica, esteja mais firmemente afirma- do como se distinguindo do que se traduziu, certamente que de modo muito deficiente, como a "substancia”: ousia. A tradugéo por “substancia” mostra claramente como, ao longo do tempo, hou- ve um deslizamento abusivo da fungio do sujeito em seus primei- ros passos aristotélicos, para que o termo “substincia”, que cria umt equivoco com relagzio ao que o sujeito comporta de suposig&o, para que otermo “substancia” tenha sido tao facilmente proposto. Nada na ousia, no que é, para Arist6teles, o individual, é de natureza a poder ser situada no sujeito, nem afirmada, quer dizer, nem atribuida ao sujeito. Nada é mais de natureza a nos fazer, de imediato, entrar de cabega na formula com a qual acreditei poder, em todo seu rigor, testemunhar este ponto verdadeiramente chave, verdadeiramente central da histéria da légica, no qual, por se ter acrescido de uma ambigitidade crescente, 0 sujeito reencontra nos passos da l6gica moderna essa outra face, por uma espécie de ponto de inflexio que faz bascular, se podemos dizer, sua perspectiva, que tende a reduzi-lo a varidvel de uma fungio na légica matematica. Quer dizer, algo que vai entrar, a seguir em toda a dialética do quantifi cador, que nao tem outro efeito sendo o de torné-lo doravante irre- cuperdvel sob 0 modo em que ele se manifesta na proposicao. O termo “ponto de inflexiio” me parece estar bastante bem colocado na f6rmula que precisei formular, dizendo que 0 sujeito 6, muito precisamente, o que um significante representa para um outro sig- nificante, Essa formula tema vantagem de denunciaro que estéeludido na I6gica matemética, ou seja, a questao do que ha de inicial, de 129 iniciante, em propor um significante qualquer, em introduzi-lo como representando 0 sujeito, pois af esté o que é essencial desde Aristételes, e que é a tinica questo que permite situar no lugar devido a diferenga entre a primeira bipartigéo, a que diferencia 0 universal do particular, e esta segunda biparticio, a que afirma ou que nega. Uma e outra, como vocés sabem, se entrecruzam para dar a quadripartigao da afirmativa universal, da universal negati- va, da particular negativa e afirmativa, alternadamente.. As duas bipartigdes nao sao absolutamente equivalentes. O que significa a introdugao do sujeito, na medida em que é a seu nivel que se situa a biparticao do universal e do singular? O que quer dizer, para colocar as coisas como, por exemplo, Peirce Charles Sanders, que se encontrava nesse ponto hist6rico, nesse nivel de confluéncia da légica tradicional com a l6gica matematica, o que justifica, de alguma forma, que encontremos sob sua pena esse momento de oscilacaio em que se delineia o ponto de inflexaio que abre um novo caminho. Ninguém mais que ele, ej apresentei seu testemunho no momento em que tive que falar, em 1960, sobre o tema da identificag4o, ninguém sublinhou melhor, nem com mais elegancia, qual é a esséncia do fundamento do qual resulta a dis- tincao do universal e do particular e o laco do universal ao termo “sujeito”. Universal oO Vertical (universal afirmativo) Particular suprimindo © rio particular 130 Ele 0 fez por meio de um pequeno tragado exemplar, que os que me seguem ha algum tempo jé conhecem bem, mas que nao leixa de ser interessante repetir para designar o seguinte: é que, certamente, ele se permite dar como suporte do sujeito o que ha verdadeiramente dele, a saber, nada, no caso, 0 trago. Nenhum desses tracos, que tomaremos para exemplificar 0 que é da funcao do sujeito ao predicado, nenhum desses tragos, tal como os inscreveremos, que jé nao esteja especificado pelo predi- cado em torno do qual faremos girar o enunciado de nossa propo- si¢do, a saber, o predicado “vertical”. 1 - Na primeira casa, no alto e a esquerda, os tragos respon- dem ao predicado, sao tragos verticais. 2 Depois, hd outros nessa casa, em baixo e a esquerda, dos quais alguns nao sao, 3- Aqui, em baixo e a direita, nenhum é. 4 - Aqui, como vocés véem, nao ha tracos. ff af que esté o sujeito. ‘Ai é que est 0 sujeito, porque nao ha tragos. Em qualquer coutra parte, os tragos so mascarados pela presenca ou auséncia do predicado. Mas para fazer aprender bem porque é 0 “sem tra~ 0” (pas de trait) que 6 o essencial, hé vérios métodos; ainda que fosse apenas por instaurar 0 enunciado da afirmativa universal, por exemplo, assim: nao ha traco que nao seja vertical. ‘Vocés vero que fazer funcionar 0 “nao” (ne) no “vertical” ou retiré-lo, 0 que permitiré fazer a bipartigao afirmativa ou negati- va, e que é suprimindo 0 “nao” (pas) antes do trago e deixando “o traco que é ou nao vertical”, que vocés entrarao no particular. Quer dizer, no momento em que 0 sujeito est inteiramente submetido a variagao do vertical ou do nao vertical. Hi os que sao, e outros que nao sao. Mas o estatuto da universalidade sé se instaura aqui, por exemplo, pela reuniao de duas casas, a saber, aquela que s6 tem tragos verticais, mas também aquela onde nao ha tragos, pois 0 enunciado do universal que diz que todos os tragos sao verticais 86 se sustenta, e legitimamente, por essas duas casas e por sua reu- nido. Ele também é verdadeiro, e mais essencialmente verdadeiro, ao nivel da casa vazia. Nao ha tracos sendo verticais quer dizer: 1 onde nao ha verticais, nao ha tracos. Tal € a definigao vélida do sujeito, na medida em que, em qualquer enunciagio predicativa, ele é essencialmente esse algo que é apenas representado para um significante por um outro sig- nificante. $6 mencionarei rapidamente, porque ndo podemos passar todo nosso discurso a insistir sobre o que podemos tirar do esque- ma de Peirce. E claro que, da mesma forma, é na reuniao dessas duas casas (chave da direita), que o enunciado: “nenhum trago é vertical”, apdia-se. Em que? E por isso que preciso acentuar em. que se demonstra - 0 que jé sabe quem leu dircito 0 texto de Aris- tételes - que a afirmativa universal e a negativa universal nao se contradizem, que so ambas vélidas, com a condicao de que este- jamos na casa do alto e a direita, Também é verdade ao nivel desta casa, que se afirmarmos que todos os tragos sao verticais, ou que nenhum trago é vertical, as duas coisas sao verdadeiras, o que cu- riosamente Aristételes, se nfo me engano, desconhece Nos outros pontos da divisao crucial vocés tém a instauragéo das particulares, hé nessas duas casas (as da esquerda), tragos ver~ ticais e, na jungio dessas duas casas nferiores, hd tracos que nao sao, e nada mais. Notem entio que, no nivel do fundamento universal, as coi- Sas se situam de uma forma que comporta uma exclusio da diver sidade, a que esté na casa de baixo, & esquerda. Da mesma forma, ao nivel da diferenciacao particular, hd uma exclusio, a da casa que estd no alto a direita E 0 que da a ilusio de que a particular é uma afirmacao de existéncia, que basta falar ao nivel de “algum”, por exemplo, al- gum homem tem a cor amarela, para implica, por este fato enun- ciado sob a forma de uma particular, que haveria por este fato, se ‘ous0 me exprimir assim, pelo fato desta enunciagao, alismagao lau bém da existéncia do particular. Foi exatamente em torno disso que giraram inumeraveis debates sobre o tema do estatuto logico da proposigio particular, ¢ 0 que os torna insignificantes & que nado basta que uma proposicao se enuncie ao nivel do particular, para implicar de alguma forma a existéncia do sujeito, senao em nome de uma ordenacio significante, quer dizer, como efeito de discur- so. 132 Ointeresse da psicandlise é que ela articula, como jamais pode ser feito até o presente, os problemas de légica, por fornecer o que, em suma, estava no principio de todas as ambigiiidades que se cesenyolveram na histéria da légica, a implicagéo no sujeito de uma ousia, um ser. Que o sujeito possa funcionar como nao sendo, épropriamente (insisto nisso desde o comeco deste ano) 0 que nos fornece a abertura esclarecedora gracas a qual poderia reabrir-se um exame do desenvolvimento da lgica. A tarefa ainda est em aberto. Quem sabe, falando nisso aqui eu talvez, provocasse uma vocagiio, que nos mosiraria o que significam verdadeiramente tan- los desvios, tantos embaracos, as vezes to singulares, tao parado- xais, que se manifestaram no curso da histéria e marcaram os debates l6gicos através das eras, ¢ quemuma certa perspectiva, pelo menos a nossa, parece téo incompreensivel o tempo que as vezes levaram e que parece ter constitufdo longas estagnacies, até pai xGes em torno dessas estagnagdes, das quais avaliamos mal o al- cance por nao percebemos o que estava verdadeiramente em jogo, por trés. A saber, nada menos que o estatuto de desejo do qual o liame, por ser secreto, com a politica, por exemplo, é inteiramente perceplivel na virada que constiluiu a instauracio na filosofia, es- pecificamente a filosofia inglesa, de um certo nominalismo. F im- possivel compreender a coeréncia desta lgica com uma politica, sem se dar conta do que a légica, ela propria, implica de estatuto lo sujeito e de referéncia A efetividade do desejo na relagio politi- ca. Para nés, para quem esse estatuto do sujeito esti ilustrado de questbes - que, como enfatizei, ocorrem em um meio muito limita co, muito restrito, e marcado de discuss6es da pregnancia cujo carter acalorado participa dessas antigas subjacéncias, eis porque agora nos serve de exemplo - 0 que podemos articular é pelo fato de que isso que nao pode deixar de ter incidéncia sobre um domf- nio muito mais amplo, jé que nao é seguramente apenas na prética que gira em torno da funcao do desejo, na medida em que a anali- a descobriu, ndo é apenas ld que a questiio se coloca. Eis entdo psicanalisando e psicanalista colocados por nés nes s posises distintas que sio, respectivamente: qual vai ser oesta~ luto de um sujeito quese define por esse discurso, por esse discurso 133 que disse a vocés, na tiltima vez, ser instituido pela regra, especial- mente pelo fato de que se solicita ao sujeito que ai abdique, que esta éa meta da regra, e que, no limite, dedicando-se a deriva da linguagem, por uma forma de experiéncia imediata de seu puro efeito, tente alcancar os efeitos jd estabelecidos. Aum tal sujeito, um sujeito definido como efeito de discurso, neste ponto em que faz a experiéncia de perder-se para se reen- contrar, a um tal sujeito cujo exercicio 6, de certa forma, colocar-se & prova de sua propria demissao, quando poderfamos dizer que se aplica um predicado? Dito de outra forma, poderiamos enunciar algo que fosse da rubrica do universal? Se o universal nao nos mostrasse jé em sua estrutura que ele encontra sua algada, seu fun- damento no sujeito, enquanto ele sé pode ser representado por sua auséncia, quer dizer, enquanto cle nao ¢ jamais representado, estarfamos seguramente no direito de questionar se é possivel enun- ciar qualquer coisa, como, por exemplo, “todo psicanalisando re- siste”. Nao vou, entretanto, resolver se algo de universal pode ser enunciado do psicanalisando. Apesar das aparéncias, nao o des- cartamos seno ao colocar o psicanalisando como esse sujeito que escolhe, se podemos dizer, fazer-se alienar mais que qualquer ou- tro, votar-se 86 aos desvios de um discurso nao escolhido, a saber, esse algo que 6 0 que mais se opde ao que est4, aqui no esquema, no ponto de partida, a saber, que é certamente sobre uma escolha, mas uma escolha mascarada, eludida, porque anterior; escolhe- ‘mos representar o sujeito pelo traco, por esse trago que uma vez qualificado, néo mais o apreendemos. Nada aparentemente mais oposto ao que constitui o psicanalisando, que 6, apesar de tudo, uma certa escolha, essa escolha que chamei h4 pouco de abdica- sao. A escolha de se pér A prova com os efeitos de linguagem, ¢ exatamente ai que nos reencontraremos. Com efeito, se seguimas o fio, a tramna que nos sugere 0 uso. do silogismo, certamente devemos chegar a algo que vai ligar esse sujeito ao que avancei aqui como predicado, “o psicanalista” - se existe tm psicanalista, e lastimavelmente ¢ isso que nos falta para suportar essa articulagao logica. Se existe um psicanalista, tudo estd garantido, pode haver um monte de outros. 134 Mas, por agora, a nossa questéo é saber como 0 psicanalisando pode passar a psicanalista. Por que seré que, da manciraa mais fundada, essa qualificagéo se apéia apenas na tarefa acabada do psicanalisando? Vemos, precisamente aqui, abrir-se essa outra di- mensiio que € a que jé tentei perfilar para vocés, da conjurgao do atoe da tarefa. Como os dois se conjugam? Reencontramo-nos aqui ante uma outra forma do que fez problema e que terminou por se articular na Idade Média. Isso nao esta lé a toa: inventio medi, de que parte esse passo admiravelmente agil que é 0 dos “Primeiros Analiticos” de Aristételes, a saber, da primeira figura do termo médio, esse termo médio que ele nos explica que, ao ser situado como predicado, elenos permitird ligar de uma forma racional esse sujeito evanescente a algo que seja um predicado. Pelo termo mé- dio essa conjungao é possivel. Onde esti o mistério? Por que pare- ce existir algo que é um lermo médio e que, na primeiza figura, apresenta-se como predicado da maior onde nos espera osujeito, como sujeito da menor, que vai nos permitir ligar 0 predicado em questio? Poder ser, sim ou nao, atribuido ao sujeito? Essa coisa que, ao longo do tempo, passou por cores diversas, ‘que pareceu, na virada do século XVI, um exercicio que encentamos nos autores, afinal de contas, puramente futil, volta a ganhar cor po quando nos damos conta do que se trata. Trata-se do que chamei o objeto “a” que ¢ para nés o verda- deiro termo médio, que se propde, tao seguramente como um mais um, como de uma seriedade mais incomparavel por ser efeito do discurso do psicanalisando e, por outro lado, como jé enunciei, no novo grdfico que € aquele que vocés me véem usar aqui faz dois anos, nao como o que se torna © psicanalista, mas como 0 cue esté, de inicio, implicado por toda a operacao como o que deve ser 0 saldo da operacao psicanalisante, como o que libera o que é uma verdade fundamental; o fim da anélise 6, a saber, a inigualdade do sujeito a toda a subjetivacéo possivel de sua realidade sexual e a exigéncia de que, para que esta verdade apareca, o psicanalista jé seja a representacéio do que mascara, obtura, tampona essa verda- de, e que se chama o objeto “a” : Notem bem, com efeito, que o essencial do que desenvolvo aqui (voltarei a isso muitas vezes) nao é que no final da psicandli- 135 se, como alguns imaginam (vi pelas questdes apresentadas), 0 p: canalista se torne para o outro 0 objeto “a”. Esse “para o outro” aqui toma singularmente o valor de um “para si”, enquanto como sujeito nao ha outro sendo esse Outro ao qual & deixado todo 0 discurso. Nao é nem para 0 outro, nem em um “para si”, que nao existe ao nivel do psicanalista, que reside esse “a”, énum “em si; um “em si” do psicanalista. E enquanto (como alids os préprios psicanalistas clamam, basta abrir a literatura para ver a todo o ins- tante o testemunho disso) eles sio realmente esse seio de “oh mi- nha mie inteligéncia’” de nosso Mallarmé, que eles proprios sio esse dejeto presidindo a operacao da tarefa, que eles sao o olhar, so a voz. E enquanto sio, em si, 0 suporte desse objeto “a” que toda a operagao é possivel. Sé que escapa a eles uma coisa, éa que ponto isso nao é metaférico. Agora, vamos retomar o que é do psicanalisando. Esse psicanalisando que se engaja nessa tarefa singular, que qualifiquei como baseada em sua abdicacao, perceberemos que, em todo 6 caso, j4 haveré algo de esclarecedor, se ele naio puder ow se ele puder (nés néio sabemos) ser apreendido sob a funcao do univer- sal. ‘Talvez haja wma outra coisa que vai nos surpreender, que nao foi por acaso que o colocamos como sujeito. Isso quer dizer que o sentido que tem essa palavra, o “psicanalisancio”, quando a articulamos ao nivel do sujeito, enquanto ¢ aquele que brinca com todas essas cores, como as da moréia no prato do rieo Romain, ela 86 pode ser colocada em uso como atributo mudando de sentido, A prova € que quando a utilizamos como atributo, utilizamos tao bestamente quanto ¢ possivel o termo “psicanalisado”, mas nao se diz “aqueles” ou “estes” ou “todos estes” ou “todos aqueles” sio psicanalisandos. Notem que nao empreguei o termo singular. Se- tia ainda mais revoliante. Mas deixemos o singular de lado, expe- rimentandoa esse respeito a mesma repugnancia que fez com que Aristoteles nao empregasse os termos singulares em sua silogisti- ca. Se vocés nao notam de imediato 0 que pretendo a propésito dessa evidente colocacao a prova do uso do termo “psicanalisando” como sujeito ou como aiributo, vou fazé-los perceber. Empreguem o termo “trabalhador” tal como cle se situa na perspectiva de “Trabalhadores de todos os paises, uni-vos”, a sa- ber, ao nivel da ideologia que destaca e enfatiza sua alienagao es- oncial, a explorago constituinte que os define como trabalhadores, coponham-no ao uso do mesmo termona boca paternalista, a que qualificard uma populacao de “trabalhadora”. A‘ eles so traba- Ihadores pornatureza, s40 os... (atributo) bons trabalhadores”. Esse cxemplo, essa distingao deve introduzi-losa algo que talvez.os faga lovantar a questiio de saber, afinal, se nesta operacao tao singular onde, como disse, se apdia o sujeito do ato psicanalitico, em que temos como principio que o ato que instaura a psicandilise parte de outro Lugar, se isso nao serd de molde anos levar a perceber que af também existe uma espécie de alienacdo? Afinal, vocés nao esta- io surpresos, porque ela jé estava presente no meu primeiro es- quema, que é 0 da alienacao necessdria onde ¢ impossivel escolher catre 0 “onde eu nao penso” e o “onde eu nao sou”, da qual fiz crivar toda a primeira formulagao do que é 0 ato psicanalitico. Mas entio, talvez. assim, lateralmente (6 uma maneira, assim, heuristica que tenho de introduzi-los) vocés possam se perguntar (levanto a questo porque a resposta j4 esté af, claro): 0 que € que essa tarefa psicanalisante produz? JA temos para nos guiar o objeto “a”. Pois se esse objeto “a” om dtivida esteve ld desde sempre, ao nivel de nossa questio, a saber, 0 ato psicanalitico, seré apenas no final da psicandlise termi nada, somente no final da operagao que ele vai reaparecer no real a partir de uma outra fonte, a saber, como rejeitado pelo psicanalisando. Mas é af que funciona nosso termo médio, que nds o encontramos carregado de um acento inteiramente diverso. Esse “al” em questo, jé dissemos, 6 0 psicanalista, ¢ nfo 6 porque ele estava lé desde 0 inicio que, no final, do ponto de vista da tarefa, essa vez psicanalisante, nao serd ele que serd produzido. Quero dizer que podemos nos perguntar qual é a qualificagio do ps nalista. Em todo o caso, uma coisa é certa, é que ndo ha psicanalis- la sem psicanalisando; e diria mais, a respeito de algo téo singular que tenha entrado no campo de nosso mundo, a saber, que haja um certo ntimero de pessoas de que nao estamos certos que isso tenha o poder de instaurar seu estatuto como sujeito, e que, apesar ica 137 disso, sao pessoas que trabalham nesta psicandlise. O termo “tra balho” no foi exclufdo por um s6 instante desde a origem da psi candlise, odurcharbeiten, oworking through... Esta é precisament a caracteristica a que temos que nos referir para admitir a aridez, secura, as vezes até a incerteza de suas margens. j Mas se nos colocamos a este nivel de uma omnitude onde todos os sujeitos se afirmam francamente em sua universalidad de no mais ser, e de ser (a casa da direita) o fundamento do uni- versal, vemos que seguramente ha algo que depende disso, que seu produto e mesmo, propriamente, produgao. Jé aqui posso des- tacar 0 que é desta gente, desta espécie: o psicanalista definido como produgio. Sendo houvesse o psicanalisando, diria eu, 4 moda de algum humorismo classico que inverto: se nao houvesse polo- neses, nao haveria a Polonia... também podemos dizer que se nao houvesse psicanalisando, nao haveria psicanalista. O psicanalista se define nesse nivel da producao. Ele se define por ser esse tipo de sujeito que pode abordar as conseqiiéncias do discurso de um modo tao puro que consegue isolar o plano das suas relac&es com aquele cuja tarefa e o programa desta tarefa ele instaura por seu ato, e durante toda a sustentagao desta tarefa ver ai apenas essas relac&es que sao propriamente as que designo quando manejo essa algebra: 0$,0“a”,atéo A e oi (a); aquele que é capaz de se manter nesse nivel, quer dizer, ver apenas 0 ponto em que est o sujeito nesta tarefa cujo fim é quando tomba, quando cai ao tiltimo termo: ~c.que € 0 objeto “a”, aquele que é desta espécie, quer dizer, que € capaz, na relagao com@lguémyue esta em posigao de cura, de nfo se deixar afetar por tudoatravés de que se comunica todo ser hu- mano, em toda fungao com seu semelhante. Eisto tem um nome, que nao é simplesmente, como sempre denuncio, onarcisismo até seu termo extremo que se chama 0 amor. Nao hé apenas narcisismo e, felizmente, apenas amor entre os se- res humanos, para chamé-lo como é costume. Ha esse algo que alguém que sabia falar de amor jé distinguiu com felicidade: ha 0 gosto, hé a estima; o gosto é de uma vertente, a estima talvez nao seja da mesma, mas se conjugam admiravelmente. Hé fundamen- talmente esse algo que se chama “gosto de voce", e que é feito essencialmente de uma dosagem que faz com que, em uma pro- 138 porgao exata e insubstituivel, que vocés podem colocar na casa da esquerda e de baixo, a relagao, o apoio que toma 0 sujeito no “a” e neste i (a) que funda a relacdo narcisica ressoe, e é exatamente 0 que é preciso pata que isso agrade a vocés. E o que faz que, nas relagdes entre os seres humanos, haja encontro. E muito precisa- mente disto, que é 0 osso e a cane de tudo 0 que jamais se articu- lou da ordem do que, em nossos dias, se tenta matematizar de forma burlesca sob o nome de relagdes humanas, é disto que se distingue precisamente o analista, ndo recorrendo jamais na rela cio no interior da andlise, a este inexprimivel, a este termo que é 0 \inico suporte da realidade do outro que é 0 “gosto de vocé” ou “nao gosto de voce”. Aextracio, a auséncia desta dimensao é que haja um ser, ser de psicanalista, que por estar ele mesmo em posigio de “a”, possa fazer girar tudo o que diz respeito ao destino do sujeito psicanalisando, a saber, sua relagio a verdade, por fazé-lo girar pura e simplesmente em torno desses termos de uma Algebra que hao concerne em nada uma multiplicidade de dimensdes existen- (es emais que aceitaveis, uma multplicidade de dados, de elemen- tos substanciais, no que esté lé em jogo, no lugar e respirando sobre o divan. Eis 0 que é producio, totalmente compardvel & de tal ou tal maquina que circula em nosso mundo cientifico, e que é, pro- priamente dizendo, a producio do psicanalisando. Fis algo de original. Entretanto, é bastante claro que nao € tio novo, ainda que tenha sido articulado de uma forma que pode parecer surpreendente a vocés. Pois o que quer dizer se pedimos ao psicanalista para nao deixar operar na andlise o que se chama de “contratransferéncia”? Desafio que se possa dara isso um sen- tido que nao seja este: que nem o “gosto de vocé” nem 0 “no gos- to de voce", definidos como fiz hé potico, encontram lugar. Mas entao, eis-nos confrontados com a questo de saber: nes- se ponto, apés ter transformado o objeto “a” como um Austin, 0 que pode querer dizer o ato psicanalitico, se de fato, apesar de tudo, 6 0 psicanalista quem comete o ato psicanalitico? Isso segu- ramente quer dizer que o psicanalista nao é todo 0 objeto “a”, a”, ele opera como objeto “a”. Mas 0 ato em questo (acho que ja insisti nisso o bastante, até agora, para poder retomar sem mais comenté- 139 rios), oato consiste em autorizara tarefa psicanalisante, com 0 que isso comporta de profissio de fé no sujeito suposto saber. A coisa era bem simples quando eu ainda nao tinha denunciado que esta £8 & insustentavel, e que o psicanalista € o primeiro e, até aqui, 0 tinico a poder medi-lo (ainda nao foi feito). Cracas ao que ensino, 6 preciso que ele saiba que: 1 - Era justamente sobre o sujeito suposto saber que se apoia~ vaa transferéncia considerada como um dom do céu 2.-Mas a partir do momento em que se revela que a transfe- réncia é 0 sujeito suposto saber, o psicanalista é também o tinico a poder colocar isso em questo. F que se esta suposicao € com efeito bastante itil para se engajar na tarefa psicanalitica, a saber, que ha um (chamem-no como quiserem, 0 onisciente, 0 Outro), hé um que jd sabe tudo isso, tudo 0 que vai se passar. Claro, nao o analista, mas hd um. O analista nao sabe que hé um sujeito suposto saber, ¢ sabe mesmo que tudo de que se trata na psicanélise a partir da existéncia do inconsciente, consiste justamente em riscar do mapa essa fungao do sujeito suposto saber. £ entio um ato de fé singular, este que se afirma por fazer fé no que é colocado em questo, jé que simplesmente engajando 0 psicanalisando em sua tarefa, se profere este ato de fé, quer dizer, nés 0 salvamos. Nao percebem af algo que vem a recobrir singularmente uma certa querela? Estas coisas perderam um pouco de seu relevo, a ponto que agora todo mundo se lixa para isso, No tiltimo centend- rio de Lutero parece que houve um postal do Papa: “boas recorda- cOes de Roma”. O que seré que salva, af owas obras? Talvez vejam af um esquema onde as duas coisas se conjugam, a obra psicanali- sante & fé psicanalitica, algo se cnlaga que talvez poosa permitir esclarecer retrospectivamente a validade e a ordem dissimétrica onde se colocam essas duas formas de salvacao, por uma ou por outra, ‘Mas nos parecer sem diivida mais interessante (pelo menos espero...) ver despontar, ao final desse discurso, algo que confesso que até para mim é uma surpresa encontrar. Se é verdade queno campo de ato psicanalitico 0 que produz © psicanalisando é o psicanalista, e se vocés refletem sobre esta 140 pequena referéncia que tomei de passagem, em torno da esséncia da conseiéncia universal do trabalhador, propriamente falando, en- quanto sujeito da explorago do homem pelo homem, seré que focalizar toda a atencdo relativa & exploragdo econdmica na aliena- (io do produto do trabalho nao significaré mascarar algo at, na alienag&o constituinte da exploracio econdmica do homem? Nao serd mascarar uma face, e talvez. nao sem motivo, a face a mais cruel e & qual talvez um certo niimero de fatos da politica déem verossimilhanga? Por que nao nos perguntariamos se a um certo jjrau da organizacao da produgao nao apareceria precisamente que 0 produto do trabalhiador, sob certa face, seria justamente a forma singulax, a figura que toma, em nossos dias, 0 capitalismo? Quero dizer que, seguindo esse fio e vendo desde j a fungao da fé capita lista, tomem algumas pequenas referéncias no que indico sobre 0 tema do ato psicanalitico ¢ conservem isso 4 margem em suas ca- becas, para as proposigées com que prosseguirei meu discurso. Continuarei em quinze dias... em nome das mesmas férias que se dé aos garotos nos liceus, cu as dou a mim mesmo e espero vocés dentro de quinze dias. Notas do Tradutor 1 durcharbeiten, alemao, 6 tracuzido para oinglés como “working through”, e para © portugués como “elaboragao psiquica” ou “perlaboracio”, 1a Seminario 21 de fevereiro de 1968 Vai aparecer esses dias uma pequena revista que naome cabe apresentar a voc®s, poderao encontré-la em alguns dias por ai,em_ St. Germain des Prés. Vero nela um certo ntimero de caracteristi- cas particulares, das quais a principal é o fato de que, a parte os meus, por razbes que explico, os artigos nao serao assinados. O fato surpreendeu e causou certo barulho, como era de se esperar, principalmente aonde isso deveria ter sido apreendido quase que imediatamente, quero dizer, junto aqueles que, até aqui, foram os \inicos a ter a informagdo de que os artigos apareceriam assim. Quero dizer, no apenas psicanalistas mas, mais ainda, pessoas gue sio membros de minha Escola e que, a esse titulo, deveriam dlesconfiar um pouco do que se diz aqui. Enfim, espero que apés 0 que vem na ordem do que ensino a vocés, a saber, o que vou dizer hoje, a explicacao, o motivo desse princfpio ja aceito de que os ar- ligos ndo sero assinados, talvez soe melhor, j4 que parece que ha poueas pessoas capazes de dar o passinhoa frente, embora cle es- \cja ja indicado pelo encaminhamento que precede. ‘A coisa instigante 6 ainda que, nesse boletim de informacao, foi assinalado que o fato desses artigos nfo serem assinados nao queria dizer que ndo se conheceria os autores, uma vez que foi dito que os autores apareceriam sob a forma de uma lista, ao final decada ano. O termo “artigo nao assinade” foi no mesmo instante 143 captado, amplificado pelos ouvidos, enfim... ouvidos do género concha marinha, de onde saem coisas singularmente extravagan- tes, sobre o que seria a funcao do anonimato. Deixo passar tudo 0 que pode ser dito a esse propésito, dado que, a este respeito, ja comuniquei a alguns ca coisa, unicamente a titulo instrutivo, a saber, de como uma coisa pode ser transformada em uma outra. Nao ha pior surdez do que quando, de saida, nao se quer ouvi Hi outros que foram mais longe e que, em abundantes correspon- déncias pessoais, me fizeram ouvir a que ponto a aparéncia de anonimato representava uma forma de utilizar os colaboradores como empregados. Isso se faz, parece, em certas revistas que, tal- vez, nao estejam mal situadas por isso, enfim, de fora. E assim que se permitem qualificar o fato de que nao é habito que o critico po- nha seu nome, nas revistas de criticas; eles sao, parece, apenas em- pregados da Diretoria... A esse titulo, quem sabe até onde vai a nogao de empregado...! Enfim, ouvi de tudo 0 que se pode ouvir, como cada vez que terho de obter uma resposta quanto a uma inovagao. Inovagao de algo de importante e que é isso que comeca a vir a frente hoje, na seqiiéncia do ato psicanalitico, a saber, o que des- se ato resulta como posicao do sujeito dito psicanalista, precisa- mente enquanto deve lhe ser adscrito esse predicado, a saber: a consagracio de psicanalista. Isso, se as conseqiiéncias que encon- tramos, como no caso que acabo de citar, tomassem a forma de um tipo de atrofia muito evidente das faculdades de compreensio, se isto devesse se demonstrar como de algum modo incluido nas pre- missas, como a conseqiiéncia do que resulta da inscrigio do ato no que chamei a consagragio sob uma forma predicativa, isso nos ali- Viaria muito quanto a compreensio desse efeito singular que cha- mei de atrofia, sem querer levar mais longe o que se pode dizer ao nivel dos préprios interessados. No caso, emprega-se o termo “pu- eril”, como se, na verdade, devéssemos referir-nos a crianga, quan- do se trata de seus efeitos. Claro, como se demonstrou em étimos momentos, ocorre que as criancas sucumbam a debilidade mental pela aco dos adultos. Entretanto, nao é a essa explicagéo que de- vemos recorrer no caso 2m questo, ou seja, o dos psicanalistas. 144 Retomemos o que € do ato psicanalitico, deixando bem claro jue hoje vamos tentar avancar nesse sentido, que é 0 do ato psica- nalitico. Nao esquecamos os primeiros passos que fizemos acerca de \u1a explicagao, a saber, que ele, essencialmente, se inscreve em um. feito de linguagem. Seguramente, nessa ocasido, pudemos perce- ber, ou pelo menos simplesmente lembrar, que é assim para todo o ato, mas certamente nao esté nisto o que o especifica. Temos que dlesenvolver em que ele consiste, como se ordena. O efeito de lin- juagem em questio se dé em dois estagios. Ele supde a propria psicandlise, precisamente ela, como efeito de linguagem. Em ou- tros termos, ele s6 é definivel ao minimo, se incluir 0 ato psicanalf- tico como sendo definido pela realizagao da prépria psicandlise. Mostramos que € necessério aqui redobrar a divisao, ou seja, que a psicandlise nao poderia se instaurar sem um ato, sem o ato daque- le que autoriza sua possibilidade, sem 0 ato do psicanalista, e que no interior desse ato da psicandlise inscreve-se a tarefa psicanali- sante. Ja mostrei, de algum modo, essa primeira estrutura de reco- brimento. Mas o que est em questo, e além do mais, nao é a primeira vez que insisto sobre essa distingao no seio mesmo do ato, 6 0 ato pelo qual um sujeito dé a este ato singular sua conseqiiéncia a mais estranha, a saber, que seja ele mesmo que 0 institua; dito de outra forma, que ele se coloque como psicanalista. Ora, isso que se passa deve prender nossa atengao, jé que ele toma esta posigao, em suma, cle repete esse ato, sabendo muito bem qual a seqiiéncia desse ato. Que ele se faca o representante disso de que conhece a finalizacao, a saber, que, ao se colocar no lugar que é 0 do analista, ele viré enfim a estar sob a forma do “a”, esse objeto rejeitado, esse objeto no qual se especifica todo o movimento da psicandlise, ou seja, aquele que chega, no final, ao lugar do psicanalista, na medida em que aqui 0 sujeito decididamente se separa, se reconhece como causado pelo objeto em questao. Causado em que? Causado em sua divisdo de sujeito, a saber: enquanto ele fica marcado, ao final da psicandlise, por essa hiancia que é a sua e que se define, na psicandllise, pela forma da castracao. 145 Eis, pelo menos, o esquema comentado, resumido como o fago por agora, que dei do que é 0 resultado, 0 efeito da psicandlise, e assinalei no quadro como representado no que se passa no final do duplo movimento da psicandlise, marcado nessa linha pela trans- feréncia e pelo que se chama a castragéo, e que chega no final a essa disjuncao do ~p, por um lado, e do “a”, que chega ao lugar aa término da psicandlise. 9 Vv a Hé 0 psicanalista pela operacao do psicanalisando, operagio que ele autorizou, de alguma forma sabendo qual é seu final, e operacéo da qual ele se institui a si mesmo como o ponto de chega- da, malgrado, se posso dizer, o saber que tem do que ¢ este final, Aqui, a abertura continua, por assim dizer, hiante, de como pode se operar esse salto, ou ainda (como fiz em um texto que era ‘um texto de proposi¢ao) explorar o que é este salto que chamei de “passe”. Até onde chegamos, nao ha mais nada a dizer sendo que ele é, muito precisamente, este salto. Claro, a respeito desse salto, muitas coisas sao feitas, pode-se dizer que tudo é feito, na ordena- do da psicandlise, para dissimular que é um salto. E mais, a rigor poderdo até admitir que se trata de um salto, desde que haja, em relacio ao que precisa ser atravessado, uma espécie de cobertura estendida que nao deixe ver que é um salto. Ainda é a melhor so- lug&o. De qualquer modo, ¢ melhor do que colocar uma pequena passarela, certamente bem cémoda, porque entiio nao hayerd mais salto algum. Mas enquanto a coisa nao tiver sido efetivamente interroga- da, colocaca em questo na analise..., e por que demorar mais para dizer que minha tese é que toda a ordenagao do que se faz.e existe na psicanélise é para que esta exploragio, essa interrogacao nao 146 (nha lugar? Enquanto ela efetivamente ndo se der,nés nao pode- vemos dizer sobre isso nada além do que nao se diz em lugar al- jum, porque, na verdade, é imposstvel falar disso sozinho. ‘Ao contrario, é fécil mostrar que um certo niimero de pontos, le coisas, segundo toda a aparéncia, s4o as conseqtiéncias do fato de que este salto é colocado entre parénteses. Interroguem, por exemplo, 0s efeitos, por assim dizer, da consagragio (nio diria no sentido de oficial, mas no sentido do juiz.eclesidstico nomeado)', dla consagragao como oficio, do que é um sujeito antes e depois de ler, presumivelmente, efetuado esse salto. Isso é algo que, afinal, bem que vale a pena questionar e tornar a questo mais insistente. (Quero dizer que nao apenas a questao merece ser feita, mas tam- bém que jé é prehidio a resposta. A insisténcia, por assim dizer, la questo revela que, na mesma medida da duragao do que cha- mei consagracao no oficio, algo vem a se opacificar de fundamen- lal, com relagdo ao que efetivamente sao os pressupostos necessarios do ato psicanalitico, ou seja, 0 que encerrei, na tiltima vez, designando como sendo, A seu modo, o que chamamos um “ato de £6” Ato de {6 no sujeito suposto saber, eu disse, e precisamente por parte de um sujeito que acaba de aprender 0 que é do sujeito suposto saber, pelo menos em uma operagio exemplar, que é a da psicandlise, A saber, longe de que, de alguma forma, se possa as- sentar a psicandlise, como se fez. alé agora, nos enunciados de uma ciéncia (quero dizer, esse momento no qual 6 adquirido por uma ciéncia passa ao estigio do ensinavel, dito de outro modo, profes- soral), que é enunciado ce uma ciéncia jamais poe em questao o que havia antes que o saber surgisse: quem 0 sabia? A coisa, devo dizer, nfo veio A cabeca de ninguém, porque parece téo evidente que antes havia esse sujeito suposto saber..! O enunciado da cién- cia, em principio a mais atéia, sobre esse ponto é tao firmemente Lcista..! Pois 0 que €, que outra coisa, sendo esse sujeito suposto saber? Tanto que, na verdadle, nao conheco nada de sério que te- nha sido adiantado nesse registro, antes que a propria psicandlise tivesse levantado a questo, a saber, que & propriamente insus- lentavel que o sujeito suposto saber pré-exista a sua operacio, quan- do essa operacio consiste precisamente na repartigao, entre seus dois parceiros, dos dois termos do que esté em questo no que var ocorre,a saber: o que ensinei a articular na légica da fantasia, esses dois termos que sao 0 $ e 0 “a”, enquanto ao termo ideal da psica- nélise, psicandllise que eu chamaria terminada’. E saibam bem que deixo aqui entre parénteses o acento que esse termo pode reccher em seu uso nas matemiticas, ao nivel da teoria dos conjuntos, a saber, desse passo que se faz do nivel em que se trata de um con- junto finito, aquele onde se pode tratar, por meios verificados, inaugurados ao nivel dos conjuntos finitos, um conjunto quendoo é Fiquemos, por agora, no nivel da psicandlise terminada, e di- gamos que, no final, ndo iremos dizer que o psicanalisando é todo sujeito, ja que, precisamente, ele nao é todo por ser dividido. En- tretanto, nao poderemos dizer, por esse motivo, que ele € dois, mas sim que é somente sujeito e que este sujeito dividido “nao é sem”? (segundo a formula com o uso da qual acostumei os que me ouviam, na época em que fazia meu seminério sobre “A Angtis- tia”), que ele “nao é sem” esse objeto enfim rejeitado ao lugar pre- parado pela presenca do psicanalista, para que ele se situe nesta relacao de causa de sua divisio de sujeito. Por outro lado, quanto a0 analista, nés também nao diremos que ele é todo objeto, que no término, ele é apenas esse objeto rejeitado, e é precisamente af que jaz nfo sei que mistério que, em suma, contem (o que conhecem bem todos os que praticam a psicandlise) o que se estabelece no nivel da relagao humana, como se costuma dizer, ne final, a partir do final, entre aquele que seguiu o caminho da psicandlise e aque- Te que nela se fez “seu guia”. A questao de saber como alguém pode ser reconhecido de outra forma senao nos prdprios caminhos dos quais ele est garan- tido, quer dizer, reconhecido de outra forma que nio por si mes- mo a ser qualificado para esta operacao, é uma questo, afinal de contas, que nao é especifiea da psicandlise. Ela se resolve habitualmente, como na psicandlise, pela elei- do ou por uma certa forma de escolha. A partir deste ponto de vista que tentamos estabelecer, eleigao ou escolha, tudo se resume aser quase da mesma ordem, do momento em que supde sempre intacto, néo questionado, o sujeito suposto saber. Nas formas de eleicdes que os aristocratas declaram ser as mais esttipidas, ou seja, 148 as eleigdes democraticas, nao vejo porque seriam mais estipidas que as outras. Simplesmente isso supde que a base, o elemento, 0 votante, sabe um bocado! Nao pode se apoiar em outra coisa. Ba sou nivel que se coloca 0 sujeito suposto saber. Enquanto ele est \a, as coisas so sempre muito simples, sobretudo a partir do mo- mento em que ele é colocado em questo, pois se é colocado em questao, torna-se muito menos importante saber onde colocemos aquele que, no entanto, mantemos em um certo ntimero de opera- ces . E nao se vé, com efeito, porque nao colocé-lo ao nivel de todo o mundo. E por isso que a Igreja é, hd muito tempo, a instituigio mais democritica, ou seja, onde tudo se passa por eleicdes. E que ela, ela tem o Espirito Santo. O Espirito Santo 6 uma nocio infinita- mente menos besta que a do sujeito suposto saber. Neste nivel, s6 hé uma diferenga a fazer valer em favor do sujeito suposto saber: & que 0 sujeito suposto saber, de modo geral, nao se percebe que ele est sempre 14, de forma que nunca se falha em manté-lo. Ea partir do momento em que ele pode ser questionado, que podemos levantar categorias como a que, para cutucar voces, aca~ bo de suscitar com o termo “besteira”, que seguramente nao pode ser, de forma alguma, suliciente. Nao é porque alguém se obstina que é besta. As vezes, é porque ndio se sabe o que fazer. Quanto ao Espirito Santo, farei notar que é uma funco muito mais elabora- da, da qual nao farei a teoria, mas para a qual é, de todo o modo, {4cil, para qualquer um que tenha refletido um pouco sobre a fun- a0 da Trindade crista, encontrar equivalentes totalmente precisos quanto as fungdes que a psicandlise permite elaborar, especialmente as que valorizei em um de meus artigos, aquele sobre as questaes preliminares a todo o tratamento possfvel da psicose. sab o termo "9", que nao esta precisamente em uma posi¢ao muito sustenta- vel, a nao ser nas categorias da psicose. Deixemos apontar, de algum modo, esse desvio que tem seu interesse, e voltemos & transferéncia, mais uma vez. Mas € hoje muito necessério para articular, j& que a intraduzi como constitu- indo © ato psicanalitico, como ele é essencial 4 configuracgio da transferéncia, como tal. Claro, se nao se introduz o sujeito suposto saber, a transferéncia se mantém em toda a sua opacidade. Mas, a or partir do momento em que a nogao de sujeito suposto saber, que € fundamental, ea fratura que ele sofre na psicandllise s4o postas em evidéncia, a transferéncia se esclarece singularmente, o que segu- ramente tem todo o valor de nos fazer olhar para trés e nos dar conta, por exemplo, de como, cada vez que se trata de transferén- cia, 0s autores (os bons, as honestos) evocardo que a tomada de distancia que permitiu a instauracao da transferéncia em nossa teoria, nao remonta anada menos do que a esse momento preciso no qual, como vocés sabem, ao sair de uma sessdo triunfante de hipnose, uma paciente, nos diz Freud, lanca seus bracos em torno de seu pescogo. Af esté Bom, 0 que ¢ isso? Claro, todos se detém, se maravilham de que Freud nao tenha se comovido com isto. “Ela me toma por um outro", traduz-se, além disso Freud diz: "nao sou unwiderstehlich, irresistivel a esse ponto”, ha qualquer coisa além. Maravilhamo- nos como se houvesse af, quero dizer, nesse nivel, algo do que se maravilhar. Talvez nao seja tanto que Freud, como ele exprime em seu humor, nao tenha acreditado ser o objeto em questo. No é que se acredite ou nao ser o objeto. B que quando se trata disso, a saber, do amor, acreditamos estar implicados. Em outros texmos, surge esse tipo de complacéncia que, por pouco que seja, envisca voeés nesse melagot que se chama 0 amor. Pois enfim, no momento, faz-se, dessa forma, toda a espécie de operacies, de arabescos em torno do que é preciso pensar da transferéncia. Vemos alguns darem prova de coragem, dizendo: “mas, como entao! a transferéncia, nao rejeitemos tudo para o lado doanelisado!”, como se diz, “nés também temos a ver com isso”. E como! Temos a ver com isso ea situagiio analitica esta af, em gran- de parte. A partir dai, outro excesso: é a situagiio analitica que de- termina tudo. Fora da situacdo analitica nao ha transferéncia. Enfim, vocés conhecem toda a variedade, a gama, a ronda que se faz, onde cada um rivaliza para mostrar um pouco mais de liberdade de es- pfrito que os outros. Hé coisas muito estranhas, também. Ha uma pessoa que, assim, por ocasido de um tiltimo congresso, onde se tratava de questées levantadas durante a reuniao de um semind- rio fechado aqui, perguntava a que momento do ato psicanalitico, eu iria ligar tudo isso a passagem ao ato, ao acting out. 150 Certamente que o farei. Na verdade, a pessoa que articulou melhor esta questo 6 alguém que, como excecio, se lembra do que jé articulei sobre disso, em um certo 23 de janeiro de 1963. O autor, do qual comecei hé pouco a introduzir a personalidade, é um atitor que, a propésito do acting out - ninguém pediu, para falar a verdade, que o fizesse- deu, sobre esse tema, uma pequena aula sobre a transferéncia, Ble elaborou esta aula scbre a transfe- réncia, segundo esse pequeno artigo que, agora, se propaga cada vezmais. Afirma coisas sobre a transferéncia que nem se concebe- riam se 0 discurso de Lacan nao existisse. Por outro lado, ele 6 empregado para demonstrar, por exemplo, que Lacan, em tal for- mulagio de sua exposicao “Funcao e Campo da Palavra e da Lin guagem”, por exemplo, adiantou que o inconsciente é esse algo que falta ao discursa, que é preciso de algum modo suprir, com- pletar na histéria, para que a histéria se restabelega em sua completude, para que, etc... se suspenda o sintoma; ¢ naturalmen- te 0 outro debocha “seria lindo, se fosse assim. Todos sabem, nio é porque a histérica se lembra que tudo se resolve. Alias, depende do caso, mas que importa... Prossegue mostrando a que ponto é mais complexo isso de que se trata no discurso analitico, e que é preciso distinguir 0 que nao € apenas (pensa armar-se contra mim) estrutura do enunciado, mas que tam- bém é preciso saber para o que serve saber se 0 que se diz ¢ oundo averdade; e que as vezes mentir 6, para falar propriamente, a ma- neira pela qual o sujeito anuncia a verdade de seu desejo. Porque, justamente, ndo ha outro viés para anuncié-lo, sendo a mentira. # algo que, como véem, consiste precisamente em 36 dizer coisas que afirmei da maneira a mais expressa. Se citei ha pouco esse semindrio de 23 de janeiro de 1963, é porque foi exatamente o que eu disse da funcio de um certo tipo de enunciado do inconsci- ente, em que a enunciacao do desejo que esté implicada é muito propriamente a da mentira, a saber, o ponto que o proprio Freud. apentou no caso da homossexualidade feminina. E assim, precisa- mente, que o desejo se exprime ese situa e 0 que, a esse propésito, 6 proposto como sendo 0 registro onde a interpretagao analitica opera, em sua originalidade, éjustamente o que faz.com que 0 que 6 revelado pela interpretagao analitica néo possa, de forma algu- ast ma, ser estabelecido em uma espécie de anterioridade de que se pudesse estar seguro. £, a saber, o que faz da transferéncia algo de bem diferente de um objeto ja 14, de algum modo inscrito em tudo © que iré produzir, pura e simples repeticdo de algo que, desde antes, jé estaria apenas esperando para se exprimir ai, em lugar de ser produzido por seu efeito retroativo. Em suma, tudo 0 que eu disse ha trés anos, e é claro que néo se deve acreditar que isso nao faca seu pequeno caminho, assim por infiltragéo, para, em um segundo tempo, lembrando do que eu disse dez anos antes, fazer dessa segunda parte uma objecao primeira. Em suma, eventualmente se armam, confortavelmente, contra 0 que enuncio, utilizando o que pude enunciar apés um certo escalonamento edificado e percorrido do que construo para permitir que vocés se orientem na experiéncia analitica, E usam como objecdo o que eu disse em tal data ulterior, como se o tives- sem inventado sozinhos, contra 0 que eu disse inicialmente, e que claro, pode ser entendido como parcial, sobretudo se o isolamos de seu contexto. Em suma, com relacao ao efeito de certas inter- pretagées puramente complementares de tal parte da histéria, no caso dahistérica, ele foi efetivamente caracterizado por mim como sendo muito limitado e nao correspondendo absolutamente, des- de essa mesma época em que falei disso, a essa nogéio muito objetivante da historia, que consistiria em tomar a fungio da histé- ria de modo diferente do que como histéria constituida a partir de preocupacées presentes, quer dizer, como qualquer espécie de his- t6ria existente. E coloquei muito precisamente acerca disso, em meu discurso chamado de “Discurso de Roma", com bastante insistén- cia e sem rodeios, que nenhuma espécie de fungao da historia se articula, se compreende, sem a historia da histéria, a saber, a partir do que constréi o historiador. 86 faco essa observacio a propésito de um enunciado que se apresenta como uma pobreza, para designar esse algo que, afinal, nao deixa de ter uma certa relactio com 0 que chamava, hd pouco, de estrutura do que ocorre a propésito do passo a ser dado, o que tento franquear aos psicanalistas, a saber, o que resulta do questio- namento do sujeito suposto saber. O que resulta dele, quer dizer 0 modo de exercicio da questo, a formulacao de uma légica que tore algo manejével a partir da revisdo necessaria ao nivel desse preliminar, desse pressuposto, deste pré-estabelecido do sujeito uposto saber, que nao pode mais ser 0 mesmo, pelo menos em certo campo: aquele onde se trata de saber como podemos mane- jar o saber em um ponto preciso do campo, onde se trata nao do saber, mas de algo que, para nés, se chama a verdade. Obter esse tipo de resposta, precisamente onde minha ques- Lio nao pode deixar de ser sentida como a mais ineémoda, porque loda a ordenagao analitica é construfda para mascarar essa ques- lio sobre a fungio a revisar do sujeito suposto saber, esse modo muito preciso de resposta que consiste, de uma forma puramente ficticia para qualquer um que saiba ler, em decompor em dois tem- pos o meu discurso para fazer uma oposigao (além disso, total- mente impossivel de encontrar, na maior parte dos casos) entre ume outro, e que sé resulta da ficgio de que esse auttor teria desco- berto, ele mesmo, a segunda parte, enquanto que eu me teria limi- tadoa primeira, este algo de bastante risivel ndo deixa de ter ligagio (ai também é preciso reconhecer onde as coisas se inserem, em sua realidade) com o que é 0 fundo mesmo da questo. Quando falei de transferéncia para remeté-la a sua simples e muito miserdvel origem, e se pude, a esse propésito, falar téo mal dos termos do amor, nao teré sido porque 0 cerne dessa colocagao em questao que constitui em si a transferéncia, néo é nem que ela seja amor, como alguns dizem, nem que nao seja, como outros afir~ mar&o de bom grado? E porque ela pée, por assim dizer, o amor na berlinda, e precisamente desta maneira risfvel, a que nos permite ver nesse gesto da histérica na saida da captura hipnética, ver do que se trata, naquilo que est bem la no fundo, naquilo que é atin- sido. O que é atingido de chofre ¢ isso pelo qual defino esta coisa, quao mais rica e instrutiva e, na verdade, nova no mundo, que se chama a psicanélise. Ela atinge a meta de imediato, a histérica. Freud, de quem ela chupa a mac@, € 0 objeto “a”. Todos sabem que estd ai o que é necessario a uma histérica, sobretudo ao sair da hipnose. As coisas estio, de alguma forma, se podemos dizer, facilitadas®. Freud, se- guramente esta af o problema que se coloca a seu propésito, como ele pode por em suspenso, desta forma radical, o que é do amor? 153 ‘Talvez. possamos suspeitar, demarcando © que é estritamente da ‘operagao analitica. A questo nao esté af. Colocar o amor em suspenso permitiu- Ihe instaurar, por esse curto circuito original que ele soube esten- der até lhe dar esse lugar desmesurado da operagio analitica, na qual se descobre todo 0 drama humano do desejo. E no final, 0 que? Nao é pouca coisa, toda essa imensa aquisigio, 0 novo campo aberto sobre o que é a subjetivagio. No final o que? Mas 0 mesmo resultado que era alcangado neste curto instante! A saber, de um lado 0, simbolizado por este momento de emergéncia, esse mo- mento fulminante entre dois mundos, por um despertar do sono hipnético, eo “a” subitamente estreitado nos bracos da histérica, Se 0 “a” Ihe convém téo bem, é porque ele ¢ isso que eslé no cora- Gao das vestimentas do amor, o que ai se toma. J4 0 articulei e ilus- trei suficientemente: é em torno desse objeto “a” que se instalam, que se instauram, todos os revestimentos narcisicos nos quais se apéia o amor. Masa histérica, ela sabe bem Ié o que lhe falta, quero dizer, 0 que necessita, o “quero e nao quero” ao mesmo tempo, que pro- vém simultaneamente da especificidade desse objeto e de sua in- sustentavel rudeza, De forma que é divertido, incidentalmente, pensar que fazen- do toda a construgio da psicanilise, Freud, até o fim de sua vida, se perguntou - “o que quer uma mulher?” - sem encontrar a res- posta. Justamente isso, o que ele fez: um psicanalista. Ao nivel da histérica, em todo o caso, ¢ perfeitamente verdadeiro, O que esse psicanalista se torna, no final da anélise, se é verdade que ele se reduz a esse objeto “a”, é o que quer a histérica. Compreende-se porque a histérica se cura de tudo na psicandlise, menos de sua histeria. Claro que isso é apenas uma observagao lateral, vacés es- tariam errados em dar a ela um alcance maior do que esse em que ela, muito simplesmente, se inscreve. Mas 0 que é preciso saber, é 0 que, para esclarecer um certo nuimero dos que escutam esas coisas h4 pouco tempo, eu chega- ria a dizer: nao haverd algo nessa expulsio do objeto “a”, que nos evoca (pois a televisdio mostra) uma tendenciazinha, que se toma- ria de muito bom grado, para encontrar analogias entre isso sobre 154 que operamos e algo que se encontraria aos niveis mais abissais na biologia? Agrada aos bidlogos exprimir em termos de mensagens 05 \ermos cromossémicos. Alguém pode chegar, como ouvi recente- inente (pois quando ha babaquices a dizer, podemos dizer que ndo perde a oportunidade) a esta descoberta: a de que se poderia dizer quea linguagem é estruturada como oinconsciente. Isso daria prazer! Ha pessoas que acreditam que seria preciso ir do conheci- do.ao desconhecido, mas vamos la, hein? Vamos do desconhecido ‘no conhecido! Isso se faz muito, isso se chama ocultismo. E 0 que Proud chama de gosto pelo “mystisch element”. E, muito precisa~ mente, a reflexao que féz para si mesmo quando a histérica atirou os bragos em volta de seu pescoso. Ele fala, muito precisamente neste momento, do mystisch element. ‘Todo 0 sentido do que fez Freud, consiste precisamente em avangar de tal forma, que procede contra o mystisch element, € o partindo dele. Nao esquecamos que se fala disso. E se Freud protesta, pois é exatamente o que faz, contra o protesto que se ele- va em torno deleno dia em que ele diz que um sonho é mentiroso, neste momento, ele repete que se as pessoas esto revoltadas com © pensamento de que o inconsciente pode ser mentiroso, é porque nio ha nada que ele possa fazer, “o que quer que eu tenha dito sobre © sonho, eles continuarao a querer manter ai o mysiisch clement”, a saber, que o inconsciente no pode mentir. ‘Que isso nao nos impeca de tomar uma pequena metéfora. lisse objeto “a” que no final da anélise convém expulsar, que vem a tomar o lugar do analista, ser4 que isso n4o lembra qualquer coisa? Vocés nao ouviram falar disso? A expulséo dos glébulos polares na meiose, dito de outra forma, isto do que se desembara- cam as células sexuais, em sua maturac%o, Seria elegante, em suma, se fosse assim... Gracas ao que, a comparaco prossegue. O que é que se tornaa castracdo? A castracao é justamente isso: é 0 resulta- co, a célula reduzida de alguma forma. A partir disso, a subjetiva- clio esté feita, o que vai lhes permitir ser, como se diz, “Deus os fez macho e fémea”. A castracdo seria verdadeiramente a preparacao para a conjungao de seus gozos. Isso nao comporta qualquer seriedade, mas enfim, A margem da psicandlise, ocasionalmente, alguns sonham com isso, ¢ isso teve peso. Digo que s6 ha um pequeno seniio, é que nés estamos no nivel da subjetivagao desta fungao do homem e da mulher. B ao nivel da subjetivacao, e como objeto “a”, esse objeto a expulsar, que vai se apresentar no real aquele que é chamado a ser o parcei~ ro sexual. E af que jaz a diferenca entre a uniio dos gametas ¢ 0 que é da realizacao subjetiva do homem e da mulher. ‘Naturalmente, pode-se ver a este nivel precipitarem-se todas as loucas* do mundo. Enfim, gracas a Deus, em nosso campo, nfo sio tantas as que vo procurar suas referéncias, com relacao a ale guns pretensos obstaculos da sexualidade feminina, no temor da penetrac&o, que seria apreendida ao nivel da efracao que o esper- matozéide faz na capsula, no envelope do évulo. Voces véem que nao sou eu que, pela primeira vez, agito ante vocés os fantasmas pretensamente biolégicos, mas para nos distinguir disso, para que se marque bem, a esse propésito, as diferengas. Quando digo que é no objeto “a” que sera em seguida reen- contrado, sempre, necessariamente, o parceiro sexual, vemos sur- gir uma verdade inscrita num trecho do “Génesis”, 0 fato de que 0 parceiro, Deus sabe que isso nao o compromete em nada, figurava no mito como sendo a costela de Addo, logo, 0 “a”. E por isso que as coisas vao tao mal, desde aquela época, em relacao a esta perfeicao que se imaginaria como sendo a conjungao dos dois gozos. Na verdade, estou seguro, é deste primeiro sim- ples reconhecimento que resulta a necessidade da mediac&o, do intermedidrio dos desfiladeiros constituidos pela fantasia, a saber, essa infinita complexidade, essa riqueza do desejo, com todas as suas inclinagSes, todas essas regides, todo esse mapa que se pode desenhar, de todos esses efeitos ao nivel dessas propensdes que chamamos neuréticas, psicdticas ou perversas, e que se inserem precisamente nesta disténcia para sempre estabelecida entre os dois g0z0s, Eassim que é estranho que, na Igreja, onde afinal nao sao tao. babacas, eles devem se dar conta de que Freud diz ai a mesma coisa que o que se presume que eles saibam ser a verdade, o que deveria forgé-los, justamente, a ensiné-la, Hé algo que manca, do 156 lado do sexo. Sem isso para que serviria essa rede técnica embrute- cedora? Nada disto. Suas preferéncias, neste ponto, vio mais para jung, cuja posigao, esta claro que é exatamente a oposta, a saber, que nés entramos na esfera da gnose, ou seja, do obrigat6rio com- plementar do yin e do yang, e de todos os signos que vocés veem ar, um em torno do outro, como se, desde sempre, eles estives- vem Id para se conjugar, animus e anima, a esséncia completa do macho e da fémea, Podem acreditar em mim, os eclesiésticos pre- ferem isso! Levanto a questdo de saber se a razdo nao ¢ justamente por- «jue se estivéssemos com a verdade, como eles, onde iria parar seu magistério? Nao me entrego a excessos vaos de linguagem sim- plesmente pelo prazer de passear de forma incémoda no campo do que se chama o aggiornamento, porque seguramente sao ob- nervages que, no panto onde estamos, posso fazer até no Santo Olicio. Fui, nao faz muito tempo, e o que eu Ihes disse despertou inuito interesse. Nao levei a questao até o ponto de lhes dizer: “Seré que é porque éa verdade, que isso nao agrada a vocés? A verdade, «jue vocés sabem ser a verdade?” Dei tempo para eles se acostu- marem., Se falo somente aqui, porque ser? E para dizer que o que lalvez seja tao constrangedor, ao nivel do poder em certos lugares onde se é um pouco mais velho do que nés, pode ser algo da mes- ma ordem do que pode ocorrer nesta espécie de principado bizar- 1 de Ménaco da Verdade que se chama Associagio Psicanalitica Internacional. Pode haver af efeitos da mesma ordem. Saber exata- mente o que se faz nem sempre é comodo. Ainda mais que no final das contas, nés, podemos colocar os pingos nos i para um certo ntimero de coisas, a saber, que por mais longe que a aventura psi- canalitica tenha permitido articular as coisas, muito precisamente em todo o campo do inconsciente do desejo humano, talvez seja fornecer algo que dé sua recrudescéncia ao que comecava a pro- jredir de uma certa tendéncia de cretinizagao tal como a que se aicompanhou da idéia de progresso obrigatério, a semente da cién- cia. Essa recrudescéncia da verdade, seria necessério saber onde se situa, se € que a experiéncia analitica se situa por instaurar esses desfiladeiros, essa formidavel producao que se instala - onde? - 157 em uma hiancia que nao é absolutamente constituida pela propria castracao, da qual a castragio € o signo, o temperamento o mais justo,a solugao a mais elegante. Mas nao é menos verdade que nds sabemos muito bem que 0 g0z0, ele fica de fora. Nao sabemos nem uma palavra a mais com relac&o ao que é o gozo feminino. Entre= tanto,ndo é uma questao que tenha surgido hé pouco. Jé havia um certo Jipiter, por exemplo, esse sujeito suposto saber, e... bem, dis soele nao sabia. Ele perguntoua Tirésias. Coisa formidavel, Tirésias sabia um pouco mais! Ele s6 fez um erro, foi o de contar. Como vocés sabem, ele perdeu a vista. ‘Vocés véem que essas coisas, na verdade, estao inscritas ha muito tempo nas margens de uma certa tradicéo humana. Enfim, talvez conviesse que nos déssemos conta para bem compreender; além disso é 0 que torna legitima nossa intrusdo da légica no que esté em pauta, no ato psicanalitico. E também o que nosso balao” deve englobar. Chamé-lo de balao seguramente nao é redwzi-lo a nada, se é ai que se situa tudo o que se passa de sensato, de inteli- givel e também mesmo de insensato. Mas enfim, conviria saber onde se situam as coisas, por exemplo, quanto ao que constitui 0 g0zo feminino. Este, esta bem claro que é deixado completamente fora do campo. Por que € que falo inicialmente do gozo feminino? Ora, talvez para precisar jé algo do sujeito suposto saber em questao. Alguns (6 preciso evitar 0 engano) poderiam crer, por tudo o que se pro- duz de confusao, que nés estariamos em algum lugar do lado do sujeito suposto saber... como se chega ao gozo! Apelo a todos os psicanalistas, aqueles que, apesar de tudo, sabem do que se fala e © que se pode visar, atingir. Desbasta-se o terreno diante da porta, mas quanto a porta, creio que somos muito pouco competentes. Apés uma boa andlise, digamos que uma mulher pode tomar pé. Entretanto, se ha uma pequena vantagem ganha, é precisamente na medida e para o caso em que, ela estava, justo antes, tomada pelo -9* de ha pouco. Pois, no caso, claro, ela é frigida. Nao hé apenas isso. Freud observou que, quando se trata da libido tal como a definiu, quer dizer, no campo da psicanilise, a libido desejo, s6 haveria masculina, ele diz. Isso deveria nos colo- cara pulga atrés da orelha e nos mostrar precisamente, se bem que 158 | 0 acentuei, que 0 jogo, 0 que esté em questdo é a relagdo de pubjetivago concernente & coisa do sexo, mas enquanto essa sub- Jetivacao redunda na relagéo logicamente definida por $oa, caso om que todo o mundo é igual. ‘Quantoa libido, pode-se qualificé-la como se quer, de mascu- Jina ou de feminina. E Gbvio que o que faz pensar que ela seja pre~ {erencialmente masculina é que, do lado do gozo, no que se refere 0 homem, é recuar ainda muito mais, porque 0 gozo feminino, nos 0 temos ainda lé ocasionalmente, ao alcance do que vocés sa- bem. Mas quanto ao gozo masculino, pelo menos no que diz res- peito a experiéncia analitica, coisa estranha, jamais ninguém parece ter percebido que ele se reduz precisamente ao mito de Edipo. Apenas vejam, apesar do tempo em que me canso de dizer que o inconsciente é estruturado como uma linguagem, ninguém ainda percebeu que o mito original, o de Totem e Tabu, em suma, o fidipo, talvez seja um drama original, sé que é um drama afésico. Pai goza de todas as mulheres, tal é a esséncia do mito do Edipo, quero dizer, sob a pena de Freud. Hé alguns que nao gostam dis- 0, matam-no ou o comem. Isso nao tem nada a ver com nenhum drama. Se os psicanalistas fossem mais sérios, em vez de passar seu tempo bisbilhotando em Agamenon e no Edipo, para tirar dis- so ndo sei o que, sempre a mesma coisa, eles poderiam comecar por observar que o que ha para explicar é, justamente, que isso (enha ocorrido em uma tragédia. Mas hd uma coisa muito mais importante a explicar ainda... Por que os psicanalistas jamais for- mularam expressamente que o Edipo é apenas um mito, gragas ao qual eles localizam os limites de sua operagao? £ tao importante dizé-lo! E isso que permite colocar no seu lugar o que esta, no tra- lamento psicanalitico, no interior desse quadro mitico destinado a conter em uma exterioridade, no interior do qual jé se poder colo- cara divisao realizada da qual parti. A saber, que no final do ato psicanalitico, ha sobre a cena, essa cena que é estruturante, mas somente a este nivel, o “a” neste ponto extremo ondesabemos que cle esté, no fim do destino do heréi da tragédia. Ele ¢ apenas isso. tudo 0 que é da ordem do sujeito esté no nivel desse algo que tom esse carater dividido que ha entre o espectador e 0 coro. 159 Nao é uma razio, mas esté af o que se deve examinar detida- mente, porque esse Edipo veio um dia & a cena para que nao se veja que seu papel econémico na psicandlise esta em outro lugar, a saber, nessa colocagao em suspenso dos pélos inimigos do goz0, do gozo masculino e do gozo da mulher. Seguramente, nessa estranha divisdo que jé escapa, constata- mos 0 que, a meu ver, j4 pde verdadeiramente em destaque a dife- renga da fungao do mito do Edipo, quer dizer, que o pai da horda primordial nao tem qualquer direito a ser chamado Edipo, como vocés notam, eno uso figurado ao nivel da cena em questao, quan= do Freud o reconhece, o transpée, o faz jogar na cena, quer se trate da cena Sofocleana ou da de Shakespeare, af est o que nos permi- te distinguir o que realmente se produz na psicanilise, do que nao se produz. Para completar, e antes de prosseguir, eu acrescentaria que vocés notarao que hé, no texto de Freud, um terceiro termo, o de “Moisés e 0 Monotefsmo”, e que Freud nao hesita, tanto no tercei- ro caso quanto nos dois primeiros, que nao se parecem em nada, em pretender fazer funcionar, sempre do mesmo modo, 0 Pai e seu assassinato. Seré que isso nao deveria comecar a sugerir algoa vocés? Ao introduzir uma questo semelhante, especialmente so- bre essa tripartigao to evidente da funcao resumida como “Edipiana’’ na teoria freudiana, nada ainda foi feito, nem mesmoo menor inicio de elaboracao no nivel verdadeiro do que se trata, Particularmente, néo por mim. Vocés sabem porque. £ 0 que eu tinha preparado pela andlise em meu semindrio sobre o nome do pai’, tudo tendo demonstrado, naquele momen- to, que nao foi por acaso, se aconteceu assim. Se eu comecasse a entrar nesse campo..., digamos que eles me pareceram um pouco frdgeis, falo daqueles a quem isso interessa, e que foram bem ul- trapassados por seu campo psicanalitico, que eis definido como algo que nao pode, absolutamente, pretender retomar a cena,nem a tragédia, nem o circuito edipiano. (O que fazemos na andlise? Percebemos as falhas, as diferen- ¢as com relagao a algo que ndo conhecemos em nada, um mito, algo que nos permite colocar em ordem nossas observages. Nao diremos que, na psicandlise, estamos fazendo algo como amadu- 160 1ecer o pretenso pré-genital. Pelo contrario, pois é pela regressio «jue avancamos nesses campos da prematuraciio. £ como salta aos olhos de qualquer um que nao esteja absolutamente enrabichado por coisas as quais é bem preciso que cheguemos, pelas mulheres, que seguramente so o que ha demais eficaz e, em certos casos, de menos besta, na psicanélise.Pelas mulheres, por Melanie Klein. O que fazemos? Damo-nos conta de que é precisamente nos niveis pré-genitais que temos que reconhecer a funcao do Edipo. E nisto que consiste essencialmente a psicanélise. Como conseqiiéncia, néo ha qualquer experiéncia edipiana na psicanélise. O Edipo é a moldura na qual podemos regrar jogo. Digo “o jogo”, intencionalmente. Trata-se de saber que jogo nos jogamos, é para isso que eu tento introduzir aqui um pouco de logica. Nao € costume comecar a jogar poquer, e dizer de repent perdao, faz cinco minutos que eu estava jogando biriba”... Isso nao se faz, sobretudo em matemitica. E por isso que tento tomar nela algumas referéncias. ‘Nao vou reter vocés por mais tempo, hoje. Na medida em que, nesse lugar, nada nos apressa, nao vejo porque faria o corte aqui ow ali; farei segundo o tempo. ‘Vou apresentar elementos importantes em termos de légica. Por que? Porque em toda a ciéncia - dou a vocés essa nova defini- cio a légica se define como esse algo que tem propriamente por fim reabsorver o problema do sujeito suposto saber. Somente nela, pelomenos na légica moderna da qual partiremos da prxima vez, quando trataremos precisamente de levantar a questo ldgica, a saber, dessas figuras literais gracas as quais podemos progredir nesses problemas, figurando em termos literais, em termos de Al- yebra légica, como se coloca a questo de saber o que quer dizer “existe um psicanalista”, em termos de quantificacao. Poderemos fazer um progresso onde até agora sé se soube fazer algo de tao obscuro, de tao absurdo como ratificagio de uma «jualificagao, quanto tudo o que jamais se fez em outros lugares «jue evoquei ha pouco, e que justamente aqui, por seguir uma ex- periéncia tao particularmente grave com relacao ao sujeito supos- lo saber, toma um aspecto, um peso, uma forma, um valor de reincidéncia que precipita tao perigosamente as conseqiiéncias; con- 161 seqiiéncias que poderao figurar de uma forma implacivel e, de algum modo, tangivel, bastando para isso apoid-las nesses tragos, unidades, figuras, proposigdes da logica moderna. Falo desta légi- ca que introduziu algo que jé anunciei, mencionando a palavra, 08 quantificadores Bem, sc isto nos ajuda, saibam que é precisamente em fung3o do que jd avancei hé pouco, como uma definigao que certamente jamais foi dada por nenhum légico, por ser légico, jé que esta di- mensao sempre foi reabsorvida, escamoteada por eles. Eles nao se dio conta (cada um tem seu ponto cego) que a fungiio da légica é esta: que seja devidamente reabsorvida, escamoteada, a questo do sujeito suposio saber. Em Logica, isso nao se suscita. Nao ha qualquer espécie de diivida de que, antes do nascimento da logica moderna, cerlamente nao havia ninguém que tivesse a menor idéia disso, no interior dessa logica. Nao é hoje que demonstrarei isso para vocés, mas seria facil fazé-lo, e, em todo o caso, eu proponho 6 traco ea indicagio da questiio. [sso poderia ser objeto, por parte de um logico, de um trabalho mais elegante do que eu saberia fa- zer pessoalmente. O que funda e legitima a existéncia da légica 6, muilo precisamente, esse ponto infimo, quando se define o campo no qual o sujeito suposto saber nao ¢ nada. £ precisamente porque af ele nao é nada, cem outro lugar ele & faldicia, que estamos entre os dois, buscando apoio, de um lado, na légica, de outro, em nossa experiéncia, Poderemos ao menos introduzir a questio; nao € certo (0 pior, como diz, Claudel, nem sempre é certo) cue ela continue para sempre sem efeito sobre os psicanalistas. Notas do Tradutor L je ne dirais pas officielle mais officiale- "officielle", 60 queemana de uma autoridade reconhecida, “officiale”, um juiz eclesiéstico, nomeado pelo bispo. 2. fini -significa terminado, ou, 0 que é 0 caso quando se refere aos ‘conjuntos, finito ou limitado, 162 9, pas sans - nao ha sem metasse - melago ou miséria deblayées - particfpio passado de detlayer (feminino e plural), retirar entulho de um lugar cu camino, ou, no sentido figurado, se diz deblayer le terrain, superar os primeiros absticulos de alguma tarefa. {folles -Joucas ou, no popular, homossexuais. bulfe~ bolha ou, nas histérias em quadrinhos, 0 balio que sai da boca do personagem e que indica sua fala. O "9" foi colocado pelo tradutor. No piraia original hé um pequeno espaco em branco indicando algo que falta. Oseminério “Les Noms du Pere” constou de apenas uma sessao. No dia 19 de novembro de 1963, Lacan foi exctuido da lista dos didatas da SFP, e no dia seguinte, na 1° aula do semindrio em ’inte-Anne, anuncia seu fim, $6 recomegard os seminérios em iro de 1964, na ENS, agora com o tema “Os Quatro Conceltos Fundamentais da Psicandlise”. manille - jogo de cartas que se joga a quatro, dois contra dois. O tradutor,naoconhecendo ojogo, escolheu tracuzir porbiriba, um jogo conhecido no Brasil, e que segue esse mesmo esquema. 163 Seminario 28 de fevereiro de 1968. Alguém que teve a amabilidade de vir aqui para 0 semindtio fechado do fim de janeiro, jé avisadona tiltima vez pelos cuidados do Sr. Melman, foi convidado por ele, e do modo mais legitimo, jé que Jacques Nassif, de quem se trata, fez para o Boletim da Escola Freudiana o resumo de meu seminario do ano passado sobre a logica da fantasia. Ele concordou em responder a esse apelo, que consistiu em perguntar-lhe se nao teria algo a dizer, interrogar ow apresentar, que desse uma idéia do modo pelo qual entendeo ponto onde chegamos, esse ano. Sei de sua total boa vontade em dar esta resposta, quer dizer, preparar algo que servird de introdugao ao que vou dizer hoje. Posso adiantar em que sentido isso me traz satisfacdo. Pri- meiro, pelo puro e simples fato de que ele tenha preparado este tabalho, e que o tenha preparado de maneira competente, estan- do perfeitamente ao par do que eu disse no ano pasado; e depois, que o que ele tenha extraido desse trabalho, quero dizer, valariza- clo, isolado quanto ao contetido do que eu disse no ano passado, \enha sido, falando propriamente, a trama légica e sobretudo sua importncia, seu acento, sua significacao no que talvez esteja defi- nido, indicado como a orientagao do meu discurso; enfim, seu ob- jetivo, sua finalidade, para dizer a palavra. 165 Nesta elaboracao, onde a questo que levanto sobre o ato psi- canalitico se apresenta como algo que implica profundamente cada uum dos que me ouvem aqui, na qualidade de analistas, estando precisamente nesse ponto, chegamos exatamente ao ponto em que colocarei uma énfase ainda mais forte que a que foi posta até aqui. Justamente, nao é questao de dizer simplesmente que hé uma l gica interna a qualquer coisa, algo que se poderia entender, de uma certa maneira, como “em tudo hé uma légica”. Ninguém sabe bem o que isto quer dizer, estariamos simplesmente procurando a logica da coisa, quer dizer, 0 termo “l6gica” seria utilizado de um modo, de alguma forma, metaférico; nao, nao é absolutamente a isso que chegaremos. Na ultima vez, no final de meu discurso, reconhecerdo essa indicagao numa afirmagao certamente audacio- sa, e ndo estou esperando antecipadamente que ela encontre eco, ressonancia. Espero pelo menos simpatia no ouvido de um ou ou- tro dos que posso ter presentes em meu audit6rio, na qualidade de logicos. Enfim, o que indiquei € que devia haver (e claro, espe ro me mostrar em condigées de trazer algum argumento nesse sentido) alguma relacdo, até alguma possibilidade de definir como tal a l6gica, a légica no sentido preciso do termo, a saber, essa ciéncia que se elaborou, precisou e definiu. Quando digo “defi- nits” nao quero dizer que ela tenha se definido no primeiro passo, no primeiro golpe; digamos pelo menos que talvez seja uma pro- priedade suia 56 poder, a rigor, se estabelecer a partir de uma defi- nigao ja muito articulada. E exatamente por isso, com efeito, que 86 se comeca a distingui-la, falando propriamente, com Aristéte- les e que se desde enti jé se tem o sentimento de que ela apresen- ta de safda uma espécie de perfeicao, isso, entretanto, nao excluti que tenha havido defasagens e mesmo desengates muito sérios que, de algum modo, nos permitirao aprofundar o que esta em questio. Afirmei outro dia que talvez houvesse uma definicao quenin- guém jamais havia imaginado até o presente, e que tentaremos formular de um modo inteiramente preciso, que pode articular-se em torno disto: que 0 que, pela légica, se experimenta (precisa- mente este “se” também merece ser guardado e assinalado aqui com um paréntese, como ponto a elucidar a seguir) é algo - de que ordem? - da ordem da mestria ou da liberagao (algumas vezes é a 166 inesma coisa) precisamente do que aqui, como analistas, aponta- inos em nossa prética como sujeito suposto saber. Um campo da cidncia que teria precisamente por fim - e mesmo nao seria demais dizer “por objeto” jé quea palavra “objeto” assume aqui toda asua mbigiiidade - como interno & prépria operagao, digamos logo, excluir algo que entretanto é nao apenas articuldvel mas articula~ Jo, excluir 0 sujeito suposto saber como tal. Defini-lo assim é uma idéia que evidentemente s6 pode ocor~ sera partir do ponto em que estamos, pelo menos nés estamos, j& 08 habituei o suficiente a colocar a questio desta forma, a saber, a0 adverti-los de que na psicanilise, este é verdadeiramente o tinico ponto vivo, otinico né, a tinica dificuldade, o ponto que, 20 mesmo lempo, distingue a psicandlise e a coloca profundamente em ques- tao como ciéncia, e por outro lado, é justamente algo que jamais {0i, falando propriamente, criticado, enfrentado como tal, a saber, que aquilo que o saber constr6i, isso nao se dé assim por si s6, al- juuém jé o sabia. Coisa curiosa, a questo parece supérflua, em qualquer outra ‘rea da ciéncia. Est bem claro que isso tema ver coma forma como essa ciéncia, ela mesma, se originou. Verio no que diré em instan- les 0 Sr. Nassif, que ele localiza de forma precisa 0 ponto em que, com efeito, se pode dizer que foi como a ciéncia se originou. $6 quea questdo propria da psicandlise, é que para a psican4- lise, precisamente, nao se institui assim a questao que a constitui, ou pelo menos em torno da qual se institui esse ponto obscuro que nds tentamos esse ano colocar sob uma certa iluminagio, 0 ato psi- canalitico. Em outros termos, nao é possivel fazer 0 menor avanco, 0 menor progresso quanto a este ato, ele mesmo, pois se trata de ato, © 6 grave que nio se pense sobre o ato nesse discurso que € um discurso que se institui no interior do ato e, se podemos dizer, esse discurso deve se ordenar de tal forma que nao deixe margem a qualquer diivida de que é desse modo que ele se articula, endo de outro, Esté exatamente af o que hé de mais dificil e de mais escabro- so, € 0 que nao permite de forma alguma acolhé-lo da mesma for- ma com que sao acolhidos em geral os discursos dos filésofos, que sio ouvidos de uma forma bem conhecida e que é a seguinte: 0 167 que é que se pode fazer como musica em tomo, j4 que afinal, no dia do exame, é preciso colocar os filésofos onde estao, quer dizer, nos bancos da escola, ¢ tudo o que se pede a vocés é a miisica em tomno do discurso do professor... Mas nao sou um professor justamente porque coloco em ques- t40 0 sujeito suposto saber. F justamente o que o professor jamais questiona porque, enquanto professor, ele é essencialmente set representante. Nao estou falando dos cientistas, estou falando do cientista a partir do momento em que ele comeca a ser professor. Meu discurso analitico, além do mais, jamais cessou de estat nessa posicao que constitui justamente sua precariedade, seu peri- g0, também toda a seqiiéncia de suas conseqiiéncias. Lembro do verdadeiro horror que produzi em meu caro amigo Maurice Merleau Ponty, quando Ihe expliquei que eu estava na posicao de dizer certas coisas- que agora se tornaram muisica, claro, mas que na época eu ja as dizia, de alguma forma, sempre nessa vertente; nfo era porque ainda nao tinha colocado a questiio como coloco agora, que elas nao estavam jé instituidas realmente desta forma- © que cu dizia sobre a matéria analitica era que justamente por passar por esta clivagem, essa fenda, ela sempre foi de natureza a dar a esse discurso esse cardter to insatisfalério, ja que nele as coisas nao estio bem arrunadas como na construgéo positivist, com scus estigios, e sua escalada em ponla, o que evidentemente é bem repousante e responde a uma certa classificagao das ciéncias que é a que continua domnante nos espfritos dos que entram no que for, na medicina, na psicologia e outros empregos, mas que evidentemente nao é susientivel a partir do momento em que es- tamos na pratica psicanalitica. Entdo, como esse tipo de discursn seguramente sempre en- gendrou nao sei que mal estar que comporta 0 fato de que ele nao seja um discurso de professor, isto acarretava na margem esse lipo de zumzumzum, murmtirios, comentarios que desembocavam em formulas t4o ingénuas quanto essa, isso sendo tanto mais desconcertante quanto saiam da boca de pessoas que deviam ser as menos ingénuas. Que se obtenha do célebre pilar de comissao de redagao, que deveria, af nal, saber um pouco sobre o que se diz € 0 que ndo se diz, este grito de crianca que reproduzi em algum 168 lugar, a saber, “por que & que ele nao diz o verdadeiro sobre 0 verdadeira?”, isso é evidentemente bastante comico e dé uma cer- a idéia do alcance, por exemplo, das diversas reagGes experimen- ladas, atormentadas, até de panico, ou pelo contrario, irdnicas, que cu recolhia - é nestes termos que eu falava para Merleau-Ponty - desde a tarde do dia em que falei. La eu tenho o privilégio de ter ¢ setor, essa amostragem de meu auditério, que sto pessoas que {requentam meu divan, para me comunicar o primeiro cheque desse discurso, Ohorror, como disse, que se manifestou de imediato em meu interlocutor Merleau-Ponty na ocesido, por sisé é verdadeiramen- le significativo da diferenca que hé entre minha posigio nesse dis- curso ea do professor. Ela se deve justamente, toda ela, & colocagao ‘cm questo do sujeito suposto saber, pois tudo esta af. Quero dizer que, mesmo tomando posigdes as mais radicais, as mais idealistas, 1s mais fenomenologizantes, nao deixa de haver algo que nao é «juestionado. Mesmo se vocés vio além da conseiéneia tética, como ve diz, colocando-se na consciéneia nao tética, tomando um distanciamento com relagao a realidade que tem oar de ser algo de inteiramente subversivo, em suma, mesmo se vocés dao 0 passo existencialista, hd uma coisa que nunca colocam em questéo, a sa- ber, se 0 que vocés dizem era verdadeiro antes. Estd jusiamente aia questo para o psicanalista, ¢ 0 mais im- pressionante é que qualquer psicanalista, até mesmo o menos pon- derado, é capaz de perceber. Pelo menos, no discurso a que me referi na tiltima vez, por exempla, ele chega até a dizé-lo, o tal per- sonagem que certamente nao esi na minha esteira, j4 que justa~ mente se cré obrigado a se colocar em oposigao ao que digo, o que 6 verdadeiramente edmico pois n3o poderia nem mesmo comegar «a dizé-lo se nao tivesse tido, anieriormente, acesso a meu discurso. a isto que fiz alusao, falando desse artigo que fez parte de um congresso que ainda nao saiu na Revista Francesa de Psicanélise, onde certamente aparecerd um ¢ia. Agora, apés esta introdugaa, vocés verao que o discurso de Nassif, ao qual acrescentarei o cue for conveniente, vai tratar de reunir 0 que constituiu a esséncia do que articulci no ano passado como légica da fantasia, no momento em que, precisamente, essa 109 presenca da légica em meu discurso daquele ano - ¢ nao essa ela- boragio logica - essa presenca da logica como instancia exemplar, enquanto expressamente feita para se livrar do sujeito suposto sa ber, talvez (6 isso que na seqiiéncia de meu discurso desse ano tentarei demonstrar) nos dé o tragado, a indicagdo de uma de al- gum tipo de trilha, que é a que nos é predestinada. Essa trilha que, de algum modo, essa légica jd nos prefigurava na medida de suas variagées, suas vibracGes, suas palpitacées, ¢ precisamente desde © tempo correlative ao tempo da ciéncia, e nao foi a-toa, em que ela mesma comecou a vibrar, a no poder continuar em seu assen- to aristotélico. Na forma, em suma, como ela nao pode se livrar do sujeito suposto saber, se éassim que devemos interpretar a dificul- dade da colocagao no ponto desta Idgica que se chama légica ma- tematica ou logistica, ha algo de que podemos encontrar o tracado. para a maneira em que se coloca para nds a questo do que consti- tui o ato analitico, pois é precisamente neste ponto, quer dizer, onde o analista deve se situar (nao digo apenas se reconhecer) em ato, 6 af que podemos encontrar auxilio na légica (pelo menos foio que pensei) de uma forma que nos esclarega pelo menos quanto a08 pontos a evitar, para ndo recair em alguma confusio concemente ao que constitui o estatuto do psicanalista. Passo a palavra a voce. Sr. Nassi Inicialmente, peco que me perdoem, ja que vocés sem diivida nao esperavam, e alids eu também no, ter que ouvir um escriba falar, o que evidentemente implica o risco de que balbucie muito. Finalmente, eu mesmo estive bastante apressado, e um escriba apressado corre o risco de se fazer entender menos ainda, se hem que 0 que cu va dizer corra o risco de estar um pouco escrito de- mais. Mas escrito também, de um lado, porque fui levado a repetir coisas que talvez. todos vocés jé tenham ouvido, ¢ que entretanto correm 0 risco de passar por alusivas. Enfim, apesar de mim mes- mo, sou tomado nessa pardfrase do discurso de Lacan, e para co- mecar gostaria entiio de apresentar esses dois exergos que tirei de Edmond Jabes. Ele faz alguns de seus rabinos imagindrios dize- rem estas duas frases, com algumas paginas de intervalo: “Crian- 170 (u, quando escrevi pela primeira vez meu nome, tive consciéncia (le comecar uma Toro”, e varias paginas depois: “Mew nome é uma \jnestto, e minha liberdade em minha inclinagao pelas questdes”. Creio que, se hé um discurso possivel sobre a psicandlise, ele « situa entre esses dois questionamentos do nome. Nao se trata escrever um livro, Nao se trata, simplesmente, de ser uma ques- Creio que, se 6 seminario do ano passado se intitula “Iégica da fantasia’, € porque ele tenta produzir uma nova negac&o que permita entender e situar a formula de Freud “o inconsciente nao conhece a contradigao”. Essa formula, é preciso dizé-lo de uma vez, faz parte de um preconceito relative as relacéies do pensar ao real, que levava Freud » acreditar justamente que o que ele articulava devia ser situado como uma cena aquém de toda a articulacao légica. Ora, a l6gica A qual Freud se refere, para dizer que 0 pensa- mento nao aplica suas leis, funda-se em um esquema de adapta- iio & realidade. E por isso que é necessério abalar esse termo “contradigao”, e 60 que levou Lacan a esta outra fSrnuula: “Nao hd ato sexual”, 0 que necessita que uma nova negagao seja produzi da, seja confrontada com a repetigao, para nos fornecer um concei- to do ato. Minha primeira parte poderia intitular-se justamente: O tema da negagao. Para poder isolar as diferentes negagSes que o termo “contra- digo” recobre - “o inconsciente néo conhece a contradigio” - é preciso, inicialmente, separar esses dominios que de fato se superpdem, mas que apenas a légica formal permite distinguir, ou seja, a gramatica ea logica. ‘A negacio, no sentido mais corrente, 6 aquela que funciona nonivel da gramatica, Ela é solidéria A afirmacio “hé um universo do discurso”, ¢ serve fustamente para excluir que ele ndo possa se istentar, dirfamos, sem contradigao. Ela se da a intuicdo, portan- to,na imagem de um limite, e sustentada pelo gesto que consiste em caracterizar uma classe por um predicado, por exemplo, “o negro”, ea partir disso em designar como nao ligado ao predicado © que nao é negro, Se o que é construido nesta definigao, que Lacan chama “ne= gagdo complementar” nos deixa no nivel da gramética, é porque se favorece, sem mesmo dizer, uma metalinguagem que permite fazer funcionar a negagéo como conccito e como intuigao. Mas ha algo mais grave: sobre esse uso da negacao, enxerta- se toda uma tradigao que Freud, no dizer de alguns, herdaria com sua nogio de ego, e que liga os primeiros passos da experiéncia ao funcionamento, ao surgimento de uma entidade autonoma. Em relagao a ela, 0 que fosse admitido ou identificado se chamaria “ego” o que fosse excluido ou rejeitado poderia se chamar “nio- ego”. Nao é nada disso, pela razao de que a linguagem nao admite, de forma alguma, uma tal complementariedade, e o que se toma aqui por uma negacdo, nao é outra coisa sendo o que funciona no desconhecimento a partir do qual 0 sujeito se aliena no imagina- rio, o narcisico. Essa segunda negagao do desconhecimento instaura uma or- dem légica pervertida, e muito precisamente, com efeito, o que ele intitula a fantasia como estofo clo desejo, e que nos deixa portanto, mais uma vez, a0 nivel da articulagao gramatical. Depois veremos isso bem mais precisamente. ‘Nao obstante, essa negacao do desconhecimento se distingue da negacao complementar, no que ela 6 correlativa da instauragéo dosujeito como referente da falta. Essa negagéo, uma vez redobra- da na denegagao freudiana, que poderiamos definir aqui como 0 desconhecimento do desconhecimento, permite, com efeito, que aflore o nivel do simbélico e que opere, como tal, a fungi lagica do sujeito, a saber (recordo a definigao), “o que representa um sig- nificante para um outro significante” ou “o que remete & falta sob as formas do objeto pequena a”. Mas esta fungio Iégica de sujeito, que fiz surgir aqui, nao pode surgir com tal, recolocando em questao esse universo do discur- 80 que a gramédtica, por assim dizer, produz, pelo fato de que ela nao leva em conta a duplicidade do sujeito do enunciado e do su- jeito da enunciagao. Nesta funcao légica o sujeito s6 pode surgir se esctita for tematizada enquanto tal. E minha segunda parte se intitula: A logica ea escrita. Nao se trata desta escrita simplesmente instrumental e técni- ca que, na tradigao filos6fica, é descrita como significante de signi- ficante, mas deste EU da repeticao que, colocando-se como EU, dlesobstrud o que 6 légica da lingua gramatical que a recobre. Osujeito é, com efeito, a raiz da funcao de repeticio em Freud, © a escrita, a colocacao em ato desta repeticaa que busca precisa- mente repetir © que escapa, ou seja, a marca primeira que nao po- leria se redobrar e que desliza necessariamente fora de alcance. lisse conceito de escrita permite, com efeito, ver o que esté em ques- {io em uma légica da fantasia, que estaria em um nivel mais de principio que toda légica susceptivel de fundar uma teoria dos conjuntos. Com efeito, o tinico suporte desta teoria é que tudo © que se pode dizer de uma diferenca entre os elementos desse conjunto esta excluide do EU escrito; dito de outra forma, que nenhuma outra diferenga existe senao a que me permite repetir uma mesma operagdo, ou seja, aplicar sobre trés objetos, tao heteréclitos quan- to queiram, um trago unério. Mas, justamente, esse trago unario é necessariamente ocultado em todo universo do discurso, que s6 pode confundir o um contavel e o um unificante. Com essa finali- dade, ele se dard a possibilidade de axiomatizar essa relagéo es- sencial entre l6gica e escrita tal como o surgimento do sujeito permite instaurar, estabelecendo que nenhum significante pode se significar a si mesmo - é 0 axioma da especificagdo de Russell - que, portanto, a questao de saber o que representa um significante em face dle sua repetigaio, passa pela eserita Esse axioma vem, com efeito, a formalizar 0 uso matemético que quer que, se colocamos uma letra “a”, nds a retomemos em seguida, como se na segunda vez ela estivesse 14, sempre a mes- ma, Ble se apresenta em uma formulacao na qual a negagao inter- vem - “nenhum significante pode se significar a si mesmo” -mas na verdade o “ou” exclusive que é assim designado. E preciso com- preender que um significante- a letra “a” - em sua apresentagio 3 repetida, s6 significa enquanto funcionamento uma primeira vez, ou enguanta funcionamento uma segunda vez. Ora, veremos que é em tomo das relagdes entre a disjuncioe um certo conceito da negacao que as coisas se amarram, e que a tematizagio do ato se torna indispensavel. Mas o que esta andlise permite ver, desde jé, é que sea escrita, definida como o campo de repeticao de todas as marcas, pode distinguir-se do universo de discurso que tem por caracteristica se fechar, é também somente através da escrita que um universo de discurso puro funciona, ex- cluindo algo que serd justamente postulado como nao podendo se ‘sustentar escrito. Oconecito de légica, embora talvez acrescido de um passado filoséfico, ele também bastante carregado, nao apresenta o incon- veniente desta ambigilidade ligada ao conceito de escrita. Mas isso implica, se queremos falar de légica da fantasia, que sejam_ elucidadas as relagdes deste conceito com 0 conceito de verdade. Donde, a terceira parte. Légica e Verdade: 0 “nao sem”. Assim se coloca, com efeito, 0 problema de saber se é licito inscrever nos significantes um “verdadeiro” e um “falso”, manipulaveis logicamente através de tabelas-verdade, por exem- plo. No nivel da légica classica, que no é outra coisa sendo a gra- matica de um universo do discurso, a solugao inventada pelos es- tdicos continua paradoxal. Ela consiste em perguntar como devem encadear-se as proposigées em relagdo ao verdadeiro e ao falso, € em estabelecer uma relagao de implicacéo que faz intervir dois tem- pos proposicionais. a protase e a apddose, e que permite estahole- cer que 0 verdadeiro nao poderia implicar o falso, sem impediz, entretanto, que do falso se possa deduzir tanto o falso quanto 0 verdadeiro. fi 0 adégio “ex falso sequitur quod libet" Sublinhar esse paradoxo da implicagaio recai, de fato, em elu= cidar a negagio que nele funciona. Com efeito, é suficiente inver- ter a ordem da proposigdo “p implica q’" para ver surgir “Se nao p, nao q",e por ai mesmo, uma negagao. Essa negagio nao tem nada a ver com a negacao complementar, porque ela nao opera ao nivel 174 lo predicado, mas ao nivel do que Aristételes chama um “pré- prio”. Recordo para voeés essa distincao. Por exemplo, posso dar como definigéo de homem : 0 homem é homem e mulher. £ um proprio, A definig&o que é preciso dar é : 0 homem é animal racio- hal. “Homem e mulher” é um préprio, e esse proprio nao basta para definir, em Aristételes. Creio que a ciéncia moderna, ao con- nario, 86 da definigdes pelo proprio. A essa terceira negagao, portanto, Lacan chama de “nao sem” (pas sans). Seu modelo seria a formula: “nao hd néo verdadeiro :m falso”, pois, de fato, ela dé lugar é ao prinefpio da bivaléncia, ede todas as formas, em Aristételes, essa recusa em dar definigdes pelo proprio esta ligada a necessidade de produzir um discurso extensional, onde justamente o principio da b-valéncia nfo fosse colocado em questio. Veremos aqui que essa terceira negacao per mite circunscrever perfeitamente o problema do alo tal como se cxprime nesta simples frase: Nao hé homem sem mulher. Enfim, poder-se-ia reproduzir, em termos mais rigorosos do que 0 do desconhecimento, o que se passa ao nivel da gramatica da fantasia, em certos fenémenos de inferdncia subjacentes ao pro- cesso de identificago em todas as suas formas. Mas sobretudo, 0 ‘nao sem” permite compreender o modo da associagio livre, atra- vés do qual se presume que o campo da interpretacio se ligue a uma dimensio que ndo é a da realidade, mas a da verdade. Com efeito, quando se faz a Freud a objecio de que, com sua maneira de proceder, ele encontrar sempre um significado para fazer a ponte entre dois significantes, ele se contenta em responder que as linhas de associacao vém se recortar em pontos de partida cletivos, que delineiam de fato o que é, paranés, a estrutura de uma rede. Portanto, a légica cambaia da implicagin 6 substituida pela verdadeira repeticao. Oessencial, portanto, nao é tanto saber se um acontecimento eve lugar realmente ou ndo, mas descobrir como o sujeito pode articulé-lo em significante, quer dizer, verificando a cena por um sintoma, onde isto nao iria sem (pas sais) aquilo, eonde a verdade {az parceria com a l6gica. Nesse ponto, seria possivel fazer a ponte entre légica e verdade, gragas ao conceito de repeticio que esté um pouco stibjacente a essas duas partes, 0 que levaria de pronto a 175 uma tematizacao do ato. Preferirei seguir a ordem adotada por Lacan, que comega por dar um modelo vazio, forjado para dar a verdadeira forclusdo dada pelo cogito cartesiano, a partir da qual a ciéncia é vazia. Chego assim, minha quarta parte: Modelo vazio da alienagao: S(A) Esse modelo, que é o da alienagio, como escolha impossi= vel entre 0 “eu nao penso” e 0 “eu nao sou”, vai sobretudo permi- tir-nos exibir a negacao mais fundamental, a que funciona em: relacéo disjuncao, tal como ela é designada na formula de Morgan: “Nao (ae) equivale a nao a ou nao b”. Ora, uma vez estabelecido que ae b designam o “eu penso” e 0 “eu sou”, e que é a mesma. negagao que funciona de um lado e do outro do sinal da equiva- Iencia, deve-se admitir que esta negacao fundamental é a que faz: surgir 0 Outro, conseqiientemente recusa da questo do ser que instaura 0 cogito, exatamente como “o que é rejeitado do simbéli- co reaparece no real”. Mas também deve-se admitir que esta Verwerfung primordial que instaura a ciéncia, instaura uma disjuncdo exclusiva entre a ordem da gramitica em sua totalidade, que se torna assim suporte da fantasia, e a ordem do sentido que € excluida dela e que se torna, com efeito, a representacio de coisas. Vou retomar isso devagar. Hé, portanto, equivaléncia entre “nao eu penso e eu sou” e “ou eu nao penso ou eu nao sou”. E é ao primeiro termo desta equivaléncia que eu queria agora me dedicar, pois ela nos permiti rd estabelecer com todo o rigor a distingao entre sujeito do enunci- ado esujeito da enunciacao. Se, com efeito, o “logo sou” deve poder se colocar entre aspas, apés o “eu penso”, é, em primeiro lugar, porque a fungao do terceiro é essencial ao cogito. i com um tercei- To que eu argumento, fazendo-o renunciar, uma a uma, a todas as vias do saber, na primeira meditagio, até supreendé-lo a uma vira~ da, fazendo-o confessar que € necessério que eu (je) seja eu (moi) para lhe fazer percorrer esse caminho, com a ressalva de que o “eu sou” que ele me da nao é outro, definitivamente, senao o conjunto vazio, j4 que ele se constitui por nao conter nenhum elemento. 0 “eu penso” nao é, de fato, nada além da operacao de esva- ziamento do conjunto do “eu sou”. Ele se torna, por isso mesmo, 176 um “eu escrevo”, 0 tinico capaz de efetuar a progressiva evacua- jlo de tudo 0 que esta colocado ao alcance do sujeito, com relagio Ao saber. O sujeito - e isso é inteiramente fundamental para a conceituacao do ato -nao se encontra apenas em posicao de agente (lo “eu penso”, mas em posicaio de sujeito determinado pelo pré- prio ato em questao, o que exprime em latim a didtese média, por exemplo, loquor', Ora, todo o ato poderia se formular nestes termos,na medida om que 0 médio, em uma lingua, designa esta falha entre sujeito «lo enunciado e sujeito da enunciagéo. Mas como nao é meditor* que alids € 0 freqiientativo® de medeo, mas cogito que Descartes ‘emprega, e como € essencial que esse cogito possa ser repetido em cacla um de seus pontos, em cada um dos pontos da experiéncia, cada vez que se faca necessario - e Descartes insiste nisso - é bem possivel que lidemos af com 0 negativo de todo ato. Com efeito, 0 cogito é, por um lado, o lugar onde se origina esta repetigao constitutiva do sujeito, e por outro, o lugar onde se instaura um recurso ao grande Outro tomado ele mesmo no des- conhecimento, enquanto este Outro é suposto como néo afetado pela marca, quer dizer que se considera que este Deus nao escreve. Com efeito, 0 cogito nao é sustentavel, se ele nao se completa com um : sum ergo Deus est e com o postilado correlativo, segundo 0 qual o nada nao tem atributos. Descartes entdo coloca a cargo de um Outro, que nao seria marcado, as conseqiténcias decisivas desse passo que instaura a ciéncia. Elas nao se fazem esperar. Por um lado, a descoberta newtoniana, longe de implicar um espaco “partes extra partes”, cla como esséncia a extensdo ter cada um de seus pontos reunidos por sua massa & todos os outros; quanto & coisa pensante, longe de ser um ponto de unificagio, pelo contrario, ela traz a marca do cesfacelamento que se demonstra, de alguma forma, em todo 0 de- senvolvimento da légica moderna, terminando por fazer da res cogitans, no um sujeito mas uma combinatéria de notacées. Fazer incidir, portanto, a negagao que estou tentando fazer surgir, na reuniao do “eu penso” edo“eu sou", redunda em tomar ato dessas conseqiiéncias e em traduzi-las, escrevendo que nao ha Outro. A sigla S(X) remete, com efeito, 4 constatagao de que nao V7 ha qualquer lugar onde se assegure a verdade constituida pela palavra, nenhum lugar justifica a colocagao em questao, pelas pax lavras, do que ndo é sendo palavra, toda a dialética do desejo e trama de marcas que ela forma, encravando-se no intervalo entre o enunciado e a enunciagao. Logo, tudo o que se funda somente por um recurso ao Outro écunhado de caducidade. $6 pode subsistir ai o que toma a forma de um raciocinio por ocorréncia. A nao existéncia do Outro no cam= po das matemiticas, corresponde, com efeito, a um uso limitado. no emprego dos signos, é 0 axioma de especificacao e a possibili« dade do vai e vem entre o que est estabelecido e o que é articula- do. O Outro é entao um campo marcado pela mesma finitude que o préprio sujeito. O que faz depender o sujeito dos efeitos do signi- ficante, faz, a0 mesmo tempo, com que o lugar onde se assegura a necessidade de verdade seja ele mesmo fraturado em suas duas fases, do enunciado e da enunciagao. E por isso que a reuniéo do “eu penso” e do “eu sou”, embora necessaria, deve ser, em seu principio, negada por esta negacao fundamental. Nao deveria escapar a vocés que esta negacao que s6 nos for nece, no momento, um modelo vazio, é de fato induzida pela se xualidade, tal como ela é vivida e tal como opera. Chego assim a minha quinta parte. Forclusio e denegacao Pode-se, com efeito, apresentar como a sexualidade, em ge- ral, é vivida e opera: um defender-se de dar seqiiéncia a esta ver- dade de que nao ha Outro. E que este modelo se apéia, com efeito, sobre esta verdade do objeto pequeno “a” que deve, em definitivo, ser referida a castracao, ja que o falus, como seu signo, representa justamente a possibilidade exemplar de falta de objeto. Ora, essa falta 6 inaugural para a crianga, quando descobre com horror que sua mae é castrada, e a mie nio designa nada menos do que esse Outro que est colocado em questo na origem de toda operagao logica. ‘Também a filosofia e toda a tentativa para restabelecer a legi- timidade de um universo de discurso consiste, uma vez que ela se 178 (lou pela eserita uma marca, em rabiscé-la no Outro, em apresen- lar esse Outro como no afetado pela marca. Ora, essa marca que permite essa rejeicao no simbélico é, de {alo, apenas o lugar tenente deste traco inscrito no proprio corpo, que €a castragao. Portanto, é possivel apresentar essa forclusao da marca do grande Outro como uma recusa, motivada e retomada sm cessar, do que constitui um ato. Mas esse ato, tomado ele mes- mo na logica regida pela negagio - essa negacao fundamental - iio é, ele mesmo, uma positividade; desconfiem. Ele s6 pode, de ato, ser inferido a partir dessa outra operacao légica que é a denegacao, que consiste certamente em colocar entre parénteses a realidade do compromisso e a gramatica que nela se funda, mas jie nem por isso deixa de recolher essa outra conseqiiéncia, pelo fato de que 0 grande Outro seja barrado: a disjuncao entre o corpo © 0 goz0. Se, com efeito, o objeto pequeno “a” é forclufdo na marca pelo {il6sofo, ele é identificado como lugar do gozo pelo perverso, mas cle aparece agora justamente como parte de uma totalidade que nao € designavel, jé que nao existe Outro. E 0 perverso se acredita, como 0 filésofo, obrigado a inventar, para si, uma figura manifes- lamente tefsta; por exemplo, a maldade absoluta em Sade, da qual o sddico é apenas 0 servo. Se nao hé Outro, é precisamente porque tanto uma quanto a outra posiggo sao insustentaveis. O casal ho- mem-mulher que é positivado em um caso, 0 do filésofo, e o casal pequeno “a” - grande Outro, que é positivado no outro, sto duas maneiras paralelas de recusar 0 ato sexual, ora pensado como real © impossivel, ora como possivel e irreal. ‘Resta, sem dtivida, uma terceira forma, a da passager ao ato. Niio preciso imaginar que esse salto nos faca sair da alienagio acima descrita. Vai, pelo contrario, nos permitir articular seus ter- mos de modo ainda mais rigoroso. ‘Vou, por isso, passar segunda parte da equivalénci nao penso ou eu nao sou”, e essa sexta parte se intitularé: 179 A gramatica ou a légica. A nao reuniao, no Outro, do “eu penso” e do “eu sou” se traduz simplesmente em uma disjungao enire dois nao sujeitos) “eu nao penso ou cu nao sou”. Também, sem falar mais de ato, talvez fosse itil continua mos no modelo vazio. Isso vai nos permitir fazer a teoria desta negacao do sujeito que a negagio do grande Outso supoe, e vai nos dar a possibilidade de melhor articular as disjungées entre grax mitica e légica, fixando o estatuto da gramatica. O que a logica nos da a pensar, é que nés nao temos escolha, muito precisamente por isso: a partir do momento em que 0 eu (je) foi escolhide como instauracdo do ser, é em diregio ao “eu no penso” que devemos ir, pois o pensamento 6 constitutive de uma interrogacao justamente sobre o nao ser, €€ a isto que se coloca um término com a inauguragio do eu como sujeito do saber, no cogiio. Assim, a negago que se da a pensar na alicnagio nio € mais a que opera na recusa da questo do ser, mas a que, incidindo sobre o Outro que surge dela, incide sobre o eu (je) que se retira. Ora, conexo a escolha do “eu nao penso”, surge algo cuja es- séncia é a de nao ser eu. Esse “nao eu” (je), € 0 Isso que pode se definir por tudo o que, no discurso, nao é eu (je), quer dizer, preci- samente por todo 0 resto da estrutura gramatical, Com efeito, o alcance do cogito se reduz ao fato de que o “eu penso” faz sentido, mas exatamente da mesma maneira que qual- quer nao-sentido, desde que seja de uma forma gramaticalmente correta. A gramatica nfo é mais -nesta légica regide pela nepacio, incidindo ora sobre 0 Outro, ora sobre o sujeito - sendo um ramo da alternativa onde ¢ tomado esse sujeito quando ele passa ao ato, ese ela se define por tudo 0 que, no discurso, nao é eu (je), € preci- samente porque o sujeito é seu efeito. # muito precisamente por isto que a fantasia nao é outra coisa sendo uma montagem gramatical onde se ordena, seguindo diver- sas inversées, 0 destino da pulsio, de forma que nao hd outra ma- neira de fazer funcionar o eu (je) na sua relacao ao mundo senao fazendo-o passar por esta estrutura gramatical, mas também o su- jeito, enquanto eu (je), est excluido da fantasia, como se vé no 180 Hote-se numa crianga”, onde o sujeito s6 aparece como sujeito bipancado na segunda fase, e esta segunda fase é wma reconstru- (io significante da interpretacao. importante notar que assim como a realidade, esse com- promisso tnaior pelo qual nds nos entendemos, é vazia, da mesma {oymaa fantasia é fechada sobre si mesma, 0 sujeito que passa a0 lo lendo, em sua esséncia de sujeito, basculado no que resta como jiliculagae do pensamento, a saber, a articulacan gramatical da frase. Mas esse conceito de gramatica pura, longe de se articular, como em Husserl, coma légica da contradicao, que por sua vez se \vlicula sobre uma légica e gramética tais como estou fazendo fun- Cionar aqui, na medida em que esta gramdtica pura permite situar bem os fantasmas e 0 ego (moi)que é sua matriz, esse conceito de jramiética, portanto, deve funcionar de moda inverso, vale dizer, permitir constatar que hé qualquer coisa de agramatical que user rejeitaria, mas que, entretanto, ainda é logica, e quea lingua hom feita da fantasia nado pode impedir essas manifestagdes de verdade que sa0 0 chiste, 0 ato falho ou o sonho, manifestagdies com relacao as quais 0 sujeito s6 pode se situar do lado de um “eu ndo sou”. Com efeito, o de que se trata no inconsciente, que € preciso, portanto, distinguir do Isso, nao depende desta auséncia de signi- ficagéio em que nos deixa a gramitica, j4 que ele se caracteriza pela surpresa que é bem um efeito de sentido, e esta surpresa que toda interpretacdo valida faz imediatamente surgir, tem por dimensao, por fundamento, esta dimensio do “eu néo sou”. B nesse lugar onde “eu nao sou” que a Logica aparece toda pura, como nao gra- matica, e que o sujeito se aliena outra vez em um pensa-coisa, © «jue Froud articula sob a forma de representacao de coisas, da qual © inconsciente, que tem por caracteristica tratar as palavras como coisas, € constituido. ‘Com efeito, se Freud fala dos pensamentos do sonho é por- «que, atrds dessa seqtiéncias agramaticais, ha um pensamento cujo cstatuto esta por ser definido nisto que ele ndo pode dizer nem “Jogo eu sou” nem “logo eu nao sou”, e Freud articula isso muito precisamente quando diz que o sonho é essencialmente egoista, isso implicando que 0 Jch do sonhador esté em todos os significan- it tes do sonho e absolutamente disperso, e que o estatuto que res| aos pensamentos do inconsciente é o de ser coisas. Estas coisas, entretanto, se encontram e sao tomadas em ul eu légico que constitui a fungio da devolucao, que se 1é atrav das defasagens com relacao ao eu gramatical, justamente, e é pai isso que serve este eu gramatical, da mesma forma que o rébus*s Ie se articula com relagdo a uma lingua ja constituida. Em todo caso, é sobre esse eu nao gramatical que se apdia o psicanalist cada vez que ele faz funcionar qualquer coisa como Bedeutung, fazendo como se as representagdes pertencessem as préprias coi sas, e fazendo surgir assim esses buracos no eu do “eu nao sou! onde se manifesta 0 que diz respeito ao objeto pequeno “a”. Pois, em definitivo, o que toda a légica da fantasia vem a suprir, 6 a inadequagio do pensamento ao sexo ou a impossibilidade de uma subjetivacio do sexo. Esta é a verdade do “eu nao sou”. A linguagem, com efeito, que reduz a polaridade sexual a um “ter ou nao ter”, 4 conotagio félica, faz matematicamente falta, quando se trata de articular esta negacao que estou em vias de elucidar, esta negacao que é, em suma, a que funciona na castra- cao. Ora, é a linguagem que estrutura 0 sujeito como tal e, nos pensamentos do sonho, onde as palavras so tratadas como coi- sas, nesse ponto teremos a ver diretamente com uma lacuna, uma sincope na narrativa. Assim, enquanto 0 “nao eu” do isso da gra- mitica gira ao redor deste objeto nuclear onde podemos reencon- trar a insténcia da castragéo, 0 “nao eu” do inconsciente 6 simplesmente representado como um branco, como um vazio em relag&o a onde se refere todo o eu légico da Bedeutung. 5 neste ponto preciso que se faz sentir a necessidade de rebater a légica sobre a gramitica e articular, através da repeticao, a possibilidade de um efeito de verdade, efeito de verdade no qual 0 fracasso da bedeutung em articular 0 sexo faz aparecer 0 “9”. Ora, 0 que abre a possibilidade de pensar o sujeito enquanto produto da gramatica ou enquanto auséncia referida pela légica, 6 o conceito de repeticao tal como articulado por Freud com o termo Wiederholungzwang®. Isso nos obriga a introduzir 0 modelo va- 182 io da alienagéo no elemento de uma temporalidade que somente conceito de ato permite cernir. Minha sexta parte: Aalienagao e 0 ato. Fi na medida em que 0 objeto pequeno “a” pode ser pensado como real, quer dizer, como coisa, que a relacao do sujeito & \emporalidade pode ser elucidada, precisamente através das rela~ goes da repetigao com 0 traco undrio. Ficamos entdo no elemento ‘Je uma logica onde temporalidade e trago se juntam em uma ten ntiva de estruturar a falta, sob a forma de uma arqueologia onde fwpetigao e deslocamento se sucedem. No préprio Freud a repeticdo de fato nao tem nada a ver com a meméria. Nesta o traco tem justamente como efeito a nao repetigéo. Um micro-organismo dotado de meméria, nao reagiré a segunda vez a um excitante da mesma forma como da primei- ra. Eo étomo de meméria. Ao contrario, em uma situacao de fra~ casso que se repete, por exemplo, o trago tem uma fungo {otalmente diversa: a primeira situagao nao estando marcada com © signo da repeticao, deve-se dizer que se ela se torna uma situa- cio repetida, é porque o traco se refere a algo de perdido pelo fato da repeticao, e aqui reencontramos 0 objeto pequeno “a”. E por isso que o que se apresenta como defasagem na propria repetigao, nada tem a ver com a similitude ou com a diferenca, € reencontramos aqui, no campo do sujeito, 0 trago undrio como re- feréncia simbélica. Este, eu recordo, permite identificar objetos to heter6clitos quanto possivel, consideranco como nulas até suas diferencas de natureza a mais expressa, para enumerd-los como clementos de um conjunto. Mas é preciso descer no tempo para constatar, por um lado, que a verdade assim obtida, e que nao é outra sendo a que os matematicos chamam “efetividade” (donde 0 fato que um modelo permita interpretar um dominio), essa verda- de nao tem nenhuma apreensio sobre o real. Em compensacio, reencontramos aqui o modelo da alienagao que se poderia ilustrar sob a forma de um “nao é nem parecido nem nao parecido”. Ora, isso nao é nada além do grafico do anel duplo, que serve para re- presentar h4 muito tempo, em Lacan, a solidariedade entre um cfeito diretivo e um efeito retroativo. Reencontra-se essa relacio 183 Acontece o mesmo em toda a operacio significante na qual traco, em que se sustenta o que é repetido na marca, retorna, quanto repetindo, sobre o que ele repete, por pouco quie 0 suel gue conta tenha que se contara si mesmo na cada, e¢ justan te 0 que ocorre na passagem ao ato. “ _ Ha, com efeito, correspondéncia entre a alienagio como ese dha inelutdvel do “eu nao Ppenso” ea repetigao como escolha inell tavel da passagem ao ato. " Com efeito, 0 outro termo impossivel de escolher é 0 actin out correlativo ao “eu nao sou”. E que o ato, longe de se define como alguma manifestagao de movimento, indo da descarga mo- tora ao desvio do macaco para pegar uma banana, este ato nao pode se definir sendo com relagao ao duplo anel onde a repetiga vem a fundar 0 sujeito, essa vez como efeito de corte. Pn Lembro aqui certas referéncias topolégicas. A banda de Moebius pode ser tomada como simbélica do sujeito; um duplo. anel constitui seu pélo tinico. Ora, uma divisio mediana desta banda a suprime, mas engendra esta divisio (que) segue o traca- do do duplo anel. Podemos dizer que o ato &, em si mamas duplo anel do significante. - “ Oato se dé, com efeito, como o paradoxo de uma repeticao em um tinico traco, ¢ este efeito topolégico permite apresentar que 0 sujeito no ato € idéntico a seu significant, ou que a repet- ‘40 intrinseca 6 fo intcraecaa soso ato se exerce no seio da estrutura logica pelo op go ate € potianto o tinico lugar onde o significante tem a apa- réncia, ou mesmo a funcéo, de se significara si mesmo, eo sujeito nesse ato é representado como 0 efeito da divisdo. entre o repetidor © orepetido, que sao entretanto idénticos. “a Para ver que esta estruturacao do ato vem a preencher 0 mo- delo vazio da alienacdo, falta-nos ainda um tiltimo passo. Freud, em seu texto “Além do Principio do Prazer” localiza essa conjun: Ho basica para toda a lgica da fantasia: a compulsio A repeticao 184 siyloba 0 funcionamento do principio do prazer. £ por isto que fio ha nada neste material inanimado que a vida reune, que a ili nao restitua ao dominio do inanimado. Mas sé restitui 4 sua jira, nos diz Freud. Essa maneira é repassar pelos caminhos \juw cla percorreu, a satisfagdo sendo definida justamente como 0 {alo de repassar por esses mesmos caminhos. Ora, acabamos de ver que a repeticio enquanto engendra uujeito como efeito de corte ou como efeito do significante, esta \\yada a queda inelutavel do objeto pequeno “a”, se bem que a {ijetifora do caminho seja radicalmente inadequada. Além disso, () modelo da satisfagéo que Freud nos propée nao é seguramente um modelo organico como, por exemplo, a satisfacao de uma ne- «ossidade como a de beber ou de dormir, onde a satisfacao se defi- ye justamente como nao transformada pela instdncia subjetiva (néo lomos a ver com esta solidariedade de um efeito ativo e retroati- Vo), mas precisamente o ponto onde a satisfagao se revela como a mais dilacerante para 0 sujeito, a do ato sexual, e é em relagéo a sta satisfagéo que todas as outras devem ser postas em depen- \éncia no seio da estrutura. £ neste ponto que o anel se fecha. Na Jeitura que proponho, a conjungao da satisfagaio sexual e da repeti- cio no funciona menos como um axioma inexoravel, jé que nada de menos que um rio de lama ameagaria quem dele se descartasse. que temos a ver, mais uma vez, com uma nova tradugao do (40, do qual ja demos varios equivalentes, e que aqui vem a reto- mar a disjuncao entre 0 corpo e 0 gozo, sob a forma de uma disjungo temporal entre a satisfacao obtida e a repeticéo perse- guida. ‘Compreende-se melhor agora que se esta satisfagao passa pelo que se dé como um ato, este no pode ser pensada cama ata senaia em funcao da ambigilidade inelutavel de seus efeitos. Se um ato se apresenta como corte, éna medida em que a incidéncia deste corte sobre a superficie topolégica do sujeito modifica sua estrutura ou, pelo contrario, a deixa idéntica, Desde entao, encontramos aqui a ligacao estrutural entre 0 ato e o registro da Verleugnung. Com esse conceito, com efeito, trata-se de pensar o labirinto do reconhe- cimento, por um sujeito, de efeitos que ele nao pode reconhecer, jé que, como sujeito, ele esté todo inteiro transformado por seu ato. 185 A passagem ao ato 6, portanto, com relagao a repetigao, apenas uma espécie de Verleugnung confessada, e o acting out, uma espé- cie de Verleugnung denegada. E um redobramente - Verleugnung denegada - que apresen- to como correlativo, ao nivel do sujeito, do redobramento do des- conhecimento pelo qual defini a denegacao freudiana. E esta alternativa da alienagao tem, mais uma vez, que ser colocada pre- cisamente em relagio com 0 pequeno “a”, que 0 sujeito do ato se- xual é necessariamente, ja que ele entra af como produto, e que s6 pode repetir a cena edigiana, quer dizer, a repetigao de um ato impossfvel. Se vocés me seguiram, e sem que seja necessdrio retomar tudo © que foi dito aqui mesmo sobre a impossibilidade de dar ao signi- ficante “homem e mulhe:” uma conotagao determinada, fica ago- ra evidente que a formula “o inconsciente nao conhece a contradiga0” é rigorosamente idéntica aquela igualmente capcio- sa, mas mais adequada, segundo a qual “nao ha ato sexual”. Lacai Eu me rejubilo de que esses aplausos demonstrem que esse discurso foi de seu gosto. Tanto melhor. De resto, mesmo se no tivesse sido, ainda assim ele nao deixaria de continuar sendo o que 6 quer dizer, excelente. Diria até mais. Nao queria deixé-lo trazer retificacdes e aperfeigoamentos, que o autor poderia trazer. Quero dizer que, tal como esté, ele tem seu interesse e que, para todos os que assistiram a sesso de hoje, ser certamente muito importante poder se referir a ele para tudo o que direi a seguir. Agora, sendo justamente minha funcao, por causa do lugar que defini hd pouco, a de nao exclnir tal ou tal apelo do interesse, ao nivel do que chamei agora de “gosto”, acrescentaria af simples- mente algumas palavras de reparo. Sublinho expressamente que, fora as pessoas j4 convidadas, por jé estarem de posse de uma carta, nenhuma pessoa seré convi- dada aos dois tiltimos seminérios fechados se nao tiver me envia- do, em oito dias, alguma pergunta que nao tenho que esclarecer como avaliarei como pertinente ou nao pertinente. Na verdade, do 186 momento em que me tenha sido enviada, acho que s6 poderé ser pertinente! Farei a seguinte observacao. Falou-se aqui de nova negagao. O tema dos préximos seminérios, com efeito, sera precisamente 0 uso da negagio ou, muito precisamente, de como foi esse passo da logica constituido pela introdugao do que se chama, da maneira mais grosseiramente imprépria, ouso dizer, e penso que nenhum logico sensivel me contradiré, “os quantificadores” (contrariamente ao que a palavra parece indicar, nao é essencialmente da quanti- dade que se trata, neste uso dos quantificadores). Pelo contrario, e desde a préxima vez mostrarei - de uma maneira, pelo menos, muito esclarecedora, por ter estado ligado & virada que fez apare- cer a func&o do quantificador - a importancia do termo “dupla negagao", precisamente no ambito que esta a nosso alcance. fi bas- tante singular que exatamente no nivel da gramatica é que seja mais visfvel que, de forma alguma, seré possfvel dar conta do que 6a dupla negacao dizendo, por exemplo, que se trata de uma ope- ragdo que se anula, operagéo que nos seconduz e nos refere & pura esimples afirmacao. Com efeito, isto jé esta presente e inteiramen- te claro até mesmo na légica de Aristételes, na medida em que, a0 nos colocar em face dos quatro pélos constituidos pelo universal, particular, o afirmativo e o negative, ela nos mostra bem que ha uma outra posicaio do universal e do particular, enquanto podem se manifestar por esta oposicao entr2 o universal e o particular pelo uso de uma negacao, ou que o particular pode ser definido como um “nao todo”, e que isto esté verdadeiramente ao nosso alcance. Nesta etapa em que estamos de nosso enunciado sobre o ato psicanalitico, serd que 6a mesma coisa dizer que todo homem nao épsicanalista - prinefpio da instituicao das sociedades que portam esse nome - ou dizer que todo homem é nao psicanalista? N&o é absolutamente a mesma coisa. A diferenca reside pre- cisamente no “nao todos” (pas tous), que mostra o fato que coloca- mos em suspenso, que nés repelimos o universal, o que, nesse caso, introduz a definigo do particular. Nao é hoje que levarei adiante 0 que aqui esta em questao, mas estd claro que se trata de algo que ja indiquei, que ja foi intro- 187 duzido por varios pontos de meu discurso. Por exemplo, quando insisti sobre o fato de que na gramética, o lugar em que o sujeito da enunciagao estava mais visivel era no uso deste “nao”; 0 que 03 gramalicos nao sabem, naturalmente, porque os graméticos s40 légicos, é o que os poe a perder. Isso nos deixa a esperanca de que os légicos tenham uma idéia, por menor que seja, da gramitica; & justamente nisso que colocamos nossa esperanga, quer dizer, ¢ isso. que nos conduz ao campo psicanalitico. Em suma, eles chamam, de expletivo esse “nao”, que se exprime tao bem nessa expressio, por exemplo: “eu estarei 14... (ou nao estarei 14), antes que cle nao venha”, empregado em um sentido que quer dizer exatamente: “antes que ele venha”. Pois esse “antes que ele nao venha” toma seu sentido unicamente porque introduz a presenca do eu (moi) enquanto sujeito da enunciacto, quer dizer, enquanto que isso me interessa. I! af, sem dtivida, que ele é indispensavel, que estou in- teressado em que ele venha ou em que ele nao venha. Nao se deve acreditar que s6 se possa aprender esse “nao” ai, neste ponto bizarro da gramatica francesa, onde nao se sabe que fazer dele e onde até se pode chamé-lo expletive, o que 36 quer dizer que, afinal, 0 sentido seria o mesmo se ele nao fosse utilizado. Ora, o problema é precisamente que o sentido nao seria o mesmo. O mesmo, nesia forma de articular a quantificagéo que consiste em separar as caracterfsticas e até, para deixar bem claro, em s6 exprimir a quantificacao pelos signos escritos, que sio oY para 0 universal e of para o particular. Isso supée sua aplicagao em uma f6rmula que, colocada entre parénteses, pode ser em ge- ral simbolizada pelo que se chama “funcao”. Quando tentamos elaborar a fun¢do que corresponde & pro posicao predicativa (foi exatamente por ai que as coisas se intro- duziram na logica, J4 que é nisto que repousa o primeiro enunciado dos silogismos aristotélicos), somos levados a introduzir essa fun- sao. Pelo menos, digamos que ela se introduziu, historicamente, no interior do paréntese afetado pelo quantificador, muito preci- samente no primeiro escrito no qual Peirce promoveu, atribuindo- aa Mitchell (que, alids, néo havia dito exatamente isso) uma formulagao que é esta: para dizer que “todo homem ¢ sabio”,,colo- camos 0 quantificadorV (ele nao era admitide como algoritmo na 188 (poca, mas née importa), e colocamos dentro dos parénteses (h+s), (wer dizer, a reuniao. A nao confusio, conirdrio da identificagao, cua escrevo sob a forma que é para vocés mais familiar: V. Portan- to lemos Vi (fv s) o que quer dizer que, para todo objeto i, ele é ou bem nao homem, ou bem sabio, Este 6 0 modo significativo pelo qual se intreduz historica- mente, e de uma forma qualificada, a ordem da "quantificacio”, palavra que jamais pronunciarei se nao for entre aspas, até 0 mo- mento em que me ocorreré algo como a Visitagdo, a mesma de quando dei o titulo 4 minha revistinha, que talvez faca os légicos aclmitirem nao sei que qualificag3o, que seria to mais comovente que “quantificagao”, que talvez pudesse substitui-la. Mas a esse respeito, na verdade, s6 posso continuar esperan- do, em trabalho de parto; ou essa idéia surgird por si mesma, ou nao me ocorrerd jamais. Seja como for, vocés reencontrarao ai esse ponto de destaque que ja introduzi, precisamente a propésito de im esquema que é do perfodo em que Peirce, de algum modo, também estava parindo a quantificagao. A saber, 0 esquema «quadripartite que escrevi outro dia, relativo a articulagio de “todo cago é vertical”, que me permitiu mostrar que toda a articulagio cia oposicéo do universal, do particular, do afirmativo e donegati- vo, se baseava propriamente no fato de repousar sobre o “no tra~ 40” (pas de), pelo menos no esquema dado entéo por Peirce; esquema peirciano que coloquei hd muito tempo frente de certas articulagdes em torno do “nao sujeito”, em tomo da eliminagao disso que faz a ambigiidade da articulacao do sujeito em Aristote- les, embora ao lerem Aristdteles, possam ver que nao h4 nenhuma espécie de dtivida quea mesma suspensio do sujeito jé estava acen- (uada Ié, que oltipokeimonon! ndo ae confunde absolutamente com aousia’. £ acerca desse questionamento do sujeito como tal, a saber, sobre a diferenga radical entre essa espécie de negacao que ele mantem em relagdo a negaeao, enquanto ela incide sobre o predi- cado, em torno disso poderemos manipular alguns pontos essen- ciais em temas que nos interossam de forma inteiramente central. A saber, esse em questio na seguinte diferenca: ou bem nao todos 189 so psicanalistas (nom licet omnibus psychanalystas esse), oubem nao hé nenhum que seja psicanalista Para alguns que pensam que nés estamos em um campo que nao € 0 deles, eu. chamarei a atenc&o para algo quanto ao tema dessa relagao, desse grande né, desse anel que tragou nosso amigo Jacques Nassif, reunindo assim esse fato tao perturbador que Freud enunciou quando disse que o inconsciente nao conhecia a contra- diggo, e tendo assim ousado lancar este arco, essa ponte para esse ponto nuclear da légica da fantasia, acerca do qual terminei meu discurso do ano passado, dizendo que nao ha ato sexual. Sem diivida existe af uma relagio, relacio a mais estreita, entre essa hidncia do discurso da qual falamos para representar as relagdes do sexo, e essa hiancia pura e simples que se definiu ape- nas pelo progresso da prépria lgica, pois ¢ por um processo pura- mente légico que se demonstra -e lembrarei, incidentalmente, para os que nao tém a menor idéia, que nao hd universo do discurso. Claro que para o discurso, coitado, esta excluido que ele perceba que nao hd universo; mas esté justamente af a légica que nos per- mite demonstrar, com facilidade, rigor e simplicidade, que nao poderia haver universo do discurso. Portanto, nao é porque o inconsciente nao conhece a contra~ dig&o que o psicanalista est autorizado a lavar suas maos quanto a contradigao, que, aliés, s6 0 concerne de forma muito remota. Para ele, isso parece ser 0 selo, a assinatura em branco, a autoriza- G0 dada para cobrir com sua autoridade, de qualquer forma que Ihe convenha, a confusao pura e simples. Afesté o dominio em torno do qual gira esse tipo de efeito de linguagem que implica meu discurso. Eu ilustro. Nao é porque 0 inconsciente nao conhece a contradigao; podemos identificar como isso se da, nao é espantoso, e nao é de qualquer forma que seja; posso tocé-lo de imediato na medida em que pertence ao proprio principio do que esta inscrito nas primeiras formulacoes relativas ao ato sexual; é que o inconsciente, dizem, é 0 Edipo, ele metaforiza a relacao entre o homem e a mulher. £ isto que encontramos nas relagGes entre a crianga e a mae, ao nivel do inconsciente. O com- plexo de Edipo é primeiramente isso, essa metéfora. Mesmo as- sim, néo é uma razio suficiente para que o psicanalista nao 190 distingua esses dois modos de apresentacdo. E, expressamente, para jsiso mesmo que ele esté 4. Esté ld para fazer com que o analisando apreenda 0s efeitos metonimicos desta apresentagao metaforica. Pode até ser, em outro momento, a ocasidio para confirmar sobre tal objeto a mola contraditéria inerente a toda a metonimia, fato que resulta de que o todo seja apenas a fantasia da parte, da parte enquanto real. A pratica psicanalitica evidencia que 0 casal nao é um todo, assim como a crianga nao é uma parte da mae. Afirmar 0 contrario é viciar profundamente essa pratica. Quer di- vet, localizar nas relag6es da crianca com a mae a unidade fusional que nao se encontra onde se esperaria encontré-la, a saber, na copulacao sexual. E é especialmente erréneo representé-la pelas relagdes entre a crianga e a mae, j4 que no nivel da crianca e da mde, ela existe ainda menos. JA sublinhei bastante a coisa, fazendo notar que é uma pura fantasia da hora psicanalitica imaginar que a crianga esteja tio bem assim, ld dentro. O que é que vocés sabem disso? Uma coisa é cer- la, € que a me no se encontra forcosamente o mais & vontade, e que ocorrem até algumas coisas nas quais nao preciso insistir, cha- madas “incompatibilidades feto-maternais”, suficientes para mos- trar que nao é nada claro que seja necessario representar a base biolégica como sendo, muito naturalmente, o ponto de uma uni- dade beatifica. Também preciso lembrar nesta ocasiao, porque talvez seja a liltima, as estampas japonesas, quer dizer, quase que astinicas obras de arte fabricadas, escritas, que se conhece, onde se tenta repre- sentar para nés algo que nao se deve absolutamente acreditar que cu desprezo: 0 furor copulatério. Temos que admitir que nao esté ao aleance de todo o mundo. E preciso estar em uma certa ordem de civilizagio que nunca se comprometeu com uma dialética que, incidentalmente, um dia eu tentaria definir mais precisamente como sendo a crista. E muito estranho que, cada vez que vocés véem esses personagens que se estreitam de forma tao verdadeiramente comovente, e que nao tém nada a ver com o estetismo verdadeira- mente repugnante que é 0 das curiosas representacdes do que se passa, neste nivel, em nossa pintura, coisa curiosal... vocés tém fre- quentemente, quase sempre, num cantinho da estampa, um pe- to queno terceiro personagem. Algumas vezes tom jeito de ser uma crianga, talvez até o artista, histéria para rir um pouco, pois afinal vocés verfio que pouco importa como esta representado esse ter= ceiro personagem, suspeitamos que se trata justamente de algo que sustenta 0 que chamo de objeto pequeno “a”, e muito precisamens te sob uma forma verdadeiramente substancial, onde ele faz. com que haja na copulagio inter-humana esse algo de irredutivel, queé ligado precisamente ao fato de que vocés nao a verdo jamais che= gar a sua completude, e que se chama simplesmente “o olhar”. E or isto que esse pequeno personagem é algumes vezes uma cri- anca, e algumas vezes, de forma totalmente bizarra e enigmatica para nés, que espreitamos isso atrés de nossos éculos, simples mente um pequeno homem, totalmente homem, construfdo e de= senhado nas mesmas proporgdes que o macho que esta lé em ago, 56 que muito reduzido. llustragao sensivel dealgo verdadeiramente fundamental, que nos obriga a rever o principio dito da nao con tradigéo, pelo menos do que constitui, no campo em questo, um ponto radical na origem do pensamento ¢ que, para empregar uma formula coloquial, familiar, poderia se exprimir assim: "jamais dois sem trés”. Vocés dizem isso sem pensar. Acreditam simplesmente, que isso quer dizer que se jé aconteceram duas merdas... uma ter= ceira acontecera, na certa. Nao! Nao quer dizer nada disso! Quer dizer que para fazer dois, 6 preciso que haja um tereeiro. ‘Nunca pensaram nisso... Entretanto, & acerca disso que 6 exi- gido que introduzamos em nossa operacdo esse algo que leve em conta este elemento intercalar que seguramente poderemos apre= ender através de uma articulagio légica; porque se esperam apanhé= To na realidade, assim em algum canto, sera sempre logrados, precisamente porque a realidade, camo todos sabem, 6 construida sobre 0 seu eu (je), sobre o sujeita do conhecimento, ¢ ela é precisa~ mente construfda para fazer com que vocés nao 0 encontrem ja~ mais ‘Apenas nés, como analistas, é 0 nosso papel. Nos, nds temos o recurso. 192 6, x Notas do Tradutor Joguor -latim, falar, dizer. meditor - latimn, meditar, exercitar-se, ou em sentido figurado, preparar, maquinar. freqtientativo - verbo que exprime agio repetida ou freqiiente. rébus-jogo depalavras, enigma, porsignos cujosnomesoferecem uma analogia, no plano do som, com a solugao que se sugere.Um exemplo de rébus na lingua francesa ab i 2 cuja solugdo é: “Grand Abbé plein d’appetita traversé Paris sans souper”. Wiederholungszwang - compulsio a repetigao, fator referido as pulséesecentralna obradeFreud“AlémdoPrinefpiodoPrazer”, de 1920. Esse “que” foi acrescentado pelo tradutor. A frase no original parece conter uma lacuna, O que o corte mediano na banda ou faixa de Moebius engendra é uma faixa em formade umanel, que nfo € uma banda de Mocbius, ic, que tem duas faces ndo continuas. hipokeimenon - sujeito. Em Aristételes € usado tanto como suporte dos atributos, quanto como tema de uma definigo ou ciéncia. ousia - ser. Em Aristételes, no texto “As Categorias” consta de uma lista dosdez predicados supremos, enesse contexte costma ser traduzido por “substincia”, tradugio é contestada por Lacan. 198 Seminario de 6 de marco de 1968 P Euniio conhego tudo U Eu ignoro tudo da poesia PI don't know everything Ul don’t know anything about poetry Escrevi “eu ndo conheco” e “eu ignoro”. Esse “eu no conhe- 0” eesse “eu ignoro”, eu os confronto com algo que vai me servir de base, “da poesia”. Para maior rigor, digo que postulo que “eu nao conhego” equi- valea “eu ignoro”. Admito, coloco que a negaco esta inclufda no termo “ignoro” . Claro, de uma outra vez poderei voltar ao ignosco e ao que ele indica, muito precisamente na lingua latina, de onde ele nos chega. Mas logicamente postulo hoje que os dois termos sao equivalentes. E a partir dessa supesigao que a seqiiéncia vai tomar seu valor. Escrevo duas vezes a palavra “tudo”. Sao efetivamente equi- valentes. O que resulta disso? Que, pela introducéo, duas vezes repetida nesses dois niveis, desse termo idéntico, obtenho duas proposig6es de valor essencialmente diferente. Nao éa mesma coisa dizer “eu no conhego tudo da poesia” ou “eu ignoro tudo da po- esia”. De uma a outra ha uma distancia. Digo logo, jé que € neces- 195 sério para esclarecer onde quero chegar, éna distingao significante (quero dizer, enquanto podendo ser determinada por procedimens tos significantes) entre o que se chama uma proposi¢ao universal, para usar a expresso com Aristételes, e alids também com tudo 0 que perdurou de l6gica desde ent4o, e uma proposicao particular, Onde estar entao 0 mistério, se esse significantes sao equi valentes termo 2 termo? Digamos que o estabelecemos aqui por convengio; repito, ndo é sendo um escripulo acerca da etimologia do “eu ignoro”. “Eu ignoro” quer dizer exatamente o que quer dizer no caso: eu nao sei, eu nao conheco. Como é que isso resulta em duas proposigdes, das quais uma se presenta como referida a um particular desse campo da poesia (hd af dentro algo que nao conhego, nao conhego toda a poesia), e essa proposicao realmente universal, ainda que negativa: de tudo o que é do campo da poe- sia, nao conhego nada, nao tenho a menor intimidade (0 que é 0 caso mais comum)? ‘Vamos nos contentar com isso que nos introduz, de imediato, na especificidade de uma lingua positiva, na existéncia particular do francés que, como nos mostraram em seu tempo pessoas muito sébias, apresentz a duplicidade dos termos onde se apéia a nega- Go, a saber, que o “ne” que parece o suporte suficiente , necess4- rio e suficiente & funcao negativa, se apdia, aparentemente se reforca, mas talvez afinal se complique por esta adjungéo de um termo (adjuntivo, como se diz) que apenas o uso da lingua nos permite ver para que ele serve. A esse respeito tenho que citar, margem, um colega psicanalista e eminente gramatico de nome Pichon que, na obra que elaborou com seu tio Damourette sobre a gramética francesa, introduziu consideragdes muito bonitas, na li- nha do que era seu método e seu procedimento, com relagéo ao que ele chama a funcao predominantemente discordancial do “ne” e predominantemente forclusiva do “pas” Acerca disso, hé coisas muito sutis e sortidas de todo 0 tipo de exemplos, tomados a todos os niveis emuitobem escolhidos, mas sem estar, acho, no eixo que pode ser de uma verdadeira importéncia, pelo menos para nés. ‘Como essa importancia é determinada para nés, é 0 que farei com que entendem a seguir; pelo menos, assim espero. Por agora, referindo-me simplesmente a essa especificidade da lingua fran- 196 , quero apenas tomar como apoio algo que, se ocorre em nossa lingua, deve também ocorrer em outras. Poderfamos levantar 0 nte: se o resultado deste enunciado estivesse, por exemplo, ligado ao fato de que pudéssemos agrupar 9 “nao tudo” (pas tout)!, nesse caso o sentido da frase retornasse, de alguma forma tor- nando supérfluo e permitindo elidir 0 “ne”, como acontece na con- versac&o familiar (no digo suprimir, mas elidir, prender o “ne” ha garganta: “j’connais pas tout” com o “pas tout” junto), isso se~ ria a nao separabilidade da negac&o que poderiamos chamar in- clusa no termo “eu ignoro” (j'ignore). Ai estaria 0 truque, e todo mundo ficaria bem satisfeito. Nao vejo porque nao nos satisfaria- mos com esta explicagao se 86 se tratasse, claro, de resolver este pequeno enigma; é esquisito, mas enfim, talvez isso néo vé tio longe quanto parece. Vai mais longe, como tentaremos demonstrar referindo-nos a uma outra lingua, a lingua inglesa, por exemplo. Tentemos partir de algo que corresponde, como sentido, & primeira frase: I don’t know everything about poetry, e A outra frase: I don’t know anything about poetry. Considerando as coisas expressas nessa outra lingua, entre- tanto, que vai surgir é que para produzir esses dois sentidos, equivalentes a diferena entre os dois primeiros, a explicacdo que evocamos ha pouco, da conjungao dos dois significantes juntos, vai estar obrigatoriamente invertida, pois esse bloqueio do “pas” com 0 termo “tout”, no primeiro exemple, se encontra aqui reali- zado -ao nivel significante - no que corresponde a segunda articu- lac&o, a segunda proposigao, a que qualificamos de universal. “Anything”, como todos sabem, esta ai, com efeito, como eq valente de “something”, algo que se transforma em “anything” na medida em que intervém a titulo negativo. Como conseqiiéncia, nossa primeira explicacao nao é plenamente satisfat6ria, pois é por algo de completamente oposto, é por um bloqueio feito ao nivel da segunda frase, a que realiza a universal, no caso, que se prodwz esse bloqueio, esse distanciamento aliés ambiguo, 0 “don’t” nao desaparecendo para obter esse sentido: eu nao arranho em nada a poesia. 197 Pelo contririo, ¢ la onde “everything” se encontra reunido com o “I don’t know”, que se realiza o primeiro sentido. Isso é bem de molde a nos fazer refletir sobre algo que nao interessa a nada menos, como jé disse a voces, arriando minhas cartas, do que ao mistério das relacdes do universal e do particular. ‘Tentaremos dizer mais adiante qual era a preocupacao fun damental daquele que introduziu esta distingao na histéria, a sa~ ber, Aristételes. Todos sabem quo, sobre esse tema da vertente em que é pre- ciso tomar esse dois registros do enunciado, produziu-se uma es- pécie de pequena revolugao do espirito, aquela que jé rotulei varias vezes de “introdugio dos quantificadores”. Talvez haja algumas pessoas aqui (adoro pensar isso) para quem isso nao signifique apenas cécegas nas orelhas. Mas tam- bém deve haver muitos para quem isso nao é nada mais do que 0 antincio que fiz de que falarei disso, a um certo momento, e Deus sabe como... Serd bem necessario que lhes fale disso pelo ponto em que nos interessa, 0 ponto em que estou, o ponto, portanto, onde achei que isso podia nos ser vitil. Quer dizer que no posso dar a vocés toda a histéria, todos os antecedentes, como isso surgiu, emergit, se aperfeicoou e como (no final das contas, é preciso que eu me limite a isso) é pensado por aqueles que o utilizam. Como saber? Pois nao é nada certo, por se servirem disso, que eles 0 pen- sem, quero dizer, que situem de alguma forma o que sua maneira utilizé-lo implica ao nivel do pensar. Entio, serei forgado a partir da forma pela qual ewo penso, a0 nivel em que acho que interessa a voces, quer dizer, em que isso pode nos servir para alguma coisa. Em Aristételes, tude repousa sobre o seguinte, que esta de- signado em algo que é um signo, o que ele acredita poder se per- anilir. Ele se permite operar assim, a saber, se ele disse que “todo homem ¢ um animal”, ele pode para qualquer fim util, se achar que pode servir para algo, extrair disso: “algum homem é um ani- mal’. E 0 que nés chamaremos (nao é exatamente o termo que ele utiliza), j4 que se trata de uma relagdo que se qualificou de subal- 198 lerna entre a universal ¢ a particular, uma operagio de subal- ternagao. Provavelmente terei que fazer, mais de uma vez, alguma ob- servagdo sobre o fato, sobre a forma pela qual nos repisam os ouvi- dos com “o homem” nos exemplos, nas ilustragSes que déo os logicos de suas elaboracdes, o que, sem diivida, nao deixa de ter um valor sintomético. Podemos comecar a suspeitar disso em toda a medida em que fizermos a observacaio de que talvez nio saiba- mos to bem o que é 0 homem. Enfim, isso nos levaria.. ‘A questo dle saber se dois conjuntos, diz-se em nossos dias, podem ter algo de comum, é uma questo séria que leva a toda uma revisdo da teoria matematica. Pois, afinal, nés podemos mui- to bem, desde o prinefpio ¢ sem nos debater em vao, ouso dizer, como nosso amigo Michel Foucault, dando a absolvigao a um humanismo jé hé tanto tempo esgotado, que ele se vai com a cor renteza sem que ninguém saiba onde chegou, como se isso ainda fosse um problema e como se estivesse af o essencial da questo relativa ao estruturalismo; passemos... digamos simplesmente que, logicamente, podemos reter aqui apenas a tinica coisa que nos importa, ou seja, se falamos da mesma coisa quando dizemos (digo, logicamente) “todo homem 6 um animal” ou “todo homem fala”, por exemplo. A questio de saber se dois conjuntos, repito para voces, podem ter um elemento comum, é uma questiio muito seri- amente levantada, de vez que ela suscita o seguinte: em que con- siste 0 elemento, se 9 proprio elemento nao pode ser (6 0 fundamento da teoria dos conjuntos) nada além de algo a propési- to. do que vocés podem especular exatamente como se fosse um conjunto; é af que comega a despontar a questo, mas deixemos. Voces sabem que a patria ¢, ao mesmo tempo, a realidade mais bela, e que 6 ébvio que todo francés deve morrer por ela, claro! Mas, a partir do momento em que voeés subalternam para saber se algum francés deve morrer por ela, me parece que devem perceber que a operacao de subaltenagao apresenta algumas difi- culdades, j& que “todo francés deve mozrer por ela” e “algum fran cés deve morrer por ela”, nao so absolutamente a mesma coisa! Sao coisas de que nos damos conta todos os dias. 199 Af é que notamos o que arrasta de ontologia, quer dizer, de algo que € um pouco mais do que era seu objetivo ao fazer uma légica, uma légica formal, o que sua légica ainda carrega de ontologia. Evito, asseguro a vocés, muita digressao, gostaria que nio perdessem meu fio... Vou introduzir de chofre, por um procedimento de oposi¢ao, evidentemente um pouquinho cortante... Eu me rejubilo, talvez erradamente, mas habitualmente ha um eminente légico aqui na primeira fila, eu 0 olho sempre com o canto do olho para ver quan- do vai protestar. Ele nao esta aqui hoje, nao creio vé-lo, isso me reassegura por um lado, por outro me aborrece, adoraria saber 0 que ele me diria disso no final. Habitualmente, ele me aperta a mao e me diz que esta totalmente de acordo, o que sempre me faz um grande bem. Nao absolutamente que eu tenha necessidade de que ele me diga para saber naturalmente para onde vou, mas to- dos sabem que quando nos aventuramos em terrenos que nao sio propriamente os nossos, estamos sempre sujeitos a - panpam! Quanto a mim, claro que nao é invadir terrenos que nao sao 0s meus 0 que me importa, mas sim encontrar, ao nivel da légica, algo que seja para vocés um exemplo, um fio, um guia exempli- ficador das dificuldades com as quais temos que lidar, nés, aque- les em nome de quem Ihes falo, aqueles também a quem eu falo (e essa ambigitidade ¢ af essencial), ou seja, os psicanalistas, com re~ lagéo a uma ago que diz respeito a nada menos e nada além do que ao que tentei definir para vocés como o sujeito. O sujeito nao é ohomem. Se hé alguém que nao sabe o que é 0 homem, sao exata- mente os psicanalistas. E inclusive todo o seu mérito colocé-lo ra- dicalmente em questo, digo enquanto homem, enquanto essa palavra ainda tenha mesmo uma aparéncia de sentido, para quem quer que seja. Agora passo para o nivel da légica dos quantificadores, e me permito, com esse lado buldozer que emprego ocasionalmente, indicar que a diferenca radical na maneira de opor 0 universal a0 particular, na logica dos quantificadores, reside no seguinte (natu= ralmente, quando vocés abrirem os alfarrabios a respeito, reencon= traro 0 que digo a vocés; certamente poderdo ver que isso pode 200 wor abordado de mil outras formas, mas o essencial é que vejam {jue isso é 0 fio principal, ao menos para o que nos interessa), que \\ universal, pelo menos afirmativa, deve se enunciar assim: “nao ha homem que nao seja sabio”. ‘Afesté (creiam-me por um instante, o importante é que vocés possam seguir o fio para ver onde quero chegar, que da a Srmula a universal negativa), o que em Aristételes se articularia “todo o homem é sabio”, enunciado trangiiilizador, que, alids, ndotem por ‘yora nenhuma espécie de importéncia. O que nos importa é ver jue vantagem podemos encontrar em articular de outra forma esse enunciado. Poderao af observar, de imediato, que esta universal afirma- liva vai colocar em jogo para se apoiar nada menos do que duas negagdes. importante que vejam em que ordem as coisas vao se upresentar. Coloquemos a esquerda as formas aristotélicas, uni- versal afirmativa e negativa; sao as letras A e E, que as designam na posteridade de Aristételes. As letras I e O sdo as particulares, I vendo a particular afirmativa. A E I ° “Todos os homens sao sabios”, “algum homem é sébio”.Como » poder expressar, em nossa articulagao quantificadora, “algum. homem é sdbio”? Tinha dito inicialmente “nao homem que nao ja sabio”. Articulamos agora “existe homem que seja sébio” ou homem que seja sdbio”, mas esse “homem” que ficaria suspenso ho ar, nés 0 apoiamos como convém com um “existe” (ii est), do mesmo modo que “nao homem que nao seja sébio” é “nao existe homem que nao seja sabio". Mas vocés observam também que hé o “nao” a mais, ao nivel do “nao seja sabio”. Para que faca sentido, é preciso que isso seja {que seja sAbio” Ou, se desejam articular ainda “existe homem tal que ele seja sébio”. Esse “tal que” nao tem nada de abusivo pois vocés poderao também colocé-lo ao nivel da universal “no existe homem tal que ele nao seja s4bio” 201 Portanto, para fazer o equivalente de nossa subalternagio aris totélica, tivemos que apagar duas negacées. Isso é muilo interes sanle porque podemos ver de safda que um certo uso da dupla negacdo nao é absolutamente feito para se resolver em uma afit= magao, mas justamente para permitir, segundo o sentido no qual essa dupla negago seja empregada, seja que a acrescentemos, seja que a retiremos, para assegurar a passagom do universal ao parti- cular. Isto 6 surpreendente e estd destinado a nos levar a indagar 0 que é preciso dizer para que, em certos casos, nés possamos assi- milar a dupla negagao ao retorno ao zero, quer dizer, ao que havia como alirmagao no inicio e, em outros casos, encontremos esse re- sultado. Mas vamos continuar nos interessando pelo que nos oferece como propriedade isso de que partimos como funcionamento, que destacamos, porque é legitimo, porque € ao que isso responde: operacéo quantificadora. Retiremos apenas uma negacao, a pri- meira : “existe homem tal que cle nao seja s4bio”. Ai também eu particularizo, e de uma forma que corresponde a particular nega- tiva. Eo que Aristételes chamaria “algum homem nao 6 sabio” (n'est pas sage) Na verdade, em Arisiételes, esse “nao sdbio" (pis sage) -n&o mais de subalternacéo mas de subalternagao oposta, que & diago- nal, oposicao de A a O, de “todo o homem é sabio" a “algum ho- mem nio € sibio” - é 0 que ele chama “contraditéria”, O.uso da palavra contradigao nos interessa, a nés, 08 analis- tas, tanto mais que, como no tiltimo seminario fechado 0 Sr. Nassif Jembrou, é um ponto inteiramente essencial para os psicanalistas que Freud Ihes tenha produzido uma vez essa verdade. segura- mente primeira, de que o inconsciente nao conhece a contradigio. O tinico inconveniente (nunca se sabe que frutos daré 0 que vocés enunciam como verdade, sobretudo primeira) é que isso teve como conseqiiéncia que os psicanalistas, a partir desse momento, se acreditaram de férias, por assim dizer, com relagio a contradi- so, ¢ ao mesmo tempo acreditaram que isso Lhes permitiria, a eles mesmos, nada conhecerem disso, quer dizer, nao se interessarem em nenhum grau. E uma conseqiiéncia manifestamente abusiva. ane Niio 6 porque o inconsciente (mesmo se fosse verdade) nao conhe- ce a contradigéo, que os psicanalistas nao terao que conhecé-la, mesmo que seja apenas para saber porque ele nao a conhece, por plo! Enfim, observemos que “contradigao” merece um exame mais ajento, que naturalmente os I6gicos fizeram hé muito tempo, e que algo completamente diferente falar de contradigio ao nivel do principio de contradicao, a saber, que A nao poderia ser nao A, do mesmo ponto de vista e no mesmo lugar, e 0 fato de que nossa particular negativa nao seja aqui contraditéria. fi verdade, ela é. Mas voeés notam que na vertente “existe homem tal que cle nao a sabio”, eu a trago, com relagdo a formula que nos serviu de ponto de partida, fundada sobre a dupla negacao, eu a trago ape- nas A posicao de excecao, Claro, a excecao nao confirma a regra, contrariamente ao que se diz correntemente e que concilia todo 6 mundo, Ela simples mente a reduz ao valor de regra sem valor necessério, quer dizer, a reduz ae valor de regra; é a propria definigao da regra, Agora vocés comecam a ver quantas coisas podem ter inte- vesse para ns. Apelo ao meu auditério psicanalitico, para que néo se entedie muito. Vocés véem o interesse dessas articulagdes que permitem matizar coisas tao interessantes como esta, por exem- plo, que nao éa mesma coisa dizer (foi por isso que fiz esta distin- io ao nivel da contradigao) “o homem 6 nao mulher” - ai, claro, dir-se-d que o inconsciente nao conhece a contradic&o. Mas isso nao é absolutamente o mesmo que dizer (universal) “néo existe homem (trata-se do sujeito, claro) que ndo exclua a posigio femini- na, a mulher” ou (0 estado de excegao e nao mais de contradicéo) “existe homem tal que ele nao exclua a mulher”. Isso pode mostrar-lhes o interesse dessas pesquisas logicas, 0 que pode haver ai de mais manejavel, mesmo no nivel em que 0 psicanalista se acredita (coisa que bem merece, com o tempo, se chamar obediéncia) obrigado a manter o olhar fixado nohorizonte preverbal. Nés, pelo contrario, continuaremos nosso pequeno caminho, fazendo uma experiéncia. exer 203 “Existe homem tal que ele ndo seja sabio” (il est homme tel qu'il ne soit sage), falei. Vocés puderam observar que prescindi- mos do “pas” até agora. Vejamos o que isso vai fazer: “existe ho- mem tal que ele seja (por exemplo) nao sdbio” (il est homme tel qu’ il soit pas sage). Nao ha inconvenientes, isso quer dizer a mes- ma coisa: hd sempre os que nao sao sébios. Melhor desconfiarmos, esse “nao sabio” (pas sage) poderia efetivamente nos servir de passagem para algo de um pouco ines- perado... Se recolocamos 0 “nao” (ne), isso ainda vai: “existe homem, tal que ele nao seja sabio” (il est homme tel qu'il ne soit pas sage), isso ainda passa Tomando 0 “ado sdbio” (pas sage), voltemos em diagonal a A, universal afirmativa de Aristételes, e a locucao quantificadora serd: “nao ha homem tal que ele nao seja nao sébio” (pas d’ homme tel qu'il ne soit pas sage)’. De repente isso faz um sentido estranho, éa universal negativa, eles sao todos nao sébios! O que é que ocorreu? Esse “nao” (pas), que era perfeitamente toleravel ao nivel da particular negativa, se o acrescentamos ao que, inicialmente, era a universal afirmativa, que parecia inteira- mente designada para também toleré-lo, com esse “nao” (pas), eis que ela vira para o negro’ e nao sei que cor, no soneto de Rimbaud, para E; mas, ao nivel aristotélico, é negro, é a universal negativa, eles sao todos nao sdbios. Direi logo o ensinamento que vamos tirar disto, Evidentemen- te isso é algo que nos faz apreender que a relaco entre os dois “nao”, tal como ex'ste na estrutura fundamental da universal afir- mativa quantificada, que esta formula: “nao existe nada quenao” (il n’est rien qui nz), tem qualquer coisa que se basta, e temos a prova disso na liberagao desse “nao” (pas) que, inofensivo em ou- tros lugares, aqui, de repente, transforma uma universal em outra. E 0 que nos permite avancar uma distingao, e afirmar que a operagao quantificadora, quando a pomos em sua funcao diretiva, funcdo de regime da operacdo légica, distingue-se da légica de Aristételes pelo fato de que ela substitui o lugar onde a ousia, a esséncia, 0 ontolégico nao é eliminado, o lugar do sujeito gramati- cal, pelo sujeito que nos interessa enquanto sujeito dividido, a sa- 204 ber, a pura e simples divisdo como tal do sujeito enquanto fala, do sujeito da enunciacao enquanto distinto do sujeito do enunciado. ‘Aunidade onde se apresenta essa presenga do sujeito dividi- do, nao é nada mais do que esta conjungdo de duas negagées e, além disso, ela é que motiva que para apresenté-la, para articulé-la ante voces, quer tenham a observado ou nao - mas é tempo que se observe -as coisas nao iam sem o empregode um subjuntivo: “Nao existe nada que nao seja” (il n’est rien qui ne soit) sabio ou nao sabio, tanto faz. E esse “seja” que marca a dimensao desse desliza- mento do que se passa entre esse dois “rao” e é precisamente ai que vai jogar a distancia que sempre subsiste da enunciacao ao nunciado. Portanto, nao foi a-toa que, hd algumas sessdes, dando o pri- meiro exemplo do que € a formulagao de Peirce, eu os fiz notar verdadeiramente que, nessa exemplificagao que mostrei desses pequenos tracos repartidos, bem escolhidos, em quatro casas, 0 que constituia o verdadeiro sujeito de toda universal, era essenci- almente o sujeito enquanto é, essencialmente e fundamentalmen- te, esse “nao sujeito” (pas de sujet) que ja se articula em nossa forma de introduzi-lo: “nao homem que nao seja sébio” (pas d’homme qui ne soit sage). E dificil manter-se sobre esse fio. Muito exatamente, a teoria é certamente feita para eliminé-lo. Quero dizer que 0 que nos inte- ressa 6 que a teoria dos quantificadores, se n6s a articulamos, nos forca a descobrir af esse relevo e essa fuga irredutivel que faz com que nao saibamos onde desliza o nervo propriamente instituinte do que, a principio, parece apenas negagao repetida e que é, a0 contrario, negacao criadora, de vez que é dela que se instaura a tinica coisa verdadeiramente digna de ser articulada no saber, ou seja, a universal afirmativa, o que vale sempre e em todos 0s casos, 86 isso nos interessa. f assim que vocés verao formulado, pelos légicos da quantificacdo, que nés poderemos fazer a equivaléncia do que é expresso por um V, a saber, o valor universal de uma proposicao escrita tal queV x Fx... Devemos escrevé-lz nos termos algebrizados da légica simbélica, a saber, que esta verdade universal vale para todo x, que x funcione na fungdo Fx. A saber, no caso da fungio de 205 ser sdbio, por exemplo, que o homem ser um x que estaré sempre em seu lugar, nesta fungao. A transformagio que nos é dada como valida na teoria dos quantificadores se representa assim: por x, esse sendo o simbo- Jo que especifica para nés a quantificacao, a existéncia de um x, de um valor x tal que satisfaca a fungao Fx; e nos diréo que o WxFx pode ser traduzido por um -Alx , a saber, que nao existe x que seja tal, que jogue a funngdo Fx pelos ares. -Ax - Fx. Em suma, nao é verdlade que a conjuncdo desses dois sinais menos (e ¢ precisa~ mente algo que vem a recobrir a forma articulada, “lingua- geiramente” matizada, pela qual avancei) seja suficiente para simbolizar a mesma coisa, pois esta bem claro que por mais que eles sejam “menos” na simbolizacio légica, esses dois “menos” nao tém o mesmo valor, que nao existe x que, futi levaco a colocar, faca ir pelos ares, ou seja, tome falsa a fungio Fx. Simbolizei esses dois termos, o da nao existéncia c 0 do efeito, que se soldam pela falsidade da fungao; nado sao da mesma ordem. Mas é precisamen- te disso que se trata. Hi de mascarar algo que ¢ justamente a fissura - para nés, totalmente essencial a determinar e fixar em seu plano - que éa distancia do sujeito da enunciacao ao sujeito do enuncia- do, como mostrarei ainda, por exemplo, ao nivel de outros auto- es, a propésito de uma outra forma de dar uma imagem da fungao que seja mais manejavel ao nivel de sua aplicagdo propriamente predicativa, pois na verdade, Fx pode designar toda a espécie de coisas, inclusive toda a espécie de formulas mateméticas que pos- sam aplicar af. Hi a formula a mais geral. Ao contririo, se querem ficar a0 nivel do meu “todo o ho- mem é sdbio”, eis a frmula: (A v 8) com o signo de disjungio v, que pus no quadro da outra vez, formula A qual, segundo os légi cos que introduziram a quantificacao, bastaria juntar o 11 do Ma ou oF para fazer dela uma proposicao universal ou particular: Th vs) e que quereria dizer que, em suma, isso com que temos a ver 6 com a disjungao entre niio homem e esse §; isso quer dizer que se escolhemos 0 contrério do do homem, quer dizer o homem, te- mos a disjuungdo: ele é sAbio, seja em todos os casos, seja em certos casos pariiculares. Se tomamos a negagéo do sAbio, quer dizer, se renunciamos 40 sabio, estamos do outro lado da disjungao, a saber, do lado do hao homem,; isso, até este ponto, ainda vai. Mas isso absolutamen- te nao implica a exigéncia do nao sdbio para que nao é homem. Ora, isto nao esté indicado na férmula. Seria necessario para isso (ue a disjuncao fosse marcada, por exemplo, assim IT(B v s), por- tonto um signo que seria o inverso daquele da raiz quadrada. Isto ( destinado a nos mostrar que, com relagio A implicacao, se nbs sabemos, em suma, aqui no nivel do universal, que homem impli- ca sabio, que nao sabio certamente nao implica homem, mas que sibio é perfeitamente compativel também com nao homem, ou seja, que pode haver algo de diferente do homem que seja sAbio, isto est elidido na maneira de apresentar a férmula crua da disjungio entre um sujeito negativizado e o predicado que nao 0 6 Ponto também onde demonstramos que no sistema dito da clupla negagao - expresso nesta inscrigao que é a de Mitchell - algo deixa sempre escapar qualquer coisa que, dessa vez, longe de suturar a fissura, a sua revelia a deixa hiante, confirmacdo de que se trata sempre de fissura. Em outros termos, em relagao & Iigica, entenda-se formal, 0 problema é sempre saber o que se pode extrair, e até onde, de um caunciado, ou seja, obter um enunciado fidvel. Sem diivida, foi dat que Aristételes também partiu, Aristoteles, claro, ndo diremos que ele estava na aurora do pensamento, porque o préprio do pensamenta é precisamente ja- mais ter tido aurora. O pensamento jé era muito velho, ¢ ele ja possula algum saber. Em particular, ele sabia que, claro, nem se tratava de saber se havia linguagem - nao basta, claro, que o saber 86 dependa da linguagem. Mas quanto a ele, o que importava, jus- lamente porque o pensamento n&o datava de ontem, era saber 0 que podia fazer de uma enunciacao algo de necessario, sem possi- bilidade de ceder neste ponto. A primeira ananké é a ananké do discurso. A logica formal de Aristételes era 0 primeiro passo para sa- ber o que propriamente, e distinto como tal ao nfvel do enunciado, podia ser formulado, atribuindo a esta fonte (0 que nao quer dizer que fosse a tinica, claro) a necessidade da enunciagio; quer dizer 207 que ai nfio hd meio de recuar. Da mesma forma, o sentido que tinha nesta época 0 termo epistemeé, o de wna enunciacao sobre & distingdo entre epistemée doxd', no é nada mais do que uma distingio que se situa no nivel do discurso. E sua diferenga em relacao ao que é a ciéncia para nés, indo no mesmo sentido, a saber, de um enunciado estritamente fidvel. Especialmente para nés, é certo, que temos elaborado algumas produgoes inéditas relativas a0 que é 0 enunciado e, por outro Jado, apenas no dominio das matemidticas, essas leis do enuncia- do para ser fidveis se tornaram, e ainda se tornam a cada dia, mais € mais exigentes ¢, a este titulo, nao deixam de demonstrar seus limites. Quero dizer que é em toda a medida em que fizemos al- guns passos em légica, entre os quais, claro, o que eu aqui repre~ sento para vocés, mas que 6 0 passo original que nos interessa, Por que? Porque é aquém dessa tentativa de captura da enuncia- cao pelas redes do enunciado que nés, analistas, nos encontramos ~ mas que sorte que o trabalho tenha progredido tanto allures, se por af pode ser que se entreguem para nés algumas regras para bem determinar a fissura Quando enuncio que o inconsciente é estruturado como uma linguagem, isso nao quer dizer que eu o saiba, jé que eu o comple- to propriamente com esse “se” (on, que enfatizo, e que dé vertic gens no conjunto dos psicanalistas, é que nao se sabe nada (on ‘en sait rien),""Se” ,0 sujeito suposto saber, aquele que deve estar sempre ld para nos dar sosségo. ‘Nao € portanto que eu 0 saiba, se o enuncio é porque o meu Giscurso ordena, com efeito, o inconsciente. Digo que 0 tinico dis- curso que temos sobre o inconsciente, o de Freud, cerlamente faz sentido, mas ndo é isso que é importante, porque ele faz sentido como se faz Agua: por todos os lados. Tudo fez sentido, jé mostrei para vocts. “Colourless green ideas sleep furiously’® faz. sentido também. E inclusive a melhor caracterizago que se pode dar do conjunto da literatura analitica. Se esse sentido em Freud é tao ple- no, tao ressoante com relagiio ao que esta em causa, o inconsciente e, em outros termos, se distingue de tudo © que ele rejeitou de antemao como ocultismo, se todos sabem e sentem que nao é de ‘Mesmer - é por isso que subsiste, malgrado o insensato do discur= 208 ww analitico - 6 um milagre que s6 podemos explicar indiretamen- \c,a saber, pela formagao cientifica de Freud, O importante, nesse discurso, nao é seu sentido. E preciso primeiramente que ele exista, para que minha afirmacao“o incons- ciente é estruturado como uma linguagem”, tenha sua referéncia, ua bedewtung’. Ai que se percebe que a referéncia é a lingua- em. Em outros termos, tudo o que meu discurso articula em rela- gio ao de Freud sobre o inconsciente, desemboca em formulas somorfas as qué se impdem, quando se trata da linguagem toma- ia como objeto. O que esté em questdo é o isomorfismo imposto a meu discurso pelo inconsciente, concernente ao inconsciente, com relagéo ao que € do discurso sobre a linguagem, e que faz com que odo psicanalista deva ser tomado nesse discurso, uma vez que se engaje neste campo definido por Freud para o inconsciente. A partir dai, antes de deixé-los, podemos apenas dar algu- mas pistas destinadas a que vocés nao percam a cabeca neste as- sunto. Espero que 0 que acabo de dizer, com relagao & formula “o inconsciente é estruturado como uma linguagem", guarde afinal seu valor de ponto de inflexao para aqueles que a ouvem ha muito tempo, como também para aqueles que se recusam a ouvi-la. Claro que nossa ciéncia, a que éa nossa, nao se define somen- le por essas coordenadas pelas quais nao hé saber senao pela lin- guagem. Resta entretanto quea prépria ciéncia s6 se pode sustentar pela reserva de um saber puramente lin gwageiro, a saber, por uma logica cujo instrumento ¢ estritamente matematico, e que todos podem pereeber que os impasses propriamente linguagetras onde a todo instante a coloca esse progresso do instrumento matemati- co, enquanto ele ao mesmo tempo acolhe e é acolhido por cada campo novo dessas descobertas factuais, 6 um motor inteiramente cssencial a ciéncia modema. Logo, continua havendo todo um nivel em que o saber é de linguagem endo é bobagem dizer que esse campo é propriamente lautolégico, que estd na prépria origem do que constituiu 0 ponto dle partida da ciéncia, a saber, uma tomada de medida da clivagem assim definida no discurso por wma ascese légica que se chama 0 cogito. Essa ascese um signo que pude desenvolver o suficiente para nela fundar a légica da fantasia, aquela cujas articulacdes fo- 203 ram, devo dizer, muito bem isoladas na tiltima vez, no seminério fechado, por um dos que trabalham aqui no campo de meu discur- s0. Nao se trata, como ele disse, ¢ como disse de uma forma legi- tima na perspectiva do que tentava trazer como resposta a esse discurso, de uma nova negagio que seria produzida por mim. Deus me livre de dar ainda a quem quer que seja, com a introdugao de uma novidade, a oporkinidade de escamotear o que est em ques- tdo, que é bem todo o contrério desse algo que se tapa, pois é algo. de “intapavel”. Queira Deus que eu nao dé ao psicanalista uma renovacio de Alibi, pelo fato de que ele tem que ser no discurso. analitico, a saber, no sentido proprio e aristotélico, seu vrozeiuevow™, seu suporte subjetivo, certamente, mas enquanto ele mesmo assuma a divisio. Notas do Tradutor ai Neste seminério terei que colocar entre parénteses a forma fran- ‘cosa, ap6s a traducdo, nos casos em que nao é possivel encontrar uma correspondéncia com 0 portugués. Nao possuimos dois termos para a negagdo, cortespondentes 20 e e a0 pas, por exemplo, que Lacan explora longamente neste semindrio 2 A Universal positiva “pas d’homme tel qu'il ne soit sage”, que estd subentendida no pardgrafo, com o acréscimo da negacaa “pas” vira uma universal negativa “pas d’homme fel qu'il me soit pas sage”. 3 Areferéncia parecesera expressio “passer du blanc au noir” ,que significa passar de um extremo ao outro, 4 Todo, cada, em grego. 5. ananké-necessidade. Termo usado em grego por Freud, em suas "Conferéncias Introdutérias”, para designar a pressao imposta pelas necessidades vitais. 6. epistemé e doxa: saber e opiniio. Essa oposigio, que remonta a 20 losofia grega, tem lugar importante em Platao. on-se, como pronome indefinido, como, por exemplo,em “sabe- se”, Vem de omo em latim, e, diferentemente do portuguds se inclui aquele que fala. colourless green ideas sicep furiously - idéias verdes incolores dormem furiosamente. Este éum exemploutilizadopor Chomsky para distinguir as nogdes de gramaticalidade e sentido. Segundo ele, isto seria uma frase gramatical e sem sentido. Em 69, no semindrio “Problemas Cruciais da Psicandlise”, Lacan comenta 0 exemplo, discordando de Chomsky edefendendo que toda frase gramatical tem algum sentido, que escapa a consciéncia. bedettung - significacéo, sentido. hipokeimenon - sujeito a Seminario de 13 de marco de 1968. O que é ser psicanalista? E para este alvo que se encaminha o que tento dizer este ano, sob o titulo “o ato psicanalitico” Eestranho que em algumas das mensagens que me sao envi- adas, e pelas quais, j4 que as solicitei, agradeco os que tiveram a gentileza de envié-las, é estranho que as vezes surja 0 seguinte: que eu faria aqui algo de préximo a alguma reflexio filoséfica. ‘Talvez, quem sabe, uma sessao como a da ultima vez, claro, se ela nao deixou de ter aleance entre aqueles de vores que seguem me- Thor meu discurso, tenha servido para advertir 0 suficiente de que se trata de outra coisa. A experiéncia (uma experiéncia é sempre algo de que se teve recentemente ecos) prova que o estado de alma que produzido em certa ordem de estudos ditos filoséficos, € pouco compativel com toda a articulagao precisa como a desta ci- éncia que se chama a “légica". Até jd pincei neste eco, e guardei este comentario humoristico, que uma tal tentativa de inserir, para falar propriamente, 0 que se edificou como légica nisto que é im- posto pelo cursus ou 0 gradus filos6tico, seria algo de aparentado a esta ambicao de tecnacrata, cuja tiltima palavra de ordem de todas as resisténcias auriculares é acusar aqueles que, no geral, tentam produzir esse discurso mais preciso do qual 0 meu faria parte, na qualidade de estruturalismo, e que, em suma, se distin- guie por esta caracteristica comum, de tomar por objeto nao mais o a3 que ordinariamente constitui o objeto de uma ciéncia, quer dizer, algo de que se esté de uma vez por todas & distdncia sufi para isolé-lo no real como constituindo uma espécie especial, de se ocupar propriamente do que é constituide como efeito linguagem. ‘Tomar por objeto o efvito de linguagem é de fato 0 que ser considerado como o fator comum do estruturalismo. E segura: mente, a esse propésito, o pensamento encontra sua tendéncia, sua inclinagao, seu modo de escape, sob a forma de um devaneio que, precisamente em torno disso, se esforca por tomar corpo, para res tituir 0 que? Temas antigos que, a titulos diversos, sempre abun- daram em torno de todo o discurso enquanto ele é propriamente a aresta da filosofia, quer dizer, por se manter na ponta do que tem certos efeitos no uso do discurso, onde encontramos o que faz, pre- cisamente, com que este discurso chegue inevilavelmente a esta sorte de mediocridade, de inoperdncia, que deixa de fora, elimina uma Unica coisa, este efeito. Ora, é dificil ndo se dar conta de que a psicandlise oferece a uma tal reflexdo um terreno privilegiado, O que 6, com efeito, a psicandlise? Aconteceu-me frequente- mente... incidentalmente em um artigo, o que se encontra em meus, “Escritos” sob o titulo de “Variantes da Cura Tipo”, escrever algo que tive o cuidado de retirar essa manha. Interrogando sobre 0 que é psicandlise - pois justamente se tratava de mostrar como se podem definir, instituir estas variantes, o que pressupde que ha- veria algo de tipo, ¢ era precisamente para corrigir uma certa for- ma de associar a palavra “tipo” a da eficiéncia da psicandlise, que escrevi esse artigo. Portanto eu dizia incidentalmente: “Esse crité- rio raramente enunciado por ser tomado como tautolégico...” faz muito tempo, mais de dez anos, nds escrevemos: “uma psicanali- se, tipo ou néo, é a cura que se espera de um psicanalista”. “Raramente enunciado” porque na verdade, com efcito, se recua ante algo que, como escrevi, seria ndo apenas tautoldgico, ‘mas, ou bem 0 seria, ou bem evocaria esse nao sei que de desco- nhecido, de opaco, de irredutivel, que consiste precisamente na qualificacao do psicanalista. 4 Observem entzetanto que 60 que, de fato, ocorre quando que- om verificar se alguém, com justa tazio, pretende ter atravessado uma psicandlise. A quem ele se dirigiu? Esse alguém é ou nao um psicanalista? Eis o que nao 6 elucidado, na questao. Se, por alguma razio, - e as razéies sao justamente o que se deve interrogar aqui, com um grande ponto de interrogagio - 0 personagem nao esté qualificado para se dizer psicanalista,engendra-se pelo menos um ceticismo quanto ao fato de saber se a experiéncia pela qual o su- jeito se autoriza, 6 ou no uma psicandlise. Com efeito, nao ha ou- ro critério. Mas é justamente esse critério que temos que definir, cm particular quando se trata de distinguir uma psicanalise dese algo de mais vasto ¢ cujos limites parmanecem incertos, que se chama uma psicoterapia. ‘Quebremos essa palavra “psicotzrapia”. Nés a veremos defi nir-se por algo que é “psico”, psicologia, quer dizer, uma matéria da qual ominimo que se pode dizer, € que sua definigio esté sem- pre sujeita a alguma contestagiio. Quero dizer que nada é menos. evidente que o que se quis chamar de unidade da psicologia, jé que, além do mais, ela s6 encontra seu estatuto em uma série de referéncias, das quais algumas créem assegurar-se por Ihe ser as mais estrangeiras, por exemplo, o que se opde a ela como sendo organico; ou, 20 contrario, pela instituicéo de uma série de limita- ses severas que sao também as que produzirao na pratica o que serd obtido, por exemplo, em tais condicdes experimentais, em tal enquadre de laboratério, como mais ou menos insuficiente, até inaplicdvel, quando se trata desse algo de ainda mais confuso que se chama uma “terapia”. Terapia... Todos sabem a diversidade dos modos e das ressonancias que isso evoca. Seu centro é dado pelo termo “sugestao”, pelo menos de todos que se referem A ago, agio de um ser em relacao a outro, exercendo-se por vias que certamen- te ngio podem pretender ter recebido sua plena definicao. No hori- zonte, no limite de tais praticas, teremos a nogfo geral do que se chama, no conjunto, e que situamos bastante bem como “técnicas do corpo”, Entendo por isso 0 que em intimeras civilizagdes se manifesta como 0 que aqui se propaga sob a forma erratica do que, em nossa €poca, destacamos de bom grado como “técnicas india~ nas”, ou ainda as diversas formas da chamada “ioga”. No outro extremo, a assisténcia samaritana, a que, confusa, se perde nos cam= Pos, nos abismos da elevagao da alma. E estranho vé-la retomada para anunciar 0 que se produziria no final da psicanilise, essa efusdo singular que se chamaria o exercicio de alguma bondade! A psicandlise, partamos entio do que 6, até agora, nosso tini co ponto sélido, ela se pratica com um psicanalista. £ preciso en- tender aqui 0 “com” no sentido instrumental, pelo menos ett proponho entendé-lo assim. Como se da que exista algo que s6 possa se situar assim, ape- nas com um psicanalista? Segundo nos assegura Aristételes, nfo se deve dizer que “a alma pensa”, mas que “o homem pensa com sua alma’, indicando expressamente qual 6 o sentido que convém dar a palavra “com”, a saber, o mesmo sentido instrumental. Coi sa estranha, quando fiz, em algum lugar, alusio a esta referéncia aristotélica, as coisas parecem ter provocado principalmente efei- tos de confusao no leitor, sem dtivida por falta de reconhecimento da referéncia aristotélica! E com um psicanalista que a psicandlise tem acesso ao que estd em questo. Se o inconsciente existe e se nds o definimos, como pelo menos parece, ap6s a longa marcha que fazemos ha anos nes- se campo, it ao campo do inconsciente é estar propriamente no nivel do que se pode melhor definir como efeito de linguagem, nesse sentido em cue, pela primeira vez, se articula que esse efeito pode se isolar de alguma forma de sujeito; que hé saber, saber en- quanto é isso 0 que constitui 0 efeito tipo de linguagem; que ha saber encarnado, sem que o sujeito que mantém o discurso esteja consciente disso, no sentido em que aqui, estar consciente de seu saber é ser codimensional ao que o saber comporta, é ser cimplice desse saber. Seguramente, existe af a abertura a alguma coisa pela qual 0 efeito de linguagem nos é proposto como objeto de uma forma que é distinta, porque ela se edificou ao final da interrogagao tradicio- nalmente filos6fica, e que éa que nos encaminharia a uma redugio possivel, exaustivae total do sujeito, enquanto 60 sujeito que enun- cia esta verdade que pretenderia dar a tiltima palavra sobre o dis- curso, nessas formulas em que o “em si” seria por natureza destinado a se reduzir a um “para si”; que um “para si” envolve- 216 tio, a0 final de um saber absoluto, tudo o que constitui o “em si”. Que seja diferente daquilo que a psicanilise nos ensina - que 0 ujeito, por ser efeito mesmo do significante, nao se institue sendo como dividido e de uma forma irredutivel -eis 0 que nos solicita 0 tudo do que constitui o sujeito como efeito de linguagem. Saber como ter acesso e que papel af desempenha o psicanalista, segura- mente € algo essencial que seja fundado. Com efeito, se o que é do saber deixa sempre um residuo, residuo de alguma forma consti- luinte de seu estatuto, ser4 que a primeira questo que se coloca em relag&o ao parceiro - aquele que esta 4, nao digo ajudante, mas instrumento para que se opere algo que é a tarefa psicanalisante, 0 término da qual o sujeito, digamos, é advertido desta divisio constitutiva, apés 0 que, algo se abre para ele que nao se pode chamar de outra forma, nem diferentemente, do que de passagem a0 ato, passagem ao ato, digamos, esclarecida - a questao é justa~ mente saber que, como sujeito, em todo oato ha algo que Ihe esca- pa e que nele vird a incidir, e que ao termo deste ato a realizagio é, digamos por agora, pelo menos velada, do que hé a cumprir como sendo a prépria realizagao do ato Isso que 6 final da tarefa psicanalisante deixa completamente a parte o que é do psicanalista, nesta tarefa jé conclufda. Em uma espécie de interrogacao ingénua, poderiamos dizer que, descar- tando a plena e simples realizacao do “para si” nesta tarefa toma- da como ascese, seu término poderia ser concebido como um saber que seria realizado, pelo menos, para 0 autro; a saber, para o que foi o parceiro da operacdo, por ter instituido a moldura e autoriza- do o caminhar. Sera assim? E verdade que presidindo, se posso dizer, essa tarefa, 0 psicanalista aprende muito. Sera que isso significa que 6 ele que, na operacao, de alguma forma poderia se vangloriar de ser 0 auténtico sujeito de um conhecimento realizado? Minha ob- jecio a isso é precisamente que a psicanélise se inscreve em falso contra toda exaustao do conhecimento, ¢ isto ao nivel do proprio sujeito, enquanto ele esté em jogo na tarefa psicanalitica. Na psicandlise, ndo é de um yvabt ceavtov que se trata, mas precisamente da apreensio do limite deste yvu0t eavtov’, por- que este limite 6, propriamente, da natureza da propria logica e esta inscrito no efeito de linguagem que sempre 0 deixa de f Em conseqiiéncia, enquanto permite ao sujeito constituir-se cot tal, essa parte excluida faz com que o sujeito, por natureza, oub nao se reconhega sendo ao esquecer o que primeiramente 0 d minou nesta operacao de reconhecimento, ou até, ao se apret nesta determinagio, a denegue, quero dizer, s6 a veja surgir uma Verneinung’ essencial, ao desconhecé-la. Dito de outra ma, nés nos encontramos no esquema basal de duas formas. parte a experiéncia analitica, especificamente a histérica ea do. sessivo, que nao sdo mais que exemplo, ilustracio, desabro isso na medida em que a neurose é essencialmente feita da réncia do desejo a demanda. Estamos diante do proprio esquema légico que prodi para vocés na tiltima vez, mostrando a aresta do que é ‘quantificacio, a que liga a abordagem elaborada que podemos di do sujeito e do predicado, isso que aqui se inscreve sob a forma do significante recalcado $ enquanto ele é representante do sujei junto a um outro significante $*. Colocamos nesse significante 9 coeficiente A, por ser nele que o sujeito tem tanto que se reconhe- cer quanto se desconhecer, onde ele se inscreve fixando 0 sujeito em algum lugar no campo de Outro, cuja férmula é esta, 85 VS), Para todo sujeito, enquanto dividido por natureza, exatamente ai, da mesma forma que podemos formular que todo homem & sabio e que temos a escolha disjuntiva entre 0 “nao homem” eo “ser sdbio”, temos fundamentalmente que, como a primeira expe= riéncia analitica nos ensina, a histérica, em sua tiltima articulagio, emsua natureza essencial, é bem autenticamente (se auténtico quer dizer “s6 encontrar sua propria lei em si”) que ela se apoia em uma afirmagao significante que para nés faz. teatro, faz. comédia, ¢ na verdade, é para nés que ela se apresenta assim, $(5 V S*) auténtico. ‘Ninguém poderia apreender o que 6a verdadeira estrutura da his- térica sem, ao contrério, tomar como o estatuto 0 mais firme e 0 mais auténomo do sujeito aquele que se exprime nesse significan- te, com a condigao de que o primeiro, aquele que o determina, fique nao apenas no esquecimento, mas na ignorancia de esque- cer. Embora seja de forma totalmente sincera que, no nivel da es- trutura dita obsessiva, 0 sujeito extrai o significante em questdo, 218 enquanto ele é sua verdade, mas o prové da Verneinung funda- mental pela qual ele se anuncia como nao sendo justamente aquilo que ele diz, que ele confessa, que ele formula. Em conseqiiéncia, cle no se institui no nivel do predicado, mantido por sua preten- » de ser outra coisa, ndo se formula sendo em um desconheci- mento de alguma forma indicado pela prépria denegagao onde ele se apéia, pela forma denegat6ria de que esse desconhecimento se acompanha. outra versao:h Vs sincero 86 VS‘) ——> auténtico sincero Verneinung Portanto, é de uma homologia, de um paralelismo do que vem a se inscrever na escrita, onde cada vez mais se institui o que se impée pelo proprio progresso que forca um enriquecimento no discurso, enriquecimento que Ihe advém por ter de se igualar a0 que nos chega das variedades, das variag6es conceituais impostas pelo progresso da matematica. Trata-se da homologia das formas de inserigao. Fago aqui alusao, por exemplo, ao “Begriffsschrift”* de um Frege, que € escrita do conceito; voces sabem, basta abri-lo. Por outro lado, jé dei alguns exemplos quanto a escrita do concei- to, na medida em que tentamos, com Frege, essa escrita, comecar a inscrever as formas predicativas que, néo apenas historicamente, mas pelo fato que através da histéria elas se mantiveram, se ins- creveram no que se chama “Iégica dos predicados”, e légica do primeiro grau; quer dizer, que nao fornece qualquer quantificagao ao nivel do predicado. -—— Digamos, para retomar nosso exemplo (na verdade nao hé porque poupé-lo), que 0 uso que fiz na tiltima vez da universal afirmativa, totalmente humoristico: “todo o homem ¢ s4bio”, que Frege a inscreverd na sua Begriffsschrift de uma forma que coloca nos tracos horizontais o contetido simplesmente proposicional, quer 219 dizer, a forma pela qual os significantes sao soldados juntos, sem que nada seja exigido por isso, a nao ser a correcdo sintatica. Pela barra que poe a esquerda, ele marca o que se chama a implicacao, a presenga do julgamento. E a partir da inscrigao desta barra que o que € contetido da proposicao é afirmado, ou passa ao estagio que se chama assertérico. Seguramente, temos algo aqui que é preciso traduzir por um “6 verdadeiro”. Esse “é verdadeiro” 6 precisa~ mente 0 que para nés (quer dizer, no nivel em que se trata de uma légica que nao merece absolutamente ser chamada tecnicamente “logica primaria’”, pois o termo jé é empregado ao nivel das cons- trucoes l6gicas) designa precisamente 0 que s6 opera combinando 0s valores de verdade. E exatamente por isso que o que poderia bem se chamar de “Iégica primdria”, se o termo j4 nao fosse em- pregado, nés chamaremos de “sublégica”, o que ndo quer dizer l6gica inferior, mas uma l6gica enquanto constitutiva do sujeito. Para nés, esse “é verdade” esté bem no nivel em que iremos colo- car outra coisa que nao essa posigao assertérica. E exatamente aqui que a verdade, para nés, faz questao; V(Fx)-4x -(Fx) - dupla nega- do esse pequeno oco, essa concavidade, esse vazio que, de algum. modo, Frege reserva para af indicar o que iremos ver, algo que lhe parece indispensavel para assegurar a seu Begriffeschrift um esta- tuto correto. Af é que vird algo que atua na proposigao aqui inscri- ta,a titulo decontetido, “todo homem é sabio”, que iremos escrever assim, por exemplo: }_h,_sabio (h) colocando 0 “s4bio” como sendo a fungao, e aqui o homem como 0 que ele, na funcao, chama “argumento”. Para 0 manejo ulterior desta Begriffsschrift, escrita do conceito, para ele nao ha outro meio correto de proceder que nao seja o de inscrever aqui na concavida- de, e sob uma forma expressamente indicativa da funcao da qual se trata, esse mesmo “h” do homem em questo, indicando assim que, para todo “h”, a formula “o homem é sdbio” é verdadeira Nao preciso desenvolver para vocés a necessidade de seme- Ihante procedimento, porque isso exigiria dar toda a sua seqiién- cia, quer dizer, sua riqueza e complexidade. Basta que saibam que, 220 no enlace que farfamos de uma tal proposigéo com uma outra que, de alguma forma, seria sua condigao, na Begriffschrift isso se es- creveria assim: re £ que uma proposigao F tem uma certa relagéo com uma pro- posigao P, e que uma vez definida esta relagao (digo para aqueles para quem essas palavras fazem sentido) segundo o médulo do que se chama a implicagao filoniana, temos que se isto (P) é verda- deito, aquilo (F) nao pode ser falso. Dito de outra forma, para dar uma ordem, uma coeréncia ao discurso, basta excluir, e excluir apenas isso, que 0 falso possa ser condicionado pelo verdadeiro. Todas as outras combinacoes, inclusive que 0 falso determine o verdadeiro, so admitidas. ' Indico simplesmente, na margem, que ao inscrever as coisas desta forma, teremos a vantagem de poder distinguir duas for- mas de implicagao diferentes, segundo seja no nivel desta parte da Begriffsschrift, quer dizer, no nivel em que a proposicao se co- loca como assertérica, que vird se ligar a incidéncia condicional: 7-7 __incidéncia condicional ou, ao contrario, aqui: 1 no nivel da propria proposigao. Quer dizer que néo é a mesma coisa dizer que, se algo ¢ verdadeiro, nés enunciamos que 0 ho- mem é sdbio, ou que se uma outra coisa € verdadeira, € verdadei- ro que todo homem é sabio. H4 uma enorme diferenga entre as duas as coisas. Alias, isso serve apenas para indicar, na margem, e para mos- trara que responde a necessidade desse cncavo, que ¢ ao seguin- te, que emalgum lugar merece ser isolado 0 termo que logicamente, no ponto de avanco suficiente da légica em que estamos, da corpo ao termo “todo” como sendo o principio, a base a partir da qual, pela tinica operacac de negacao diversificada, poderao ser formu- ladas todas as posicdes primeiras que sio definidas, trazidas por Arist6teles. Por exemplo, é colocando a negacao aqui, sob a forma desse traco vertical, que sera para todo homem verdadeiro que 0 homem nao ¢ sbio, quer dizer que encarnaremos a universal ne- gativa. Say Se, ao contrario, dissermos assim: yp diremos que nao 6 verdadeiro que para todo homem nés possa- mos enunciar que o homem nao é sdbio. Obteremos, por essas duas negagées, a manifestagao da particular, pois se nao é verdade que para todo homem seja verdadeiro dizer que homem nao é sabio, é porque hé, portanto, unzinho perdido por ld que é. Inversamente, se nés tiramos essa negacio af e sé deixamos esta _—— nés dizemos que nao é verdadeiro que, para todo homem, 0 ho- mem seja sdbio, quer dizer que ha quem nao seja. Articulando assim as coisas, vocés percebem algum artificio, a saber, 0 fato de que a este nivel vocés sentem como artificio, por exemplo, a aparigao da tiltima particular dita negativa. Isso poe em destaque que nalégica original, a de Arist6teles, algo esté mas- carado para nés, precisamente por implicar esses sujeitos como colegio, quaisquer que sejam, quer se trate de apreendé-la em ex- tensfo ou em compreensao, e que o que é da natureza do sujeito nao deve ser procurado em algo que seria ontolégico, o sujeito fun- cionando, de alguma forma, ele mesmo como uma espécie de pre- dicado primeiro, 0 que ele nao é. ‘O que é a esséacia do sujeito, tal como aparece no funciona- mento l6gico, parte inteiramente da primeira escrita, a que coloca © sujeito como por natureza se afirmando como todo: para todo 222 h’, homem, a formula “o homem €sdbio” é verdadeira. fa partir dai, segundo uma deducdo de alguma forma inversa a que valori- wi na tiltima vez, que a existéncia aparece e especificamente a \inica que nos importa, a que sustenta a afirmativa particular: ha homem que é sdbio. Ela se suspende, e por intermédio de uma dupla negacdo, a afirmagao da universal. Como da iiltima vez, apresentando a mesma coisa (pois se trata sempre dos quantifica- dores), era 4 dupla negagao aplicada a existéncia, que eu mostrava que podia se traduzir a fungio do todo, que a funcaio V(Fx) podia se traduzir, se inverter em um -A(x), ndo existe de que tornar a fungdo F(x) falsa, quer dizer um duplo menos, -x -Fx. Essa presenca da dupla negagio é o que constitui problema para nés, j4 que na verdade, sua juno com o que constitui a fungao do todo s6 se faz de uma maneira enigmatica, pois esse fato ainda, claro, que o matiz lingufstico da funcao oposta dora ouTavtet, em grego, se oponha a funcao dood.ot, como o omnis* se opbe ao totus’; entretanto nao é a-toa que o proprio Aristételes, a respeito da afirmativa universal, a diz postulada 000200” quanto ao total”, e em francés a ambigiiidade continua inteira em razdo da confusio dos dois significantes, entre 0 que basicamente alguma relagao*, a saber, esta fungao do todo. £ claro que o sujeito, que chegamos com o aperfeigoamento da légica a reduzir a esse “ndo existe que nao” (pas qui ne) que citei da tltima vez, que esse sujeito, entretanto, se afirma, em sua pretensdo ingénua, como sendo por natureza capaz de aprender algo como todo e que 0 que faz seu estatuto e também sua mira- gem, é que ele possa se pensar como sujeito do conhecimento, a saber, como suporte eventual, por si s6, de algo que é todo. Ora, & a essa indicacao que quero leva-los. Nao sei se o dis- curso que faco hoje, o mais curto que posso, como fago sempre, depois ter preparado seus degraus muito seriamente para voces, seguindo a atengao da assembléia (ou meu proprio estado)... sou forgado, como em todo discurso articulado, e mais especialmente quando se trata do discurso sobre o discurso, de operagoes logi- cas, a tomar um atalho no momento em que ele se impée. E a isto, a saber, que na forma que jé indiquei para vocés, pela qual se insti- lui a primeira divisto do sujeito na fungio repetitiva, trata-se es- 223 sencialmente disto: é que o sujeito s6 se institui como representas do por um significante para um outro significante (Se S1) e que ¢ entre os dois, ao nivel da repeticio primiliva, que se opera ess perda, essa funcéo do objeto perdido em torno do qual precisa. mente gira a primeira tentativa operatéria do significante, a que se institui na repeticao fundamental: Sa S1__ que o que vem aqui ocupar o lugar que é dado, na instituigao da universal afirmativa, a este fator dito “argumento” no enunciado de Frege, para que a fungao predicativa seja sempre valida e, em todo 0 caso, a fung3o do todo encontre seu apoio, seu ponto de inflexao original e, se posso dizer, 0 proprio principio pelo qual se institui sua ilusao, na busca do objeto perdido, na funcao interme~ Gidria do objeto “a” entre o significante original enquanto signifi- cante recalcado ¢ 0 significante que o representa, na substituigao que instaura a repeticao, ela mesma primeira Isto nos ¢ ilustrado na prdpria psicandlise, ¢ por algo de capi- tal, pelo fato de que ela representa, encarna de alguma forma, da maneira a mais viva, 0 que constitui a funcao do todo na econo- mia, eundo diria inconsciente, na economia do saber analitico, pre~ cisamente enquanto esse saber tenta totalizar sua prépria experiéncia. Eo viés, a tendéncia, a cilada onde cai o proprio pen= samento analitico quando, ao final, por nao poder se aprender em sua operagiio essencialmente divisora com relaco ao sujeito, ele instaura como primeira a idéia de uma fusao ideal que projeta como original, mas que, se quiserem, aiua aqui em toro desta universal afirmativa que é justamente a que ele deveria problema- tizar, e que se exprime aproximadamente assim: nao ha inconsci- ente sem mae. Nada de economia, nada de dinamica afetiva, sem 0 que, de alguma forma, estaria na origem: que o homem conhece 0 todo, porque esteve em uma fusao original com a mie. Esse mito de algum modo parasita, pois nao ¢ freudiano, foi introduzido por um viés enigmatico, o do traumatismo do nasci= mento, vocés sabem, por Otto Rank. Abordar 0 nascimento pela perspectiva do traumatismo, é Ihe dar fungio significante. A coisa, 224 portanto, em si mesma, no era de molde a adulterar fundamen- talmente o exercicio de um pensamento que, enquanto pensamen- \o analitico, s6 pade deixar intacto o que esté implicado; a saber, que no titimo plano onde vem esbarrar a articulacao identificat6- via, a hiéneia permanece aberta entre o homem e a mulher, e como conseqiiéncia, na prdpria constituicéo do sujeito, néo podemos de Jorma alguma introduzir no mundo a existéncia da complementa- «ao macho e fémea. Ora, para que terd servido a introducao por Otto Rank desta voferéncia ao nascimento, pelo viés do traumatismo? Para que a coisa fosse profundamente viciada na seqiiéncia do pensamento analitico, jé que dizem que, pelo menos, desse todo, essa fustio faz com que tenha havido para o sujeito a possibilidade primitiva e portanto possivel de reconquistar, de uma unio com o que consti- tui o todo. Ea relagdo da mae com a crianga, da crianga com a mae no estagio uterino, no estégio de antes do nascimento, e aqui iden- lificamos onde esté a tendenciosidade e o erro. Mas este erro seré exemplar, porque é ele que nos revela qual é a origem desta fun- cio do todo na sujeito, enquanto ele cai sob essa fatalidade incons- ciente; quer dizer, ou ele nao se reconhece autenticamente sendo ao se esquecer, ou ele ndo se reconhece sinceramente sendo ao se desconhecer. Fis, muito simplesmente, onde esté a mola, a partir do mo- mento em que tomamos as coisas ao nivel da fungéo da lingua- gem, nao ha demanda que nao se dirjja mae. Vemos, de fato, a manifestagio disso no desenvolvimento da crianea, quando, de inicio, ele é infans e tem que articular sua demanda no campo da mae. © que vemos aparecer, no nivel desta demanda? Trata-se unicamente do que a andlise nos designa da fungao do seio. Tudo o que a andlise produz camo se se tratasse ld de um processo de conhecimento 6, a saber, o fato de que a realidade da mae s6 nos soja a principio relatada, designada pela funcao do que se chama 0 objeto parcial (aceito que seja chamado de objeto parcial, desde que reconhecamos que é ele que est no principio da imaginacao do todo), mas se algo € concebido como totalidade da crianca mae, éna medida em que, no seio da demanda, quer dizer, nesta 225 hidncia entre o que nao se articula e o que enfim se articula como demanda, 0 objeto em torno do qual surge a primeira demanda 60 Yinico objeto que traz ao pequeno ser recém-nascido esse comple- mento, essa perda irredutivel que é seu tinico suporte. A saber, esse seio, tao singularmente colocado aqui para esta utilizagdo que é logica por natureza; 0 objeto “a”, e do que Frege chamaria a vari- vel, a varidvel na instauracao de uma fungao qualquer Fx. Se uma varidvel é quantificada, ela passaa um outro estatuto, precisamente por ser quantificada como universal. Isto quer dizer, no simplesmente que nao importa qual seja, mas que fundamen- talmente, em sua consisténcia, é uma constante. E por isto que, para a crianga que comega a articular com sua demanda o que far © estatuto de seu desejo, se algum objeto possui este privilégio de poder, por um instante, preencher essa fungao constante, é 0 seio. Mas é também estranho que nao se perceba imediatamente, espe- culando sobre os termos biol6gicos - que sao esses aos quais a psi- candlise aspira, quando se refere a este assunto - que nao se perceba que esta coisa que parece ser dita como evidente, que toda a crian- ga tem uma mae - e até se sublinha, como para nos colocar nessa via, que, quanto ao pai, seguramente estamos na ordem da fé -... mas, seria t@o seguro que ha uma mae, se em lugar de um ser hu- mano, quer dizer, um mamifero, fosse um inseto? Quais sio as relacdes de um inseto com sua mae? Se nos permitimos perpetuamente jogar - e isto é presentifi cado nas psicandlises - entre os termos, as referéncias da concep- Gao e a do nascimento, vemos a distancia que hd entre as duas, e que 0 fato de que a mae é a mae s6 se mantém se for por uma necessidade puramente orgénica. Quero dizer, claro, que até o pre- sente, ndo ha ninguém senao ela para produzir em seu proprio titero seus préprios ovos, mas, afinal de contas, j4 que agora ja se faz insemina¢ao artificial, talvez também se venha a fazer insercao ovular. A mae nao é essencialmente, no nivel em que a tomamos na experiéncia analitica, esse algo que se refere aos termos sexuais. Sempre falamos da relacao dita sexual. Falemos também do sexual dito relagao. O sexual dito relagao fica completamente mascarado pelo fato de que podemos dizer, em relagio aos seres humanos, que, se nao tivessem a linguagem, como poderiam saber até mes- 226, mo que sao mortais? Diremos também que, se eles nao fossem mamiferos, nem poderiam imaginar que nasceram. Pois 0 surgi- mento do ser, enquanto operamos nesse saber construido, e que também perverte toda a dialética operatéria da andlise que faze- mos girar em toro do nascimento, seré algo diverso do que, em Plato, se apresentava com um perfil que, quanto a mim, acho mais sensato? Vejam 0 mito de Er. O que é esta errancia das almas, uma vez que partiram dos corpos, que estéo ld em um hiperespaco an- tes de entrarem para se reabrigar em algum lugar, segundo seu gosto ou 0 acaso, pouco importa, o que é isso senao algo que faz muito mais sentido para nés, os analistas? O que é esta alma erran- te sendo precisamente isso de que falo, 0 resfduo da divisto do sujeito? Essa metempsicose me parece logicamente menos falha do que a que produz como conjetura de tudo o que se passa na dlinamica psicanalisante, a morada no ventre da mae. Se imaginds- semos essa morada como é, afinal, no inicio da linha dos mamife- ros, a saber, a morada em uma bolsa marsupial, isso nos surpreenderia menos. O que propicia a ilusdo é a fungao da pla- centa. Pois bem, a funcao da placenta é algo que nao existe nos primeiros mamiferos. A placenta parece dever se situar justamen- te no nivel deste objeto chapeado, deste algo que, em certo nivel da evolucio biol6gica - que nao precisamos considerar se é ou nao um aperfeicoamento - se apresenta como essa pertinéncia ao nivel do Outro, que é 0 seio chapeado sobre o peito, este seio em torno do qual gira 0 que esta em questo, uma aparéncia exemplar do objeto “a”. Que 0 objeto “a” seja o indicativo em torno do qual se forja a fungéo do todo enquanto mitica, enquanto é precisamente o que toda a pesquisa do estatuto do sujeito, tal como se instituina expe- riéncia da psicandlise, se opde e contradiz, eis o que deve ser de- marcadoe que 86 pode dar a este objeto “a” sua funcdo de pivd, de ponto de inflexao do qual outras formas se deduzem; mas sempre, com efeito, a partir desta referéncia: que é 0 objeto “a” que esté no principio da miragem do todo. Vou tentar fazé-lo viver em torno desses outros suportes que so dejeto, olhar, voz. Verao, a0 apre- ender a relagio desse “a”, enquanto é justamente ele que nos per- mite destituir de sua funcao a relagdo com o termo “todo”, que é 227 no interior desta interrogagéo que poderei retomar para voces que constitui um ato. Até agora nao disse nada além de ato, claro que este ato implica fungao, estatuto e qualificacao. Se o psi canalista nao é aquele que situa seu estatuto em torno desse a que podemos interrogar, que é um sujeito, serd ele de alguma fe sma caracterizavel, qualificével com o termo “a”? O “a” pode um predicado? Essa é a questo com que os deixo hoje, ¢ jé indico qual é sua resposta. O “a” ndo pode, de maneira alguma, se insti= tuir de uma forma predicativa, e muito precisamente porque so= bre 0 “a”, em si mesmo, de forma alguma pode incidir a negacao, Notas do Tradutor 1 Nesse lugar, o original tinha, iniciando a frase, 0 seguinte “Na outra ponta...”. Achamos que Lacan interrompeu uma frase que diria, e que retomaré depois com 0 inicio “No outro extremo..”, para explicar melhor 0 que entendia por “técnicas do corpo’. 2. Aexpresstio em grego, utilizada por Freud, no livro “Psicopato- logia da Vida Cotidiana”, é uma famosa inscricao que figura no templo de Apolo em Delfos. Significa “conheca-te a ti mesmo”, 3. _verneinung,conceitoaqueFreud dedicou um trabalho.Costuma ser traduzido por “negagéo”. Lacan sugere que se traduza por denegacdo, porque “negacio” sugere algo interno a um juizo, enquanto 0 termo “denegacio” corresponde a idéia de uma operacio que é pré condigao para a utilizagao do simbolo da negacao. 4. Die Begriffsschrift 6 titulo da primeira obra do fil6sofo alemao Gottlob Frege, que tem como subtitulo “A Lingua do Pensamento Puro Concebido a Imagem das Férmulas de Aritmética”. 5. pas e olos - ambos sao adjetivos e significam “todo”, mas 0 primeiro 6 todo no sentido de cada um, qualquer, enquanto 0 segundo indica todo inteiro. Pas e pantes figuravam nas univer sais de Aristételes, e na frase em questo parecem ser tomadas como equivalentes, mas a segunda forma no se encontra no 28 dicionétio. omnis, ¢ ¢ totus, a, um: so ambos adjetivos ou pronomes em latim que podem querer dizer todo. Entretanto omnis introduz.a idéia de ntimero: todo, toda, qualquer, cada; enquanto totus é todo no sentido de inteiro, advérbio grego que tem o sentido de “em geral”,e de universal. falta algo aqui, no original. 29 Seminario de 20 de marco de 1968. “Todo homem é um animal, salvo que ele se nomeia”! Coloquei isso no quadro para deixar voeés afiados, ja que, na realidade, eu nao estou muito. Essa pequena formula nao tem a pretenstio de ser um pensamento. Pode ser que, apesar de tudo, sirva de ponto de engate, de pivé para um certo ntimero de vocés que nao compreenderao nada, por exemplo, do que direi hoje, nio 6 impensavel. Nao compreenderao nada, o que, mesmo assim, nio os impedied de sonhar com outra coisa. Nao vou injurié-los, nio acho que isso se aplique 4 maioria dos casos, mas enfim, digamos gue a uma média! Olado de devaneio que sempre se produz em todo tipo de enunciado com pretensio “pensatéria”, ou que se acredita como tal, deve ser sempre levado em conta; ¢ por que nfio dar-lhe ew pontinho de engate? Suponham, por exemplo, que este lado de ‘meu ensinamento, a saber, o que pode passar por ser pensamento, nao tenha - como ja aconteceu com muita gente, e de maioralcance do que eu -nenhuma conseqiiéncia. Restarao pequenas coisas as- sim,aconteceu a alguns muito importantes. Desta forma, sobre esse resto produz-se o que se chama, como no reino animal, uma espé- cie de fauna muito especial, essas espécies de pequenos animais, da classe dos insetos, seres de élitros; ha muitos que se alimentam 23 de cadveres, o que se chama, em medicina legal, de “esquadrao da morte”. Levam uma dezena de geracdes para chegar a consu- mir 0 que resta de um cadaver humano. Quando digo geracées, quero dizer que elas se sucedem, que so espécies diferentes que vém nas diversas etapas. E com isso que se parece o emprego de um certo ntimero de atividades universitérias em torno desses restos de pensamento: 08 esquadrdes da morte. J4 ha alguns que se dedicam, por exem- plo-sem esperar nem que eu esteja morto, nem que tenha apareci- do 0 resultado das coisas que eu enunciei no curso desses anos - a avaliar, no que constitui o que recolhi como pude com uma vas- soura, sob o titulo de “Escritos”, em que momento comeco a falar verdadeiramente de lingitistica; em que momento e até onde o que eu digo coincide com o que disse Jacobson. Vocés verdo, isso vai se desenvolver. Além do mais, nao acredito que semelhante opera- cdo decorra dos meus méritos. Acredito que é uma operagao bas- tante dirigida por parte daqueles a quem o que digo interessa diretamente, e que gostariam que as pessoas que tém esse oficio, prontamente se ponham a proliferar sobre que pode ser manti- do, a titulo de pensamento, de meus enunciados. Isso Ihes dara uma pequena antecipacao do que eles esperam, a saber, que o que enuncio, € que nao é forgosamente pensamento, seja sem conse- qiiéncia, para eles, claro! Eis a alimentacao! ‘Nao obstante, verdo que isto tem uma certa relagio com 0 que direi hoje. Continuamos, certamente, no ato psicanalitico. Por que, em suma, falo do ato psicanalitico? E para os psicanalistas. Na verdade, sé eles esto implicados nisso. Tudo esta af. Hoje, avango sobre um terreno que é evidentemente pouco apropriado a uum ptiblico tio numeroso, a saher, como pode operar o ato psica- nalitico para realizar esse algo que chamaremos de identificagao do psicanalista. £ uma forma de abordar a questao que tem ao menos 0 inte- resse de ser nova. Quero dizer que, até agora, nada pode ser arti- culado de sensato nem de sdlido sobre o que é que qualifica como tal o psicanalista. Fala-se certamente de regras, de procedimentos, de modos de acesso, mas, ainda assim, isso nao diz o que é um psicanalista. O fato de que eu fale do ato psicanalitico, a partir do 232 que, em suma, espero poder dar um passo no que se chama a qua- lificagao do psicanalista, que seja levado a falar do ato psicanaliti- coante um ptiblico como este, ao qual ele s6 concerne em parte, eis, algo que por si levanta um problema em nada insohivel jé que, em stima, insisto uma vez mais que marcar 0 que justifica isso - nao 0 que condiciona, o que condiciona é uma série de efeitos de posicao sobre 0s quais justamente, dentro de nosso discurso hoje, o que pudermos adiantar. talvez nos permita precisar algo, mas enfim qualquer que seja 0 condicionamento*... O que justifica que se fale doato ante um puiblico maior do que aquele ao qual ele diz respei- to, ou seja, os psicanalistas propriamente, é evidentemente que 0 ato psicanalittico tem uma particularidade: eu poderia me entregar a mais uma garatuja no quadro para mostrar, no famoso quadrangulo, o que faz aquele que parte do “ou eu nao penso ow eu nao sou”, com o que ele comporta do “eu nao penso” (que esta aqui, no alto a esquerda) e do “eu no sou” (que esté aqui, em baixo e a direita), eixo no qual voces sabem que o ato psicanalitico se dé, tendo por resultado essa ejecao do “a” que compete, em suma, fica a cargo do psicanalista que estabeleceu, permitiu, auto- rizou as condiges do ato, ao prego de que ele mesmo venha a suportar essa fungao do objeto pequeno “a”. O ato psicanalitico é, evidentemente, o que dé esse suporte, autoriza a realizagao da ta- refa psicanalisante. E na medida em que o psicanalista dé a esse ato sua autorizagao, que o ato psicanalitico se realiza. ou eu nao penso eu ndo penso a ou eu no sou ™ eundo sou 9 a Assim, esse ato é algo de totalmente singular. Esse ato cujo trajeto, de alguma forma, deve ser preenchido pelo Outro, e com esse resultado pelo menos presumido que o que é, falando propri- amente, o ato (ja que poderemos ser levados a nos perguntar o que um ato), nao deveria evidentemente ser desenhado, pelo menos 233 nesse quadrangulo, nem nessa condigéo, nem nesse trajeto total- mente atfpico, mas naquele (-p). Quer dizer, na medida em que 0 sujeito psicanalisando tenha chegado a esta realizacio (para ele) que é a da castracao, é uma realizagao que retorna para o ponto inaugural, aquele do qual, na verdade, ele nunca saitt, aquele que 6 estatuario, aquele da escolha forgada, da escolha alienante entre © “ou eu nao sou” e “ou eu nao penso”, ele deveria, por seu ato, consumar este algo que foi por ele enfim realizado, a saber, 0 que 0 faz dividido como sujeito. Dito de outra forma, que ele execute um ato sabendo, com conhecimento de causa, porque esse ato ja~ mais 0 realizaré, a ele mesmo, plenamente como sujeito. O ato psicanalitico, portanto, tal como se apresenta, é de na- tureza - porque introduz uma outra dimensio deste ato que no age por si mesmo, por assim dizer - a nos permitir trazer alguma luz sobre o que € do ato, aquele que delineei ha instantes transver- salmente, do ato sem qualificacdo, pois nao o chamarei humano por todo o tipo de razées das quais esse pequeno termo de engate que citei no comeco pode leva-los a suspeitar, j4 que ele funda 0 homem.a principio, ou melhor, o refunda, ou o refunda a cada vez que 0 ato em questao, 0 ato simplesmente, o ato que nao nomeio, tem lugar... 0 que nao acontece com freqiiéncia. ‘Naturalmente tentei dar, apesar de tudo, algumas definiges sobre isso, para sabermos do que falamos, especialmente que 0 ato é um fato de significante. Foi exatamente dai que partimos quando comegamos a balbuciar a respeito, um fato de significante por onde tem lugar 0 retorno do efeito, dito efeito de sujeito, que se produz pela palavra, na linguagem, claro, retorno deste efeito de sujeito enquanto ele é radicalmente divisor. Esté é a novidade fornecida como um desafio pela descoberta psicanalitica, que esta- belece como essencial que este efeito de sujeito seja um efeito de divisdo. E na medida em que, uma vez realizado esse efeito de divi- sao, algo pode ser seu retorno, pode haver re-ato, que nés pode- mos falar de ato, e que este ato que é 0 ato psicanaliitico se coloca de uma forma tao singular por ser totalmente diferente, nesse sen- tido que, mesmo quando, na acepeao da psicanilise, o sujeito esté em posigao de agir, nada impde que o ato se produza, nada impli- ca que aquilo de agora em diante isolado pela acéo do Outro que o 234 guiou na sua psicandlise, de uma psicandlise que 0 ato permitiu que a tarefa se cumprisse, nada explica esse salto pelo qual, deste ato que permitiu a tarefa realizadora, a tarefa psicanalisante, o psicanalisando, se podemos dizer, dele assuma 0 que? O progra- ma. ‘Com relagio ao ato - é um pequeno paréntese reflexivo que farei ai no inicio e que é importante, que alids se refere as palavras pelas quais comecei, relativas ao porvir de todo 0 nosso pensa- mento - todo pensamento ordenado se situa em um bivium’ ou a partir de um bivium que, em nossos dias, é particularmente claro: ou bem ele rejeita este efeito de sujeito de que eu parto, ligando-o uma vez mais a si mesmo em um momento que se quer originério, 6 o sentido que teve historicamente 0 cagito, 0 cogito é seu mode- lo, modelo honesto, por assim dizer, honesto porque ele se propde a simesmo como origem. Quando vocés véem alguém comecar a falar de fantasia da origem, podem saber que é desonesto. Nao ha fantasia apreensivel senao hic et nunc, desde agora, essa é a ori- gem da fantasia, depois disso poderemos falar dela; quando a ti- vermos encontrado, ai estaremos com ela. Quanto ao cogito, ele no foi postulado como origem, em lugar algum Descartes nos diz “na origem, aquele que pensa faz surgir 0 ser”. Ele diz: “penso logo sou” e, a partir daf esta tudo resolvido, nao precisamos mais nos preocupar. Ele liberou completamente a entrada da ciéncia, que nunca mais se preocuparé com 0 sujeito, se nao for, claro, no limite obrigado onde ela reencontra esse suijeito, quando ao fim de um certo tempo, ela for perceber com o que opera, a saber, 0 apare- Iho matematico e, a0 mesmo tempo, o aparelho l6gico. Entao, ela fara tudo para sistematizar este aparelho l6gico sem considerar o sujeito, mas isso nao sera comodo. Na verdade, sera apenas nessas fronteiras logicas que o efeito de sujeito continuaré a se fazer sentir, a se presentificar, e a criar a ciéncia algumas difi culdades. Mas quanto ao resto, em razio dessa demarche inicial do cogito, pode-se dizer que tudo foi dado a ciéncia, e de uma forma, em suma, legitima; tudo lhe caiu nas maos, temos que reco- nhecer, com um imenso campo de sucesso, Mas, de alguma forma, foi ao prego de que a ciéncia néo tem absolutamente nada a dizer do sujeito do ato, ela nao impoe nenhum. Ela permite fazer muito, 235 nao tudo 0 que se quer, ela pode o que pode, o que nao pode, nao pode. Mas pode muito. Ela pode muito, mas néo motiva nada, ou mais exatamente, ela nao oferece nenhuma razao expressa para fazer nada. Ela s6 se apresenta como tentagao de fazer, tentagio irresistivel, é verdede. Tudo o que podemos fazer com 0 que a ci- €ncia conquistou ha trés séculos nao é pouco, e nao nos privamos de fazé-lo. Mas nao esta absolutamente dito que algum ato sera a sua medida. La onde se trata de ato, onde isso se decide, onde nos servimos dele com conhecimento de causa para fins que parecem motivados, trata-sede um modo de pensamento diferente. F a outra parte do bivium, aio pensamento entrega-se & dimensao do ato e, para isto, basta que ele toque no efeito de sujeito, Exemplo: a observacao fundamental de uma doutrina que acho que € facil vocés reconhecerem, é que 0 sujeito nao se reco- nheca, quer dizer, esteja alienado na ordem da produgio que con- diciona seu trabalho, em razao do efeito de sujeito que se chama “exploracao” - nao é preciso acrescentar “do homem pelo homem’”, porque vimos que é preciso desconfiar um pouco do homem, no caso, e além disso todos sabem que esse uso pdde ser transforma- do em alguns chistes divertidos; isso por causa do efeito de sujeito, portanto, que esté no fundamento de toda a exploracao, eis af 0 que tem conseqiiéncias de ato. Chama-se isso de revolugio, e nes- sas conseqiiéncias de ato, o pensamento tem a maior dificuldade em se reconhecer, como o demonstram (desde que vocés existem, pois, para alguns de vocés, comecou antes mesmo que nascessem) as dificuldades que teve e que continua a ter 0 que se chama a intelligentzia com e ordem comunista. Portanto, todoo pensamento desta categoria que toca no efei- to de sujeito participa do ato. Formulé-lo indica, se podemos di- zer, 0 ato e sua referéncia. $6 que enquanto o ato nao é colocado em ago, é uma referéncia certamente dificil de sustentar em toda amedida em que ele s6 ¢ isolado ao final, todos sabem disso. Todo © pensamento que fez escola no passado (as coisas que ficam, as- sim, espetadas nos herbérios universitarios, a escola estéica, por exemplo) tinha essa finalidade do ato. Isso algumas vezes falha. Quero dizer que no circuito ao qual fiz alusao, por exemplo, 0 ato que em nosso tempo se caracteriza como revoluciondrio, por ago- 236 ra a safda ainda nao esté af, essa referéncia ao ato nao esta isolada nem isolavel. Mas enfim, para os estéicos, tal como evoquei ha pouco, o fato é que falhou, a um dado momento nada mais se apro- veitou, além do que tinham conseguido os que se engajaram nesta via de pensamento. A partir do que, a necrofagia de que falava ha pouco péde comecar, e, gracas a Deus, ela também nao pode mais se eternizar, uma vez que nao sobrou muita coisa como sucata, como restos deste pensamento est6ico. Mas enfim, isso ocupa muita gente... Dito isso, voltemos a nosso ato psicanalittico e retomemos esse pequeno cruzeiro* que est exposto no quadro, sobre o qual ja fiz, intimeras vezes, a observagao de que vocés nao devem dar valor privilegiado as diagonais. E melhor, para fazer dele uma idéia cor- reta, vé-lo como uma espécie de tetraedro em perspectiva, isso os ajudara a perceber que a diagonal nao tem ai qualquer privilégio ato psicanalitico consiste essencialmente neste tipo de efei- to desujeito que opera distribuindo, porassim dizer, o que consti- tuird o suporte, a saber, o sujeito dividido, o $, enquanto esta é a aquisigio do efeito de sujeito ao final da tarefa psicanalisante: é a verdade que, qualquer que seja e sob qualquer pretexto com o qual ele se tenha engajado, conquistada pelo sujeito. E, por exemplo, para 0 sujeito 0 mais banal, aquele que chega com a finalidade de conseguir alivio: “eis meu sintoma, agora tenho sua verdade”. Quero dizer que éna medida em que eu nao sabia tudo de mim, 6 na medida em que hé algo de irredutivel nesta posicio do sujeito que se chama, em suma, e é muito nomeavel, a “impoténcia de saber tudo”, que estou ai e que, gracas a Deus, do sintoma que revelava o que fica mascarado no efeito de sujeito ressoa um saber; do que ha de mascarado, eu tive o levantamento, mas seguramen- tenao completo. Algo perdura de irredutivelmente limitado neste saber. E ao preco - ja que falei de distribuigao - de que toda a expe- riéncia girou em torno deste objeto pequeno “a”, enquanto é, foie permanece sendo estruturalmente a causa desta divisdo do sujei- to. Foi na medida em que a existéncia desse objeto pequeno “a” demonstrou-se na tarefa psicanalisante. E como? Mas, todos vocés sabem: no efeito de transferéncia. Foi enquanto, pela estrutura ins- tituida pelo ato, o parceiro descobriu preencher a funcao que, des- 27 de que o sujeito atuou como efeito de sujeito, que, preso na di manda instauradora do desejo, ele se encontrou determinado pi essas fungdes que a anélise rotulou como sendo aquelas do obj nutridor, do seio, do objeto excremencial, 0 cibalo, da fungao olhar e da voz. Foi em torno destas fungGes, na medida em que relacio analitica elas foram distribuidas aquele que é 0 parceiro, piv6, em suma, o suporte e, como disse na tiltima vez, o instru mento, que péde realizar-se a esséncia do que é a funcao do , a saber, a impoténcia do saber. Sera que evoco aqui a dimensao analégica, que existe nessa reparticao, com o ato tragico? Pois fica bem claro que ha algo de andlogo na tragédia. Quero dizer que, na ficcao tragica tal como se exprime em uma mitologia, nao esté absolutamente excluido que nés vejamos as incidéncias inteiramente hist6ricas, vividas, reais, Quero dizer que o heréi, qualquer um que se engaje sozinho no ato, esté votado a este destino de tornar-se enfim apenas o dejeto de seu proprio empreendimento. Nao ha qualquer necessidade de dar exemplos, s6 0 nivel que chamei de ficcao ou de mitologia bas ta para indicar plenamente sua estrutura. Mas, mesmo assim, nao esquegamos, nao confundamos a fiegao tragica - quero dizer o mito de Edipo, de Antigona, por exemplo - com o que é verdadeiramen- tea tinica acep¢aio valida, fundada da tragédia, a saber, a represen- tagao da coisa. Na representacao estamos evidentemente mais perto desta esquize tal como ela é sustentada na tarefa psicanalisante. Podemos apoiar a divisio realizada do sujeito psicanalisando, a0 final da psicandlise, na divisio que encontramos na érea onde po- dia se dar a representacao tragica na sua forma a mais pura; pode- mos identificar este psicanalisando ao par dividido e relativo do espectador e do coro, ao passo que o heréi (nao é preciso que haja trinta e seis, no ha nunca mais que um s6), 0 her6i é aquele que, na cena, nao é nada mais do que a figura do dejeto onde se fecha toda a tragédia digna desse nome. Aanalogia estrutural paira de uma maneira de tal forma evi- dente, que essa é a razao pela qual ela foi macicamente trazida pelo texto de Freud. £ por isso que essa analogia persegue toda a ideologia analitica, s6 que com um efeito de desmesura que confi- na com 0 grotesco e que, portanto, gera a total incapacidade que 236 la literatura, que se chama analttica, revela para fazer, em toro desta referéncia mitica, qualquer coisa além de uma espécie de re- peticao em cfrculos, extraordinariamente estéril; de vez em quan- ‘lo, com osentimento de que, mesmo assim, existe af alguma coisa dle uma divisdo, da qual nao se vé 0 que separa, nao se vé onde osld a radical insuficiéncia que nos torna inadequados. Alguns se surpreendem com isso. Nao sao os piores que se dcixam surpreender. Mas os resultados, na verdade, nao vao mui- lo além de um ganido. Nao esquecamos nem o Edipo, nem o que ¢,nem a que ponto ele ¢ internamente, integralmente, ligado & es- trutura de toda a nossa experiéncia; uma vez. recordado isso, nao é preciso ir muito além. E exatamente por isso, aids, que nao consi- «lero que faga mal a ninguém por ter jurado jamais retomar o tema lo nome do pai, ao qual, tomado por nao sei que vertigem feliz mente superada, eu tinha uma vez dito que me dedicaria, no ci cutito de um dos meus anos de semindrio. As coisas tomadas a esse nivel sao hopeless’, agora que temos uma via mais segura para tragar com relacdo ao efeito de sujeito, e que tem a ver com a légi- ca Se jé os levei a encruzilhada deste efeito propriamente légico que é aquele que légica moderna definiu tao bem com 0 termo ‘fungao dos quantificadores”, é evidentemente por uma razao que 6 muito préxima do que anunciei como sendo a questao de hoje, a saber, a relagao do ato psicanalitico com algo da ordem de uma predicacdo, ou seja: 0 que é, como podemos dizer que ele situa 0 psicanalista? 2 7 Niio esquecamos, se 6 a0 final de uma experiéncia de divisaio do sujeito que algo que se chama “o psicanalista” pode se instau- rar, nao pocemos nos fiar em uma pura e simples identificacao do termo que esté ao principio da definicao do significante, que todo significante representa um sujeito para um outro significante. Jus- tamente, osignificante, qualquer que seja, nao pode ser tudo o que representa 0 sujeito, exatamente, como mostrei da vez passada, pelo fato de que a funcéo que denominamos “todo” depende de uma causa que nao é outra sendo 0 objeto pequeno “a”; se este objeto pequeno “a”, cafdo no intervalo que, se podemos dizer, ali- ena a complementariedade (recordei a vocés, na tiltima vez) em 239 relacdo ao sujeito representado pelo significante, do sujeito $ com 0S, qualquer que seja, predicado que pode se instituir ne campo do Outro. Portento, o que se da por esse efeito do “todo”, enquan- to ele se enuncia, interessa algo bem diferente disto na dinecao do que, se posso d:zer, a identificagao nao se produz, a saber, na dire a0 do reconhecimento por parte do Outro. A questao é que, em nadia do que peciemos inscrever de nés mesmos no campo do Ou- tro, nés poderemos nos reconhecer. Esse “toda”, o que nos representa nessa questo do reconhe- cimento, poderia ter a ver com esse vazio, com esse buraco, com, essa falta, Ora, nao é nada disso. £ que no principio da instituicio, desse “todo”, requerido a cada vez que enunciamos o que for de universal, ha oatra coisa que nao a impossibilidade que ele mas= cara - de se fazer reconhecer- ¢ isto se revela, na experiéncia anali- {ica,no que articularei de uma forma resumida porque é exemplar que 0 sexo nao € todo, pois ¢ esta a descoberta da psicandlise. ‘Vemos ressurgir toda a espécie de compilagoes de pessoas a quem se delega reunir um certo ntimero de textos sobre o que esse famoso capo tio bizarramente preservado, reservado, que € a psicandlise. Deu-se uma bolsa de pesquisa a um senhor que se chama Brown e que escreveu outrora algo qite ndo era téo matt assim: ’Eros e Thanatos”. Ele aproveitou para dizer coisas bem sensatas sobre Lutero, e como era com o beneficio da Universida- de de Wesleyenne, tudo isso se justificava bastante bem. Mas en- fim, nao colocando os limites necessdrios nessas operagdes de compilagao, ele publica algo que se chama “O Corpo de Amor”, comentando uma nota que fala do pansexualismo frendiamo. Ora, justamente, se 0 que Freud disse significa alguma coisa, foi certa~ mente porque tomou como referéncia o que se esperava que se pro- duzisse da conjuncao sexual, a saber, uma uniao, um todo. Justamente, se ha algo que se impde ao final da experigncia é que, no sentido em qu € [ago ressoar para vocés, 0 sexo ndo é todo, o todo vem em seu lugar, o que no quer dizer absohutamente que este lugar seja o lugar do todo. O todo o usurpa, fazendo acre- ditar, por assim: dizer, que ele, 0 todo, vem do sexo. H! assim que a fungaio de verdade muda de valor, se posso expressar-me assim, €0 que se descobre encaixa muito bem, o que é encorajador, com certas 20 descobertas no campo da ligica. E 0 que pode ser expresso de for- ma anos mostrar que 0 todo, a fungao do todo, o todo quantifica- dor, a fangéo do universal, que o todo deve ser concebido como um deslocamento da parte. E na medida em que 0 objeto pequeno “a, e apenas ele, motiva e faz surgir a func&o do todo como tal, que nés nos encontramos, em légica, submetidos a esta categoria do todo, mas que se explicam, a0 mesmo tempo, um certo ntimero de singularidades que o isolam no conjunto dos funcionamentos logicos; quero dizer, esse campo onde reine o aparelho do quanti- ficador que 0 isola, fazendo surgir dificuldades singulares, estra- nhos paradoxos. Claro, hd todo ointeresse de que o maior ntimero possivel de voces -e digo tanto para cada um quanto para todos - tenha uma certa cultura Logica; quero dizer que ninguém aqui tem nada a perder indo formar-se nos lugares onde 0 que se ensina 6 em torno desses campos jd constituidos do progresso da légica atual, que ndo tém nada a perder indo formar-se precisamente ld, para en- tender 0 que aqui ensaio para delinear uma logica funcionando em uma zona intermediaria, enquanto nao foi ainda manejada de uma maneira conveniente. Nao perderdo nada em apreender a que me refiro quando digo que, ainda que a logica dos quantificadores tenha chegado a obter seu estatuto proprio e verdadeiramente ri- goroso, quero dizer, tendo toda a aparéncia de excluir 0 sujeito, ou seja, de ser manejavel por meio de puras e simples regras que de- pendem de um manejo de letras, nao é meaos verdade que se vo cés compararem o uso desta I6gica dos quantificadores com tal ou tal ontro setor, segmento da I6gica tal como se define em diversos termos, vocés notardo que é singular que enquanto que, para to- dos os outros aparelhos légicos, vooés sempre podem dar um ni- mero bastante grande de interpretagdes geomeétricas, por exemplo, econdmicas, conceituais (quero dizer que cada um desses manejos dos aparelhos logicos é inteiramente plurivalente quanto a inter- pretagdo), é totalmente impressionante, pelo contrério, ver que por maior que seja o rigor a que tenha conseguido, afinal, chegar a logica dos quantificadores, voces jamais conseguirao subtrair esse algo que se inscreve na estrutura gramatical, quero dizer na lin- nat guagem ordinéria, e que faz intervir essas fungdes do “todo” e do A coisa tem conseqiiéncias, das quais uma delas s6 péde ser valorizada entre os légicos, ou seja, ld onde sabem fazer uso do que é uma dedugio. A saber, em todo o lugar onde sustentamos um sistema, um aparelho como o uso dos quantificadores, nao poderemos criar algoritmos tais que baste que estejam definidos de antemao para que todo problema seja, pura e simplesmente, submetido ao uso de uma regra, uma vez fixada, de célculo; que desde que estejamos nesse campo, seremos sempre capazes de fa- zer surgir o indecidfvel. Estranho privilégio! Para os que jamais ouviram falar do indecidivel, vou ilustrar 0 que digo com um pequeno exemplo. ‘Que quer dizer indecidivel? Peco desculpas aos que acharem o que vou dizer uma cantilena repetitiva. Tomo um exemplo, hé muitos. Vocés sabem (ou nao) o que 6 um ntimero perfeito, é um ntimero tal que seja igual 4 soma de seus divisores. Exemplo: os divisores do mimero 6 sao 1,2 e 3; 1+2+3=6. E igualmente verdadeiro para 28. Nao se trata de niime- ros primos, mas de divisores, 0 que quer dizer: sendo dado um. muimero, em quantas partes iguais se pode dividi-lo? Para 28, isso dé 14,7, 4,2, 1. A soma da 28. Vocés notam que esse dois ntimeros sao ntimeros pares; co- nhecemos um monte, assim. Nao se conhece um muimero impar que seja perfeito. Isso nao quer dizer que nao exista. O importante € que nao se pode demonstrar que é impossivel que ele exista. Af esté 0 indecidivel. Meu papel nao é fazé-los perceber qual o laco do indecidivel com a estrutura, a fungao légica que se chama a dos quantificadores. Digamos que. a rigor, isso poderia ser reservado. para o seminario fechado. Pediria que alguém mais especializado que eu, que se associe a mim para fazé-lo. Mas esse privilégio da fungao dos quantificadores que nos interessa no mais alto grau, vocés verao esse privilégio a seguir. Levanto (chamemos provisoriamente, assim) a hipétese... Esse im- passe enquanto 6, notem, um impasse fecundo, pois se tivéssemos a menor esperanga de que tudo pudesse ser submetido a um algoritmo universal, que pudéssemos em tudo decidir a questdo 242 de saber se uma proposigao é verdadeira ou falsa, isso seria antes um fechamento. A hipétese que levanto consiste nisso: que esse privilégio da funcao de quantificagio diz respeito ao que é a essén- cia do todo e & sua relagio com a presenga do objeto pequeno “a”. Existe algo que opera para que todo o sujeito se acredite todo, para que 0 sujeito se acredite todo sujeito, e por af mesmo sujeito de todo, por esse fato mesmo com direito a falar de todo. Ora, 0 que nos mostra a experiéncia analitica 6 que nao ha sujeito cuja totalidade nao seja uma ilusio, porque ela depende do objeto pequeno “a” enquanto elidido. Vamos agora tratar de ilustrar, mostrando em que isso nos interessa, e da maneira a mais direta. Como exprimir corretamen- te em que consiste a dimensao propriamente analitica, sendo as- sim? Todo saber nao € consciente. A ambigitidade, a problematica, a esquize fundamental que introduz.a fungao do quantificador enquanto ela introduz um “para todo” e um “existe”, consiste no seguinte: o que ela admite mas a0 mesmo tempo poe em questao é que se nés dizemos “no é verda- de que para todo...” 0 que se segue “seja de tal ou tal forma”, isso implique que exista, que haja, desse todo, algo que nao, porque nao é verdade que para todo exista que nao. Em outros termos, porque uma negacao incide sobre o uni: versal, algo surge da existéncia de um particular e que, da mesma forma, porque nao todo nao é afetado por um nao, coisa mais forte ainda, existe os que, como se diz, fazendo surgit uma existéncia positiva particular de uma dupla negagao, aquela de uma verdade que, retirada do todo por nao ser, faria surgir dele uma existéncia particular. Ora, seria suficiente que nao fosse demonstrado que todo qualquer coisa, para que exista algo que nao? Vocés notam que temos af um obstaculo, uma questao que, por si s6, torna muito suspeito esse uso da negagdo enquanto bastando, sozinha, para assegurar o laco, a coeréncia da funges reciprocas do universal e do particular. Quanto ao saber, seré que pelo fato de que todo sa- ber nao é consciente, de que nao podemos mais admitir como fun- damental que o saber se saiba a si mesmo, estarfamos dizendo que €correto afirmar que existe o inconsciente? 243 E muito precisamente o que, nesse artigo recolhido em meus “Escritos” que se chama “Posies do Inconsciente”, tentei mos= trar, empregando 0 que eu podia na época, a saber, uma pequena parabola que era uma forma de ilustrar, sob uma forma que, se me lembro bem, até chamei, jé que me agrada muito brincar com a palavra “homem”, 0 “homelete”, e que nao é outra coisa sendo 0 objeto pequeno “a”. Certamente isso poderia ser motivo para um futuro “scholar” imaginar que, no momento em que escrevi meu “Posicdes do Inconsciente”, eu nao tinha a menor idéia da légica, como se 0 que constitui a ordem de meus discursos nao consistis- se, seguramente, justamente em adapté-los para um certo audité- rio, tal como ele é suposto - por outro lado, nao inteiramente, pois sabemos bem o que sao capazes de acolher 0 ouvidos dos psicana- listas, e de nao acolher a um momento dado. Quanto a qualificagio, hé bastante tempo que, para tudo 0 que é do saber, a reflexaio construtiva acerca da episteme colocou em causa 0 praticante, quando se trata de um saber; tanto que, em Platdo, cada vez que se trata de assegurar um saber em seu estatu- to, prevalece a referéncia ao artesdo, e nada parece contradizer 0 antincio de que toda pratica humana (digo “pratica”, j4 que o fato de fazermos prevalecer 0 ato néo quer absolutamente dizer que nds repudiarfamos a referéncia a ela), todo praticante supée um. certo saber, se queremos avancar no que é da episteme. Todo 0 saber da madeira, eis que para nés definiré 0 carpinteiro. Isso secretamente implica que a madeira se sabe a si mesma enquanto arte - nao digo enquanto matéria, claro - 0 que se prolon- ga para nés, analistas, em que todo saber de terapéutica qualifica 0 terapeuta, o que implica, e da maneira a mais duvidosa, que a tera- péutica se sabe a si mesma. Ora, se ha algo que mais (desculpem-me, vou dizer!) instinti- vamente repele o psicanalista, é que todo saber de psicanalista qualifique o psicanalista; e nao é a-toa, muito precisamente pelo seguinte: nao é que com isto, claro, saibamos mais sobre o que é 0 psicanalista, mas sim que todo saber de psicanalista é de tal forma colocado na suspensao do que é a referéncia da experiéncia ao ob- jeto pequeno “a”, enquanto ele é, ao término, radicalmente exclu- ido de toda subsisténcia de sujeito, que o psicanalista nao tem qualquer direito de se colocar como fazendo o balanco da experi- éncia da qual ele é, propriamente dizendo, apenas 0 pivé e 0 ins- trumento. Todo saber que depende desta funcao do objeto pequeno va" seguramente nao assegura nada, e justamente por nao poder responder por sua totalidade senao em referéncia a esta instru- mentagao, certamente impée que nao haja nada que possa se apre- sentar como todo desse saber; mas, justamente, essa auséncia, essa falta, no impée de forma alguma que se possa dela deduzir, nem que ha nem que nao ha psicandlise. A reflexdo, a repercussio da negacdo ao nivel do todo nao implica qualquer conseqiiéncia ao nivel do particular, j& que o estatuto do psicanalista, enquanto tal, nao repousa em nada mais do que nisto: em que ele se oferece para suportar, em um certo processo de saber, esse papel de objeto de demanda, de causa de desejo, que faz com que o saber obtido nao possa ser tomado sendo pelo que é, ou seja, realizacdo significante conjugada a uma revelacio da fantasia. Se 0 “nao todo” que colocamos aqui no “nao todo o saber & consciente”, representa a nao constituigéo de todo saber, e isso no mesmo nivel em que o saber se necessita, nao é verdade que exista forgosamente saber inconsciente que nés possamos teorizar, em qualquer modelo légico que seja. E para o psicanalista que o psicanalisando 6, ao fim da tarefe, oque ele 6? Toda uma maneira de expor a teoria, porimplicar uma maneira de pensar que poe na acao psicanalitica a palavra final do que é preciso pensar disso, quer dizer que é a ele que pertence 0 pensar de todo o processo, que o psicanalisando no final seria re- gularizado, o que implica em que ele presentifica uma certa con- juncdo subjetiva que se apdia de novo em um “eu nao penso”, renovado apenas por passar do restrito ao generalizado. Serd assim? Jamais. Nao é um enigma simples 0 fato de que o psicanalista, que o sabe melhor que ninguém por experiéncia, pos- sa passar a conceber sob essa forma de science fiction - é 0 caso de dizer - 0 fruto que ele mesmo obtém. entao na ordem do “para si” que se conclui 0 trajeto do psicanalisando? Isso nao é menos contradito pelo proprio princi- pio do inconsciente, pelo qual 0 sujeito é condenado nao apenasa ficar dividido por um pensamento que nao pode arrogar-se ne- 2s nhum “sou quem pensa”, que postula um “em si” do “eu penso", irredutivel a nada que o pense por si, mas cujo destino é justamen- te que, ao fim da psicandlise, ele se realize como constituido por esta divisao; divisio onde todo significante, enquanto representa um sujeito para um outro significante, comporta a possibilidade de sua ineficiéncia precisamente para operar essa representacao, por sua colocacao em falso a titulo de representante. Nao ha psi- canalisado, hd um tendo sido psicanalisando, donde s6 resulta um sujeito prevenido de que nao poderia se pensar como constituinte de toda ago sua. * Para conceber 0 que deve ser esse sujeito prevenido, ainda nao temos nenhum tipo existente. Ele s6 é julgavel em relagéo a um ato que esta para construir, onde, reiterando-se a castragao, ele se instaura como passagem ao ato, da mesma forma que sett com- plementar, a prépria tarefa analitica se reitera, anulando-se como sublimagao, Mas isso no nos diz nada do estatuto do psicanalista, pois, para falar a verdade, se sua esséncia é assumir o lugar onde se situa 0 objeto pequeno “a” nesta operacao, qual é 0 estatuto possf- vel de um sujeito que se coloca nesta posiga0? O psicanalista nesta posigao pode nao ter a menor idéia de tudo o que acabo de desen- volver, a saber, do que a condiciona; nao ter a menor idéia da cién- cia, por exemplo. E inclusive comum. Na verdade, nem mesmo lhe é pedido para té-a, dado 0 campo que ele ocupa e a funcao que deve desempenhar. Do suporte de ldgica da ciéncia, pelo contré- rio, ele teria muito a aprender. Mas se, a seu propésito, fiz referén- cia aos estatutos de praticante, quaisquer que sejam, sera impossivel que em qualquer desses estatutos da reflexao sobre a ciéncia, tais como evocados desde a Antiguidade mas também ainda presen- tes em um certo ntimero de campos, seré que nao sera de alguma ajuda, de algum valor, o que pode ser definido, sem dtivida so- mente a luz da psicandlise, em tal fungdo pratica como evidente, como colocando em destaque a presenca do objeto pequeno “a”? Por que, no fim do ano sobre os “problemas cruciais da psica- nilise”, fiz tanto uso da fungio de perspectiva? Parece ser uma teoria, uma operacao que s6 interessa ao arquiteto, se nao é para mostrar que nao a teria isolado, ele mesmo, desde sempre, quero 246 dizer desde o tempo em que, nao sabemos mais muito bem como justificar o ideal que dirigia, por exemplo, o que nos é legado dos gramatismos de um Vitruve, que a questao, o que domina, o que cstarfamos totalmente equivocados, dada a presenca dos ideais, em reduzir a uma fungio utilitéria, de edificagao por exemplo, 0 que domina é uma referéncia que é a que tentei explicar na relacao com 0 efeito de sujeito. No momento em que a perspectiva chega sua estrutura propria com Desargues, quer dizer, em que se ins- laura essa outra definicéo do espago, que se chama a geometria projetiva, e essa problematizago do que é 0 proprio dominio da visao, que a primeira vista pareceria poder ser inteiramente apoi- ada por uma operacéo de quadriculagao, mas, ao contrério, apare- ce af essa estrutura fechada que é aquela a partir da qual pude \entar isolar para vocés, definir entre todas as outras, por ser a mais negligenciada da fungao psicanalitica, a fungéo do objeto pequeno “a” que se chama 0 olhar. Nao foi a-toa que, no final deste mesmo ano, acerca do quadro “As Meninas”, fiz uma exposigéo sem duivida dificil, mas que é preciso tomar como apélogo, como exemplo e como marco de con- duta para o psicanalista; pois a ilusdo do sujeito suposto saber est sempre em tomo do quanto o campo da visio admite tao facilmen- te como todo. Se, pelo contrario, acerca desta obra exemplar que é © quadro das Meninas, quis mostrar a funao inscrita do que é 0 olhar e como ela tem, em si, de operar de uma forma to sutil que ela est4 ao mesmo tempo presente e velada; é nossa prOpria exis- téncia, como enfatizei, a nossa como espectadores, que ela poe em questo, reduzindo-a a ser de alguma forma mais que sombra com relacdo ao que se institui no campo do quadro, de uma ordem de representagio quc nao tem, propriamente dizendo, nada a ver com © que qualquer sujeito pode se representar. Nao seré esse 0 exem- plo eo modelo no qual algo de uma disciplina, que diz respeito ao ‘mais vivo da posicao do psicanalista, poderia se exercer? Nao ser essa a cilada a que cede, nessa singular representacao fictfcia que tentava hé pouco mostrar como sendo aquela onde o psica- nalista termina, com relagao & sua experiéncia que ele chama clinica, por se deter. Sera que ele nao poderia encontrar 0 modelo, a chamada, o signo de que ele nao poderia instituir nada do mun- 247 do de sua experiéncia, sem que tenha que nela presentificar cor tal, de forma totalmente necesséria, a fungao de seu proprio olhar? Seguramente, é apenas uma indicagao, mas uma indicagio dada, como faco frequentemente ao final de um ou outro de meus discursos, com grande antecipacao, que depende do fato de que, sena psicanélise (quero dizer, na operacdo situada nas quatro pa- redes do consultério onde ela se exerce) tudo é colocado em acao pelo objeto pequeno “a”, é com uma reserva muito singular, e nao € por acaso, relativa ao que é do olhar. Gostaria aqui de indicar, antes de deix4-los hoje, o cunho pr6- prio que toma o objeto pequeno “a” de uma certa imunidade & negacao, o que pode explicar que se faca, ao final da andlise, a escolha que leva a instattragio do ato psicanalitico, a saber, pelo que ha de indenegével nesse objeto pequeno “a”. Observem a diferenca desta negacao quando ela incide, na logica predicativa, sobre ono homem, como se isso existisse; mas se imagina, se sustenta. “Eu nao vejo”: a negagao se apsia em algo de indistinto, quer seja um defeito de minha visio ou uma defici- éncia de iluminacao, o que motiva a negagao. Mas “eu nao olho” é © que, por si s6, faz surgir mais objetos complementares do que qualquer outra enunciacao. Quero dizer que olho isto ou aquilo; “eu nao olho” significa seguramente que ha algo de indenegavel, j4 que eu nao 0 olho. E a mesma coisa nos quatro outros registros do objeto pequeno “a”; que se encarnariam em um “nao tomo” relativo ao seio, e sabemos 0 que isso quer dizer, 0 apelo que isso realiza no nivel da anorexia mental; 0 “nao solto”, e sabemos 0 que isso quer dizer, no nivel desta avareza estruturante do desejo. Chegaria a evocar, no final do que tenho a dizer hoje, 0 que nés fazemos ouvir com um “nao digo”. Em geral é entendido como. “nao digo nao” Entendam, vocés mesmos, assim: “ndo digo nao”. Notas do Tradutor a homme-uma condensacao entre nomme, 3 pessoa do singular do presente do verbo nommer, nomear, e homme, homem. 248 6. Neste ponto, Lacan interrompe o tema do seminério, dizendo (ou gritando): “Por favor, parem com estas macaquices! Ja estou cheio! Enfiem isso onde quiserememe deixem em paz, peloamor de Deus!” bivium - em latim, bifurcagao, duplo procedimento, dupla ocu- pagio. croisillon - braco horizontal de uma cruz; conjunto de pegas dispostas em cruz, em algum objeto. hopeless: literalmente, desesperangado. No caso, pouco promis~ soras. indéniable - poderia ser traduzido por inegavel ou indenegavel. ‘A escolha do tradutor se baseia na sugestao de Lacan que Die Verneinung deveria se traduzir como denegagio endo como negacio. A negacao seria algo que se daria internamente a um julgamento, ja a denegacao se adequaria melhor A sugesto freudiana de que a verneinung corresponde & rejeicéo de uma idéia, ou, como sugere Hippolyte, a um “desjulgamento”.Como Lacan, neste seminério, se refere ao objeto “a” como indéniable, parece claro quendosetrata da impossibilidadedenegaciocomo algo interno ao julgamento. Por isso a escolha pela traducao “indenegavel” 249 Seminario de 27 de marco de 1968 Este semindrio no me parece absolutamente comecar em condig&es desfavordveis. A redugéo do nimero de vocés certamen- te é propicia ao que eu queria, quer dizer, que se troque aqui algu- mas questdes e talvez respostas ou uma colocagao em foco. Esse pequeno ntimero provavelmente tem a ver com condigdes diver- sas, inclusive até com o fato de que as férias se aproximam e tam- bém periodos de exame, e mil outros fatores. $6 temos a lastimar que alguns dos séniors de minha Escola que assistem a meus semi- nérios nao estejam aqui. Espero que surjam, porque adoraria que entrassem em acao. Mas se nao esto af, prescindiremos deles. ‘Como proceder? Recebi algumas cartas que responderam a minha solicitacao de perguntas. Poderiamos ler algumas. E preci- 0 que eu escolha, porque recebi um bom ntimero. O Senhor Soury esté af? Comego pela ciéncia. “Voce ligou os efeitos do significante a possibilidade de uma consegiléncia”. De fato 6 uma citagdo de uma de minhas frases, nao sei se, de passage, todo mundo lembra. Nao tive tempo de verificar em que momento, sob que incidéncia, eu a disse, mas isso nao tem grande importancia. No inicio de uma conferéncia, pro- vavelmente em resposta a alguma contradigio vislumbrada, devo ter destacado esse termo “conseqiiéncia” e esse fato (para conota- Jo com uma figura biografica) de quea esséncia do que avancamos como testemunho de nossa experiéncia, que os acontecimentos nela tém conseqiiéncias. Certamente devo ter introduzidoo termo “conseqiiéncia”, no momento em que o introduzi, com esta cono~ tac&o que toma por tudo o que ele levanta de reflexao e presentifica parands. f! que a propria nogao de “consegiiéncia” tal como pode- mos apreendé-la, enquanto nos ensina a refletir, esté ligada as fun- ces de seqiténcia logica. O que, primordialmente, tem conseqiiéncia é a articulagdo de um discurso com 0 que ele com- porta de seqiiéncia, de implicagdo. Podemos dizer que o primeiro campo onde podemos apreender uma necessidade, 6 0 da necessi- dade légica, Quando dizemos algo, isso tem conseqiiéncia, ou seja, podemos ser pilhados em tal desvio da frase, ponto de queda, con- cluséo, maneira de fechar e de concluir; esté implicito no proprio discurso. Vocé me diz: “nto, conseqiiéncia é utilizdvel para a sucessito ienporal, para os objetos deierministas” (nao entendo muito bem © que vocé chama de objetos deterministas) “... para a vida ani- tal”. cita,a seguir, para articular o que diz: “A conseqiiéucia do choque € que a particula tem por impulso...” Sim, nao sei se é a melhor utilizagio da palavra “conseqiiéncia”. Na medida do pos- vel, tentamos traduzir o efeito de chaque, a saber, a transmisséo de impulsos, em formulas que levarao ao minimo de conseqiiénei- as possiveis, e “conseqtiéncia” vem tomar seu lugar; voltaremos a isso, Preferimos dizer, no que concerne a lei da transmisséo do choque, a saber, o efeito de acao e reacdo, que tudo isso produziré conseqiiéncias a partir do momento em que se falar disso. Em outros termos, o que tem conseqiiéncias na experiéncia analisada, analisavel, absolulamente nao se apresenta, de fato, como efeitos que se concebem unicamente por uma fungao dinamica, ‘mas sim como uma dimensao de efeitos que implica que a questo esté colocada em um nivel que é demarcdvel como o das conseqii- éncias “linguageiras” Em outros termos, é porque um sujeito nao péde, de forma alguma, articular algo de primeiro, que seu esforco ulterior para Ihe dar, ndodiria mesmo significacao, sentido, mas articulacdo, no sentido propriamente em que esta articulagao ¢ feita em nada mais do que numa seqiiéncia significante, que toma forma mais precisa, acento de conseqiiéncia, a partir do momento en que se estabele- cem as escansées. F nessa dimensao que se desloca toda esta expe- riéneia que é a experiéneia analitica, enquanto 0 que ela focaliza, seguramente, ¢ toda a espécie de coisas que produzem efeito em toclos os outros registros além dos do puro e simples discurso. Mas, na medida em que se trata da mobilidade do que tem efeito, é to- mada nessa articulagao “linguageira” que ela nos interessa, ques- tiona, que podemos apreendé-la no campo analisavel. Por sua duracio, sua persisténcia, seu efeizo aderente ao que dura, ao que se mantem nesse esforgo de articulagio, poderemos, com efeito, medir indiretamente o que ha de deslocado no outro campo, que € precisamente o campo das forcas reais. Mas 6 sem- pre por algum né de conseqiiéncias, e de conseqiiéncias signifi- cantes, de articulagoes significantes, que podemas apreender o que ocorre. Claro, isso por si s6 nao se sustenta, em nenhum grau. Mas ja que vocés parecem ndo estar surpreendidos, quero apenas, nese nivel, dar um flash; é que o termo “conseqiiéneia” toma seu verda- deiro alcance, sua ressondncia, seu uso ordindrio, no nivel logic, € € precisamente porque se trata de uma retomada, de um trabalho, de uma elaboragao légica, que lidamos com algo de analisivel. Isso, & primeira vista. Claro que isso tudo sé se sustenta, na medida em que pudemos levar as coisas muito mais longe, dar uma formulagio desses efeitos que chamo de efeitos de sujeito, até estarmos verdadeiramente muito perto de lhes dar um estatuto. Mas é apenas um lembrete. Digo isso para reanimar a aten- 40, ajustar os ouvidos ao ardor de um discurso. ‘Vocé diz em seguida, como se fosse convincente: “sina crian- ca 6a conseqiléncia de um acasalamento”. Logicamente é suspeilo © uso desse termo “conseqiiéncia”. Quanto a isso, voc’ poderia fazer esse apelo a alguém: “afinal, é preciso ter uma minima previ- so da conseqiiéneia desses atos!". Vocé diria isso justamente por ter passado para o plano ético. Para o parteiro, vocé no falaria da gravidez como de uma conseqiiéncia, isso pareceria supérfluo. ‘Aesse respeito, voce acrescenta algumas observacées que nio tem mais nada a ver com meu curso, mas que sa0 pessoais; eu as leio ja que afinal, nao vejo porque nao as levaria em conta: “As 253 maleméticas sto desvindas como obscurantismo porque provavel- mente o rigor no manejo do significante se torna o Alibi da ausén- cia de rigor no uso do significante - classificacio social, indices de saldrio, notas de exame, estatistica. O encadeamento interno de demonstragio de definigdes 6 convertido em conferéncias, um desencadearnento de conferéncias; as matematicas modernas, com sua estrutura, permite formular as auséncias de rigor em ques- Mo, mas esta possibilidade mia é utilizada” .O que é que vocé quer dizer com isso? SOURY: Que as matemiéticas recentes permitem formular 0 abuso no emprego dos algarismos. Se é preciso fazer compreender ‘©.uso obscurantista, um exemplo é 0 zero na escola, que substituin ‘oboné de asno. A escola moderna nao pée boné de asno, mas ze- ros. O zero saiu dos algarismos, e se beneficia do prestigio dos algarismos e do prestigio de rigor dos algarismos. Como foi que o zero, saido desta tradigéo, tornow-se um in- sulto & disposicao do professor, uma etiqueta infamante utilizada contra os colegiais? A passagem espantosa é como uma criago de rigor, como 0 algarismo, ¢ o zero em particular, tornow-se um in- sulto contra 05 colegiais, um boné de asno, ¢ que seja ainda mais respeitado do que se fosse um. verdadeiro boné de asno! LACAN: Vocé acha que ¢ preciso fazer intervir as matemati- cas modernas para nos levantar contra, ou nos colocar questdes sobre o tema do uso do zero? © que vejo de interessante no que vocé diz, © que isso me sugere, 840 os pequenos pontos de histéria nos quais nao se pensa. Com eieito, desde quando se usa © zero na escola? Precisaria ha- ver testemunhos histéricos a esse respeito. F evidente que s6 se pode dar zero na escola a partir da época em que 0 zero funciona nas matemiticas, o que, como todos sabem, s6 pode ocorrer com a adogao dos algarismos arabes. Quer dizer que nao se dava zerono tempo dos pedantes romanos, porque o zero nao existia A partir de quando se usou a notagao de zero a vinte? Pode ser interessante, Entretanto, estender a reprovacao que inspira 0 254 vero concebido como uma arma a algo que seria inerente a0 uso clas mateméticas, me parece problematico. SOURY: Nao inerente. LACAN: Mas enfim, vocé faz alusdo a dimensao das mate- méticas modernas. Pensava, na verdade, que sua observacao seria mais proxima de algo que eu tinha sugerido, ndo que as estrutu- ras permitam formular auséncias de rigor, mas que, na logica des- ta matemitica, vemos surgir a necessidade, ld onde, levada por seu préprio desenvolvimento, ela precisou elaborar sua légica. Somos colacados frente a nédulos que séa inerentes & propria 16- gica, e que podem aparecer para nés como uma espécie de resso- nancia a algo que constitui em nosso campo, o campo da anélise, 0 que temos que elaborar de uma légica de um registro que é forco- samente diferente, porque se aplica a uma ordem totalmente ou- tra. Enfim, ndo nos elernizemos nesse tema. Tomarei outras questées. Rudrauf, vocé gostaria de fazer uma pequena escolha, den- tzo do que me escreveu? RUDRAUF: De fato, eu zetomei uma de suas formulas. Voce tinha, me parece - vivi isto desta forma- estigmatizado uma certa inversao de sua formula “o inconscienie é estruturado como uma linguagem’”. Alguém disse “por que nao, a linguagem é estrutu- rada como 0 inconscienie?”, ao que vocé respondeu claramenie que a lgica quer que se va do conhecido ao desconhecido, e nao do desconhecido a0 conhecido. Essa inversio de sua férmula me pareceu levantar um pro- blema de compreenséo da propria formula, no sentido em que dizer “o inconsciente é estruturado como uma linguagem” seria supor a linguagem conhecida e 0 inconsciente desconhecido, ja que afinal de contas essa linguagem. - ¢ que linguagem? - a ima- gem da qual vemos estruturar-se o inconsciente, sera tao perfeita- mente conhecida? E esse inconsciente a que nos referimos, sera to perfeitamente desconhecido? Por ocasido de um seminério seguinte, vocé sustentou certas proposicGes que me pareceram... em que vocé disse: “Se digo que 255 0 inconsciente 6 estruturado como uma linguagem, isso nao quer dizer que eu o saiba”. F evidentemente colocar toda a questo do conhecimento da andlise, ou do conhecimento, através ou pelo vids, pelo meio da articulagao légica. Mas todas as pessoas que s40 con» frontadas com os problemas analiticos, sA0 confrontadas com 0 problema de saber o que se passa, 0 que 0 doente sabe, 0 que 0 doente ends mesmos aprendemos sobre esse X que é0 inconscien- te. Afinal, por que dizer esse X? Por que eu estruturo aqui o in- consciente através de X? Quer dizer, a linguagem matemitica ou através de uma figuracao matematica LACAN: X nao é por si mesmo uma formulagao equivalente a desconhecido. F na linguagem romanesca que se designa um desconhecido por Sr. X ou Sr. ¥. O uso matematico de X nao é absolutamente algo que valha para desconhecido. X designa o que se chama uma varidvel. Nao é a mesma coisa RUDRAUF: Em um problema proposto, 0 X € igual a desco- nhecido, na linguagem do aluno pequeno. LACAN: Bom, vamos deixar 0 X de lado. Nao acredito ter jamais designado o inconsciente, embora 0 considere - voce diz muito bem - como, sendo descanhecido, pelo menos em principio muito menos conhecido para nds, em sua fungao de inconsciente, do que a linguagem, e nao sem razao, nem por isso o identifique! fungio habitual em matemdtica do uso da letra X . Pelo contrario, vocé aproxima duas coisas que so, evidente- mente, totalmente legitimas de comparar, que séo 0 que eu disse primeiro, que nao 6 absolutamente a mesma coisa dizer que o in- consciente é estruturado como uma linguagem ou dizer que a lin- guagem é estruturada como o inconsciente, primeiramente porque a segunda, na verdade, nao tem qualquer sequéncia. Quis-se for- mular coisas e bem perto de mim, de uma forma que é muito mais aguda, muito mais propensa a conseqiiéncias; que é sobre a ordem do inconsciente que pode fundar-se a possibilidade de linguagem. Isso tem pretensGes maiores que a outra e é mais perigoso, por assim dizer. Nao é menos fragil, mas ¢ mais insinuante. 256 Pelo contrério, quando digo que posso implicar nessa dimen- siio, nesse percurso que é o do meu ensino, toda esta parte de mi- nha posigao que nao é saber, é uma retificagio. E mais que uma retificagdo; € tentar introduzir aqui que possa haver, quando se trata de um analista, um ensinamento que se sustente sem com- ortar esse prinefpio de que hd, em algum lugar, algo que elucide ineiramente a questo, de que ha um sujeito suposto saber. Digo que podemos de fato avangar nesse ensinamento muito precisamente na medida em que haja essa formula como ponto de partida, sem que isso implique que, nés também, nos coloquemos nessa posicao que chamei propriamente de professoral, e que é a que sempre elide que o sujeito suposto saber, de alguma forma, esta ld, que a verdade ja esté em algun lugar. Para onde aponta sua observacao, uma vez que vocé fez a comparagio que jd disse que aceito? RUDRAUF: Se retomo o texto tal como formulei, ela indica que dizer que o inconsciente é estruturado como uma linguagem & marcar que, & primeira escuta, o inconsciente estd representado como um campo existente, segundo uma outra de suas formulas, existindo antes de quem o saiba, reenviando-nos assim a outras formulas reversiveis para perguntar: de que forma éestruturado o inconscient. Poderiamos dizer “o inconsciente é estruturado como os sin- tomas”, porque nés procuramos a significagao psicanalitica do sin- toma; que o inconsciente é estruturado como o sonho (certamente se pode dizer que 0 sonho é estruturado como uma linguagem), que o inconsciente é estruturado como um desenho de crianca. LACAN: Contestando que o inconsciente é esiruturado como uma linguagem, nao se vai longe, Asseguro que se tem muito mais raz6es para contestar que o sonho seja estruturado como uma lin- ‘guagem. Se 0 sonho ¢ estruturado como uma linguagem, é justa- mente na medida em que 0 sonho é a via "epia do inconsciente, mas ele nao € 0 inconsciente por si mesmo. E um fenémeno que tem varias outras dimensdes além de ser a via régia do inconscien- tee podemos falar do sonho de outras formas que néo falando do inconsciente. E até lastimavel que nao se dediquem mais ao fend- meno do sonho, tendo jé liberado, extraido suas relagdes com 0 inconsciente. HA todo tipo de dimensées do sonho que mereceriam ser ex plicadas. Quando vejo tal personagem, que felizmente escreve em uma revista obscura, de forma que isso me evita ter de batalhar muito contra um modo de objecao que, na verdade, é totalmente lamentavel, quando um personagem nos expde alguns tracos aos quais acredita poder dar consisténcia dessa forma, de que um dos efeitos do que ele chama de trabalho do sonho é a violéncia que ele exerce sobre algo, cuja matéria dada, no fim das contas, ele nao contesta absolutamente que seja “linguageira”... é a deformacio, implicada de forma totalmente suméria no que diz respeito a inci- déncia do desejo, que caracteriza o sonho. Ele pode encontrar aqui ow ali, e sem qua.quer dificuldade, apoio para suas observacées, nos textos do proprio Freud. Mas nao se pode dizer que ele contri- bua com algo que vé ao cerne da questdo. Absolutamente naonego que a linguagem, no sonho, ainda que fosse apenas em razao da “rucksicht auf darstellbarkeit”, das consideragées devidas & ne- cessidade da representacao, e de muitas outras coisas mais, sofra deformacées extremamente importantes, contracées, distorcdes. Nao apenas no nego, mas quem pensaria em negé-lo? Se o sonho me interessa na medida em que nele aparece, e de principio, esse mecanismo que identifiquei metéfora e & metonimia, jé que isso se impée, éjustamente na medida em que o sonho é a via régia do inconsciente. Nao é outra coisa. Isso nao esgota o que é a substin- cia do sonho, de forma que se outra coisa intervem nele, isso ndo representa objecao alguma. Entdo nao vamos insistir muito nesse artigo, se nao for para marcar que a confusao entre as nogées de “violéncia sofrida” ea de “trabalho” é no minimo estranha, do ponto de vista filos6fico. A confusao do trabalho do sonho com a violéncia é uma espécie de representacio que nao nego, no final das contas, que ela seja algo de aparentado a linguagem, mas todo o seu interesse seria nos apresentar de uma maneira distorcida algo inteiramente singular, e que evidentemente s6 pode ter como sua fonte o fato de sair de 258 um lugar de trabalho, sendo de violéncia, onde se tem como prin- cipal objetivo distorcer 0 que eu digo. Desta forma, eu me pergunto como poderiam, no mesmo li- vro, dedicar-se a distorcer qualquer coisa, se nao tivessem como matéria prima precisamente o que eu digo (trata-se do curso do Sr. Ricoeur, exatamente). RUDRAUF: Acho que esta questo do sonho como via régia do inconsciente esta de fato diretamente ligada a esta descoberta de Freud, de que o sonho fala, de que o sonho é estruturado como uma linguagem, e que para compreender o sonho, para interpre- tar o sonho, é preciso traduzi-lo em linguagem, transformar o que até entao-aparecia como uma série de imagens em uma série linguisticamente ordenada de significantes. ‘A questo que acreditava levantar (retomar a sintese dessa questo me custa) é esta: essa linguagem que é, ao mesmo tempo, a via pela qual tentamos cheger ao inconsciente e o objeto que in- vestigamos, qual 6 essa linguagem? E de quem ¢ ela? Isso nos con- duz a questdo do sujeito enquanto ele é um fato de linguagem, e da linguagem, na medida em ela é linguagem apenas enquanto reveladora do sujeito para nés, ato do sujeito. E, aproximadamen- te, neste nivel que se coloca a questao. LACAN: A linguagem nao € absolutamente ato do sujeito.O discurso pode, ocasionalmente, ser ato do sujeito. Mas a lingua- gem, precisamente, nos pde diante de algo que é exatamente um salto, e um salto abusivo, decidir sobre esse ponto, do qual tam- bém nao digo que possamos dizer o contrério. Fiz alusao a dimen- ses, em particular a uma delas que se chama o “indecidivel”; por que nao utilizé-la, neste caso? Nao digo que possamos demonstrar que ela nao é ato do sujeito. O fato de nao poder demonstré-lo, evidentemente nao elucida nada. Mas enfim, isso também nao nos permite afirmar, de forma alguma, que a linguagem seja ato de sujeito, o que estd evidentemente implicado em toda a posi¢ao dita de investigacio, qualquer que seja, da origem da linguagem, que consiste em imaginar o que até o presente ninguém chegou a ima- 259 ginar de uma forma satisfat6ria, a saber, como péde ocorrer que um belo dia houvesse os que falavam. Constato simplesmente que, na histéria da lingiifstica, foi muito precisamente no dia em que um certo ntimero de pessoas se reuniram, assumindo o compromisso de honra de nao levantar esta questdo, que a lingiiistica pode surgir. E simplesmente um fato histérico. Nao tem mais conseqiiéncia do que o fato de que, um dia, alguém (chamado Lavoisier) tenha dito que, em todas essas manipulagtezinhas dos quimicos, 0 que tivesse entrado na esfera, no comeso e no fim, seria pesado. Isso ndo quer dizer que tudo é uma questao de balanga, na quimica. Longe disso, como a seqiiéncia provou. Mas é da mesma ordem. £ um ato decisivo, na partida. Vao justamente abster-se de pensar tudo o que poderia fazer surgir a linguagem como ato de sujeito, A partir desse mo- mento, a coisa extraordindria é que se verifica que, apesar de tudo, fazem achados validos em matéria de lingiiistica, e é necessério reconhecer que no havia nem traco disso antes, por mais que se observe. Nao é preciso esquentar os miolos para descobrir que 0 “Cratilo” nao tao mau assim. Jé havia, portanto, pessoas capa- zes de dizer coisas razoaveis, mas isso nao constitui absolutamen- tenem mesmoa amostra de uma ciéncia da linguagem. A lingiifstica nasceu a partir de um certo momento que, como todos os momen- tos de nascimento de uma ciéncia, é um momento desta ordem, da ordem prética; alguém comecou a manipular a matéria impondo-se cettas leis exclusivas e limitando-se a um certo ntimero de opera~ Ges. A partir desse momento, alguma coisa é possivel. Nao 6 mais demonstrativo. Comega a tornar-se demonstrative a partir do mo- mento em que nos colocamos quesiées sobre o que se pode chamar de “efeita de sujeito”, a saber, como se dé a interdigio de um certo. muimero de registros. Seu descarte permite determinar melhor o que se opera como efeito de sujeito, que nao ¢ forgosamente um sujeito homogéneo aquele com o qual temos a ver em um uso cor- rente, ordinério, da linguagem. Mas nos interditamos justamente algo que, quando se olha de perto, resulta em limitar a linguagem; nao em dominé-la, superd-la, em inscrever o que se chama uma “metalinguagem’” ou uma “metalingua” no que quer que seja, mas, ao contrério, em isolar certos campos; € entao se produzem efeitos 260 de sujeito, que alids ndo sic forgosamente sujeitos humanos ou sujeitos falantes. Também nao acho que 0 termo “sujeito”? para indicat o campo de uma ciéncia seja forgosamente mal escolhido. Falei da quimica ou da lingiifstica. Hé um “sujeito” da quimica, da lingiiis- tica, como também ha um “sujeito” da légica moderna. £ mais ou menos estabelecido, vai mais ou menos longe, é mais ou menos flutuante, é para nés inteiramente capital tomar essa espécie de +eferéncia para entender o que dizemos quando falamos do esta- tuto do sujeito. E evidente que o estatuto do sujeito com o qual nos ocupa- mos na andlise nao 6 nenhum desses “sujeitos”, assim como tam- ‘bém nenhum desses outros sujeitos que podem ser situados no campo de uma ciéncia atualmente constituida, RUDRAUF: Eu teria gostado de esclarecer que quando disse “a linguagem € um ato do sujeito”, queria dizer o seguinte: é quea linguagem que vocé nos da, seu ato de um discurso, é seu ato, mas na medida em quea linguagem nao é ato do sujeito, acho que deve ser definida como sendo o lugar do ato do Outro. LACAN: Sim, 6 escabroso, eu passaria a pergunta para nosso caro Nassif, mas Nassif fez a esse respeito um trabalho de resumo de tudo 0 que fiz no ano passado, acrescentando uma nota que ainda teremos que aproveitar amplamente. Néo quero abusar dele, nem de vocé, pedindo que responda sobre esse tema, Em todo 0 caso, 0 que vocé disse 6 ousado. E mais que ousado, é criticavel. Infelizmente, o tempo é limitado e nao posso desenvolver isso tudo camo canvém Gostaria, porque tenho sempre um pouco de escriipulo em fazé-los se dar ao trabalho de vir sem que saiam com alguma coisa na sacola, de tentar aproveitar que estamos hoje em ntimero redu- zido. Insisto - é sobretudo para mim, mais que para qualquer ou- t10, que isso pode ser depreciativo - sobre a auséncia aqui de um certo ntimero de pessoas que, em outros momentos, sto assiduas ao que desenvolvo este ano, neste seminério. Por que sera que nao esto aqui? Sera porque eu talvez pudesse Lhes pedir para respon- 261 der em meu lugar ao que se enuncia aqui? Quem sabe? Nao se sabe, talvez seja por isso... Pode ser também porque tém um tal sentido de economia de seu tempo que, se acreditam que 0 que digo aqui sdo ninharias, a partir do momento em que seria apenas um esforco de trabalho, pensam que nao tirariam suficiente pro- veito. Quem sabe? Também é possivel. Em suma, eu lastimo... Pelo contrario, eu me felicito da presena de todos os que se dignaram a vir ouvir algo, e € para eles, e porque estamos em uma reunio pequena, que afinal eu queria poder fazer sentir - pois tam- bém ha aqui varias pessoas que recebi com prazer, embora nao sejam analistas - fazer sentir a amplidao do que esta em jogo, que também me leva a nao poder dizer tudo e qualquer coisa diante de qualquer assisténcia, quero dizer, de uma assisténcia que eu nao possa determinar tanto quanto posso hoje, vendo todos os seus rostos, a que tenho aqui. Escrevemos no quadro. Todos os homens amam a mulher Todos os psicanalistas desejam saber Eu nao penso Eu nao sou .. justamente para presentificar as coisas, jé que se trata de sujei: tos; eis aqui sujeitos que séo evidentemente muito menos manejé- veis e sobre os quais, felizmente, a lingitistica nos dé orientacdes. Eevidente que ja estamos um pouco orientados, gracas a meu discurso; af esto sujeitos que encontramos, a primeira vista, de- signados em grego como 0 cue se chama habitualmente de “sujei- to gramatical”. O sujeito da frase é em certos casos a sujeito que se pode introduzir em uma légica proposicional e reencontrar as f6r- mulas aristotélicas da légica predicativa, com o auxilio de modifi- cages infimas: “todos os homens so amantes da mulher”, “todos 08 psicanalistas sao desejantes de saber” O interesse da coisa é que sao proposigdes que, por causa da presenga do “todos”, caem na esfera de influéncia do que introdu- Zi este ano, e ndo sem motivo, como a implicagao do que se chama a “légica quantificadora”. 262 E evidente que escrever “todos os homens” ou escrever “to- dos os psicanalistas” é uma forma que é distinta daquela que se ‘marca nas duas outras frases que estao abaixo, por implicar o que? O que sempre coloquei em causa para distinguir severamente, por implicar no enunciado o sujeito da enunciagao. E evidente que a légica da quantificacao nos interessa é no nivel do que se chama “a universal”; e desde que vocés fagam in- tervir a universal, é claro que o que é interessante, 0 que da seu relevo, so coisas que eu exponho aqui de uma forma familiar, ow seja, que nao é estritamente rigorosa do ponto de vista da demons- tragdo. Quero dizer que as proposigdes que vou sustentar antes de deixé-los, séo principalmente coisas onde me permito uma certa liberdade com relagao a certas exigéncias de rigor que nao sao fti- teis, as quais estou absolutamente obrigado a me submeter em um discurso muito ptblico. Aqui, no terreno do companheirismo, posso dizer coisas como a que digo agora, a saber, que é bem evidente que vocés devem sentir para que nos interessa uma formula como, por exemplo, aquela de que todos os homens sao mortais; é para mostrar que hé algo que é sempre profundamente elidido e que, de alguma forma, constitui 0 encanto secreto, o lado aderente, 0 lado que, apesar de tudo, faz com que nos envolvamos de tal for- ma, que fiquemos to interesszdos nessas coisas prodigiosamente simples que sao os silogismos exemplares que nos sao dados. Se, na verdade, s6 se tratasse de saber que todos os homens sao mor- tais e que Sécrates, sendo um homem, é mortal, aqueles que s6 ouvem isso assim, diriam o que sempre disseram: “Com 0 que parece isso? F uma peticao de principio. Se vocé acaba de dizer que Socrates é um homem, como poderiamos negar que Sécrates é mortal, sendo colocando cm questo 0 que se postulouno inicio?” Foi Locke que descobriu que é uma peticao de principio. E uma perfeita idiotice, nao hé nenhuma petigao de princi- pio. Hé algo cujo interesse passa por um lugar totalmente outro. O interesse esté evidentemente - esté nas mangas do prestidigitador ~ em que nao é absolutamente fiitil falar cle Sécrates nesse caso, j4 que Sécrates nao é mortal & maneira de todos os homens, e que 6 precisamente isso que, afinal de contas, nos retem e até nos excita; endo é simplesmente por uma incidéncia lateral devida a particu- 200 laridade da ilustracao, e sim porque ¢ exatamente disso que se tra- ta, bem no fundo da ldgica; sempre de saber como se poderia estar quites com esse sagrado sujeito da enunciacao, o que nao se conse- gue facilmente, especialmente no nivel da logica da quantificagao, que é particularmente resistente Portanto, este sujeito quantificado nao absolutamente a mesma coisa que este sujeito muito mais perturbador, que agora se qualifica, se designa nominalmente e, de uma forma que se pode dizer desvelada, como sujeito da enunciagao, o que os lingiistas foram forcados a reconhecer dando ao “eu” esia definigao de ser 0 shifter, que é 0 que falha em relacao ao principal’, em outros ter- mos, 0 indice daquele que fala. Dito de outra forma, “eu” é varid- vel ao nivel de cada um dos discursos, ¢ aquele que o sustenta que édesignado por ele, donde resultam todo 0 tipo de conseqiiéncias, em particular que toda uma série de enunciados que tém o “eu” como sujeito, sejam muito perturbadores. Detiveram-se longamente no “eu minto”, através dos tempos; que eu tenha acrescentado o “eu nao penso” e “eu nao sou” seguramente tem seu interesse, um interesse que vocés so capazes de ver em todos os seus desenvol- vimentos. Certamente, é muito mais interessante deter-se no que tem de impossivel o “eu nao sou", do que nesse “eu minto”. £ tao. Sbvio que nao se pode verdadeiramente dizer, por assim dizer, esse “eu nao sou”, que vale a pena nos determos um pouco nele, sobretudo se podemos Ihe dar um suporte que ¢ inteiramente pre- ciso quanto ao que est em questo, a saber, quanto ao sujeito do inconsciente. E que desde que se perceba (nao sei se voces ainda estio lé, ‘mas pode acontecer), quando se percebe a impossibilidade de zer Nao que isso seja, pois justamente isso 6, isco é que eu néo sou, 6 tao verdadeiro para vocés quanto para mim; e a partir do mo- mento em que vocés percebam, o “eu sou” parece se tornar néo impronunciavel, 6 sempre pronuncidvel, mas simplesmente gro- tesco. Ora, hd um grande interesse de realizar essas coisas desde que parecam coerentes, e estritamente coerentes, pela introducdo mum certo dominio que é o das questées que a existencia ou nao do inconsciente coloca. 264 Seja como for, trata-se naturalmente de saber porque eu me ocupo este ano do ato psicanalitico, de um lado, e do psicanalista, do outro. Tudo estando centrado em torno deste ato (continuamos na linguagem familiar de hoje, repito, “centrado em torno” nao quer dizer grande coisa), € evidentemente falso que todos os ho- mens amam a mulher. Temos, hoje em dia, bastante experiéncia. Sempre se soube, justamente, que para (digamos) uma metade da sociedade (sejamos condescendentes) isso nao é verdadeiro, é fal- so; mas no resolve nada, que isso seja falso. O importante no 6 absolutamente saber que é grosseiramente falso; o importante 6 perceber que se podemos admitir simplesmente que isso nao é ver- dadeiro, é pelo fato de que existem os que se enganam; nao sei se vooés se do bastante conta de que isso tem o ar de ser a hipstese da psicandlise, Para ser bem precisos, digamos mesmo que nao quero dizer que para a psicandlise, em todos os casos, é porque existe os que se enganam, que eles preferem outra coisa. A psica- nalise pode bem (ai, € moleza) permitir-se toda a prudéncia, Ela pode dizer que hé homossexuais masculinosnos quais isso se deve a coisas organicas ou glandulares, ou qualquer outra coisa dessa espécie. Ela pode dizer qualquer coisa deste tipo, nao The custa nada. Alids, é notdvel 6 0 ntimero de coisas que nao lhe custam nada. Mas quanto ao que lhe custa, ela é muito menos precisa; pare- ce que ela jamais levantou a questo do que implica, pelo menos para aqueles em que tem que fazer intervir a hipdtese de que, se isso nao é verdade, é porque existem (resumo) os que se enganam; isso tem seu equivalente na teoria analitica, mas é disso que retor- na. Aqui, gostaria de chamar a atengao para que sc trata de saber (sim ou nao) se isso a que poderiamos dar corpo mais sutil “todos os homens amam a mulher” (vocés notarao que coloquei “a mu- Iher”; quer dizer, a entidade do sexo oposto), é algo que um psica- nalista toma ou néo como verdadeiro. £ absolutamente certo que ele nao pode tomd-lo como verdadeiro, pois o que a psicandlise sabe é que todos os homens amam, nao a mulher, mas a mae. Iss0, certamente, tem todo o tipo de conseqiiéncias, inclusive, no extremo, pode ocorrer que os homens nao possam fazer amor 265 com a mulher que amam, porque ¢ sua mie, enquanto, por outro lado, podem fazer amor com wma mulher com a condicdo de que ela seja uma mae depreciada, quer dizer, uma prostituta. Continuemos no sistema. Queria levantar uma questio; no caso em que um homem pode fazer amor com a mulher que ele ama (0 que também ocorre, nem sempre ele é impotente com as mulheres) ainda assim eu queria saber 0 que implica a seguinte questo, que é uma ligeira modificagao do enunciado universal que escrevi “todos os homens amam a mulher”; é verdade que todos os homens desejam uma mulher (af nao é mais “a” mulher) quando ela é proposta como tal, ou seja, enquanto objeto a seu alcance? Suponhamos que nao ha impotentes, suponhamos que nao ha rebaixamento da vida amorosa, levanto uma questio que mos- tra bem a distingao entre o que chamarei “o fundamento naturalis- ta” ¢ o que se chama “a reserva organicista”, pois ndo é a mesma coisa dizer que, nos casos dos quais temos que nos ocupar na psi- candlise, hd casos que dependem do organico, nao é absolutamen- te em nome disso que queremos levantar a questo de saber : seré evidente - e aqui vocés verdo que se 6 forcacto a colocar coisas que mostram bem como ¢ artificial o que suscito, porque seré preciso inicialmente que eu diga: removido de todo o contexto, a saber, do contexto de seus compromissos, de seus lagos, lacos que tem ante- siormente a mulher, disto ou daquilo - serd que existe algo que, em principio, seja natural? Digamos, nessas situacdes (6 bem notavel que 0s romancistas sejam forgados a um trabalho danado para inventé-las), a saber, a situacao que eu chamaria (ndo sei como chamié-la, ela é impensével) a situagio do chalé de montanha, um homem, uma mulher, normalmente constituidos, isolades, como se diz, na natureza; nesta situagao é natural que eles fagam amor? Eis a questo. ‘Trata-se do naturalismo do desejavel sta é a pergunta que faco. Por que? Nao é, de forma alguma, para dizer coisas que fagam em seguida o circuito de Paris, a saber, © que Lacan ensina quer dizer que o homem e a mulher nao tem nada a ver. Nao ensino isso; 6 verdadeiro. Textualmente, eles nao tem nada a ver juntos. F chato que nao possa ensind-lo sem que isso faga escandalo; ento nao ensino, eu retiro, 266 FE justamente porque eles néo tem nada a ver que o psicana- lista tem algo a ver com este negocio (vamos escrever no quadro), STAFERLA‘. E preciso também saber usar uma certa forma de es- crita. Certo, eu nao ensino. Por que? Porque mesmo que seja 0 que resulta de uma forma que se impéc estritamente, por tudo o que nos ensina a psicandlise, a saber, que nao é jamais “tenus fenrina”> (igo “femina” nem mesmo “mulier”)*, enquanto mulher, que ela € desejada, que é preciso que o desejo se construa sobre toda uma ordem de meios onde o inconsciente é absolutamente dominante e onde, em conseqiténcia, intervém toda uma dialética do sujeito. Enunciar, desta forma bizarra, que o homem ea mulher final- mente nao tem nadaa ver juntos, é simplesmente marcar um para- doxo, um paradoxo sem alcance maior, mas da mesma ordem que esse paradoxo da Idgica que citei para vocés, da mesma ordem do “eu minto”, ou do paradoxo de Russell, do catdlogo de todos os catalogos que nia se contém a si mesmos. £ a mesma dependén- cia Evidentemente, nao hé interesse em produzi-los como se se tratasse justamente do tinico ponto onde constituiriam, no caso, nao mais apenas um paradoxo, mas um escandalo, a saber, se hou- vesse ai uma referéncia naturalista. Quando alguém escreve, em uma notinha ou em outro canto, que parece haver, na forma pela qual Lacan reinterpreta Freud (é um Freud-Lacan), uma elisao da referéncia naturalista que, entre- tanto, haveria interesse em conservar, eu, ao contrério, pergunto 0 que pode atualmente subsistir da referéncia naturalista relativa ao ato sexual, apés o enunciado de tudo 0 que esta articulado na ex- periéncia ena doutrina freudiana. E justamente por dar a esses termos “o homem” e“a mulher” um substrato naturalista, que se chega a poder enunciar coisas que se apresentam, com efeito, como loucuras. E por isso que nao as pronuncio. Mas 0 que pronuncio hoje - ha um numero notavel- mente insuficiente de psicanalistas aqui - 6 a seguinte questo: 0 que é que 0 clinico pensa do instinto (vocés sabem que uma pala- vra como essa jamais pode sair da minha boca por acaso), em nome san de seu instinto de clinico (fieara por definir o que é 0 instinto de clinico), a propésito da histéria do chalé da montanha? Basta que se refiram ndo somente a sua experiéncia, mas & sua intuigdo intima. O tipo que vem contar a vocés que estava com ume bela moga no chalé da montanha, que ele nao tinha qualquer motivo para nao “ir em frente”, simplesmente nao teve vontade, voet vo dizer “ah, tem algo ai, isso nao pode funcionar”. Voces procuram primeiro saber se isso Ihe acontece com freqiiéncia, de ter paradas como essa; em suma, voces se langam em toda uma especulacdo que implica em que isso devia funcionar, Isso simplesmente para mostrar que se trata é da coeréncia, da consisténcia das coisas ao nivel do espirito do analista. Pois seo analista teage assim por instinto, instinto de clinico, nfo hé mes- mo necessidade de fazer intervir af, por tris, a ressonancia natura- lista, a saber, que ohomem e a mulher sio feitos para ir juntos. Eu nido disse 0 contrério, eu disse: eles podem ir juntos sem ter nada a ver juntos; eu disse que eles nao tinham nada a ver juntos. Se o clinico, a esséncia clinica intervem para marcar de uma certa forma, trata-se de saber se é algo que ¢ (talvez, por que nao? - isso existe) simplesmente da ordem do bom senso (nao sou con- txa o bom senso}, ou se ¢ outra coisa, A saber, sc ele se permite, 0 analista, que tem todas as razes para saber, ou se esta mulher que, repito, para o psicanalista nao é de modo algum automatica- mente desejada pelo animal macho quando esse animal macho é um ser falante, essa mulher se cré desejavel porque é 0 melhor que tem a fazer em um certo embaraco. E depois, isso leva ainda um pouco além. Nés, nés sabemos que, quanto ao parceiro, ela acredita am4- Jo, 6 até o que domina. Trata-se de saber porque isso damina no que se chama “sua natureza”, Sabemos também muito bem que 0 que domina realmente é que ela o deseja. F por isso mesmo que ela acredita ama-lo. Quanto ao homem, claro, conhecemos a misica. Para nés, esta absolutamente repisado. Quando acontece que ele a deseje, ele acre- dita desejé-la mas ele tem que lidar, neste caso, com sua mae, por- tanto ele a ama. O que ele Ihe oferece? O fruto da castragio ligada 268 a esse drama humano. Ele Ihe dé 0 que nao tem mais. Sabemos disso tudo. Vai contra o bom senso. Serd que € simplesmente a manutengao do bom senso que faz com que o analista, com esse instinto de clinico, pense, apesar de tudo, que uma vez que nao haja nada disto, porque o romancista fez tudo para que o chalé na montanha nao esteja mais no horizon- te, se isso nao funciona ¢ por que tem algo ai? Pretendo que nao é simplesmente em razao do bom senso. Pretendo que hé algo que faz justamente com que o psicanalista esteja, de alguma forma, instalado, instaurado na coeréncia. Ele 0 est4, pela razo muito precisa que faz com que “todos os psicana- listas desejam saber” seja tao falso quanto o que esta enuinciado em cima, edo qual é preciso saber porque¢ falso. Claro, nao ¢ falso pelo fato de que seja falso, uma vez que se pode sempre escrever, mesmo se todo o mundo sabe que é fal». Nos dois casos, hd em algum lugar um mal-entendido. ‘Apés ter definido o ato psicanalitico, que defini de uma for~ ma muito ousada, até coloquei no centro esta acepgao de ser rejei- tado A maneira do objeto “a”... 6 impressionante, novo, nunca ninguém disse isso, isso se torna tangivel, ¢ tangivel; ainda assim poderiam tentar me contradizer, dizer 9 contrario, trazer outra coisa, levantar uma objegao. £ curioso que desde entao, nao faz tanto tempo que o coloquei em primeiro plano, ninguém teaha nem mesmo comecado a tentar dizer qualquer coisa contra, embo- raseja, no fundo, absolutamente impressionante. Poderiam gritar, dizer: “Que histéria é essa? Jamais o fim da andlise nos foi expli do assim! Que analista é esse, que 6 rejeitado como merda?!” merda perturba muitas pessoas... Nao ha apenas merda no objeto “a’’, mas é frequentemente a titulo de merda que o analista é rejei- tado. Isso depende unicamente do psicanalisando; é preciso saber se, para ele, é verdadeiramente de merda que se trata. Mas é sur- preendente que todas essas coisas que digo, posso desenvolver esse discurso, articulé-lo, comecar a fazer gizar uma pa de coisas em torno, antes que qualquer um pense em levantar o menor protesto e dar uma outra indicaco, uma outra teoria sobre o tema do final da andlise. Curioso, curioso... Estranha abstengao, porque, no con junto, é algo que comporta todo o tipo de conseqiiéncias perturb: 269 doras, Poderia sugerir uma espécie de inventividade na contradic do... Nada, zero! Portanto, se ninguém levanta a menor oposigao, é porque, ainda assim, percebe-se muito bem, sabe-se muito bem que o mal entendido, quer se trate da primeira proposigao ou da segunda, gira em tomo de que o psicanalista, ele, nao tem que meter seu grao de sal. fi uma metéfora, isso quer dizer que ele - quero dizer, 0 psicanalista - nao tem opinio a dar l4 dentro, sendo na medida em que entre na danca. £ absolutamente claro que nés nos perde- mos, se partimos da idéia de que o psicanalista éaquele que pode conhecer mais que qualquer outro, no sentido que sobre todo esse assunto do que 6 0 ato sexual e oestatuto que resulta dele, ele teria um distanciamento que faria com que tivesse 0 conhecimento da coisa. Nao é absolutamente disso que se trata. E também por isso que ele nao tem que tomar partido, se é natural ou nao natural, em que caso é, em que caso nao é. Simplesmente, ele instaura uma experiéncia na qual ele tem que meter seu grao de sal, em nome desta funcao terceira que é esse objeto “a”, que desempenha a fun- co chave na determinacao do desejo, que faz com que seja, com efeito, o recurso da mulher no embaraco em que a deixa 0 exerci- cio de seu gozo, em sua relagao com 0 que € do ato. Posso ir muito longe, posso dizer “o que Ihe é imposto”... Pareco, alids, estar fa zendo uma reivindicagao feminista, mas nao acreditem nisso, é muito mais amplo que isso, o que Ihe é imposto esta em sua estru- tura, isso que a designa na dramatizagdo subjetiva do que é 0 ato sexual, que Ihe impée a fungio do objeto pequeno “a”, na medida em que ela mascara um oco, um vazio, essa coisa que falta no cen- tro e da qual se pode dizer - que é esta coisa que tentei simbolizar = que parece que o homem ¢ a mulher nao tém juntos (e guardem a escolha dos termos que usei) nada a ver. Em outros termos, como ela, por seu lado, nao tem qualquer motivo para aceitar essa fun- 80 do objeto pequeno “a”, ocorre simplesmente, nessa ocasiio, na ocasiao de seu gozo e da incerteza deste em sua relacdo ao ato, de se dar conta da poténcia do embuste, mas de um embuste que nao € oseu, que é algo diverso, que é precisamente imposto pela insti- tuicdo, na ocasiao, do desejo do macho. 270 © queo homem, por seu lado, descobre, nfo é nada além do que hé nele de impoténcia em visar qualquer coisa além - do que? - claro, de um saber. Sem dtivida existe em algum lugar, e desde a origem, para nos entregar a elucubragSes desenvolvimentistas, um certo saber do sexo; mas nao € disso que se trata. Nao é de que todas as criangas, macho ou fémea, tenham sensagGes as quais nao deixam de ter acesso e que podem canalizar mais ou menos bem. £ ao saber de um sexo, que se trata de chegar. Trata-se precisamente disso, é que nao se tem jamais o saber do outro sexo. Quanto ao que é do saber de um sexo, do lado macho a coisa vai muito pior que do lado fémea Nao creiam que, quando digo que nao ha ato sexual, eu esteja defendendo algo que signifique o fracasso radical de tudo o que se passa a esse titulo. Digamos que, tomando as coisas no nivel da experiéncia psicanalitica, permanecendo nesse nivel (notem bem que faco ai uma reserva), esta nos demonstra que esse saber de um sexo para o macho, quando se trata portanto do seu, redunda na experiencia da castracao, quer dizer, em uma certa verdade que é ada suaimpoténeia, da sua impoténcia em fazer, digamos, algo de pleno do ato sexual. Vocés notam que tudo isso pode chegar bastante longe, quer dizer, esse bonito balanceamento literdrio da poténcia da mentira, por um lado, e da verdade da impoténcia, pelo outro; ha um entrecruzamento, Notam portanto quao facilmente tudo isto ten- deria para uma espécie de sabedoria, até mesmo de ensino de sexologia, como se diria, qualquer coisa que pudesse se resolver pela via da pesquisa de opinido. Em relagio ao psicanalista, 0 que quero salientar é que 6 preciso perceber que ele nao tem direito algum de articular, em qualquer nivel, essa dialética entre saber e verdade, para fazer dela uma soma, um balango, uma totahzacao pelo registro de um fracasso qualquer, pois nao € disso que se tra- ta. Ninguém estd em posicao de dominar o que esté em questao, que nfio é nada mais que a interferéncia da funcao de sujeito com relacdo ao que é deste ato, do qual nem mesmo podemos dizer onde é tangivel, em nossa experiéncia (quero dizer analitica), sua referéncia -ndo digamos “natural”, ja que € aqui que ela se desva- nece - mas sua referéncia biolégica. 271 O ponto onde estou quando digo que a regra para que oana~ lista escape a esta vacilacao que o faz facilmente recair nessa espé. cie de ensino ético, é que ele se dé conta do que est em questéo no proprio lugar do que condiciona a vacilagio essencial, a saber, 0 objeto pequeno “a”; e que em vez de se considerar, ao fim desses anos de experiéncia, como 0 clinico, ou seja, aquele que sabe fazer aavaliacao do assunto em cada caso, ele prefira se dar -o que dizia a0 final cle meu ultimo discurso, na ponia do que disse na ltima vez ante que chamo um puiblico maior - essa referéncia que to- mei do discurso de um ano precedente. A saber, nao direi o apélo- 80, pois nao faco apélogos, eu mostro a realidade do que ocorre quanto a0 analista, figurada em outros exemplos, endo surpreen- de que sejam exemplos tomados da arte, por exemplo, algo para que se oriente, a saber, para que tenha uma outra espécie de co- nhecimento diferente deste conhecimento de ficctio que é 0 seu, e que o paralisa quando ele se interroga sobre um caso, quando faz. sua anamnese, quando o prepara, quando comega a se aproximar, ¢, uma vez que ele entre com a andlise, que ele procure no caso,na histéria do sujeito, da mesma maneira que Velasquez esta no qua- dro das Meninas, onde ele ja esta, 0 analista, a tal momento e em tal ponto da histéria do sujeito. A vantagem disso é que ele saberia © que € a transferéncia. O centro, o pivé da transferéncia nao se passa absolutamente por sua pessoa. Ha algo que jd estava ld. Isso lhe daria uma maneira completamente diferente de abor- dar a diversidade dos casos. Talvez, a partir desse momento, ele chegasse a encontrar uma nova classificagao clinica que nao a da psiquiatria classica, que cle jamais pade tocar nem abalar até ago- ra,e por uma boa razao: porque jamais pode fazer outra coisa além de segui-la Queria ilustrar ainda mais isso de que se trata, e queria tentar fazé-lo nos minutos que aceito, e que agradego por me darem. Fala-se de vida privada, Sempre me surpreendo que essa ex- pressdo “vida privada” ndo tenha jamais interessado a ninguém, especialmente aos psicanalistas, que deveriam estar particularmen- te interessados nisso. Vida privada... de que? Poderiamos fazer flo- reios retdricos. O que é a vida privada? Por que ela é tao privada, esta vida privada? Isso devia interessar a vocés. A partir do mo- 272 mento em que se faz uma andlise, nfo ha mais vida privada. E preciso dizer que quando as mulheres ficam furiosas porque 0 marido se analisa, elas tém raz4o. Nao adianta nés, analistas, nos incomodarmos com isso, é preciso reconhecer que elas tém razao, porque no ha mais vida privada. . Isso nao quer dizer que ela se torne puiblica. Hé uma compor- ta intermediéria: é uma vida psicanalisada ou psicanalisanda. Nao éuma vida privada. =i Isso nos leva a pensar. Afinal, por que sera tio respeitvel, essa vida privada? Vou dizer. Porque a vida privada é o que per- mite manter intactas essas famosas normas que, a propésito do chalé na montanha, eu estava em vias de jogar pelos ares. “Priva- da”, isso quer dizer tudo 0 que preserva esse ponto delicado do que 6 0 ato sexual e de tudo o que decorre dele no acasalamento dos seres,no “vocé é minha mulher e eu sou teu homem” e outras coisas essenciais, em um outro registro que conhecemos bern, oda ficgio. £ 0 que permite manter em um campo no qual nés, os ana~ listas, nos introduzimos, uma ordem de relatividade que, como yooés notam, nao é absolutamente facil de dominar, e que s6 po- deria ser dominada com uma tinica condicao, se pudéssemos reco- nhecer o lugar que temos nela, nés enquanto analistas, nao enquanto analistas sujeitos do conhecimento, mas enquanto ana- listas instrumentos de revelacao. ; ‘Asse respeito se coloca o problema da vida privada do ana- lista. S6 digo de passagem, pois naturalmente ha obras que s40 largamente difundidas e que s4o coalhadas de babaquices, e numa delas, que tem 0 maior sucesso, esta escrito que, para a qualifica- fo, a caracterizacao do que deve ser o bom analista, o minimo que Se pode oxigir 6 que ele tenha uma vida feliz. B adordvel! E além disso, todo mundo conhece o autor; ndo quero me pér a especular, mas... enfim... ‘Mas que um analista, por exemplo, possa manter 0 que acabo de definir como sendo o estatuto da vida privada, é algo! F justa- mente porque o analista nao tem mais vida privada que é melhor, com efeito, que ele mantenha muitas coisas reservadas. Quer di- zer, se ele tem, ele, que saber em que lugar cle jé estava na vida de seu paciente, a reciproca nao é forcosamente necesséria, 273 Notas - 8 e 15 de maio de 1968 Lacan nao continuou seus semindrios nos dias 8 e 15 de maio, em razao da greve convocada pelo Sindicato Nacional do Ensino Superior, mas esteve presente, uma vez que parte do auditério es- taria la. Segundo Roudinesco, na véspera da interrupgao estivera em um encontro entre psicanalistas da EFP e Daniel Cohn-Bendit, I der da revolugao estudantil da revolugao de maio de 68, e alguns amigos seus. ‘A reuniao terminou com o oferecimento de donativos aos militantes, que foram jantar no La Coupole, lé encontrando casu- almente alguns dos psicanalistas, que descobriram espantados como 0 dinheiro doado a causa havia sido empregado. Durante os debates, Lacan nio fez. nenhum comentario. En- tretanto, em 15 de maio comenta 0 encontro. Elogia a inteligéncia de Cohn-Bendit, e diz “Venhho me matando de dizer que os psica- nalistas devem esperar alguma coisa da insurreigdo; hé quem re- truque: © que esperaria de nds a insurreigao? A insurreicao Ihes responde: 0 que esperamos de vocés, se for esse 0 caso, é que nos ajudem a atirar paralelepipedos”. Em seguida, Lacan anuncia que 0s paralelepipedas ¢ as bombas de gas lacrimogéneo preenchem a fungao do objeto “a”. a7 Levanta a questao, que os acontecimentos do momento fa- zem ressurgir, da responsabilidade dos psicanalistas. O ensino nao € responsabilidade apenas da Universidade. Os psicanalistas nao tém se ocupado dessas relacdes, que nao é por ser relagGes coleti- vas que deixam de cair em um campo que é 0 seu. Evoca seu texto de 1966, “A Ciéncia e a Verdade”, que é oportuno para dar uma idéia de que nao se poderia reduzir os acontecimentos atuais a efeitos de turbuléncias, como sugeriu Raymond Aron em um arti- go para o jornal. Se esto agitados nas Universidades dos mais diferentes lugares, ndo é porque hé coisas diversas que nao esto correndo bem em cada um deles. Para Lacan trata-se de um fend- meno estrutural, onde as relacdes do desejo e do saber sao postas em questo. A psicandlise permite ligar isso a um nivel da carén- cia, de insuficiéncia, que é evocada, estimulada por essas relagbes que so as da transmissdo do saber. ‘Toda essa insurreicdo teve seu inicio na cidade uni- versitaria de Nanterre, com as idéias de Reich. Idéias, diz Lacan, demonstraveis como falsas. A experiéncia psicanalitica, se nao é considerada simplesmente como um lugar de torvelinhos, de férgas confusas, uma energética das pulsdes de vida e de morte abragan- do-se, se queremos pér um pouco de ordem no que objetivamos em uma experiéncia que é uma experiéncia de linguagem, vemos que teoria de Reich é contradita por essa experiéncia. $6 que os analistas nao testemunham sobre o que verda- deiramente poderia interessar a todo o mundo: as relagdes entre ‘ume o outro sexo. Tudo se passa como se nao houvesse psicanalis- tas. Lacan se refere aos seus “Escritos” como uma tentativa de colocar certos marcos, ¢ de fixar case testemunho de algo onde seja possivel situar-se, apesar dos psicanalistas, que fazem disso coisas sem alcance. Se os psicanalistas nao querem estar & altura do que tém a cargo, nem por isso o que tém a cargo deixa de existir ou deixaré de ter efeitos. Sera preciso que haja pessoas que tratem de estar a altura de certo tipo de efeitos que s4o predestinados a ser tratados dentro de certo referencial. Forcosamente surgiro essas pessoas, 278 1 No seminario porque quando os efeitos se tornam ineistentes, 6 prec 80 levé-los em conta e operar em set campos nee Pree Notas doTradutor Pirata em francés, a partir do minatio pi ncés, qual foi feita es traduelo, ndoha uma transcrigio do que foi dito por Lacan nod Fn do de Silvia Garci espanol (irculacio interna do“ Discurso Freudiane” te Baee Aires), assim como no livro de Roudis “Histor : fone ne le Roudinesco “Historia da Psicané- om - —

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