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7/8) 10:1991 fomo: 0 Exe: 005 Copyright© 1991 Sy OCTAVIO IANNI Desenho de capa: MARIO SALLES ISBN: 85-200-G076-2 1991 Todos os direitos reservados pela EDITORA CIVILIZACAO BRASILEIRA S.A. Av. Rio Branco, 99 - 20° andar 20040 Rio de Janeiro, RJ. TEL. (021) 263-2082 / TELEX (21) 33-798 / FAX (021) 263-6112 Caixa Postal n? 2356 / 20010 Rio de Janeiro, RJ. Impresso no Brasil Printed in Brazil II. Il. vir: VIE. Ix. xi. xm. XIV. | EUROAM - BIBLIOTECA] Sumario Prefacio 1 Primeira Parte — MOVIMENTOS, PARTIDOS E GOVERNOS Populismo e relagdes de classes 7 As condigses da comparagio 13 Nota sobre os populismos russo e norte-americano 18 Segunda Parte — A POLITICA POPULISTA Modernizagao ¢ democracia 25 © partido populista. 85 Pacto populista e bonapartismo 40 Nacionalismo e burguesia nacional 49 Terceira Parte — PODER E CLASSES SOCIAIS © Estado oligérquico 59 As rupturas estruturais 78 As classes sociais urbanas 88 Aliancas e contradigdes de classes 97 © Estado populista 121 Classes subalternas e hegemdnicas 186 Populismo e capitalismo 149 Il. Il. IV. Vv. VI. Lista das Tabelas Crescimento da populagio urbana (1930-1951) 87 Urbanizacao e industrializagdo (1940-1952) 88 Populacio ativa, por setor econdmico (1945 e 1960) 90 Evolugéo da produtividade do trabalhador (1936-1960) 91 Grescimento da populagio ativa (1925 e 1960) 105 Membros dos sindicatos trabalhistas (1961) 116 Prefacio O PoruLismo tem sido uma experiéncia politica im- ‘portante para a maicria dos Paises da América Latina nas lltimas décadas. Em alguns paises, esse fendmeno representa a experiéncia politica mais notdvel dos ulti- mos quarenta anos. Na maior parte dos casos, ele tem sido um experimento polftico malogrado, ou cujo suces- so parece ser bastante reduzido. A despeito disso, ele continua a ser um aspecto bdsico da vida politica de cada pais. A morte de Perdén, em julho de 1974, nao implica que o peronismo deixou de ser uma forga poli- tica decisiva na Argentina. No México, alguns observa- dores consideram que o cardenismo tem sido ressusci- tado por alguns governos posteriores ao de Cardenas, sempre que os antagonismos sociais parecem mais agu- Gos. No Equador, a deposicio de Velasco Ibarra, em 1972, nao significa que o velasquismo morreu. Na Bo- livia, o Movimento Nacionalista Revoluciondrio (MNR), Paz Estensoro e outros remanescentes dos anos da revo- lugdo Je 1952-64 continuam a desempenhar papéis im- portantes nos acontecimentos politicos do pais. No Peru, I alguns pesquisadores julgam que o governo de Velasco Alvarado esta adquirindo a feigéo de um populismo militar. No Brasil, o fato de que os partidos e os lide- res populistas foram postos fora da lei, desde 1964, 6 uma prova de que o populismo tem sido e pode conti- nuar a ser uma forga politica decisiva. Em Cuba, antes da transigéo para o socialismo, segundo alguns intér- pretes, 0 movimento liderado por Fidel Castro teria tido um cunho populista, Muitos sAo os acontecimen- tos indicando que 0 populismo (a politica de massas ou © movimento nacional popular, como também é chama- do) nao é coisa do passado. E quando passado, vifio sé foi importante como permanece um dado as vezes cru- cial do presente. Neste livro, minha intengio é concentrar a dis- cusso sobre alguns aspectos que me parecem fundamen- tais para a interpretacdo desse fendmeno. Nao se trata de um trabalho de reconstruedéo minuciosa dos varios movimentos, partidos, governos e regimes nacionais de conotagéo populista. Nem faco referéncia a todos os casos. Procuro examinar principalmente os aspectos do populismo que exprimem dimensdes importantes das estruturas de poder, das relacdes de classes e dos en- cadeamentos entre relagdes econdémicas e relagdes poli- ticas. Minha preocupacao é contribuir para a explicacao do populismo como um fenédmeno que revela antago- nismos de classes, numa situagao em que precisamenie as relagdes antagénicas parecem apagadas. Nesse espi- tito, procuro ver em que medida o malogro do experi- mento populista nfo 6 senio uma manifestagio real e mais clara do desenvolvimento das classes que com- poem a alianga populista. No conjunto, a discussao rea- lizada neste livro trata de mostrar como as relagdes entre as classes sociais aparecem na formacéo do que se pode denominar Estado populista, Dessa forma acre- dito que estarei apresentando mais alguns elementos histéricos e tedricos para a interpretacao da natureza do Estado burgués na América Latina. O trabalho esta dividido em trés partes. Na pri- meira, procuro delinear a perspectiva na qual examino © tema, enunciando tanto os termos da problematica como as dificuldades de sua andlise. Na segunda, rea- lizo um balango critico das principais interpretagdes co- nhecidas sobre o populismo latino-americano, Simulta- neamente, explicito alguns aspectos complementares da perspectiva adotada e desenvolvo os termos da interpre- tagaéo que me parece conveniente. Na terceira parte, por fim, dedico-me a uma discussio — as vezes geral, as vezes especifica — sobre as condigdes de formagao, de- senvolvimento e crise do poder populista. As quest6es abordadas nos capitulos X, XI e XIII foram discutidas no ensaio intitulado “Populismo y re- laciones de clase en América Latina”, que publiquei na Revista Mexicana de Ciencias Politicas (n° 67, México, 1972) e em Populismo y Contradicciones de Clase en Latinoamerica (Ediciones Era, México, 1973), obra na qual se incluem ensaios de Gino Germani e Torcuato S. Di Tella. Neste livro, as mesmas questées aparecem numa formulagéo nova, devido as sugestdes de leituras realizadas posteriormente e as exigéncias de uma and- lise mais completa da problemdtica populista. Quero agradecer aqui aos estudantes, colegas e amigos que discutiram comigo diferentes aspectos da problemdtica abordada. Agradego inicialmente aos alunos do meu curso sobre “Poder e Sociedade na América Latiha”, realizado em 1967, na Faculdade de Filosofia, Ciéncias e Letras, da Universidade de Sic Paulo. Estendo os meus agradecimentos aos alunos dos cursos sobre “Politica de Massas e Desenvolvimento Econémico na América Latina” e “Populismo e Capita- lismo Nacional na América Latina”, realizados por mim na Division de Estudios Superiores, da Facultad de Ciencias Politicas y Sociales, na Universidad Nacional Autonoma de México (UNAM), proferidos em. 1968 e 1970, respectivamente. Agradego também a Arnaldo Cordova e Victor Manuel Durand Ponte, da UNAM, pelo interesse com que examinaram comigo alguns proble- mas abordados aqui. Estendo os meus agradecimentos também aos colegas e amigos do Centro Brasileiro de Andlise e Planejamento (Cebrap), pelas sugestées que me fizeram. Centro Brasileiro de Andlise e Planejamento (CEBRAP) Sao Paulo, julho de 1974 Octavio Ianni Primeira Parte MOVIMENTOS, PARTIDOS E GOVERNOS POPULISMO E RELACOES DE CLASSES DENTRE Os fendmenos politicos mais caracteristicos dos paises da América Latina, no século XX, o populis- mo é um dos que tém sido mais extensamente estudados, Socidlogos, cientistas politicos, economistas e historia- dores latino-americanos e de outros paises dedicaram e continuam a dedicar ensaios e monografias, artigos € livros a governos, partidos politicos, movimentos de massas, lideres politicos e ideologias populistas. Nesses estudos, sao freqiientes expressdes como as seguintes: battlismo, no Uruguai, yrigoyenismo e peronismo, na Ar- gentina, varguismo e trabalhismo, no Brasil, velasquis- mo, no Equador, odrirismo e aprismo, no Peru, gaita nismo, na Col6émbia, perezjimenismo, na Venezuela, ma rinismo, em Porto Rico, callismo e cardenismo, no Mé- xico. Além desses fenémenos politicos, também consi- deram-se governos de tipo populista os de Arbenz, na Guatemala, o de Ibafiez, no Chile, 0 de Paz Estensoro e Siles Zuazo, na Bolivia, e o de Velasco Alvarado, no Peru, entre outros. Mesmo em estudos consagrados a outros problemas, com freqiiéncia encontram-se dados, indica- g6es ou hipdteses sobre 0 populismo latino-americano, ou fenédmenos especificos deste ou daquele pais. Nem por isso as andlises conhecidas revelam acor- do bdsico. Em geral elas estéo divorciadas umas das outras, quando nao sao contraditérias entre si. Muitas interpretagdes, no entanto, mostram algum consen- so, quanto a certos aspectos do problema. Nos estudos conhecidos encontram-se dados e and- lises sobre 0 populismo como fenémeno tipico da pas- sagem da sociedade tradicional, arcaica ou rural, para a sociedade moderna, urbana ou industrial. Por isso, discutem o papel da revolugao das expectativas e a fun- cao da incongruéncia de status nos fendmenos populis- tas. No mesmo sentido, eles focalizam, de modo parcial ou extensamente, conforme 0 caso, problemas como os de mobilizagio social, mobilizac&c politica e moderni- zacao. Em outro nivel, os estudos discutem as dicoto- mias elite-massa, carisma-demagogia, democracia-autori- tarismo, populismo-fascismo e outras. Na maioria dos casos, perpassa a idéia de que os fendmenos populistas correspondem a formas “subdesenvolvidas” ou “degra- dadas” de organizacio das atividades politicas. Ao tra- balhar explicita ou implicitamente com o paradigma da “democracia representativa”, certos autores deixam transparecer alguma lastima pela forma nfo conspicua pela qual as “classes populares” ou as “massas dispo- niveis” deixam-se conduzir e enganar por “demagogos” civis ou militares. Para tais intérpretes, essa é uma forte razao para que muitos movimentos, partidos e governos conduzam, quase que necessariamente, ao golpe de Es- tado ou a outras manifestacgdes tipicas da “instabilida- de politica” latino-americana. Na maioria dos estudos sobre 0 populismo na América Latina, pois, trabalha-se com base no pressuposto de que os movimentos de Mmassas, os partidos politicos e os governos populistas: a) seriam fenémenos politicos produzidos no interior do processo mais amplo de modernizagio das sociedades latino-americanas; ou b) seriam fendmenos menos poli- ticos produzidos pela incapacidade das sociedades latino- -americanas realizarem a democracia representativa, segundo 0 modelo europeu ou norte-americano. Em varios casos, é evidente que os autores identificam so- ciedade moderna com sociedade democrética de base capitalista. Parece-nos de interesse, portanto, examinar as con- digdes histéricas responsdveis pelo aparecimento e de-~ & senvolyimento dos moyimentos de massas, partidos po- liticos e governos populistas em paises da América La- tina. Isto significa que o populismo pode ser visto no contexto do processo de desenvolvimento das relagoes de producao capitalista nesses paises. Em conseqiiéncia, trataremos de mostrar como se dao e desenvolvem as relagdes entre 0 populismo, ou as suas manifestagoes mais caracteristicas e as transformagdes estruturais dessas sociedades. No Ambito desse quadro historico amplo, queremos examinar o modo pelo qual o populis- mo se transforma numa experiéncia politica marcante para as classes sociais urbanas — em alguns casos tam- bém rurais — desses paises. Em especial, nosso obje- tivo é conhecer o significado da experiéncia populista na formagao politica do proletariado urbano. i: Sob varios aspectos, 0 populismo latino-americano parece corresponder a uma etapa especifica na evolugao das contradigdes entre a sociedade nacional e a econo- mia dependente. A natureza do governo populista (que é onde se exprime mais concretamente o cardter do po- pulismo) estdé na busca de uma nova combinagao entre as tendéncias do sistema social e as determinacdes da dependéncia econémica. Nesse contexto, as massas assa- lariadas aparecem como um elemento politico dinémico e criador. As massas populistas (por suas acées, tanto quanto na forma pela qual sio manipuladas) possibili- tam a reelaboragao da estrutura e atribuicdes do Es- tado. Segundo as determinagGes das préprias relagces sociais e econdmicas, na época do populismo, o Estado revela uma nova combinacio dos grupos e classes so- ciais, em Ambito nacional e nas relagdes externas, O co- Japso das oligarquias liberais ou autoritdrias constitui- das no século XIX, juntamente com as crises do impe- rialismo europeu e norte-americano, abrem novas possi- pilidades & reorganizacao do aparelho estatal, isto 6, do Estado com a sociedade nacional. Ai as masses apare- cem como um elemento politico importante ¢ 4s vezes decisivo. i Além disso, 0 populismo latino-americano parece corresponder a etapa final do processo de dissociagio entre os trabalhadores e os meios de producio. Corres- 9 ponde & época da constituicéo do mercado de forca de trabalho, pela formalizagéo das relagdes de produgéo de tipo capitalista avancado. Nessa ocasiao, as massas trabalhadoras estio abandonando os padrées sdcio- -culturais criados e vigentes quando predominavam as oligarquias. Os valores culturais (religiosos, politicos, econémicos) ainda impregnados do espirito da comuni- dade sao pouco a pouco abandonados e Substituidos por valores criados no ambiente urbano e industrial. No ni- vel dos Pprocessos sécio-culturais que Ihe s&o inerentes, o populismo exprime um ponto avangado no processo de secularizagaéo da cultura e do comportamento. & nessa spoca que o trabalhador abandona a primazia do nds de inspiracio comunitaria, passando a situar-se no in- terior de grupos secundarios complexos, cujas relacdes Sao as vezes altamente formalizadas. Ai predomina o contrato. Nas novas relacdes entre o trabalhador, os instrumentos de producio e o produto da forga de tra- balho, os componentes magicos ou animistas submer- gem sob as exigéncias impostas pelo ritmo e a escala da produgao. Em outros termos, 0 valor de uso sub- merge no valor de troca. Sob varios aspectos, pois, o populismo 6 também um processo (politico e sdcio-cul- tural a um tempo) com o qual se da a plena formacio das relag6es de classes nas nacgdes da América Latina. Mas esse cardter de classe, inerente ao populismo, nao aparece imediatamente a andlise. Muitas vezes ele se encontra difuso ou submerso na pratica e na ideo- logia populista. Para compreender satisfatoriamente a natureza das relagdes de classes inerentes aos movimen- tos de massas, é preciso distinguir ainda dois outros niveis do problema. Em primeiro lugar, € preciso focalizar 0 populismo das cupulas, isto 6, dos governantes, politicos burgue- ses profissionais, burguesia nacional, burocratas politi- cos, pelegos, demagogos. Trata-se do populismo das elites burguesas e de classe média, que utilizam tatica- mente as massas operdrias e os setores mais pobres da classe média. Esse populismo instrumentaliza as massas trabalhadoras, ao mesmo tempo que manipula as ma- nifestagdes e as possibilidades da sua consciéncia. Em 10 situac6es criticas, esse populismo abandona as massas & prépria sorte, sem antes impedir que elas avancem um passo decisivo nas lutas politicas. Em segundo lugar, é necessdrio focalizar o populis- mo das préprias massas, isto 6, dos operdrios, dos mi- grantes de origem rural, dos grupos sociais pertencen- tes & baixa classe média, dos estudantes universitarios radicais, dos intelectuais de esquerda, dos partidos poli- ticos de esquerda. Em situagdes normais, parece haver harmonia ampla entre o populismo das massas e 0 DO- pulismo da burguesia. Entretanto, nas ocasides criticas, quando as contradicdes politicas e econémicas se agu- cam, 0 populismo das massas pode encaminhar-se para formas revolucionérias. Nessas situagdes ocorre a me- tamorfose do movimento de massas em luta de classes. Essa perspectiva de andlise, pois, baseia-se no pres- suposto de que o populismo corresponde a uma moda- lidade particular de organizagio e desenvolvimento das relagdes e contradigées de classes sociais na América Latina. Isto 6, nos movimentos, partidos, governos ou regimes populistas parecem ocorrer modalidades pe- culiares de relacionamento, coalizio ou antagonismo entre classes sociais subalternas e classes sociais hegemé6nicas. Analisaremos aqui principalmente o cardenismo, 0 peronismo e oO varguismo. Preferimos concentrar a nossa atengaéo nesses trés casos porque eles parecem reunir alguns dos maiores desenvolvimentos dos fené- menos relacionados & problematica do populismo. Em primeiro lugar, no México, Argentina e Brasil os movi- mentos de massas e os partidos politicos policlassistas culminaram em governos de cunho populista. Em se- gundo lugar, esses governos fizeram reformas significa- tivas em diferentes esferas do sistema politico-econ6- mico, desde os aspectos relativos aos movimentos de capitais nacionais e estrangeiros até as prdprias rela des de producao. Nos trés casos, parece ter mudado a propria fisionomia do aparelho estatal e, por conseqiién- cia, modificou-se o relacionamento do Estado com a so- ciedade. Em terceiro lugar, 0 cardenismo, 0 peronismo € 0 varguismo adotaram politicas econédmicas destinadas IL a impulsionar o desenvolvimento econdmico, particular- mente a industrializagdo, ou substituic&io de importacées. O modo pelo qual eles reformularam as relagdes do Es- tado com a economia estava diretamente relacionado a transicgéo das “economias de enclave” a sistemas econ6- micos mais diferenciados e voltados para o mercado interno. Nos trés casos, pois, intensificou-se a diferen- ciacéo interna dos sistemas econémicos, crescendo, por conseqiiéncia, a importancia relativa e absoluta dos se- tores secundario e terciério. Em quarto lugar, a com- posigéo social e os desenvolvimentos do cardenismo, peronismo e varguismo permitem discutir uma ques- tao tedrica e pratica fundamental: o problema da alian- ga e antagonismo de classes na constituicdo e funciona- mento de estruturas de poder. Em quinto lugar, por fim, a sucessio de Cardenas, por Avila Camacho, bem como as deposigdes de Vargas e Perdén, sao aconteci- mentos que pdem em evidéncia o significado dindmico dos governos populistas, quanto ao desenvolvimento do capitalismo dependente. Sempre que conveniente e possivel, & vista da bi- bliografia disponivel, faremos referéncias a movimentos, partidos ou governos de cunho populista surgidos em outras nagdes. Em especial, serao feitas referéncias ao velasquismo, de José Maria Velasco Ibarra, cujos cinco governos (1934-35, 1944-47, 1952-56, 1961 e 1968-72) marcaram bastante as lutas sociais e politicas no Equa- dor. E faremos também alusdes aos movimentistas boli- vianos, isto é, aos trés governos do Movimiento Naciona- lista Revolucionério (MNR), Victor Paz Estensoro (1952-56 e 1960-64) e Hérman Siles Zuazo (1956-60). Esses e outros casos serio mencionados umas vezes apenas como ilustrag&o, outras para ressaltar aspectos significativos do tema em exame na ocasiaio. A focali- zacao de diferentes fenémenos populistas, ainda que de modo nao sistemdtico, podera suscitar novos proble- mas para discussdo e andlise. II AS CONDICOES DA COMPARACAO A MANEIRA pela qual apresentamos a problemdtica deste trabalho no capitulo anterior, coloca-nos direta- mente a questao da andlise comparativa. A despeito do cardter deliberadamente exploratdrio do presente traba- Tho, 6 indispensdvel que fixemos a nossa atencao, por um momento, nesse assunto. Queremos tornar claro, no entanto, que estas observagdes nao tém a intengiio de in- dicar certas dificuldades, tanto quanto o interesse, da andlise comparativa, nos termos em que foi posta em pratica aqui. Ao analisar comparativamente movimentos, parti- dos e governos populistas latino-americanos, podemos adotar uma dupla perspectiva, de modo combinado. Podemos focalizar tanto o que é peculiar a este ou aquele pais, em dado momento, como o que é geral, ou significativo, para varios paises ao mesmo tempo. Como pretendemos examinar o populismo na América Latina, tomada em conjunto, parece-nos conveniente e indispen- sdvel combinar ambas as perspectivas. O que é peculiar a um pais, em dada ocasiao, pode esclarecer-se melhor no confronto com o que parece ser freqiiente em dis- tintos paises, e vice-versa. Na medida em que sido foca- lizados ao nivel de relagdes, processos e estruturas, os fenémenos populistas latino-americanos podem iluminar- “se reciprocamente. E isto sera ainda mais significativo 13 se 0 que f6r peculiar a um pais e o que f6r comum a varios forem também contemporaneos, como o sao os problemas abordados neste trabalho. Nao ha duvida de que seria ilusdrio tomar a Amé- rica Latina como um todo homogéneo. As disparidades politicas, econémicas, lingiiisticas e religiosas, entre ou- tros aspectos, sfio evidentes e mais significativas do que as interpretagdes gerais normalmente deixam supor. A divisdo das classes sociais esta imbricada e combinada com a divisio entre indios, negros, mulatos, mesticos © brancos, sendo que, as vezes, transparece a polariza- go nativos ou “los olvidados”, por um lado, e europeus ou fidalgos, por outro. Nos paises que foram colénias espanholas, subsistem diferengas sociais marcantes, entre os que falam o espanhol propriamente dito, na versao nacional, e os que falam idiomas ou dialetos tribais, incas, aztecas, maias ou outros. No Brasil, o candomblé, a umbanda e a quimbanda, entre outras sei- tas religiosas populares, provém diretamente da cultu- ra africana, depois da passagem pelo regime escravo- crata brasileiro, encerrado em 1888. Cada nagéo possui varios deuses, divindades e santos, ou igrejas e seitas, de origem européia, africana ou indigena. Assim como os deuses dos maias nfo séo os mesmos dos aztecas ou Incas, da mesma forma os valores e padrées sécio-cul- turais de procedéncia européia nao aparecem da mesma forma em todas as sociedades latino-americanas. As di- ferentes classes sociais e os diversos grupos sociais no intericr das classes possuem distintos deuses, santos, lideres messianicos, feiticeiros, brujos ou carismdticos. Em perspectiva ampla, o desenvolvimento desigual e combinado € inerente tanto ao conjunto da América Latina como a cada um dos seus pafses, considerado isoladamente. Portanto, seria ilusdrio tomar a América Latina como um todo homogéneo..’ Entretanto, os paises latino-americanos estéo inse- ridos no sistema capitalista mundial. A historia da Amé- rica Latina e de cada um dos seus paises é parte intrin- seca da histéria do capitalismo. Desde os seus primor- dios, até o presente, boa parte dos acontecimentos cru- ciais da histéria de cada pais latino-americano e do 14 conjunto da América Latina esta ligada e determinada por acontecimentos decisivos havidos na histéria do ca- pitalismo, N&o é por mero acaso que a independéncia das colénias da Espanha e Portugal no Novo Mundo esteve diretamente relacionada 4 conquista da hegemo- nia mundiai por parte da Inglaterra. Antes, o excedente econémico das colénias latino-americanas ja entrara diretamente no processo de acumulag&o origindria veri- ficado na Inglaterra. Com a independéncia, os novos paises da América Latina passam a ser importantes no movimento de expanséo do capitalismo industrial in- glés. Da mesma forma, nfo é por acaso que a grande depressao econémica dos anos trinta, iniciada com o crack da Bolsa de New York, em 1929, provoca uma série de convulsées econémicas, politicas e sociais na maioria dos paises latino-americanos. Nessa época, como se fora numa reac&o em cadeia, ocorrem motins, quarteladas e golpes, provocandoe a queda de governos oligdrquicos ou o declinio do seu poder. As vezes, as modificagées politicas e econédmicas sao substanciais. Ha casos em que a composic&o de forgas politicas no poder e opréprio aparelho estatal se modificam bas- tante. Nesses dois exemplos, que nfo precisam ser deta- Jhados aqui, fica evidente que junto com a heterogenei- dade dos paises latino-americanos subsistem semelhan- gas e paralelismos. Hd um andamento histérico-estru- tural que parece ser comum ao conjunto da América Latina, ao lado das peculiaridades poiiticas, econémicas, sociais e culturais de cada pais. Em outros termos, por sob o desenvolvimento desigual e combinado, que dife- rencia os paises entre si e internamente, ha relagdes, processos e estruturas que aparecem e reaparecem em diferentes paises, devido ao modo pelo qual o conjunte da América Latina e cada pais de per si vincula-se ao capitalismo mundial. Alids, 0 desenvolvimento desigual e combinado nao é uma teoria do acaso, mas um modo particular de funcionamento das leis do capitalismo nas sociedades atrasadas ou dependentes. O pais atrasado assimila ou combina, de maneira sui generis, conauis- tas materiais, instituigdes ou mesmo fases diversas do 15 processo histérico das nacdes mais adiantadas. Mas é necessdrio observar, em primeiro lugar, que essa assi- milacao e combinagio nfo se dio ao acaso, mas se- gundo as condigdes sdécio-culturais, politicas e econdmi- cas do pais atrasado. Em segundo lugar, esses processes dependem das influéncias, presses e interesses dos paises adiantados ou dominantes. Isto 6, no desenvolvi- mento desigual e combinado, em sentido lato, a deter- minagaéo externa — originada segundo as condic6es sdcio-culturais, politicas e econémicas do pais dominan- te — em certos momentos é fundamental. ' Nesse nivel, as épocas histdéricas dos paises da América Latina es- tao parcial ou amplamente determinadas, conforme o caso, pelas flutuacoes e desenvolyimentos do capitalis- mo mundial; ou, mais especificamente, pela forma de vinculagao dos paises latino-americanos 4 Inglaterra ou aos Estados Unidos, para mencionar dois tempos im- portantes. Assim, boa parte dos fenédmenos politicos, econdémicos, sociais ou culturais pode ser compreendida nos limites de épocas histdéricas especificas, prestando- -se, pois, 4 comparacio, Do ponto de vista marxista, a comparacio do de- senvolvimento politico e econémico de diversos paises... tem enorme importancia, pois que sao inegaveis tanto a natureza comum capitalista dos Estados contemporaneos, como a lei geral do seu desenvolvimento. Mas € necessdrio saber fazer semelhante comparagiio. A condicéo elementar para isso € p6r em evidéncia se sféo compardveis as épocas hist6ricas do desenvolvimento dos paises que se comparam. ? 1 Quanto ao conceito de desenvolvimento desigual e combinado, consultar: Leon Trotsky, A Histéria da Revolugéo Russa, trad. de E. Higgins, 8 vols. Editora Saga, Rio de Janeiro, 1967, Primeiro Volume, esp. pp. 23-33; Henti Lefebyre, La Pensée de Lénine, Bordas, Paris, 1957, pp. 230-248: “La loi d'inegal déve- loppement”. 2 V. Lénin, Obras Escogidas, Versién castellana de Ediciones en Lenguas Extranjeras, Mosc, 1941, Tomo 2, Editorial Pro- 16 A partir dessa perspectiva, acreditamos que seja possivel examinar comparativamente governos populis- tas surgidos na América Latina. Isto é, a andlise trataré de focalizar os fendmenos relacionados com o populis- mo, em dado pais ou em varios paises, ao mesmo tem- po, tendo em vista surpreender relagGes, processos e es- truturas significativos para a sua compreensio. Por- tanto, a andlise nado tem a pretensao de alcangar a in- terpretacio completa e original do populismo. Neste trabalho, buscamos t&éo-somente apresentar algumas hipdteses novas para a explicagaéo de fendmenos popu- listas, particularmente governos, em paises latino-ame- ricanos. E provavel que os dados e as andlises apresen- tados aqui ajudem & selecdéo dos problemas tedricos e, portanto, do pais ou paises sobre os quais podera con- centrar-se uma pesquisa sistematica e, talvez, definitiva sobre 0 populismo surgido na América Latina. E evi- dente que a andlise comparativa nao substitui a investi- gacao detalhada de casos especificos. Todavia, No esforgo para entender a historia de um pais, @ perspectiva comparativa pode dar origem a per- guntas bastante uteis e as vezes novas. Ha vanta- gens adicionais. As comparagdes podem funcionar como um teste negativo, ainda que tosco, de inter- pretagdes histéricas correntes. Uma abordagem comparativa pode originar novas generalizagdes historicas. * blemas, Buenos Aires, 1946, p. 312. Citacio extrafda da obra intitulada Sobre el Derecho de Autodeterminacién de las Naciones, pp. 301-867. Quanto as possibilidades da commparagio, consultar também: Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto do Partido Comunista, Editorial Vitéria, Rio de Janeiro, 1948; Peter Worsley, The Third World, The University of Chicago Press, Chicago, 1964; Barrington Moore, Jr., Social Origins of Dictatorship and Democracy (Lord and Peasant in the Making of the Modern World), Beacon Press, Boston, 1966; Reinhard Bendix, “Historical and Comparative Studies”, Transactions of the Fifth World Con- gress of Sociology, Vol. IV, International Sociological Association, Louvain, 1964, pp, 21-40; Reinhard Rendix, Nation-Building and Citizenship (Studies of our changing social order), Anchor Books, New York, 1969, 8 Barrington Moore, Jr., op. cit. p. xiii, 17 Ill NOTA SOBRE OS POPULISMOS RUSSO E NORTE-AMERICANO A HISTORIA politica de varios paises europeus, asié- ticos e africanos, além dos Estados Unidos, registra movimentos de massas, partidos politicos e governos que os estudiosos de sociologia, politica, economia e histéria denominam populistas. Foi na Russia ezarista, durante a segunda metade do século XIX, que prolife- Taram organizag6es, atividades, debates e teorias rela- tivos ao que passou & histéria como o populismo russo. Em fins do mesmo século e durante as primeiras déca- das do século XX houve discussdes, movimentos e par- tidos populistas nos pafses da Europa Central: Polénia, Rumania, Bulgdria, Hungria, Iugoslavia e Tchecoslova- quia. Na ultima década do século XIX, nos Estados Unidos, criou-se um partido populista, com programa proprio e apoio popular relativamente amplo na socie- dade agraéria. Na China, o programa da revolugao de 1911, chefiada por Sun Yat-sen, teve conotagio popu- lista, talvez por influéncia do populismo russo. Depois da Segunda Guerra Mundial, nas ex-colonias européias na Asia e na Africa surgiram movimentos de massas, partidos politicos e governos que muitos cientistas so- ciais passaram a denominar populistas. Essa multiplicidade de movimentos, partidos, go- vernos e ideologias desde logo denota grande dispari- dade de configuragées_ histdricas, combinacées de clas- 18 ses sociais, técnicas de ago politica, estilos de lideran- ca, programas e assim por diante. E evidente que esses fenédmenos variam conforme o contexto sécio-cultural, politico e econémico de cada pais e segundo a ocasifio. Mas dois aspectos precisam ser ressaltados aqui. Em primeiro lugar, hé uma caracteristica que pa- rece ser comum a todos esses populismos, quando foca- lizados em perspectiva histérica ampla. Todos os mo- vimentos, partidos e governos populistas, juntamente com as suas controvérsias doutrindrias, tém o cardter de reag6es ideoldgicas e praticas, conforme o pais e o contexto da ocasiéo, As mudancas econémicas, sociais e politicas provocadas pela formacao do capitalismo in- dustrial e a urbanizagao de cunho capitalista. Em todos os paises mencionados, 0 que parece estar em jogo é a crise do modo de vida de amplas camadas de trabalha- dores rurais e urbanos, 4s vezes os dois combinada- mente. Em segundo lugar, quando examinamos os elemen- tos essenciais de cada uma das manifestagdes desses populismos, verificamos que alguns elementos se Tepe- tem, em certos paises, com a mesma ou semelhante im- portancia relativa. Em diferentes graduacées, natural- mente, esse teria sido o caso dos populismos que se desenvolveram na Russia, nos paises da Europa Central € nas ex-colonias européias na Asia e Africa. Em todos procura-se preservar e valorizar a vida social e econdé- mica de base agrdria. A industria é colocada de lado, como nociva, ou em nivel secundério, como atividade subordinada. Valoriza-se a terra como a principal, quando nao a nica fonte de riqueza e bem-estar social. Todo progresso econémico, politico, social e cultural é encarado em termos da preservagio e revalorizagio das experiéncias e tradigdes de tipo comunitdrio ou tribal. A cooperagaéo 6 compreendida como um processo social mais integrativo do que a diviséo social do trabalho e as relagdes contratuais que predominam na cidade e na industria. Esse tipo de populismo busca transformar todo trabalhador — principalmente rural — em cida- dao, com direitos e obrigac6es politicos que o defendam da supremacia da cidade sobre o campo e da industria 19} sobre a agricultura. Ele esta orientando no sentido de evitar que 0 trabalhador sofra as conseqiiéncias econs- micas, sociais, culturais e politicas da acwmulacaio ori- gindria, que ocorria na Russia, paises da Europa Cen- tral, India, Indonésia, Gana, Senegal, Nigéria e outros, cada um a seu tempo. Em esséncia, os movimentos, partidos e governos populistas surgidos nesses paises estavam, ou ainda estao, conforme o caso, inspirados por uma compreensao das relagdes econdémicas, sociais € politicas que se funda na hegemonia do valor de uso. E o valor de uso, nesses casos, 6 compreendido como uma modalidade politicamente ingénua de valor traba- Tho. Todas as relagOes humanas estariam ou deveriam estar referidas, em Ultima instancia, ao principio do uso, colocando-se secundariamente o principio do valor de troca. Referindo-se especificamente ao populismo russo, também conhecido como movimento narddniki, Lénin ressalta o seguinte: Os senhores populistas sussurram languidamente que o capitalismo das cidades é coisa “artificial”, que é uma “planta de estufa”, que perecerd se n&o for protegida, etc. 1 Acreditando encarar a realidade de frente, acredi- tando chamar a opresséo por seu prdéprio nome, Os populistas apelam para a histdria e apresentam as coisas de tal forma que a propriedade dos meios de producgéo pelo produtor seria um prin- cipio “de sempre”, o “fundamento secular” do tia- balho do camponés, e que a expropriagao contem- poranea do campesinato se explicaria, em conse- qiiéncia, nao pela substituigao da mais-valia bur- guesa pelo sobreproduto feudal, nao pela organi- zagao capitalista da nossa economia social, mas pelo acaso de uma politica infeliz, por um desvio 1 YV, Lénin, Le Contenu Economique du Populisme et la Critique Quen fait dans son Livre M. Strouvé, publicado em Oeuvres, Tome 1, referente aos anos 1893-1894, Editions Sociales, Paris, 1966, pp. 361-547, p. 412. 20 passageiro do caminho prescrito por toda a hist6- ria da nagao. * O populismo norte-americano, por seu lado, apre- senta caracteristicas peculiares, nao possuindo seme- Ihanga essencial com os mencionados anteriormente. Ele se desenvolveu entre proprietdrios e trabalhadores agricolas, em fins do século XIX. Nessa época o setor capitalista da economia agrdria dos Estados Unidos passava por uma crise de superprodugaéo e, ao mesmo tempo, perdia importancia relativa e absoluta diante da industria, o comércio e a financa. E verdade que a ideologia desse populismo valorizava a terra, como a mais importante fonte de riqueza e bem-estar social. E protestava contra os “parasitas” e os “ladrGes” que controlavam o comércio, as financas e o aparelho do Estado, em prejuizo dos “verdadeiros produtores”. Mas essa era antes uma reagio contra as tendéncias de di- ferenciagao do sistema econédmico e contra o aumento do poder decisério — politico e econdmico — das bur- guesias financeira, industrial e comercial, tipicamente urbanas. Em sintese, o populismo norte-americano im- plicava numa peculiar negagaéo da economia do Iaissez- ‘faire. Queria o intervencionismo governamental nos assuntos econdémicos, com énfase nas questdes financei- Tas e nos problemas suscitados pela crescente impor- tancia dos transportes ferrovidrios. Era preocupadissi- mo com os assuntos monetdrios, porque sentia que por via do capital financeiro se Ihes escapava uma parte dos lucros obtidos na agricultura. O problema era de- fender o principio do valor de troca, segundo as exi- penciee da reprodugdo ampliada do capital na agricul- fura, Com a sua produgao organizada em muitas peque- nas unidades, operando a custos fixos, vendendo num mercado mundial cada vez mais competitivo e esmagado pelas politicas tarifarias e fiscais, o capitalismo agrdrio norte-americano estava lutan- 2 Ibidem, p. 460. 21 do uma batalha perdida. Eram as suas exporta- gOes que subsidiavam largamente a importagao de capital necessdrio para financiar a industria nor- te-americana, ao mesmo tempo que o seu trabalho produzia, a prec¢os cada vez menores, os géneros que alimentavam o proletariado industrial. Com o passar do tempo, tornou-se evidente que o fazen- deiro nao estava lucrando na mesma proporgao do. crescimento econémico do pais. 3 Em sintese, os populismos mencionados aqui apre- sentam a peculiaridade de ser uma reacéo negativa contra a hegemonia da cidade e da industria sobre o campo e a agricultura. Nos Estados Unidos, ele defen- dia o capitalismo agrdrio, acima de tudo. Nos outros paises, principalmente na lussia, extremava-se na ne- gacéo do capitalismo. + 8 Richard Hofstadter, “North America”, publicado na obra or- ganizada por Ghita Ionescu and Ernest Gellner (Editors), Popu- lism (Its Meaning and National Characteristics), Weidenfeld and Nicolson, Londres, 1969, cap. 1; citagdo extraida das pp. 12-18. 4 Quanto aos populismos mencionados aqui, consultar também: V. Lenin, Pour Caractériser le Romantisme Economique, Editions en Langues Etrangeres, Moscou, 1954; Rosa Luxemburg, A Acumu- lagéo do Capital, Trad. de Moniz Bandeira, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1970, esp. caps, XVIII e XIX; V. Lénin, La Lucha do los Pueblos de las Colonias y Paises Dependientes contra el Imperialismo, Ediciones en Lenguas Extranjeras, Moscou, s/d, “La democracia y el populismo en China”, pp. 66-73, escrito em 1912; George B, Tindall (Editor), A Populist Reader (Selections from the Works of American Populist Leaders), Harper Torch- books, New York, 1966; Peter Worsley, The Third World, The University of Chicago Press, Chieago, 1964; Immanuel Wallerstein (Editor), Social Change (The Colonial Situation), John Wiley & Sons, New York, 1966; Fatma Mansur, Process of Independence, Routledge & Kegan Paul, Londres, 1962; D. P. Mukerji, “Mahatma Gandhi's Views on Machines and Technology”, em Jean Meynaud (Editor), Social Change and Economie Development, Unesco, Paris, 1963, pp. 63-75. Consultar também todos os outros capi- tulos ‘da obra organizada por Ghita Ionescu and Ernest Gellner, Populism, citada, em especial os seguintes: “Russia”, por Andrzej Walicki, “Eastern Europe”, por Ghita Ionescu, “Africa”, por John Saul, e “The Concept of Populism”, por Peter Worsley. a2 Segunda Parte A POLITICA POPULISTA IV MODERNIZACAO E DEMOCRACIA A PROBLEMATICA do populismo tem sido abordada por alguns pesquisadores em termos de mudanga so- cial, modernizagao e democratizacio. De modo mais ou menos explicito, conforme 0 caso, esses processos tém sido vistos como reciprocamente encadeados. Isto 6, os fenémenos relativos ao populismo — movimentos de miassas, partidos politicos, governos, regimes, ideolo- gias, massas marginais recém-chegadas do campo, etc. — sao pesquisados e interpretados & luz desses proces- SOs sociais. Eles seriam basicos para a explicacéo das condig6es de desenvolvimento social e politico. E im- plicam no suposto de que as sociedades latino-america- nas, na época em que ocorrem os fenédmenos populis- tas, seriam sociedades duais. Assim, procura-se estabelecer uma relagdo de causa e efeito entre a “revolugio de expectativas”, que acom- panhariam necessariamente a migragéo do campo para a cidade, e a adesao de amplas massas & “demagogia” de lideres populistas. Recém-chegados do campo, com escassa ou nula compreensao dos valores e padrées si- cio-culturais da cidade, os migrantes formam na. peri- feria das cidades de Buenos Aires, Lima, La Paz, Guaia: quil, Sao Paulo, Rio de Janeiro, Caracas, México e ou- tras as “massas marginais.” Vejamos, em poucas palavras, como esses pesqui- Sadores tendem a compreender a docilidade dessas 25 massas 4&8 manipulagdes populistas, demagdgicas ou ca- rismaticas. Por um lado, considera-se que as massas marginais, ou classes populares, recém-constituidas nas periferias da cidade nfo dispdem ainda das condigées psicosso- ciais, ou horizonte cultural, que se sup6e especificas do comportamento urbano e democrdtico. Elas se encon- tram em processo de ressocializagao, sujeitas & revolu- ¢&o de suas expectativas e atitudes. Por isso, sao leva- das 4 aceitacfo dos mais diversos ¢ heterogéneos pa- droes e valores sdcio-culturais, inclusive os especificar mente politicos, Por outro lado, a sociedade urbana, ou urbano-in- dustrial, nfio dispde ainda das instituigOes politicas — por exemplo, 0 sistema de partidos politicos — adequa- das & mobilizagio e incorporagdo dessas massas, nos quadros da “democracia representativa”. Dai 0 sucesso da arregimentacao das massas mar- ginais, ou classes populares, pelo populismo. E o po- pulismo aqui 6 tomado, as vezes de modo explicito, como uma espécie de descompasso, retrocesso ou dis- torgao no curso do processo de transicao da democra- cia representativa, com participagao limitada ou exten- Sa, conforme 0 caso, para a democracia representativa, de participacdo total. Nessa perspectiva, as andlises que procuram corre- Jacionar mudanca, social, modernizagao e democratiza- cio parecem estar fortemente influenciadas pelo pa- radigma da democracia burguesa, conforme ele foi codificado pelos intérpretes das estruturas de poder na Europa e nos Estados Unidos. Vejamos, pois, como Gino Germani, Torcuato S. Di Tella e Jorge Graciarena caracterizam © populismo, situando-se, de modo mais Ou menos sistematico, na Perspectiva apontada. Note-se, entretanto, que nao fa- Temos aqui um exame exaustivo das suas andlises. Tra- taremos t&o-somente de apresentar e comentar a sua compreensaéo do que é peculiar ao populismo, Para Gino Germani, os movimentos populistas, ou nacional-populares, como ele os denomina, seriam fen6- menos sdcio-culturais e politicos fundamentais e ca- 26 racteristicos da é€poca de transigio da sociedade tradi- cional a sociedade urbano-industrial. Eles exprimiriam a forma svi generis assumida pelo processo de secula- rizagio da cultura e do comportamento na América Latina, Essa singularidade seria conseqiiéncia da “si multaneidade de néo contemporaneos”, jé que as socie- dades latino-americanas estféo permeadas de assincro- nias sociais, culturais, politicas e outras. Assim, por exemplo, tecnologias arcaicas e modernas sfio igual- mente aproveitadas na produ¢cdo econémica, Da mesma forma, todos os aspectos da estrutura social podem ser assincrénicos: tanto os seus ele- mentos psicoldgicos como a “superficie” material € ecoldgica. Dentro da mesma regiao — da mesma forma que dentro de regides ecologicamente dife- reates — coexistem grupos “avancados” e grupos “atrasados”. Normas contraditérias — como es que correspondem a estdgios anteriores da socie- dade e€ as que surgiram sob influéncia de mudan- gas de varios tipos, produzidas em outros setores da sociedade — podem continuar orientando a mesma instituigdéo, desde que umas e outras man- tenham certa legitimidade. De maneira andloga, podem coexistir atitudes, crengas e valores que “correspondem” a épocas diversas. ! A realidade latino-americana da época do populis- mo € essa realidade complexa, composta de heterogé- neos, de nao contemporaneos, repleta de sobrevivéncias © arcaismos. Mas essa realidade esta em transicio. Pouco a pouco, reduz-se 0 peso do tradicional e cresce * Gino Germani, “Democracia Representativa y Clases Populares en la América Latina”, publicado por Alain Touraine y Gino Germani, América del Sur: Un Problema Nuevo, Editorial Novs ‘Terra, Barcelona, 1965, pp. 39-66; ecitagdo da p. 40, O mesmo ensaio encontra-se na obra preparada por Joseph A. Kahl, La In- dustrializacién on América Latina, Fondo de Cultura Economica, México, 1965, pp. 469-487, yd a importéncia do moderno. No limite estaria a 2 1 ‘ socie- dade urbano-industrial, democratica, racional, onde nao. haveria hem demagogos nem carismdticos. No curso da transigao, entretanto, surgem oS movimentos popu- ues oa aoe Roaress compostos principalmente ‘aS Massas de escassa ou nenhuma experién no mundo urbano. if ae ae eae “nacional-populares” tém surgi- ju estéo surgindo rigorosamente em to paises da América Latina, pois que em cae ree 0 grau de mobilizagao das classes populares das areas marginais, em cada pafs, rebaixa ou ameaga rebaixar os canais de expresso e participagaio que a estrutura social é capaz de oferecer. ? Portanto, Os movimentos “nacional-populares” tém a curiosa singularidade de combinar heterogéneos, no nivel da politica. Ao mesmo tempo que representam um descompasso, no curso do processo de formagio do Tegime democratico, mobilizam e incorporam politica- mente as camadas sociais marginais. No mundo urba- no-industrial, onde imperam as relagdes de mercado, sobrevivem ou predominam as massas e o lider, cujos vinculos sao a demagogia e o carisma.* ‘ O regime “nacional-popular” tem freqiientemente negado os valores basicos da democracia represen- tativa, tais como as liberdades civis, ao mesmo tempo que efetivamente incorpora as antigas mas- sas marginais & vida econémica, cultural e politica da nagao. Ele as induz a uma participagaéo com- pulséria no processo de nacionalizacio e determi- na a passagem da aceitagao passiva & participacao 2 Gino Germani, Politica y Sociedad en un Epoca de Transici (do la sociedad ‘tradicional a la sociedad d 3), Editorial Paidos, Buenos Aires, 1962, p. 157. a thes: 3 Ibidem, p. 242. 28 ativa. Esse regime adota um modelo de desenvol- vimento baseado no planejamento central e na ex- tensa, se nao total, nacionalizagéo. O regime na- cional-popular nao surgiria no pais que chegou a etapa da democracia representativa com participa- cao ampla. Com maior freqtiéncia, ele pode surgir em paises nos quais a modernizacao social é ainda paixa e a democracia representativa, mesmo com participacao limitada, nao alcangou certo nivel de estabilidade. Em tais situagdes, qualquer grau de “desligamento”, quanto aos padrées tradicionais, pode originar uma taxa de mobilizagao maior do que a capacidade dos canais de participacao legi- tima disponiveis. Os canais institucionais para tal participagao podem nao ter sido criades com ante- rioridade, ou podem ser inadequados para absor- ver as massas recém-mobilizadas. * Na compreensao do populismo latino-americano, essa 6 uma das interpretagoes mais generalizadas e aceitas. Note-se, contudo, que ela se volta muito mais para O que seria o cardter autoritdrio ou ditatorial do populismo, Ao mesmo tempo, coloca em segundo plano os elementos nacionalista, desenvolvimentista e antiim- perialista presentes nos vdrios populismos, principal- mente cardenismo, peronismo e varguismo. Por fim, Germani concebe 0 populismo como um movimento de massas no qual estado naturalmente dilufdas ou obscure- 4 Gino Germani, “Political Change: from Traditional Society to Total Participation in Latin America”, chapter 6 in Society Politica in Transition in Latin America, mimeografado, Institute of Latin American Studies, New York, 1965, p. 6. Outros tra- balhos nos quais Germani aborda aspectos dessa problematica: Politica ¢ Massa, edicéo da Revista Brasileira de Estudos Politicos, Belo Horizonte, 1960; Sociologia della Modernizacién, Paidos, Buenos Aires, 1969; e também no trabalho em eolaboracdo: Gino Germani y Kalman Silvert, “Estructura Social e Intervencién Militar en Amériea Latina”, publicado por Torcuato S. Di Tella, Gino Germani, Jorge Graciarena y colaboradores, Argentina, So- ciedad de Masas, Budeba, Buenos Aires, 1966, tercera edicin, cap. IX. 29 cidas pela demagogia as linhas de classe. Por essa ra- Ao, ele insiste nas nog6es de “massas marginais”, “mas- Sas disponiveis” ou, no maximo, “classes populares”, Ao mesmo tempo e hecessariamente opera com os ter- mos “lider e massa”, cujos vinculos prineipais sio o carisma e a demagogia. Torcuato S. Di Tella, por seu lado, comega por res- Saltar que os movimentos populistas precisam ser com- Preendidos nos quadros dos Mecanismos de mudanca Social que singularizam a historia da América Latina nas décadas dos vinte aos sessenta. As massas urbanas recém-vindas das zonas rurais sofreriam forte impacto do que os economistas denominam “efeito demonstra- gio” e que Di Tella rebatiza de “efeito deslumbramen- to”. A simples mudangca do campo para a cidade, além da escolarizac&o e a influéncia dos meios de comu- nicag&éo de massa, Provocam nas massas urbanas de for- macao recente a elevacéo dos seus niveis de aspiracao social e econémica, ou a “revolugio de suas expecta- tivas”. Na medida em que se cria e muitas vezes se aprofunda © abismo entre as aspiragGes e as satisfag6es, cia de status”. Ao mesmo tempo, as massas urbanas récem-formadas, devido a sua inexperiéncia politica e debilidade organizatoria, sio facilmente mobilizadas por liderangas carismaticas, em nome de ideologias dema- gdgicas. Nesse contexto, torna-se dificil, ou mesmo impossivel, formar movimentos politicos tipicamente liberais ou operdrios, Segundo os modelos politicos eu- ropeus. Segundo Di Tella, “as ideologias sio utilizadas de forma instrumental, como meio de controle social de mobilizagao das massas, numa extensdo que nio tem paralelo nas nag6es mais antigas”.5 Em seguida, con- ceitua o bopulismo latino-americano nos seguintes termos: osaleee 5 Torcuato S. Di Tella, Para uma Politica Latino-Americana, Fiaduetio de Abigail Pereira Nunes, Paz e Terra, Rio de Janciro, 1969, cap. IV, “As formas do populismo”, p, 86. 30 i 3 imento © populismo, por conseguinte, é um Ee iti m forte apoio popular, com a parti ae eee de classes nao operdarias oy ae portante influéncia no aie ue fae cies i i i-status quo. Sut ates Ee sennociens nos niveis médios ou roe da estratificagio ie dotada de motivacdes ieee tus quo; II) massa mobilizada, formada as a tado da “revolugéo de aspiragoes”; oA ates ideologia. ou estado emocional difundido pied ri yorega a comunicacao entre ares © segui erie um entusiasmo coletivo. é ari dessa com- ao é necessdério fazer aqui a exegese eee do populismo latino-americano. Mesmo Uses ae ela exigiria uma andlise sistematica a pone one i i Tella sobre ls trabalhos publicados por Di Te: conor 6 is, os elementos principais da sua ep ; Beane atitiscieredte explicitos na sintese eet tada, Observe-se, no entanto, ee mt ae ae ne a movimentos de massas, os parti a i ii ‘base nos paradigmas eu- vernos de tipo populista com , aE ence! a sim, a coalizacio populista seria ct ia ae danliidede das “alternativas liberal e SUE na América Latina. Isto 6, as condigdes sociais e poli- ticas peculiares dos paises eee oe i aliangas populistas e dific ‘iam ee a aoeneaes representativa, por um eee eas partidos autenticamente operdrios, por outro. Mas i Tella re- © Ibi . 87, Em outros trabalhos Toreuato 8. Di fe ohne do populismo latino-americano: ha, Wee Xing Class in Politics”, publicado por Claudio Véliz (Editor), Eatin Ameriea and the Coribhem, Frederick A. Praeger, Pu blishers, New York, 1968, pp. 5 So y, Beronianmo A ina”, Politica Externa Independente, N° 2, Rio Saat Tee aod at der egies alapoliienaen Sistemas "Politicos Pluripartidistas: el Caso Latinoamericano”, 7. 8, Di Tella, G, Ger i of eolaboradores, Argentina, Soci , aan pon onr El Sistema Politico Argentino y la Clase Obrera, Eudeba, Buenos Aires, 1964. 31 interpretagio nao é demonstrada, nem 6 evidente por si mesma. Caberia Perguniar quais as relacdes possi- veis entre as formas populistas de atividade politica e os impedimentos propriamente Politicos tanto ao de senvolvimento de partidos operdrios como a formas democraticas de organizacao do poder. Em outros ter- mos, 0 Ccardter policlassista do populismo envolve tanto © problema da debilidade relativa das varias classes sociais em luta pelo poder como a hegemonia relativa de setores burgueses no conjunto da coalizao populista. Afinal de contas, essa é uma Coalizéo de desiguais, na qual mais freqiientemente acabam por predominar os interesses da burguesia, Vejamos, agora, como Jorge Graciarena enfoccu o vopulismo latino-americano. Dentre os aspectos que chamaram a sua atencio, Graciarena preocupou-se em assinalar a peculiaridade da ideologia dos movimentos nacional-populares, como ele também os denomina. Da mesma forma que outros Desquisadores empenhados em explicar 0 populismo na América Latina, Graciarena Tessaltou o cardter mistifi- eador da ideologia populista. E apontou a subordina- Gao da ideologia ao lider, como no justicialismo pero- nista ou no trabalhismo varguista. Ideologicamente, estes movimentos se caracterizam por uma retorica dirigida contra a oligarquia e o sistema vigente, em geral definidos de modo vago, numa linguagem que nao toma essas questGes em termos de luta de classes. Fala-se em pobres e ri- cos, trabalhadores e ociosos, ou em “descamisa- dos”, gostava de dizer Perén. Mas para que esse tipo de linguagem possa ter eficdcia sobre os di- versos setores da classe média, os movimentos nacional-populares tém evitado utilizar muito aber- tamente a terminologia classista. Outros compo- nentes importantes dessa ideologia tém sido o na- cionalismo e o antiimperialismo, temas que podem servir para sensibilizar e aglutinar a classe média desenvolyimentista. Entretanto, nesses movimen- tos a ideologia é secundaria, j4 que para ter efeito 82 precisa ser “personificada”. Aqui, a fonte de po- der 6 o lider e n&o a ideologia. Tanto assim que ° lider pode variar os seus contetidos com certa li- berdade. O que importa, para a legitimidade da ideologia, € que esta emane do lider, seja “sua criagéo” e nao de outros idedlogos. Os lideres ca- rismaticos na América Latina — da mesma forma que muitos africanos atualmente — sao criadores de ideologia. Dai surgem o “varguismo”, o “pero- nismo”, 0 “yrigoismo”, o “battlismo”, como dou- trinas “originais”.7 Para Graciarena, 0 movimento nacional-popular surge 4 margem dos partidos tradicionais, oligdrquicos ou de inspiragaéo européia. Pode-se entender que ele inclui aqui 0 socialista e o comunista, que nao teriam sido capazes de observar as massas formadas com a urbanizacao e a industrializacgaéo. Nisto, alids, consisti- Tia uma das singularidades desse tipo de movimento: o ter atraido e incorporado as massas que se encontravam marginalizadas da vida politica. * Em sintese, nas contribuigdes de Germani, Di Tella e Graciarena esta presente e predominante a preocupa- ¢40 com as condigdes sociais e politicas de formagao da democracia na América Latina. Em conseqtiéncia, °o populismo acaba por ser encarado como um desvio no que deveria ser a evolugao, natural ou desejavel, para © regime democratico. Dai a preocupagao predominante com aspectos como os seguintes: revolugéo de expecta- tivas, efeito demonstrag&o, ou deslumbramento, © in congruéncia de status; o cardter demagdgico e carisma- tico da relacio lider-massa; 0 cunho emocional, perso- halizado e enganoso da ideologia; a tendéncia autorita- via, © desprezo pelas liberdades civis e os tragos fascistas; 0 nacionalismo retérico. 7 Jorge Graciarena, Poder y Clases Sociales en el Desarrollo de America Latina, Paidos, Buenos Aires, 1967, pp. 181-182. 8 Ibidem, p. 133, 33 Nao se trata de negar a importancia desses aspectos para explicar o populismo. Eles nos parecem funda- mentais e precisam ser incorporados a discussac, a fim de que possamos avangar na pesquisa e interpretacao do tema. Todavia, mesmo tomados em conjunto, esses aspectos nao nos parecem suficientes para a compreen- s&o do populismo latino-americano. 3h Vv O PARTIDO POPULISTA Os INTENTOS de interpretar as estruturas politicas dos paises latino-americanos tém revelado maior preo- cupagao com certos tipos de problemas, em detrimento de outros. Dentre as quest6es mais freqiientemente estudadas, destaca-se a “instabilidade politica”, que se- tia caracteristica dos sistemas de poder na América Latina. E ébvio que a preocupacio com esse assunto tem levado os pesquisadores a concentrarem as suas atengdes na andlise de motins, quarteladas, golpes pa- lacianos, golpes de Estado e revolug6es, além das mo- dalidades de participacao dos militares nesses aconteci- mentos e no poder, Em plano secunddério, mas ainda com relagaio ao Problema da “instabilidade politica”, situa-se o inte- tesse dos pesquisadores pelo conhecimento das estru- turas partiddrias. Em geral, nestes trabalhos pro- cura-se conhecer em que medida e por que os partidos politicos latino-americanos afastam-se ou aproximam-se do que se consideram os seus paradigmas europeus ou norte-americanos. Em parte, por esse motivo certos estudos classificam os partidos em tradicionais ou oli- garquicos, modernos de inspiracao européia, totalitdrios © nacional-revoluciondrios. Nao examinam apenas as Suas formas de organizacio, atuagao e lideranca. Exa- minam também a influéncia de ideologias sustentadas Delos paradigmas europeus ou norte-americanos: liberal, 85 democratico, socialista, comunista, fascista, falangista ou outras. Nesses estudos, ha varios intentos de compreendcer © partido populista. Vejamos um deles. Alan Angell examinou os partidos politicos latino- -americanos tendo em vista caracterizar os seus aspectos mais peculiares. Por isso, descarta a conve- niéncia de comparagdes com paradigmas liberais ou operarios europeus. Ele sugere que a comparagio entre os partidos da América Latina e da Europa pode levar a interpretagdes incompletas ou negativas dos latino- -americanos. A seu ver, estes partidos precisam ser interpretados a luz de suas préprias tradicdes e estiios de organizagaéo e lideranga, tomados nos contextos so- ciais e politicos nos quais surgem e atuam. Vejamos, pois, como Angell conceitua o partido populista. Os chamados partidos “populistas” da América Latina tém sido definidos como policlassistas, de massa e reformistas, em oposicéo aos partidos “tradicionais”, de bases limitadas, oligérquicos e antireformistas... Uma combinagao de muitas definigdes de populis- mo permite ressaltar as seguintes caracteristicas. Primeiro, a lideranca provém das classes altas e médias, embora de seus grupos com motivacdes anti-status quo. A composicao da lideranga varia consideravelmente e isto pode afetar a natureza do movimento. Por exemplo, ela pode incluir mi- litares, como no movimento peronista, na Argen- tina, e homens de empresa, especialmente das industrias “mais novas”, novamente como na Ar- gentina. Na maioria dos casos, todavia, o inte- lectual alienado e o estudante reformista propiciam uma espécie de lideranga sem identificagdo de classe social, como no movimento de Castro, antes de 1959, no Movimento Nacionalista Revoluciond- rio, da Bolivia, ou na Acio Democratica, da Vene- zuela... Segundo, os partidos populistas possuem uma base popular. Os descamisados de Perén eram massas 86 urbanas organizadas por ele em sindicatos, pron- tas a responder ac nacionalismo demagdgico e a apoid-lo em troca do reconhecimento das suas rei- vindicagGes... Terceiro, os partidos populistas nado possuem uma doutrina precisa, mas mantém-se unificados em torno de um conjunto de reivindicacdes sociais basicas, ou num estado de entusiasmo coletivo inspirado nos termos da simples justicga redistri- putiva. Em certo sentido, 0 populismo 6 um mo- vimento antiideoldgico. Ele pode empregar a lin- guagem socialista, mas evita ligacdes com movi- mentos internacionais como o socialismo e 0 comunismo, embora procure usd-los. Populismo é uma ideologia de revolta contra o sistema, antes do que uma doutrina de governo; 6 um movimento que enfatiza a ac&o pela acdo, dificil de ser encai- xado no espectro politico esquerda-direita. Quarto, os partidos populistas sao bastante nacio- nalistas... O sentimento antinorte-americano é facilmente despertado e desempenha uma funcao importante no nacionalismo desses movimentos. .. Os lideres populistas descrevem o sistema que eles estéo procurando derrubar como antinacional, um sistema de exploracéo do pais por uns poucos pri- vilegiados, como os proprietdrios das minas de estanho na Bolivia; e descrevem a si mesmos como nacionalistas que daréio o pais de volta ao poyo. Quinto, o lider carismdtico é importante. Perén e sua esposa tiveram um controle sobre as massas na Argentina que nao pode ser explicado apenas em termos de organizacgao. No Brasil, o populismo esta ligado & figura de Gettilio Vargas. No Peru, O movimento aprista era controlado pelo seu fun- dador Haya de la Torre. As reivindicacdes popu- listas expressam-se melhor por ‘meio de um lider personificado. Devido a falta de prdtica com as. complexidades da vida politica, as massas sentem maior facilidade para identificar-se com um movi- 87 mento se o fazem por meio de um lider, pela me- diagdo de um patron. Como vemos, Angell sistematiza aspectos significa. tivos, em termos de andlise Politica, dos partidos popu- listas latino-americanos. De fato, ele realizou uma combinagéo relativamente coerente das principais ca- Tacteristicas do populismo, conforme elas aparecem nos estudos publicados sobre o assunto, — Entretanto, um dos aspectos criticdveis desse con- ceito é precisamente a nio explicitagéo do que é fun- damental e secunddrio nessa composi¢éo ou arranjo de atributos, Talvez haja unanimidade, entre os estudio- Sos, quanto 4 importancia dos atributos selecionados e sistematizados por Angell. Mas essa unanimidade nfo Serd a mesma, se quisermos saber qual 6 a importancia relativa de cada atributo. Sim, pode-se dizer que em cada pais e época esses tragos do populismo apresen- tam-se com uma configuragao peculiar. Mesmo assim, Testa a dlivida sobre quais sio os atributos determinan- tes, em cada caso. Ocorre que Angell deixa de tornar explicitos alguns elementos de Significagéo estrutural, talvez importantes Dara a maioria dos casos. Dentre esses elementos, cabe destacar aqui alguns. Nao é evidente nem freqtiente que a@ ideologia populista Seja sempre vaga, ou simples técnica de mistificacio. Por conseqiiéncia, nio parece evidente que as “massas” sejam sempre objeto no jogo Politico, Muitas tensdes e conflitos havidos no interior do peronismo, varguismo e outros movimentos indicam a indocilidade das massas. Ocorre que em diferentes -ocasiGes estas massas bopulistas diferenciam-se interna- ‘mente, desenvolvendo-se como classes Sociais, com in- 1 Alan Angell, “Party Systems in Latin America”, publicado por Claudio Véliz (Editor), Latin America And The Caribbean, Fre- derick A, Praeger Publishers, New York, 1968, pp, 856-364; ci- tacdo das pp. 359-360. Consultar também: Alan Angell, “Popu- lism and Political Change: The Case of Colombia”, publicado por Paul Halmos (Editor), Latin American Sociological Studies, The University of Keele, Keele, 1967, pp. 79-91, 38 se rios. Da mesma forma, a lideranga popu- ee ation ou demagégica, com freqiiéncia repre- enta de modo bastante claro os interesses burgueses. . Além disso, os cinco tragos do partido populisia Jatino-americano, conforme estao apresentados por oy ell, nao apanham as relagGes e estruturas coenounee 3 n40 ser em nivel ideoldgico. ; No entanto, elas neem parte integrante do contexto hisiérico no quai surge . populismo. Tanto assim que o populismo _— poe mente quando foi governo — marcou eleven le me ae decisivo as relagGes e as estruturas econémicas et . e externas dos paises, como na Argentina, na Bolivia, n Brasil, no Equador, no México e em alguns outros. . Da mesma forma que nos escritos de alguns outros estudiosos’ do problema, Angell também aeaba por nes deixar a impressio de que 0 partido populista ee -americano, dentro ou fora do governo, nunca deixa ae apresentar a feicdo de réplica impura dos modelos fe ropeus, liberal ou operdrio. Essa deve ser uma das taz6es porque ele nao pode ser facilmente classificado no espectro esquerda-direita. Assim, o populismo ba- rece mas n&éo é fascismo. Os dois seriam semelhantes, enguanto movimentos de reyolia ou protesto coribre ° sistema. Mas tornam-se diversos depois de conayisiar o poder. Diferentemente do qué peonpar cont oO as cismo, depois de alcangar © poder o populism: atane vitima do préprio sucesso; isto €, ele tende a realizar as suas limitacdes intrinsecas. Wesse linha de reflexao, preocupado com os paradigmas, Angell alega que é mais dificil identificar os populistas no governo, ou reconhe- cer algo caracteristicamente populista no modo Bose governarem. Diz que seria mais facil identificd-los en- Quanto se acham na oposi¢gaio.* Como vemos, 0 empe- nho em buscar semelhancas e diferengas leva Angell, neste ponto, a um juizo que nao pode ser comprovado hem com o governo de Perén nem com os de Vargas. Cada um foi populista a seu modo e afetou interesses €conémicos e politicos tao importantes que acabou por Ser deposto, cada um a seu tempo. * Alan Angell, “Party Sytem in Latin America”, citado, pAgi- Tas 360-861. 39 VI PACTO POPULISTA EZ BONAPARTISMO PARA ALGUNS pesquisadores, no populismo latino- -americano haveria uma relacio mais ou menos direta entre o “vazio politico” deixado pelo lapso das oligar- quias, a inexisténcia de uma “nova” classe social hege- ménica, a coalizao populista e o bonapartismo, Com isto no queremos dizer que todos os intérpretes preo- cupados com esses aspectos da questao estabelecam a mesma cadeia de relagdes. Mas essa 6 a seqiiéncia de “causalidade” que poderiamos depreender de algumas andlises. Vejamos inicialmente como se interpreta o cardter policlassista do populismo. Em seguida focalizaremos a questao do “vazio politico” e do bonapartismo, tratan- do sempre de examinar as relagdes de causalidade esta- belecidas por alguns autores, Alistair Hennessy comega por reconhecer que o populismo latino-americano se singulariza por ser um fendmeno fundamentalmente urbano. Isto nao impede que ele veja caracteristicas populistas no indigenismo aprista e no zapatismo, entre outros movimentos poli- ticos de base rural. Para Hennessy, todavia, o populis- mo latino-americano nao sé 6 fundamentalmente urba- no como esta impregnado de valores e padrées sécio- -culturais urbanos. Além disso, é policlassista e envolve a manipulagao politica das massas. 40 Varios fatores contribuiram para a emergéncia desse populismo transclassista. Embora présente- mente ainda faltem estudos sociais detalhados, que nos habilitem a fazer as distingdes qualitativas entre os diferentes tipos de movimentos, podemos isolar os seguintes elementos condicionantes. 1. A inabilidade das classes médias para preen- cher um papel histdrico, como portadoras de uma revolugao burguesa que gera os seus proprios va- lores e incentiva o desenvolvimento econémico. 2. A habilidade das elites latifundidrias para aco- modarem-se & mudanga, admitirem nowveaur ri- ches em suas fileiras e continuarem a fornecer um modelo de comportamento ao mimetismo das clas- ses médias. 8. A inabilidade da classe operdria urbana para desenvolver organizagdes autOnomas e independen- tes, além do atraso no surgimento de uma cultura propria da classe operdria. 4. O crescente fluxo de migrantes para as gran- des cidades, onde se formam extensos grupos mar- ginais, inassimilados. * 5. A persisténcia de uma rede de relagoes de de- pendéncia na sociedade rural, o que dificulta °o surgimento de organizagdes camponesas indepen- dentes e, ao mesmo tempo, condiciona 0 compor- tamento dos grupos urbanos marginais de origem rural. * Em sintese, 0 populismo urbano da América Lati- na pode ser considerado um mecanismo de mani- pulagaéo destinado a controlar populagdes margi- nais, propiciando os meios para a integragéo de migrantes na vida urbana. .., O populismo é um fenémeno de transigéo. EH um elemento de equili- brio nas relagdes entre forgas sociais contraditd- ee 1 Alistair Hennessy, “Latin America”, publicado por Ghita Io- Tescu and Ernest Geliner, (Editors), Populism: Its Meaning and National Characteristics, Weidenfeld and Nicolson, London, 1969, PP. 28-61; citagéo da p. 80. Ww rias. De modo bastante limitado, ele esta preo- ¢eupado com a mudanga da estrutura social, a Tuptura das relagGes de. imporiacao-exportaciio eo obstaculo representado por qualquer grupo social demasiado inflexivel para adaptar-se & elasticidade Politica dos programas bopulistas. ... Sob os auspicios de um governo Populista, como no pe- ronismo, pode ocorrer a industrializacio seletiva, do tipo substituigdo de importag6es. Mas isto no deve minimizar 0 fato de que esse tipo de popu- lismo 6 um fenémeno que diz respeito fundamen- talmente A urbanizacaéo, e nao & industrializacao. O aspecto mais notdvel dos movimentos populis. tas em questéo tem sido o esquecimento do cam- pesinato, isto 6, a incapacidade de mudar a estru- tura da sociedade tural, de realizar a reforma agraéria e de aumentar substancialmente a produ- ¢ao agricola. 2 Ao apanhar os elementos comuns aos vdrios moyi- mentos, partidos e governos populistas. latino-america- nos, Hennessy inevitavelmente deixa escapar algumas Singularidades nacionais importantes. No México, por exeiplo, 0 cardenismo procurou apoio, ao mesmo tem- BO, nas massas urbanas e rurais. Foi no governo Car- denas '(1934-40) que se intensificou a distribuigao de terras aos camponeses, ao mesmo tempo que se reali- zava a nacionalizacaéo da industria petrolifera. Nos dois casos, organizaram-se ainda mais as massas campone- Sas € urbanas, nos quadros do aparelho estatal, Ha outro aspecto da argumentacio de Hennessy que merece comentario. As massas urbanas s&o apre- sentadas como elemento passivo, manipulado de cima, apesar de serem parte integrante de movimentos, par- tides ou governos populistas. Isto parece uma contra- digéo em termos. Na medida que 0 populismo se funda na alianga de classes — e este 6 um conteudo essencial ase 2 Ibidem, pp. 84-85. 42 5 hi ‘ismo — deve haver algum tipo de bar- SE ae classes da coalizio. Em vérios casos, E parganha consiste no seguinte: enquanto a puree é classe média aumentam a sua participagao da renda e tonal o proletariado urbano aperfeicoa as suas or- Pativacbes de classe ou aumenta a sua experiéncia po- Trica A politizacio intensiva e extensiva das massas 10) ulistas, em especial nas ocasiGes de crise as Peenéiics, tem sido uma das principais razOes a abandono do pacto populista por parte da burguesia média. ! " a Seance agora, em outra perspectiva, a rete. a pacto populista com o vazio politico. Ao mesmo ey, reuniremos mais alguns elementos para a oie ee sobre o cunho bonapartista ou nao do populismo lat mericano. , ri te acordo com Francisco Cc. ‘Weffort, 2 Ee dade do populismo viria do “vazio politico” resul me do enfraquecimento ou colapso, conforme oO caso, oligarquia hegeménica no momento anterior. uliaridade do populismo vem de que ele sur- ao eee ae deminacay nas condigdes de “vazio politico”, em que nenhuma classe tem we hegemonia e exatamente porque nenhuma oe se afigura capaz de assumi-la, Conyém relem| is que 0 populismo aparece quando se da a eae hegemonia oligdrquica e das instituigdes liber que obrigam a um amplo e instavel SET eee entre os grupos dominantes, presidido pelo for = lecimento politico do Executivo e do poder econ mico e administrativo do Estado. : Nestas condigdes de crise de hegemonia, re- serva-se ao lider ou ao partido populista a funcgao de intermedidrio entre os grupos dominantes e as massas. Deste modo, o reconhecimento da legiti- midade da dominagao populista por parte das classes populares significa, de certo modo, uma mediagao — uma forma substitutiva da beeen inexistente — para o reconhecimento do status 4S quo dominante. Em uma palavra, na adeséo das Massas ao populismo tende necessariamente a obscurecer-se a divisio real da Sociedade em clas- Ses sociais conflitivas e a estabelecer-se a idéia do povo (ou da Nac&o) entendido como uma comu- nidade de interesses soliddrios,* Essa interpretacio ressalta aspectos realmente im- Portantes do populismo latino-americano. Um deles & que a coalizao populista tende a obscurecer as linhas de classe e a valorizar as massas, 0 povo, igualando ideologicamente interesses heterogéneos. Mas vejamos © ponto principal do conceito. A primeira vista, parece que o vazio politico deixa- do pelo colapso das Oligarquias torna essas classes aliadas por algum tempo, no populismo. Sim, é inegé- vel que na época da crise do poder oligérquico nenhuma das “novas classes” sociais Parece estar em condicées de assumir o poder e impor o seu mando as outras classes, definindo a feigéo do Estado. Tanto isso é ver- dade que o pacto populista sempre se Trompe quando a burguesia se acha suficientemente forte e nio quer mais dividir ou negociar as decis6es; ou quando os trabalha- dores levam as suas reivindicagées Politicas ou econd- Micas além das conveniéncias do Estado capitalista, sempre presente e essencial no populismo. Nessas oca- sides, a burguesia se une ©, quando necessdrio, apela as forcgas armadas Para juntas imporem a “ordem” ou a “paz” as classes assalariadas, particularmente o prole- tariado. O fato 6 que a alianca das “novas” classes sociais urbanas resulta muito menos do vazio politico em que eS car puisamcisee ©. Weffort, Classes Populares © Politica (Contei- buigd¢' ao estudo do “populismo”), edigao mimeogratada, Sac Paulo, 1968, pp. 133-134, Consultar, do mesmo autor: “Estado e Massas 1860 es evista, Civilicagao Brasileira, N27, Rio de Jancis 2966, pp. 187-158; “O Populismo na Politica Brasileira”, no livre qreanizado por Celso Vurtado, Brasil: Tempos Modernos, Pan o Terra, Rio de Janeiro, 1968, pp, 49-75. 44 ii va, Gevido 4 crise Go poder oli- Sain a earns das condigdes sociais, po- as “economicas inerentes @ nova situagao. E con- ae lembrar aqui que o colapso do poder oligar- peten’*. pears a crise, as yezes profunda, das relagdes Beanie de dependéncia he Pay Med i imdria export > - Bee Reevats: Mee atanerstees de novos tipos de eo s € regimes — ou mesmo do Estado populisia Bee erprecctio de mudangas. institucionais, ou ruptu- oe is internas e externas. : q a Eee yai Fianna O que esta em jogo é uma aor combinagéo de ee pecan ate ou i e fazer fun 5 7 acc: Aeaialeics de classes, ou °o pacto ee in fruto necessdrio e inevitdvel do vazio de eee Tas em nivel externo, 0 que esta em jogo é a rel oe Ha as vezes ampla, das Telagdes i estruturas de ¢ coe — cia. Talvez sejam as condigoes excepcionais, inte ag externas, diante das quais se encontram as eet classes, que criam as novas exigéncias politicas oe ndémicas. Tanto assim que o proprio aparelho oe | adquire nova configuragao, sob o Roe Ee ae proprio relacionamento do Estado com a soci ape desta com aquele, em sentido lato e também especifi °- Mas nao muda, no essencial, 0 cardter capitalis das relagGes de dominacgéo politica © apropriagao eco- nomica. Ao contrdrio, a singular alianga acaba por propiciar novas condigdes politicas e sociais eos diferenciagéo interna do subsistema_ econdmico nacio. como @ continuidade da acumulagao capitalista, no se- tor privado nacional e estrangeiro. ‘ Nessa perspectiva, o pacto populista parece um intermezzo, de cunho bonapartista, na transcrigao da ee gemonia oligérquica & hegemonia propriamente burgue- Sa, entendida esta como burguesia de base urbana ou industrial, "alids, 9 cardtcr bonapartista assumido com fre- quéncia pelo populismo latino-americano 6 um aspecto Anportanie da liesma questao. O exame da conotagao 45 bonapartista do Populismo pode abrir alguma pers- pectiva nova & discussio do problema da composigéio de classes no populismo. E inegavel que nos governos, regimes ou Estados populistas tém surgido elementos tipicos do bonapartis- mo. Em primeiro lugar, o “equilfbrio” das classes so- ciais que participam da coalizao populista é um com- ponente bdsico do bonapartismo, Em Segundo lugar, no populismo tem sempre ocorrido a hipertrofia do Executivo, ou o que é equivalente, a submissio do Le- gislativo pelo Executivo. Todo governo populista tende a ser forte, semiditatorial ou simplesmente ditatorial, como no bonapartismo. Em terceiro lugar, por fim, 0 governo populista, da mesma forma que o bonapartis- ta, trata de organizar o poder além do aparelho estatal; ou, & reversa, trata de incorporar ao aparetho estatal Sindicatos e partidos. A combinacao Estado-partido-sin- dicato 6 0 produto e, ao mesmo tempo, o sustentaculo do governo populista mais tfpico. Nesse contexto, o chefe do governo — seia Cardenas, Perén ou Vargas — aparece como o benfeitor de todas as classes identifi- cadas com a Nacio; ele se apresenta como auem tem a missio de instaurar a paz social, para salvaguardar & ordem burguesa. Os governos dos paises atrasados, isto &, coloniais e semicoloniais, assumem em toda parte um card, ter bonapartista ou Semibonapartista. Eles diferem um do outro no seguinte: alguns buscam orien- tar-se no sentido democratico, procurando o apoio de trabalhadores e camponeses; ao mesmo tempo. que outros instauram uma forma de governo pré- xima da ditadura policial-militar, Isto determina © destino dos sindicatos. Eles sio colocados sob controle especial do Estado, ou sAo submetidos a uma cruel perseguicio. A tutela do Estado é dita- da pelos seguintes motivos: 1) atrair a classe Ope- réria, ganhando assim o seu apoio na resisténcia contra as pretensGes excessivas do imperialismo; 2) ao mesmo tempo, arregimentar os trabalhado- 46 5, colocando-os sob o controle da burocracia res, estatal. * ji tismo que oO haja um aspecto no bonapar gue o Pe cticnlarmente — se nao essencialmente dis poe a populismo. O bonapartismo tipico resulta de in Iuta intensa pelo poder. Ele se impoe quando Bee uma das classes sociais em confronto disp6e de oR ae para impor o seu mando as outras. oO ee ena de Napole&o III, na Franca cee cuss i intensos antagonismos e lutas 6 4 2 ee tonne, o kerenskismo, na Rtissia de 1917, foi ae forma singular de bonapartismo, numa situacao a ue também eram intensos os antagonismos e as fies de classes.* Conforme observa Eee ee ismo, que é como ele denomina 0 bon: , gets pcdatidede de Stpen ponies ee re ig6 Le alizio de antag 5 digdes de classes; € uma Co: g be Te i i pbonapartismo as clas assim que na vigéncia do re eS a is continuam a desenvolver-se com a eirse mantém nem iguais nem amorfas na vigéncia do regime. Mesmo que as linhas de classe se apaguen no nivel ideoldgico, elas nao se apagam nas relag es ne producio reais. Além do mais, estas continuam a senyolver-se. 4 Yeon Trotsky, Por los Estados Unidos Socialistas de América Toting, Ea. Coysacin, Buenos Aires, 1961, p, 16, eltado por Jorge Abelardo Ramos, Hisiéria de la Naciin ericana, . Lillo Editor, Buenos ‘Anes, 1968, y, 450, Consutar também: Marx, nil de 1866; Banos, be tee: dot Bemtpartiono, Raitorial Plas Ultra, Busnos Aires, 1972, 4% edicién; Theotonio dos, Santos, Socialiemo o Fas- ciomo: Dilema Latinoamerieono, diciones Prensa Latinoamer: cana, Santiago, Chile, 1969, especialmente caps. VIII > iseoy © Karl Marx, As Lutas de Classes na Franca. Gas eae Editorial Vitéria, Rio de Janeiro, 1956; Kanl Marx, O J de Luis Bonaparte, Bditora Eseriba, S80 Paulo, 1968. © Leon Trotsky, A Hictéria da Revolucdo Ruse, trad. de E, Hug. gins, & vols., Baditora Saga, Rio de Janeiro, 1967, 2° vol, cap. VI: Kerensky e Korniloy (Os elementos do bonapartismo na Revolug: Rossa). aT Pode-se afirmar que o cesarismo exprime uma si. tuagéo em que as forcas em luta se equilibram de modo catastr6fico, isto é, equilibram-se de tal for- ma que a continuagéo da luta s6 pode levar a des. truigao reciproca. 7 No mundo moderno, o equilibrio com perspectivas catastroficas nao se verifica entre forgas que, em — ultima andlise, poderiam fundir-se e -unificar-se, ™mesmo depois de um processo fatigante e sangren- to, mas entre forgas cujo contraste é insanavel historicamente, e que se aprofunda com o advento de formas de cesarismo. # No bonapartismo, pois, 0 que parece ser essencial é uma situagéo de antagonismo de classes na qual a propria contradicéo e a impoténcia relativa das classes Obrigam-nas a acomodarem-se entre si. Nesse caso, o controle do poder surge como um produto politico pa- Tadoxal das contradicées de classes; paradoxal porque exprime uma paz de antagonicos, estabelecida pela im- Possibilidade de ccntinuacaio da luta. Na&o seria essa a situagdo no peronismo, nem no varguismo. Nos dois casos, as contradi¢des principais eram as contradic6es entre a propria coalizio e as es- truturas oligdérquicas e imperialistas que se encontra- vam fora do poder. Isto nao Significa que os antago- nismos internos, em ambos, nio eram um elemento di- namico importante. Mas eram secundarios na definicao do regime, Note-se, porém, que no peronismo, por exemplo, nos tiltimos anos de sua vigéncia, as contra- digdes internas do regime parecem ter ganho maior Significac&o, influenciando bastante as condigdes do seu colapso. Alids, em outros governos populistas latino- ~americanos ocorreu fato semelhante: em certas oca- si6es criticas, as contradig6es internas, entre as classes, Sociais que compunham o pacto, adquiriam maior im- Portancia ou podiam mesmo tornar-se decisivas. i ee teasintonio Gramsci, Maquiavel, a Politien ¢ 0 Hetado Modcrno, trad. de Luiz Mario Gazzaneo, ‘Civilizagio Brasileira, Rio de Ja. neiro, 1968, -p. 68, 8 Ibidem, p. 66. 48 Vi NACIONALISMO E BURGUESIA NACIONAL Tonos os estudos sobre o populismo latino-ameri- cano mostram que a ideologia ea atuacao dos movimen- tos, partidos, governos e regimes populistas revelam oO empenho de reformular tanto as relagdes politico-eco- nomicas externas como as internas. As lutas contra a oligarquia e o imperialismo muitas vezes SAO uma sd. De modo mais ou menos sistemdtico, todo populismo volta-se contra as relagdes e estruturas de dependéncia, que seriam o sustentdculo do poder oligdérquico. Isto nao significa que o antiimperialismo Populista seja ra- dical e conseqiiente. As vezes, ele é mais ideoldgico do que efetivo. Outras vezes, a nacionalizagao de uma em- Presa estrangeira, ou controlada por estrangeiros, nao € seguida de medidas correlatas, na mesma diregao. Todavia, a ambigiiidade do nacionalismo, ou antiimpe- tialismo, populista nao deve levar a que se dé pouca dmportancia a esse aspecto do problema. A significa- 40 histérica do populismo somente pode ser apanhada de modo satisfatério quando vemos inclusive o que neie Parece ambiguo. : x Francois Bourricaud sintetiza a sua interpretagao do populismo lJatino-americano ressaltando a importan- ia do desenvolvimentismo nacionalista. Necessaria- mente, pois, destaca a sua conotacdo antiimperialista. Sugere que a crise das ideologias populistas esté re- lacionada com a revisdo critica do papel da burguesia 49 nacional na luta pela nacionalizacéo dos centros de de- ciséo relativos ao mando da economia nacional. Por ambiguo que possa parecer um termo que. pode ser aplicado ao regime mexicano, ao partido aprista peruano e ao movimento peronista, creio que se pode falar em movimento “populista” se. por esta expressio entendemos a combinacio de certo ntimero de diretrizes originais: 1) certa dose de antiimperialismo, dirigido especialmente contra os Estados Unidos; 2) certa concepcaio de desen- volvimento auténomo, hacia adentro; 3) a exigén- cia de uma participacéo das foreas sociais que os 1 regimes oligdérquicos tradicionais haviam mantido & margem; 4) uma preferéncia por coalizées, ou frentes, mais do que pela acdo das classes sociais, conforme 0 estilo “marxista-leninista”. ... Inde- pendentemente da diversidade de posicées cober- tas por essas caracteristicas, e dependendo da di- ficuldade para compatibilizar operacionalmente politicas concretas, essas diretrizes aglutinam-se em torno do combate contra o “poder oligarquico” e a “dependéncia frente ao imperialismo”, ao mes- mo tempo que afirmam e reivindicam a possibili- dade de desenvolvimento auténomo.* Nas ideologias “populistas”, a condenacéo do ca- pitalismo e do imperialismo estava associada 4 exaltacao da burguesia nacional, & qual o Estado popular, ou Estado antiimperialista, iria propor- cionar, como diz Haya de la Torre, os meios ne- cessdrios para crescer e consolidar-se. Nao obstan- te, essa confianga na burguesia nacional desapa- rece pouco a pouco, ao mesmo tempo que se reduz a confianca no reformismo e nas virtudes da de- mocracia “formal”. ? 1 Francois Bourricaud, “Las Aventuras de Ariel”, Plural, N.° 18, México, octubre de 1972, pp. 12-20; citagiio da p. 17. 2 Ibidem, pp. 19-20. Consultar também outros trabalhos do mesmo autor: Ideologia y Desarrollo, El Colégio de México, México, 19663 50 Nessa interpretagao, acham-se suficientemente ex- plicitos alguns aspectos fundamentais do populismo la- jino-americano. Em especial, estao ressaltadas as rela- goes dinamicas entre 0 nacionalismo econdmico, 0 desenvolvimento, 0 antiimperialismo e a luta contra as estruturas oligdrquicas preexistentes. Nesse contexto, as forcas populistas entusiasmam-se e em seguida de- cepcionam-se com a capacidade de atuagao politica da purguesia nacional. Todavia, Bourricaud nao estabelece algumas rela- ges necessdrias entre as caracteristicas consideradas por ele peculiares desse fendémeno. Em primeiro lugar, seria conveniente apontar e ressaltar a combinacao di- namica entre o desenvolvimentismo, 0 nacionalismo e © antiimperialismo, por um lado, e a coalizaio de classes, por outro. Todos parecem ser termos de uma mesma configuracéo politico-econémica de ruptura das estru- turas de dominagaéo politica e apropriaciéo econdmica, eriadas com a economia primdria exportadora e o regi- me oligérquico. Dai a importancia e a necessidade da eoalizao de classes, numa época de rupturas estrutu- Tais, na qual nenhuma das classes emergentes é hege- monica, Em segundo lugar, na revis&o critica do papel da burguesia nacional, do significado do reformismo ou das virtudes da democracia representativa, seria neces- sario destacar a importancia do agravamento dos anta- gonismos de classes. Mais que isso, seria indispensdvel assinalar 0 aparecimento de nova configuracao critica © de classes sociais com possibilidades concretas de hegemonia, No populismo, hd momentos em que as contradic6es internas 4 coalizio agravam-se. Alids, um dos equivocos a que induz a nocao de Pacto populista, e que parece estar presente em algumas interpretagées. do fendmeno, é o suposte implicito da alianca de iguais. As camadas ou classes sociais com- __ peeder ¥ Sociedad en el Peru Contemporaneo, trad. de Roberto Tent, Sum, Buenos Aires, 1967; “Notas sobre la oligarquia pe- aid e “La clase dirigente peruana: oligarcas e industriales”, cados em Oligarquia en el Peru, Instituto de Estudios Pe- Tuanos, Lima, 1969, 51 pinadas no populismo nao sao iguais, principalmente em seu peso politico especifico. Hlas sao heterogéneas, inclusive quanto aos graus de desenvolvimento das suas. consciéncias. Mais que isso, nas estruturas e decisdes do populismo, a burguesia tem sempre acabado por fa- zer prevalecer os seus interesses. Tanto assim que 0 eapitalismo continua n&o sé a funcionar como também a desenvolver-se durante a sua vigéncia. Ea burguesia sempre rompe o pacto quando ele p6e em perigo a classe dominante, ou as condicdes de reproducao do ca- pital que interessam ao setor privado. Entre si, as clas- ses que participam do pacto apenas aparentemente sao subalternas. Na pratica, a burguesia mantém algum grau de hegemonia sobre as oOutras classes, mesmo quando ela esta representada no poder por terceiros. Todavia, € conveniente ressaltar aqui, conforme sugere Bourricaud, que 0 nacionalismo populista nao é muito tenaz. Em nenhum dos paises onde o naciona- lismo se concretizou em nacionalizagoes audaciosas. (por exemplo México e Bolivia) 0 governo persistiu nessa direcio. Ele nao adotou outras medidas conse- qiientes com a emancipacao econémica do pais, que seria, por suposto, o fundamento da nacionalizagao. Tanto no México como na Bolivia, ainda durante a vi- géncia dos mesmos governos que efetuaram as nacio- nalizagdes das empresas petroliferas e de mineracao, realizaram-se negociagdes para indenizar 0 capital es- trangeiro e reduzir o impacto dessas medidas nas de- cisdes dos investidores estrangeiros potenciais e dos governantes dos paises imperialistas. Esses e outros fatos levaram alguns setores do proprio populismo & revisao critica da sua concepgao de burguesia nacional. Comegou-se a ver que O nacio- nalismo das classes sociais aliadas no pacto populista era uma manifestacio relativamente vaga e moderada de antiimperialismo. Alids, o fato do nacionalismo po- pulista com freqiiéncia parecer muito mais uma sim ples retérica resulta de que ele é antes um elemento de aglutinacio de heterogéneos do que um programa de agao. Em certos casos, ele funciona como uma, “técni- ea politica” para forgar os governos e as empresas que 52 atuam de modo espoliativo a reformular as condigGes de barganha e dependéncia. Essa ¢ a razéio porque a purguesia nacional da coalizao populista aparece habi- ¢ualmente como uma burguesia subalterna.* Ocorre que as ambigiiidades e inconsisténcias do nacionalismo populista parecem estar influenciados, de modo decisi- yo, pela natureza mesma do pacto populista. Em primeiro lugar, as classes assalariadas do po- pulismo, inclusive o proletariado, nao participam da coalizao enquanto classes sociais auténomas, organiza- das e politicamente conscientes da sua situagéo de classe. Ao contrario, elas sio classes sociais em forma- cao, quando as suas lutas estao muito mais motivadas por razdes econémicas imediatas do que por questdes politicas da classe ou da sociedade. Esse é, provavel- 3 Trabalhos em que se encontram dados e andlises de interesse para a discussdo sobre burguesia nacional e burguesia subalterna na América Latina: Pablo Gonzalez Casanova, “Las Reformas de Estructura en la América Latina”, Hl Trimestre Economico, N° 150, México, 1971, pp. 851-887; Victor Flores Olea, Marsismo y Democracia Scciatista, Universidad Nacional Autonoma, México, 1969, pp. 182-218; L. A. Costa Pinto, Desenvolvimento Hoonémico e Transi¢ao Social, 2.9 edicéo, Civilizagdo Brasileira, Rio de Ja- neiro, 1970, cap. 6; Helio Jaguaribe, Problemas do Desenvolvi- mento Latino-Americano, Civilizagio Brasileira, Rio de Janeiro, 1967; Arthur P, Whitaker and David C. Jordan, Nationalism in Contemporary Latin America, Free Press, New York, 1966; Samuel L. Baily (Editor), Nationalism in Latin America, Al- fred A. Knopf, New York, 1971; Octavio Ianni, Lmperiatismo y Cultwra de la Violencia en América Latina, Siglo XXI Edi- tores, México, 197i, 2° edicién; Florestan Fernandes, Sociedade de Classes ¢ Subdesenvolvimento, 2.° edico, Zahar Bditores, Rio de Janeiro, 1972; André Gunder Frank, Lumpenburguesia: Lumpendesarrolto, Editorial Nueva Izquierda, Caracas, 1970; A. G, Frank, J. D. Cockroft y D. L, Johnson, Beonomia Politica el Subdesarrollo en America Latina, Ediicones Signos, Buenos Aires, 1970; Juan y Verena Martinez Alier, Cuba: Hconomia ¥ Sociedad, Ruedo Ibérico, Paris, 1972, esp. caps. III e IV; Octavio Tani, Estado ¢ Planejamento Eeonomico mo Brasil (1930-1970), Civilizagdo Brasileira, Rio de Janeiro, 1971; Fernando Henrique Cardoso, Hmpresdrio. Industrial, € Desenvolvimento Heondmico, Pifusio Européia do Livro, S. Paulo, 1964; Eduardo A. Zalduendo, El Empresario Industrial en. America Latina: Argentina, Comision conomiea para America Latina, Santiago, 1968, mimeografado. 5s mente, um motivo real para que no populismo as li- nhas de classe aparecam apagadas. Portanto, as classes assalariadas, ou o proletariado, em particular, nao dis- poem das condicdes para propor @ impor uma con- cepeao prépria de antiimperialismo. Elas permanecem no nivel do nacionalismo populista, fundamentando a idéia de que a “nagaéo” deve ser dada de volta ao “povo”. Em segundo lugar, a burguesia nacional que parti- cipa da coalizio populista também é uma classe social em formacao, Ela era subalterna na vigéncia do po- der oligérquico. Continua subalterna na vigéncia do populismo, devido as parganhas possiveis com 0 capital e a tecnologia estrangeiros. Além do mais, para a burgue- sia nao interessa levar o nacionalismo demasiado longe, jd que qualquer luta mais aberta com o imperialismo pode abrir acs trabalhadorzs perspectivas politicas in- controlaveis por ela. Para a purguesia nacional, a con- dicgio subalterna, em relagao com 0 imperialismo, pa- rece ser um preco menor do que 0 risco do confronto politico com os trabalhadores. * = Outras obras em que se encontram subsidios para a anélise do populismo latino-americano, tomado como um todo: Peter Worsley, “The Concept of Populism”, em G. Ionescu and E, Gellner, op. eit-, chapter 10; José Medina Echavarria, Consideraciones Sociolégicas sobre el Desarrollo Econémico, Solar-Hachette, Buenos Aires, 1964; CEPAL, El Desarrollo Social de América Latina en la Postguerra, 28 edicion, Solar-Hachette, Buenos Aires, 1966; Jacques Lambert, Amérique ‘Latine (Structures Sociales et Institutions Politiques), ‘Presses Universitaires de France, Paris, 1963; Robert J. Alexander, Aepeotos Politicos da América Latina, trad. de V. L. Schilling, Distribuidora Record, Rio de Janeiro, 1966; Alain Touraine y Daniel Pécaut, “Consciencia Obrera y Desarrollo Econémico en ‘Amériea Latina”, Revista Latinoamericana de Sociologia, Vol, I, N© 2, Buenos Aires, 1966; Alain Touraine, “Mobilité Sociale, Rapports de Classe et Nationalisme en Amérique Latine”, Socio logie du Travuil, N.© 1, Paris, 1965; Charles W. Anderson, Politics ‘and Economic Change in Latin America, D. Van Nostrand, Prin- ceton, 1967; Alberto Ciria, Cambio y Estancamionto en América Latina, Editorial Jorge Alvarez, Tulio Halperin Donghi, Historia Contemporanea de América Latina, Alignza Bditorial, Madrid, 4970, 2 edicidn; Marcos Kaplan, Formacién del Estado Nacionol on América Latina, Editorial Universitaria, Santiago de Chile, 54 fed 4969; Fernando H, Cardoso e Enzo Faletto, Dependénci volvimento na América Latina, Zahar Editores, Rio de Tansey 1970; Antonio Garcia, La Estructura del Atraso en América La fina, Editorial Pleamar, Buenos Aires, 1969; André Gunder Frank Lumpenburguesia: Lumpendesarrollo (Dependencia, Clase y Poli- tica en Latinoamerica), Editorial Nueva Izquierda, Caracas, 1970; Florestan Fernandes, Sociedade de Classes ¢ Subdesenvolvimento, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1968: Victor Alba, Historia del Movimiento Obrero en América Latina, Libreros Mexicanos Unidos, México, 1964, esp, cap. VII; Enzo Faletto, “Industrializagio o Glbsss Operdsia na Amésies Latina? em Tenelo, Martine Ro- irigues, Sindicatismo e Sociedade, Ditusii i i SGo Paulo, 1968, pp. 285-887. a dee ee 55 Terceira Parte PODER E CLASSES SOCIAIS Vill O ESTADO OLIGARQUICO O POPULISMO surge na América Latina na época em que o Estado oligdrquico entra em sua maior crise. Ao mesmo tempo que é uma das manifestagdes da crise das estruturas oligdrquicas, ele passa a ser um elemento ativo no declinio final desse tipo de Estado. & verdade que o populismo sucede aos movimentos em que pre- dominava a classe média, como no battlismo uruguaio, © yrigoyenismo argentino e no tenentismo brasileiro. Esses movimentos representam as primeiras reacdes mais vigorosas das classes sociais emergentes contra o Estado oligdérquico. Suas lutas pronunciaram-se j4 nas Ultimas décadas do século XIX, nos paises mais avan- ¢ados, quanto ao estagio de desenvolvimento econémico, urbano e politico-administrativo. Em certos casos, os movimentos de classe média combinaram-se com as lutas realizadas pelos setores operdrios, como na polf- tica de massas. Alids, uma das caracteristicas do popu lismo 6 precisamente 0 compromisso com as lutas ou certos valores ideoldgicos da classe média. Entretanto, é ha epoca do populismo que em certos paises o Estado Oligérquico entra em seu declinio definitivo, dando lu- gar as ditaduras ou democracias populistas. Certas ve- zeS, como na Argentina e no Brasil, essas modalidades combinam-se ou sucedem-se. Outras vezes, como no Mé- xico, o regime democratico é profundamente afetado belo predominio de um grande partido governamental 5g no corpo politico da nagao. Em geral, o autoritarismo predomina sobre as normas democraticas. Coloquemos, desde jd, duas questdes bdsicas, rela- tivas aos significados estruturais do populismo surgido na América Latina. Primeira, em que consiste o Estado oligérquico? Segunda, por que ele entrou em colapso na é6poca do surgimento do populismo? Vejamos a primeira questao. A outra sera enfocada nos capitulos seguintes. No ambito das relagdes politico-econémicas inter- nas & sociedade nacional, o Estado oligdrquico apresen- tava as principais caracteristicas da dominac&o patri- monial. Era a ultima e mais elaborada expresso das variadas manifestagdes politicas, econdmicas e mesmo culturais das oligarquias locais e regionais. Muitas ve- zes, O poder oligérquico era a expressdo politico-admi- nistrativa de uma oligarquia regional mais vigorosa, ou de uma combinagao de oligarquias regionais dominan- tes. Assim, 0 caciquismo, o gamonalismo, o coronelismo € 0 caudilhismo eram as manifestagdes das oligarquias locais e regionais, sendo que Diaz, Gomez, Leguia e ou- tros eram os chefes de governos apoiados nelas. As oli- garquias, pois, correspondem a organizag6es, técnicas e © estilos de lideranga politicos caracteristicos de uma época em que os partidos nao eram sendo organizagdes formais. Em geral, as vérias modalidades politicas da oligar- quia orientavam-se no sentido do autoritarismo e per- sonalismo inerentes & dominacéio patrimonial. Fossem quais fossem os fundamentos das relacdes econémicas predominantes (mineragdo de ferro, cobre, chumbo, es- tanho, extragdo de guano, salitre, borracha, criacao de gado, cultura de trigo, café, cacau, etc., ou seja, mine- — racao, atividades extrativas, pecudria ou agriculitura) as Telagdes de produgéo eram sempre capturadas pelas re- lag6es e estruturas politicas de tipo oligdrquico. Nesse contexto, o Presidente, o Ditador ou 0 Imperador corres- pondiam a uma figura de oligarca, em Ambito nacional. Seriam benevolentes ou repressivos, providenciais ou vorazes, conforme as exigéncias das relacées polariza- das em torno das suas figuras. Em wiltima instancia, o governante reproduz a imagem do fazendeiro, em dimen- 60 soes nacionais. Ele governa segundo as condigées e exi- géencias econémicas, politicas e sociais abertas pelas ati- yidades produtivas predominantes, as quais pode estar Jigado por seus interesses pessoais diretos ou pela sua condicgao de classe. Assim, depois das lutas pela independéncia poli- tica nacional, e em seguida as guerras e revolugées civis que se sucedem aquelas lutas, o Estado nacional adqui- re os contornos de Estado oligarquico. Apds a elimi- nagao do poder colonial (espanhol ou portugués) veri- ficam-se algumas décadas de lutas internas nos pai- ses latino-americanos, até que a nova estrutura de po- der esteja organizada e imponha-se. Essa nova estru- tura de poder corresponde a uma combinagao de oligar- quias, ou 4 hegemonia de uma oligarquia sobre as ou- tras. Sobrepondo-se aos escravos, pedes, mesticos, in- dios, negros, mulatos e brancos pobres, est&o os bran- cos, ou brancos e mesticgos, pertencentes 4 camada domi- nante. Durante o século XIX, as sociedades latino- -americanas estao impregnadas de valores, padrées de comportamento e relagdes que lembram o perfil da so- ciedade de castas. A despeito das suas relagdes fundamentais com os sistemas capitalistas dominantes, as sociedades latino- -americanas nado se organizam plenamente em termos de relagdes de classes. Apesar de serem sociedades organi- zadas para produzir mercadorias para o mercado capita- lista. externo (petrdleo, ferro, cobre, estanho, guano, sa- litre, borracha, carne, trigo, café, banana, acticar etc.), as relagdes de producfio internas nao se configuram como relagdes entre classes sociais claramente delinea- das como tais. H que a forma pela qual essas socieda- des se vinculam externamente exigem alto indice de ex- ploragao da méo-de-obra nacional, 0 que implica em ™anter os trabalhadores nas condicées peculiares da Situacao de acumulagéo origindria. Nesse contexto, per- sistem formas nao propriamente capitalistas de utiliza- ¢a0 da fora de trabalho, isto 6, formas combinadas de Organizacéo das relagdes de producao. Note-se que no Seculo XIX a escravidio de indios, mesticos, negros e Mulatos 6 bastante generalizada. Mesmo nos paises em 61 que o regime havia sido extinto formalmente subsistem formas de trabalho compulsorio. Nas primeiras décadas do século XX continuam vi- gentes modalidades disfargadas de escravizagio desses mesmos trabalhadores, na mineragéo, em atividades ex- trativas, na pecudria e na agricultura. Dai a persisténcia e o predominio de relagGes e estruturas sociais e econé- micas de tipo patrimonial. As relagdes sociais, a cultura e as proprias relagdes de produgao continuam impreg- nadas de elementos semelhantes aos que seriam carac- teristicos da sociedade de castas. As camadas dominan- tes e os trabalhadores distinguem-se entre si tanto ecu- némica e politicamente como pela religiio, o idioma ou a cor da pele. Uns séo donos do poder, outros nao possuem nenhum acesso ao poder. Esses sio alguns dos termos da dominagao oligarquica. No regime oligérquico, 0 poder politico 6 contro- lado, ou simplesmente monopolizado, pelas burguesias ligadas 4 agricultura, 4 pecudria ou & mineracdo. Natu- ralmente as burguesias financeira e importadora tam- bém se encontram inseridas no sistema politico-econd- mico de poder. Os interesses fundamentais do regime, no entanto, so fortemente influenciados pelos interes- ses dos grupos detentores do poder econédmico no se tor predominante: café, banana, aguicar, trigo, 14, carne, etrdleo, cobre, estanho ou outro. Combinados ou nao, conforme o pais e a época, estes setores funcionam como enclaves, ou segmentos da economia do pais do- minante (principalmente a Inglaterra, no século XIX, e os Estados Unidos, no século XX). O enclave é a base econémica do poder politico do governo oligarquico. Ao mesmo tempo, ele € o elo mais visivel da sua depen- déncia, em face do imperialismo. Na medida que o en- clave 6 préspero, cresce a penetracio imperialista no pais dependente e aumenta o poder e a tenacidade do governo oligdrquico. Quando essas condicées econémi- cas combinam-se com o apoio do clero, das forcas ar- madas e da burocracia publica, o regime pode ter vida longa, como nos casos de Diaz, no México, Gémez, na Venezuela, e Leguia, no Peru, para mencionar apenas essas casos notdveis. 62 pela propria natureza, o regime Oligdrquico nao fa- yorece 0 desenvolvimento de partidos e sindicatos que imam posigdes e interesses de classes ¢ grupos so- ciais nao representados no governo. Salvo nas ocasides de controle tranqiiilo do poder e de prosperidade eco- nomica, quando pode dar-se algum debate politico ou mesmo a organizagio de partidos e sindicatos indepen- dentes do governo, em geral o regime tende a monopo- lizar essas instituigdes politicas, agindo de modo autori- tario e repressivo. O Gen. Porfirio Diaz (1877-1880, 1884-1911), do Mé- xico, era um dos mais astutos na lida com os ini- migos do seu governo. Alguns ele comprou com favores e empregos, outros foram banidos ou for- cados ao exilio; algums foram convocados para o servigo militar, outros foram assassinados. Ele foi um mestre no jogo do “divide e governa”. A imprensa da oposigéo foi submetida a varias exi- géncias e multas. Houve jornalistas que foram as- sassinados e alguns jornais foram suprimidos. As eleicdes eram controladas pela intimidacio e a fraude, sempre que necessdrio. O Gen, Juan Vicente Gémez (1908-1929, 1931-1935), da Venezuela, com a ajuda de um exército leal e eficiente, estava sempre apto a esmagar a oposicao antes que ela ultrapassasse o estdgio das primeiras atividades. Lideres da oposic¢éo eram presos ou re- fugiavam-se no exterior. No fim, ele desarmou o pepulacho e proibiu a posse de certos tipos de ar- mas de fogo. A discussio de assuntos politicos em pliblico era proibida. Os postos de fiscalizac6es nas estradas permitiam as autoridades acompanhar os movimentos do povo!. __ A nosso ver, 0 antagonismo inerente as tendéncias divergentes da sociedade nacional, por um lado, e da ae Ee liam W. Pierson and Federico G. Gil, Governments of Latin ™erica, MeGraw-Hill Book Company, New York, 1957, p. 141. 63 economia dependente, por outro, caracteriza e funda- menta a natureza autoritdria, ditatorial e violenta da maioria dos governos latino-americanos na primeira me- tade do século XX. As oligarquias civis e militares, que se tornam famosas nos anais dos acontecimentos poli- ticos na América. Latina, sao o produto dessa configura- ¢ao histérica singular. O divércio mais ou menos pro- fundo entre a sociedade nacional e a econémica depen- dente precisava ser conciliado por governos fortes, dita- toriais, “legitimando” a violéncia como técnica politica de dominagao. Visava-se preservar relacGes de depen- déncia e controlar as foreas politicas emergentes nos centros urbanos em expansao. A medida que o imperia- lismo produzia efeitos diretos e secundarios no interior dos paises dependentes, provocando, por exemplo, o de- senvolvimento das classes sociais, tornava-se mais rigo- roso 0 controle das novas forgas politicas pelas oligar- quias. Nessa situacao, as técnicas de violéncia politica se tornam atuantes e generalizadas. E ocorre uma integra- cao mais eficaz entre o caciquismo municipal e a dita- dura nacional, passando pelas diferentes estruturas oli- garquicas intermedidrias. Diaz e G6mez sfio exemplos dessa combinacao enire a violéncia politica e a prosperidade econémica, segun- do as exigéncias das relag6es e estruturas iraperialistas. Porfirio Diaz governou 0 México por um longo periodo, considerado como de prosperidade material. De acordo com Raymond Vernon, a era de Diaz pode ser descrita sinteticamente nos seguintes termos: Do ponto de vista do economista, 0 caminho esco- lhido por Diaz para estimular o desenvolvimento do México foi quase clissico em sua forma. Redu- zindo 0 processo a uma simples caricatura, o in- vestimento estrangeiro e as exportacdes eram 0S elementos motores do desenvolvimento. Em com- pensacao, eles incrementaram a renda nacional € estabeleceram as bases do sistema interno de trans- porte. Em conseqtiéncia, o aumento da renda e dos transportes ampliaram o tamanho do mercado dis- ponivel para os produtores nacionais e proporcio- 64 naram as condicgées para os inicios da industriali- zacio em grande escala. Ao mesmo tempo, entretanto, Diaz adotou medidas prutais, para despojar os camponeses de suas ter- ras, quando nao os eliminava sumariamente. E ado- tou medidas ultrajantes, que denegriam a cultura mexicana e promoviam a estrangeira a uma posi- cao privilegiada no pais *. Nessa 6poca, a expanséo econdmica do México apoiou-se numa intensa exploragéo dos trabalhadores, mos campos, nas minas e nas cidades. PopulacGes indi- genas inteiras foram expulsas de suas terras comunais, nas quais se abriram fazendas de café, acucar, algodao, ou pogos petroliferos. Ocorreu uma separacdo drastica entre os trabalhadores e os meios de producio, parti- cularmente a terra, nos pré-capitalistas remanescentes no México de entéo, Estava em marcha uma forma sin- gular de acumulacao origindria, segundo as exigéncias combinadas do subsistema econédmico mexicano e do imperialismo. Acelerou-se a proletarizagio, nas fabricas, nas exploracdes petroliferas e nas atividades agricolas. Os saldrios eram baixos, a jornada de trabalho longa e a atividade sindical considerada criminosa pelos gover- nantes e empresdrios. Por essas razdes, agravaram-se as tensoes sociais simultaneamente A expansdo do capita- lismo. Em principios do século XX repetem-se greves Operdrias e revoltas de trabalhadores rurais. Juan Vicente Gémez, por seu lado, governou a Ve- nezuela numa época também considerada de realizagoes €condmicas notdveis. Segundo Romulo Betancourt, a era de Gémez pode ser sintetizada do seguinte modo: > 2p Sea * Raymond Vernon, The Dilemma of Mewico’s Development, Har- Br University Press, Cambridge, Massachusetts, 1965, pp. 56-57. uanto 20 porfiriate, consultar também: Manuel Lopez Gallo, mens y Politica en la Historia de Mexico, Editorial Grijalbo, Sign eet Leopoldo Solis, La Realidad Keonémica Mexicana, Ger Dart Bditores, México, 1970; Roger D. Hansen, La Politica Ba e"7ollo Memicano, trad. de Clementina Zamora, Siglo XXI litores, México, 1971. 65 Durante o governo de Gémez, e mesmo depois de: morto o ditador, a Venezuela foi a terra da pro- missio, generosa dadiva, para os consdrcios inter- nacionais do petroleo %, A Venezuela foi a meca do petréleo. E para a gran- de imprensa internacional, o presidente Gomez fot um super-homem respeitavel — digno do bronze, da biografia e do panegirico exaltado — providen- cial e imperioso, que distribuia a torto e a direito concessées petroliferas. “Faz 14 anos — escreyia em 1949 a revista norte-americana Fortune — a in- dustria petrolifera néo dependia senéo do entendi- mento pessoal com Juan Vicente Gomez, 0 ditador astuto, cruel e voraz, que governou a Venezuela com mao de ferro desde 1908” *. Conforme acentuou o prdprio Betancourt, foi o bi- nomio Gdémez-petrdleo que gerou as tensdés e as lutas responsaveis pela crise do sistema politico venezuelano- A medida que se desenvolvia a alianga entre a oligar- quia e o imperialismo, espoliavam-se as massas traba- thadoras e reforgava-se a ditadura, para manter afasta- dos do poder politico grupos e classes sociais emergen- tes e cada vez mais inquietos. A expansio econémica beneficiava principalmente a oligarquia instalada no mando do pais e 4s companhias estrangeiras que mo- nopolizavam o setor petrolifero, A parte principal do excedente econdmico canalizava-se para o exterior. Tanto no México da época de Diaz, como na Vene- zuela da época de Gémez, o crescimento econdmico nao beneficiava as sociedades nacionais a n&o ser em escala reduzida. A expansdo das atividades econémicas nao era acompanhada de mudancas politicas que abris- sem novas perspectivas aos setores assalariados. AO contrario, os vinculos com o imperialismo fortaleciam 3 Rémulo Betancourt, Venezuela: Politica y Petréleo, Fondo de Cultura Eeondmica, México, 1956, p. 61. 4 Ibidem, p. 73. 66 as oligarquias, como estruturas intermedidrias e rigidas de poder. Nos dois casos, pois, os grupos e classes sociais as- salariados, sem qualquer acesso ao poder politico, sofre- ram 2 violéncia politica e a exploragéo econémica. As oligarquias controlavam as tensdes crescentes, en- gendradas com 0 aparecimento de novos grupos sociais e a continuidade da espoliagio das populacGes que tra- palhayam no campo e na cidade, na mineragao, na agri- cultura, na pecudria e na industria nascente. As oligar- quias, portanto, s&o estruturas de poder nas quais se combinam as condigdes internas, ainda fortemente mar- cadas pelo passado colonial e escravocrata, e as relacbes de dependéncia, que dao continuidade 4 evasao de uma parte substancial do excedente econémico. Assim, 0 caciquismo, o gamonalismo, 0 coronelismo, © caudilhismo, ou outras estruturas locais, intermedid- Tias e nacionais de poder podem ser compreendidos em contextos politico-econémicos concretos. Sado estruturas de poder e esiilos de lideranca determinados pela natu- reza das tensGes sociais surgidas nos paises que com- binam a dependéncia econédmica com formas nacionais, isto 6, independentes, de organizacao social. Sob o for- malismo juridico inspirado no liberalismo europeu é norte-americano, operavam praticamente as oligarquias Civis e militares. Sob a doutrina da soberania nacioi apregoada pelos donos do poder nos paises latino-ameri- canos, operavam intensamente as companhias petrolffe- Tas, mineradoras, de transportes e de comercializagio Sediadas no exterior. Em todos os casos, a produgao tendia a configurar-se como mereadoria principalmente nOS mercados externos, sob 0 controle de empresas in- glesas, norte-americanas, alemfs, francesas ou outras. Na época, em que predominam governantes oligar- as, pois, a vida econémica do pais dependente esta or a principalmente segundo estimulos e decis6es aie Por isso mesmo, 0 poder politico esta mais eee ‘ometido com a preservac&o de padrdes de apro- Go eee economies, determinados pela comercializagic pre iS lato do trabalho social, sob o controle de em- estrangeiras. Ocorre que as oligarquias extraem 67 os seus lucros e rendas das atividades econdmicas co- mandadas pelos interesses do imperialismo. Na maioria dos casos, elas sio a mediagio entre o imperialismo ¢ Os grupos e classes sociais nacionais. Em sintese, no regime oligarquico o poder é exer- cido sem o consentimento Jivremente expresso pelo povo. Isto 6, 0 povo aquiesce, por meios “nifio legais”, tais como a tradicao, a violéncia, a expectativa de favores ou a resignacio ao status quo, encarado como estado natu- ral. Assim, 0 poder politico e econémico 6 exercido pelo mesmo grupo e pessoas interpostas, em nome ou em beneficio de uma classe social bastante reduzida e soli- daria no controle do poder. As classes e oS grupos so- ciais que se acham fora do poder sio desprezados e até mesmo tratados como inferiores. Esta discriminacéo pode ser facilitada pela selegdo de “marcas sociais”, quando a sociedade se compée de indios, mestigos e brancos, ou negros, mulatos e brancos. Nesses casos, com freqiiéncia as linhas de cor e de classe andam jun- tas. AO mesmo tempo, pode haver diferencas sécio-cul- turais notdveis, quanto a lingua e as crengas religiosas, entre os “donos do poder” e los olvidados. E dbvio que essas condigdes sécio-culturais, politicas.e econédmicas sao uma fonte de tensédes permanente, tanto vor fora como por dentro do poder oligdrquico. Tanto assim que a represséo esté sempre atuando muito além das normas legais, dos acordos de cavalheiros ou da propria solidariedade dos interesses oligirquicos. Na forma latino-americana, a oligarquia combina constituigdes de inspiragio liberal (diviséo dos trés po- deres, eleigdes, etc.) com as praticas e os valores de tipo patrimonial polarizados em torno do cacique, pa- trén, gamonal, coronel ou caudilho. O poder é exercido por um sistema de “caciquismo” no qual o dpice da pi ramide é ocupado pelo “grande cacique” nacional: Diaz, Gémez ou outro. Nessa estrutura de poder, os funciond- rios — a burocracia publica federal, estadual e muni- cipal — sao recrutados entre os membros do “partido” do governo, isto 6, entre aqueles que sao soliddrios poli tica ou economicamente com os governantcs. Neste ni- vel, pela adesio, arrivismo ou infiltracio, mestigos € 68 mulatos, mais freqiientemente do que indios e negfos, podem ingressar nos escal6ées inferiores do aparelho tal. aren todos os casos, as decisGes relativas a questdes econémicas, politicas, sociais e culturais tendem a ser adotadas em conformidade com a separacfio, mais ou menos nitida, conforme o pais e a ocasiao, entre os que encem @ Oligarquia e suas periferias, e os outros. ‘Ao mesmo tempo, as decisdes politicas e econdmicas sao adotadas em conformidade com as relagdes com 0 imperialismo. Mesmo porque o imperialismo é um ele- mento fundamental das estruturas oligérquicas. Em yucas palavras, pode-se dizer que a oligarquia é um elo no sistema composto da seguinte forma: sociedade nacional-economia dependente-oligarquia-imperialismo. O Estado oligdrquico, pois, deve ser entendido como uma forma particular de Estado capitalista, na qual combinam-se elementos patrimoniais com as exigéncias da “racionalidade” capitalista. Nas condicdes sdécio-cul- turais e politicas dos paises da América Latina, o poder oligarquico aparece como um componente essencial de certa escaia de produgado de mais-valia. Ai combinam-se a mais-valia absoluta, gerada pela extensdo da jornada de trabalho, e a mais-valia relativa, gerada em condicdes tecnoldgicas que intensificam a produtividade da forca de trabalho. Devido & singular conjugacdo de interesses e forcas que fundamentam o regime oligdérquico, nao se formali- Zam as regras de resolugio das controvérsias politicas mais graves, surgidas nas suas relagdes com os grupos € as classes sociais que nfo estéo no poder. Qualquer Oposicao mais consistente ou audaciosa é encarada como ga. Governo e oposicéo sAo concebidos como hete- Togéneos, dispares ou simplesmente antagénicos. Ao mesmo tempo, o regime nio formaliza as regras de Sucessio dos governos, tendo em vista algum tipo de Participacio de todos os grupos e classes sociais. Pela Sua propria natureza, no regime oligérquico a sucessio Sovernos se realiza por meio de revolucdes palacia- Nas, golpes de Estado, quarteladas, fugas, assassinatos ‘ 69 ou outras modalidades de atuagao politica. Isto é, 0 ca- rater singular do regime oligdrquico “formaliza” esses processos de sucessao, abrindo aos grupos e classes em luta pelo poder a possibilidade de utilizar um ou outro, conforme as exigéncias da situagio e as suas pos- sibilidades. Nesse quadro de relagdes econdmicas e politicas, internas e externas, “justapde-se” o liberalismo dos diri- gentes da classe dominante. As vezes, o liberalismo 6 um compromisso real com a idéia de Estado democratico, como no caso de Judérez e Sarmiento, por exemplo, Ou- tras vezes, 6 apenas “exterior”, como no caso de Porfirio: Diaz, ou Washington Luiz. As vezes o liberalismo esta impregnado de positivismo comtiano, como no México e no Brasil, entre outros paises. Outras vezes ele esta direta e abertamente comprometido com o livre-cam- bismo de inspiracio inglesa, como na Argentina e no Chile, entre ovtras nagdes. Na maioria dos casos, entre- tanto, o liberalismo formal dos governantes correspon- de aos compromissos inevitdveis entre as duas polariza- ces presentes nos paises latino-americanos: a sociedade nacional, por um lado, e a economia dependente, por outro. Por essa razio, ao autoritarismo mais ou menos: ‘violento, para uso interno, “justapde-se” o liberalismo efetivo e retdérico, nas relagdes externas. Essa contradi- @&o resolve-se ao nivel do aparelho estatal oligarquico, por meio do qual se conciliam esses antagonismos. Nao ha ditvida de que o liberalismo generalizado’ nos paises latino-americanos — na segunda metade do século XIX e nas primeiras décadas deste — correspon- de a um “compromisso” entre as camadas dominantes: nacionais e a cultura dos paises hegem6nicos. Sob va rios aspectos, a difusio do doutrina liberal, quanto a compreensao do poder politico e das relacdes econd- micas, esta diretamente relacionada com a participagao da Inglaterra nas lutas de independéncia dos paises da América Latina e na consolidagao dos seus Estados na- cionais. As infiuéncias politicas, econédmicas e culturais daquela nagao sobre as camadas dominantes dos paises” latino-americanos cristalizaram-se no liberalismo poll tico e econdmico, principalmente para uso externo. 70 ‘Mas esse 6 provavelmente o aspecto mais “externo” ou visivel do liberalismo latino-americano, Na pratica, ele exprime também uma situagao interna real. Exprime as exigéncias concretas das classes sociais em formacao, manto a transformacao das relacdes politicas, econd- micas, sociais e culturais. Com fundamento nos princi- pios liberais criam-se partidos politicos, assembléias, congressos, compromissos eleitorais, imprensa mais ou menos livre, escolas de ensino superior, etc. E também com fundamento nesses principios que se desenvolve a luta pela emancipagao dos escravos negros, indios, mes- tigos e mulatos, pela separagao entre a Igreja €0 Es- tado, pela democratizagao do ensino, pela moralizagao dos processos eleitorais, etc. Muitas mudancas institu- cionais foram realizadas em nome desses ideais. Essa foi, no século XIX, a luta de Judrez, Sarmiento, Joaquim Nabuco e outros. Ao lutar pela substituicfo da “anar- quia” pela “ordem”, ou “barbarie” pela “civilizacién”, lutava-se para instaurar o Estado liberal, suplantando a cligarquia. Nao foram bem sucedidos, a n&o ser em es- feras secunddrias das estruturas de poder, Mas incuti- Tam em certos setores das préprias camadas dominan- tes, e em especial nas classes médias em expansao, o compromisso com a idéia de progresso econémico, ao, institucional, democratizacao, liberdade, civi- 10, etc. Essas foram as palavras de ordem com as quais as classes médias comprometeram-se profundamente. Na verdade esses objetivos correspondiam mais direta- Mente aos interesses e ideais dessas classes “recém-che- fadas”. Os bacharéis, politicos, profissionais liberais, burocratas civis e militares, professores, jornalistas e foo passaram a lutar de modo cada vez mais auda- titi: e organizado, em nome daqueles ideais. Em at ‘a instancia, tratava-se de suplantar o Estado i pe pauico pelo Estado liberal, ou o autoritarismo pa- fo pe lista pela democracia. No quadro dessas trans- agoes, as classes médias iriam fazer valer os seus tos, assumindo papéis politicos reais, ainda que peemmos. Foi o que ocorreu, por exemplo, no yri- yenismo e no tenentismo. Nessa época, o regime 71 democratico avanga alguns passos, precisamente beneficio das classes médias e dos setores bur; realiza para a classe operdria nascente, mas ja ai e E absolutamente nada para os trabalhadores rurais. IX A intensa urbanizagao e a incipiente indust: cao haviam acelerado a formacao da estrutura de ses sociais que faria explodir o Estado oligdrquico. Mas as classes médias, na maioria dos paises da Am« Latina, nao tiveram condigdes para precipitar o co! 0 AS RUPTURAS ESTRUTURAIS do sistema oligérquico, apenas venceram uma batal importante. O Estado democrdtico nfo chega a zar-se @ nfo ser precariamente, com freqiiéncia de for- ma transitéria. Em todo caso, 0 declinio da hepers onia oligérquica esta em curso, Caberd as forgas politic m7 emergentes mn especial ivhova burguesia induil pe oe raion, oo an, ee proletariado, a grupos militares, SeIOre Cee Tevelam a maneira pela qual esses paises lutam para lidade e a partes da juventude universttéria, alem cipar as suas relagées econémicas e consiruir fragdes das proprias classes médias, realizar 0 turas de poder consegiientes com as exigéncias ato de liquidagao do predominio da oligarquia. E : da soberania nacional. Em nivel econdmico, é SEN OR Teo vne es Maine ip pa moc eta rc OL nena luta pela preservagio de maior parte do eacedente outros haveré a ditadura ou a democracia populist 6mico efetivo no interior do pais e pela realizaciic Em todos, 0 regime politico terd uma estabilidade ditt maior indice de excedente econdmico potencial.* cil, quando n&o efémera. ocura-se nacionalizar os centros de decisio e refor- lular e criar instituigdes adequadas a uma politica de senvolvimento econédmico nacional. No nivel da so- — _ Segundo Paul A, Baran, o excedente econémico efetivo & a di- ga entre o produto social efetivo e o seu_efetivo consumo. léntico A poupanca corrente, ou & acumulacio, e cristaliza-se em ativos de varias espécies. Ele abrange somente a parcela da mais-valia que 6 acumulada. O excedente econdmico potencial diferenga entre o produto social quo se poderia obter em um ambiente tecnolégico e natural, com 03 recursos produtivos eis, por um lado, e 0 que se pode considerar como con- © indispensdvel, por outro, Em geral, a transformacao do lente econdmico potencial em efetivo depende de mudancas iruturais. Neste ponto, os processos politicos e econémicos esto Hmamente relacionados, seja pelas reformas institucionais, seja Tevolucdes. Cf. Paul A. Baran, A Heonomia Politica do olvimento Economico, trad. de S. Ferreira da Cunha, Zahar es, Rio de Janeiro, 1960, cap. I, esp. pp. 84-36. 72 73 ciedade, como um todo, procura-se construir uma socie- dade nacional na qual a economia tenha sua dependén- cia reduzida, se nado anulada. Nesse sentido, tentam-se | varias estratégias politicas. Ocorre que em diversos paises as forcas sociais e politicas emergentes pro- curam aprofundar as rupturas estruturais internas ¢ externas que acompanham a reformulacao das relagGes. politicas e econémicas. Desde a Primeira Guerra Mun- dial eles tém experimentado estratégias politicas de de senvolvimento econémico nacional, em moldes capita. listas. Isto foi o que ocorreu na Argentina, com o/ governo Peron, na Bolivia, com os governos Estenso- ro-Siles, no Brasil, com os governos Vargas, e no Mé xico, com 0 governo Cardenas, além de outros havidos’ em outros paises. Essas experiéncias e realizagdes de desenvolvimento capitalista nacional (geralmente frustradas como tais) ocorrem em condigGes peculiares, na histéria de varias nag6es latino-americanas. Elas se dao em concomiti cia com o desenrolar de crises mais ou menos profun- das no capitalismo mundial. No século XX, essas” crises assinalam o declinio das oligarquias e o apareci- mento de movimentos politicos inovadores. Os mo- vimentos preocupam-se em reorientar os fluxos do excedente econémico, em reestruturar as instituigdes politicas e criar novas condigdes de participagio para as classes e grupos sociais emergentes no mundo ur bano. & importante reconhecer, pois, que as novas experiéncias politicas, econédmicas e culturais ensaiadas. na América Latina relacionam-se 4s condicdes mais ou menos excepcionais criadas com as crises do capitalis- mo internacional e as lutas internas nos paises latino- -americanos. As duas guerras mundiais, além da crise econémica iniciada com o crack da Bolsa de New York em 1929, praticamente liquidaram os interesses e as pretens6es da Inglaterra, Alemanha, Franca e Japao na América Latina. Isto nfo significa que a hegemonia dos Estados Unidos no continente se expandiu sem maiores problemas. Houve tensGes e lutas, como na questao do “nfo intervencionismo” e nas barganhas sobre as con- dicdes de ingresso dos paises da América Latina no es- 7h forgo de guerra contra as nagdes do eixo: Alemanha, ja e Japao. oe tio. foi em torno do ano 1930 que muitos go- yernantes latino-amercianos se viram enfraquecidos, abandonados ou em panico. Todavia, antes dessa oca- siao ja se iniciara o processo de deterioracao das estru- turas oligdrquicas e de dependéncia. O México foi o em que essa “dupla” crise se manifestou em pri- jmeiro lugar e de modo notavel. Segundo Fernando Ro- senzweig Hernandez, que estudou as relagdes entre 0 processo politico e o desenvolvimento econémico nesse is, 0 colapso do governo Diaz esta relacionado com ‘as perturbagées ocorridas no sistema econémico mun- dial, combinadas com as tensdes sociais e politicas internas. A nova crise dos anos 1907 e 1908 aparece rela- cionada com uma contracéo da demanda externa e a baixa dos precos internacionais das matérias- _ -primas que exportavamos. Pela primeira vez, de modo vigoroso e claro, Sentimos o efeito de uma relacio de precos desfavordvel, com dificuldades no balango de pagamentos, acentuadas pelas cres- centes remessas de dividendos das invers6es es- trangeiras... Os sintomas agudos da crise econdé- mica antecederam por dois ou trés anos 4 crise politica, quande os representantes das novas ten- déncias — que antes nfo haviam conseguido ar- ticularse — entraram definitivamente no palco. Eles tinham por base a inquietaciio social das Massas, que era em parte crénica e em parte acen- tuou-se com o desemprego, a queda da renda real © os métodos brutais que a ditadura empregou para reprimir as primeiras greves e outras mani- festagdes de inconformismo dos setores populares, devido & situacio que estavam enfrentando...? re 2 Fernando Rosenzweig Hernandez, “El Proceso Politico y el Men Ilo Econémico de México”, El Trimestre Economico, N.° 116, ico, 1962, pp. 513-680; citacio das pp. 523-524. 15 No mesmo sentido, ainda que em gradagao atenua- da, comparativamente com o que ocorria no México, verificavam-se crises e lutas politicas importantes na Argentina, no Chile, no Peru, no Brasil e em outras na- goes. Principalmente a grande depressio econémica dos anos trinta havia atingido negativamente o setor exportador desses paises. O retraimento da procura dos principais produtos de exportagao provocara o enfra- quecimento e o colapso das oligarquias dominantes na ocasiao. As interpretagdes da maioria dos economistas que estudaram o assunto concordam entre si, ou comple- mentam-se, a propdsito das relagdes entre as crises internacionais e as comog6es internas nos paises depen- dentes e coloniais. J. F. Normano, referindo-se aos efeitos da Guerra Mundial de 1914-18 sobre as econo- mias das nag6es latino-americanas lembra o seguinte: A guerra foi um verdadeiro terremoto econémico para este continente, o qual nfo tinha o minimo grau de preparo para enfrentar a paralisagao re- pentina e simultanea do seu comércio maritimo, investimento, comércio e imigracéo, e financia- mento de crédito. A rotina de vida foi alterada. Os investidores de capitais e os clientes de seus produtos haviam desaparecido. Os representantes das firmas alem&s deixaram de obter novas enco- mendas, os artigos de luxo franceses, tao procura- dos, nao existiam mais no mercado; os estoques das casas inglesas estavam exaustos; a América do Sul tinha sido abandonada pelos seus velhos ami- gos. O préprio comércio com os paises neutros tornou-se dificil. As exportagdes dos produtos co- muns cessaram. E na América do Sul 0 comércio exterior era o seu aparelho respiratério. Diante dessa confusiéo, os Estados Unidos fizeram sua investida *. 8 J. F. Normano, A Luta Pela América do Sul, Editora Atlas, S. Paulo, 1944, pp. 23-24. Nio est& indicado o tradutor. A pri- meira edicio norte-americana dessa obra foi feita em 1931. 76 E 6bvio que essa situagdo favorecia os negécios norte-americanos na regido. Durante a propria guerra, e muito mais apds o seu término, cresceram acelerada- mente as transagdes dos Estados Unidos com as nagées Jatino-americanas. O enfraquecimento das poténcias européias facilitou a expansao dos negdécios norte-ame- ricanos no continente. Com isso cresceu a importancia das relagdes e estruturas de tipo imperialistas coman- dadas desde os Estados Unidos. O fato 6 que as economias dependentes sofriam eontinuos abalos provenientes do exterior. As crises do capitalismo nas nagdes dominantes, ou as flutuagdes do comércio internacional afetavam diretamente a pro- dutividade e as relagdes econdmicas internas nos paises da América Latina. Todas as economias voltadas para fora, baseadas em um ou poucos produtos agropecud- rios, minerais ou extrativos, estavam sujeitas a recessos e paradas gerados externamente. Durante essa época, os trés mais importantes im- pactos nos paises menos desenvolvidos foram a Primeira Guerra Mundial, a depressio dos anos 1930-32 e a Segunda Guerra Mundial. Cada um desses acontecimentos produziu vigoroso impulso no crescimento do setor secunddrio desses pai- 808. 2 Esses acontecimentos mundiais acabaram por pro- vocar também rupturas estruturais internas nas nagdes de economia dependente. Ao mesmo tempo, libera- ram-se forcas politicas, tanto quanto econémicas, que Se encontravam sob controle ou em segundo plano na Spoca de hegemonia das oligarquias. No México, por exemplo, aquelas rupturas ocorreram quando o pais ja Se encontrava em franca ebuligéo. Em conseqiiéncia ‘ United Nations, Processes and Problems of Industrialization én Under-Developed Countries, Department of Economie and Social Affairs, New York, 1956, p. 127. Consultar também: Tulio Hal- perin Donghi, Historia Contempordnea de América Latina, Alianza Editorial, Madrid, 1970, caps. 5 ¢ 6. 7 abriram-se outras possibilidades e limitagées ao pro- cesso revolucionério mexicano. Talvez se possa afirmar que a nacionalizagéo das empresas petroliferas, pelo governo Cardenas, em 1938, tenha sido um saldo da grande depressio, combinada com os movimentos po- liticos internos. O México, o Brasil, a Argentina e o Chile tiveram desenvolvimentos sociais, politicos e econédmicos inter- nos importantes devido aquelas rupturas. & dbvio que um grupo de nacgdes apenas sofreu duramente com aqueles acontecimentos. Em geral, no entanto, expan- dem-se os nucleos urbanos e criam-se pequenas fabri- cas de produtos alimenticios, roupas, calgados, chapéus, bebidas, enxadas, foices, ete. A procura real volta-se para os produtos locais, estimulando tanto as empresas preexistentes como a instalagéio de novas fabricas. Re- ferindo-se ao Brasil, nos anos posteriores 4 Primeira Guerra Mundial, um documento publicado nos Estados Unidos registra o seguinte: Uma das caracteristicas do povo parece ser 0 de- sejo de manufaturar alguma coisa. Encontram-se doutores, advogados, militares e outros que ambi- cionam montar uma fdbrica para manufatura de meias, gravatas e outros artigos. Muitos dos emi- grantes procedentes do Sul da Europa que chega- ram ao Brasil, provavelmente com a intengao de obter emprego como agricultores, rumam para as cidades, onde se ocupam em diversas atividades de manufatura em pequena escala. Ha por todo © Brasil, portanto, milhares de pessoas dirigindo pequenas casas de comércio, fazendo sapatos, cur- tindo couros e trabalhando ferro. Em certos tre- chos do Rio de Janeiro, por exemplo, a gente passa em ruas estreitas onde cada pequena cons- trugao esté apertada entre outras semelhantes, e as calcadas sao f&o estreitas que duas pessoas nfo podem caminhar lado a lado e encontrar uma f4- ~ brica de sapatos com provavelmente vinte e cinco 78 empregados, uma fabrica de caixas de cartées de visita, com seis empregados, e outra onde oito ho- mens fagam cadeiras e portas 5. Em outros termos, pouco a pouco as poupangas obtidas no setor comercial e também na economia pri- maria exportadora (extrativa, agricola, pecudria e mi neradora) propiciam investimentos no nascente setor fabril, além do artesanal. As crises do capitalismo internacional, pois, séo importantes para explicar essa nova direcéo na metamorfose do capital gerado pelas conomias dependentes. Com as rupturas estruturais ocorrem reorientagdes dos fluxos do capital, bem como das decis6es e atividades econémicas. Com isso dina- mizam-se ou criam-se setores econdmicos. Em certos paises, isso ocorre particularmente nos anos 1931-1950. Nos paises em que a estrutura industrial era mais tudimentar, a depresséo realmente estimulou a manufatura, jé que a queda brusca dos precos agricolas ¢, com eles, dos ganhos em divisas, for- caram vérios dentre esses paises a dedicar maior proporcio dos seus recursos & expansio da in- dustria *, As condigdes tenderam a favorecer o crescimento industrial na maioria dos paises subdesenvolvicos. Em conseqiiéncia, houve um surto de atividades manufatureiras, quando se criaram novas indtis- trias e as preexistentes expandiram-se. Na maio- tia dos paises, as indlstrias de bens de consumo substituiram importag6es, enquanto que em alguns houve progresso semelhante no setor metalirgico e de maquinaria *. ee * Departamento de Comércio dos Estados Unidos, Machinery Markets of Brazil, Boletim de Informagées Comerciais, N.° 383, 2926, p. 1, Transcrigéo de J. F. Normano, op. cit., p. 268. $ United Nations, op. cit., p. 130, Tbidem, p. 181. 79 Note-se que as reagdes das economias dos paises da América Latina foram acompanhadas de rupturas e reformulacdes nas relacdes econémicas externas, A In- glaterra, a Alemanha e a Franca, além do Japao, tive. ram que reduzir bastante a sua presenca na regiao, Ao mesmo tempo, estabeleceram-se ou intensificaram-se, conforme 0 caso, as relagdes econémicas regulares com os Estados Unidos. As crises do capitalismo mundial, m combinagaéo com os seus efeitos internos nas nagdes latino-americanas, fizeram com que 0 eixo econémico destas oscilasse da Europa para os Estados Unidos. Naturalmente essa reorientagio das relacgGes externas nao se verificou imediata e completamente. Tanto con- digdes politicas como econémicas impediram que assim sucedesse. Todavia, para os paises da América Latina as crises mundiais significaram: a) regressao econdmi- ca; b) estagnagéo econdmica; c) industrializagio; d)- expansao do setor tercidrio; e) estabelecimento ou for- talecimento da primazia das empresas norte-americanas nas relagdes econédmicas externas de cada pais; f) ex- pansio da hegemonia dos Estados Unidos sobre a eco- nomia da América Latina como um todo, E evidente que esses processos operaram ao mesmo tempo ou se paradamente, conforme a situagao de cada pais. Mas as reacdes econédmicas manifestadas nos paises latino-americanos niio se esgotam em fatores, processos e relac6es exclusivamente econédmicas. Os diferentes desdobramentos das economias da regiio estavam dire- ta e profundamente relacionados com as mudangas das relagdes politicas entre os varios grupos e classes so- ciais. Devido as transformagées sociais que jad vinham operando na segunda metade do século XIX, as crises ocorridas no século XX encontram grupos e classes so- ciais lutando para assumir algum poder ou mesmo con- trolar o aparelho estatal. As greves operdrias ocorridas no México, Argentina, Brasil, Chile e outros paises, antes da Primeira Guerra Mundial, sio um sintoma im- portante dessas lutas. A formagéio e o desenvolvimento de movimentos sociais organizados por grupos perten- centes & classe média sio outros sintomas de lutas po- 80 liticas importantes. Além disso, os grupos empresariais mais interessados no mercado interno nacionais tam- pém estarao pressionando o poder politico. Os latino-americanos tém se tornado cada vez mais insatisfeitos com a chamada estrutura econémica semicolonial e monocultora que prevalece nos seus paises hd um século §, Em sintese, dentre as questdes suscitadas pela cri- se das estruturas de dependéncia, destaca-se 0 declinio da oligarquia. Note-se que o que esté em jogo 6 o de- clinio de uma estrutura de poder que vigorou desde a formagao dos Estados nacionais na América Latina. A decadéncia das velhas oligarquias latino-ameri- canas comega quando se rompem os controles que elas exerciam sobre as riquezas nacionais. Esta ruptura produz-se mediante a agéo de duas pres- sdes: internamente, quando o processo de indus- trializagao coloca, em termos cada vez mais agu- dos, 0 problema da subsisténcia ou necessidade de alimentar as massas urbanas cada vez mais in- fluentes; externamente, quando cai o prego das matérias-primas agricolas, como ocorre, por exem- plo, no momento de uma recessao, ou de uma de- pressio nos grandes paises industriais %. 8 Richard F. Behrendt, Inter-American Economic Relations, The Gommittee on International Economie Policy, New York, 1948, p. 6. Frangois Bourricaud, “Notas sobre la Oligarquia Peruana”, publieado em La Oligarquia en el Peru, Instituto de Estudios Peruanos, Lima, 1969, pp. 18-54; citacio da p. 84, Nessa mesma bra, consultar também o capitulo de Jorge Bravo Bresani, “Mito y Realidad de la Oligarquia Peruana”, pp, 55-89. Ainda quanto & Snélise do poder oligdrquico na América Latina, consultar: Marcos Plan, Formacién del Estado Nacional en América Latina, Edi- ae Universitaria, Santiago, Chile, 1969; Samuel P. Huntington, Naitioal Order in Changing Societies, Yale University Press, ew Haven, 1968, esp. pp. 198-208. 81 Diante dessa situag&o, coloca-se obviamente a ne- cessidade e a urgéncia de criar novo tipo de estrutura de poder. N&o apenas porque a oligarquia declinava, mas porque varias classes sociais emergentes queriam participar das decisdes politico-econdmicas. De par em par com a crise das estruturas de dependéncia e oligar quicas, também ocorriam a urbanizacao, a industriali- zagao ou & expansdo do setor tercidrio. Estava em cur- so uma diferenciacdo interna as vezes intensa e ampla do sistema sdécio-econémico. f Em suma, 0 compromisso entre a sociedade nacio- nal e a economia dependente, compromisso esse e€x- presso na propria estrutura aparentemente ambigua do Estado oligdérquico, torna-se cada vez mais insustenta- vel. As novas relacées de classes, surgidas com a urba- nizacéo, a migragaéo rural-urbana, 0 desenvolvimento industrial, o crescimento do setor de servicos, etc., punham em questéo aquele compromisso, colocando & mostra uma contradicdo profunda. Quando a estrutura de classes se encontra mais desenvolvida, contando com setores médios, de empresdrios industriais e operdarios, a dominagio oligdérquica ingressa em sua crise final. Nessa ocasifo critica, torna-se mais agudo o antagonis- mo entre a sociedade nacional, por um lado, e a econo- mia dependente, por outro, Em conseqiiéncia, rom- pe-se o equilibrio até entéo mantido pelo poder oli- garquico. Nao ha dtivida de que as novas relagdes de classes sfio fundamentais para explicar a criagéo de novas perspectivas de mudanga & maioria das nagoes latino- -americanas. Primeiro, impGem-se politicamente as classes médias, numa experiéncia de resultados relati- vamente precérios, se temos em conta a contradi¢ao pasica entre sociedade nacional e economia dependente- Depois, a burguesia industrial e 0 proletariado (além da participacéo de alguns setores da classe meédia, gru- pos militares, intelectuais e outros) impdem-se conjun- tamente, também preocupados em resolver aquela con- tradicio. Neste contexto surgem os movimentos, paT- tidos ou mesmo governos populistas. 82 [EUROAM ZEA Xx AS CLASSES SOCIAIS URBANAS O DECL{NIO da oligarquia e o surgimento do popu- jismo s&io fenémenos relacionados tanto @ crise das relagdes de dependéncia como as transformag6es so- ciais, mais ou menos intensas e amplas, havidas no interior de varias sociedades latino-americanas. Ao sur- girem as novas forgas sociais e politicas geradas com a urbanizacdo, a industrializagao e o crescimento do setor tercidrio, destroem-se algumas bases mais impor- tantes do poder oligdrquico e criam-se as condigdes para novas formas de organizacgao do poder. Nessa ocasiao, a cidade adquire hegemonia sobre campo. Isto 6, as classes sociais urbanas, desconten- tes com o monopolio do poder politico-econdmico pela oligarquia, propdem novas estruturas do poder. A partir da economia e da cultura da cidade, a burguesia industrial, a classe média e 0 proletariado, além de mi- litares, intelectuais e estudantes universitdrios, movi- ™entam-se e organizam-se contra o poder oligarquico. Em nivel estrutural, est&éo ocorrendo novos desen- volvimentos da divisio social do trabalho. Tanto no Ambito da sociedade como um todo, como em seus di- versos setores produtivos principais e secundarios, esta €m curso uma intensa diferenciagao das atividades so- ciais, além da criagao de novos empreendimentos. Na €conomia, da mesma forma que nas relagdes politicas, ©ducacionais e outras, verificase uma diferenciagao 83 ampla e intensa das atividades sociais. A estrutura de classes sociais passa por transformacdes profundas, modificando-se qualitativamente. Ao mesmo tempo, surgem outras tendéncias politicas, tanto ao nivel de cada classe social como no da sociedade como um todo. Antes de prosseguir, entretanto, vejamos algumas caracteristicas da urbanizagado e da industrializacao. vidas na América Latina, tendo em conta principalmen- te suas repercussdes na estrutura de classes. Desseé modo colheremos alguns elementos novos para delinear as tendéncias politicas emergentes, no 4mbito das quais: sobressaem os movimentos, os partidos e os governos de tipo populistas. Quando dizemos que 0 declinio do poder oligér- quico foi acompanhado do predominio da cidade sobre © campo nfo pretendemos desconhecer ou diminuir importancia da cidade na época da hegemonia oligar- quica. Nessa época a cidade j4 era um nicleo funda- mental da sociedade. Nela concentravam-se as ativida- des politico-administrativas e financeiras, além das organizagoes repressivas tanto quanto as culturais indis- pensdyeis ao exercicio da dominacao oligérquica. O fato 6 que essa cidade esta profundamente influenciada, ou mesmo determinada, pelas exigéncias da economia primdria exportadora. Ela se earacteriza por ser 0 cen- tro do sistema nacional de transportes, organizando a circulagio dos produtos principais (agropecudrios ow de mineracéio) segundo as exigéncias da economia pri- maria exportadora, ou do desarrollo hacia afuera. Esse é © caso dos eixos México-Veracruz, Santiago-Valparat so, Lima-Callao, Séo Paulo-Santos ou Sao Paulo-Rio de Janeiro. Ou entio, esse 6 o caso de Buenos Aires, que. centraliza um sistema de transportes altamente deter-_ minado pela economia primaria exportadora. 1 Mas 6 apenas aparentemente paradoxal que a hege- monia da cidade sobre o campo assinala a crise final do poder oligdrquico. O que se verifica 6 que a cidade que vence a oligarquia e vai servir de base ao populis- mo ja néo é mais aquela na qual o poder oligarquice havia instalado o seu mando. Esta cidade é um amr piente sdcio-cultural, politico e econédmico que ja nao 84 aceita a oligarquia come modo de organizagio do poder. ‘Ai as classes sociais emergentes n&o se enquadram nem aceitam o mando oligdérquico, Rejeitam o poder por meio do qual se conciliam as exigéncias da economia dependente, por um lado e as da sociedade nacional, por outro. Elas proprias, estas classes sociais, sio uma. expressao nova das tendéncias divergentes, se nao an- tagonicas, entre essas duas polarizagoes. O préprio desenvolvimento interno da cidade em que dominou a oligarquia alterou as suas estruturas sociais e as suas perspectivas politicas. O desarrollo hacia afuera incentivava o crescimento e a diferencia- eo interna da sociedade urbana. Os efeitos secundé- rios e reflexos da economia primdria exportadora na economia, na composic&o demografica, nas relagdes so- ciais e na cultura da cidade implicavam em mudancas qualitativas importantes. Estava em curso uma fase de aceleragao da divisio social do trabalho nos varios segmentos da sociedade organizada em torno das ativi- dades centradas na cidade. Em outros termos, estavam em curso desenvolvimentos das relagdes de produc&o capitalistas, desenvolvimentos estes que necessariamen- te modificavam as feicdes e as estruturas da cidade. _ Em _ conseqiiéncia, pouco a pouco deixaram de existir, ou transformaram-se internamente, as bases sociais urbanas da oligarquia. As varias classes sociais adquiriram novas perspectivas culturais e politicas. De- senyolveram pontos de vista criticos, quanto & maneira pela qual a oligarquia administrava os assuntos econé- micos, politicos e culturais. E evidente que esses pon- tos de vista criticos desenvolveram-se de modo parti- cularmente intenso nas ocasides de crise da economia brimdria exportadora, Nessas ocasiGes, mais do que em outras, pdem-se em evidéncia tanto o cardter das rela- goes de dependéncia como o do monopdlio do poder Politico. . Esse salto qualitativo nas relagdes da cidade com Sraeaiaed quando as classes sociais urbanas negam a igarquia, o imperialismo e a economia primdria ex- Portadora a um s6 tempo, torna-se particularmente €xplicito nos paises em que se verifica alguma industria- 85 lizagdio. Nesses casos, ao lado da classe média, militares, intelectuais e estudantes universitdrios, a purguesia in- dustrial e o proletariado (dos setores secunddério e tercidrio) tornam-se as classes sociais mais importan- tes. O seu peso especifico, no processo politico, passa a ser decisivo para a definigféo dos novos rumos do poder. . Portanto, ao mesmo tempo que nega a hhegemonia oligdrquica, a sociedade urbana apresenta as bases So- ciais das estruturas de poder emergentes. A burguesia industrial esté empenhada em que o poder publico adote medidas para proteger o mercado interno para a. industrializagio substitutiva de importagoes. Os mili- tares preconizam a nacionalizagaéo dos recursos natu- rais e a criagaéo de empresas estatais nos setores estra- tégicos da economia. Os intelectuais e os estudantes universitdrios, atuando principalmente na esfera das estratégias e modelos politicos de desenvolvimento eco- némico, procuram extrair as conseqiiéncias nacionalis- tas ou explicitamente antiimperialistas da situagao. A classe média esta interessada — nessa época — na vir géncia da democracia representativa, na expansio do seu consumo e no desenvolvimento econdémico. As ou- tras classes assalariadas, os operdrios de categorias varias, estao interessadas principalmente em aumentar a sua participacio no produto do trabaiho, para sair do baixissimo nivel de subsisténcia em que se encon- tram. Em boa parte, estes trabalhadores assalariados sao de origem rural, ou provenientes de cidades peque- nas e médias. Sao recém-chegados e formam os bairros mais pobres de Buenos Aires, México, Rio de Janeiro, Sao Paulo, Santiago, Lima, La Paz, Guaiaquil e outras cidades. Sao os moradores das favelas, barriadas, cal- lampas, villa-miserias e outras modalidades de organi- zagéo social da vida encontradas por uma parte ampla do proletariado. Em varios casos, 0 crescimento das populagdes urbanas por migracgéo foi bem maior do que o crescimento natural. Em outros, ele foi razoavel- mente grande. & o que se constata na Tabela I. 86 TaBeta I CRESCIMENTO DA POPULAGAO URBANA (Percentagens aproximadas) Pais Periodo Natural Migragéio Venezuela 1941-50 29 a Colémbia 1938-51 32 68. Rep. Dominicana 1935-50 35 65 Nicaragua 1940-50 85 65 Paraguai 1987-50 45 5b Salvador 1930-50 46 54 Brasil 1940-50 51 49 Chile 1940-52 53 4aT México 1940-50 58 42 Cuba 1981-48 4 26 Fonre: Population Branch, Bureau of Social Affairs, United Nations. Cf. Philip M. Hauser (Editor), Urbanization in Latin America, Unesco, Paris, 1961, Part Two, p. 110. N&o se pense, entretanto, que a urbanizagao e a in- dustrializagao estéo sempre juntas; ou que a industria- lizacio precede a urbanizacio. Sem negar que tenham ocorrido ambas as alternativas, o que tem sido mais freqiiente 6 a urbanizagao generalizada e intensa. Na realidade o crescimento urbano — em especial 0 das principais cidades — precedeu & industria, de tal maneira que o surgimento de setores sociais médios e das massas urbanas é muito anterior & criagéo das estruturas produtivas mais modernas +. RE ot Moos: we poretmision Eeonémica para América Latina (CEPAL), Et Desar- tollo Social de América Latina en la Postguerra, 2.* edicion, Solar- “Hach qischette, Buenos Aires, 1966, p. UO. A 1® ed. deste trabalho data 87 Ao mesmo tempo, ainda que com indices menores do que os da urbanizagao, verificam-se surtos de indus- trializagio em varios paises. Seja devido as decisGes nacionalistas dos novos governos, seja porque 0 capita- lismo internacional, em particular o norte-americano, decidiu ampliar as suas fronteiras, verificam-se investi- mentos industriais importantes no México, no Brasil, na Argentina e alguns outros paises. Notem-se as pro- poredes desses fendmenos na Tabela ITI. ‘TaBeta IL URBANIZAGAO E INDUSTRIALIZACGAO NA AMSRICA LATINA (Indices) Pais Ano Urbanizacéo _Industrializagdo (a) (b) (c) Argentina 1947 483 26,9 hile 1952 428 242 Venezuela 1950 31,0 15,6 Colémbia 1951 22,3 14,6 Brasil 1950 20,2 12,6 Bolivia 1950 19,7 15,4 Equador 1950 178 178 Paraguai 1950 15,2 15,5 Peru 1940 13,9 13,2 Fonte: Dados dos Censos Oficiais. Cf. Boletin Econémico de ‘América Latina, Vol. VI, N.° 2, Naciones Unidas, San- tiago de Chile, 1961, p. 34. (a) Anos censitérios. (b) Per- centagem da populagao total em localidades de 20.000 ‘ou mais habitantes. (c) Percentagem das pessoas do sexo masculino economicamente ativas em indistrias de ma- nufatura, construgao, gas e eletricidade. 88 Se 6 verdade que a urbanizacdo e a industrializagao podem ser encaradas como processos sociais indepen- dentes, na pratica, nos paises latino-americanos, eles ¢em estado relacionados. Além do mais, eles se relacio- nam também com outras mudancas sociais mais ou menos importantes. Assim, convém lembrar que 0 ritmo acelerado da expansao urbana esta em relacio dinamica tanto com a industria como com 0 crescimen- to do setor tercidrio, além das mudangas em curso na administragdo publica, nos sistemas ptiblico e privado de ensino e assim por diante. Para compreender as estruturas de classes sociais emergentes na cidade, € necessério tomar em conta a combinacaio entre esses varios setores econémicos e niveis de organizagaéo so- cial. Eles exercem efeitos reflexos e multiplicadores uns sobre os outros. Além do mais, a economia e a sociedade baseadas na producio agropecudria também entram, nesse contexte, pela expulsao de trabalhadores tanto quanto pela transferéncia de capitais aos setores econémicos concentrados nos nticleos urbanos. # nesse contexto que podemos compreender o sen- tido das alteragdes na composigao da populagao ativa, segundo os distintos setores e subsetores da economia. Entre 1945 e 1960, por exemplo, a populacéo economi- camente ativa no setor agricola latino-americano cai de 55,9 por cento do total para 47,0. No mesmo periodo, a populagdo ocupada no setor de produtos bdsicos e Servigos cresceu de 21,9 por cento para 25,7; e a ocupa- da no comércio, governo e outros servigos aurmentou de 22,2 por cento para 27,3. Vejamos esses e outros dados na Tabela III. 89 TapeLa IIT “POPULAGAO ATIVA, POR SETOR ECONOMICO (Percentagens estimadas) Setor de atividade 1945 1960 Produgio agricola 55,9 47,0 Produgdo nao agricola ¢ servicos 44,1 53,0 1. Produtos basicos e servicos 21,9 25,7 a, Mineracdo 12 10 b. Manufatura 4,1 46 ¢. Construgao 2,9 49 d, Servigos basicos (a) 3,7 52 2. Comércio, governo e outros servigos 22,2 278 a. Coméreio e financa 6 93 b. Goyerno 3,0 38 c. Servigos varios 92 12,1 a. Atividades nfo especificadas 2,4 21 Total 100,0 100,0 Fonte: Economic Commission for Latin America (ECLA), Study on Manpower in Latin America, 1957. Conforme trans- erigio de: United Nations, The Economic Development of Latin America in the Post-War Period, New York, 1964, p. 30. (a) Os servigos basicos incluem energia, suprimento de Agua, transporte, comunicagio, limpeza%e outros servigos similares. Os dados apresentados na Tabela III mostram em que direcao estava se modificando a estrutura econd- mica das nacgées da América Latina, a partir da Segun- da Guerra Mundial. Eles indicam como cresce a im- portancia dos setores e subsetores localizados em geral nas cidades, em confronto com a producao agricola. Esté em curso a diferenciagaéo interna do sistema eco- noémico, em nivel nacional, sendo que esse fendmeno manifesta-se mais abertamente nas cidades. E claro que essas mudancas implicam na intensificacao da di- visio social do trabalho e, ao mesmo tempo, no cresci- ~ 90 mento ou mesmo surgimento de grupos e classes so- ciais. Isto implica no aumento quantitative da camada dos trabalhadores assalariados urbanos, bem como na diferenciacio interna dessa camada. E envolve também, é evidente, o fortalecimento das bases econémicas e so- ciais da burguesia vinculada aos setores secunddario ¢ tercidrio. Note-se, por exemplo, como a produtividade do operario urbano cresce muito mais do que a do tra- palhador rural. © 0 que nos indica a Tabela Iv. Tapexa IV EVOLUGAO DA PRODUTIVIDADE DO TRABALHADOR (Médias por perfodos, em délares de 1950) Setor 1936-40 1945-49 1950-54 1955-60 Produgéo agricola 290 310 340 390 Produgéo nao agricola ¢ servicos 1.040 1.190 1.270 1.340 1., Produtos basicos ¢ servigos 770 980 1.130 1.810 — Industria manufa- tureira 660 850 980 1.200 2. Comércio, governo e outros servigos 1,330 1.410 1.400 1,360 Total 590 710 790 880 Yours: eonomie Commission for Latin America (ECLA), Study ‘on Manpower in Latin America, 1957. Conforme trans- crigio de: United Nations, The Economic Development of Latin America in the Post-War Period, New York, 1964, p. 81. Os dados apresentados nas tabelas I a IV indicam a forma pela qual estava se realizando a diferenciacao interna da estrutura social dos paises latino-america- 91 nos. Em especial, mostram o crescimento da importan- cia relativa das classes sociais nao ligadas a agricultura, pecudria ¢ mineragao. Portanto, a expanséo urbana significa, concretamente, a diferenciagaio social, com formagéo de uma nova configuracdo da estrutura de classes. Assim, os trabalhadores em construcao, os ope- rarios industriais e os erzpregados em transportes fer- rovidrios, maritimos, rodovidrios e aéreos adquirem importancia maior, no contexto geral das relagdes de producao e das relagGes politicas. & essa a nova estrus tura de classes que rompe ainda mais as estruturas de dominacéo construidas em funcaio da economia primé- Tia exportadora. Em outras palavras, o mundo urbano se torna cada vez mais “complexo” e “instdvel”, desafiando tanto a ciéncia como o senso estético de socidlogos, economis- tas, urbanistas e cientistas politicos, entre outros estu- diosos dos problemas urbanos. A verdade é que essa “nova” realidade urbana poe em evidéncia as condicées econémicas e sécio-culturais em que vivem amplos se tores da camada dos trabalhadores. Essas sio as con- dicdes mais baratas de reproducio da forea de trabalho necessdria % continuidade da expansao capitalista. Eles n&o sao vistos como trabalhadores submetidos a uma alta taxa de exploracéo da sua forca de trabalho, mas definidos como “massas marginais”, formando “nticleos urbanos segregados”, consolidados na base de “formas coletivas de convivio” e pouco propensos a ajustarem-se “aos requisitos de maior racionalidade” especificos de cada atividade produtiva localizada na cidade”, Outros pesquisadores, entretanto, compreenderao que a explosio urbana, a industrializacio substitutiva de importagées, o desarrollo hacia adentro, o efeito de- Mmonstrac&o, a revolucaéo de expectativas e outros fend- menos exprimem uma realidade sdécio-cultural, politica € econémica historicamente nova. De fato, entendida 2 Comissién Econémica para América Latina (CEPAL), El Reewale Social de América Latina en la Postguerra, citade, cap. III. 92 em sua estrutura de classes, economia e cultura peculia- res, a Sociedade urbana j4 nao é mais aquela na qual se instalara a oligarquia e a partir da qual ela genera- lizava 0 seu poder sobre todo o pais. Ao contrario, essa sociedade se prope outras perspectivas. Vejamos, pois, quais as principais polarizacdes po- liticas surgidas nas atividades dos grupos e classes sociais envolvidos nas crises latino-americanas nessa épo- ca. Sao estratégias e tendéncias politicas em que se revelam o sentido principal das crises que acompanham o colapso ou o enfraquecimento das oligarquias, como estruturas intermedidrias. Em nivel mais global, todas essas estratégias e tendéncias implicam em reformular ou resolver as contradig6es inerentes ao funcionamen- to de sociedades nacionais com economias dependentes, a) As oligarquias latino-americanas, nacionais ou regionais, esforgam-se para manter ou reformular as relagoes econdmicas de dependéncia surgidas e manti- das com a economia priméria exportadora. Como as relagdes de dependéncia funcionam como um susten- taculo importante das oligarquias, estas apegam-se de- sSesperadamente as organizacées imperialistas, para vencer ou controlar as forcas politicas emergentes e em luta pelo poder. Muitas quarteladas e golpes de Estado revelam essas tendéncias. As resisténcias do grupo li- derado por Porfirio Diaz, em 1910-11, ao movimento armado chefiado por Francisco Madero, 6 uma amostra tipica da forma de reacéo das oligarquias. O mesmo Se pode dizer da “Revolugéo Constitucionalista” defla- grada pelos grupos dominantes no Estado de Sio Pau- lo, Brasil, em 1932, pois que esses grupos nao se con- formavam com a perda dos instrumentos de mando decorrente do movimento antioligarquico vitorioso em 1930. Nos dois casos, temos amostras de como as es- truturas politicas intermedidrias reagem & eclosio de forcas politicas novas. Em ambos os paises as oligar- Quias lutam para manter as estruturas politicas e eco- NOmicas preexistentes, sem concessdes as classes so- Ciais emergentes. b) A consolidagao e a expansao da hegemonia dos Estados Unidos na América Latina criam as condigdes 93 para uma reformulacgao das relagdes econédmicas com cada nagdéo em particular. Aquele pais da preferéncia a relagdes e acordos bilaterais, procurando com isso tmanter os paises do continente isolados entre si, pela desconfianga reciproca e devido aos esforcos de cada um para obter favores e vantagens especiais. Alids, os grupos dominantes locais sempre procuraram obter vantagens e favores particulares, econdmicos, financei- Tos, politicos e militares, nessas relagdes bilaterais. Pa- radoxalmente, as proprias nagdes latino-americaaas se encarregam de alimentar desavencas — como a Argen- tina e o Brasil, por um lado, ou 0 Chile e o Peru, por outro — que facilitam o predominio norte-americano. Depois da Guerra Mundial de 1939-45, a politica de as- sociagdo de capitais e empresas, bem como a doutrina mais ampla da interdependéncia econémica, politica, militar e até mesmo cultural, foram adquirindo pres- tigio crescente. Alguns desenvolvimentos da economia do México, do Brasil e alguns outros paises so mani- festagdes significativas das diretrizes dominantes nas relag6es associativas preconizadas e postas em pratica pelos Estados Unidos na América Latina. c) Os interesses politicos e econémicos das nas- centes burguesias industriais coincidem ou combinam- “se temporariamente com os interesses de amplos se- tores da classe média, em especial da burocracia civil € militar, além dos grupos que compdem as profissoes liberais. Essa convergéncia favorece a organizacao de movimentos politicos voltados para a emancipacao e a diversificagao das economias dependentes. Esses mes- mos interesses estéo empenhados, ainda que de modo desordenado e divergente, na reformulacao das institui- goes _politicas, econémicas, educacionais e outras. A politica de massas e o nacionalismo desenvolvimentista S40 desdobramentos dessas lutas politicas. O desenvol- vimento nacionalista dos governos Lazaro Cardenas (México: 1934-40), de Gettilio Vargas (Brasil: 1930-45 e 1951-54), e de Juan Domingo Perén (Argentina: 1946-55) sao manifestagdes tipicas dessas tendéncias. Essas experiéncias nacionais revelam diferentes combi- nagoes entre o desenvolvimento econémico e a politica ~ 94 de massas, seja na democracia populista, seja na dita- dura populista. d) Os interesses de alguns outros setores da clas- se média, do proletariado e certos grupos de intelec- tuais, inclusive estudantes universitarios, organizam-se em debates e movimentos pela reforma das instituigdes politicas e das relagdes econémicas internas e externas. Também nessa drea a politica de massas e o nacionalis- mo encontram condigées favordveis de desenvolvimento. O socialismo reformista aparece entaéo como a tendéncia politica dominante, dentre esses setores sociais. A poli- tica de alianca, frente ou coalizéo, unindo taticaménte partidos comunistas, partidos socialistas e partidos das burguesias nacionais, é a manifestacio mais caracteris- tica dessa orientagéo. e) Como elemento inerente a esse contexto histd- rico, criam-se novas condig6es politicas para que as re- lagdes de classe, subjacentes @ politica de massas, ou populista, e a outras manifestagdes da vida politica, transformem-se em antagonismos e lutas abertas, nesse contexto que se situam a vitoria da revolugio so- cialista em Cuba, a partir de 1959, e a vitéria do candi- dato da Unidade Popular, Salvador Allende, nas eleicdes presidenciais chilenas de 1970. Esse também é o con- texto de alguns dos movimentos guerrilheiros havidos em paises latino-americanos apds o declinio do popu- lismo. Em varios paises, esses movimentos, tendéncias e polarizag6es politicos manifestam-se simultaneamente. As vezes esto conjugados, como no caso do desenvol- vimentismo nacionalista e do socialismo reformista, que Se aglutinam taticamente em frentes uinicas. Em outros casos, entretanto, eles correspondem a tendéncias poli- ticas predominantes, ao longo do processo politico. Em algumas conjunturas especiais, ainda, essas polarizagoes € movimentos politicos colocam-se em oposic&o frontal, entre si, quanto a certos modelos de desenvolvimento: Capitalismo aut6nomo, capitalismo dependente, cami- nho pacifico para o socialismo ou socialismo revolucio- nario. Em todos os casos, no entanto, é preciso verificar €m que niveis se confrontam © disputam grupos socizis 95 e em que niveis se confrontam e disputam classes so- ciais. E no ambito destes antagonismos que se jogam as contradigdes entre sociedades nacionais e economias dependentes. Xl ALIANCAS E CONTRADICGES DE CLASSES Na maroriA dos paises latino-americanos, os movi- mentos de massas, 0u populistas, tornaram-se uma for- ¢a politica muito importante — as vezes a mais impor- tante — na definicao da politica de desenvolvimento econémico em geral, da industrializagéo e das reformas institucionais. Em gradacdes diversas, mas sempre como uma das principais forgas politicas, o populismo adquiriu relevancia no México, no Brasil e na Argentina, além de outros paises. Nas diversas nagGes em que se desenvolveu de modo notdvel, foi uma forga politica im- portante ou decisiva, na liquidagao do Estado oligdr- quico. Como sintese das ambigiiidades e antagonismos decorrentes das relagdes entre a sociedade nacional e economia dependente, o poder oligarquico nao resistiu as pressées das classes assalariadas e da burguesia in- dustrial organizadas no populismo. Antes do populismo, predominaram os movimentos Civilistas e liberais, nos quais as classes médias tiveram preponderancia ideoldgica e as vezes pratica. Dentre esses movimentos, destacou-se o yrigoyenismo, que es- teve no poder nos anos 1916-22 e 1928-30. O tenentis- mo brasileiro, que se configurou como movimento po- litico a partir de 1922, nfo chegou nunca a assumir 0 poder como forga politica organizada. Diluiu-se, pouco @ pouco, em outras tendéncias, mais 4 direita.e mais & esquerda do aparelho estatal. Mas alguns elementos do 96 97 tenentismo integraram-se no governo de Vargas e par- ticiparam do populismo. Paralelamente ao desenvolvimento dessas forgas. Politicas, surgidas nas quatro primeiras décadas do sé- culo XX, criaram-se partidos politicos e organizacées operdrias. Antes da Primeira Guerra Mundial, haviam sido fundadas organizacgdes anarco-sindicalistas na Ar- gentina, Uruguai, Brasil e Cuba. Nesses mesmos paises, e também em alguns outros, surgiram partidos socialis- tas e sindicatos de orientagao socialista. Depois, prin- cipalmente apds a Guerra de 1914-18, criaram-se os par- tidos comunistas e desenvolveram-se organizag6es iden- tificadas ou em alianga com esses partidos. E verdade que também houve associagdes e sindicatos sem defini- gao politica clara. Alids, nos primdrdios da, industriali- zagao na América Latina as associagdes de auxilio mu- tuo e recreativas tiveram razodvel amplitude. Muitas vezes essas associagdes desenvolveram os seus contet- dos politicos; outras vezes transformaram-se de modo profundo, segundo os quadros politicos e sindicais cria- dos com 0 novo ambiente urbano-industrial. Em sintese, se tomamos o movimento operdario la- tino-americano em conjunto, no século XX, verificamos que ele estava organizado, conforme o pais e a ocasiio, mas seguintes tendéncias: anarco-sindicalistas, socialis- tas, comunistas, catdlicos, democraticos e “apoliticos”. O carater propriamente politico, no entanto, tem sido importante no sindicalismo operdrio latino-americano. E inegdvel que as reivindicacgdes de carater econémico geralmente predominavam sobre as reivindicagGes estri- tamente politicas. Mas isto nao eliminava nem reduzia a importancia politica desse sindicalismo, j4 que havia poucas organizac6es politicas ativas. Além do mais, 0 Sindicato nasce como 6rgao de classe. Desde 0 principio o trabalho organizado na Améri- ca Latina tem sido altamente politico. Virtualmente todos os grupos sindicais da drea esto intimamen- te associados a este ou aquele partido politico, ou ao Governo. Fregiientemente, movimentos operé- tios especificos deveram sua origem, em grande 98 parte, aos esforgos de um grupo ou partido poli- tico, ou do Governo nacional *. Na América Latina, 0 crescimento das organizacGes sindicais, como forgas politicas e econémicas, tem sido uma das caracteristicas das transformagoes politicas nos ultimos cincoenta anos. As organiza- goes sindicais néo escaparam nem transcenderam as limitag6es da vida politica desses paises. O sin- dicalismo tem sido prejudicado pelo facciosismo, levado a crises desnecessdrias por extremismos e dividido por ideologias superpostas as suas verda- deiras tarefas. As organizacées trabalhistas tém sido vitimas de lideres irresponsdveis, que buscam promover-se; ou tém sido os instrumentos de for- gas politicas que nao hesitam em sacrificar os in- teresses e mesmo as vidas dos trabalhadores para alcangar os seus objetivos. Entretanto, poucas mu- dangas substanciais do poder politico ocorreram sem o apoio dos trabalhadores 2. E dbvio que esses movimentos politicos do prole- tariado acabaram por caracterizar melhor a sua condi- cao de classe, diante da burguesia industrial e dos ou- tros grupos da classe dominante, bem como diante de si mesmos. Numa sociedade em reelaboracaio profunda, face as relagGes patrimoniais criadas e desenvolvidas 1 Robert J. Alexander, A Organizagdo do Trabalho na América Latina, trad. de Rodolfo Konder, Civilizagio Brasileira, Rio de Janeiro, 1967, p. 19. Consultar também: Vietor Alba, Historia del Movimiento Obrero en América Latina, Libreros Mexicanos Unidos, México, 1964; Carlos M. Rama, Historia del Movimiento Obrero y Social Latinoamericano Contempordneo, Editorial Pales- tra, Buenos Aires, 1967. 2 Frank Bonilla, “The Urban Worker”, no livro organizado por John J. Johnson, Continuity and Change in Latin America, Stanford University Press, Stanford, 1964, cap. 7; citacdo da p. 198. A im- portaneia politiea do sindicalismo Jatino-americano comegou a Preocupar os governantes norte-americanos nos tltimos anos do século XIX, na ocasido da guerra hispano-americana. Essa preo- cupagio naturalmente erescéu. durante o século XX, inclusive Por causa do populismo, dando origem a programas especiais de 99 com a oligarquia, é inegdavel que aquelas tendéncias po- liticas do sindicalismo operdrio correspondiam a inten- tos de autodefinicéo e luta. Em todo caso, jé se afirma @ importancia das relacdes politicas, no quadro das re- lagGes sociais e econdmicas no qual se encontra inse- rido o trabalhador urbano. Mas passemos a outra questao. Diante das experiéncias politicas acumuladas e de- senvolvidas em varias décadas de movimentos operd- rios, colocam-se as seguintes perguntas: Por que 0 po- pulismo sobrepujou todas as outras correntes politicas, em conjunto? Em que medida o populismo assimila, reelabora ou aperfeicoa elementos daquelas experiéncias politicas iniciadas anteriormente? Representa ele uma ruptura com os movimentos sindicais e politicos ante- riores? Ou o populismo corresponde a uma etapa sin- gular no desenvolvimento das relagdes entre as classes sociais? Em que medida as tensdes entre as classes, apa- gadas na politica de massas, podem reaparecer no primeiro plano, mais explicitas, na crise do movimento, partido ou. governo populista? N&io vamos examinar to- das as implicacdes desses problemas aqui. Examinare- mos apenas alguns dos seus aspectos, tratando de su- gerir uma interpretagao. Em poucas palavras, a nossa interpretagao € a se- guinte. Apenas em certo nivel o populismo representa uma ruptura com o passado politico da classe operdria. Ele surge numa época determinada do movimento po- litico operdrio, quando ganham preeminéncia os pro- cessos de urbanizacdo, industrializagao e crescimento do setor tercidrio da economia, transformando de modo profundo a composicéo interna da sociedade e as re- Jag6es entre as classes sociais. A verdade é que esses processos “recriaram” a estrutura de classes das socie- treinamento de lideres nos Estados Unidos e ajuda financeira. Pouco a ponco, varios segmentos do sindicalismo latino-americano passaram a ser coordenados on influenciados, de modo organizado, por centrais sindicais norte-americanas, Consultar: Ronald Radosh, American Labor and United States Foreign Policy, Vintage Books, New York, 1969, esp. caps. XI, XII e XIII. 100 dades latino-americanas. Na nova configuracio do sis- tema de classes nao havia as condig6es sociais e poli- ticas indispensaveis ao florescimento das posicOes ra- dicais ensaiadas anteriormente. Nas condig6es em que se encontra a classe Operdria em formacao na cidade, a conseiéncia de mobilidade social sobrepuja & de classe. Além do mais, na época da politica de massas, a bur- guesia industrial emergente assume a lideranca discreta ou ostensiva das lutas reivindicatérias e reformistas das massas operdrias e de amplos setores da classe média, Afinal de contas, essa burguesia, aliada ou nao com grupos da classe média, militares, intelectuais e outros, era a Classe vitoriosa, na luta contra a oligarquia. Na nova configuragao do sistema de classes, pois, as organi- zacgdes, técnicas, liderangas e interpretagdes politicas preexistentes foram redefinidas ou abandonadas por outras. Havia pontos dos programas anarco-sindicalis- tas, socialistas e comunistas que careciam de adequa- cao histérica, precisando ser reelaborados ou abando- nados, segundo as condigGes e possibilidades especificas da sociedade de classes em formagéo nos paises latino- -americanos. Os anarquistas, por exemplo, que sao 0 caso extremo nesse espectro de alvos e técnicas politicas, preconizaram a extingao do casamento, das Forgas Ar- madas e do Estado. E dbvio que estavam transpondo: palavras de ordem e interpretagdes trazidas por imi- grantes espanhdis e italianos, entre outros. Em maior ou menor grau, conforme o ponto especifico, os socialistas também fizeram transposigdes apressadas, ou discuti- veis. Depois da Primeira Guerra Mundial, os comunistas incorreram em equivocos semelhantes. Por exemplo, eles deram uma conotacéo muito particular, reificada a nosso ver, de “latifindio”, “imperialismo” e, por decor- réncia, “burguesia nacional”. Em geral atribuiam a essa. burguesia tarefas hegemOnicas, quanto 4 luta contra 0 imperialismo e 0 latifundismo, minimizando sua con- dig&o subalterna *. Em boa parte, 6 na época do popu- 2 © conceito de burguesia nacional tem sido muito importante nas anélises e atividades das esquerdas reformistas na América Latina. Em especial, foi basico nas interpretagdes © atuagdes 10L lismo que muitas interpretagdes, programas e técnicas dessas correntes politicas reelaboram-se segundo con- digdes e perspectivas oferecidas pelas proprias realida- des nacionais, sob comando direto ou nao da burguesia urbano-industrial nascente. Em poucos anos — no maximo duas ou trés déca- das, conforme o caso — as transformag6es sociais, eco- némicas, culturais, demograficas e ecoldgicas havidas nos ambientes urbanos criaram novas condigdes para a organizagéo das estruturas de poder e dos movimentos politicos. Em conseqiiéncia, “diluiram-se” no seio das massas recém-chegadas ao mundo urbano-industrial as experiéncias politicas mais marcantes, dentre as reali- zadas anteriormente por anarco-sindicalistas, socialistas, comunistas e outros. Lembremo-nos de que o ritmo de urbanizagao, na maioria dos paises, era acelerado. Os deslocamentos de pessoas e familias rurais e de peque- nas cidades para os nticleos urbanos e industriais maio- dos partidos comunistas partiddrios da linha stalinista, no jogo dos blocos mundiais. Entretanto, esse conceito nao resultara da and- lise cientifica da situagao econdmica e sécio-politica latino-ameri cana, Ou melhor, era basicamente influenciado pelas lutas politi cas desenvolvidas na Asia e Africa, durante os movimentos de li- beragdo nacional. Foi principalmente a situagdo colonial e de dependéncia dos povos desses continentes que inspirou a elabora- io e a utilizagdo politica da acepcdo stalinista de burguesia nacional. Além do mais, cumpre observar que os partidos comu- nistas latino-americanos demoraram-se para fazer um esforco mais sistematico de critica e refornmlagao do eonceito, tendo em conta as condigdes histéricas peculiares e os antagonismos principais e secundarios nas sociedades latino-americanas. A propésito das origens e interpretagdes soviéticas da nogdo de burguesia nacional, consultar: Stephen Clissold (Wditor), Soviet Relations With Latin America 1918-1968, Oxford University Press, London, 1970; J. Gregory Oswald (Editor), Soviet Image of Contemporary Latin America (A Documentary ‘History, 1960-1968), The University of Texas Press, Austin, 1970; Thomas Perry Thornton (Editor), The Third World in Soviet Perspective, Princeton University Press, Princeton, 1964; Por la Independencia Nacional, (Recopilacién de articulos ‘publicados en Revista Internacional, en 1961 y 1962), Editorial Paz y Socialismo, Praga, 1962; La Estructura de la Clase Obrera de los Paises Capitalistas, organizado por Alexei Rumianisev, Editorial Paz y Socialismo, Praga, 1963. 102 res adquiriram grandes. proporcdes. Essa foi a ocasiao em que surgiram as villa-miserias, callampas, barriadas, ranchos, cantegrilles e favelas em Buenos Aires, Saniia- go, Lima, La Paz, Guaiaquil, Quito, Bogota, Caracas, México, Rio de Janeiro, Sao Paulo e outras cidades. Essa expanséo urbana, com ou sem industrializacao, refletia mudangas bastante acentuadas na estrutura do emprego. Por um lado, estavam em curso novos desen- volvimentos da divisaéo social do trabalho nos seiores econdmicos em formag&o e expansdo na cidade. As mu- dangas estruturais criavam novas condigées de movili- dade social. A diferenciag&o interna do sistema econd- mico-social criava outras linhas de emprego, ao mesmo tempo que podia ou nao multiplicar empregos nas ati- vidades preexistentes. Isto 6, a expansio dos setores se- cundario e tercidrio da economia ampliava as condigdes de mobilidade estrutural. Ao mesmo tempo, enquanto uns ascendiam na estrutura ocupacional, outros perdiam posigdes, no que se pode denominar mobilidade por troca de posicgGes.* Por outro lado, estavam se consti- tuindo reservas excepcionais de forga de trabalho, a par- tir das quais tornavam-se possiveis novas expansdes quantitativas e qualitativas do sistema econémico de base urbana, desde a industria até aos servicos sociais coletivos, como educagéo ou satide. Em parte, o que alguns passaram a chamar “massas disponiveis”, mas- Sas marginais” ou “classes populares”, encaradas como uma populacao sui generis, se nao exdtica, eram os con- tingentes de forga de trabalho em disponibilidade, ou o exército industrial de reserva. E dbvio que as condicdes econémicas, habitacionais e sdcio-culturais de vida 4 Juarez Brandao Lopes, Francisco de Oliveira, Paul Singer e Fernando Henrique Cardoso, Emprego e Forga de Trabalho na América Latina, Centro Brasileiro de Andlise e Planejamento, Sio Paulo, 1971, edicdo mimeografada. Quanto as nocies de mobili- dade ‘estrutural e mobilidade por troca de posigéo, consulta Bertram Hutchinson, Mobilidade e Trabalho (Um Estudo na Ci- dade de Sao Paulo), em colaboragéo com Juarez Brandao Lopes, Carolina Martuscelli Borie Carlo Castaldi, Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, Rio de Janeiro, 1960, esp. pp. 10-11 103 desses trabalhadores e seus familiares significayvam um custo bastante reduzido da reprodugao de uma parte razodvel da forga de trabalho necessdria ao tipo de desenvolvimento econédmico ou industrial que estava ocorrendo em paises da América Latina®. E necessdrio termos em conta esses aspectos das mudangas em curso na estrutura do emprego, se queremos avaliar as im- plicag6es econdmicas, sociais e politicas das migragdes internas havidas nesses paises na época. Vejamos agora as dimens6es aproximadas dessas migragdes, em suas repercuss6es sobre a estrutura do emprego urbano. Entre 1925 e 1960, o emprego de tra- balhadores agricolas cresceu pouco mais de 50 por cento. AO passo que a forga de trabalho nao agricola aumentou cerca de trés vezes, passando de 12,5 milhées, em 1925, para quase 36 milhGes, em 1960, tendo sido, pois, de 23,5 milhGes o seu acréscimo. Esses dados re- fletem um aspecto importante da situacio urbana, na medida que a maior parte das pessoas ligadas as ativi- dades nao agricolas concentrava-se em cidades gran- des. Note-se, entretanto, que apenas uma parte dessa forca de trabalho foi absorvida na industria. Tanto assim. que em 1960 somente 5,3 milhées, dos 23,5 milhdées acrescidos na forga de trabalho urbana, estavam em- pregados em atividades manufatureiras. Nos termos em que se realizou, fortemente influenciada ou determinada pelos interesses de empresas estrangeiras, a “industria- lizagdo substitutiva de importac6es” ocorreu com ele- vada intensidade de capital. Os outros 18,2 milh6ées do aumento da forca de trabalho urbana, havido entre 1925 e 1960, encontravam-se empregados principalmen- te em atividades do setor tercidrio*. Vejamos os dados da Tabela V. 8 Fraciseo de Oliveira, “A Economia Brasileira: crftica A razdo dualista”, Hstudos Cebrap, 2, S. Paulo, 1972. 8 United Nations, The Process of Industrial Development in Latin America, Economic Commission for Latin America (ECLA), New York, 1966, pp. 35-45; Joseph R. Ramos, Labor and Development in Latin America, Columbia University Press, New York, 1970; Humberto Mufioz, Orlandina de Oliveira, Paul Singer y Claudio Stern, Migracién y Desarrollo, Consejo Latinoamericano de Cien- cias Sociales, CLACSO, Buenos Aires, 1972. 104 ‘TABELA V CRESCIMENTO DA POPULAGAO ATIVA (América Latina: de 1925 a 1960) Aumento de emprego Milhoes de pessoas Total 35,7 Agricola 12,2 Nao agricola 23,5 Industrial 53 Outras atividades urbanas 18,2 FONTE: United Nations, The Process of Industrial Development in Latin America, citado, p, 38. No conjunto, os trabalhadores recém-chegados As grandes cidades estavam em processo de ressocializacao, segundo as condigdes sdcio-culturais, econdmicas e po- liticas do ambiente urbano-industrial, ou predominan- temente urbano. Pouco a pouco, uma parte deles é sin- dicalizada e politizada. Mas a maioria permanece “fora” dos quadros politicos institucionais. Em geral, essa maioria manifesta-se quase que exclusivamente nas ocasiGes das eleigdes, pelo voto obrigatdrio. Mesmo en- tre os sindicalizados, a participacio ativa nas ativida- des do sindicato € reduzida. Nao estio em condigdes de reconhecer a importancia relativa do sindicato, ou do partido politico, em face do voto, da demagogia e outros componentes do ambiente politico urbano. O seu horizonte cultural naturalmente encontra-se em fase de modificagio, mas esta ainda impregnado de valores e padrdes de comportamento vigentes entre sitiantes, agregados, camaradas, peGes, colonos, volantes e outros tipos de trabalhadores rurais. Esse trabalhador e os seus familiares estao incorporando ou redefinindo os valo- res culturais e os padrées de comportamento mais ca- racteristicos da sociedade urbana, em especial aqueles que governam as relagGes de troca peculiares da eco- 105 nomia de mercado que predomina na cidade. Além do mais, a prdépria cidade, como economia, sociedade, cul- tura e politica, encontra-se em transformagéo. Nem por isso, entretanto, as classes assalariadas urbanas, par- ticularmente o proletariado, deixam de adquirir uma significacao politica especifica. Ao mesmo tempo que sao utilizadas por organizagdes e liderangas alheias como “massas de manobra”, elas também reivindicam. Ao serem levadas a tomar posicéo, revelam a sua impor- tancia politica tanto as outras classes como a si mesmas. O atual poder das instaveis aliangas entre grupos operdrios e de classe média repousa amplamente no seu predominio nas eleigdes. O voto é cada vez menos manipulado e se fortalece a resisténcia 4 manipulagao dos resultados eleitorais. Todavia, 0 operario ainda nao pode realisticamente conside- rar 0 direito de voto como a sua principal arma. © fundamento do poder do operdario esté em sua capacidade de interromper a producdo, paralisar os servigos urbanos (em especial os transportes) e provocar agitacdes... Apesar das ondas periddicas de inquietacao, que- bra-quebra, agitacao e insurreicao, a militancia po- litica nao é a marca do operariado latino-america- no. O que o caracteriza é a sua passividade, em face das grandes privagdes e dos abusos perma- nentes. O radicalismo e o ativismo politicos, entre Os operdrios, so um subproduto da vida urbana, mas em absoluto sao caracteristicos de todos ou da maioria dos operdrios urbanos. Diversamente da busca de melhores salérios, melhores niveis de consumo ou mais educagaéo, que atraem o traba- Ihador para a cidade, a percepcdo da necessidade, oportunidade e gosto pela politica nasce na cida- de. As organizagées trabalhistas nascem na cidade e circunscrevem-se a ela, salvo poucas e muito re- centes excegdes*. 7 Frank Bonilla, op. cit, pp. 193-194. 106 Além disso, na época do populismo, quando os cen- tros urbano-industriais também estao passando por mu- dangas estruturais 4s vezes profundas, o proletariado parece ser mais suscetivel de subdividir-se em grupos. de varias ordens: analfabeto e alfabetizado; branco, mestigo e indio, ou branco, mulato e negro; bracal e qualificado; natural da cidade e de origem rural; com tradic¢éo familiar operdria e proletarizado em anos re- centes; catélico, protestante, espfrita, umbandista, ou outra religiao ou seita; sem perspectivas de qualquer mudanca social e em mobilidade; sindicalizado e nao sindicalizado; sindicalizado em organizagdes governa- mentais ou nao, de esquerda ou nao; vinculado ou sem vinculo, por exemplo, com o partido de Cardenas, Pe- r6n, Vargas, Velasco Ibarra ou Paz Estensoro; e assim por diante.* Um dos elementos mais importantes, den- tre os que parecem “segregar” os grupos operdrios uns dos outros, 6 obviamente a propria participagao ou nao nas atividades sindicais. Pela sua significagao politico- -econdmica, tanto a partir da perspectiva operdria como daqueles que detém os instrumentos do poder politico nacional, a relagio do operaério com o sindicato é um dado importante da situacéo da classe operdria. Veja- mos, pois, como podem subdividir-se os trabalhadores nesse aspecto. Setores populares sindicalizados. Esta categoria é formada pelos operarios que trabalham permanen- temente em empresas grandes e médias. Em geral, ® Algumas publicagdes em que se encontram dados e anélises sobre a variabilidade sécio-cultural e politica das massas assala- riadas urbanas: Philip M, Hauser, op. cit.; CEPAL, El Desarrollo Social de America Latina en la Postguerra, citada; Revista Latino ‘americana de Sociologia, Vol. V, N.© 2, 1969, ‘mimero especial sobre marginalidade social na América Latina; Henry A. Lands- berger, “The Labor Elite”, publieado por Seymour M. Lipset and ‘Aldo Solari (Editors), Elites in Latin America, Oxford Univer- sity Press, New York, 1967; Enzo Faletto, “Industrializagdo e Classe Operdria na América Latina”, publicado por Leéncio Mar- tins Rodrigues (organizador), Sindicalismo e Sociedade, Difusio Huropéia do Livro, S. Paulo, 1968. 107 possuem certos graus minimos de qualificagio e as suas condigdes de vida sao superiores aos ni- veis de subconsumo. Setores populares néo sindicalizados. Esta catego- ria € formada pelos operdrios que trabalham em todo o tipo de pequenas empresas industriais e comerciais, em oficinas, em servicos de reparacio ou outros, em construgdo, comércio ambulante e trabalhos ocasionais. Nessa categoria incluem-se certos tipos de artesaios, em especial aqueles cujos Oficios tornam quase impossivel a sua incorpora- ¢&o & moderna producao industrial. EH provavel que este trabalhador nao sindicalizado tenha ni- veis de qualificagao inferiores ao da categoria an- terior, ou que a sua qualificacio seja diversa da- quela exigida pelas organizacdes produtivas com- plexas. Apesar da variabilidade do seu nivel de vida, em muitos casos o seu nivel de vida esta abaixo dos niveis de subconsumo. Setores populares em condicées de “marginalida- de”. No conjunto, esta categoria esta formada por trabalhadores de escassa qualificacao, sem filiacao. sindical, que vivem abaixo dos niveis de subcon- sumo ®, Sao essas, em sintese, as condigdes sécio-culturais, econémicas e politicas nas quais vive o proletariado na época da expansfio urbana acelerada, com ou sem in- dustrializagao. Nessas condigées, o proletariado aceita @ coalizio com outras forgas sociais e politicas, parti- cularmente a burguesia nacional. Aceita o nacionalis- mo, 0 desenvolvimentismo e a industrializacio, nos termos propostos pela burguesia industrial ou seus idedlogos, como se fossem os objetivos da nagiio, de todo 0 povo e da.classe operdria. Dai surgem os fen6- menos populistas, movimentos, partidos e governos. Criam-se novas técnicas e estilos de organizacdo e lide- ranga. A demagogia e o carisma tornam-se elementos ® CEPAL, op. cit., p. 129. 108 essenciais, dentre as técnicas de arregimentacio politica das massas assalariadas da cidade. Nesse contexto, surge uma ideologia peculiar. O principio da “paz so- cial”, ou da “harmonia entre as classes sociais”, adquire primazia sobre as idéias e prdticas politicas inspiradas nos antagonismos de classe. Para acelerar as rupturas estruturais (politicas e econémicas, internas e externas) que haviam debilitado a oligarquia e confundido o im- perialismo, as “classes populares”, grupos de intelec- tuais, setores militares e a burguesia industrial uni- ram-se sob a bandeira do nacionalismo econémico, da devolugdéo do pais ao povo, das reformas institucionais e do desenvolvimentismo. Para uns, estava em jogo a ascensio econdmica e social; para outros a possibilida- de de um capitalismo nacional, ou mais aut6énomo; para uns e outros, em escala varidvel, tratava-se de emanci- par o pais do “latiftmdio” e do “imperialismo”. Para a grande maioria, contudo, a alianca tdtica entre as classes sociais era uma realidade tao marcante que en: cobria razGes estratégicas subjacentes. Tanto em nivel ideolégico como no da pratica politica cotidiana, 0 “de- senvolvimentismo nacionalista” adquiriu o cardter de uma, estratégia possivel, primordial e urgente de pro- gresso, No caso do México, 0 “partido da revolucéo” foi sempre a principal organizacéo politica da harmonia nacional, Esse partido foi reestruturado varias vezes. Entre 1929 e 1937 existiu como Partido Nacional Re- voluciondrio (PNR), de 1937 a 1946 chamou-se Partido de la Revolucién Mézxicana (PRM) e a partir de 1945 passou a denominar-se Partido Revoluciondrio Institu- cional (PRI). Em cada etapa introduziram-se modifi- cag6es destinadas a reforcar e aperfeicoar o papel do “partido da revolugio”, como partido de uma coalizio de classes. Ao mesmo tempo, desenvolvia-se a simbiose entre o partido, o aparelho estatal e o sistema sindical, englobando operdrios, camponeses e o setor popular. Nesse processo, 0 callismo dos anos vinte foi incorpo- rado e ultrapassado pelo cardenismo, que teve o seu apogeu em 1934-40. Depois dessa fase, 0 cardenismo continuou a influir e orientar as relagdes das classes 109 camponesa e operdria, por um lado, com a burguesia nacional, por outro. Durante a Segunda Guerra Mun- dial, inclusive sob o pretexto da luta contra o nazi-fas- cismo, as presses norte-americanas influiram na evo- lugiao do populismo mexicano para a direita. No México, talvez mais do que em qualquer outro pais latino-americano, o poder politico nacional constituiu-se numa combinacao singularmente forte e eficaz de Es- tado-partido-sindicato. Nesse sistema, 0 charrismo tem desempenhado um papel relevante, tanto na difusio como na imposigio das decis6es governamentais as classes assalariadas no campo e na cidade. No Brasil, 0 varguismo teve varias fases. Entre 1930 e 1937, Getulio Vargas ensaiou uma democracia de bases populares, fazendo concessées simultaneas 4 clas- se média e ao proletariado. Nesses anos, criou algumas bases do populismo brasileiro, formulando a doutrina da “paz social” e reconhecendo os sindicatos como le- gitimos 6rgios do proletariado. Nos anos de 1937-45 Vargas instalou uma ditadura de tipo populista, sob a denominacaio de Estado Novo, com elementos de inspi- racéo corporativa. Nesse periodo, outorgou a Consoli- dagéo das Leis do Trabalho (CLT), formalizando as relagdes de trabalho nos setores secundario e tercidrio. Por meio do saldrio minimo, as férias remuneradas, o aviso prévio, a protecio & maternidade e outros disposi- tivos formalizaram-se os direitos e os deveres dos tra- balhadores no mercado de trabalho industrial tanto quanto nas outras atividades produtivas localizadas na cidade. Ao mesmo tempo, criam-se os requisitos orga- nizatérios ou burocrdéticos por meio dos quais se da 0 aparecimento do peleguismo. O pelego passa a ser um elemento essencial da burocracia sindical populista, pois aparece em muitas situacdes importantes, vin- culando trabalhadores e sindicatos ao aparelho estatal. Nos anos 1951-54 o populismo de Vargas conformou:se as regras da democracia representativa, onde os rema- nescentes da oligarquia, ao lado do imperialismo, esti- veram bastante ativos contra o seu governo. Talvez os dois mais importantes acontecimentos do governo po- pulista, nesse periodo, tenham sido a criagio da Petré- 110 leo Brasileiro S.A. (Petrobrds) e a publicagio da Carta Testamento, de Vargas. Nessa carta, escrita &s véspe- ras do seu suicidio, ocorrido em 24 de agosto de 1954, Vargas resume alguns dos principais pontos do popu- lismo brasileiro. A idéia de devolver o pais ao povo, de que o imperialismo impedia 0 progresso nacional, in- clusive porque estava associado a grupos econémicos nacionais, estd presente na carta, e alimentard boa parte da ideologia populista até a deposic&o do gover- no Goulart, em 1964. Alids, a democracia populista alcan¢a Os seus desenvolvimentos extremos e entra em colapso nos anos 1961-64, nesse governo. Ao longo dos anos 1951-64, um elemento importante do populismo brasileiro foi a alianca entre o Partido Social Democra- tico (PSD), 0 Partido Trabathista Brasileiro (PTB) eo Partido Comunista do Brasil (PCB). Mas essa alianca nao foi nem muito consistente nem permanente, enfren- tando continuas crises, devido & diversidade e hetero- geneidade dos interesses por eles representados. Mesmo assim, ela é um fato importante, ao longo dos anos 1951-64. Além do mais, essa alianga, particularmente a ligagao entre o PTB e o PCB, elaborou e desenvolyeu as relagGes entre o proletariado, as organizac6es sindi- cais e 0 aparelho estatal. No Equador, 0 velasquismo naturalmente passou por varias fases, pois 0 seu lider, José Maria Velasco Tbarra, governou cinco vezes o pais, nos anos 1934-72. Algumas vezes Velasco Ibarra foi eleito e deposto por golpes de Estado. Mas ele também comandou golpes, tanto para conquistar o poder como para nele perma- necer. Em seu ultimo governo, nos anos 1968-72, foi eleito democraticamente e chefiou um golpe de Estado, em 1970, transformando ele prdprio a democracia po- pulista em ditadura. Em 1972 foi deposto por um golpe militar. A composig&o de classes dos seus diversos go- vernos nao foi sempre a mesma, quanto ao peso rela- tivo da burguesia, proletariado, classe média e milita- res neles envolvidos. Ainda que essas varias categorias sociais estivessem sempre na base do velasquismo — movimentos, sindicatos, partidos e governos —, elas va- riaram as suas posigdes e deram conotac&o distinta a eee cada governo de Velasco Ibarra. Persistiu, no entanto, a ideologia reformista e nacionalista, refletindo alguns interesses das classes sociais urbanas que nio tinham antes de 1934 acesso as esiruturas oligdrquicas de po- der. Tanto assim que os partidos de esquerda ao mes- mo tempo criticavam e apoiavam as posicdes do velas- quismo. Em algumas ocasiGes, eles alimentaram a esperanga de que as politicas de Velasco Ibarra agra- vassem as contradigdes do sistema politico-econémico. No conjunto, entretanto, o velasquismo foi um fendéme- no que respondeu as novas exigéncias politicas das clas- ses sociais urbanas, quando elas ganharam preeminén- cia sobre as estruturas oligdrquicas. Nem por isso 0 subsistema capitalista equatoriano deixou de seguir seu eurso. Ao contrdrio, cresceu e diferenciou-se interna- mente, reformulando tanto relagdes internas como ex- ternas. Certa vez Velasco Ibarra caracterizou assim “o velasquismo: uma doutrina liberal, uma doutrina cris- ta, uma doutrina do socialismo” 1”, Como o fendémeno politico mais importante desse periodo da histéria equa- toriana, 0 velasguismo modificou bastante a relacio do Estado com a sociedade. Numa visio histérica de conjunto, 0 velasquismo nao pode aparecer senaéo como é; um elemento de conservacao da ordem burguesa, altamente “fun- cional”, porque permitiu ao sistema absorver as suas contradicées mais visiveis e superar, com 0 menor custo, as piores crises politicas, mantendo uma fachada “democrdtica”, ou ao menos “civil”, com aparente consenso popular. Nessa perspecti- va, que é a tinica ydlida, pode-se afirmar que o ve- Jasquismo foi a solucio mais conveniente para as classes dominantes %. 10 Agustin Cueva, El Proceso de Dominacion Politica en Beuador, Ediciones Critica, Quito, 1972, p. 92. 3 Agustin Cueva, op. cit., p. 82, Consultar também: George I. Blankstein, “Ecuador: The Politics of Instability”, publicado por Martin ©. Needler (Editor), Political Systems of Latin America, D. Van Nostrand Company, Princeton, 1965, cap. 13. 112 Na Bolivia, os governos de Paz Estensoro (1952-56 e 1960-64) e Siles Zuazo (1956-60) foram caracterizados pela coalizao de classes, as nacionalizacdes, a reforma agraria e o desinteresse em fazer avangar o processo revolucionario iniciado em 1952, Nesses anos, o Movi- mento Nacionalista Revoluciondrio (MNR) esteve no poder, constituindo-se num elo importante do sistema, de poder Estado-partido-sindicato, nascido com a revo- lugéo e © primeiro governo movimentista. Desenvol- veu-se bastante a burocratizagao da vida sindical, nos quadros desse sistema de poder. Os movimentistas eram compostos por grupos da burguesia, classe média, proletariado urbano, mineiros, camponeses e militares. A despeito do seu impeto inicial — com as nacionaliza- goes, a reforma agraria e a dissolugaéo das forcas arma- das preexistentes — os governos do MNR evitaram a radicalizagao. Ja em 1952, ao nacionalizar as minas, Paz Estensoro fez questéo de aceitar as exigéncias da indenizag&o, para evitar que o governo revoluciondrio fosse tachado de comunista e nao pudesse receber aju- da dos Estados Unidos *. O MNR nao pretendia trans- formar a luta contra as estruturas oligérquicas e con- tra os enclaves numa luta de classes. As reformas preconizadas destinaram-se principalmente a abrir pos- sibilidades de acesso a novas condigGes econémicas e politicas as classes sociais que estavam excluidas do poder oligaérquico até 1952. Ao mesmo tempo que se refaziam as relagdes e estruturas politico-econémicas internas, reformulavam-se as TelagGes externas. A luta contra os enclaves nao foi uma luta contra o imperia- lismo, mas um modo de refazer as condig6es da depen- déncia, segundo as exigéncias das classes sociais que passaram a participar do poder. A ordem capitalista nao deixou de subsistir nem de desenvolyer-se. Pouco @ pouco, no curso dos anos 1952-64, o governo, as agén- cias governamentais e as empresas norte-americanas Passaram a influenciar de modo cada vez mais decisivo 32 Laurence Whitehead, The United States and Bolivia, Haslemere Group Publication, London, 1969, p. 8. 113 tanto a desintegragao do sistema de poder criado com a revolugéo como o proprio exercicio das fungdes go- vernamentais. Nao foi por mero acaso que René Or- tufio Barrientos, 0 militar que comandou o golpe con- tra o segundo governo Paz Estensoro, em 1964, havia sido treinado em academias militares dos Estados Uni- dos, nos termos do programa de cooperacio assinado pelo governo movimentista e o norte-americano. Os partidos de esquerda, que tiveram intensa participagao politica nos acontecimentos bolivianos, nao consegui- ram nem radicalizar 0 processo revoluciondrio iniciado em 1952, nem evitar o golpe de 1964. No curso desses anos, entretanto, as massas movimentistas passaram a representar forcas politicas ainda mais importantes no cendrio politico do pais. As experiéncias da coalizao de cunho populista nao deixaram de desenvolver nelas uma compreensao mais clara dos seus interesses de classes. Da mesma forma que as classes dominantes, as classes assalariadas, principalmente o proletariado urbano e das minas, tornaram-se ainda mais importan- tes no desenvolvimento do processo politico boliviano 78. Na Argentina, o peronismo comeca com base no sistema sindical preexistente, mas 0 amplia e redefine, fazendo-o diferenciar-se cada vez mais das organizacdes politicas e sindicais controladas ou influenciadas pela esquerda. O “partido peronista” foi decisivamente do- minado pelas figuras de Juan Domingo Perdn e Eva Per6én, quando se desenvolveu bastante a lideranga ca- rismatica. Alids, com Eva Perén, ou Evita, a lideranga carismatica tipica do populismo latino-americano atin- giu uma das suas manifestacSes mais avancadas. No 33 Laurence Whitehead, op. cit.; Robert J. Alexander, The Bo- livian National Revolution, Rutgers University Press, New Bruns- wick, 1958; James M. Malloy, Bolivia: The Uncompleted Revo- tution, University of Pittsburgh Press, Pittsburgh, 1970; Antonio Garcia, Estructura Social y Desarrollo Latinoamericanos, Teira, Santiago, 1969; Antonio Garcia, “La Reforma Agraria y el Desar- rollo Social de Bolivia”, El Trimestre Economico, N° 123, México, 1964, pp. 339-887; Melvin Burke y James M. Malloy, “Del Popu- lismo Nacional al Corporativismo Nacional (El caso de Bolivia, 1952-1970)”, Aportes, N° 26, Paris, 1972, pp. 66-96. 11h peronismo também estiveram presentes setores milita- res e empresariais, além de alguns segmentos da classe média. Em sua primeira fase, o populismo argentino, amplamente apoiado por esses setores militares, do qual saira o proprio Cel. Peron, esteve comprometido com a idéia da “patria grande”. A grande Argentina, liderando uma parte da América do Sul era o sonho de alguns militares peronistas. Depois, os equivocos de Per6n, as contradigdes do préprio peronismo, as pres- sdes dos partidos antiperonistas e o imperialismo en- fraqueceram o governo peronista dos anos 1946-55, Alids, na histéria do peronismo podem distinguir-se varios periodos, dentre os quais os seguintes: a) a for- macao do movimento e os primeiros tragos de sua ideo- logia, nos anos 1943-45; b) os dois governos de Perén, em 1946-55; c) o peronismo na oposi¢ao aos governos militares e civis dos anos 1955-73; d) 0 governo pero- nista de Campora, em 1973; e) o ultimo governo de Perén, em 1973-74; f) o governo da vitiva de Perén, Maria Estela Martinez de Perén, iniciado em julho de 1974. Os varios periodos correspondem obviamente a distintas correlagdes das forgas politicas e econédmicas internas e externas do pais. E conveniente lembrar, no entanto, que o Peroén de 1978-74, que reprime as alas de esquerda do peronismo, é um pouco o desenvolvi- mento do Peron de 1955 (na ocasiao do golpe contra o seu governo) que negocia com os golpistas para evitar que as massas entrem numa luta armada contra eles. Em 1955 foram os golpistas que reprimiram os setores mais radicais do peronismo, ao passo que em 1973-74 é © proprio Perén que poe em pratica essa politica. No conjunto, cresceu 0 movimento sindical latino- -americano em termos quantitativos como relativamente a participagao mais sistemdtica do proletariado em ati- vidades politicas, ou de significacao politica. Afinal de contas, 0 jogo politico com as classes assalariadas re- sultou também na politizacio dessas classes, em parti- cular o operariado. Essa politizagao, alids, tem sido uma das principais contradigdes do populismo latino- -americano. Pode-se dizer que ele despolitiza as classes sociais, ao politizar a alianga e a harmonia das clas- 115 Ati es acabam por ama- rdtica, entretanto, as class Al eens pouco mais a sua gomprestisse. 025, as situagdes respectivas, tanto a burguesa Cc re em 1961 ainda sao relativamente poucos ve operdrios sindicalizados. Mesmo na classe meee Boe fe Gioaliza cao. nao cresceu bastante, 1 copper ao-de-obra ativa. Toma! © aumento da mao-de-ol a Te riados, esti dos os trabalhadores assalariado’ = ae eee dez por cento estavam sindicalizados nesse ant Vejamos os dados da Tabela VI. TapeLa VI TAS § SINDICATOS TRABALHIS' Le] mv enttien Latina: 1961) pa Membros Argentina ao 000 100. ae 1.000. a8 ra Colémbia 125,000 Costa Rica 800.000 Gite See ile 15. Equador 15.000 Guatemala 25.000 coenise 1.000. tea éxico 15. poe, 200. He eru 25. Salvador 75.000 eee a 250.000 en —_—_. TOTAL 6.555.000 i icado em Politica, |. Alexander, em artigo publicado em , Gt Raber oie ter Tabela repraduzide, no lio ores, izado ildred Adams, América : nizado por ered. do Permando Castro Ferro, Zahar Gaitores, Rio de Janeiro, 1964, p. 189. Fonte: 116 Ocorre que 0 sindicalismo é apenas um denfre os varios sistemas organizatérios da participagaio politica das classes assalariadas. Outro é 0 partido politico. Na pratica, a maquina politica do Populismo compunha-se do sindicato, partido e burocracia estatal, ou ministé- rios e secretarias de governo. Em todos OS casos, isto 6, no México, no Brasil e na Argentina, as organizagGes politicas populistas desenvolveram-se em Oposigéo ou a margem das organizag6es de esquerda e direita. No mesmo sentido, criaram técnicas politicas prdprias e de- senvolveram um estilo de lideranga particularmente demagégico. A demagogia foi antes uma técnica de arregimentagao politica do que uma técnica de politiza- cao. No curso das campanhas e lutas realizadas pelo populismo, no entanto, a politizacao cada vez mais am- pla foi um resultado inesperado e importante desse processo politico. No conjunto, pois, 0 populismo en- volvia organizagées e técnicas Politicas peculiares, as vezes bastante distintas das preexistentes, & direita ou & esquerda. E o sindicato foi Sempre um elemento b4- sico da sua maquinaria. Somente uma parte muito restrita das massas po- pulistas esteve preocupada com a democracia propria- mente dita. Para a grande maioria dos adeptos passi- vos e ativos do populismo, 0 que estava em jogo era a ascen¢éio econémica e social. Em plano secundario, colocavam-se 0 acesso A educagao elementar e a demo- cratizagfo das organizagdes e relagdes sociais. Em ge- tal os ideais democraticos eram preconizados por se- tores da classe média ou grupos de oposicio na classe dominante. Na maioria dos casos, aS campanhas e lutas populistas contra a oligarquia e o imperialismo, belo _desenvolvimentismo nacionalista, conduzia a ex- Panséo do poder Executivo ou a ditadura disfarcada ou aberta. Foi o autoritarismo mais Ou menos velado que predominou no cardenismo, varguismo, peronismo, ve- lasquismo e nos governos Estensoro-Siles. Estava em jogo uma estratégia politica de desenvolvimento econé- mico nacional, que exigia O remanejamento das estru- turas de poder. Modificavam-se as Telagdes entre o Estado e a sociedade, no todo e em suas partes. Nessa 117 i 4o, a burguesia em geral acabou por manter a Sea eeaaotie sobre as outras forgas politicas combinadas no pacto populista. Acontece que nesse jogo audacioso de alguns setores Ga classe dominante com as massas estavam em questao tanto o desenvol- vimento capitalista como 0 socialista. _Como a politica de massas nao deixou de envolver ou influenciar sindi- catos, partidos e movimentos de esquerda, a possibili- dade da radicalizagio de esquerda foi sempre evitada com certa dose de autoritarismo ou violéncia reacio- naria. E quando a propria politica de massas desenvol- veu bastante a politizagao dos trabalhadores industriais, além de outras categorias sociais, como na Argentina, Equador, Bolivia e Brasil, o golpe de Estado resolveu © impasse. ms " . Em todas essas experiéncias nacionais, as esquer- das estavam presentes, mesmo quando fora das orga- nizacdes populistas. Partidos e sindicatos socialistas e comunistas estiveram dentro da politica de massas, como no cardenismo, varguismo, velasquismo e gover- nos Estensoro-Siles. Ou entao, permaneceram como forga politica ativa fora do movimento de massas, como no peronismo. De qualquer forma, as esquerdas estavam presentes no contexto politico populista, em cada pais. Inclusive mantiveram uma linha critica, em relagéo a esses movimentos. Mesmo quando estavam inseridas no interior do aparelho politico do governo populista, as esquerdas mantiveram uma posicao mais ou menos critica. E preconizavam o avango da luta rei- vindicatéria além dos alvos especificos do populismo. Para elas, por exemplo, a participagao crescente do Es- tado na economia, sob todos seusner os: seria um re- isi transica ra 0 socialismo. ees Sisco esquerdas comprometeram-se bastante com as organizagGes, as técnicas e os estilos de lideranca do populismo. Isso ocorria em nas épocas “normais”. Nos momentos criticos, entre- tanto, nfo conseguiam desvencilhar-se dessa tecnologia politica. Diante da lideranga demagégica, por exemplo, as esquerdas nao chegavam a propor e difundir um es- tilo de lideranca préprio, fundado na compreensio dia- 118 lética da propria atividade politica. A sua interpretagao da situagaéo politica, nacional e internacional, ficava vinculada ou dependente da interpretagéo elaborada pelas outras forgas do populismo. O desenvolvimentis- mo nacionalista, combinando interesses de grupos e classes sociais heterogéneos, foi mais poderoso do que © radicalismo tedrico da maioria dos partidos, sindica- tos e movimentos de esquerda. Em muitos casos, estas organizacOes foram absorvidas pela politica de massas, em nome da alianga tatica. Numa frase, as for¢as so- cialistas e comunistas, dentro e fora do populismo, es- vaziaram a dialética do principio da contradicao, trans- formando-a numa teoria das reformas sociais. Quando se apresentavam as situagdes de tipo revoluciondrio, essas forgas néo contavam senao com uma versio de- teriorada da teoria revoluciondria. Na vigéncia da politica de massas, a classe operd- tia geralmente foi levada a lutar muito mais contra os inimigos do seu inimigo. Nessas épocas, a luta contra a oligarquia latifundidéria e o imperialismo foi coloca- da em primeiro plano. O que era a luta principal, para a burguesia interessada no mercado interno, o proleta- riado foi levado a tomar como a luta principal também para si. E inegdvel que as organizacoes e liderancgas politicas de esquerda atuaram de modo decisivo nesse processo de inversao de meios e fins, ou de taticas e estratégias. Em conseqiiéncia, quando a burguesia se volta contra ele, o proletariado nao esta preparado para reagir de modo congruente com a sua situagao de classe. Surpreende-se com a “confusao” entre os varios inimi- gos. Surpreende-se com a alianca entre o seu aliado de ontem e os inimigos do seu inimigo. E que o pro- letariado nao se dera conta da paulatina transformacao de uma alianga tatica em um compromisso estratégico. Reificava-se a alianca tatica preconizada pelas esquer- das reformistas. Por essas razGes, quando ocorre o golpe de Estado (contra Vargas, em 1954, contra Peroén, em 1955, con- tra Goulart e Paz Estensoro, em 1964) nem o proleta- riado nem a esquerda dispdem das organizagGes, lide- Tangas e interpretagdes adequadas para avancar politi- 119 e. Mesmo em situaciio critica extrema, 0 governo eee aceita apenas certas formas de cobertura politica, que as massas lhe podem propiciar: greves, comicios ou passeatas. Em nenhuma hipotese, 0s g0- vernantes populistas aceitam a defesa armada por parte das massas. Conforme teria dito Goulart, ao ser de- posto, quando lhe pediram armas para OS operarios € os estudantes que queriam defender o governo eleito constituciénalmente: “eles nfo sabem como usé-las”. A mesma coisa teria ocorrido com Perén, em 1955. 120 XI O ESTADO POPULISTA NA AMERICA LATINA, os governos populistas insta- Jaram-se por varios meios. Lazaro Cardenas, em 1934, e Juan Domingo Perdn, em 1946 e 1951, assumem o po- der por via eleitoral, nos quadros institucionais da democracia representativa. Gettilio Vargas, por seu lado, assumiu o poder em 1937 por meio do golpe de Estado e em 1951 por intermédio das eleicdes, segundo as normas da democracia representativa. Em 1961, na qualidade de vice-presidente da Revolugao, Joéo Goulart deveria assumir o governo, devido & remtncia do pre: sidente Janio Quadros. Mas os interesses contrarios ao populismo puseram em andamento um golpe de Estado, para impedir a posse regular do vice-presidente. Diante dessa situagaio, as forgas populistas e de esquerda or- ganizaram um amplo movimento popular, impedindo o desfecho do golpe e garantindo a posse de Goulart. Em 1952, na Bolivia, Victor Paz Estensoro alcanga 0 poder por via da revolugao organizada e chefiada pelo Movi- miento Nacionalista Revoluciondério (MNR). Velasco Ibarra, nas cinco vezes em que governou o Equador, entre 1934 e 1972, tanto venceu eleicdes democraticas como deu golpes de Estado. Apesar de ter sido deposto por um golpe militar, em 1955, em 1973 Per6n foi eleito democraticamente e reassumiu a presidéncia da Repu- blica Argentina com o beneplicito de antigos adversd- rios e amplo apoio das massas peronistas. Assim, nao 121 nha um modo caracteristico de conquisia do poder por parte das forcas populistas. Essa diversidade de modos de formagao de gover- nos populistas coloca-nos desde jé um problema. As ‘vezes o governo é obrigado a funcionar segundo as nor- mas institucionais: preexistentes; ou entéo nao possui forca suficiente para modificar as instituig6es politicas segundo as exigéncias do seu programa e as tendéncias das forcas sociais e politicas que o constituem. Outras vezes, no entanto, o governo populista consegue mudar parcial ou amplamente as instituigdes e as regras do jogo politico, instaurando nao s6 um tipo de regime mas também um aparelho estatal em conformidade com as exigéncias do pacto populista. Vargas, nos anos 1937-45, remodelou o aparelho estatal de acordo com as exigén- cias da ditadura populista. Mas em 1951-54 ele teve de governar nos quadros da democracia representativa. Cardenas, nos anos 1934-40, jd encontrou o sistema Es- tado-partido-sindicato preparado; mesmo assim tratou de aperfeigod-lo. Esses e outros exemplos mostram que nem sempre o governo de base populista se constitui num Estado populista caracterizado. Em poucos casos © governo populista teve condicGes para conformar 0 aparelho estatal do modo completo aos seus designios. # Obvio que essa maior ou menor adequagao das estru- turas de poder ao exercicio do poder 6 um problema que envolve tanto a correlagéo de forgas vencidas pelo po- pulismo como a propria correlacaéo de forcas populistas. Os varios experimentos populistas latino-americanos, entretanto, permitem delinear o que se poderia enten- der por Estado populista. Eo que veremos a seguir, de modo breve. Nao é necessdrio recordar aqui as condigées sociais, politicas e econdmicas especificas que estavam na bese do populismo, visto como governo, regime ou Estado. Convém sumariar, no entanto, alguns aspectos da tran- sicdo histdrico-estrutural no seio da qual surge 0 po- pulismo. Em especial, parece-nos conveniente sintetizar as mudancas havidas nas estruturas de poder, nessa época. Deste modo disporemos de elementos minimos indispensdveis 4’ compreensio do contexto social, poli 122 tico e econémico em que o Estado populista se torna um fato importante na histéria de alguns paises da América Latina. Na América Latina, entre 1930 e 1950, expandi- Tam-se enormemente Os poderes do governo, rela- tivamente @ economia ou as funcgdes econdédmicas do Estado. Na maioria dos paises latino-america- nos, a experiéncia da depressao mundial provocou a criagao de instrumentos financeiros anticiclicos, bem como a instituigéo de grande parte dos regu- Jamentos e controles da economia que caracteri- zam as politicas econdmicas no mundo contempo- réneo, Em varios paises tomaram-se medidas para “nacionalizar” a economia, reduzir as vulnerabili- dades criadas pela superdependéncia do mercado mundial e em favor da participacéo na vida eco- némica moderna. Tais medidas abrangeram desde as leis relativas ao emprego, limitando o ntimero de estrangeiros que poderiam ser ocupados por empresas estrangeiras, até a criagdo de instituigdes para o desenvolvimento econémico, como, por exemplo, a Corporacién de Fomento do Chile, pas- sando por restricdes as remessas de divisas e lu- eros de firmas estrangeiras. . . AS novas constituigGes dos paises da regiao in- cluiam principios arrojados, quanto aos direitos so- ciais, econdmicos e politicos dos cidadaos. ... Cria- ram-s¢ programas destinados a estender a assis- téncia & agricultura, desde a regulamentacio de precos, por meio de instituigdes especializadas de crédito, até aos programas de pesquisa e exten- s4o. Criaram-se também legislacdes trabalhistas abrangentes, sistemas de mediacio nas disputas trabalhistas, seguros sociais e programas de satide publica... Assim, as ideologias nacionalistas e reformistas nao deixaram de influenciar as funcdes econdmi- cas do Estado na América Latina, Entretanto, sal- vo em dois ou trés casos, elas nao eliminaram as 123 antigas fungdes econédmcias do Estado; acrescen- taram-se umas 4s outras. ... Os papéis econdmi- cos do Estado latino-americano tornaram-se, pois, heterodoxos, ambivalentes, contraditérios. Ao mes- mo tempo que o Estado adotava politicas consen- taneas com os interesses das novas forgas, ele pro- curava manter o velho sistema de relagées inter- nacionais e proteger os interesses preexistentes na sociedade 1. Os interesses politicos e econédmicos das nascentes burguesias industriais nacionais combinam-se tempora- riamente com os interesses de amplos setores da classe média (em especial a burocracia civil e militar), do pro- letariado nascente e de grupos que comp6em as profis- s6es liberais. Essa convergéncia favorece a organizacao de movimentos politicos yoltados para a emancipacao e diversificagao das economias dependentes. Esses mes- mos interesses estéo empenhados, ainda que de modo desordenado e divergente, na reformulagao das insti- tuigGes politicas, econdmicas, educacionais e outras, ademais das relagdes econémicas e politicas externas. © populismo e o nacionalismo desenvolvimentista sac desdobramentos dessas politicas. Os governos de La- zaro Cardenas, nos anos 1934-40, de Gettilio Vargas, em 1930-45 e em 1951-54, de Juan Domingo Perén, no pe- riodo de 1946-55, e de Estensoro-Siles, nos anos 1952-64, sao manifestacdes tipicas, ainda que dispares, dessas tendéncias. Essas experiéncias revelam diferentes mo- dalidades nacionais de combinagio entre o desenvolvi- mento econémico capitalista, particularmente a indus- trializagdo, e a politica de massas, seja na democracia populista seja na ditadura populista. Nesse contexto hist6rico, o Estado populista pode parecer como o centro de poder de um sistema de for- cas heterogéneas. As varias classes sociais urbanas — destacando-se a burguesia industrial e o proletariado 2 Gharles W. Anderson, Politics and Economie Change in Latin America (The Governing of Restless Nations), D. Van Nostrand Company, Princeton, 1967, pp. 42-43. 124 nascentes ou em expansio — conjugam suas forgas po- liticas para conquistar, manter e ampliar seu poder. Geralmente essa “alianga de classes” se faz contra os remanescentes mais recalcitrantes das burguesias agro- pecudria, comercial e financeira tradicionalmente vin- culadas @ economia primaria exportadora e ao imperia- lismo. As vezes, alguns setores dessas forgas politico- -econdmicas aliam-se aos novos governos; inclusive re- formulam ou ampliam os seus lagos de classe. Com freqiiéncia, pois, os regimes populistas apoiam-se numa constelagéo de forcas politicas heterogéneas e virtual- mente antagénicas. Todavia, para apanhar melhor o cardter do popu- lismo, particularmente nos casos em que ele se torna governo e influi de modo as vezes decisivo na organiza- gao e funcionamento do aparelho estatal, é necessario que examinemos outro aspecto do problema. Ou seja, é conveniente que vejamos como se dao certos vinculos entre o Estado e a sociedade, sob 0 populismo. Uma das peculiaridades do Estado populista é a combinagao sui generis dos sistemas de mobilizagao e controle das massas assalariadas urbanas — quando nao também rurais — com o aparelho estatal, especifi- eamente o poder Executivo. Diferentemente do que ocorre na “democracia representativa”, quando tende a hhaver uma separacio nitida, ainda que nao absoluta, entre o Estado, o partido do governo e, portanto, as ba- ses populares deste, no populismo ocorre uma combina- cio singular entre o Estado, o partido governamental e o sistema sindical. % verdade que tanto no Estado socialista como no Estado fascista procura-se harmonizar o apoio politico das massas assalariadas com o aparelho estatal, pela mediagio do partido. Ocorre, entretanto, que no Estado socialista essa ligacZo é feita segundo as exigéncias da ditadura do proletariado e da socializacaéo dos meios de producao. Ao passo que no Estado fascista a combina- ¢&o se realiza de acordo com as exigéncias da ditadura da burguesia e do capitalismo monopolista. Diversamente do que ocorre nos Estados socialista e fascista, ou ma democracia representativa, no po- 125 pulismo o sistema de poder Estado-partido-sindicato apdiase na alianga de classes, sob a égide direta ou mediatizada da burguesia. E importante fixar aqui a idéia de coalizao de classes, ou forcas politicas hetero- géneas, que caracteriza o pacto populista. O Estado po- pulista, ao contrdrio do socialista ou fascista, nao é o resultado de um agravamento excepcional das contra- digdes e lutas entre a burguesia e o proletariado. Ele surge das contradigdes geradas no seio da classe do- minante (burguesias agropecudria, comercial, financei- ra e industrial) em combinagio com os antagonismos entre essas fragdes e as outras classes sociais, na crise da economia primdria exportadora. Mesmo no México, onde o processo revoluciondrio foi bastante complexo, envolvendo praticamente todas as classes sociais, 0 car- denismo nao chegou a ser um produto das lutas entre a burguesia e o proletariado urbano e rural, ainda que esse antagonismo estivesse presente na situagao. Quan- do Cardenas assume o poder, em 1934, o campesinato e o operariado estavam sob controle, isto é, a burgue- sia, os militares e a classe média j4 haviam controlado © poder e dado ao aparelho estatal uma feicéo conve- niente aos seus interesses de classe. Como o seu poder nao era suficientemente forte, adotaram politicas de cunho populista. No jogo com as massas assalariadas, 0 governo po- pulista 6 obrigado a pdr em prdtica ou estabelecer as condigées institucionais minimas ao exercicio da cida- dania, por parte dessas massas?. A sindicalizagaio, as 2 “As massas nfo podem ser tratadas como objeto puramente passivo da administracdo, pois que ao tomar posi¢éo, de algum modo e ativamente manifestam também o seu peso”. Cf. Max Weber, Heonomia ¢ Societd, Vol. Il, p. 767, citado por Umberto Cerroni, “Para una teoria ‘del partido politico”, em H. Cerroni, L. Magri, M. Johnstone, Teoria Marzista del’ Partido Politico, Cuadernos de Pasado y Presente, Cérdoba, 1971, nota 31, pp. 144- 145, Quanto & questdo da conquista da cidadania pelas massas assalariadas, consultar também: T. H. Marschall, Cidadania, Classe Social e Status, trad. de Meton Porto Gadelha, Zahar Hditores, Rio de Janciro, 1967, esp. cap. III: “Cidadania e Classe Social”; Rinhard Bendix, Nation-Building and Citizenship, Anchor Books, New York, 1969, 126 férias remuneradas, a assisténcia médica, a protegio 4 operdria gestante e &@ maternidade, a escola primdria gratuita, o voto nas eleigdes municipais, estaduais e na- cionais, a protecdo dos cdédigos nas disputas com os empregadores, os locatarios e as gentes, a liberdade de ir-e-vir so alguns dos direitos minimos aos quais as massas passam a ter acesso, ainda que de modo desi- gual e incompleto. Em especial, a medida que se for- malizam e poem em prdtica as normas de oferta e de- manda de forga de trabalho no mercado, estabelecem-se também as condicGes sdcio-culturais e politicas indis- pensdveis & cidadania. Assim, a carteira profissional do trabalhador brasileiro, por exemplo, é apresentada pelo governo, em 19438, como instrumento de “qualificacao civil”, além de elemento de habilitagao profissional e de controle de trabalho, “constituindo mesmo a primei- ra manifestacfio de tutela do Estado ao trabalhador, antes formalmente “desqualificado” sob o ponto de vista profissional”*. No populismo, pois, os humilha- dos e ofendidos, os homens simples, ou los olvidados, no regime oligdrquico, adquirem alguns direitos. E Obvio que esses direitos e deveres sito também as con- dicdes e os limites da participagio politica dos assala- riados urbanos nas campanhas e lutas relativas tanto aos problemas de classe como aos assuntos nacionais. 8 Consolidagao das Leis do Trabatho, deereto-lei n° 6.452, de 1.° de maio de 1943, “Exposi¢ao, de Motivos”, esp. item 26. Quanto &s relagdes entre Estado ¢ sindicalismo na América Latina, con- sultar: Victor Alba, op. cit.; Robert J. Alexander, A Organizagao do Trabalho na América Latina, Civilizagéo Brasileira, Rio de Ja- neiro, 1967; Joe C. Ashby, Organized Labor and the Mexican Re- olution under Lézaro Cardenas, The University of North Carolina Press, Chapel Hill, 1967; Vicente Lombardo Toledano, Teoria y Practica del Movimiento Sindical Mexicano, Editorial del Magis- terio, México, 1961; Jorge Ahelardo Ramos, La Bra del Bonapar- tiem, Editorial Plus Ultra, Buenos Aires, 1972; Robert J. Ale- xander, Labor Relations in Argentina, Brazil, and Chile, McGraw- -Hill Book, New York, 1962; Azis Simao, Sindicato e Estado, Do- minus Editora, S, Paulo, 1966; José Albertino Rodrigues, Sindicato e Desenvolvimento no Brasil, 30 Européia do Livro, 8, Paulo, 1968; Francisco C. Weffort, Sindicatos ¢ Politica, S. Paulo, 1972, edigho mimeografada, 127 Mesmo assim, esses direitos adquiridos, juntamente com a participagao efetiva das massas nas quest6es po- liticas, impressionam os remanescentes da oligarquia e os varios setores do imperialismo, levando-os a leyantar a bandeira da luta contra a “reptiblica sindicalista” e o “comunismo”. Conforme a constelagdéo de forgas politicas no pais ena ocasiao, 0 regime populista pode assumir uma co- notagado mais ou menos autoritéria. Independentemente dos direitos reconhecidos ao trabalhador, como traba- lhador, em primeiro lugar, e como cidadéo, em segundo, o regime pode assumir forma democratica ou ditatorial. Mas a ditadura populista nao implica na ditadura da burguesia ou dos assalariados, e muito menos na da classe Operdria. Ela mantém o cardter policlassista, ainda que nado em todos os niveis do poder. O Estado 6 apresentado pelas forgas que se acham no poder como Se representasse, ao mesmo tempo, todas as classes e grupos Sociais, mas vistos como “povo”, como uma co- letividade para a qual as tarefas do nacionalismo desen- volyimentista pacificam e¢ harmonizam os interesses e os ideais. O Estado é proposto e imposto 4 sociedade como se fora o seu melhor e tinico intérprete, sem a mediagao dos partidos. “Voto nao enche barriga”, teria dito Vargas, durante o Estado Novo. Na ditadura po- pulista, o povo teria no Estado o seu guardiao, intér- prete, porta-voz e realizador. Para o povo, entretanto, o Estado somente se torna real quando se personifica nas palavras, imagens ou atos de um chefe. Em grande parte egressas das estruturas de poder de tipo oligar- quico e sem experiéncias politicas notaveis, no quadro dos partidos politicos urbanos, as massas alcangam a compreender 0 Estado apenas pela mediacio do chefe de governo, Ou OS seus prepostos: ministros, secreta- Tios, enviados especiais, homens de confianga ou pele- gos. A identidade Estado-chefe-povo nfo deixa lugar & diversidade das classes sociais e seus antagonismos. Pouco a pouco, essa identidade impregna tanto as rela- goes de producado como as relagGes politicas em geral. 128 O Governo nao deseja, em nenhuma hipdtese, 0 dissidio das classes nem a predominancia de umas sobre outras. Da fixagio dos preceitos do coope- rativismo na Constituigao de 10 de novembro (1937) deverd decorrer, naturalmente, o estimulo vivificador do espirito de colaboragéo entre todas as categorias de trabalho e de produgdo. Essa co- laboracio sera efetivada na subordinagao ao sen- tido superior da organizagio social. Um pais nao 6 apenas um conglomerado de individuos dentro de um trecho de territério mas, principalmente, a unidade da raca, a unidade da lingua, a unidade do pensamento nacional ‘. O povo n&o conhece o Estado descarnado, redu- zido a simbolos e a esquemas juridicos. O Estado popular é o Estado que se torna visivel e sensivel no seu chefe, 0 Estado dotado de vontade e de virtudes humanas, o Estado em que corre nao a linfa da indiferenca e da neutralidade, mas o san- gue do poder e da justiga. O povo e o Chefe, eis as duas entidades do regime ®. A democracia populista tem a singularidade de ex- cluir, de modo nitido, as forcas nao populistas. Isto é, essa democracia ndo abre a todas as classes e grupos da sociedade nacional as mesmas oportunidades de acesso ao poder. Ela tende a excluir as outras forgas politicas, ou a aceitdlas somente pela ades&ao completa. Se os partidos da coalizio populista possuem maioria no Le- 4 Getilio Vargas, A Nova Politica do Brasil, Vol. V, Livraria José Olympio Fditora, Rio de Janeiro, 1938, p. 205. Citacao ex- traida do capitulo sobre “O Estado Novo e as classes trabalha- doras”. 5 Francisco Campos, O Estado Nacional (Sua estrutura, seu con- tetido ideolégico), Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1940, p. 218. Francisco Campos foi talyez o principal idedlogo da ditadura do Estado Novo, vigente no Brasil em 1937-45. Con- forme disse ele em 1987: “O novo Estado brasileiro organizaré @ economia nacional em linhas corporativas”. Citado por A. F. Gesarino Jtnior, Direito Social Brasileiro, Livraria Martins, S80 Panlo, 1940, p. 100. 129 gislativo, as oposigdes ficam reduzidas ao direito do discurso. Quando as oposigdes conseguem maioria no Legislativo, o Executivo pode esquecer as suas decisOes ou aplicd-las mal. Nesse regime, a cooptagaio 6 prova- velmente uma das técnicas mais eficazes, dentre as em- pregadas para enfraquecer ou desmoralizar as forgas po- liticas da oposigéo. Na democracia populista, de modo semelhante ao que ocorre na ditadura populista, o governo e 0 chefe tratam de identificar-se principalmen- te com as massas, isto 6, as classes assalariadas consi- deradas como poyo. Esse é um dos elementos ideold- gicos principais da “democracia social” de cunho popu- lista. Ou seja, nesse regime também tende a predomi- nar a identidade chefe-povo-governo-Estado, além dos partidos politicos e das normas da democracia represen- tativa. No governo Perdn, dos anos 1946-55, por exem- plo, constituiu-se um regime peculiar, no qual combi- nayam-se algumas normas formais da democracia re- presentativa e a hipertrofia do Executivo, este altamente identificado com o chefe do governo. Tanto assim que varios intérpretes argentinos e estrangeiros referem-se & “ditadura peronista”, ou mesmo “fascismo criolo”, co- locando em segundo plano as vitdrias eleitorais de Peron em 1946 e 1951. No México, sob Cardenas, os vineulos do governo com os operdrios e os camponeses inegavelmente mantiveram preeméncia sobre os vinculos com as outras categorias sociais. Na base da doutrina da harmonia de classes estava uma preocupacao perma- nente e prioritdria com a legitimagao das estruturas e diretrizes do poder politico centrado e personificado em Cardenas. A democracia social é a vontade de formas (polf- ticas novas) que o povo tem manifestado através de suas facanhas, até conseguir imp6-las com oO triunfo da Revolucao °. © Lézaro Cardenas, “Mensaje a la Nacién”, Torreén, 30 de no- vembro de 1936. Reproduzida em: Lazaro Cardenas, Ideario Po- litico, seleceién y presentacién de Leonel Durdn, Ediciones Era, México, 1972, p. 61. 130 Governo e camponeses; governo e operdrios; go- verno e professores farao uma sociedade melhor m, O Partido Nacional Revoluciondrio (depois Parti- do de la Revolucién Mexicana) foi criado com os sinceros propésitos da fraternidade coletiva, com a sa intenc&o de canalizar a opiniao das massas e com o fundamento légico de manter a unidade revolucionaria. Suas tendéncias, como organizagao politica, foram claramente estabelecidas para in- centivar a fungio civica da participacéo eleitoral e garantir a autenticidade do voto, eliminando conflitos desnecessérios entre os componentes do regime revolucionario...® Ocorre que as forgas politicas do populismo ten- dem a conferir ao Estado fungdes peculiares, que apa- recem tanto em stia versio democratica como na dita- torial. Dentre essas funcdes, uma sobressai as outras. Da-se preeminéncia & organizagao sindical vinculada ao aparelho estatal. Isto significa que as organizagdes nao populistas sio marginalizadas ou mesmo suprimidas. ‘Ao mesmo tempo, o governo reformula os requisitos funcionais e organizatdérios do sindicalismo, para man- té-lo dependente do aparelho estatal e limitado as fina- lidades da politica populista. Vejamos dois exemplos. No México, os sindicatos foram transformados pela lei em instituig6es semi-estatais e, como nao podia ser de outro modo, adquiriram um cardter semitotalitario. No entender dos legisladores, a estatizacao dos sindicatos foi realizada em favor dos trabalhadores, com o objetivo de assegurar- -Ihes certa influéncia na vida do governo e da eco- nomia®. 7 Lézaro Cardenas, “Palabras en Gudalupe”, 31 de margo de 1937. Ibidem, p. 61. ® Lézaro Cardenas, “Discurso al ser proclamado candidato presi- dencial”, 6 de dezembro de 1933. Ibidem, p. 67. ® Leon’ Trotsky, “Los Sindicatos en la Hpoca del Imperialismo”, escrito em 1940, ‘Citado por Adolfo Gilly, La Revolucién Interrum- 137 Na época peronista, produziu-se uma verdadeira hipertrofia da burocracia sindical. Anteriormente, um ou dois membros da comissao diretora de cada Sindicato eram funciondrios, Agora, empregam-se nao apenas todos os seus membros como também todos os de cada subcomissio. Além disso, empre- gam-se funciondrios administrativos. O ntimero de empregados em cada sindicato chegou a oscilar entre 80 e 200. No presente, pois, a burocracia sindical tem um importante peso no movimento operdrio, especialmente nas organizagdes em cuja direcéo encontram-se dirigentes reformistas e pe- ronistas 1°. A burocratziagio do sindicalismo, segundo as ra- zoes do Estado populista, obviamente acarreta uma delimitacéio bastante nitida das condicdes de atuacgio politica das classes assalariadas. Na medida que a cupula sindical se constitui como burocracia vinculada ou dependente do aparelho estatal, delimitam-se as suas possibilidades de organizacio, iniciativa, lideranca e mesmo interpretacfo dos interesses da classe por ela representada. Essa burocratizacéo implica na “despo- litizagao” da atividade sindical. Isto é, 0 sindicalismo estatal politiza o proletariado segundo as diretrizes e os limites estabelecidos pelo regime populista. Na pra- tica, todavia, essa modalidade de politizacao nao pode impedir que as massas populistas assimilem a seu modo a propria experiéncia politica. Na democracia populista, 0 sistema Estado-sindica- to n&o pode ser téo monolitico como na situacéo dita- pide, 2.9 edicién, Ediciones El Caballito, México, 1972, p. 352. Consultar também: Joe C, Ashby, Organized Labor and the Me- zican Revolution under Lizaro Cérdenas, The University of North Carolina Press, Chapel Hill, 1967; Anatol Shulgovsky, México en la Encrucijada de su Historia, trad. de Armando Martinez Ver- dugo, Fondo de Cultura Popular, México, 1968, 20 Alexei Rumiantsev, La Estructura de la Clase Obrera do los Paises Capitalistas, Editorial Paz y Socialismo, Praga, 1968, pp. 184-185. 132 torial. Por um lado, 0 sindicato nao populista precisa ser tolerado, dando origem a subsistemas sindicais criados por outras organizag6es politicas ou por assala- riados independentes das orientagdes populistas. Nesse caso, Os partidos burgueses, bem como o socialista e oO comunista, conquistam certa liberdade de acao, & margem do sindicalismo populista. Por outro lado, na democracia populista o proprio governo é obrigado @ organizar o sistema de poder incluindo o partido po- pulista ou os partidos aliados no populismo. Tanto para atuar no setor sindical como para agir no Legis- lativo, segundo as normas da democracia representati- va, O governo populista acaba por desenvolver e apoiar- -se amplamente também no partido, ou numa coalizio de partidos. Na medida em que o Congresso Nacional é uma esfera de poder — mais ou menos ilusdria ou real, conforme a ocasiac — as decisdes politicas e eco- némicas do Executivo precisam da sua sancéo. Ao mesmo termpo, 0 governo nfo pode reduzir ou alterar os seus lagos com o sindicalismo, que é uma das suas fontes de poder. Esse 6 0 contexto em que se desen- volve o sistema Estado-partido-sindicato, como colu- na-mestra do poder populista. Outra caracteristica do Estado populista — demo- crdtico ou ditatorial — tem sido a relagio estabelecida com os assuntos econémicos, internos e externos. E claro que o poder ptiblico na América Latina ja vinha ampliando a sua drea de acéo mesmo antes da insta- lagao de governos populistas. As crises da economia primdria exportadora, com a queda no volume de tran- sagdes e particularmente dos precos, exigiam medidas financeiras imediatas, por parte dos governos nacionais. Esse fenémeno foi particularmente intenso na época da depressio econémica mundial iniciada em 1929. Ao lado das suas finalidades primordialmente anticiclicas, as medidas adotadas pelos governos de paises latino- -americanos tiveram repercussGes dinamicas em algumas esferas da economia nacional. Dentre essas conseqiién- cias, destaca-se 0 impulso 4 industrializacio substituti- 188 va de importagées *, Durante a Segunda Guerra Mun- dial e apds, o intervencionismo governamental conti- muou a crescer. Nos paises em que houve governos. Populistas, no entanto, a relacio do Estado com a economia adquiriu dimensdes amplas e talvez singula- res. Tomaram-se decisdes que alteraram as vezes de modo substancial esse relacionamento. Nacionalizaram- “Se empresas estrangeiras e reformularam-se as condi- Ges de entrada e saida de capital estrangeiro. Reser- varam-se alguns setores infra-estruturais da economia a empresas estatais ou mistas. O poder publico criou empresas ou incentivou a sua criacio em novos setores ou subsetores econémicos, Ao mesmo tempo, pu- nham-se em pratica outros regulamentos, relativamente aos movimentos de capital nacional e estrangeiro no pais, e estabeleciam-se critérios gerais e especiais, quan- to 4s condig6es de oferta e demanda de forca de trabalho no mercado urbano. Sob os governos popu- listas, o aparelho estatal adquire novas dimens6es, como forca produtiva. Mais do que apenas disciplinar e fazer respeitar as normas da atividade econémica, ele atua diretamente como agente econdmico. Em sintese Sob OS governos populistas a agao do Estado organi- Za-se de modo a orientar as atividades econémicas e a intensificar 0 processo de transformacio do excedente econémico potencial em efetivo. Ajustam-se reciproca- uJ. F. Normano, A Luta pela América do Sul, citado; George Wythe, Industry in Latin America, Columbia University Press, 1945; Santiago Macario, “Protectionism and Industrialization in Latin America”, Economie Bulletin for Latin America, Vol. IX, N.° 1, New York, 1964, pp. 61-101; Economie Commission for Latin America (ECLA), The Process of Industrial Development im Latin America, United Nations, New York, 1966; Celso Fur- tado, Formagdo Heonémica da América Latina, Lia Editor, Rio de Janeiro, 1969; Tulio Halperin Donghi, Historia Contempordnea de América Latina, Alianza Editorial, Madrid, 1970, 2° edicion, 312 Leopoldo Gonzilez Aguayo, La Nacionalizacién de Bienes Bx. tranjeros en América Latina, 2 vols,, Universidad Nacional Auto- noma de México, México, 1969; Pedro C. M. Teichert, Revolucion Econémica e Industrializacién en América Latina, Fondo de Cul. tura Economica, México, 1961, trad. de Florentino M. Torner. 184 m novos moldes, as estruturas politico-admi- eee e as tendéncias das forcas produtivas. Nessa perspectiva analitica, o populismo | aparece também como um modo de organizacio politica das relagdes de producéo, numa época em que se expandem as forgas produtivas e o mercado interno. 135 XIll CLASSES SUBALTERNAS E HEGEMONICAS DENTRE os tragos mais caracteristicos d - menos populistas, sejam eles movimentos de eee ra partidos politicos, governos ou regimes, sobressai o Paradoxo” da alianga de classes. Em todos OS casos, os fenédmenos populistas envolvem @ coalizio de clas. ses, ou de grupos sociais pertencentes a classes distintas, oO que Significa uma coalizéio de categorias virtualmen. te antagonicas. No populismo estao presentes setores da burguesia industrial e do proletariado urbano, mili- tares, grupos de classe média, intelectuais, estudantes universitarios €, em alguns paises, também camponeses e proletariado rural. Em nome da luta contra o atraso econdémico-social, a dependéncia excessiva da monocul- tura, os enclaves, a Oligarquia e o imperialismo, a polf- tica Populista preconiza a harmonia das classes sociais. Oo intento de devolver o pais ao povo traz consigo a necessidade de fortalecer os lacos de cooperacgao entre © capital e o trabalho, diluindo-se as linhas de classe. A paz social, apregoada por Cardenas, Perén e Vargas, entre outros lideres populistas, 6 a paz nas relacoes entre as classes sociais, encarada como pré-requisito das tarefas de emancipagio econémica do pais e generalizagao do _bem-estar social ao povo. Nessa época, a economia capitalista no México, Brasil e Argentina ingressa em nova fase de expansio. Ao mesmo tempo, as classes sociais nao s6 continuam a existir em sua 136 especificidade como amadurecem ainda mais os seus contornos. A historia do populismo, portanto, suscita um pro- blema fundamental, que pode ser proposto de modo breve. O paradoxo do populismo estéd em que ele se funda num pacto de classes sociais, ou os seus grupos mais ativos, que continuam a desenvolver-se como tais ao longo da duracéo do pacto. Por conseqiiéncia, a alian- ga das classes sociais envolvidas nesse tipo de politica nao se rompe apenas pelas divergéncias e antagonismos com as outras categorias sociais, ou devido as ambigiii- dades e incertezas das forgas populistas, quanto aos seus meios e fins. Quando se rompe a alianga populista, esta ruptura ocorre também, e as vezes principalmente, por causa das contradigées desenvolvidas entre as classes que compéem o proprio populismo. Tanto assim que o colapso do populismo — como na Argentina, Brasil, Bolivia e Guatemala, ou a sua evolucgdo para a direita, como no México — envolve sempre tanto um evidente ressentimento entre os membros da alianga preexisten- te como maior nitidez nos perfis de cada classe social. A questéo central, pois, é compreender como se da a Tuptura do pacto e em que medida essa ruptura revela ou nao as classes sociais que 0 compéem. Ainda que @ posteriori, a ruptura da coalizio, conforme ocorreu nos varios paises latino-americanos em que o populismo conquistou o poder, pode revelar a um so tempo: as condigées relativamente precdérias em que se verificou a alianga; o cardter nio harménico de uma alianga en- tre desiguais; o indicio de que as classes sociais nao se apagam, mas desenvolvem-se, no curso da alianga; ao longo da experiéncia populista as classes sociais ama- durecem as suas especificidades; e, por fim, a experién- cia populista corresponde a uma fase, sem dtivida peculiar, no desenvolvimento das relagdes de acomoda- cao e antagonismo entre as classes sociais participantes da alianga. Para esclarecer esse paradoxo dos governos e regi- mes populistas, pois, precisamos comegar por distinguir os dois niveis principais do populismo, como processo politico especifico de uma etapa das mudancas politico- 137 -econémicas em alguns paises latino-americanos. Se é verdade que o populismo 6 um movimento totalizante, integrando grupos e classes saciais na luta pelo poder e pelo desenvolvimento econémico, também é verdade que ele encerra contradigdes bdsicas. Nao é um movi- mento homogéneo, nem se desenvolve pacificamente. As suas contradigdes internas resultam, em Ultima ins- tancia, do fato de que num polo encontra-se a burguesia industrial, ao passo que em outro esté o proleta- riado industrial. Paradoxalmente, a alianca de classes, que é um dos fundamentos da politica de massas, tam- bém & uma raz3o importante das suas crises, declinio e colapso. O populismo da burguesia nfo 6 exatamente © populismo das massas assalariadas. Examinemos essa questaéo em alguns dos seus aspectos. Em primeiro lugar, destaca-se 0 populismo dos go- vernanies, das ctipulas do sistema politico-administra- tivo, dos politicos profissionais da burguesia, dos dema- gogos, dos pelegos. Ele envolve também setores da clas- se média, que fornecem quadros burocraticos, técnicos ou mesmo politicos & burguesia. Esse é 0 populismo que manipula ou instrumentaliza as massas. Ao lado dos apelos reformistas e da politica de bem-estar social, insiste na harmonia das classes sociais e na preeminén- cia do povo e da nacao. A luta pelo desenvolvimento econdmico, particularmente o industrial, depende da paz social, da harmonia entre a burguesia e o proleta- Tiado, da cooperacao entre o capital e o trabalho. Pode ser democratizante ou ditatorial, conforme as exigéncias das relagdes com o capital estrangeiro, as nacdes mais poderosas, a Oligarquia, as burguesias agrdrio-comercial e financeira, além da correlacio das suas proprias forgas. Em ultima instancia, o populismo das ctipulas bur- guesas produz ou acelera a formalizacao do mercado de forga de trabalho. Liberta os trabalhadores dos lacos patrimoniais ou comunitarios que impregnavam as re- lag6es de produgiio na sociedade agropecudria ou nos segmentos da economia determinados tradicionalmente pelo mercado externo. Com 0 tipo de politica de massas adotado pelo populismo ocorre provavelmente o ultimo 138 ato da dissociagaéo entre os trabalhadores e a proprie- dade dos meios de produciio, em especial no nivel da mentalidade dessas pessoas. Os processos sdcio-cultu- rais e politicos que acompanham a ressocializagio do trabalhador no ambiente urbano-industrial reduzem a importancia relativa do valor de uso, em beneficio do valor de troca. Em particular, os mecanismos inerentes ao consumismo — intensificado e generalizado_ pela acao da industria cultural — aceleram a adocgao do principio da mercantilizagaéo universal por parte dos trabalhadores. Desse modo, a politica do bem-estar social caminha de par em par com oO processo de mer- cantilizagio da forga de trabalho e das relag6es sociais em geral. r Fm concomitancia com a formalizac&o das relagoes de produgao, por intermédio da legislagao social e sindi- eal, ocorre 0 confisco salarial. A capacidade aquisitiva do saldrio apenas se mantém, caindo com freqiiéncia para varios setores operarios e elevando-se ligeiramente em alguns outros setores. Em certos paises, 0 salério mi- nimo e a inflagao conjugam-se na politica de poupanca monetaria forcada, comandada pela burguesia industrial e o governo. Em principio, 0 sal4rio minimo destina-se a proteger 0 trabalhador da pauperizagao generalizada. De fato, 6 o que se verifica, no ambito geral das rela- gdes de producio. Ao mesmo tempo, entretanto, os li- mites estabelecidos pela politica de saldrio minimo criam condigdes para que a inflagao funcione como me- canismo de captacio de uma parcela do salério dos trabalhadores em geral. Como mecanismo de confisco salarial, a inflag&éo caminha de par em par com o re- gime do salério minimo, ou 0 controle governamental dos nfveis salariais. Assim, a burguesia industrial, que representa uma das faces do populismo, provoca a rea- lizagio de poupangas forcadas que alimentam uma parte dos investimentos privados, na industria ou outros se- tores da economia. 7 No contexto da politica de massas, concebida ¢€ orientada pelas ctipulas burguesas, a classe operaria é jnduzida a lutar principalmente, ou exclusivamente, contra os inimigos dos seus inimigos. Esse 6 um dos 189 aspectos politicos mais importantes das aliangas entre classes sociais preconizadas e incentivadas pelos go- vernos de Cardenas, Perén, Vargas, Goulart e outros, Nesses casos, grande parte da esquerda reformista man- tém-se comprometida com essa politica, aconselhando a luta da classe operdria contra os inimigos dos inimigos desta. O combate contra a oligarquia, a burguesia agro- -exportadora e o imperialismo, que pode ser 0 combate principal, 6 apresentado como o tmico combate, con- sumindo a maior parte das forgas e recursos politicos do proletariado. As ilusdes do consumo crescente, bem como da mobilidade social apagam ou obscurecem, na conciéncia operdria, as contradigdes entre os seus in- teresses e os da burguesia. Muitas coisas confundem-se em suas mentes, em especial nas ocasides de maior .su- cesso do governo populista. Em situagdes criticas, entretanto, as liderangas burguesas do populismo abandonam as massas. Isto ocorre sempre que as Oposigdes estao muito fortes, a taxa de desenvolvimento cai demasiado, ou quando os trabalhadores avangam bastante em suas reivindicagdes e organizacio politicas. Foi o que se verificou na Argen- tina e no Brasil, por exemplo, dando lugar a golpes de Estado contra goyernos populistas. O que fez com que grupos e classes sociais de oposigaéo aos governos popu- listas apontassem as possibilidades ou a iminéncia de transformagao desses paises em “repuiblicas sindicalis- tas”, como nos meses que precedem os golpes, foi prin- cipalmente o intento de lutar contra o tipo de partici- pagdo politica que as massas estavam obtendo, nos quadros do populismo. Mais que isso, boa parte das Oposig6es estava chamando a atengao dos seus aliados atuais e pontenciais para os riscos — estes sim mais 1 “Uma classe tomar a si o encargo de resolver os problemas de outra classe é uma das muitas combinagSes préprias de paises atrasados”. Cf. Leon Trotsky, A Histéria da Revolugéo Russa, 8 vols. trad, de E. Huggins, Editora Saga, Rio de Janeiro, 1967; citacdo do primeiro volume, p. 28. Esse problema foi abordado primeiramente por Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto do Fartido Comnista, Editorial Vitéria, Rio de Janeiro, 1948, pp. 29, . e 61. 140 reais — de radicalizagdo politica das classes assalaria- das que participavam do pacto populista. Alids, esse foi um dos principais temas de mobilizagao e organizacaéo de grupos da classe média, além de setores militares e burgueses indecisos, nos tempos que precedem as depo- sigdes de Vargas, em 1945 e 1954, Arbenz, em 1954, Perdén, em 1955, e Goulart e Paz Estensoro, em 1964, Mesmo no México, sob 9 governo Cardenas (1934- 1940), houve um momento em que as facgdes burgue- sas da alianga cardenista abandonam a alianga multi- classista e submetem as massas trabalhadoras ao seu mando, exclusivamente segundo os seus interesses de classe. Isto ocorre precisamente apds a nacionalizacao da industria petrolifera, no ano de 1938. Quando as organizag6es operdrias e camponesas demonstram capa- cidade para avangar além dos quadros politicos conve- nientes 4s clipulas burguesas do cardenismo, 0 prdéprio Cardenas é levado a mudar o curso de suas relagdes com as massas. Um dos pretextos, ou motivos reais, é a irritagao do governo e empresarios norte-americanos causada pela nacionalizacao. Outro, obviamente, foi a forga politica revelada pelos trabalhadores, na ocasiao em que 0 governo necessitava de apoio popular para levar avante a deciséo de nacionalizar empresas gue nao queriam submeter-se as novas diretrizes do Estado Mexicano, Desde o principio, o cardenismo nao foi um fené- meno exclusivamente burgués, mas um movimento de massas trabalhadoras, camponeses e pequena burguesia, todos unidos com alguns representan- tes da burguesia nacional... Como o movimento permaneceu sempre sob a diregéo de grupos bur- gueses, as suas possibilidades progressistas esgota- ram-se depois de alguns anos. No fim do seu man- dato (1938-40), o préprio Cardenas teve que aban- donar de fato 0 seu papel de porta-voz dos interes- ses populares e atuar muito mais como drbitro, preconizando a colaboracéo entre as classes e.a “unidade nacional”, para conservar a paz social... Depois de 1938, a burguesia revoluciondria aban- It donou a sua alianca com as forcas populares, para consolidar as realizagdes e assegurar 0 seu mono- polio politico, submetendo as organizag6es popula- res mais diretamente ao seu controle e empregando © poder do governo menos para atacar os interes- ses dos privilegiados do que para manipular as massas *, _ Nas épocas criticas, os elementos burgueses do po- pulismo nfo admitem a continuidade da politica de massas. E que nessas ocasides a politizagio das massas Operdrias desenvolvese de modo intenso e generali- zado. Eles rompem com a sua condicg&éo de massa de manobra e conquistam as dimensdes de classe politica. Ao lado da organizacao Politica cada vez mais vigorosa, quando as confederagoes operdrias assumem preemi- néncia no cendrio nacional, ocorre uma conscientizagio repentina sobre 0 que so as faces obscuras do poder populista. Por isso, os setores burgueses da politica de M™assas preferem apoiar-se em outros grupos e instru- Mentos de poder. % nas ocasi6es de crise que as forgas armadas, o clero e a maioria da classe média reapare- cem como foreas politicas predominantes e adversas as mudangas de cunho estrutural. Nesses momentos, 0 en- fraquecimento politico e econémico da burguesia nacio- nal faz com que esta divida o poder com os outros grupos e classes sociais interessados na preservacao e desenvolvimento da ordem capitalista. B nessas ocasides que todos os grupos da classe dominante e os seus alia- dos apelam a estabilidade institucional, aos principios Fc 2 David L. Raby, “La Contribucién del Cardenismo al Desarrollo de México en la Epoca Actual”, Aportes, N.° 26, Paris, Octubre, 1972, pp. 31-65; citacéo das pp. 45-46. Consultar também: ‘Tayi Medin, Ideologia y Praxis Politica de Lazaro Cardenas, Siglo XX1 Editores, Méxieo, 1972; Joe C. Ashby, Organized Labor and the Mexican Revolution under Lazaro Cardenas, The University of North Carolina Press, Chapel Hill, 1967; Arnaldo Cordova, La For macién del Poder Politico en México, Ediciones Era, México, 1972, esp. cap. 8; Jorge Basurto, “Populismo y movilizacién de masaa en México durante el régimen cardenista”, Revista Mexicana de Sociologia, Vol. XXXI, N.° 4, México, 1969, pp. 853-892, 142 da hierarquia e da ordem, aos valores da civilizagdo ocidental e crista, etc. Em todas as situagdes realmente criticas, a burguesia nacional rompe os compromissos taticos com o proletariado e alguns outros setores do populismo, em beneficio das suas razdes estratégicas, dadas pela ordem capitalista. Num paradoxo aparente, para sobreviver, essa burguesia nacional abandona @ politica de hegemonia implicita no populismo e adota a@ Sua condigaéo subalterna, refazendo e fortalecendo os seus lagos com os seus inimigos de ontem. Em segundo lugar, coloca-se 0 populismo das pré- prias massas. Ele é desordenado, quanto as técnicas de agado, e pouco estruturado, quanto aos alvos. Colocado entre os partidos e os sindicatos, deixa-se confundir na burocracia estatal e sindical. Note-se que a burocratiza- géo ampla da vida sindical, na época do populismo, foi comandada pelas liderancas burguesas, ou os seus inter- medidrios. Em varios casos, como na Argentina, no Brasil e no México, essa burocratizacio vinculou todo o sistema sindical ao aparelho estatal. Sob muitos as- pectos, o proletariado deixou-se enredar no peleguismo, ou charrismo, e na participagio com freqiiéncia ilusdria no poder. Alids, a participagao dos sindicatos e confe- deragdes em lutas pelas reformas institucionais, bem como em campanhas de cunho nacionalista, eram os processos reais por meio dos quais criava-se a ilusdo de um poder politico inexistente ou bastante reduzido. Tomava-se 0 convivio com os governantes, na camara- dagem populista, como se fora participagcéo real nos processos decisérios. A consciéncia social das massas populistas natural- mente 6 bastante influenciada pelo desenvolvimento na- cionalista. Essa é a ideologia predominante, da qual participam todas as forgas sociais e politicas aliadas no pacto. Além disso, a consciéncia operdria, em par- ticular, encontra-se profundamente impregnada dos va- lores e padr6es sdcio-culturais inerentes a ressociali- zacéo no ambiente urbano-industrial. A propria partici- pacgéo em movimentos sindicais e politicos 6 uma aqui- sigdo recente de boa parte ou da maioria das massas assalariadas. Sob varios aspectos, a consciéncia operd- 148 ria esta dominada pela consciéncia de mobilidade social implicita na ideologia das cipulas burguesas. Em certo nivel, a consciéncia operdria encaminha-se no sentido determinado pela Mmercantilizagéo das relacdes de pro- dugéo e das relagdes sociais em geral. Em outro, a mesma consciéncia operdria esta povoada de imagens imprecisas e contraditdrias, de elementos magico-religio- SOs superpondo-se aos politicos de apego a valores cul- turais e padrdées de comportamento assimilados em si- tuag6es pré-urbanas e pré-industriais. As massas popu- listas n&o suportariam viver o tempo todo segundo as determinagdes do mercado, ou do principio do valor de troca, Voltam-se freqiientemente As atividades Teligio- Sas e lidicas, de compadrio e companheirismo, produ- zidas nas comunidades do mundo agrario. Na época da politica de massas, o proletariado est amplamente inse- tido no processo de secularizagao e individuacdo, o que envolve a'sua mentalidade e o seu comportamento, com exigéncias muitas vezes contraditérias. Nessas condi- c6es, as massas encontram-se numa situagfo politica subalterna. Pouco a pouco, entretanto, 0 comportamento poli- tico do operdrio yai se organizando segundo as exigén- cias bdsicas da condigao operdria. As relagdes com a maquina e com os outros trabalhadores, com o pro- prietdrio dos meios de producao e o mercado, produzem. uma clarificagao crescente da atividade do operario. A Sua existéncia real, no seio do processo produtivo, pro- voca e possibilita a criacio de novos horizontes de atuagao e entendimento. Todavia, seja em sua mentali- dade, seja em seu comportamento, combinam-se ou misturam-se 0 presente e o passado, 0 patrao e o em- presdrio, os trabalhadores e os administradores, os Sindicatos e as associagdes, os partidos e as igrejas, o exército e a nagdo, os governantes e 0s governados, a situacgio econémico-social presente e as exigéncias do progresso pessoal. A industria cultural e a manipulacgéo ideolégica, por parte da classe dominante e os seus aliados na classe média, est&o voltadas nesse sentido. Além do mais, a propria politica de alianga de classes, que fundamenta o populismo, volta-se nessa diregao. 144 Combinam-se e misturam-se os planos. Assim, & atuacao pratica das massas nao corresponde uma consciéncia politica adequada e conseqiiente com 0s seus interesses bdsicos. Manifesta-se uma contradicgao mais ou menos profunda entre o modo de agir e o pensamento, tanto individual como coletivamente. Devido as condicoes his- torico-culturais e politicas da época, a visao do mundo das massas permanece em atraso, relativamente a sua situacao real no processo produtivo. Nessas condicées, as massas do populismo vivem uma existéncia politica subalterna . Por definigao, as classes subalternas nfio S80 unifi- cadas e nao podem unificar-se enquanto nio podem tornar-se “Estado”: a sua hist6ria, portanto, é mes- clada com a da sociedade civil, é uma fungao “de- sagregada” e descontinua da histéria da sociedade civil e, por isso, da histéria do Estado... Entre os grupos subalternos, um tendera a exercer certa hegemonia por intermédio de um partido. E isto deve ser apreendido pelo estudo do desenvol- vimento inclusive de todos os outros partidos, desde que incluam elementos. de grupo hegem6- nico, ou dos outros grupos subalternos que ambi- cionam tal hegemonia... . O estudo do desenvolvimento destas forgas inova- doras, de grupos subalternos a grupos dirigentes e dominantes, deve, pois, pesquisar e identificar as fases por meio das quais eles conquistam auto- nomia, nos confrontos com os inimigos @ vencer e pela adesao dos grupos que ajudam ativa ou pas- sivamente...* 3 joneeito de classe subalterna foi abordado por: Antonio Guu, Conan Dialética da Histéria, Trad. de Carlos Nelson Coutinho, Civilizagio Brasileira, Rio de Janeiro, 1966, pp. 11-0; Antonio Gramsei, Il Risorgimento, Giulio Einaudi Editore, Torino, 1955, pp. 191-220; Erie J. Hobsbawn, “Per lo Studio delle Classi Subalterne”, Societd, Anno XVI, N.°'3, Milano, 1960, pp. 436-449. Inspirado nessa questo, consultar: Perry Anderson, “Origins of the Present Crisis”, New Left Review, N.° 23, Londres, 1964, . 26-53. 2? Antonio Gramsel, 70 Rteorpbnento,’ dtade; pp: 191-182. 145 No fundo, se 0 subalterno era ontem uma coisa, hoje nao mais o é: tornou-se uma pessoa historica, um protagonista; se ontem era irresponsdvel, ja que era “paciente” de uma vontade estranha, hoje sente-se responsavel, jé que nfo é mais paciente, mas sim agente e necessariamente ativo e empreen- dedor. Mas, mesmo ontem, serd que ele era apenas simples “paciente”, simples “coisa”, simples “irres- ponsabilidade”? Nao, por certo; deve-se, alids, su- blinhar que 0 fatalismo nfo é sendo a maneira pela qual os fracos se revestem de uma vontade ativa e real 5, A consciéncia das massas operdrias nao pode ser uma verdadeira consciéncia de classe se os oper4- rios no aprendem, com base em fatos e aconteci- mentos politicos concretos — e além disso atuais — 4 observar cada uma das outras classes sociais em todas as manifestacdes da vida intelectual, moral e politica dessas classes ®, Esse € o nivel em que se situa a ambigiiidade do populismo, quando o encaramos na Dperspectiva das massas. A partir do ponto de vista das préprias massas, ° Populismo encerra uma ambigiiidade bdsica. Essa contradic&o se configura na identificacio das liderancas dos “tempos de paz” ou de “normalidade” como lide- tangas efetivas e permanentes. O equivoco fundamental das massas e das esquerdas engajadas no populismo é que elas aceitam € conformam-se 4s liderangas, organi- zacdes e interpretagdes burguesas, em qualquer tempo. Na aparéncia, a aceitacfio desses elementos é tatica, De fato, entretanto, essas liderangas, organizagdes e téc- meee atuacao politica sao aceitas plena e exclusiva- 5 Antonio Gramsci, Concepcio Dialética da Histéria (11 Mate- rialismo Storico e la Filosofia di Benedetto Croce), trad, de Carlos Nelson Coutinho, Civilizagio Brasileira, Rio de Janeiro, 1966, p. 24. _V. I. Lenin, Que Fazer?, trad. de Luis C. Afilhado ¢ Edison Dias, Editorial Calvino, Rio de Janeiro, 1946, p. 120. 146 Nas épocas de crises profundas, no entanto, as am- pigiiidades da situagao das massas tornam-se mais ex- plicitas. Revelam-se as contradigdes entre o modo de agir e 0 modo de pensar. A visio do mundo, incoerente com a situagéo operdria, a posicéo real do trabalhador no processo produtivo, tende a esboroar-se. As vezes de modo imediato e profundo, as contradigdes se impdem & mente das massas, provocando uma reelaboragao da sua consciéncia da situagio. Nesse passo, pode surgir uma consciéncia politica operdria mais congruente com a situagéo de classe’. Nas situag6es criticas, pois, tanto os grupos que compéem a classe dominante como os que formam 0 proletariado tendem a reaglutinar-se, segundo as condi- ces e exigéncias peculiares de suas respectivas classes. Nessas ocasiGes, as classes sociais se configuram de modo mais explicito, como classes politicas e antagd- nicas. Nos momentos mais graves, como nos que cercam a deposicfo de Vargas, Arbenz, Perén, Goulart e Paz Estensoro, entre outros, os grupos burgueses e de clas- se média participantes do pacto abandonam as suas po- sigdes prévias e reorganizam-se como classes politicas. A saida de Peron da Argentina, em 1955, ao ser deposto, muito provavelmente foi o resultado de um acordo de cavalheiros, todos empenhados em evitar a guerra de classes e identificados na defesa da ordem capitalista. Quando alguns setores de vanguarda dos “massas pero- nistas” pedem armas, para defender a Constituigao e o governo, Perdén decide romper o pacto populista. Ele reconhece que a luta armada pode transbordar os limi- tes da sua lideranga e ganhar dimensGes revoluciondrias. 7 “A consciéncia de fazer parte de uma determinada forca hege- ménica (isto é, a consciéneia politica) 6 a primeira fase de uma ulterior e progressiva autoconsciéncia, na qual teoria e pratica finalmente se unifieam”. Cf, Antonio Gramsci, Concepedo Dialética da Histéria, citada, p. 21. Quanto ao processo de conversio das ‘massas em classes sociais, consultar também: V. I. Lenin, Que Fazer?, trad. de Luis C. Afilhado e Edison Dias, Bditorial Cal- vino, Rio de Janeiro, 1946, esp. pp. 120-125; V. I. Lenin, A Doenca Infantil do “Esquerdismo” no Comunismo, Trad. de Luiz Fernando, Editorial Vitéria, Rio de Janeiro, 1960, esp. pp. 96-117. 147 Quando Goulart disse que nao daria armas Aqueles que queriam defender a Constituigéo e o governo, porque eles “néo saberiam como usé-las”, da mesma forma que Per6n, estava rompendo na pratica o pacto populista e impedindo a transformacéo qualitativa da Iuta pelo poder. Na ocasiao critica, do mesmo modo que a classe dominante, também o proletariado pode reaglutinar-se e atuar como classe politica, isto 6, nfo subalterna, Ele pode deixar de lutar contra os inimigos do seu inimigo, como “a oligarquia latifundidria” e “o imperialismo”, ao descobrir que uns e outros podem estar aliados na defesa, Ons relagdes de produgao especificas do capi- talismo 8, 5 A importancia das situagdes de crise no processo de produgio da consciénia de classe foi analisada por: Karl Marx e Friedrich Engels, La Ideologia Alemana, Trad. de Wenceslao Roces, Edi- ciones Pueblos Unidos, Montevideo, 1959, esp. pp. 48-50; V. I. Lenin, Que Fazer? e'A Doenga Infantil do “Hsquerdismo” no Comunismo, citadas; L, Trotsky, op. cit., primeiro volume, p. 16. 148 XIV POPULISMO E CAPITALISMO Os FENOMENOS populistas podem ser classificados em diversas categorias, destacando-se entre elas as se- guintes: movimento de massas, partido politico poli- classista, sindicalismo, lideranga carismatica, linguagem demagoégica, nationalismo econémico, desenvolvimen- tismo, reformismo, governo populista, democracia popu- lista, ditadura populista e Estado populista. Naturalmen- te esses fendmenos apresentam distintas combinagées e graus de desenvolvimento, conforme as constelagdes de forgas politicas em cada pais e época. Em graus varid- veis, mas de modo indelével, eles passaram a fazer parte da histéria social, econdmica e politica dos se- guintes paises, entre outros: Argentina, desde 1945, com 0 primeiro governo Per6én; Brasil, desde 1930, com o primeiro governo Vargas; Bolivia, desde 1952, com o primeiro governo Paz Estensoro; Colémbia, nos anos quarenta, com 0 movimento de massas liderado por Jorge Eliécer Gaitdn; Equador, desde 1934, com o pri- meiro governo Velasco Ibarra; México, desde 1924, com © primeiro governo Calles, e desde 1934, com o governo Cardenas; Peru, desde 1924, com a fundacio da Alianza Popular Revolucionaria para América (APRA), por Victor Raul Haya de la Torre. Devido & constelacio de forcgas representadas por eles e as lutas travadas contra as outras forgas politicas, essas varias manifestagdes do populismo marcaram mais ou menos fundamente a his- 149 térica politica coletiva, tornando-se, em alguns casos, @ experiéncia. politica mais notével em cada pais, apés © declinio da oligarquia. Desde 1945, nenhuma interpre- tagao do poder politico na Argentina pode efetuar-se sem uma focalizagio cuidadosa do peronismo, justicia- lismo ou suas variantes, ao longo dos anos. Da mesma forma, nenhuma interpretacgio do processo politico no Brasil, desde 1930, pode prescindir de uma exame obje- tivo do varguismo, trabalhismo e outras manifestagdes do populismo brasileiro. No México, o callismo dos anos vinte ganhou novas dimensGes e inscreveu-se profunda- mente no aparelho estatal desde Cardenas; de tal forma que toda pesquisa do “modelo” politico mexicano pre- cisa dedicar-se 4 andlise do sistema Estado-partido-sindi- cato, que compée e fundamenta as estruturas de poder no pais. No Equador, José Maria Velasco Ibarra gover- nou a nagao por cinco vezes, no periodo 1934-72, tor- nando-se, pois, indispensdvel que qualquer exame do processo politico equatoriano se demore longamente no estudo das forgas, organizagées, estilos de lideranga, ete. que caracterizam o velasquismo. E assim por diante. Ao mesmo tempo, de modo mais ou menos es- sencial, conforme o pais e a época, esses fendmenos ‘populistas estéo sempre relacionados com os desenvol- vimentos das relagdes de producio. As vezes, 6 a industrializagio que comanda as transformagées dessas relagdes. Em certos casos, a industrializagéo e a expan- sao do setor tercidrio combinam-se, mais ou menos dinamicamente, provocando modificac6es generalizadas nas estruturas econdémicas, sociais e demograficas, Em. outros, ainda, ocorre principalmente uma intensa ex- pansdéo urbana, transformando-se a populagao da cidade num fator social e politico decisivo da organizacdo e diregéo dos negdécios do Estado. Em todos os casos, os fenédmenos populistas estéo diretamente vinculados as transformagoes das relagdes de produgao tanto eco- némicas como sociais e politicas. Nesse sentido, o po- pulismo seria ininteligivel se nado fosse analisado ten- do-se em conta, sempre, o fato de que ele se insere num tempo de transformag6es acentuadas dos subsistemas 150 capitalistas na América Latina. Vejamos essa questao em alguns dos seus aspectos. Em perspectiva historica, os fendmenos populistas acontecem na época das crises que abalam ou mesmo destroem o Estado oligdrquico em paises latino-ameri- canos. Essas mudancas precipitam o surgimento de modalidades diversas de Estado capitalista, desde aquele fundamento na democracia representativa até as ditaduras militares e &s formas que combinam estru- turas oligdérquicas e instituigdes democraticas. Em al- guns casos, quando 0 populismo é vitorioso, pode sur- gir o Estado populista, como se verifica na Argentina, Bolivia, Brasil, Equador, México e alguns outros paises. Essa transic¢ao esta diretamente ligada as crises econé- micas e politicas do capitalismo mundial, com a Pri- meira Grande Guerra, a depressio econémica iniciada em 1929 ¢ a Segunda Grande Guerra, além de outras de menor vulto. Essas crises mundiais ou provocam convulsées politicas internas, nos paises dependentes da América Latina, ou propiciam a eclosao de forgas so- ciais, politicas e econdmicas que se encontravam sob controle, na vigéncia dos governos oligdrquicos. De qualquer modo, séo as rupturas econémicas e politicas que ocorrem com essas crises que provocam o enfra- quecimento e o colapso das oligarquias, junto com a ecloséo de movimentos de massas, partidos politicos ou governos populistas. Ainda que nem sempre represen- tem a derrota ou a submissao do campo & cidade, em termos politicos os fendmenos de tipo populistas re- presentam uma manifestagéo &s vezes vigorosa das classes sociais urbanas que nfo podiam exprimir-se quando predominava a oligarquia. Nessa situagao, ve- rifica-se um rearranjo das relagdes entre a sociedade civil e o Estado. 5 inegdvel que o populismo tem correspondido a uma fase particular das transformacées do Estado capitalista, na qual a burguesia agro-exportadora e a burguesia apoiada na mineracao, além da comercial, em combinag6es diversas, conforme o pais, perdem o mo- nop6lio do poder politico para as classes sociais urba- nas. Isto nao significa que estas classes sociais, ou 151 seja, a burguesia industrial, a classe média, o proleta- riado industrial, grupos militares, intelectuais e estu- dantes universitdrios, bem como setores do proletaria- do rural e campesinato, em alguns casos, desalojem totalmente aquelas burguesias. E conveniente recordar que os governos de tipo oligdrquico vigoraram por muitas décadas nos paises da América Latina, marcan- do profundamente as estruturas polftico-administrati- vas. Este é mais um motivo para que partidos, lideran- cas, estruturas burocraticas e outros fendmenos do populismo aparegam combinados com elementos oligdr- quicos. Nem sempre as classes sociais urbanas afastam completamente as oligarquias, renovando as relacdes e as estruturas sociais, politicas e econdmicas. Em graus varidveis, conforme o pais, ha avangos e recuos, ruptu- zas e aliangas. E como se a cidade e 0 campo, em pro- funda contradigao e conflito, em dado momento, bus- cassem didlogo e acomodagio em seguida. De fato, elas se reintegram em um segundo momento, de modo di- verso do que prevalecia sob o governo oligdérquico. A propria reforma agraria, como se realiza no México e na Bolivia, 6, ao mesmo tempo, uma técnica de controle politico do campesinato e do proletariado rural, e, ain- da, um modo de adequar a producdo agrdria e os precgos dos produtos agricolas as exigéncias das populagées de- dicadas aos setores secunddrio e tercidrio, essencial- mente urbanos. Como vemos, 0 populismo latino-americano apare- ce, de imediato, como um fendmeno politico urbano. Sua base social e econémica estd nas cidades mais de- senvolvidas ou maiores, onde séo cada vez mais dina- micos os setores secunddrio e tercidrio. Além do mais, 0 populismo se liga diretamente & luta pela transforma- ¢ao do trabalhador assalariado urbano em cidadao. Com ele o proletariado comeca a adquirir personalidade po- litica, nos quadros juridico-politicos do Estado burgués e nao mais fora desses quadros, como tendia a ocorrer anteriormente, sob a influéncia do anarco-sindicalismo, socialismo ou comunismo. Em certos paises, como no México, sob o cardenismo, e na Bolivia, sob 0 governo 152 do MNR, a extensio do populismo ao campo foi um movimento destinado a “urbanizar” e conferir cidada- nia ao proletariado rural e ao campesinato. Além disso, essas extensdes de politicas populistas ao mundo rural implicam na refermulacao juridico-politica e econémi- ca das relagGes anteriores de acomodagio ou antago- nismo entre as classes agrdrias e as urbanas, Nesses paises, 0 populismo e a cultura urbana difundem-se de modo mais ou menos combinado, como elementos es- senciais de um novo tipo de arranjo entre a sociedade civil e o Estado. No que diz respeito aos seus fins econémicos mais gerais, OS movimentos, partidos e governos populistas sao abertamente favoraveis 4 industrializagao e a hege- monia da indtistria sobre a agricultura e a mineracao. A industrializagao 6 encarada como equivalente de de- senvolvimento econédmico em geral e indicador de bem- -estar social para o proletariado. Ao passo que a agro- pecudria e a mineracéo, bem como o comércio externo de bens produzidos nesses setores, sfo considerados causas fundamentais de atraso econdmico e social. Acredita-se que o pais exportador de matérias-primas e importador de manufaturados nao esté emancipado economicamente; nao possui autonomia decisdria sobre os seus problemas econdmicos basicos. Exportagao de matérias-primas e dependéncia séo expressdes conjuga- das, ou mesmo equivalentes, para 0 pais que nao possui indtistria, segundo as classes sociais urbanas emergen- tes. As estruturas de dependéncia nascem das condigdes de comércio externo especificas dessa situagéo. A de- terioracio das relacdes de troca, no comércio de maté- rias-primas e manufaturados, redunda em prejuizo para o pais que exporta aquelas. Por sob a aparéncia das trocas entre iguais, esconde-se a troca de desiguais, na qual perdem os exportadores de matérias-primas. # importante termos em conta, neste ponto, que o custo social da troca desigual cai sobre os ombros do trabalhador urbano e rural, inclusive pecudria e mine- racgio. O fato é que o comércio internacional nio é apenas interc&mbio de mercadorias. Por sob esse in- tercambio esta a troca de trabalhos, concretamente de 153 quantidades desiguais de trabalho. E dbvio que as con- dicgGes técnicas e sdcio-culturais de producaéo sao dis- tintas, quando comparamos o pais industrializado com © nao industrializado, “atrasado” ou dependente. De- vido a essas condigées desiguais, a produtividade do trabalho no pais industrializado, ou tecnologicamente mais avangado, €é maior. Em conseqiiéncia, a producio de certa mercadoria no pais nado industrializado tende a exigir maior quantidade de trabalho do que o seu equi- valente no pais industrializado. No processo de inter- cambio internacional de mercadorias, porianto, permu- tam-se quantidades desiguais de trabalho. O pais dito atrasado troca mais trabalho por menos trabalho. Quando se comparam os saldrios das diferentes nag6es, devem, portanto, ser levados em conta todos os fatores que determinam a variagio da magnitude do valor da forga de trabalho, como o prego e a extensfo das necessidades elementares da existéncia humana, naturais e historicamente desenvolvidas, os custos de formagéio do trabalha- dor, 0 papel desempenhado pelo trabalho das mu- Theres e das criancas, a produtividade do trabalho, sua duracéo e intensidade... A intensidade média do trabalho varia de pais para pais, menor neste, maior naquele. Essas mé- dias nacionais formam portanto uma gradacao cuja unidade de medida é a intensidade média do trabalho universal. Comparado com o trabalho nacional menos intenso, 0 mais intenso produz, portanto, no mesmo tempo, mais valor que se ex- pressa em mais dinheiro... Num pais, a intensidade e a produtividade do tra- balho nacional se elevam acima do nfvel interna- cional na medida em que nele esté desenvolvida a producdo capitalista. Por isso, as diferentes quantidades de mercadorias da mesma espécie em diferentes paises, no mesmo espaco de tempo, tém valores internacionais desiguais que, através dos L54 pregos, se exprimem em diferentes somas de di- nheiro +, Essas relagdes se tornam particularmente visiveis nos momentos mais dificeis da crise da economia pri- maria exportadora. Quando a troca desigual deixa de ser apenas uma sobrecarga para o trabalhador e passa a afetaf também a renda do empresdrio, este e os seus porta-vozes tratam de reagir politicamente. Primeira- mente, para defender seus interesses imediatos, com medidas cambiais, tarifdrias e outras. Em seguida, pela reformulacgéo das politicas econédmicas nacionais, in- cluindo-se a dinamizacfo e a diferenciacdo da economia. Em casos de necessidade, pela substituigaéo dos gover- nantes. Essa é uma razao bdsica para que as forcas populistas preconizem a industrializagéo. A industria- lizacao substitutiva de importagdes reduziria os gastos com a importacéo de manufaturados e, por conseqiién- cia, aliviaria a dependéncia do pais face a produgdo e ao comércio de matérias-primas. Aqui se estabelece outra identidade: industrializagao e emancipacgao eco- normica nacional sdo tomadas como expresses equiva- lentes, as duas faces de um mesmo processo. Dai a idéia de capitalismo nacional subjacente as politicas de governos populistas. Nesse sentido é que o populismo é essencialmente nacionalista. Identifica os principais obstdculos a cria- ¢io e expansao do setor industrial com o imperialismo. Na medida em que estabelece esse circuito de causagao, poe em dtivida a interpretagao preexistente sobre a si- tuacio e perspectivas do pais. Esse nacionalismo im- 1 Karl Marx, O Capital, 3 livros, trad. de Reginaldo Sant’Anna, Civilizagio Brasileira, Rio de Janeiro, 1968-74, Livro Primeiro, Vol, IL, pp. 648-649. O mesmo tema foi tratado por: Ernest Man- acl, Hnsayos sobre el Neocapitalismo, trad. de Carlos Sevilla, Edi- ciones Era, México, 1971, pp. 153-171, esp. pp. 164-155; L. Ste panoy, “The Problem of Economic Independence”, publicado por Thomas Perry Thornton (Editor), The Third World im Soviet Perspective (Studies by Soviet Writers on the Developing Areas), Princeton University Press, Princeton, 1964, cap. 6; A. Emmanuel, L’Echange Inégal, Francois Maspero, Paris, 1969. 155 plica numa noya interpretagao das relagdes entre o con- junto da sociedade civil e o Estado, em face dos outros paises, principalmente os dominantes. A rigor, ele implica num tipo de reconhecimento da contradicao entre as tendéncias e as bossibilidades da sociedade na- cional, por um lado, e da economia dependente, por outro. Na medida em que envolve uma reorientagao do subsistema econémico nacional e certa ruptura com o imperialismo, o populismo tem algum compromisso com a idéia de um capitalismo nacional. Assim nasce e sustenta-se a ficcfo politica de uma burguesia nacio- nal, como se ela tivera consciéncia politica hegeménica. Ao generalizar-se a consciéncia critica relativa as fungées da agricultura, mineragao, industria, troca de- sigual, imperialismo, Oligarquia, burguesia nacional e Telag6es entre as classes sociais preexistentes e emer- gentes, generaliza-se também uma nova compreensio das fung6es do Estado nos assuntos econémicos, tanto quanto nos politicos. Os movimentos, partidos e go- vernos populistas querem o abandono total das politi- cas econdmicas de inspiragao liberal, vigentes sob a Oligarquia. Preconizam o direto e amplo engajamento do Estado na economia, como centro de decisdes e como empresdrio. Para reverter a politica de desarrollo hacia afuera a uma politica de desarrolio hacia adentro, de- fendem a crescente participagaéo do Estado nos assun- tos relativos & utilizagdo capitalista das forgas produti- vas, em geral, e do capital e da forca de trabalho, em especial. Acreditam que a tinica mancira de nacionali- Zar OS processos decisérios e as prdprias decisées rela- tivas as quest6es econémicas nacionais é transformar o aparelho estatal no centro maximo das resolugées. Alids, os setores de esquerda do populismo chegam a crer que a extensdo progressiva do setor publico da eco- nomia seria 0 caminho mais adequado, porque menos traumatico e diretamente econdmico, para encaminhar a sociedade para o socialismo. Neste ponto, da mesma forma que na luta contra “o latifundismo” e “o impe- rialismo”, em nome da emancipacao econdémica nacio- nal, encontram-se de novo o populismo e a esquerda reformista. 156 Ao mesmo tempo, e devido & func&o estratégica da forca de trabalho nesse processo, os governos populis- fas tratam de realizar a integracao do sistema sindical com o aparelho burocratico do Estado. Quando nao 6 possivel a absorcio do sistema sindical preexistente, por sua independéncia politica ou por seus vinculos ideoldgicos ou organizatorios com partidos de esquerda, as vezes também preexistentes, 0 governo populista, trata de criar um sistema sindical proprio, de tipo pa- raestatal. Em alguns paises, como no México, em 1934-40, e na Bolivia, em 1952-64, o partido surge como mediacéo ativa, ao criar-se a constelacdio Estado-parti- do-sindicato, Em outros, como no Brasil dos anos 1937-45, a constelagéo 6 simplesmente Estado-sindicato. Em varios paises, surgem manifestacdes ideoldgicas e organizatérias de corporativismo e bonapartismo. Acontece que esse tipo de engajamento do Estado nos assuntos econdmicos, em geral, e na “racionaliza- gao” das condig6es de oferta e demanda no mercado de forca de trabalho, em particular, cria condigdes mais propicias 4 aceleracfo e generalizacdo da reproducgao ampliada do capital. Se é verdade que o Estado nao se transforma em centro maximo de decisGes, porque nao se conseguem nacionalizar todos os elementos prin- cipais do processo decisério, é inegavel que ele adquire maior preeminéncia, como componente dinémico da acumulagaéo de capital no setor privado da economia. O Esiado passa a ser uma forca produtiva ainda mais importante que anteriormente. A intensificacao e a ge- neralizacao dos investimentos estatais, além das dire- trizes fiscais, tarifarias, cambiais, educacionais, milita- res, policiais e outras, tendem a ampliar e a acelerar © crescimento das economias externas, em sentido lato, de que necessita o subsistema econémico nacional para. continuar 0 seu desenvolvimento e a sua diversificacao. So esses tipos de atuagdes do poder ptiblico que inten- sificam o processo de transformagado do excedente eco- ndmico potencial e efetivo. Em outros termos, a agao estatal tanto dinamiza o conjunto das foreas produtivas como impulsiona e orienta as relagdes de producao. 157 Em esséncia, o populismo latino-americano tem estado abertamente comprometido com a vigéncia, a generalizacio e 0 predominio do principio do valor de troca nas relagGes de produc&o, na cidade e no campo, conforme a situacéo social, politica e econdmica parti- cular de cada pais. Isso é particularmente evidente nas politicas operdrias dos governos populistas. Enquanto fendmeno que envolve principalmente o proletariado, em suas relagdes com a burguesia industrial, o populis- mo parece corresponder ao elemento politico mais earacteristico do processo de criagao e generalizacao do. tipo de mercado de forga de trabalho exigido pelos no- vos desenvolyimentos das forcas produtivas. No ambi- to das relagdes de producao, as politicas sociais e sindicais do governo populista implicam na universali- zagao de processos contratuais de compra-e-venda da forca de trabalho no mercado. Essas politicas instau- Tam, ou desenvolvem e generalizam, o mercado de forca de trabalho, segundo as exigéncias da empresa privada e, portanto, da producéo de mais-valia. Em boa parte, as instituigdes do trabalhismo populista, nos diversos paises em que se instalaram governos populistas, desti- nam-se a formalizar contratualmente as wltimas condi- ges necessdrias & contabilidade de custos da empresa privada®. Ao mesmo tempo, estabelecem as condigdes, e os limites da atividade politica da classe operaria 4, Nao 6 0 operdrio quem emprega os meios de pro- ducao, sio os meios de produg&o que empregam o operdrio 4. 2 Francisco de Oliveira, “A Economia Brasileira: RazSo Dualista”, Estudos Cebrap, N.° 2, Sio Paulo, 1972 ; 3 No que se refere a0 populismo brasileiro, abordamos as questies focalizadas nesse paragrafo em trabalhos anteriores: Octavio Ianni, Estado ¢ Capitalismo, Civilizagao Brasileira, Rio de Janeiro, 1965, esp. cap. IV; O Colapso do Populismo no Brasil, 2.8 edicio, Civi, lizaedo Brasileira, Rio de Janeiro, 1971, esp. segunda parte; Hstado © Planejamento Econdmico no Brasil (1930-1970), Civilizacko Bra. sileira, Rio de Janeiro, 1971, esp. pp. 24-43. 4 Karl Marx, El Capital (Libro I, Capitulo VI, Inedito), trad. de Pedro Searon, Ediciones Signos, Buenos Aires, 1971, p. 17. 158 A compra-e-venda da for¢ga de trabalho implica na separagao entre as condigées objetivas do traba- Ibo Ou seja, os meios de subsisténcia e de pro- dugao — e a propria capacidade viva de trabalho, de tal modo que esta é a Unica propriedade a dis- posigdo do operdrio e a tinica mercadoria que ele tem para vender 5, Quanto mais se desenvolve a producic em geral, como produgao de mercadorias, tanto mais cada um quer e deve converter-se em vendedor de mer- cadorias, fazer dinheiro, seja com seu produto, seja com seus servicos — quando seu produto, de- vido a sua natureza, existe somente sob a forma de servigo — e esse fazer dinheiro surge como 0 objetivo Ultimo de todo o género de atividade §, Em nivel sdcio-cultural — ou ideoldgico, em senti- do lato — 0 populismo é um elemento politico ativo no processo mais ample de conformacao da consciéncia do vendedor da forca de trabalho, em especial o prole- tariado, as exigéncias da oferta e demanda no mercado. Lembremo-nos de que por sob a doutrina da paz social esta a idéia da harmonia entre o capital e o trabalho, requisito basico da prosperidade da empresa privada. Na esfera da racionalidade conveniente & estrutura da empresa capitalista, o populismo possibilita o estabele- eimento e a generalizacao, segundo os interesses da burguesia e as exigéncias da reproducgéo ampliada do capital, dos critérios de contabilizagao e cdlculo dos custos relacionados com a forca de trabalho. Como esté em curso uma fase nova no processo de reprodu- cio ampliada do capital, torna-se necessario alargar e aprofundar 0 divdércio entre o trabalhador e a proprie- © Karl Marx, op. cit, p. B1. ¢ Karl Marx, op. cit., pp. 80-81. A problemAtica enfocada nessas citacdes foi cxanrinada por Marx inclusive em O Capital, citado, Livro 1, vol. 2, caps, XXIII e XXIV, e Livro 3, vol, 6, cap. Li. Consultar ainda: Bert F. Hoselitz, “The Development of a Labor Market in the Process of Economie Growth”, Transactions of the Fifth World Congress of Sociology, International Sociological Asso- ciation, Louvain, 1962, vol. II, pp. 61-71. 159 dade dos meios de produgdo. Note-se, contudo, que esse divércio nfo é apenas econémico nem acontece hum unico momento. A separagéo entre o trabalhador — enquanto produtor de valor — e a propriedade dos meios de produgao 6 um processo ao mesmo tempo eco- némico, politico e sécio-cultural; realizando-se na pra- tica de modo desigual, ou mesmo com avancos e recuos. As migragées do campo para a cidade e a formacao do exército industrial de reserva sao manifestacdes con- cretas desse processo simultaneamente econémico, po- litico, social, cultural e demogrdfico. Em sintese, as politicas do governo populista, bem como a acao do partido governamental e do sindicalismo paraestatal parecem estar intrinsecamente relacionadas com esse processo de ambito estrutural, que promove e consoli- da essa dupla alienagdéo do trabalhador, em face dos meios de producaéo e do produto do trabalho. Nesse contexto, a ideologia populista tende a diluir as linhas que distinguem as classes sociais e marcam Os seus antagonismos, ao valorizar positivamente todas as manifestagoes da alianca policlassista. Em nome do nacionalismo, por um lado, e da industrializagio e re- forma agraria, por outro, negam-se ou minimizam-se as contradigées de classes. Os movimentos, partidos e go- vernos populistas — principalmente estes — preconi- zam a “paz social”, a “harmonia das classes” ou a “alianga entre o capital e o trabalho”. Os inimigos saio a oligarquia (patroes, caciques, caudilhos, gamonales, coronéis) e os interesses estrangeiros, ou o imperialis- mo. O fato é que as situacGes histdricas em que surgem governos populistas na América Latina tém se caracte- rizado pela auséncia de uma classe social suficiente- mente forte, politicamente organizada e com visio he- gemOnica de si para assumir e exercer 0 poder sozinha. Por isso a alianca se torna necessdria. Unem-se as for- gas politicas de varias classes, ou seus grupos, para propor e impor um programa alternativo aquele sus- tentado pelas oligarquias e 0 imperialismo. Nesse tipo de alianga, o conjunto das classes assalariadas, em es- pecial o proletariado, aparecem no Estado populista como classes subalternas. O prdéprio aparelho sindical, 160 com Os seus padr6es de organizagao e lideranga, dentre os quais destacam-se o peleguismo, o charrismo e ou- tras modalidades nacionais, funciona em conformidade com essa condic&éo subalterna. Na medida em que acei- tam uma participagao politica subalterna, confundindo tdticas e estratégias, essas classes acabam por subju- gar-se ao principio da alianca policlassista, sob a lide- ranga discreta ou ostensiva da burguesia de base indus- trial. Por conseqtiéncia, subordinam-se ao aparelho es- tatal burgués constituido como Estado populista. Alias, a participacao. politica. subalterna e a subor- dinag&o ideoldgica, no caso do populismo, em geral sao expressées de uma estratégia de classe, na medida em que o proletariado nao se vé inicialmente como classe antagénica. E verdade que a participacao politica su- balterna pode ser uma opgao tdtica; e tem sido, em certas ocasides. Entretanto, quando esta combinada com a submissao ideoldégica, a aceitacéo das interpreta- goes dadas pela burguesia, a posicado tatica adquire contornos de estratégia, Nessa situacéo, podem con- fundir-se os meios e os fins, segundo as proposic6es e a atuagao das ctipulas burguesas. Esse é 0 momento em que os trabalhadores, na cidade e no campo, con- forme © pais, sao levados a confundir a hierarquia dos seus oponentes, dentro e fora do populismo, quanto aos varios grupos que compéem a classe dominante, desde a burguesia nacional ao imperialismo. Ao adotar os alvos propostos pelas organizag6es populistas, sem preservar alguma autonomia nem tratar de desenvol- vé-la, 0 proletariado comporta-se como classe subalter- na, Ele se aliena ideoldgica e organizatoriamente a burguesia nacional, esta por sua vez classe subalterna, por suas acomodagdes com o imperialismo. Todas as crises mais profundas pelas quais passam os governos populistas mostram que a burguesia nacio- nal nao tem interesse em levar além de certo ponto as Tupturas e reacomodacGes externas. Ao contrario, quan- do ja nao o fez com anterioridade, nas ocasi6es dificeis, a burguesia recompée os seus lagos com as outras bur- guesias, nacionais e estrangeiras. Ao mesmo tempo, quando sao atingidas as bases politicas e econémicas 161 do governo populista, as classes assalariadas e parti- cularmente o proletariado se dio conta de que bara- Iharam os seus interesses com os da burguesia. Esse € © momento em que o proletariado pode verificar, com maior clareza do que em tempos “normais”, quais sio as relagdes econdmicas e os compromissos politicos reais que harmonizam ou conciliam os interesses da burguesia nacional com os da estrangeira. Essa 6 a situagio a partir da qual o proletariado pode com- preender as suas reais condigdes de vida, sem a ilusao do consumismo e da mobilidade social universal. Des- faz-se a associagaéo puramente ideoidgica entre desen- volvimento econémico, ou industrializagio, por um lado, e bem-estar social geral, por outro. Revela-se de modo claro o sentido quimérico da idéia de devolucaio do pais ao povo. Ao ver-se criticamente, na situagio real em que se encontra, o trabalhador deixa de pen- sar-se como povo e passa a compreender-se de modo mais claro, como operdrio. Nessa ocasifio, as “massas populistas” podem compreender mais nitidamente qual é a escala verdadeira dos seus adversdrios e aliados. B Obvio que essa experiéncia crucial, seja qual for o seu desenvolvimento e desfecho, acaba por ser incorporada & consciéncia do proletariado, ou dos seus setores mais conscientes e organizados. 162

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