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Capitulo 24 Anistia e (in)justi¢a no Brasi o dever de justi¢a e a impunidade MARCIO SELIGMANN-SILVA Vocé que inventou 0 pecado / Esqueceu-se de inventar 0 perddo 'STES CONHECIDOS VERSOS de “Apesar de vocé” (1970), de Chico Buarque, remetem as origens, na dltima ditadura brasileira (1964- 1985), das lutas pela anistia. A oposigdo ao regime levantou esta ban- deira no final dos anos 1960 visando permitir a volta dos exilados e a libertagao dos prisioneiros politicos. A anistia, neste contexto, significa va, antes de mais nada, restauragao da justiga, jA que estes exilados e prisioneiros estavam sendo vitimas de um governo pontuado por arbitra- riedades, no qual o Estado de Direito estava suspenso, Imperava, por- tanto, a excecdo (instaurada com o golpe civil-militar de 1964 e apro- fundada com o AI-5 em dezembro de 1968), e a fachada de legalidade do que fragil. A anistia, neste sentido de cumprimento da justi- ga, de restabelecimento do Estado de Direito, tem um valor plen era m; amente positivo, tal como encontramos no nome da conhecida organizagao in- ternacional que luta pelos direitos humanos, a Amnesty International. No Brasil, a anistia chegou apenas em 1979, organ ponsdveis pela ditadura civil-milit izada pelos res- 1¢a0 naquele momento, no entanto, ndo era a de realizar a j Buarque. Antes, os donos do poder prete ravel derrocada do regime e do avz isada nos versos de ico am entdo, diante da inexo- rgas democraticas — que teria como correlato imediato a vo Prisionciros politicos — decreta r, de Fsta Ita dos exilados e a libertagao dos antemdo, a sua propria impunidade. anistia foi costurada nado como j sai ustiga — trabalho de restitui 542 mircio seligmann-silva erseguidos € do mal realizado, pagamento de uma divida para com hes contra violentados pelos érgaos de repressio do Eee eae ames a populagao que deveria proteger —, mas, antes! . a justiga. Os donos suspensao de toda futura tentativa de se ance a em mecanismo de do poder se apropriaram da anistia para cor viros nao estavam SOS Nes- impunidade. Os militares e aliados civis brasi ei i anistia. Em 1978, © eee aa ee wo Argentina e Uruguai governo militar de Pinochet fizera © mesmo oe m explorar estas duas seguiriam 0 mesmo caminho. Gostaria neste Bee ‘omo portadora da injus- faces da anistia (como portadora de justi¢a — in tiga e da impunidade), privilegiando 0 caso brasi - i cobrar com Quando chegar 0 momento / Esse meu sofrimento / Vou corre” juros. Juro! / Todo esse amor reprimido, / Esse grito contido, samba no escuro O periodo de ditadura brasileiro foi marcado pela suspensao dos direitos basicos que caracterizam a cidadania. Com base na Do na de Seguranca Nacional (que marca a Constituigao de 1967) e incorporacgao da teoria do “inimigo interno”, ocorreu v de todo aparato da violéncia estatal para se repri ALS, a figura juridica basilar do habeas corpus considerados vinculados 4 seguranga n Seguranga Nacional, suspendeu-se nido. Em 1971, criou-se a figur: cimento tdcito da tot esta sempre dormitan n qualquer Estado d Mos com Walter Benjamin (1974) eco feceu durante a tiltima ditadura brasj : mM Magrante atentado ; i 1 g e ado a Estado de Direito. ¢ ‘ a, 40 invés de Esquilo),! da acional. Em 1969, com a Lei de as liberdades de in pr a dos decre! al anomalia juridic: do en tos-lei secretos, wu 1 reconhe- ad te governo. Se a anomia le Direito (como aprende- amben (2004)) > O que acon- ‘a forma mesma do turais, A violéne) tes estru- Fuménides de dormitar no seio d. a lei (como lemos nas a r Ss nas Passou a doming-la Por con Mpleto. A lei foi "Cha fo — MMOSA Passanen n. anistia e (in)justig (in)justiga no brasil 0 dever de justiga € ea impunidade 543 reduzida a force de loi (Derrida, 1994). Mas 6 importante d ortante destac a pratica generalizada da violencia pela persex ar que ‘assina . uigio, e . tortura, assassinato de opositores deu-se inteirament: fou ant amente fora da le hordas deste aparato juridico em si monstruoso — que, ale proms Estado de Excecao e suspender 0 habers copa ene ra te, que nunca foi aplicada juridicamente, mae apere seer nos poroes da ditadura. Este ponto é essencial ee pane ees cee cet pected erereneen een ree e, portanto, as agdes acobertadas por este mesmo Estado ee i tratamento excepcional no sentido de que nao se deve alegar ems havia algo como um Estado de Direito, amparando as aces dos Trem. i, nas »plan- bros do aparelho de repressiio. As execugdes eram realizadas sem prévio julgamento. As leis de excecao serviam apenas para dar uma aparéncia de ordem judicial a um governo que na verdade “punha e dispunha” das leis e dos homens como queria? Elas serviam para encobrira radica- ticada pelo Estado. ura, os militares e civis vinculados a violencia, Esta lidade da excecao e da violéncia p Durante e apés o periodo da d m sistematicamente a existéncia de a ditadura negara gem destas mesmas praticasilicitas e da sua forma © aparato de violéncia negava suas ages a0 ros lugares escondidos da vista do negagio ja estava na ori clandestina de execugao. 4-la em quartéis, delegacias e out Ele negava as familias 0 direito de informagio sobre 0 (a bem da verdade raptados) por Jas vitimas de tortura (que eram prati piiblico em geral. deiro dos que haviam sido presos bém os corpos ¢ andestinas ou lancados ao mat). E, por sje a abertura dos arquivos que jade do que ocorreu e da justiga insere a Anistia de 1979 (Lei overno civil- paral este aparato, Negava tam: ou enterrados em valas comuns cl fim, 0 Estado continua negando até he ma busca da ver¢ poderiam possibilitar ur E dentro desta cadeia de 6.683/79), Se ela serviu para se militar para um regime demoerati egagdes que se costurar a passagem do g¢ co, € nao nego que ela teve UM PAP histérico importante, isto ndo significa que a sociedade deve submeterse "Temos de ter a coragem de perceber que e509 bém mais um ato de arbitrio « dos governos da ditadura. para além das ao seu arbitrio para sempre. lei, tal como ela foi feita, significou tam politico-juridico arato notou, aos torturadores b obsticulo [2 dentro da série de disparate: ta Fabio Konder Comp: 1 aplicabilidade da anistia “esse Como o juris mici pomici- querelas em torno d mais nada observar que “esse aparente das, vale antes de 5 ensaio de bosane w disney ef. meus comentacies 2° 544 miarcio seligmann-silva Lei de Anistia] nao tem nada a ver com o dever estatal de inves fatos, nem com o direito fundamental dos familiares de sah de” (Comparato, 1995, p. 59). Citando um documento da Co ramericana de Direitos Humanos, ele recorda que, com ra ag atos de violencia acobertados pelo Estado, “a responsabilid nao so independentemente das mudangas de governo em periodo de tempo, como também de modo continuo de UBar os a Verda. Te Inte. 40 a estes ade existe determinadg, " 4 Sde a época do ato gerador de responsabilidade até 0 momento €M que tal ato € dec} cla. rado ilegal” (Ibidem). Ou seja, diante da excepcionalidade dos a, de violéncia, vale levar-se em conta uma excepcionalidade temporal tam. bém. A prescrigao de crimes hediondos est suspensa, a continuidade temporal e de responsabilidade devem ser reconhecidas. De resto, ong © professor Dalmo de Abreu Dallari notou, em um artigo de 1999 havia uma contradigdo entre a Lei de Anistia e a Constituicio de 1967 que desmente a tese que catapulta os crimes praticados sob a cobertuy, do Estado no regime ditatorial para fora da esfera jurid ime . Citemos as palavras do jurista: Com efeito, a Lei de Anistia, L 1979, foi ditada quando vigorava no Brasil, formalmente, a Cons- Jo que Ihe deu a chamada i n.° 6.683, de 28 de agosto de tituigdo de 1967, com a nova redag Emenda Constitucional n.° 1, de 1969, Essa Constituigao estabe- lecia expressamente, no artigo 153, que os crimes dolosos, intencio- nais, contra a vida seriam julgados pelo Tribunal do Juri (Dallari, 1992, p. 32). Ele concluia que “os dispositivos da Lei de Anistia nao podem Prevalecer contra a Constituig&o. [. . .] os torturadores eram servidores Publicos civis ou militares que agiam profissionalmente, mediante re- Muneragao, no podendo alegar objetivos politicos. [.. .] Os tortura- dores homicidas, e possivelmente outros, nunca foram anistiados” (Dalla- ti, 1992, p, 32), De resto, Comparato levantou duividas j4 em 1995 sobre o fato de de @ Anistia cobriria os crimes cometidos pelos agentes estatais. O tex- to de 1979 dita que “é concedida anistia a todos quantos, no perfodo compreendido entre 2 de setembro de 1961 ¢ 15 de agosto de 1979. cometeram crime © 8 politicos ou conexos com estes [. € por esta cliusula d. ditadura da esfera d. ]”. Como se sabe, jt conexidade que se tenta ¢ minar os agentes da la lei, E evidente que esta lei, como mencionei, foi anistia € (in)justiga no br, asil: © dever de justi 7 | Justiga © a impunidade $45 feita, antes de tudo, pelos agentes da dit adura nies det 0 a ditadura e para tes. Mas nao cabe, na Interpretagao da letr, a gGes que estavam na sua origem. Se el berta os crimes do aparato civil-milit visam 4 justiga. Este debate sobre a conexidade ou nao dos crimes di ditadura voltou & baila recentemente apds a abertuns de en eee oe Pos a abertura do processo da aria-Amélia Teles, César Teles, Janaina Teleare, e Crimeia Almeida Teles) | a fs has : contra 0 Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, que digi a unidade do DOL-Codi de Sio Paulo ene 1970 « uae 1 periodo “houve 502 deniincias de torturas” contra esta unida. e (Folh i de (Folha de §.Paulo, 9/11/2006, p. A9). 0 Juiz Santini Teodoro consid rou que o Coronel Ustra era pa: Uniio. Como o que esta em jogo sio “ciritos humanos”, para ele exe tipo de crime imprescritivel. Apesar de este processo ter um cariter tes Mesmos agen. ra, especular sobre as inten it est “mal” redipida en . 40 aco- ar tanto melhor p . Ara OS que, hoje, sivel de ser réu e nao necessariamente a declaratério e nao visar a punig&o do membro do aparelho de repressio, trata-se sem dtivida do maior passo ja dado no Brasil, desde a decreta da Anistia, em diregao a busca da justiga referente aos desmandos da ditadura de 1964-1985. Este processo trouxe mais uma vez 4 tona os malabarismos juridicos e “narrativos” dos membros do regime ditatorial. O ex-Ministro Jarbas Passarinho, em entrevista a Folba de S.Paulo (22/ 11/2006, p. All), tentou ao mesmo tempo dizer que, diferentemente dos regimes totalitdrios, a tortura no Brasil nao era institucional, De fato, ela era “institucionalizada”, ou seja, parte integrante da instituigio ada no sentido de ter um cédigo da ditadura, mas nao institucionali ¢ integralmente: mas tampouco nos regimes totalits ucionalizada desta forma. Sabemos que os campos m propagandeados pelos nazistas, assim como maras de gas também nao passavam por cos, A decisio da chamada “solugio final” acasa de Wansce em Berlin. Passarinho desaparecidos na Argentina, Jado, na legal que a justific rios a tortura foi instit de concentragao nunca forai a tortura e a execugdo nas tribunais ou processos jurid foi feita em uma reuniao secreta, ne atribui o grande ntimero de torturados e ; i Uruguai e Chile ao “sangre caliente” dos espanhois. Por outro | Passarinho afirma que “L ava submetido a seu Jstra, jovem majoh recebeu comandantes € mesma entrevis uma missio”, € que, portanto, es sa para vo far como ot 30 para ge ene 08S Hélio Bicudo & Flav Pree Hehe B06, PA) conexidade (Bicudo, 1995). » Cf. os artigos de Tercio Sampaio Ferra, inion "Rey “irestritamente geral’. Defendendo 2 etcndde ane a an pamne eos de seus defensores cf: 0 arti de ” tublicados na Folha de Direito a verdade ea justiga” (ambos pul bleed Tie wnlo de. 1995 que ja apontava para est ™ defende que a anistia foi 546 | marcio seligmann-silva logo ndo seria responsavel por crimes que o proprio Passarinho afi ‘ma Nao terem existido, Ou seja, a tentativa de levar lado a kido o argumenty da “obediéncia devida” com o da inexisténeia da tortura revela um tipico Besto (antes de mais nada cinico) dos membros do poder que querem acobertar os fatos a todo custo e afastar seus responsdiveis do “julyamenta devido".* Outro argumento contraditério com relagio & afirmagio de due ndo houve violéncia do lado dos agentes do regime ditatorial é due volta a bater na tecla da Anistia de 1979. Passarinho afirma que esta “foi uma anistia mitua. E preciso reconciliagao. Para reconciliar é Preciso esquecer.” Este argumento é excelente para os verdugos, mas, Para as vitimas da violéncia (e estas vitimas so no apenas 0s torturados, 0s assassinados e desaparecidos, mas seus familiares e também toda a Sociedade que € vitima da violencia ao exclui-la da esfera juridica), este argumento é cinico, Finalmente, outro argumento usual entre os defensores da “anistia miitua” é 0 de que os crimes ocorreram dos dois lados, Este argumento novamente assume que ocorreram crimes praticados pelos agentes do poder ditatorial, Ele reaparece em artigo recente publicado no mesmo jornal (28/11/2006, p. A3). Nele, Passarinho volta a insistir na tese do esquecimento reconciliatério: “Intentavamos [com a Anistial cicatrizar feridas e reconciliar a nacido por meio do esquecimento reciproco das violéncias miituas, as quais haviam despertado emogdes intensas e dolorosas”. Ora, como decretar-se o esquecimento de quem foi humilha- do, torturado?’ Como pedir aos familiares que esquecam seus familiares * Por outro lado, em virias ocasides membros do aparelho repressive da ditadura jé reconheceram a pritica da tortura, como se pode let, por exemplo, no livro de Helio Cordeig Miltares ~ Confissdes. Historias Secretas do Brasil (Rio de Janeiro: Matad, 1998) anslisado por Joao Roberto Martins Filho (2001). Geisel, em uma declaragao que ficou famosa, também deve gute “hi circunstincias em que o individuo ¢ impelido a praticar a tortura, para obter determines s confissbes ¢, assim, evitar um mal maior!” (Apud Martins Filho, 2001, p. 109) No Alemania pos-Segunda Guerra Mundial falava-se também que em uma guerta tudo & infernal, postanto nie caheria a acusigio de exagero por parte dos soldados. Da mesma forma, nas décadas poste 305 poucos se reconheceram os crimes, mas mais raramente os préprios criminosos de gu * Como escreveu Marta Nehring: "Quem foi torturado nunca esquece” (Nehting, 1999, p 120). Cf. tambem as observagoes de Jean Améry escitas nos anos 1960, retomando sits experiéne cia de torturado pela Gestapo apos ter sido preso distribuindo propaganda antinazista na Belgica ocupada, Para ele “a dor 4 intensificacio mais elevada de nossa corporeidade [Konperlichke] que podemos pensar nela ocorte a reducio a equagao “corpo = dor = morte” (Amery, 2002, p. 615). A situasdo da dor extrema gera uma distancia com o mundo, no sentido de seu construct conceitual falsamente universal, ¢ revela a nica verdade incontestivel: “Tanto quanto permane. ce da experiéncia da tortura um saber que vai além do mero pesadelo, € o de ume grande surpresa ¢ de uma estranheza do mundo que nio pode ser compensada por qualquer comun caydo humana posterior. Um estupor acerca da existéncia do outro que se slits san linne a tortura — € diante daquilo em que nés mesmos podemos nos transformar, eatne ¢ mort A sjnominia de uma tal aniguilagao nao se deixa apagar. Quem foi martitinny permanecey desiumado, entregue a0 miedo. E le que a partic de entio detéin 0 centr” (Amery aon p. 622) anistia e (in}justiga no bras: © dever de justiga e a imp : uni : lade 547 desaparecidos? Como pedir a uma nagio que se esqueg ce naqueles anos de chumbo? Muito pelo contrario, para refer democracia e para a construgao de um verdadeiro Estado de eee : bem, antes de mais nada, um dever de memoria e um dever dena Poucos dias antes da publicagdo deste artigo de Pasearininy wn, ma Folba de $.Paulo publicara um pequeno artigo do oxPreaduay José Sarney defendendo a anistia e 0 esquecimento.® Samey eonclate neg texto com as palavras: “Portanto, é necessdrio um esforco nacional tare de uma vez por todas, sepultarmos esses fatos no siléncio da histori, Nao remexamos esses infernos, porque nao € bom para o Brasil, Essa conduta nos distingue dos nossos vi 1 do que aconte- dl inhos e, assim, o Brasil é uma socie- dade reconciliada”. £ importante analisar a escolha dos termos pelo ex- presidente escritor. Ele afirma que devemos sepultar esses fatos (ou seja, as torturas, os assa inatos, os corpos insepultos. . .) no siléncio da his- toria. Em que medida a histéria é silencio, € timulo, pedra do esqueci mento? Apenas do ponto de vista dos vencedores que veem na historia len um enorme triunfo, silente, por onde desfilam seus herdis sob mantos brilhantes ¢ louros da gloria, Para os humilhados, perseguidos, que se opuseram aos déspotas, para estes a histdria grita e exige reparo. O pré prio Sarney reconhece que este passado é um inferno, mas ao defender 0 pacto do esquecimento se posiciona do lado oposto ao Estado de Direi- to e da construgio da democracia. Nao podemos montar nossa casa sobre uma montanha de ossos. Estes devem ser devolvidos as suas fami- lias e devidamente nomeados e enterrados. Os responsiveis pelos crimes devem ser julgados. A frase final de Sarney neste texto € mais uma tipica formulagdo de nossas elites politicas: 0 brasileiro quer a reconciliagio (e Esta boutade, que lembra o mote do brasileiro “homem fio a luta). sileiro” cordial”, é tipica dos que sempre teimam em ver no “povo br uma massa amorfa e subserviente. A “cordialidade” sempre foi uma conquista das elites que usaram para tanto da violéncia para gerar esta Sincrivel” reconciliagio e cordialidade. de D. Pedro”, Folha de $,Paulo, 17/11/2006, p. A2 serous a0 menos 1979, Daniel Aarao Reis Filho observou que ela gerat 0 Te 1) apagou-se da memoria a diferenga entre os gue futavam Por (0 da democracia, Os revolucionarios “ni? TT! * (Reis Filho, 1999, p. 134); 2) apagourse © UAE sidstico de virias camadas da sociedade, mento pela democracia. Digs-se de passers mm sido membros da resisténcl ve levaram, ut os ideais parcial e Feciproca. © “Anistia € 0s assos 7 Analisando a anistia de ttés “deslocamentos de sentido”: mesmo propésitos ou principios democraticos ta o ftw de que o regime ditatorial teve apoio enti poucos todos foram parecendo como parte do movianento pels 548 marcio seligmann-silva Mas a referéncia tanto de Passarinho como de Sarney aos casos do, ses vizinhos 6 muito importante. Devemos apenas reverter 9 acentg dado: nao devemos temer estes movimentos em direg se sim sauda-los. De fato, vemos que nestes paises consegttit-se arrancar mordaca imposta pela anistia, A lei de anistia chilena, de 1978, f4; redigida pelos proprios membros do governo ditatorial e publicada quan. do 0 Congreso estava fechado ja ha 08. O | : Bachelet esta revogando esta lei. No Uruguai, o Governo Tabaré Viz. quez facilitou uma interpretagao da lei de anistia que tem permitido ¢ Da justiga cinco anos. O governo de Michelle julgamento de militares e policiais que violaram os direitos humanos na ditadura de 1973-1984. Na Argentina, a lei “del Punto Final” (ne 23.492 de 12/1986), que limitou 0 perfodo de acusagio dos envolvidos na repressdo militar a apenas sessenta dias, teve as suas drasticas conse. quéncias radicalizadas com a “Ley de Obediencia Debida” (7/1987) que isentou de culpa todos os militares inferiores a general-de-brigada, O Governo Kirchner revogou estas leis, As lutas persistentes das “Ma- dres de Plaza de Mayo”, entre outros grupos de resisténcia ao esqueci- mento oficial, E tro lado, que e Jo responsaveis por esta reviravolta. E verdade, por ou- ses. A ditadura na Argentina fraturou muito mais profundamente aquela sociedade. O debate aqui em torno da meméria da ditadura nao pode ser comparado a0 que aconteceu no nosso pais vizinho. A atual discussio em torno do futuro da Esma (Escuela Mecanica de la Armada)® reflete a dimensio da violencia que foi exercida entao pelos militares. Calcula-se que cerca de 30.000 pessoas desapareceram nas mios do Estado durante a dita- dura naquele pais. Cerca de 300.000 argentinos tiveram que se exilar, Mas, apesar destas diferengas, certas quest stem diferengas entre cada um destes p: es so comuns a estes paises. Isto fica patente, por exemplo, quando algumas obras literarias conseguem atingir certas estruturas de poder, juridicas e de memoria que sio compartilhadas no Chile, Argentina, Uruguai ou Brasil, caso da pega de Ariel Dorfman: La Muerte y la Doncella, N carra steéo ‘sta obra, © e vitima se confrontam sob uma nova divistio de forgas, coma vitima dominando a s tuagdo. Um terceiro elemento, um advogado — recém-nomeado para fazer parte de uma comissao que deveria levantar 98 casos de abuso dos direitos humanos com consequéncias fatais — que € marido da vitima, representa de certo modo a instancia jurfdica. A Anica de la qe atuaram durante a ditadur: Armada foi o maior dos 520 campos cla ditatonal ary: ano serviso de ndestinos de detengio tino, Cerca de cinco mil dest aterrorizar ¢ eliminar os oponentes do regime AS pessoas passaram pel ja Esa. eats iustica — que no po A €a impunidade 549 jnstituigdes — paira como uma Promessa irrealin fern Mireito e suas cla encontram-se as forgas do oblivio ee Mavel na peca, Oposta a do personagem Gerardo, © advogado, « *S; Por exemplo, yez por todas e nunca mais fal na frase Vamos virar ess, pata, mas a confissao e 6 pi pagina de uma a sobre isso, nunca”, , 9 rocedimento d, D do julgamente a condenacao), representados na Pega nine elutuoso) do periodo ditatorial, O proprio Dorfina cio de sua obra, que ele buscou uma purgacio do ter gio com a sua peca (Dorfman, 1992, p, 87) — 0 que faz lembrar os uribunais sul-afticanos de reconciliagio idealivades pelo Bispo Tutu, que visam a confissio e€ 0 encontro catartico com o mal passado an no entanto, ter implic f ages propriamente penais. Est vale para boa parte da América L Jo existe re- (mesmo sem stes dispositives meméria (juridico afirma, no posfa- ror e da comisera- ‘a obra de Dorfman -atina, Vocé vai pagar, e é dobrado, | Cada ldgrima rolada / Nesse meu penar Carlos Alberto Idoeta, em um artigo de 19 95, recordou, den- tro do debate sobre a responsabi idade juridica dos agentes do regime ditatorial, as palavras de A Condig@o Humana, de Hannah Arendt, que afirmam que “Os homens sao incapazes de perdoar o que nio podem punir” (Idoeta, 1995, p. 76). No campo da discussio sobre os fatos ocorridos nas ditaduras civil-militares na América Latina, nao cabe se falar em perdido. Como notou Derrida em varios de seus textos, a justi- §a, a anistia e, por outro lado, o perdao funcionam em registros diver- sos. Perdoar tem a ver com dar um dom (isto vale também para outras linguas: pardon, forgive, Vergebung). Trata-se de uma restie 0, de uma volta a termos de igualdade: diante da enormidade de certos eri- mes, isto € impossivel. Como nota ainda Derrida, a cena : peso « een . e ser dese- exige uma “solidao a dois”, um “face a face”: nada disto pode ser des estél i. A fio de iado ou seria possivel diante dos crimes em questio aqui. A nogio de ‘ “ibunal de Nuremberg e mesmo crime contra a humanidade, derivada do tribunal de Nuremberg oar sonciliagaio” sul-afri 4 “Comissio de Verdade e Reconciliagio” sul ana nao tem também 10 texto da pega a seguinte fala do * Dorfinan (1992, p, 63). Poueas piginas antes Jemos na tele Pew 9 SETS OS Besmo personagem, marido da ex-torturada Paulina, diriginio-st 29 vee a ee Chtendo'a necessidade de Paulina, Coincide com a necessilaye aye © Pil Mies dramatica: a tragédia nas suas origens passado onipresente nos paises he fe acontecet 60! “essidade de por em palavras o que a * histérica —e (teu personagens paradigmiticos da cena acerto com um 2 U6) atores —, eqpressa. a necessidade de um acert ina pos-ditadura. 550 marcio seligmann-silva nada em comum com 0 conceito de perdio'® (Derrida, 2005, Caso este perdao fosse possivel, quem pediria perdio a quem? 9 pa pio caberia sempre as vitimas propor este perdiio, Mas quem ae ria? Pode-se perdoar no Iugar de pessoas que morreram? Ans no se pode testemunhar no lugar de um outro, também nay poder? perdoar pelo outro. Como 0 testemunho, também 6 perdig ee line. situagGes extremas: em ambos 0s casos existe uma espécie de impossibi. lidade a priori. Nao se pode testemunhar totalmente a catistrofe Provo. ead pelos setes humanos, 9 mal absolut, assim como ai st on perdoar estes fatos. Por outro lado, existem dispositives juridico-esta. tais que procuram estabelever certas modalidades (“impuras") dono dio, tais como a graga € a anistia. O importante é ter claro que estes dispositivos sao justamente os que tornam explicito 0 quanto o Estado de Direito é ténue e vive nor. malmente & custa de “excecdes”. Ao decretar a anistia (no seu senticy dle “esquecimento oficial”, de “por a sujeira para debaixo do tapete”), © Estado se revela como ciimplice de crimes e de criminosos."" A memé ria do mal € uma importante contraparte da justiga ¢ sem esta, por sua vez (por mais imperfeita que ela seja), o Estado de Direito e a Democra. cia nao se podem construir. Os antigos donos do poder sempre declaram que esta memoria do mal é apenas fruto do édio, da vontade de vingan- ga. Mas, justamente, nao se trata da lei do taliao, do “olho por alho, dente por dente”, porque estamos diante de crimes sem-medida. Trata. do re-conbecimento do mal e do restabelecimento da verdade. e, antes, '* Para ser mais exato € necessério lembrar que a expressio “crime contea a humanidade” Bi havia sido cunbada apés a Primeira Guerra Mundial para se referic ao primeiro grande Benocidio do século XX, 0 dos arménios, perpettado pelos turcos. Jé 0 conceito de genoctio fol sriado por Rafael Lemkin durante a Segunda Guerra Mundial. Nos tribunais de Nuremberg 2 maior parte das acusagdes ndo se referiam ao genocidio dos juudeus. No entanto, foi no sea Ambito que se tentou pela primeira vez “definir e punir crimes contra a humanicede sob leis fonamiicionais ¢ estabelecer certas ages como criminosas, independentemente das leis do pats onde Joram praticadas. Mais avangos no sentido de colocar crimes contra « huntanidade ¢ digttos cis Unidad ote de proeminéncia nas leis internacionais foram feitos em 1948, quando as Nog Gnas aprovaram a Convengio de Genocidio e a Declaragio doe Discites flonan" (Bartoy, Grossmann & Nolan, 2005, p. 13; grifo meu), Mp Srirwiaviiccne et TE ee Para ele 0 todo-poderoso (Micltigsen) € 0 twice capaz de decretar o perdio (Nietasche, 1988, P. 309). Neste ato altruista ele exerce e impoe seu poder, salvando a vida matavel. Fste fato aponta habita © ianeet ional do Estado de Diteito, ou seja, para a verdad le que 0 Estado de Excegio rete ners do Estado de Diteito € nao the € estranho. Mais adiante, na mesma obra, Wsta bioligico, os estatee de cues® admitir algo ainda mais grave: que, do mais alto ponto de al 08 estados de dircito ndo podem sendo ser estados de excegao [Ausnahme-Zustin- eng ae vestiges Parciais da vontade de vida que visa 0 Poder, a cujos fins gerais s€ m enquanto meios "1" (Nietesche, 1998, p. 6: Particulates: a saber, como meios para criar maiores unidades de *: correspondendo a Nietzsche, 1988, p. 312 5), anistia e (in)justica no brasil: asil: 0 dever de justic cca impunidade $51 Nio se pode falar de meméria social e de demoer. conta © papel da instancia juridica neste trab da verdade dos fatos, i sem se levar em alho de restabelecimento Diante da retomada em boa parte da América L; dos crimes cometidos nas tiltimas ditaduras mili, ue atingimos um novo momento nos debates sobre este pasado, Agen ra nao se coloca mais o tema da proximidade e da necessidade de se calar em troca da democracia, Existe um clim atina da questio ares, podemos perceber ‘a interno e internacional (lembremos do caso de Pinochet, preso na Inglaterra em 1998) que in- dica claramente que j4 atingimos um ponto no qual se pode sim enfrentar os crimes cometidos neste passado sem que isto signifique abandonar o projeto democratico, Na Alemanha, para retomar a comparagao, o tribu- nal de Nuremberg pode ocorrer ja em 1945 por conta dos aliados que 0 impuseram. Mas a propria sociedade alema precisou de décadas para poder encarar a questio das responsabilidades individuais. Apenas na tltima década ela comecou a aceitar a culpa do seu exército nas agées de exterminio na Europa Oriental. Este pais mostrou ser possivel este enfren- tamento do passado, apesar de todas as dificuldades que este trabalho de “perlaboragio” do passado implica. Sem este enfrentamento, que deve dar-se no registro da meméria familiar, coletiva e social, e que in- clui também necessariamente o enfrentamento juridico dos crimes do erros (cf. Freud, 1914). Mas a memoria pensada em sua chave politica, juridica e moral nao pode ocultar o fato de que ela é também meméria antropoldgi Nunca é demais insistir no fato de que a luta pela justiga se dé em diferentes niveis, todos distintos e ao mesmo tempo determinantes entre sit o da memoria ¢ historia da sociedade, o da meméria de grupos so- ciais ¢ 0 da meméria dos familiares. A luta de Antigona é tanto familiar como civica, Do mesmo modo, no campo histérico, a luta pela restitui- Sio dos corpos dos “desaparecidos” na ditadura, a luta pela restituigdio da verdade e a luta pela justiga, deve levar em conta estes diversos niveis ado, Tratar 0 desejo de se saber todos os passado, a sociedade esta condenada a repetir seu: ca. de relacionamento com o pas fatos que cercaram a morte de um parente € 0 loc ne um sentimento nascido do revanchismo ou do ddio é nao entender mini- Mamente que toda nossa identidade e meméria social passa pelo nosso telacionamento com nossos antepassados. O sticleo cultural da menria € 0 eulto ¢ respeito para com os mortos. A meméria do mal de quem : Fao enon ee aterron Perdew um familiar ou foi torturado é uma meméria onipresente e aterro juudar estes individuos a tentar reconstruir de seu enterro como: 1 : ante, E papel da sociedade marcio selgmann-suva 552 sto depende tanto da restituigao da verdade como da cons, Cabe ao Estado abrir seus arquivos (incluindo 05 ay. armadas) visando esta busca da verdade,"? Da meméria do mal praticado pelas ditaduras na América Latina demos derivar tanto o dever de meméria como o de reparagio (im, odemos deriva ee " Pagar pears eon val, mas mesmo assim inescapavel). Nao existe “arte do esqueci. possivel, mento”, por mais que seja esta a arte que os antigos donos do poder tentam inventar e praticar com 0 desaparecimento de corpos e de arquivos, Por outro lado, existe uma arte da meméria ¢ esta, desde as suas origens, tem como micleo a tentativa de se dar nome aos mortos € de enterré-los, Refiro-me aqui ao poeta SimOnides de Ceos (c. 556-c. 468 ac), consi- derado o pai da arte, da meméria clissica e que, segundo Cicero (De Oratore Il, 86, 352-4), Quintiliano (11, 2, 11-6) ¢ 0 autor anénimo da Rhetorica ad Herennium, teria estabelecido as bases da mnemotécnica em fungao de um acidente. Nessa anedota Siménides é salvo do desaba- mento de uma sala de banquete onde se comemorava a vit6ria do pug lista Skopas. O que nos importa nessa hist6ria € o que sucedeu apés essa catdstrofe. Os parentes das vitimas, que queriam enterrar os seus familia- res, nao conseguiram reconhecer os mortos que se encontravam total- mente desfigurados sob as ruinas. Eles recorreram a Sim6énides — 0 Gni- as 4 sua mnemotécnica, conseguiu recordar-se suas vidas e i trugao da justisa. quivos das forcas co sobrevivente — que, gra de cada participante do banquete, na medida em que ele recordou-se do local ocupado por eles. Ele associou 0 nome de cada um dos mortos a0 local em que eles foram encontrados mortos — como, hoje em dia, as equipes de medicina forense o fazem em varios paises da América Latina e de outros continentes. Se a mnemotécnica caiu em desuso hé alguns séculos,!? por outro lado esse procedimento de topografia do terror per- manece central na arte da memoria contempordnea. Ele serve de antido- io de plantao quando to aos megacionistas que sempre estiveram e estar fatos extremos acontecem. Para concluir estas reflexes sobre a anistia como amnésia oficial e SOS o dever de memoria gostaria de tecer alguns comentarios sobre os ve sica de Chico Buarque que representam de modo compacto de uma m e denso muitos aspectos da meméria dos desaparecidos durante a dita- Ave we ° artigo de i Beto, “Punir torturas, abrir arquivos’, Folha de S.Paulo, 18/6/2006, P. A3 eo material do site do mo 1 esarq au : oliticos, ee ite do movimento Desarquivando o Brasil (www. desaparecidospolitices ee rel, nao a esta tradigio da arte da memoria, cf. 0 dossié sobre este tema publicado pete : fs a ae Males, Revista do Departamento de ‘Teoria Literiria do TEL, Unic amp, 26.1 junta de 2006. Dossié “Literatura como uma arte da memoria”, “ anistia e (in)justiga no brasil: 0 dever de justiga e a j almpunidade 55: 3 dura de 1964-1985 no Brasil. Refiro-me ao seu “An. Buarque ¢ Miltinho, de 1977),"* inspirado - Angélica” (de Chico Angel (Zuleika Angel Jones) em 1976 por mnembos a? de Zu ceano que queriam impedir a continuidade de suas invee nn 8 paradeiro de seu filho (Stuart Edgart Angel Jones, ra radoe. . sobre ° por agentes da ditadura). Nao por acaso, este episédio de hero ditadura tornou-se tao importante, tendo sido inclusive “poy ae a partir do filme de Sérgio Rezende. Zuzu representa, ao Inewmiten ¥ a vontade de restabelecimento da verdade, 0 desejo ide reencontrar un parente arbitrariamente raptado, torturado e assassinado ¢ o peso terrivel da realidade do oblivio imposto pelas autoridades que, ao final, desa- guou em um novo assassinato, ou seja, 0 da propria Zuzu. E-Ihe negado o direito de enterrar seu filho. Sua luta pela verdade se confunde coma luta pelo corpo do filho. Os desaparecimentos do corpo e da justiga se misturam em sua historia, Este caso revela, simultaneamente, as priticas homicidas do Estado terrorista de 1964 ea tentativa de representar esta arbitrariedade, Para fazer seu luto, Zuzu precisava, antes de mais nada, rra-lo, fazer com que a saber a historia de seu filho, ver seu cadaver, enter justica se cumprisse. Angélica enfatiza 0 aspecto repetitive da memoria do mal, que vive de observar uma auséncia que niio pode ser sanada a po. Na miisica, @ repetigao do verso do advérbio temporal “sempre” ma forma representam nio ser com a restituigao do cor “Quem é esta mulher”, a volta repetitiva sempre dobra da mes! ia do mal como cor seu filho, dar uma mor a recupere ea imagem de um sino que esta caracteristica da mem6ri cena desenhada é a da mae que quer enterrar ncial para que ela mest juatro vezess € astante e reiterativa. A adia € paz para seu corpo — requisito esse! ne 3 epetida a sua paz, Esta mulher, visada pela pergunta repe “ Quem é essa mulher Que carta sempre esse estribilho? $6 queria embalar meu filho Que mora na escuridao do mar Quem é essa mulher Que canta sempre esse lamento? S6 queria lembrar 0 tormento Que fez meu fitho suspirar Quent & essa muulher Que canta sempre 0 mest Sé queria agasalhar meu a F deixar seu corpo descansat Quen € esta mulher Que canta como dobra um sin mo arranjo? Queria cantar por mew renting ‘Que ele naw ponte mais cantar nl do" tanto Zuzu, como as outras mies de desaparecidos e, no limite, a socie- dade brasileira 6rfa de seus filhos desaparecidos (abandonados em valas comuns ou jogados nas profundezas dos mares). A mae na miisica quer “Jembrar 0 tormento” que fez seu filho suspirar: a narragdo dos fatos, a tituigdo da verdade é uma etapa essencial no trabalho de luto assim nos processos de transigao de regimes autoritarios para democri- ticos. As Comissées de Verdade existem justamente para restituirem os fatos e permitirem a construgao de uma sociedade que possa viver livre do peso do passado com suas injusticas. No fim, na tltima “estrofe”, a mae quer cantar por seu menino, que nao pode cantar, Ela mesma se torna testemunha desta histéria que encerra em si o siléncio, 0 apaga- mento da verdade. Assim como a propria miisica de Chico Buarque traz em si esta historia perfurada, que nao cessa de voltar porque a justica e o trabalho de memoria ainda nao foram feitos.'* resi como Bibliografia Agamben, Giorgio. Estado de excesdo. Trad, I, Poleti, Sio Paulo: Boitempo, 2004. Amery, Jean. “Die Tortur”. In: We ce, vol. Il, Stuttgart: Klett-Cotta, 2002. clan na de Paul '8 f interessante confrontar esta letra de Chico Buarque com 0 poem lan tem uma “Nachilich Geschiirzt” (“De noite arrepanhados’, na tradugio de Joao Barrento). poética derivada em grande parte de sua experiéncia de sobrevivente das atrocidades do nats tno, ¢ ele perdera seus pais em campos de concentracio. A diferenca entre as poéticas destes des poctas clara: Buarque cria um poema com uma temporalidade estendica ¢ nto concentrsds ¢ Espacializada, como Celan, Em Buarque, 0s espagos privado e publico se encontram em Bt dhama politico, j4 em Celan a poesia tende para uma mise er abyme que nos faz oscil eniee 8 ‘eferéneia histérica e a forca de stias imagens poéticas, Mas 0 confronto ¢ interessante, medida em que colocamos lado a lado duas potentes artes da memon poséticas de duas re pitiee dovséculo XX. Ambos poetas buscam criar pelas palavras um espaco pata os $60 “desaparecidos”, ambos podem ser incluidos na literatura do trauma que 5 desenvoled sécale XX em fungio de suas intimeras catéstrofes (cf. Seligmann-Silva, 20050) De noite Srrepanhados 7 os labios das flores, / cruzados e entrelagados / 0 fustes dos sbtos [ encansie © musgo, estremecida a pedta, / desperta para 0 vo infinito / as gralhas sobre © alacia (08 sio as paragens onde / descansam aqueles que surpreendemos: // eles pio iN nomeat a hor J nem Foner os flocos, / nem seguir as dguas até a0 agude. // Estio separades no ON lum com a sua noite, / cada um com a sua morte, / tudes, de cal coe geada / de pertos ¢ longes. // Pagam a culpa que animow a sts oF mn palavra / que existe injustamente, como o verao. // Uma ps P Vamos laviclo, / vamos pented-lo, / vamos voltar-Ihe os ollos {D2 Inrinkt / die Schaite d 108 de geschiirzt / die Lippen der Blumen, / gckreuzt und verse ne Moos, evachattert der Stein, / erwacht zum unendlichen Pluge / 46° 'syunde mitt die wit ereilt: [7 sie werden ee / Sie stehet letscher: // dies ist die Gegend, wo / raste canhan/ die Flocken nicht zallen, 7 den Wassern nicht folgen ans WEDE A yo, ‘Nacht, 7 ein jeglicher bei eiNe™ "CC, urseunt in der Welt, / cin jeglicher bei seiner b Tid barhaupt, bereift / von Nahem und Fernem. // Sie tragen die Scola et Nort pee ene ee ayen sie aban ein Wort, / das zu Untecht besteht, wie G60 S710 yas abe AME immer / 8 oersetaats J eine Leiche. /f Lass uns sie waschen, / lass uns sie Kk huntelwarts wenden” (Celan, 1996, pp. 5638.)

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