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LAURA DE MELLO E SOUZA O DIABO E UAW Dim SAN gi ON Na época em que se descobriu a América, a Europa mergulhava num periodo ambiguo caracterizado pela alternancia das Luzes e das Trevas. De um lado, o Renascimento, a retomada do crescimento econdmico, 0 prospero comércio transocednico; de outro, os manuais do inquisidor, a caga ds bruxas, as fogueiras e a institucionalizagao da tortura. No imagindrio europeu o Brasil foi simultaneamente Paraiso e Inferno. Enviava 4 metropole cargas preciosas de metal e pedras rutilantes. Enviava também a carga danada de presumiveis inimigos de Deus e do credo catélico, que, uma vez processados ¢ torturados pela Inquisigao, safam condenados nos Autos da Fé, Ser feiticeiro em terras da colénia era um estigma a mais. Identificava-se Brasil ao Inferno, e j4 no século XVII frei Vicente do Salvador se consternava ao constatar que 0 nome da madeira vermelha (0 pau-brasil) acabara engolindo a denominagao religiosa de Terra de Santa Cruz. Sendo assim, as praticas proprias dos habitantes da coldnia eram vistas como demoniacas: 0 colono e 0 diabo se aproximavam no imaginario europeu. Para detectar, descrever e O DIABO E A TERRA DE SANTA CRUZ ATENCAOH! ‘Trate-me com carinho! Nao me suje, rasgue ou rabisque. N&o pertengo somente a voog, mas a toda a comunidade, Obrigado! LAURA DE MELLO E SOUZA ODIABOE A TERRA DE SANTA CRUZ FEITICARIA E RELIGIOSIDADE POPULAR NO BRASIL COLONIAL reimpressio Copyright © 1986 by Laura de Mello e Souza ‘Capa: Eutore Bottini a partir de ilustragio de Gustave Doré para a Divina Comédia de Dante Revisio: Telma Domingues J6 de Mello Carlos Tomio Kurata Dds Iternacionas de Catalogo na Publicar (CP) (Clouse Brasileira de Lio, s, Bras) ‘Sousa, Laws de Malo ‘0 abo Tera de Sata Cruz: feta wigs ade popaar no Bra oli / Laura de Mell Souza — ‘Sto Pal: Companhia ds Leta, 1986, Biiogntia sin 85 85095.06.0 LDemooologia — Brasil 2. Feiigan — Brasil 3 Religosbde Tino Tt: Faibana © rege op lar no Br oli cov 13340081 133.2096 3 Todos 0s direitos desta edig&o reservados a fees scan Ere Rua Bandra Puls, 12) 32 04332002 — Sto Palo se Telefone: (11) 3707-3500 Fax: (11) 3707-3501 ‘www.companhiadasletras.com.br Para meus pais, e para Mauricio. “O dia que capitio-mor Pedro Alvares Cabral levantou a cruz (...) era a 3 de maio, quando se celebra a invengio da Santa Cruz em que Cristo Nosso Redentor morreu por nds, ¢ por esta causa pos nome & terra que havia descoberta de Santa Cruz € por este nome foi conhecida muitos anos. Porém, como o deménio com o sinal da cruz perdeu todo © dominio que tinha sobre os homens, receando perder também 0 muito que tinha em os desta terra, trabalhou que se esquecesse 0 primeiro nome € Ihe ficasse 0 de Brasil, por causa de um pau assim chamado de cor abrasada ¢ vermelha com que tingem panos, qu: o daquele divino pau, que deu tinta € virtude a todos os sacramentos da Igrej Frei Vicente do Salvador, Histéria do Brasi! (1627) INDICE Agradecimentos u Abreviaturas 0... 2... re ee ei Introdugao 15 Parte I: Riquezas e impiedades: a sina da col6nia ......... 19 Capitulo 1: O Novo Mundo entre Deus © 0 Diabo .... 21 Capitulo 2: Religiosidade popular na colénia ......... 86 Parte II: Feiticaria, prdticas magicas e vida cotidiana ... Capitulo 3: Sobrevivencia material ................. 157 Capitulo 4: Deflagragdo de conflitos .. 194 Capitulo 5: Preservacao da afetividade 227 Capitulo 6: Comunicacdo com o sobrenatural 243 Parte III: Universo cultural, projegdes imagindrias e vivéncias reais .. Capitulo 7: Os discursos imbricados ..... dln Capitulo 8: Histérias extraordindrias: o destino de cada um 334 +. 277 Concluséo: Sabbats e Calundus Aptadice Heese . 379 AGRADECIMENTOS Agradeco 4 FAPESP pela bolsa de doutoramento que me con- cedeu entre 1982 ¢ 1984, fornecendo-me ainda a passagem aérea para Portugal. Nesse pais, pude desenvolver a pesquisa nos arquivos de- vido bolsa que obtive junto & Fundagdo Calouste Gulbenkian, a qual também dirijo meus agradecimentos. Mais uma vez, sou grata a Fernando A. Novais por ter aceitado a orientagao da tese, acompanhando-a em todas as suas etapas. Em Portugal e no Brasil, contei com a ajuda e colaboracao de varios amigos, alunos, colegas e antigos professores. Gostaria de lem- biar com reconhecimento as “‘conservadoras" do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em especial as sras. Maria do Carmo Farinha e Manuela Nunes, e os amigos portugueses Antonio Justino Ribeiro, Ana Isabel e Ana Maria Reis, colegas de oficio. Agradeco ainda aos colegas e amigos que leram trechos deste trabalho e/ou contribuiram com sugestdes © indicagdes bibliogréficas: Edgard Carone, Carlos Roberto Figueiredo Nogueira, Hildrio Franco Jr., Janice Theodoro da Silva, Leila Mezan Algranti, Luis Mott, Mary del Priore, Ronaldo Vainfas, Silvia H. Lara. Pelo incentivo constante ¢ pela generosidade em fornecer indicagdes de documentos, tenho um débito particular para com a prof." Anita Novinsky: Em parte da pesquisa tive a cola- boragdo dos alunos José Augusto dos Santos Felipe, Katia Gerab, Mércia Fonseca de Mendonca Lima e Maria Angélica de Campos Resende. Contei ainda com a competéncia de Luzia M. Rocha na datilo- grafia dos originais e de Benedito Ramos da Silva Filho (Bené) na execugio das cépias fotograficas que integram esta edigio. Por fim, o reconhecimento aos amigos e parentes que me deram apoio afetivo e me ajudaram na vida cotidiana: Yvonne Feldman, Caio Cesar Boschi, Regina von Christian, meus pais e Mauricio, meu marido. 4 ABREVIATURAS tico da Arquidiocese de Mariana tico da Arquidiocese de Belo Horizonte AGCRJ — Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro ANTT — Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Lisboa HAHR — Hispanic American Historical Review INTRODUCAO Objeto de estudo de algumas das principais obras historiogré- ficas dos tiltimos anos, inscrita na Histéria das Mentalidades e tam- bém no que vem sendo chamado de Histéria do Imaginério, a feiti- aria no Brasil durante os séculos XVI, XVII e XVIII nao suscitou, até hoje, nenhuma pesquisa. E isto nfo ocorreu por falta de fontes: as priticas magicas e a feitigaria propriamente dita foram motivo de preocupaco para as autoridades coloniais civis e para as eclesiésti- cas, € houve casos apurados pelas Visitacées do Santo Officio ao Brasil que seguiram para Portugal e 14 foram julgados pelo Tribunal da Inquisigao. Quando pensei que poderia pelo menos iniciar o percurso no sentido de sanar esta lacuna, tinha em vista um trabalho sobre a feiticaria dos tempos coloniais com base nos processos dos réus bra- sileiros. Procurava, desta forma, alargar os estudos que vinha desen- volvendo sobre as camadas socialmente desclassificadas e sobre a articulago dos aparelhos de poder no Brasil colonial. Jé na época da elaboragao de Desclassificados do ouro, minha dissertago de mestrado, chamara-me a atencdo a presenga marcante de feiticeiras € feiticeiros negros entre a populacdo pobre e marginalizada das Minas, que as Devassas Eclesidsticas retrataram em suas préticas cotidianas freqiientemente impregnadas de magismo ¢ bruxaria. Na- quela ocasiao, acreditava que a feiticaria exercida por esses homens pobres — livres, escravos e libertos — apresentava elementos pre- dominantemente africanos. Sobre eles incidia a carga reprobatoria dos poderosos e também a do homem comum, que na condenagéo de seus iguais buscava identificagio com as camadas dominantes introjetava sua ideologia. Reprimindo-se a magia africana, cercea- vam-se as possibilidades de manifestag3o de uma cultura prépria, 15 especifica, que era a do negro e, mais grave ainda, era a do escravo — sendo, como tal, extremamente ameagadora 4 ordem vigente. © aprofundamento da leitura de obras especificas permitiu-me entretanto perceber que muitos dos casos presentes nas Devassas, até entao tidos por mim como testemunhos da persisténcia de pré- ticas africanas, diziam respeito a um substrato comum também a feiticaria européia. Evidentemente, entre uma e outra havia diferen- ¢as bésicas; a colénia nao conhecera grandes surtos de possessio di:monfaca como os dos conventos franceses seiscentistas ou como o vivido pelos habitantes de Salem, na América do Norte. Mas, apesar disso, fora considerdvel a presenca da feitigaria no cotidiano dos colonos, 0 que se tornava cada vez mais evidente conforme eu avan- cava a leitura da documentagio. S6 na Visitagio do Grio-Pardé (1763-1769), apuraram-se, num total de 47 culpas, 21 casos de feiti- caria e nove de curas mégicas. Por um lado, a feitigaria colonial mos- trava-se estreitamente ligada as necessidades iminentes do dia-a-dia, buscando a resolucao de problemas concretos. Por outro, aproxima- va-se muito da religiao vivida pela populagdo, as receitas magicas assumindo com freqiiéncia a forma de oragées dirigidas a Deus, a Jesus, aos santos, a Virgem. Surgia assim um novo problema: a especificidade da reli vivida pela populagao colonial, eivada de reminiscéncias folcléricas européias e paulatinamente colorida pelas contribuigdes culturais de negros e indios. Andlises brilhantes e sofisticadas como as de Le Goff para a cultura popular medieval, as de Ladurie para © cotidiano cé- taro, as de Guinzburg para a cultura ¢ religiosidade popular no inicio da Epoca Moderna, as de Delumeau para a questdo religiosa no mesmo periodo, levaram-me a ter certeza cada vez maior de que nao conseguiria ir muito longe no assunto se ndo alargasse minhas preo- cupages e considerasse os limites da cristianizagao das camadas populares — limites estes que impeliram certos estudiosos a abra- garem a nocao de “cristianizagao imperfeita” das massas do Ocidente europeu. ‘A natureza da populago colonial impés novas preocupacées te6ricas, alterando mais uma vez 0 rumo do trabalho. Sua especifi- cidade residia na convivéncia e interpenetragéo de populagdes de procedéncias varias ¢ credos diversos. Multiplas tradicdes culturais desaguavam, assim, na feiticaria e na religiosidade popular. Dar conta dessa complexidade significava compreendé-la como o lugar em que se cruzavam e reelaboravam niveis culturais miltiplos, agentes de um longo processo de sincretizagaio. Feiticaria e religiosidade coloniais passaram entao a ser associa- 16

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