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-b0:060 Numero de chamada John Bowlby CUIDADOS MATERNOS E SAUDE MENTAL Com a colaboragao de Mary D. Salter Ainsworth Martins Fontes Soo Paulo 2002 Or éo aco reypansie! ‘piopaeade oat ‘rasan ves wicia BUPTSTA DE SOUZA Sink} Dew rien Cau Pn IP) "Comes adr doi SP Bra onl Charan emo ine Tose pr cay hres evo issue Indice Prefiicio da primeira edigao VIL Preficio da segunda edigdo IX Primeira parte Efeitos prejudiciais da privagao da mae pela privagao was pequenas 17 s pela privacao velhas que sofreram privagio 45 ilias fracassam? 77 10. tlegiimidade e privacao 105 1. Familias substirutas Adogio H7 12 Familias substitutas I Lares substitutos 127 13. Atendimento em grupo 1ST HH testndncia ds eriangas desajustadas e doentes 163 ie pministragao dos servicos de assisténcia a erianga problemas a serem resolvides 177 Terceira parte _ Pesquisas sobre os efeitos prejudiciais da privagao 16, Pontos controversos 187 17. Conclusaes de pesquisas recentes 197 Conclusio 231 indice remissivo. 235 Prefécio da primeira edigéo Durante a terceira sessdo da Comissdo Social das Nagées Unidas, realizada em abril de 1948, decidiu-se promover um es- tudo sobre as necessidades das criangas sem lar: Foram conside- radas“criangas sem lar” as criangas érfas ou separadas de suas “familias ou por outros motivos, que necessitam dos cuidados de ares substindtos, de instituigdes e de outros tipos de assisténcia. Oestudo em questdo deveria limitar-se ds eriangas que “néo tém lar em sua terra natal”, excluindo-se assim. explicitamente, 08 refugiados de guerra ou de outras calamidades. Quando a ONU solicitou comentirios e sugestoes ds organizagdes especializadas interessadas no assunto, a Organizagdo Mundial da Saitde pro ‘pds como contribuigdo um estudo sobre os aspectos do problema relacionados com a satide mental. A oferta foi aceita; 0 resultado Eo relatorio no qual este livra se baseia. O Dr: Bowlby foi contratado pela Organizagdo Mundial da Satide, em janciro de 1950, especialmente para este estudo, tendo passadlo cerca de cinco meses em visita a diversos paises da Eu- ropa ~ Franca, Holanda, Suécta, Suica e Reino Unido ~ e aos Es- tados Unidos. Em cada un desses paises, participou de diseus- Ses com pessoas que, em sua maioria, tinham alguma relagao com a assisténcia @ a orientagdo infantis, familiarizou-se com yeu trabalho e fomou conhecimento da literatura especializada exisieme, Nestas discussdes ele pode perceber um alto grau de iermos e xatule mental vat concontancia vom relagdo tanto aos principios basicas da sate | quanto as formas priticas pelas quais ela pode ‘mental infan ser protegiida. i Num relatério como o solicitado ao Dr. Bowlby, so neces ‘os determinados tipos de informacdes. As fontes de consulta devem ser fornecidas e deve-se especificar claramente os espe- ialistay cujos rabulhos foram utilizados. Deve-se fazer uso de da- ‘dos estatisticos, sempre que estiverem disponiveis, apresentando- ‘os de forma clara para que possam ser wtilizados por outros estu- Yiosos do assunto. Na propria redacdo do relatbrio é necesséric 4 maior exatidaa possivel, o que implica. fregiientemnte, o empre- 0 de linguagem técnica. Tudo isto, embora imprescindivel, nao contribui para tornar este tipo de relatério de facil leitura para o piiblico em geral. O leitor comum é capaz de assustar-se diante ‘de uma pagina cheia de referéncias e nimeros, com palavras des- conhecidas e nomes que nada the dizem. Contudo, 0 tema do re- latério diz respeito, muita de perto, ao bem-estar de toda a nossa sociedude, Sendo assim, julgamos que valeria a pena publicar tuna verséo resumida e, de certa forma, simplificada do relatario, ‘igida ao leitor comum. Esta versdo foi revista pelo Dr. Bowlby, que acrescentou também alguns paragrafos ao final do primeiro capitulo, Os estudiosos do assunto nao precisardo ser alertados de que nao se devem contentar com esta versao simplificada, de- vendo utilizar o relaiério original do Dr. John Bowlby, Mater- nal Care and Mental Health, no qual este livro se haseia, O refe- rido relatério foi publicudo em 1951 ¢ pode ser obtido direta- mente da Organizacdo Mundial da Saide, em Genebra, ou do Her Majesty's Stationery Office, Kingsway, em Londres, ao prego de 13s6d em brochura ou 17s6d encadernado, ou ainda da Co- lumbia University Press, Nova York , ao prego de US$ 2.004 bro- chura e US$ 2.50 0 exemplar encadernado. Os autores, e respectivas editoras, dos diversos trabalhos ‘mencionadas no texto gentilmente deram permissdo para as cita~ es; a eles, 0 nosso agradecimento. Agosto de 1952 S.M.F Preficio da segunda edigao Passaram-se alguns anos desde que este livro 0 relatéria al foram publicados. Durante estes anos, observou-se um acentuado interesse por suas teses, strgiram novus provas ¢ le- vantou-se vivo debate sobre os aspectos cientificos. Observou-se, também, um reconhecimento cada vez maior da necessidade de garantir ds criangas a assisténcia ¢ 0 afeto que, hoje, sabemos se- rem necessérios para seu desenvolvimento sadio. Embora as vantagens dos cuidados maternos e os perigas da privagio sejam agora universalmente aceitos, muitos aspectos da questdo permanecem ainda controvertidos. Os efeitos adversos sdo muito ou pouco especificos? Os danos sdo permanentes ou ndo? O que é, exatamente, que os provoca? Tendo em vista que es- tas ¢ muitay outras questdes similares ainda sdo levantadas, a Or- ganizagdo Mundial da Satide julgou comveniente examinar de novo o problema; assim, em 1962, foi publicada uma série de artigos es- critos por especialistas renomados, sob o titulo geral de Depriva- tion of Maternal Care: a Reassessment of its Effects*. O iiltimo desses artigos, € 0 mais longo, é da Dra. Mary Salter Ainsworth, uma antiga colega. Ali, ela examina as colocagdes dos demais co- lahoradores ¢ apresenta um levantamento abrangente do tema. snc (Londres: HMSO; Neva Yor __Cidudas maternase side mental O artigo da Dra. Salter Ainsworth proporeionou-nos a apor- unidade para prepara uma nova edigao deste livre. Com a per- misao da Organizacio Mundial da Saiide e com a colaboracae va Dra. Salter Ainsworth, seu artigo foi utilizado como base para dois novos capinulos, O primeiro identifica oito pontos que tém dado margem a controvérsias, e o segundo examina cada um de- tes é luz das comprovagdes mais recentes. O restante do livro so- freu apenas algumas mudangas insignificantes. ‘Esta edigio termina com a mesma “Conclusdo” que apare- ce na primeira edigdo. Embora, arualmente, a conseiéneia do pro- blema soja mais aguda e em diversos paises estejam sendo reali- ‘sados grandes esforcos para melhorar os servicos, ainda resta ‘muito por fazer. Portanto, os pontas de vista que expressei em 1951, com pequenas revises, ainda so atuais, Espero que chegue bre- veo dia em que estejam ultrapassados. Infelizmente, os dois capitulos adicionais nao foram prepa- rados por Margery Fry, que faleceu em 1958, Foi inteiramente ‘gragas ao seu entusiasmo e d sua capacidade, embora ja tivesse iwtrapassado, havia muito, os setenta anos, que esta versdo resu- rida de meu relatério foi publicada. Sinto-me, pois, permanente ¢ profundamente em débito para com ela. Julho de 1964 JB. Primeira Parte Efeitos prejudiciais da privagéo da mae Capitulo 1 Algumas causas da doenca mental Dentre os mais significativos avangos da psiquiatria®, neste 10 quarto de século, acha-se crescente comprovacao de que a qualidade dos cuidados parentais que uma crianga recebe em seus primeiros anos de vida & de importancia vital para a sua satide mental futura Gragas, em grande parte, a estes novos conhecimentos, exis- te atualmente um alto indice de concordancia entre as pessoas que trabalham com criangas, na Europa e na América, quanto a determinadas nogdes centr sm semelhangas na forma de abordar, estudar e diagnosticar seus pacientes, nos objetivos de seus tratamentos e, acima de tudo, nas teorias sobre as causas da ’aS quais baseiam seu trabalho, Sera discutido no Wvro quais sao essas causas, No momento, basta satide mental é que o te human, 4 te uma pessoa que desempenha, regular e const de mae para cles), na qual ambos encontrem satisfagao e prazer, & ‘esta relagao complexa, rica e compensadora com a mae, nos ‘meiros anos, enriquecida de inimeras maneiras com o pai e com os irmaos ¢ irmas, que os psi muitos outros julgam, atualmente, estar na base ‘mento da personalidade e saiide ment Chama-se “privacdo da mae” a situacdo na qual uma crianga no encontra este tipo de relagdo. E uma expresso ampla, que abrange um grande niimero de situacdes diferentes. Assim, uma crianga sofre privacdo quando, vivendo em sua casa, a mae (ou mie substituta permanente) & incapaz de proporcionar-Ihe os cuidados amorosos de que as criangas pequenas precisam. E, ain- da, uma crianga sofre privacao se, por qualquer motivo, é afa da dos cuidados de sua mie. Esta privacdo sera relativamente suave se a crianga passar a ser cuidada por alguém em quem ela {jd aprendeu a confiar ¢ a quem jé conhece, mas pode ser acen- tuada se a mae substituta em questdo, embora amorosa, for uma estranha, Contudo, estas situagdes ainda dao a crianga alguma satisfagao; representam, portanto, exemplos de “privagao par- Opéem-se a “privayao quase total”, ainda bastante comum igdes, nas creches residenciais © nos ho: onde freqiientemente uma crianga nao dispe de uma determinada pessoa que cuide dela de forma pessoal ¢ com quem ela possa sentir-se segura Os efeitos perniciosos da privagao variam de acordo com seu grau, A privagdo parcial traz consigo a angistia, uma ex: necessidade de amor, fortes sentimentos de vinganga qiéncia, culpa e depressio. Uma crianga pequena, ainda im de mente e corpo, no idar bem com todas estas impulsos. A forma pela qual ela reage a estas perturbagie: sua vida interior podera resultar em distirbios nervosos ¢ do desenvol sobre o desenvolvimento da personalidade, ¢ pode mut mente a capacidade de estabelecer relagdes com outras pessoas. Muitos pesquisadores investigaram as relagdes entre “lares des- feitos” e a incapacidade das criangas para se ajustarem a vida feos prj a privayio da mae ae, dos confirmaram a grande impor- tincia das primeiras experincias da crianga num lar. Noentanto, a idéia de “lar desfeito” implica uma variedade muito grande de es para que seja possivel constituir uma classificagao sa- tisfatéria para estudo cientifico; é melhor concentrar nosso inte~ desenvolvimento da relagdo da crianga com a mie € 0 , grande parte do que era obscuro nas origens da doen- ‘samental tornar-se-é mais claro. Esta abordagem pode ser muito frutifera; como exemplo po- ‘demos citar um estudo, feito com 102 infratores reincidentes cu- com outras pessoas. Estes inglesa. Esse estudo demonstrou claramente como as ss provocadas por relagées insatisfatérias na primeira in- fancia predispdem as criangas a reagirem, mais tarde, dk anti-social diante das tenses. A maior parte das situagdes de an- 08 de Naturalmente, além da privacdo existem muitas outras for- mas, decorrentes da separacdo ou de uma rejeicdo total ta. Aos olhos da crianga pe- renha um papel secundirio, e seu valor cresce ‘como 05 filhos ilegitimos nao ignoram, os mesmo para os bebés. Eles ndo apenas dio is para que suas esposas possam dedicar-se sem idacdlos do bebé, como também, através de seu Cwidados maternose saide menial amor e companheirismo, dio apoio emocional 4 mac ajudando-a aimanter um clima de harmonia e satisfagao, no qual o bebé se de- Senvoive. Conseqiientemente, nas paginas que se segue, pouco falaremos sobre a relagdo pai-fillio, a0 passo que abordaremos con- tinuamente a relagdo mae~ valor do pai como apoio eco- ‘némico e emocional da me ficard implicito. "As teorias que atribuem as origens dos distirbios mentais a estes acontecimentos domésticos intimos tém suas raizes no tra~ batho de Sigmund Freud e de outros membros da escola psicana- litica por ele criada. Na verdade, grande parte das pesquisas refe- ridas neste livro foi realizada por psiquiatras e psic6logos com for- ‘macdo especifica nesta linha. Tais teorias, € dbvio, contrastam acentuadamente com as que enfatizam os fatores constitucionais, herdados, tornando a hereditariedade responsavel por quase tudo. Basta isso para mostrar que a importéncia relativa da natureza da educagio ainda esté por ser determinada. E interessante saber a respeito, que um estudo recente com seres humanos e anim antes do nascimento, apresentou um conjunto consideravel de provas de que mudancas prejudiciais no meio ambiente, durante a fase fetal, podem provocar perturbacées no crescimento ¢ no de- senvolvimento exatamente iguais as que, antigamente, eram atri- buidas a hereditariedade. Trata-se de uma descoberta da maior importancia que, como veremos, possui um paralelo perfeito na psicologia, Contudo, devemos salientar que tais descobertas nlio contrariam, definitivamente, as teorias acerca da influéncia nega~ tiva de fatores hereditarios, exceto enquanto afirmam que apenas 0s fatores hereditarios sd responsaveis por todas as diferencas no comportamento humano. Na realidade, temos razdes para acre- ditar que os fatores hereditirios também desempenham seu papel € que alcangaremos um maior progresso cientifico quando formos capazes de estudar a interagao entre os dois grupos. Um segundo principio biolégico de amplo alcance tem ori- Bem no estudo do desenvolvimento pré-natal; os efeitos prejudi- ciais da intoxicagao, infec¢o ou outros problemas sobre o feto do hhomem ou do animal variam nao apenas na razio da natureza do as de caprichos momentineos, Para elas, todos os desejos #° 55. “Eferosprejudicias da privagdo da mae realizados. Seu poder de autocon- \cd0 inexiste ou € muito fra em isto, as pessoas nao po- vm mover-se eficazmente no mundo — elas so jogadas de um para o outro por qualquer impulso. Sao, dessa forma, perso- ouco eficazes, incapazes de aprender com a experién- jores inimigos de si mesmos. Ainda ‘nao podemos explicar exatamente como a privagao da mac pro- duz este resultado, mas ja se pode observar dois pontos que po- dem nos levar @ progresso na compreensio do problema, Trata-se, primeiramente, da descoberta do Dr. Goldfarb acerca da ‘iculdade de tais pacientes com o raciocinio abstrato, de sua re- jpacidade para lidar com idéias em vez de ficarem pre- (os objetos que se apresentam, naquele momento, aos seus ‘em segundo lugar, da observagao de médicos, que ten- tam ajudar estas pessoas, com respeito 4 sua incapacidade para sai- io por outras pessoas ou pelo iguais ¢ devem ser igualm interesse por coisas externas as Todas as criangas em instit farb apresentaram uma incapacidade grave e especifica para o 1a- ciocinio abstrato. Ora, acabamos de ver que este pensamento é necessério 4 ago do eu e da consciéncia — 0 bebé deve aprender gradualmente a pensar antes de agir e deve abandonar a resposta automatica a qualquer acontecimento, seja um som, uma luz, a forma ou a dor: sé entio ele se tomara uma pessoa completa. As- sim, é bem possivel que, quando o raciocinio abstrato ndo se de- senvolve adequadamente, a personalidade nao possa amadurecer totalmente. Mas, mesmo assim, resta mostrar por que a privagao pode prejudicar a capacidade de raciocinio abstrato. fracasso do desenvolvimento da personalidade nas crian- ‘gas que softem privagao ¢, talvez, mais bem compreendido quan- do se considera que ¢ a mie que, nos primeiros anos de vida da crianga, funciona como sua personalidade e consciéncia. A crian- a em instituigao nunca teve esta experigncia e, dessa forma, no Pde nunca completara primeira fase do desem fave uma telacdo com uma figura materna claramente defini- oe que teve foi uma sucessio de agentes paliativos, cada auxiliando-a de uma forma limitada, mas nenhum deles pro- Porcionando-the a continuidade no tempo, que faz parte da essén- Oana cin da personalidade. E bem possivel que estas criangas, grave,

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