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RECENSOES CRITICAS Para além das recens6es criticas de obras escolhidas pelo conselho de redacco far-se-4 uma referéncia a todos os livros e revistas que nos forem remetidos. Epuanoo Lourenoo, O Labirinto d+ Saudade, Psicandlise Mitica do Destino Portugués Lisboa, PublicagSes Dom Quixote, 1978. Nio serei capaz,nem de atestar, nem de contestar a afirmagio de quem. considera este livro de Eduardo Lourengo um dos mais importantes — senzo ‘© mais importante — dos livros publicados sobre Portugal, de 1974 para ci. Parece-me, porém, incontestayelmente importante o aparecimento deste livro, ‘no 56 pelas quesides que levanta a quem se propuser reflectr sobre as cons ‘iéncias colectivas do espago cultural portugués, mas também pelas questbes ‘que um ta ivro nos sugere como expressfo de um determinado comportamento cultural, E muito arriscado abordar, com seriedade, seguranga, ¢ sem pejo, em apenas algumas dezenas de piinas, a problemitica elaborada de representaedes colectivas que uma sociedade de longa ¢ viria histria e de longa ¢ complexa cevolugio das suas formagdes socais cra acerca desi mesma. Eduardo Lourengo permite-se uma tal owsadia, consciente da autoridade cultural ¢ moral que sabe ter conguistado junto do piblico ledor portugués. A sagacidade intelecwal, a sensibilidade aos fenémenos colectivos, a comprovada maestria na anilise da fceratura culta, servem admiravelmente Eduardo Lourengo na consteugio do seu discurso sobre a imagologia portuguess. Nio servem porém uma efce- ‘iva imagologia nacional portugues, porque Eduardo Lourengo, em meu entender, a0 eontririo do que afiema propér-se (pig. 14), mio conste6i um. discurso sobre as imagens que os portugucses forjam de si mesmos Eduardo Lourenco constréi o sou discurso sobre imagens que cle atribui 20s portmaueses e sobre images que os literatos, por auto-vocacionamento (pro~ fético), constroiem sobre (c pel) colectividade nacional, e que 3 falta da neces- siria comprovagao sui0 podem exprimir senio a consciéncia dos que a5 prom duzem. Este fcto € importante como revelador de um fenémeno culeural que merece ser posto em relevo. ‘Trata-se, em meu entender, de uma confusio de anges culturas ¢ sociais de natureza distinta, reveladora ela mesma de uma determinads relagio dos agentes culeurais pars com a colectividade. © Labirito da Saudade, com o peeile algumas operagSes de uma analise ientfica, € um discurso profético. E claro que a categoria de profit tem + Manuel Maria Carilho, O Fi de Ariane, in Abi Lisboa, Outubro de 1978, 2 8, pig. 10, 132 Revitta Critics de Citncas Sociait ‘aqui o sen sentido original de porta-vor desvendador de um destino colectivo 42 que uma vocasio particular garante a validade ¢ a autoridade. A fungio profitica, como € sabido, pertence 20 dominio do sagrado e ¢ incontrolivel. Por sua vez a fungio analitica (pscandlise, psicologia, sociologia antropologia) pertence ao dominio controbivel da cigacia. Esa dass fangdes so de natureza cultural ¢ social diversas irreconeilifves. A sua confusio no mesmo discurso torna-o ambiguo e desvirtua-lhe as respectivas fungSes nele implicadas. "A. preoctpagio de Eduardo Lourengo & a da busca de uma imagem colectiva nacional que aproxime os portugueses da sua prOpria realidade, imagem que seja produto e reflexo da existéncia colectva nacional ¢ seu pro~ jecto hist6rico (pig.14), contraimagem de que os portugueses necesitam para se verem tis quais so, ou conversio de antiga imagem mitica de Portugal (pig. 62). ‘Com esta proocupasde, E. L, balanga-se entre a atitude do profeta, gue desvenda e denuncia 0 caricter€ o sentido profundo do destino da colectividade nacional, a atitude do analista sociale cultural que aduz ¢clabora as expresses ‘duma imagistica que Ihe é fornecida pelas criagbes de uma elite cultural © por ts quantos dads colds em renege coletivas por ele mesmo observads interprctadas, “Eduardo Lourengo move-se & vontade no terreno que Ihe € proprio ¢ ‘em que é mestre, 0 da anilise literdria. Os capftulos sobre a literatura como jnterpretagio de Portugal, sobre a imagem teofliana de Camis, sobre Cams rno presente sobre Sérgio como mito cultural sio disso cabal exemplo. Quando, porém, invade o terreno da anilise psicol6gica e social dos comporta- ‘mentos culturais do conjunto da populagio portuguesa no adopta a mesma seriedade e a mesma prudéncia metodol6gica que exibe na andlise dos Siteratos. E certo que E. L. nfo pode valer-se de elementos seguros da histria social e da hhistéria cultural dis populagies poreuguesss, que extio ainda por fazer. Beer due E. L. se apercebe das snaslimitagiese apela pura a necessidade de estudos de economia, de sociologia, de etnografia, de psicologia social, de psicanilise, para fornccer 03 «elementos de um puzzle adequado a0 nesso mistévo préprior a fim de substituic a epolarizagzo esquizofrénicar da nossa cultura em tomo de Spticas globais simplistas eautistas (pig. 75). No entanto E. L. no se coibe de avangar com dados mais que insuficientes e insuficientemente traba- Thados para novas épticas globais, incvitavelmente simplisas, mau grado a usiizagio habil que faz de certas expressGes culturais © da observasio licida de certos comportamentos colectivos. Ousa até intentar um arremedo de psicandlise de mitos do destino historico portugues 2 2A propésto dee aremeda de prcanilse gostatin de anoeat que EL, sobreralorisa ‘um (hpotético) taumatimo original igado a0 aascimento hitico do reno de Portal or ums (hipotcico) nit de sal fiial de Afouso Hensiques. Porqué esta sobzevaloviango, ‘quan © mito ligado i fundardo do rein, que teve verdadeir e seculaeeelevo na tadisto istics e popular, foo mie mest de Afonio Hensigue, exproo pela nda do milagre ‘de Ourigus, cones a qusl Hereulano teve de dipender to comsderivisenergia pollmicas? Recomsdes 133 A mingua de dados recolhidos ¢ trabalhados cientificamente favorece 0 comportamento profitico do autor. Este comportamento profético provavel- mente entronca-se ma vocayao que B. L. reconhece 20s artistas, historiadozes, romancistas, poetas, qUe «Por natuteza sio vocacionados para a attognose colectivar © que vio criando e impondo na consciéncia comur as imagens colectivas. Mas qual & 0 espago social ¢ cultural dessa wconsciéncia comun»? Este auto-vocacionamento profitico e a quase obsessiva incidéncia num sprodigioso irrealismo da imagem que os portugueses se fazem de si mesmose iio teri relagio com um fendmeno de angéstia cultural e politica que parece atravesar certs camadas das elites culeurais portuguesas, que necesstam de srepensar Portugab, de modo similar ao que ocorreu no século xn%, a partit das elites cultaraisrominticas? E. L. retrocede insistentesnente 20 século 21%, que foi, a seu parecer, «0 século em que pela primeira vez os portuguescs (lguis)'puscram em causa, sob todos os plinos, a sua imagem de povo com ‘voca¢io aut6noma» (pig. 26). Por isso o discurso de E.L. gia com Frequéncia sobre as visdes, essas também proféticas, de Garrett, de Herculano, de Ega, de Antero ¢ de Oliveira Martins, e sobre as retrospectivas profércas de Came. O tépico da svocacior nacional assim como os t6picos dos traumas de cons itncia sacilega (pig. 20) ¢ de consciéncia particida (pig. 26) pertencem 20 dominio do discurso. profético. ‘A questio que se pe € esta: uma tal angéstia patente em certas camadas das cites cultarais de agora, similar & das eamadas culeas das elites romanticas, denunciada pelos seus disctrs0s proféticos, exprimiri uma efectiva angistia colectiva ou exprimiri melhor um desfisumento, uma falta de impacto (dle andiéncia, de influéncia), uma impoténca, na relagio dessas elites culturais com 2 realidade efectiva, social e cultural, das populagies que constituem © Povo Portugués? O sirealismo prodigioso+ que E. L. denuncia no serio sinal do divércio secular entre sistemas culturas distintos que se desconhecem € 0 sinal dluimafaléncia das elites culcurais na sua pretensto de impor imagens cultuais « crtérios de valor cultural « grandes porgSes da colectividade nacional com as quis nfo conseguem contacesr? Parece sintomitica a espantada observaglo que E. L. faz & (aparentemente cestranha) passividade dos portugneses ante 0 que (aparentemente) deveria constituir um tremendo trauma colectivo, uma profinda amputagio da cconsciéncia colectiva nacional, a perda das antigas coldnias afticanas. Efecti~ vamente © trauma no se dou, a amputagio da conscigncia colectiva nfo se ressentia, O universo cultural de grande parte da populacio portuguesa no [parece ter as mesmasestruturas do universo culeural das nossas elites, nem parece ‘mover-se no espago imaginirio destss. © comportamento profético € caracterstico das sociedades tradicionais c chega a ser politcamente eficaz quando inequivocamente assumido; naquelas sociedades recolhe audincia, porque corresponde aos tinicos paradigmas de produgio de sentido dos seus exquemas mentsis. A produgio de sentido por procesios de anilise cientfica obedece a paradigmas de natureza distinta, obedece a outra racionalidade ¢ € caracterstica das sociedades modernas, sem 134 Revista Critica de Citneas Sociais tradigio ou em que se operou a ruptura com a tradigio. Um fenémeno de secularizagio se opera na mptura cultural, porque os diferentes sistemas cultu- rais pasam por canais de agentes ¢ por aparelhes euleurais préprios. ‘A ambiguidade do comportamento profético/centfico tem o set signi- ficado cultaral e social. Nao seré descabido evocar o afrontamento que se dew entre as elites culturais roménticase suas sucessoras (os novos elérigos de tum novo sistema cultural) os elérigos agentes da cultura tradicional, aquela aque ainda hoje fornece a grandes camadas da nossa populagio os esquemas funda- mentais ¢ mais profundos da sua produgio de sentido da vida social colectiva. AAs tréguas dos itimos cinquenta anos devem ter deixado rastos de influéncias reciprocas insuspeitadas 20 mesmo tempo que conservaram quase inviolados ‘95 campos de acs que cada sistema cultural se péde reservar, sob 0 comand impiedoso de um poder politico e econdmico atento aos seus superiors inte- Por estas questes que © Labirint da Saudade me sugere & que este livro de Eduardo Lourengo me parece de flagrante actualidade e de grande imporincia. Jost Vaca Tonnes ‘Mics, Foucautr, Hisévis da sexualidade, 1. A vontade de saber, Lisboa, ‘ed. Anténio Ramos, 1977. Traduzido por Pedro Tamen de Micut Foucaucr, Hisite de la sexualié. 1, La volonté de savoir, Gallimard, 1976. Anunciando e preparando uma monumental «Histéria da Sexualidades ‘em 6 volumes', Michel Foucault acaba de publicar uma longa introdugio tedrica que langa as bases da sua futura investigagio. Pela vivacidade da escita, cujo belo recorte literirio a tradugio de Pedro Tamen soube preservar, pela originalidade das tcses defendidas, «A vou tade de Saber» & uma obra que se 18 num dpice, com entusiasmo mas também ‘com uma certa surpresa. E-com efeito, uma radieal revolugio nos mais feequentes esquemas men- tais ideias feitas sobre sexualidade, na nossa sociedade ocidental, que M. Fou ‘ault continuamente prope a0 longo do texto, Se 0 titlo genérico € simplesmente shistria da sexualidader, a intengio ¢ mais complexa pois se tenta produzir «uma série de estudos acerca das rlagies historias entre © poder © 0 discuso sobre 0 sexo. «Podcriamos mesmo dizer \ Vol.2. Acarse 0 compe: 3. A erarada dat crangas 4. A nue, ale ea hitccas 5. Os perversos: 6, Populacio © ras. Recensdes 135 aque 0 tema central desta obra é a nogio de poder, aqui esclarecida através dds suas relagGes hist6ricas com a sexualidade. 1 efectivamente a nogio cor- ente que temos do Poder que radicalmente se vé contestada pelas anilises fe propostas de Foucault. sea nogio— a que M. Foucault chama sutidico-discursivar — do poder, € necessirio transforméla para se comproender toda a histbria ocidental da sexualidade, Juridico-discursiva porgué? porque, segundo cla, 0 poder tem jurisdido (neste caso preciso) sobre o sexo (impSe-lhe a sua lei/regra) e exerco-adisursi- vamente (dizendo 0 que élicitoe ilicito, 0 que é permitido ¢ 0 que € proibido). ssa jurisdicfo seria imdamentalmente uma «tclagio negativarem que 0 poder langaria sobre 0 sexo 0 mais total interditofexclusio, ‘A censura do poder sobre 0 sexo, tomniclo-ia sinexistente, iicito e infor muliveb, No fondo objective essencial do poder seria que +0 sexo renin asic a si propri ‘Nesta rela¢i0, 0 sujeito submete-se 20 poder, obedecendo, sujcitando-so, isto € constituindo-se como suito. ‘Em terios politicos mais geras, © esquema do poder juridico-discursivo, tio. profundamente implantado nos nossos coragées, oporia de um lado 0 poder legislador © do outro 0 sujeito obediente ‘Ors, pars Foucault, ¢ € uma tese que todo o seu trabalho nos procura demonstrar, o poder nio € s6 negatividade, interdigio; ele & também — ditia ‘mesmo sobrerudo — postividade, possui uma seficacia produtiva» que se matt festa através daquilo a que Foucaule chamars 2s eteenologias postivas do poder € que andlise hist6rica ir pr a nu (6caso para o dizer) no dominio privilegiado do sexo. Sempre com a ambigio de poder estender a outros dominios os resultados dessa analitiea do poder. Segundo Foucauly, 2 r2230 para esta persstonte ocultagio da positividade do poder na sua acep¢d0 juridico-discursiva, € fundamentalmente histbrica. E que os aparelhos de poder modcrnos, nomeadamente o aparelho de estado, se constituiram desde a idade média, como o «principio de dircito» que atra- ‘v6 da monarguia unificou aqucla proliferagio de poderes confituosos propria do feudalismo. Assim, o direto oi para o sistema monirquico o seu modo de manifestagio © a forma da sua acetabilidadee, ‘Tratase pois de, através de uma anise hist6rica do funcionamento do poder no dominio da sexvalidade, operar uma critica destrutiva da nogio tradicional do poder, propor tuma outra concep¢i0 do poder, dando conta do que a anilise moserou ser o seu modo real de funcionamento ¢ alargi-l a diferentes dominios, nomeadamente 20 politico. [Nas suas préprias palavras, trata-se de «Pensar 30 mesmo tempo 0 s€X0 em a lei e 0 poder sem o rei (p.95). O rei, aqui, como ponto central € ‘imico de soberania. [Nesta nova acepgio © poder & definido como um coujunto de relagBes de forgas descentradas, sem um ponco de emanagio tinico— antes uma prolife- sagdo deles —; xelagSes de forgas essenciamente muciveis, de uma instabilidade 136 Revises Critica de Cigncias Sociais ‘peemanente; enfim um poder que, longe de se exereee verticalmente de cima para baixo, antes prolifera & superficie, nomeadamente & superficc dos coxpos? uma palavra decisiva “é empregue por Foucault para definit nova concepeio do poder que nos propGe: snominalismos: «0 poder no ‘uma instituigao ¢ no é uma estrutura,..€ um nome que se atribui a uma siteae fo estrtégica complexa numa determinada sociedsdes. ‘© poder, ais os poderes, no partem de um ponto central mas antes proliferam descentradamente em todo 0 corpo social atravessando as dife- rentesinsituigBes (0 estado como a familia, a escola como o hospital) Mesno ‘as grandes dominagSes —escreve Foucault —si0 os eftitos hhegeménicos que a intensidade de todos estes confrontos continuamente sustenta. E 0 préprio estado «assenta na integragio institucional das selagSes de poder, (Or, se 0 poder é um conjunto selacional de forgas (contraditsrias & dispaces), a propria resstncia Clhe interior e sondo obsticulo & também esti- nulo e valor a ter em conta na definigio conjuntural dessas mesmas relagdes de poder. ‘Toda esta teorizagio em toro da nogio de poder? reenvia, em Foucault, para a destruigio daquilo a que cle chama a shipétese repressive consubsean ada, por exemplo, muma cetta ideologia de «Revolugio sexual» de que Reich € Marcuse foram, em certa medida, of arautos. No dizer desta hip6tese repressiva, o advento do capitalismo ¢ da socie~ dade burguesa no séc. xvm, marcatia uma progeessiva repressio do sexo pelo novo poder burguts (sto por razées de dominacio econémica, «fim de melhor uilizar todas as energias na produgio. Cir. a sobre-repressio marcusiana); ‘© poder centralizante tenderia cada Vea mais suridico-discursivamentes a impor a0 sexo 0 siléncio mais absoluto; seria desta longa era de opressio burguesa da sexualidade que muito recentemente nos estariamos a libertar, trazendo finalmente 0 sexo & palavra e nessa discursficagio do sexo, liberticlo por ‘uma espécie de eeitocatitico em que dizer a sua verdade teria, como na psica- nilise, cfeitos libertadores ¢ mesmo terapéuticos. Ahipéteserepressiva formular-seria pois, fundamentalmente nos seguintes termes: +0 essencial do poder ..€ ser repressivo e reprimit em especial atengio as energias indteis, a intensidade dos prazeres ¢ os compostamentos iregularcsy, 2 Chk. A vonuade de aster, p. 98: «9 poder nto & gualquer cos que te aque, #2 fananca ou se pata, qualguer cols que se guirda ou se dua escapr; 0 poder excrco-se 4 partir de um mimero de poncot © mum mecanismo de eclagSesiualitras e mbveis 15 elas de forgs miiplas que se formam © actaam nos apacelhor de produsio, mis farnfiss, nos gropos restos, mis iasicuigds, ervem de suporte 2 laos efeitos de cli- ‘vagem que peccorrem © conjunte do compo toca, 3 Que so também divides pars © peéprio Fouemlt como ele confesou numa cent etrevist publica na eva Omar: ene wis pas encore ts sr de ce que favance..t Ce quil y a Winceresin das ce que i eit om crtainement incerta. Recensdes 137 A critica foucautiana a esta hip6tese asenta em duas premisas que se reonviam mutuamente ¢ circularmente se sustentam uma 4 outra: Por um tum lado, diz ele, a anilisehistérica mostra — veremos como — que a repressio do sexo ndo existia. Dal se conclu que 0 poder nfo € apenas repressivo, muito pelo contririo, sendo entio necessirio repensiclo em termos no apenas neza~ tivo repreives mas também poitvamente come itn de inctamento © criatividade. ‘Mas, por outro lado, também se parte, para a andlise hist6rica, de uma hip6tese ndo represiva do poder que aquela vitia a confirmar, Talvee scja sobre esta aparente circularidade que um certo olhar extico deveria incidir no texto de Foucaul. Esta critica da concepcio juridico-discursiva do poder no & no entanto, ‘exclusiva de Foucault, Encontramo-la noutros autores: em Delewe que con- ‘apbe 2 unicidade centralizada do modelo arborescente do poder * (a Srvore= raz, esteutura do poder), 2 multiplicidade horizontal e superficial do rizoma > so qual prolifera o descjo («car ¢’est toujours par rhizome que le désir se meut et produit, p. 42). ‘© mesmo afigma Foucault; 36 que © que dificulta a nossa total aderéncia 4 estas propostas (mas talvez se trate apenas de resisténcias ligadas 2 velhos hibitos mentais) a inevieivel interrogagio sobre se esta dissolucio horizontal ‘e milkipla do poder sera ainda poder. Seri licito continuar a falar de «poder+ nesta circunstincias, seria iso til? ou interessante? Como justamente nota J. Baudrillard , a fase em que Deus estava em toda a parte, precedeu de perto ‘aquela em que ve descobrit a sua morte, Com efeito, o Panteismo spinorista ‘quando afirmava «Deus sive Natura» era jd (nfo 36 0 pressentimento disso) mas a pe6pria exccugi0 de Deus redurido entio a um nome recobrindo tudo, até a propria matéria, At o nome de «Deus» era jf a miseara por deeris da ‘ual se ocultava a auséncia de Deus. (Ora, parece-nos que & um pouco isso que se passa em relagio a0 poder ‘em autores como Foucault ou Deleuze. + auborescence et jasement Ie pouvoir d'Est. Au couis d'une longue biol, [Ett 2 &é le modeled live et de la pene le logo, le pilorophe-r, la tanscendance de ae, Poutrioré da concep, a publique des esprit, letibuna dela raion, le foncionnster eb pense, Mhomime églatcur et sujet. Prétention de VExat a tre image introns d'un ‘ordre da monde et enrciner homme, G, Deleuze et F. Gusta, Rhizome. Pati, Minuit, 1976, p, To. ¥ sContc les systtnes canes (mine polyent), 3 communication hitrrchique et lisisons priétablies, le shizome est un sytéme aceuté, non hiétrchique enon signifi, sans Général, ans mémoice organsice ow awomate central, uniguement déini pac une circulation d'Gato, G, Delouse et F. Gusta, op. oh. p. 2. © Foucault chegs mismo afirmar, ma entrevista 3 Onar,@ sguinte: Le pouvoir 2 seine pas, 7 Our Fowanle, Pais, Gale, 977, p. 82. 138 Revina Critiea de Citncias Sociaie Mas voltemos & ship6tese repressiver pois é contra cla que Foucault labora toda a sua andlise istriea e nos promete a sus monumental «Histria da sexualidader em 6 volumes. E aqui—temos de 0 dizer — Foucault nfo deixa de ser extremamente sugestivo. A sa histbria da génese ¢ implantacio daguilo a que ele chama ‘Dispositivo da sexualidades comega em meados do scc. XVI, por ocasiio do Concilio de Trento, quando em substituigio do antigo preceito de uma ‘aga confisIo anual, surgem novsstéenicas muito mais minucioss¢ frequentes de confissio, de exame de conscitnca, de diseegio espicitual nas quais 0 sexo ‘comecaa ter um papel central edominante. Essa cada vez maior ediscusificagio do sexor € exigida muito explicitamente nos tratados de direceio espirittal, como aguele que & citado na pigina 25, onde se intima a dizer tudo: enf0 apenas (05 actos consumades, mas as caricias sensmais, todos os olhares impuros, todas a5 palavras obscenas (.), todo: 0s pensamentos consentidos», Nio € pois da longa hist6ria de um siléncio repressivo que Se trata mas, antes pelo conteério, de uma continva e antiga injungio a fala. A determninada altura, mais precisamente no séc. X¥m, uma nova stecno~ logia do sexor se impSe que subtrai a sexualidade do dorinio eclesistico para a integrar no Ambito da medicina onde € tratada no ji em termos de morali= dade ou imoralidade mas antes de normal e de patol6gico. © ssinstinto sexuale (a que mais tarde Freud chamara Pulsio) & entio ‘extudado isoladamente © medicalizado, Vino séc, xx entra finalmente no dominio da economia politica através os problemas da spopulagios ¢ da sua regulagHo (Malthus), controle ¢ admi- nistragio, Os principais sconjuntos estratégicosdispositivos de saber/poder» que presidem a esta evolugio descreve-os Foucault nos seguintes termos: 1° histe= tizago do compo da mulher; 2." pedagonizagio do sexo da criangx; 3.%ciali= -zagd0 dos comportamentos procriadores;4.* psguiatrizaydo do prazer perverso. Em vez de uma luta contra o sexo é antes a uma preduyo de sexuelidade ave assistimos. Foi assim que no ocidente se constituiu a «Scientia sexual que em nés substitui aquilo que s6 20 Oriente coube: uma sas erotica. ‘Mas © que hi de comum, desde © sé. xv1, a toda esta preocupagio médica ou eclesistica pelo sexo € a exigéncia sempce presente de confessar Asim definido no texto de A vente de saber: wgrande rede de supetide em que & ‘etimulagao dos corps, a intensfcario dor prazcres, oincaunento do dscuno, a formasio or conhecienor, 0 teforgo das ficalzagbes © das resaca, se encadcam uns com ot ‘outs, segundo algumar grandes extatégiss de uber © de poder, 7 cuioso compare ete texto — conto fir Foucault — com cite outro de Sad, ‘nos 120 dias de Sodoma: os vosos elaton preci de mairct ¢ mat extensor pormienoes, fo podemos avalar 0 que a pido gue consis tem de rlaiva aos costuancs esos carats o homem, a nfo ser que fo ditceisaebua ccunstincis; de resto, a minima cecum ‘cis contibuem infniamente para o que eoramos dor voros relatoe, Recenstes 139) verdade. Seja pela tortura ou pela persuasio, em nome de uma exigéncia ‘moral ou cientifica, © homem ocidental é desde hi séculos coagido a dizer a verdade do seu sexo, A todos esses niveis a Confsie foi o principal saparclho de produzir a verdado. De tal modo que © prdprio constrangimento & confissio se interioriza € passa a ser ilusoriamente, a verdale que, do nosso interior, exige ser dita. Alilusio aqui éa de que dizer a verdade daguilo que se & (esta reside no sexc), no se faz contra o poder, em termos de libertacio, antes a poder obedecendo. Eno fundo tudo isto que se reflete na prépria filosofia quando a verdade passa a residir na subjectividade do Cogito Cartesiano. Essa verdade que pro ‘vém do mais fundo de n6s, 20 ser dita, atribuem-se-lhe mesmo virtudes catft- ticas de curar (cfr. a psicanilise, outa injungio moderna a confessar © sexc). E assim que a confissio, funcionando na religiZo, funcionaré também {e com isso nfo cessa de alargar 0 seu Ambito) na medicina, na pedagogia, na Psiguiatria. ‘A tal ponto que Foucault pretende mesmo que o proprio extatuto de ssegredor dado ao sexo € apenas um pretexto para «dar forma 3 exigéacia de falar deles. Chegar-se-ia a0 pooto de sconstituir os prazeres como segredos para os obrigar a esconderem-se ¢ assim ser possivel descobri-lose.. Confesse- ‘mos qve, apesar de tudo, talver seja demasiado maquiavélico! ‘Tentando enfim sintetizar aquilo que poderfamos indicar como sendo os grandes temas desta obra cheia de interese, parecem-nos serem cles 0s do Poder em primeiro, © do Saber-Verdade-Confssdo em seguida, ¢ finalmente 0 do Sexo-Gorpo-Prazer que em tomo de si aos outros unifica. Assim 0 poder & um saber que se extorquiu pela confissfo porque aquilo que se sabe & a verdade (ecligiosa ou cientifca) que é poder quando se sabe. Por sua ver o sexo-prazer € objecto (¢ também sujito, aliis) da verdade-saber como 0 do poder e isso nio 36 porque o poder & prazer mas também porque 0 Proprio saber nio escapa 3 esséncia mesma do prazer. ‘Tro Canposo » Cunna Juaw RAMON Carsiia, Sobre a Extinsio do Direito ¢ a Supressio dos Juristas, Coimbra, ed. Cemelha, col. Perspectiva Juridica, 1977. Traduzido por Maria Luzia Guerzeiro de Juan RamOn Carauta, Sobre la extincén del derecho y la supresin de les jurists, Batcelona, Editorial Fontanella, 1970, ‘Tem vindo a ser pouco frequente encontrarem-se, em Portugal, obras ‘que nos falem sobre © direito. Este facto deriva, quanto a nés, de virios fuc- tores, dos quais bastard, aqui e agora, enunciar aquele que se nos afigura como decsivo. H que 2 vi80 dominante que, neste pals, se vecala sobre © plano do juridico & a da perspectiva meramente técnica do manejo dos conceitos e dos 140 Revista Gritita de Citncias Sociais cédigos, perspectiva esa agui e ali salpicada de teorias sonoras ¢ discursos irculares que nada nos dizem (nem outro é 0 seu propésito...) da rea lidade social que 4 norma subjaz. O direto aparece-nos assim como uma ‘bem entrangada teia simbélica t, onde a relagio econémica e social se coloca ‘© mais longinguamente possvel e a justiga se prossegue como que 205 sola~ vancos, procurando exconder a su mé consciéneia, Disto alifs, deste universo kafkiano, se apercebe jé 0 comum cidadio, 20 ponto de © senso comum> (caja famgZo é, na maior parte dos casos, pretender dar uma imagem snatural> daguilo que o nfo é, apaziguando-se as vontades) exprimie uma certa desilusio ‘que pode muito bem servir de ponto de arranque para uma vontade de modifi~ ‘aeio. Ede louvar, poreanto, que, nos dlamos tempos, algumas (poucss) editoras se tenham langado 3 tarefa de editar livros que se propBem desmontar fos mecanismos de um certo sdircitor e tentam avancar altemativas criticas io s6 20 juriico do capitalismo tardio como ao juridico daquelas experiéncias due, a6 4 data, tém vindo a reclamarse do socialismo e cujo inventirio est, fem muito, ainda por fazer, E nessa perspectiva que se enguadra o recém Publicado livro de Juan Ramén Capella. Trata-se de um texto cuja redaceio data de Dezembro de 1969, tendo sido dado i cstampa em 1970, Mais tarde, em 1976, o autor viri a integrar este € ‘ourros estudoscriticos sobre o estado e a ideologia jurfdica num volume que recebew o tiulo genético de Materiales para la critica de lt filosfa del estado ® € onde © texto agora em questio é, de certo modo, amparado ¢ enriguecido pelos restates temas af focados (vejase, por exemplo: Poder social, politica y derecho en el socialism —sobre a contsibuigio de Scacka; El derecho y Ia reflexién sobre el derecho; Sobre la problematica del derecho y del estado en la sociedad socalista; Sobre la justicias Sobre el mio de la soberana popula). Lido de forma isolada, e devido talvez 20 peso dos quase dez anos que arrasta consigo, *Sobre.a extingio do dircito © a supressio dos juristae enferma, 208 olhos da actualidade, de um eerco optimismo ¢ dogmatismo, optimismo ¢ dogmatismo que, aliés, 0 préprio autor denuncia na Introdugio 3 obra acima itada, considerando-os| como vicios decorrentes das instituigdes educativas do sistema (no seio ds quais 0 autor reilizou esta reflex, pois é professor de Filosofia do Dircito na Universidade Auténoma de Barcelona) ¢ da sua escassa claboragio. Nao qucremos ir tio longe como a auto~ctitica de Capella, mas, temos, no entanto, de concordar que escassas sio as piginas (cerca decom) ppara tio vasta e importante matéria. Nio podemos deixar, porém, de apontar © grande mésito que ess mesmas cem paginas possuems € que clas nos apre~ sentam uma magnifica panorimica geral dos grandes temas que ainda hoje constituem pontos de interrogacio ou, pelo menos, de dividas para o pensi~ mento marxsta sobre o direito e podem servir, neste Portugal post-25 de Abril, de polo detonador das discussies necessiras para a criagio das to + Thurman W. Ameld, The symbole of goverment, Harcourt Brace and World, 1962. 2 Barcelona, Editorial Fontana 1976 Reconsder AL necessrias alternatives socialists & orem jusidica burguesa. Assim chs scjarm lida Capella «parte da eonviegio de que todo o dircito € um mab visa veiculat este convencimentor {p. 6). Desde logo, porém, nos avisa de que © proprio dircito é imprescindivel para acabar com 0 diteito. $6 que esse direito liquidador do dircito compartlhar’ a desigualdade como todo odireito (porque ‘visa sancionar uma distribuigio apenas proporcional do produto social. A linha de rumo seri, no entanto, a das novas cores lbertaras, cujos embrides 0 novo dircito jé potcncialmente conterd 20 criar as condigdes de superagao da desigal- dade, no 36 através das novas relagdes de prodigio, mas também, ¢ decs- amente, por intermédio das exigéncias de ibertagio humana das Forgas socias. © primeiro passo para a critica do diceito existente, em termos de alter~ nativa, € © procesio do direito como ideologia: tal significa que 0 diteito € par cial, que é também parcial 0 estudo do dizeito (na acepga0 do estudo dominante das nossas excolas de direito) e que tal estudo consiste numa falsa representasio da realidade que vis impedir 0 seu conhecimento. ‘Assim postas as premissas ideoldgieas € metodolégicas, Capella avanga a idcia de que o dircito da claboracio tebrica ¢ 0 nas faculdades ensinado 6, essencialmente, um direto prindusnial. Estamos aqui no dominio da ja céle~ bre tese de Kar! Resner3, segundo a qual seriam possiveis transformagies da economia ¢ da sociedade sem transformagGes concomitantes da ordem juridica. B que, segundo Capella, 0 conceito fmdamental do dircito ¢ a propriedade evidentemente, mas una espécie de propriedade: a da terra. Dat que © eédigo no responds aos problemas da propriedade moderna. Nei, devidamente, contemple instituigSes conectivas (Konnexinstitute) como 0 arrendamento, 0 contrato de trabalho, ete., que complementam a fungio do Instituto da propriedide privada. «A propriedade escapa a0 cédigor (p. 15): insttuigSes e conecitos envelheceram face a uma realidade que os ultrapassou. Da fazenda do agricultor 4 modema organizagio de servigos (da propricdade privada plma in re potetes & propriedade privada modernamente entendids) vai um longo caminho, eaminho ese que 0 direito no acompanhou. E evidence que existe ronulamentagio das rlagdes socials do capitalism tardio, ‘mas ela segue atrasada e nfo tem em conta © processo produtivo do see. XX (0. 18). Ou, por outs palavras, o problema, no estado da questo, ji no é 6 de atraso pois 0 facto de se haver alterado a fungio social do instivuto de propricdade, tendo-se cle mantido sensivelmente o mesmo no plato normativo, Teva a que s6 0 controlo social dos meios de producio possa encontrar regula- rentagio adequada para a nova situagio. Estamos pois no dominio da propria notureza da regulamentagio. Mais ainda, mesmo 0 proprio jurista nio se encontsa em posigio de tatar convenientemente 0 problema jé que a 30a formagio o leva, na maior parte dos casos, a ter usm conbecimento de certo 5 The Iottatons of priate aw and tee scl futons, Londres, Routledge and Kegan Peal, 1976, M2 Revinta Critica de Gibncias Sociaie modo escasso das questées concernentes & complexidade da produgio moderna. Podemos entio completar com Renner: a realidade tem uma evelugio relati- vamente independente em relagio ao direito, s6 através da expressa vontade dhs forgas socials se poder ajustar um novo direito para uma nova realidade. “Tais questdes surgem como evidentes: no entanto, a propria formagio do jurista tradicional aparece, ci alguns dos seus aspectos, como obsticulo 20 seu conhecimento, Desde logo, 0 tratamento dado a um certo elenco de isciplinas dos quais, dada a sua importincia e 0 seu pequeno peso nos nossos curricula, apenas citaremos duas. Trats-se de disciplnas que, logo 2 partida, teriam todas 2s possibilidades de contribuie largamente para um conhecimento gonético da realidade de que 0 direito faz parte integrante. So, portanto, ratérias cujo estudo devia ser obrigatério na formacio do jurista: a histria do direito ¢ 2 sociologia do diteito. E l6gico que todas cssas potencialidades ppossam ser desvietuadas © se venham a converter exactamente no contririo. No caso da hiséria do direto, todos aqueles que, neste pafs, possuam uma formacio juridica foram cfectivamente bombardeados por uma histéria de tipo institucional perfeitamente cepa 4 diléctica do processo histbrico. Mas também se nfo pode negar a importéncia de certo tipo de trabalhos que, no Ampito dessa disciplina, comecam a ver a luz do dia 4. Quanto 3 sociologia do dircito, € neste ponto que parece residir uma certa velhice do texto. E que, para além do facto de Capella ter uma ideia da sociologia que é apenas a ideia de uma certasociologia, esquecendo, aparentemente, que em cada ciéncia social se podem coustruir e se constroiem, sobre um mesino objecto real, diferentes objectos trices e c6digos de leitura, parece-nos entrever na argumentagiio de Capella um certo preconceito acerca da sociologia. Esquece, talvez, Capella que para a problemitica da eriagio do novo direito face as novas realidades © estudo da questio das relagies entre drcito ¢ conomia se torna fundamental, E que, em tal matéria, € sociologicamente que hi que abordar a questio. Isso jf 0 demonstrou Kael Renner, 20 eseolher a sociologia do direito (a fungio das normas na vida social e econémica) para 0 plano da sua anilise. E se uisermos abordar o problema de um outro quadrants, também Max Weber 3, artindo do conceito metodolbgico de seccio socials, ve viu na contingéacia de optar pela perspoctiva jurdico-socielégica om decrimento da juridico- ~dogindtica: 0 dieito visto como fendmeno social, da perspectiva do sactors. Essa posigio de Capella ie, als, inluenciar negativamente alguns dos aspectos abordados no sea estudo, F, talver, 0 desvio dogmitico a que se aludia no infcio desta ecensio, Desvio um tatito ou quanto imperdosvel se atendermos a que uma das ténicas do autor € exactamente 0 acento na necessdade de 0 dircito ser tcansformado de fora (¢ para tl ter de ser visto de fora, com uma abordagem exterior que tetha em conta o seu conteiide).. 4 Refeimo-nor a Anténio M. Hespanta, A thie do dco ne hiteia aci Lisbon Liveot Horizonte, 1978. § On Law in Economy and Sot, New York, Clarion Books, 1967 Recensdes 43 Outro tipo de obsticulo idcolégico 20 acesso is evidéncias serd o da ela- boragio de determinados conceitos. Tais conceites, como, por cxemplo, © de propricdade (eelagio homem/coisa), visam apresentar as centidadest juridiess como naturas. ‘Tenta-se desviar a atengio do facto de, nese €350, a relacio de propricdade ser una relagio de quatro elementos (homem|coisa) Japarelho jeridico/ homem). Apresentam as relagies sociais como factos natursis, subtraindo-as subtraindo-s & influéncia trnsformadora do homer. Depois 0 produto do debate teérico dos tratadistas acaba por interpor um tecido categorial entre a vida social © 0 dircito, desligando-o, deste modo, ch sua origem. «Perdido entre os tecidos flucuantes das construgdes juridicas, 6 verdadeito objecto passars a ser algo de enigmitico ¢ inacessfvel a0 enten- dimento ¢, finalmente, 20 conhecimento teoréticor (p. 30). Hi, portamto, ‘que desentolat 0 fio & meada. E a sessénciar desse enigmitico reside no Esto, fonte da obrigatoriedade da norma, Um estado que preserva o sistema de apropriagio privads, um Estado que, sendo um aparelho de fore realiza também a sorganizagio do consentimentor afastando os conflitos do «centro de gravidade do sistema. A ideologia identifica os juristas aos interessesrelevantes da ordem esta- belecida, Efectivamente, les ém desempenhado, até & data, 0 papel de quadros do sistema de apropriagZ0 privada, de intelectuas orenicos das classes dominan= tes, Mas mio s6 a ideologia; a sua fumgZo pritica na vida social veio reforgar atideia de um jsista tradicional empenhado na prossecucto do referido sistema. (Ors, hi que analisar profundamente o facto de novas forcas poderem ,eventual= mente, vir a modificar essa imagem ¢ fimg0 do jursta tradicional, a fim de scsaber se novo direita poder’ ow nio contar com o auc, até agors, foi ma casta privilegiada, a dos graduados pelas escolas de Ici. Historicamente, foram duas as fingGes desempenhadss pelos jorisas no contexto da sociedade, A primeira, de certo modo com tendéncia para a relativieagio, € a chamada fungio de direaio polica; ¢ sclatvizagio, se aten- deemos 8 modema introdugio, no nosso pais, de certas caracterstcas do eapi- talismo tardio e a0 facto (que do anterior deriva...) de © jurista ter ji deixado de ser 0 sinico detentor laico do saber sociale. Quanto & segunda, & fungio de exercci do diveto, weremos de a dividir consoante tal pritica profissional scja exercids de modo piiblico ou privado. © jurista funcionério-pablico (itzos, delegados, etc) via 0 seu cargo representado como se de uma propriedade se eratase: para além do nivel ideolégico, certas earaceristicas (Como a inamovibilidade) levam & sua confie ggoracio como una relagio de dominio, O jusista privado, por outro lado, postuia como que wm «papel empresarial que lhe era dado, tanto pelo escri= trio de advogado, como pelas tarefis que habitualmente desempenhava na direcgio de empresas. Poderio aponzarsc entio como tendéncias relevantes, actuando sobre os ‘modelos tradicionais, a seguintes: 0 grau de concentraco monopolist ¢ indus twial aleangado; 0 aparelho estatal concebido como instrumento econémico M44 Rovinte Critica de Citnias Sociait «sua concomitante transformaggo (de Estado policia) em Estado administrador; a extensio da grande empresa ao sector de servigos e, por fim, a introducio da ‘iéncia no processo produtivo € sua conversio em factor econémico (que consolida a ligagio monopélioEstdo e estende o trabalho astaatiado 208 trabalhadores ciemtificos) Em razio do aparecimento do Estado administador, determinados fend ‘menos se eonjuugam para a transformacao dos juristasligados 20 aparelho estatal ‘em assalariados. O que € acompanltado por uma necessidade de especializag0 funcional, isto é que tonha em conta saberes extrasjuricos, A. propria estra- tificagio social dos jursta sofce importante remodelagio: © aparelho do poder fem agora de enquadrar os jurists assalariados por um pequeno grupo de jutistas organizadores do trabalho daqueles, etal estaturo de quadzo especial é ctigido apesar da uniformidade da fungio técnica. Em razio do grau de con- ‘entracio monopolsta também uma nova situacio se faz sentir: por um lado, tendéncia para a sconversio do jurista profisional livre em trabalhador asala- riado (fangdes juridicas como assalariado da empres, ¢ no if dicectivas), pelo outro, eassalarizagho encobertar (gabincees de prestacio de serviges,¢ 150 © esctitério de advogado) ¢, finalmente, dessparccimento das expecializagies gerais cm detrimento de outras mais ligadas A moderna producio (diteito fiseal, do trabalho, ete). ‘Mas poderemos do exposto concluit que todas ests transformagies do sstauto social do jursta levario imediatamente a uma alteragio do seu papel numa dada sociedade? Poderemos, por outras palavras, afirmar que o jurista passa a lutar, de forma activa, por um novo tipo de dircito? No neces- sariamente. E evidente que, seguindo Capella, podemos concluir que a nova situaglo levard& possibilidade de uma identificago antagSnica com os interesses do capitalismo tardio. Mas tal possbilidade tem de ser enteadida em termos bibeis, sob pena de cairmos num qualquer esquema de simples economicismo. E aque, como als © proprio autor deixa entrever, a idcologia, pelo menos neste pplano do jutidico, & um cimento social ainda sufcientemente forte para que 2s bbrechas gue apresenta anuncicm a eminente derrocada de todo 0 edificio. ‘Mesino que a nfo coincidéncia de intereses fosse imediatamente visivel, um grave problema restaria ainda por resolver: consist ele em que um jursta se define como tal em relagio 20 seu meio de produgio, que é 0 dieeto; donde que, para mudar a tradicional fungi do jursta, seia preciso transformar tadicalmente 0 préptio ditcto, seja necessirio aranci-lo das alts esferas onde permanece adormecido e domesticado, dar-Ihe um contetido humano e rest tuiAlo, jd descentralizado, a esa vida de onde to arredado tem andado. Logi- camente que © jursta consciente poderi colaborar em tal rarefa, mas 0 novo produto 56 caminharé para o equilibrio quando tal actvidade for engrossada € enriquecida pelos embrides das novas normas que, continuamente, svegem do proceso de tensio entre dizeito e realidade. S6 a partir de fora 0 juridico poderd vira ter uma nova conformagio: c af teremos entio umn nove jurista a desempenhar as novas fungSes que Ihe sio atribuidas por um novo dircito a ‘eaminho da sua destrugio (autogestio da norma de conduta?). Recsnsdes 45 ‘A transformagio teri, pois, de ser global. No entanto ¢ entretanto, i que scriar as condigdes em que a mudanga geral se possa sustentar por si propria, encontee forges sociis articuladas que a impulsionemr (p. 60). ‘O mesmo € dizer que algo se pode ir fazendo para alterar, de forma sensivel, a ideia que os proprios jurstas possuem do dircito, para Ihes dar toda a utensi- lagem necessiria & preparagio do futuro. Assim, ¢ if que o ensino do diteito nfo pode fieat confinado 4 tradicional faculdade, Capella prop8e a cviagio de um «centro politéenico de ciéncias sociai» onde, 20 invés de se abandonar 0 «studo do plano juridico, se procuraria complementi-lo com o saber genético sobre 0 drcito, ‘Tal insergio na reflexio multdiseplinar facilitaria 0 desvendar da relagio social a partir da qual se pode compreender a norma ¢ a relagio juridica © procurar-se-ia fornecer, nio 36 novos métodos de trabalho (ensino activo, experiéncias de equipa, scmindrios), mas também novas, matérias: a saber, a jéaludida radicagio do estudo do direito nas ciéncias sociaiss a intco- gio do nivel hitrico a focagem sistema ds relages de rodio sO objectivo € a conquista de uma comunidades (p. 71), a modificagio ter de atingir todos os pontos fulcrais da vida social. A prépria adninstayao da justice, que pode ser concebida como agente interventor nas tarefas de cons ‘trugio econémica a0 procurar a ssolugio concreta Sptima para 0 interesse colectivor (p. 78), pondo de lado, na solugio do confit, os interesses das partes ¢€ resolvendo segundo as necesidades socials. Depois, hi que retomar a tradicio democeitica (em situagio de recuo permanente) ali-la 3 eapacidads libertadora e democzitica dos movimentos de massas, numa critica prétia simultinea ao que nos aparece como «velhow ces nova experiéncias. Tratasse da necessdade de controlo do poder politico ‘clos detentores efectivos do aparelho produtivo, 0 que pass, segundo Capella, pela ideia gramsciana do referendo permanente e se traduz na resolugio da uestio da representaio politica, Para tal, o autor alinha ers diferentes vias da realizagio do referendo que correspondem, clas mesmas, aos trés maiores pro- blemas de estrucuragzo da sociedade de eansigho em termos de dteto piblico.. ‘A primeira, sconsistria em pdr nas mios de uma assembleia emanada directamente do ‘poder social, a decisio da politica econdmics» (p. 83): a0 con- ttirio de se bascar nas diferentes tendéncias politics, tal conselho entroncaria nos diferentes sectores da vida econdmica, recolhendo a sua composigio 0 peso da prépria produsio. A segunda, implicaria um renascimento das assembleias deliberativas « exeeutivas 20 mesmo tempo (propesta hstérica do socialismo para substituigio do parlamentarismo burguds). Insistindo ma existéncia de esferas expecifcas do poder (educacio, informacio, etc), procuratia encontrar-se fangdes expe~ cializadas para tas assemblcias que, bascando-se na vontade expressa dos produ tors do sector, seam umn mito de representsiopolicaeemanagio deta Em terceiro lugar, procuratia vineular-se o poder judicial & sociedade civil. E jf que nos encontrsmos aqui no dominio da comunidade, poderia 0 M6 Revista Critica de Ciencias Socizis conccbersc 0 juiz como uma tercvira parte no confito, tentando aproximé-lo 4a norma de conduta que esth sempre na base de qualquer funcionamento social. £ pena que Capella nio aborde desta forma tal ponto, importante pela ‘aneira como julzes (letos) podem fazer valer as regess de uma subculeara face a um diteito oficial §, A anilise das experiéncias deste dominio, prefere antes 2 rellexio sobre as deformagdes ou o aclarar de conceitos. Tals defore ‘mages radicariam na falta de compreensio do facto de a seguranga juridica, para além de conter principios fixos que visam assegurar a previsibilidade das relagBes econdmicas, ser integrada por uma série de ideias fondamentas conquis- tadss ma luea contra 9 sistema feudal. Assim, casos produrido. pelo socslismo de Estado como o enfraguecimento da igualdade formal das partes no proceso ‘ou a exclusio do in dubio pro reo sio puramente politicos ¢ indiciadores de ‘um sistema que tem vindo a prescindir do controlo sobre © poder por paste hs formas de organizagio popular. Tudo isto passa, porém, por tuma questo que a todos estes «procedi- imentow diz respeito:a questio da buroeratizeco do poder. Classicamente, 0 soc lismo tem vindo a propor, paca o evitar, viias regras Fundamentais. Desde logo, a clegbilidade ¢ revogabilidade dos funcionsrios politicos (com sali de operirio) a simplicidade das fungSes, limitadas 20 eogisto e controle. ‘Ora, seria esta ideia de simplicidade que seria preciso rever. Pois nfo estamos 1nés perante um +Estado administrador» e uma vida social tecnicamente compli cada? A assim ser a5 tatefas exigiriam especializagio e anilises eéenicas corres pondentes a um processo produtivo complexo. O que nio invalidaria as pro- ppostas acima expostas ji que ano existe burocrtizagio se a sociedade civil assume plenamente a fingio de controlo do grupo dirigentes (p. 88), os sci, se se eliminar a responsabildade intera da elite dixigente e afirmar a vontade politica fora dela existente. Concluindo, a obra de Juan Ramén Capella aparece-nos globalmente como ‘uma importante reflexio sobre o direito a0 nko perder de vista 6: mecanismes socais suscepriveis de 0 transformar: se a critica do welhos ditcito nfo pode, sob pena de cairmos num mero voluntarismo, esquecer tal pespectiva, também a concepefo critica da alternativa nfo se colocari sem a forga da sociedade, organizada em torno dos préprios centros de produglo, Para que asus ealzacio ¢ discussio no apodresa na raiz, para que a vida, como constatava Renner, info extcja para além da norma ¢ do joss Fenxando Ruwwo + Ver Boavencur de Sous Santos, Law gga Ine: lea! resoning i Parga la Cocmaraca, Cidoe, 1974.

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