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Marshall Sahlins ou por uma antropologia estrutural e historica LILIA Moritz SCHWARCZ* A Antropologia, desde seu nascimento ins- titucional, estabeleceu relagGes tensas ¢, mui- tas vezes, pouco cordiais com a Historia. So- bretudo no campo da Antropologia, a neces- séria contraposigéo com a Histéria pareceu vincular-se propria definigao da disciplina, que precisava, de alguma maneira, ciar-se para compor um campo mais definido de atuagio. Nao € por mera coincidéncia que, nas obras mais tradicionais da disciplina, a His- téria tenha surgido contraposta 4 Antropo- logia ou a, assim chamada, Etnologia. Seja por alegacdes de método ~ pesquisa em ar- quivos por um lado, pesquisa participante, por outro; de objeto ~ viajantes no tempo versus viajantes no espago; de procedimen- to ~a pesquisa da classe dirigente por opo- sigdo ao estudo das manifestagdes populares; ou de objetivos ~ o evento no lugar da cul- tura e de seus rituais; o fato é que divisdes mais ou menos frégeis foram sendo levan- tadas, no sentido de se constituirem limites evidentes ou identidades particulares a cada uma das dreas. Dicotomias ainda mais rigi- das estabeleceram-se, aos poucos, guardan- do para a Histéria 0 reino da diacronia ¢ do tempo volétil e para a Antropologia o lu- gar da sincronia e da estrutura. Professora do Departamento de Antropologia da USP, Foi assim que na tradi¢ao antropolégica a questao da diacronia mobilizou escolas ¢ au- tores, mesmo que para se destacar dela. Nes- se tiltimo caso, “enfrentar o tempo” e recor- rer a ele, fez parte da propria trajetéria da disciplina, Com efeito, se os primeiros antro- pélogos evolucionistas de alguma maneira introduziram a temporalidade em sua concep- do — apesar de impor uma nogio etapista e serial -, os demais acabaram fazendo da dis- ciplina uma espécie de anti-histéria. Segundo uma perspectiva mais consensual caberia ao antropélogo, em uma divisio mais positiva, o lugar da auséncia do tempo, supri- do pelo aporte ao presente, Mas como nao se constréi uma disciplina por um recorte ~ 0 recurso ao presente ou ao passado ~ 0 certo é que distingdes desse tipo tenderao a ser me- nosprezadas, freiite a determinagao de que © tempo no és6 um objeto, mas sobretudo uma dimensio cultural da vida social, Fiquemos ainda um pouco mais nos mean- dros desse debate. E o préprio Lévi-Strauss quem fara toda uma “Histéria da Antropolo- gia”, em seu polémico ensaio Etnologia e Historia (1975), publicado pela primeira vez em 1949, Nesse texto ~ que se tornou uma espécie de simbolo desse embate — 0 indice de clivagem entre as varias escolas antropolégi- ‘cas remete ao uso ou nao da diacronia, levan- do-se sempre em consideragao que a nogio de “tempo”, pensada como representacao da his- 126 | uLiA Morirz scHwarcz t6ria, esta presente em toda e qualquer socie~ dade, como condigao de inteligibilidade, mas também como marca de diferenca. Vale a pena retomar, mesmo que de forma breve, a trajet6ria elaborada por Lévi-Strauss, com vistas a entender como esse didlogo foi se constituindo de maneira tensa, Com efeito, segundo o etndlogo francés, esse enfrentamen- to teria comecado com uma “recusa”. Por um lado, ja na perspectiva culturalista, a descoberta de que os documentos encontra- dos nas sociedades estudadas pelos antropé- logos desencorajariam qualquer historiador a analisé-los fez com que se reconhecesse uma distingao, pautada na auséncia de materiais ¢ dados comprovatérios. Segundo Lé Boas manifestara a decepgdo de ter de renun- ciar a aspirago de compreender “como as trauss, coisas chegaram a ser 0 que so”; ou seja, renunciar a compreender a histéria para fa- zer do estudo das culturas uma andlise sincr6- nica das relagdes entre seus elementos consti- tutivos, no presente. O problema que “espezi- nhava” Lévi-Strauss era saber se era possivel fazer histéria do presente sem recurso ao pas- sados entender uma cultura tinica, sem recuar a seu processo e sem transformar a (auséncia de) histéria em a “nossa histéria”: numa tini- ca temporalidade. Na opiniao do etnélogo francés, ainda, fe em nome dessa “faléncia” que se abriu mao, na escola inglesa e sobretudo com Mali- nowski, de qualquer historia. Adeptos de um modelo sinerénico de anilise, os funcionalis- tas defenderam que toda pesquisa antropolé- gica deveria proceder de um estudo minucio- so de sociedades concretas. Malinowski e seus seguidores perguntaram-se acima de tudo so- bre a questo da “fungdo”, entendida como instrumento para desvendar sociedades apa- rentemente cadticas. Dessa maneira, partin- do do suposto de que o que 0 etndgrafo faz é estudar como as sociedades se mantém, endo como se modificam, essa escola notou nos grupos selecionados exemplos de funcionali- dade e nas instituigdes destacadas modelos de coesio e de reposigao do equilibrio. Portanto, diante de uma histéria conjectural, armou-se um modelo de base empirica, imune & hist6- ria e a seu desenvolvimento. De toda forma, a descoberta de leis de mudanca social deve- ria basear-se no estudo de processos presen- tes, tinico caminho para que a Antropologia se convertesse numa ciéncia generalizante, conforme o modelo das ciéncias naturais. Concluia Lévi-Strauss nesse mesmo ensaio: “espera-se por um milagre inaudito \inica condic&o suplementar de fechar resolu- tamente os olhos a toda informagio histérica ” (1975:26). Na ver- dade, privando-se de qualquer histéria, Mali- nowski teria abandonado a propria tempora- lidade das culturas, parte fundamental na per- cepgao de sua especificidade. Também Radcliffe-Brown, em sua detesa de um estudo comparativo e generalizante, a0 qual denominou de “Antropologia Social”, expulsou a historia da reflexdo disciplinar. Segundo esse antropélogo, diante da falta de documentos escritos o melhor era optar pela “g-historicidade”, concluindo que tal método 6 levaria a proposigées particulares con- jecturas parciai®. No entanto, nas objegdes desses dois autores (cada um a sua maneira) estava presente uma visio por demais positi- vada da histéria e de seus documentos, cuja legitimidade s6 poderia ser garantiria a par- tir da descoberta de manuscritos. Além disso, no minimo ingénuo supor que nao existiria temporalidade no momento atual. Como diz, ‘Lévi-Strauss: “Quando nos limitamos ao ins- tante presente da vida de uma sociedade, so- mos antes de tudo vitimas de uma ilusdo: pois tudo € histérias 0 que foi dito ontem ¢ hist6- ria, o que foi dito ha um minuto é historia. Mas, sobretudo, condenamo-nos a no conhe- coma relativa 4 sociedade cadernos de campo +n. 9 + 2001 MARSHALL snHLINS OU FOR UMA aNTKOFOLOGIA EsrRUTURAL EiBrORICA | 127 cer o presente ... E muito pouca histéria (j4 que tal é infelizmente 0 quinhao do etnélogo) vale mais do que nenhuma” (1975:26-7). Nas criticas de Lévi-Strauss a escola estru- tural-funcionalista inglesa é possivel imaginar no tdo-somente um questionamento tedrico, como, também, uma tentativa de, por meio da oposicao, construir um método, Pela contrapo- sigdo problematizavam-se os estudos empiri- cos, assim como era possivel “relativizar a re- Jatividade cultural”, na busca do comum imer- so no diferente. Deixemos, porém, a andlise mais aprofundada dessa escola um pouco de lado, a fim de retomar o debate coma Histéria com o proprio estruturalismo, que sempre se defini a partir de uma perspectiva siner6nica. Apesar da pecha, ja em seus primeiros es- tudos, como Raga e Histéria (1952), Lévi- Strauss nao s6 analisou “hist6rias diferentes” ~estacionarias e cumulativas -, que mais tar- de chamou de “frias ou quentes”, como indi- cou nuangas e gradagGes: os dois modelos de hist6ria no revelariam a existéncia ou nio de hist6ria, mas, sim, o fato de algumas socie- dades se representarem a partir da historia e outras nao. Estariamos, mais uma vez, no dominio das historicidades e da nogao de que ferentes sociedades constrdem 0 tempo, ou no, a partir de suas cosmologias particulares. Mas voltemos mais uma vez ao ensaio de Lévi-Strauss, dessa vez com o objetivo de de- finir seu proprio método. Com efeito, apés ter passado a limpo a Antropologia de até entdo, 0 etndlogo chega a seu dilema fundamental: “Pretender reconstituir um pasado do qual se éimpotente para atingir a historia, ou querer fazer a hist6ria de um presente sem passado, drama da etnologia em um caso, da etnogra- fia de outro” (1975:30). Como se pode notar, a diferenca entre disciplinas vai se tornando cada vez mais estrita, O problema nao pare- ce ser de objeto (na medida em que ambas procuram a alteridade), muito menos de obj tradugao tivo (que passa a ser 0 diverso), nem mesmo de método. No entanto, a diversidade ficava mantida: “Enquanto a Historia organiza seus dados em relagio as expressdes conscientes, a etnologia indaga sobre as relagdes inconscien- tes da vida social” (1975:34). Com essa frase de efeito, Lévi-Strauss lan- ava as bases de uma Antropologia estrutural ec elegia um projeto de carter universal, como critério de distingao e de propriedade da etno- logia. Procurando na lingiiistica estrutural — na busca de invariantes universais e nos pro- cessos inconscientes — seus principais alicer- ces, 0 autor retomava nao s6 toda a produgao antropol6gica, como, de quebra, desautoriza- va um certo tipo de historiografia que se cons- trufa lado a lado naquele momento, A Historia se transformava, assim, numa espécie de marcha regressiva, etapa necessa- ria para que se chegue & finalidade fundamen- tal; qual seja, um inventério das possibilida- des inconscientes. Entretanto, 0 artigo de 1949 terminava com uma espécie de “armisticio”; depois de ter demarcado distingdes tao funda- ‘mentais, nosso autor voltava & boa convivén- cia, Os procedimentos seriam iguais: a passa- gem, para o historiador, do explicito ao im- plicito; para o etndlogo, do particular ao uni- versal. Além do mais, a diferenca seria sobre- tudo de orientag&o, nao de objeto: “o emnélogo se interessa sobretudo pelo que nao € escrito, no tanto porque os povos que estuda sao in- capazes de escrever, como porque aquilo por que se interessa é diferente de tudo 0 que os homens se preocupam habitualmente em fi- xar na pedra ou no papel” (1975:41). Nao obstante, a polémica ja estava ins- taurada e reificava a separacao entre sincro- 1. Nao se pode esquecer que, nesse mesmo momento, ra Franga, a Escola dos Annales buscava parime tos semelhantes ao eleger “o problema” ¢ a inter- disciplinaridade como temas fundamentais para suas investigagées. 128 | LILIA Morirz scHwaRcz nia e diacronia; estrutura e hist6ria. O supos- to era que nao havia como lidar com diacro- nias estanques, que abririam campos diversos ¢ perspectivas quase antagénicas. Certos adendos devem ser feitos. Em pri- meiro lugar, Lévi-Strauss costuma ser melhor leitor de si do que de outras escolas e, dessa maneira, suas interpretagées sobre a “Histé- ria da Antropologia” levam sempre ao estru- turalismo. Além disso, desde os anos 70 fo- ram muitas as contribuigdes, que se dividi- ram entre aquelas que se opuseram, franca- mente, 20 modelo estrutural ¢ autras que se- guiram o mestre francés ~ de mais longe ou mais perto. Nao é hora de listar os autores que tomaram parte desse debate, mas o que se pode dizer, sem medo de errar, 6 que nessa “contenda” Marshall Sablins merece um lu- gar especial. Definindo-se como uma espécie de “estruturalista hist6rico”, Sahlins guarda, no campo da Antropologia, um papel de me- diador; um bom mediador. Em primeiro lugar, a partir de seus traba- Ihos a temporalidade é retomada em sua di- mensio social, no sendo mais possivel sepa- rar sincronia diacronia. Nota-se, ainda, como a tentativa de “dar histéria & estrutu- ra”, implicou em uma reavaliagao do tema do poder e na utilizagao do conceito de estru- tura em dominios e andlises que destacam no a permanéncia, mas antes a mudanga. isso que faz Marshall Sahlins quando indaga pela existéncia de estruturas histéricas; cosmolo- gias que sao reordenadas historicamente. Ja em Cultura e Razao Pratica a atengio do autor parecia voltar-se em diregao a defe- sa da “interpretagao simbélica da cultura” € para a critica de sua visio utilitéria e inten- cional. Questionando as explicages pragmé- ticas, que ignoram o cédigo cultural que go- verna a utilidade, Sablins analisou a “auto- ilusio” de nossa sociedade, que lega a im- pressio de que a producao nao passa de um precipitado, de uma racionalidade esclareci- da, O utilitarismo é a maneira pela qual a sociedade ocidental se experimenta e se inter- preta, mas ndo deixa de ser uma explicagao da forma cultural. Insistindo no significado social e cultural dos objetos de uso e da prépria troca, Sahlins mostra como a “utilidade nao é uma qualida- de do objeto, mas uma significagao de quali- dades objetivas” (Sahlins, 1979:189). E isso que permite concluir a existéncia de uma ra- zo cultural, uma sig habitos alimentares, nas praticas vestuérias, nos rituais do cotidiano. Mas se o desenvolvi- mento desses temas nos levaria a, junto com Sahlins, indagar por que a rainha de copas, em Alice no Pais das Maravilhas, acabou por concluir que “nao se manda cortar a cabeca icacdo simbélica nos de alguém que se foi recém-apresentado”, mais importa, nesse momento da discussao, enfatizar que, a partir dos trabalhos de Sahlins avangamos com a idéia que 0s objetos 6 ad- quirem sentido quando contextualizados, além de ser possivel alargar o espectro estrutural, ao fazé-lo discutir com a Histéria. Foi em seu livro Historical Metaphors and Mythical Realities —tcaduzido em parte neste niimero da Cadernos de Campo —que Sablins, pela primeira vez, enfrentou esse tipo de terre- no pantanoso ¢ interdisciplinar. Como diz. 0 “O grande desafio para uma antropo- logia histérica é nao apenas saber como os eventos sio ordenados pela cultura, mas como, nesse processo, a cultura é reordenada. Como a reprodugio de uma estrutura se torna a sua transformacao?” (2000a:139). Nos ter- mos do autor, o grande desafio era, portanto, no opor de forma mecdnica estrutura a his- t6ria, mas perceber como releituras locais passam sempre por estruturas anteriores. “Ba- sicamente, a idéia € muito simples. As pes- soas agem em relagdo as circunstancias de acordo com os seus prdprios pressupostos cul- autor cadernos de campo +n. 9 + 2001 turais, as categorias socialmente dadas de pes- soas e coisas. A pessoa ~agéo no mundo -, a reavaliagao do signo na pratica eo retorno & estrutura ... entre sentido simbélico e referén- cia simbélica, 0 proceso historico se desdo- bra num movimento continuo e reciproco en- trea pratica da estrutura e a estrutura da pré- tica” (2000b:139).*Pratica da estrutura, estru- tura da pratica”: ai estaria exposto uma espé- cie de bordio do auto, que passaria a buscar ambivaléncias nas l6gicas ¢ leituras culturais, que acomodam sistemas de longa, curta média duracdo. A cultura nao é jamais um papel em branco onde se inscrevem modelos vindos de fora. Ao contrario, sua absorcao passa pela reavaliagao da propria estrutura pela hist6ria e vice-versa. isso que Sablins denomina, em Ilhas de Historia, como “a reavaliagao funcional de categorias”, nese movimento que o leva a nuangar dicotomias rigidas que vém sendo opostas no debate disciplinar: estrutura X his- t6ria, sistema X evento, sincronia X diacro- nia, individuo X sociedade, acontecimento X. longa duracdo. Partindo de uma outra con- cepcao de estrutura, esse autor parece procu- rar “historicizar a nocdo de estrutura”, advo- gar a idéia de que € possivel pensar em “trans- formagio estrutural” e ao mesmo tempo veri- ficar como as estruturas se realizam no inte- rior da ordem cultural, de alguma maneira destacada do curso histérico. Partindo da concepsao de estrutura de Hocart ~e nao da nogao sincrénica de Saus- sure, como faz Lé um afastamento do conceito atemporal de es- trutura, ao entendé-la como “um conjunto de relagdes mutuamente contrastante e, por isso mesmo, mutuamente definidora entre signos” (1990:1.6); tudo isso sem abandonar a hist6- ria, Com efeito, para esse autor, mesmo na representagio mais abstrata de signos - ou seja, na cosmologia ~ a estrutura esta em Strauss -, Sahlins busca tradug movimento. Ela possuiria uma diacronia in- terna, de forma que toda reintrodugao ja sig- nificaria uma reordenagao e a sua propria alteragao. “A hist6ria € ordenada cultural- mente de diferentes modos nas diversas socie- dades, de acordo com esquemas de significa- do das coisas, mas o contrario também é verdadeiro: esquemas culturais so ordenados historicamente, porque, em maior ou menor grau, os significados séo reavaliados na pré- tica” (ibidem: 38). problema levaria, portanto, menos a explodir 0 conceito de histéria pela experién- cia antropolégica da cultura (deixemos a ta- refa aos historiadores), como a introduzir a experiéncia histérica estourando o conceito antropolégico de cultura e incluindo a estru- tura: a transformagao de uma cultura é tam- bém um modo de sua reprodugao. “Estourar © conceito de cultura” significa, nesse caso, repensé-lo de forma a mostrar como ordens culturais diversas tem modos préprios de pro- dugao histérica: “culturas diferentes, histori- cidades diferentes”. A cultura, pensada dessa maneira, ndo é mais do que a organizagao da situago atual em termos do passado. E a isso que Sablins chama de “estrutura da conjuntu- ra” —uma sintese entre estrutura e conjuntura =, a maneira como as culturas reagem a um evento (um acomtecimento culturalmente sig- nificado) fazendo dialogar o contexto imedia- to com estruturas culturais anteriores, de for- ma a voltar 4 maxima de Boas que afirmou que “o olho que vé é 0 6rgao da tradicao”. A historia é, dessa maneira, construida, tanto no interior de uma sociedade, como entre so- ciedades, que repéem estruturas passadas na orquestragao do presente. Estamos, mais uma vez, diante do velho problema da mediago entre sincronia e dia- cronia; estrutura e histéria. Talvez 0 maior desafio seja abrir mao de modelos que opo- nham mecanicamente os dois elementos, em 130 | LitiA Morirz scHwarcz nome da convivéncia entre ambos. S6 dessa maneira sera possivel aprender invariantes e permanéncias estruturais, porém re-significa- das (e, portanto, alteradas) em contextos di- versos. As categorias alteram-se na aco, mas guardam um didlogo com estruturas culturais anteriores. Eis a nogao de dinamica cultural, que significa pensar que a produgio de con- tetido é referida ao contexto, mas re-traduzi- da em fungo de modelos anteriores. Isto trata-se de selecionar um conjunto de relacdes historicas que, ao mesmo tempo, reproduzem velhas categorias culturais e lhes dao novos valores retirados de um contexto pragmético. “A reproducdo da estrutura comega com sua propria transformacio”, afirma Sahlins, que dessa maneira recorta seu préprio objeto: a estrutura da pratica e a prética da estrutu- ra, Seja por meio da anilise das diferentes recepges que teve 0 Capito Cook, das cos- mologias do capitalismo, das relacdes amo- rosas, dos mastros havaianos... vemos como as estruturas culturais atualizam-se na pra ca, como se fossem possiv diversos capitdes, varias explicagdes. A cul- tura surge definida como uma ordem estrutu- ral de significagao, porém seus contetidos al- teram-se diante da hist6ria, Em meio ao con- texto contemporaneo, quando se afirma a imposicdo de um sistema mundial e teme-se a tio falada globalizacao, o modelo de Sahlins tem o mérito de mostrar que a incorporagao do capitalismo em paises periféricos se dé, também, de acordo e a partir das distintas légicas nativas, que geram resultados cultu- rais diversos e, muitas vezes, inesperados. Eo “retorno da cultura” que, vista a partir da 6tica da recepgao, possibilita imaginar que nao estariamos todos condenados, igualmen- te, a globalizagio. A obra de Sabilins sinaliza para rumos re- centes da disciplina, que encontram “hist6ria na estrutura”, fazem dialogar sincronia e dia- muitas mortes, cronia ¢ introduzem a questo do poder, até entao bastante distante das andlises antropo- logicas. Essa é sem sombra de diivida, uma aposta alentada, na medida em que se sele- cionam objetos histéricos, para lé encontrar nao apenas o “acontecimento” e a diacronia, masa sincronia ¢ os elementos de longa dura- sao. Na explicagao do enraizamento de cer- tas simbologias, de rituais e representagdes, esse tipo de inspiracdo parece oportuna, na medida em que permite mostrar como os es- tudos antropolégicos, ao procurar por perma- néncias— quase que idiomas locais -, ndo pre- cisam fechar 0s olhos & histéria e & mudanga. Por fim, esse tipo de perspectiva dé a Antro- pologia um local especial no debate contem- poraneo, na medida em que revela como a pratica politica carrega, em sua légica, di- mensées simbélicas ¢ rituais, para além de sua realidade pragmatica e imediatamente referida ao contexto. Mas terminar dessa maneira seria acenar com a bandeira da paz e nfo olhar para a contenda atual, que inclui o proprio Sahlins. Estou me referindo 4 polémicas mais recen- tes, que tém colocado em questo o estatuto do autor e sua autoridade. Se a “modernida- de” — entendida como a afirmaco da crise de representacao ~ apareceu em diferentes areas do conheciments, foi na Antropologia, talvez em fungao da proximidade entre sujeito ¢ ob- jeto de andlise, que 0 movimento transfor- mou-se em debate de referéncia. Sob o r6tulo de “pés-modernidade” uma gama extrema- mente ampla de t6picos e abordagens surgiu na agenda intelectual, levando a repensar modelos, autores ¢ escolas bastante estabele- cidos na tradigao antropoldgica. Em questo est o estatuto de conhecimento, a qualidade da investigagao ¢ também a questdo da res- ponsabilidade politica do cientista e do inves- tigado. Nao é possivel, por certo, desvincular esse debate do proceso descolonizacao, con- cadernos de campo + n. 9 + 2001

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