You are on page 1of 14
PARTE 1 O VELHO Quem é 0 velho? 1 ‘odos nbs, com certeza, temos uma imagem de vetho formada a partir de nossa observago, de nossa vivéncia ou daquilo que nos ¢ passado pela familia ¢ pela sociedade. Certo dia, questionando-me a esse respeito, resolvi fazer uma experiéncia. Propus a dois grupos com os quais trabalho, ‘um de estudantes da drea da Saiide na faixa dos 18 aos 21 anos, ¢ outro de mulheres de 51 a 83 anos, a mesma questo: quais sto as caracteristicas ‘que definem uma pessoa velha? No primeiro grupo, o velho foi definido como uma pessoa chata, tris- te, deprimida, cansada, doente e solitéria. No segundo, 0 velho foi conside- rado alguém muito vivido, com bastante experiencia, mais lento, com docn- ‘¢28, com bastante tempo, tranglilo e mais perto da morte. Logo em seguida, apresentei outra questi ao primeiro grupo: nenhum de vocés conhece jovens chatos, tristes, deprimidos, cansados, doentes ou solitérios? E perguntei as mulheres do outro grupo se nenhuma delas ja hhavia encontrado jovens muito vividos, experientes, lentos, com doengas, ‘com tempo de sobra, tranqUilos ¢ que, mesmo jovens, esto muito perto da morte? E claro que todos responderam que sim. Ou scja: a maior parte das caracteristicas do velho ndo sio peculiaridades de uma faixa etéria. Uma pessoa niio passa a ter determinada personalidade porque envelheceu, ela simplesmente mantém ou acentua caracteristicas que j4 possuia antes. Via de regra, um velho chato ou deprimido é um jovem chato e deprimido que envelheceu. assim como um velho alegre ¢ otimista ¢ um jovem alegre € ‘timista que se encontra em outra etapa da vida. ‘Velho é aquele que tem diversas idades: a idade do seu corpo, da sua hhist6ria genética, da sua parte psicolégica c da sua ligagiio com sua socic- dade. & a mesma pessoa que sempre foi. Se foi um batalhador, vai conti- nur batalhando; se foi uma pessoa alegre, vai continuar alegrando; se foi ‘uma pessoa insatisfeita, vai continuar insatisfeita; se foi ranzinza, vai con- ‘tinuar ranzinza. Sempre digo que o velho & um mais: tem mais experiéncia, mais vi- ‘véncia, mais anos de vida, mais doengas crénicas, mais perdas, sofre mais preconceitos tem mais tempo disponivel. No momento em que utiliza ‘mais sua experiéncia, a vivéncia adquirida ao longo de sua vida, aprende a conviver com suas doengas crénicas e préprias da sua idade; elabora suas pperdas, no esquecendo seus ganhos; dribla os preconceitos e aprende a utilizar scu tempo. Ele voutinuaré curtinde a vida, gucando as visas boas © sendo feliz. Fazer planos para o amanha é viver. Tenho convivido hé muitos anos com um senhor que, ao telefonar para o filho, diz sempre: “Aqui é 0 velho”. Esse “velho” vem recheado de muito ‘amor, respeito e admirago, O filho curte muito esse pai que, por sua vez, tem orgulho de ser seu velho. 20 Gurr I. Zowenninn Aspectos fisicos, psicolégicos e 2 sociais do envelhecimento nvelhecer pressupde alteragdes fisicas, psicolégicas e sociais no indi- -viduo. Tais altcrag6cs sfo naturais © gradativas. E importante salicntar ‘que essas transformagdes so gerais, podendo se verificar em idade mais pre- ‘coce ou mais avangada ¢ em maior ou menor grau, de acordo com as caracte- risticas genéticas de cada individuo e, principalmente, com o modo de vida de cada um. A alimentagdo adequada, a pritica de exercicios fisicos, a exposi- ‘¢40 moderada ao sol, a estimulago mental, 0 controle do estresse, 0 apoio Psicolgico, a atitude positiva perante a vida eo envelhecimento slo al- ‘guns fatores que podem retardar ou minimizar os efeitos da passagem do tempo. ‘A seguir, esto listadas algumas das caracteristicas mais marcantes do envelhecimento. ASPECTOS FiSICOS Hoje em dia, com o avango farmacolégico, a melhoria nas condigdes de vida e a maior preocupago com a prevengio de doengas com boa ali- mentagao, exercicios fisicos, como caminhadas ¢ outras atividades, o en- ‘velhecimento esté acontecendo em idade mais avangada. Gostaria de lem- ‘hear que eston falanda de pessoas que tém acessa a esse comhecimenta, que slo os velhos com quem convivo. Ha 20 anos, uma pessoa de 65 anos podia ser vista como velha. Hoje & dificil vé-la cnquadrada nus moldes da terevira idade. Nav veju umn pes- soa dessa idade com grandes desgastes e muitas limitagdes. Do ponto de vista fisico, as principais mudangas do adulto jovem para ‘© velho so as seguintes: Modificagées externas — as bochechas se enrugam ¢ embolsam; — aparecem manchas escuras na pele (manchas senis); — a produgao de células novas diminui, a pele perde o tnus, toman- do-se flécida; — podem surgir verrugas; ~ o nariz alarga-se; = os olhos fica uiais danides, — hd um aumento na quantidade de pélos nas orelhas e no nariz; — 0 ombros ficam mais arredondados; — as veias destacam-se sob a pele dos membros, enfraquecem; — encurvamento postural devido a modificagdes na coluna vertebral; ~ diminuigao de estatura pelo desgaste das vértebras. Modificagées internas — 08 ossos endurecem; — 08 érgiios internos atrofiam-se, reduzindo seu funcionamento; ~ o cérebro perde neurdnios ¢ atrofia-se, tomando-se menos eficiente; — 0 metabolismo fica mais lento; — a digestio é mais dificil; — a ins6nia aumenta, assim como a fadiga durante o dia; — a visio de perto piora devido a falta de floxibilidade do cristalino; a perda de transparéncia (catarata), se no operada, pode provocar cegueira; ~ as células responséveis pela propagagdo dos sons no ouvido intemo € pela estimulagdo dos nervos auditivos degeneram-se; — o endurecimento das artérias e seu entupimento provocam arterios- clerose; — 0 olfato e o paladar diminuem. Com o passar dos anos, o desgaste & inevitivel. Sabemos que a velhice ‘iio é uma doenga, mas, sim, uma fase na qual o ser humano fica mais susceti- ‘vel a doengas. E uma época na qual as pessoas adoecem mais, mais rapidamen- te (aliés, costuma-se dizer que o velho é como um vaso de cristal, qualquer ‘coisa trinca) ¢, quando adoecem, demoram mais tempo para se recuperar. importante para mim é enquadrar as docngas crénicas do velho no ‘termo normal, é 0 entendimento de que essas doengas estio dentro do qua- dro de normalidade da idade que essa pessoa tem. 22 Gurr I. Zowenninn Tenho um amigo que diz que se uma pessoa de 70 anos vai ao médico este no encontra no minimo trés diagnésticos, ¢ porque o médico nao & ‘bom. Na verdade, ndo hé uma pessoa dessa idade que ndo tenha diminuidas sua visio, audigdo, forga e meméria e que nao tenha algum problema car- diovascular vu teumétiva, segredo do bem-viver é aprender a conviver com essas limitagdes. Conviver, para mim, é entender, aceitar e lutar para que esses problemas sejam diminuidos com exercicios fisicos, como caminhadas, natagao, dan- ‘sae passeios, exercicios de meméria, boa alimentagdo, bons habitos, parti- cipagdo em grupos e outros cuidados, dependendo do tipo de problema. ‘Um bom diagnéstico é fundamental para uma boa programagiio do ‘que deve ser feito. Essa programagdo vai depender do problema, das limi- tagdes, das possibilidades da vontade. Na minha experiéncia ao longo ddesses anos tenho atendido pessoas com grandes problemas fisicos e que continuam vivendo felizes, corajosas, com grandes satisfagées, vendo em tudo coisas boas, gozando a comida gostosa, aquele passcio a beira do rio (hoje lago) Guafba, aquele passeio de cadeira de rodas no Carrefour, fina- lizando com um bom cafezinho. Enfim, me animaria a dizer que os problemas fisicos so resolvidos ‘com muito maior facilidade e rapidez do que os problemas psicolgicos: paranéia, depressdo ¢ hipocondria, entre outros. TTenho na lembranga uma senhora de 81 anos que atendi e que, tendo sofrido um acidente vascular cerebral (derrame), ficou hemiplégica. No trabalho com a familia, mostrei a necessidade de se continuar saindo com la, que gostava muito de passear, tanto de carro como em cadeira de ro- das, pelo parque que ficava préximo 4 sua casa. A familia concordou e ‘reinei os cuidadores para que continuéssemos a dar a ela tudo o que rece- bia antes. Foi comprada uma cadeira de rodas e eu a levava para passear na ‘rua, Dla ia screna c contente, mas as pessoas que passavam por nés ficavam. ‘muito assustadas. Um dia, um familiar comentou com as cuidadoras, que eram fantésti- cas, que seria mais facil deixd-la na cama em vez de coloca-la na cadeira, prendé-la, cobri-la, descer até a garagem e depois ter que empurri-la pela rampa acima até a calgada. “Por que judiar assim dela?” foi a pergunta. ‘Na hora de nossa reunigo, questionei as cuidadoras sobre o que Ihes pare~ ia e elas me responderam que achavam que esse familiar estava com vergo- nha de que a yelha fosse vista na cadcira de rodas. O sentimento da equipe VELILICE 23 fortaleceu em mim a idéia de que estava certa. Acho, sim, que as pessoas no ‘querem ver essas coisas, porém colocar o velho, o doente, bem longe ndo re- solve. A velhice é inevitivel para quem vive. Vamos aprender a melhor viver. ASPECTOS SOCIAIS A medida que as pessoas vivem mais, a tecnologia avanga a passos Jargos, os meios de comunicago bomibardeiam com fatos e dados, as mu- dangas acontecem muito rapidamente, as distincias aumentam a cada dia, a vida é cada vez mais agitada, o tempo cada vez menor € as condigdes ‘econdmicas sto mais dificeis, nossa sociedade passa por grandes modifi- cages. Isso tudo cxige a introdugao de novos conccitos ¢ manciras dife- rentes de viver e uma grande flexibilidade e capacidade de adaptagio, que ‘© velho nem sempre tem, o que o leva a ter mais problemas. aumento do nimero de velhos no Brasil, até hé pouco considerado um pafs de jovens, comega a dar lugar a uma realidade diferente e traz a consciéncia de que a velhice existe e é uma questo social que pede uma tengo muito grande. O envethecimento social da populagio traz uma modificagdo no sta- ‘tus do velho © no relacionamento dele com outras pessoas cm fungdo de: Crise de identidade, provocada pela falta de papel social, o que leva- rio velho a uma perda de sua auto-estima, Mudangas de papéis na familia, no trabalho ¢ na sociedade. Com 0 aumento de seu tempo de vida, ele deverd se adequar a novos papéis. Aposentadoria, j4 que, hoje, ao aposentar-se, ainda restam a maioria ddas pessoas muitos anos de vida; portanto, elas devem estar preparadas para no acabarem isoladas, deprimidas e sem rumo. Perdas diversas, que vo da condigao cconémica ao poder de deci- so, A perda de parentes ¢ amigos, da independéncia e da autonomia. Diminuigao dos contatos sociais, que se tomam reduzidos em fun- go de suas possibilidades, disténcias, vida agitada, falta de tempo, cir- cunstfincias financeiras e a realidade da violéncia nas ruas. E necessério um trabalho para que sejam ajustadas suas relagdes so- ciais, com filhos, netos, colegas ¢ amigos, assim como para que sejam cria~ dos novos relacionamentos, jé que muitos acabaram, e a aprendizagem de ‘um novo estilo de vida para que as perdas scjam minimizadas. 24 Gurr. Zoeenninn ASPECTOS PSICOLOGICOS ‘Além das alteragdes no corpo, o envelhecimento traz. ao ser humano ‘uma série de mudangas psicolégicas, que pode resultar em: — dificuldade de sc adaptar a novos papdis; — falta de motivagdo ¢ dificuldade de planejar 0 futuro; — necessidade de trabalhar as perdas orgénicas, afetivas ¢ sociais; ~ dificuldade de se adaptar as mudangas rapidas, que tém reflexos dramiticos nos velhos; ~ alteragSes psiquicas que exigem tratamento; — depressdo, hipocondria, somatizagao, parandia, suicidios; — baixas auto-imagem e auto-estima, Segundo estudos intemnacionais, 15% dos velhos necessitam de aten- dimento em saiide mental e 2% das pessoas com mais de 65 anos apresen- tam quadros de depressio, que, muitas vezes, ndo so percebidos pelos familiares ¢ cuidadores, sendo encarados como caracteristicas naturais do cenvelhecimento. Hé dados mostrando que, além de estarem sujeitos & de- pressilo, os idosos slo atingidos por estados parandides, hipocondria e ou- ‘tros transtornos. A experiéncia mostra que, assim como as caracteristicas fisicas do cenvelhecimento, as de carster psicolégico também estio relacionadas com 1 hereditariedade, com a historia e com a atitude de cada individuo. As pessoas mais saudéveis e otimistas tém mais condigdes de se adaptarem as transformag6es trazidas pelo envelhecimento. Elas esto mais propensas a verem a velhice como um tempo de experiéncia acumulada, de maturida- de, de liberdade para assumir novas ocupagdes e até mesmo de liberagdo de certas responsabilidades. VELIICE 25 Independéncia, semidependéncia, 3 dependéncia e autonomia ‘ependéncia, semidependéncia e independéncia so termos que s6 po- ‘dem ser empregados quando relativizados ¢ pluralizados. Uma pessoa pode, por exemplo, ser financeiramente independente, mas fisicamente de~ pendente. A dependéncia ou a independéncia, portanto, nfo so absolutas € necessirio estabelecer em relagdo a que coisa ou pessoa alguém ¢ depen- dente. Outro conceito importante, que também esté relacionado com o de independéncia, é 0 de autonomia, palavra de origem grega (auto= eu; no- ‘mos= lei). Pode-se dizer que uma pessoa tem autonomia quando consegue se determinar, fazer suas préprias escolhas, tomar decisdes. Ela pode no ter independéncia em alguns aspectos, mas manter sua autonomia. ‘A questo da relatividade da dependéncia e da autonomia é muito re- levante no que diz respeito aos velhos. Existem alguns mitos nesse sentido, ‘como 0 de que na velhice os filhos passam a ser pais dos préprios pais. Isso niio é totalmente verdade, o que ocorre é uma inversdio de papéis devido & perda da autonomia, do comando, das condigdes de se determinar, escolher suas leis e objetivos. DIFICULDADE DE TORNAR-SE DEPENDENTE Em uma sociedade onde as pessoas sio avaliadas pelo que produ- zem, pelo que dio, pedir algo ¢ muito dificil. Além disso, pedir nunca foi colocado no “pacote” da velhice. Estamos desde jovens sendo in- centivados a ser independentes ¢ nunca se falou da relatividade e da pluralidade embutidas dentro da independéncia, ou seja, nunca se é to- talmente independente. Se nos conscientizarmos de que na velhice teremos mais dependéncia. neste ou naquele sentido, quando chegarmos nesse momento nos sentire- ‘mos dentro da realidade, da normalidade. E muito grande o fardo que 0 proprio velho obriga-se a carregar, exigindo-se a mesma independéncia que tinha nas outras fases da vida. Devemos lembrar que, se uma de- pendéncia maior é normal na adolescéncia e na infincia também o é na velhice. De modo geral, 0 velho evita pedir qualquer tipo de ajuda porque: — nv tem © diteito de pedir (cada usn a sua), — niio quer incomodar, — tem medo que o pedido seja negado, gerando frustrago; — acha que esta tirando 0 tempo de alguém; — 0 trabalho dos filhos e dos netos ¢ mais importante do que ele; — teme ser rotulado de chato e cair de seu pedestal; — medo de ser malvisto, pois a velhice jé é vista como algo ruim, cha- to, triste, ¢ de deixar como heranga uma imagem ruim; — medo de sobrecarregar filhos, amigos, vizinhos, etc.; — medo de se sentir um peso (culpa). E preciso mudarmos nossa postura, No “pacote” da velhice devem cconstar idéias como a de que os velhos jé produziram muito ao longo de sua vida, continuam produzindo de diversas maneiras e agora merecem receber mais atengo ¢ respeito. Eu sempre digo aos jovens que invistam ‘em seu futuro, pensem em sua velhice. Para os velhos fica o direito de Iutar, reivindicar, discutir, posicionar-sc ¢ ser um modelo positivo de velhi- ce para os jovens, mostrando como pode ser 0 seu futuro. VELIICE 27 Velhice x juventude 4 ivemos em uma sociedade em que a expectativa é ser adulto. Quando uma crianga ou um adolescente projeta o futuro sempre se vé como um adulto jovem, formado, com alguma profissdo, trabalhando e ganhando dinheiro, Nao se imagina um velho feliz e até prefere nem pensar na velhi- ce, como se 0 velho ja fosse um semimorto ou alguém com uma doenga infectocontagiosa. Para muitas pessoas, quando se fala em velho a imagem ‘que vem & mente é a de um sapato gasto, furado ¢ que, portanto, ja nlio serve para mais nada. O pior é que esse tipo de pensamento nao é comum sé entre os jovens. © préprio velho se autodiserimina, v8 se como um peso morto, como al ‘guém que jé fez. a sua parte, jd teve seu papel no mundo ¢ hoje ndo passa de alguém dispensavel, que no tem mais funeo e por isso no precisa mais viver. Percebo que existe na sociedade atual a cultura da velhice infeliz. Ou seja: tudo isso que descrevi é aceito como natural. Ninguém questiona 0 fato de o velho ser considerado um ser doente e initil, um fardo a ser carre- ¢gado pela familia ¢ pela sociedade, e essa ideologia vai sendo permanente- ‘mente realimentada. E preciso acabar com essa mentalidade, Ser velho nao é 0 contrario de ser jovem. Envelhecer é simplesmente passar para uma nova etapa da vida, ‘que deve ser vivida da maneira mais positiva, saudavel e teltz possivel. E preciso investir na velhice como se investe nas outras faixas etdrias. E claro que existe o envelhecimento orgéinico ¢ suas conseaiiéncias. E normal que o velho apresente doengas crdnicas decorrentes do desgaste fisico, psiquico e social sofrido com o passar dos anos. Mas dai a ele ser considerado doente ¢ incapaz vai uma grande diferenga. Afinal, as doengas cerdnicas, como o diabete, a hemofilia e outras tantas, também atingem pes- soas jovens, que podem levar uma vida praticamente normal, desde que respeitados alguns cuidados. Ecomum, quando alguém esté bem, dizer coisas como “Sinto-me como se tivesse 20 anos”. Ou “elogiar” um velho dizendo que ele tem espirito jovem. Tais comentérios reforgam a associagio que se faz de juventude ‘com satide ¢ felicidade, quando se sabe que isso é uma idéia falsa. Afinal, no existem tantos jovens doentes, carentes, viciados em drogas, com fa- lias desajustadas, problemas na escola, desempregados, insatisfeitos,tris- tes, infolizes © vou tantas outrasdiffculdades? Os proptivs vellios que vou param seus momentos felizes com a juventude nem sempre foram tio feli- -zes aos 20 anos. Insisto em desmistificar essa comparagdo que se faz entre as fases da vida por julgé-la extremamente preconceituosa e prejudicial & aceitagdio da velhice como um periodo que pode e deve ser prazeroso para 0 préprio velho e para os que o cercam. O velho é uma pessoa que tem uma historia, ‘que acumulou experiéncia de vida e adquiriu maior trangdilidade e profun- didade. O velho é mais lento do que 0 jovem, no consegue percorrer de- terminada distincia com a mesma velocidade de antes, mas com certeza tem condigdes de vencé-la. Por outro lado, a falta de meméria no é uma ccaracteristica 96 do envelhecimento, A meméria ndo envelhece, o que ocorre freqentemente & que ela passa a ser menos exigida, piorando pela falta do ‘uso, Para manté-la, devemos exerciti-la, assim como ¢ importante fazer exercicios fisicos e manter-se ativo, ocupado, Devemos exercitar a nossa ‘meméria, nossas relagdes, nossa troca de afeto, passear, ira festas, enfim, ‘mexer com © corpo, os olhos, a boca, a mente ¢ a afetividade. De resto, & preciso ter sabedoria para aceitar as limitagSes inevitiveis impostas pela velhice e para encarar a finitude da vida, permitindo-se falar abertamente sobre a morte ao invés de evitar 0 assunto. Ha pessoas, como uma velha que acompanho, que tratam dessa questo com naturalidade, discutem, trocam idéias sobre como distribuir o que vai ficar e o que deve ser feito depois da sua morte. Lembro-me de uma pessoa que, muitos anos antes de morrer, pediu-me que fosse com ela ao cemitério para escolher 0 lugar onde seria cnterrada. Pomos até ld ¢ cla comprou a érca no cemitério ‘onde mais tarde foi sepultada. Ao sair do cemitério, ela me falou: “Agora estou descansada, pois sei onde ficarei quando morrer, bem embaixo de firvores”. Isso nfo significa desejar a morte, mas, sim, ndo temer falar no assunto e preparar-se para ela, material e espiritualmente, VELIICE 29 5 M quando nao precisa mais trabalhar para manter-se, 0 velho deve se envolver com atividades remuneradas ou nflo, ocupagdes prazero- sas, trabalhos voluntérios em favor de outras pessoas, deixando de lado a idéia de que é alguém initil. Ainda preservamos a idéia errada de que s6 ‘tem valor quem produz bens materiais ¢ dinheiro. Ninguém nos diz que também é importante produzir felicidade. O que importa ¢ a postura diante da vida, a forma de ser e de buscar a propria felicidade. E preciso uma preparacdo interna, objetivos de vida e projetos para continuar vivendo. Conhego pessoas que tém a sensago de ‘que nunca véo morrer, pois véem a sua continuidade nos filhos, nos netos, nos alunos ¢ em outras pessoas que as cercam. So velhos com muitos projetos ainda no-realizados. Eles se dio conta de que sua posig#0 na ‘rvore genealogica mudou, seu papel na familia é outro; no tém mais os avés, os pais, talvez os irmios e os cOnjuges. Nao sio mais os galhos, Passaram a ser os troncos dos quais surgiram, filhos, netos, bisnetos, gen- Tos e noras, que so a sua continuago. Muitos amigos queridos provavel- ‘mente jé se foram, mas novas relagdes de amizade foram sendo formadas. As ligagdes afetivas continuam sendo importantes na sua vida. essa sensagio que Ihes dé trangliilidade, esperanga, confianga no futuro. Sim, no futuro. Essa é uma das diferengas mais acentuadas entre jJovens e velhos em nossa cultura. U jovem olha para a frente e vé o tuturo. 0 velho olha para a frente ¢ enxerga 0 fim. E por que no experimentar olhar para tris ¢ ver 0 caminho que foi percorrido até ali? Nao se trata de viver no passado, mas sim de reconhecer o valor de toda uma existéncia, Preocupar-se no apenas com o que se fez, mas com o caminho que ainda se tem para percorrer. Isso vale tanto para o velho quanto para o jovem, que precisa olhar com respeito para o passado dos velhos com quem convive e — por que ndio? — imaginar que hist6rias gostaria de contar quando envelhe- ‘cer. Ninguém sabe quando vai morrer. Na verdade, viver ¢ ter projetos desejar algo, & buscar realizagdes. Ao abrir mio disso, o priprio velho esta fazendo uma op¢o autodestrutiva, Outro dia, uma das velhas que acompanho disse-se que havia pensado ‘ese questionado muito porque uma amiga sua comentara que j tinha feito tudo que devia com seus filhos e que agora sua vida estava varia, 0 que a fez pensar ser diferente com ela que agora esté fazendo com seus netos tudo que fazia com scus filhos, mas de outta manciva, Ela brinva eam os netos, vai ao shopping e viaja com eles. A diferena em relacdo aos filhos que agora s6 faz isso quando quer e pode. A criatividade dela continua intacta c sua vida segue cheia de alegrias e surpresas. Sente-se surpresa por ver que continua a mesma, mas de uma maneira diferente. A idade muda, a situagZio muda, a visio muda, mas a vida continua. ‘Ha algum tempo, vi o pintor Carlos Scliar falando na televisdo sobre suas obras. Ele observava que, cada vez que olhava um de seus quadros, tinha vontade de mudar alguma coisa, pois a visio de agora nfo era a mes- ‘ma de quando o havia pintado. O mesmo acontece com quem tem um qua- ‘dro em casa: cada vez que olha para ele, observa uma coisa diferente, per- cebida pela visio do momento. Isso me fez refletir e desejar que algum dia, a0 olharem para alguém de 70 anos ou mais, as pessoas digam: com toda sua experiéncia, 0 que essa pessoa vai nos dar? Se j se sabe que 0 ser hhumano pode viver até os 125 anos, ter 70 é recém ter passado da metade dda Vida! Ou seja: tudo é relativo. Basta lembrar que, hé alguns anos, chegar ‘a0s 40 cra ter percorrido um longo caminho c hoje, com essa idadc, a ex- pectativa de vida é completamente diferente. O quadro da vida continua 0 ‘mesmo, o que muda é a perspectiva a partir da qual o olhamos. ‘A questo da relatividade também pode ser vista no percentual demo- sgrifico que os velhos representam: quando sua presenga na populagdo era insignificante, ninguém lhes dava muita atencfio. Mas hoje é cada vez maior ‘omimero de vethos, de maneira que se torou impossivel passarem desper- cebidos. Seu peso social e econdmico é crescente, ¢ isso est fazendo com que haja uma prcocupagio maior com cles. VELIICE 31

You might also like