You are on page 1of 48
HISTORIA GERAL DA AFRICA - I Esta versio em portugues € fruto de uma parceria entre a Representa da UNESCO no Brasil, Secretaria de Educacao Continuada, Alfabetizagao ¢ Diversidade do Ministério da Educagao do Brasil (Secad/MEC) e a Universidade Federal de $40 Carlos (UFSCan). Titulo original: General History of Africa, I: Methodology and African Prehistory. Paris: UNESCO; Berkley, CA: University of California Press; London: Heinemann Educational Publishers Ltd., 1981. (Primeira edigo publicada em inglés). © UNESCO 2010 (versio em portugués com revisdo ortogrifica e revisio técnica) Coordenagéio geral da edicio e atualizagdo: Valter Roberto Silvério Preparacao de texto: Eduardo Roque dos Reis Falcio Revisdo técnica: Kabengele Munanga Revisdo ¢ atwalizagdo ortogrifica: Cibele Elisa Viegas Aldrovandi Projeto griifico e diagramagio: Marcia Marques / Casa de Ideias; Edson Fogaga ¢ Paulo Selveira / UNESCO no Brasil Hist6ria geral da Africa, I: Metodologia e pré-historia da Africa / editado por Joseph Ki-Zerbo, ~ 2.ed, rev. ~ Brasflia : UNESCO, 2010. 992 p. ISBN: 978-85-7652-123-5 1. Historia 2, Pré-historia 3. Historiografia 4. Métodos historicos 5. Tradigdo oral 6. Histéria africana 7. Culturas africanas 8, Arqueologia 9. Linguas africanas 10, Artes afticanas 11, Norte da Africa 12. Leste da Affica 13. Oeste da Africa 14, Sul da Africa 15. Africa Central 16. Africa I. Ki-Zerbo, Joseph Il. UNESCO I. Brasil. Ministério da Educagao IV. Universidade Federal de Sao Carlos Organizagio das Nagdes Unidas para a Educacio, a Ciéncia e a Cultura (UNESCO) Representagio no Brasil SAUS, Quadra 5, Bloco H, Lote 6, Ed, CNPq/IBICT/UNESCO, 9 andar 70070-912 ~ Brasilia ~ DF ~ Brasil ‘Tels (55 61) 2106-3500 Pax: (55 61) 3322-4261 Site: wwwanesco.org/brasilia E-mail: grupoedicorial@unesco.org.br Ministério da Educagio (MEC) Secretaria de Educagao Continuada, Alfabetizagao e Diversidade (Secad/MEC) Esplanada dos Ministérios, Bl. L, 2° andar 70047-900 ~ Brasflia ~ DF ~ Brasil Tel.: (55 61) 2022-9217 Fax: (55 61) 2022-9020 Site: http://portal. mec.gov:br/index tml Universidade Federal de Sao Carlos (UFSCan) Rodovia Washington Luis, Km 233 - SP 310 Bairro Monjolinho 1565-905 ~ Sao Carlos ~ SP - Brasil ‘Tels (55 16) 3351-8111 (PABX) Pax: (55 16) 3361-2081 Site: http://www2.ufscar.br/home/index.php Impresso no Brasil CAPITULO 8 A tradicfo viva A. Hampaté Ba “A escrita é uma coisa, ¢ o saber, outra. A escrita é a fotografia do saber, mas niio 6 saber em si. O saber é uma luz que existe no homem. A heranga de tudo aquilo que nossos ancestrais vieram a conhecer e que se encontra latente em tudo o que nos transmitiram, assim como o baobi ji existe em potencial em sua semente”. Tierno Bokar' Quando falamos de tradigdo em relacao a histéria africana, referimo-nos a tradigao oral, e nenhuma tentativa de penetrar a historia € 0 espirito dos povos africanos tera validade a menos que se apdie nessa heranga de conhecimentos de toda espécie, pacientemente transmitidos de boca a ouvido, de mestre a discipulo, ao longo dos séculos. Essa heranga ainda nao se perdeu e reside na meméria da tiltima geragéo de grandes depositarios, de quem se pode dizer sao a meméria viva da Africa. Entre as nagdes modernas, onde a escrita tem precedéncia sobre a oralidade, onde o livro constitui o principal veiculo da heranga cultural, durante muito tempo julgou-se que povos sem escrita eram povos sem cultura. Felizmente, esse conceito infundado comecou a desmoronar apés as duas tiltimas guerras, 1 Tierno Bokar Saif, falecido em 1940, passou toda a sua vida em Bandiagara (Mali). Grande Mestre da cordem mugulmana de Tijaniyya, foi igualmente tradicionalista em assuntos afticanos. Cf. HAMPATE, BA, A.e CARDAIRE, M. 1957. 168 Metodologia ¢pé-histra da Attica gragas ao notavel trabalho realizado por alguns dos grandes etndlogos do mundo inteiro. Hoje, a ago inovadora e corajosa da UNESCO levanta ainda um pouco mais 0 véu que cobre os tesouros do conhecimento transmitidos pela tradigao oral, tesouros que pertencem ao patriménio cultural de toda a humanidade. Para alguns estudiosos, o problema todo se resume em saber se é possivel conceder A oralidade a mesma confianga que se concede a escrita quando se trata do testemunho de fatos passados. No meu entender, nao é esta a maneira correta de se colocar o problema. O testemunho, seja escrito ou oral, no fim nao é mais que testemunho humano, ¢ vale 0 que vale o homem. Nao faz a oralidade nascer a escrita, tanto no decorrer dos séculos como no proprio individuo? Os primeiros arquivos ou bibliotecas do mundo foram o cérebro dos homens. Antes de colocar seus pensamentos no papel, o escritor ou © estudioso mantém um diilogo secreto consigo mesmo. Antes de escrever um relato, o homem recorda os fatos tal como lhe foram narrados ou, no caso de experiéncia propria, tal como ele mesmo os narra. Nada prova a priori que a escrita resulta em um relato da realidade mais fidedigno do que o testemunho oral transmitido de geragao a geracio. As cronicas das guerras modernas servem para mostrar que, como se diz. (na Africa), cada partido ou nagao “enxerga o meio-dia da porta de sua casa” — através do prisma das paixées, da mentalidade particular, dos interesses ou, ainda; da avidez em justificar um ponto de vista. Além disso, os proprios documentos escritos nem sempre se mantiveram livres de falsificagoes ou alteragdes, intencionais ou nio, ao passarem sucessivamente pelas mos dos copistas ~ fenémeno que originou, entre outras, as controvérsias sobre as “Sagradas Escrituras”. ‘ que se encontra por detrés do testemunho, portanto, é o proprio valor do homem que faz. 0 testemunho, o valor da cadeia de transmissio da qual ele faz parte, a fidedignidade das memérias individual e coletiva ¢ 0 valor atribuido & verdade em uma determinada sociedade, Em suma: a ligagéo entre o homem e a palavra. E, pois, nas sociedades orais que nao apenas a fungio da memoria é mais desenvolvida, mas também a ligagao entre o homem e a Palavra é mais forte. La onde nao existe a escrita, o homem esté ligado A palavra que profere. Esta comprometido por ela, Ele éa palavra, e a palavra encerra um testemunho daquilo que ele é. A propria coesio da sociedade repousa no valor ¢ no respeito pela palavra. Em compensagio, ao mesmo tempo que se difunde, vemos que a escrita pouca a pouco vai substituindo a palavra falada, tornando-se a tinica prova e 0 inico recurso; vemos a assinatura tornar-se 0 nico compromisso reconhecido, enquanto. 0 laga sagrado ¢ profundo que unia o homem a palavra desaparece progressivamente para dar lugar a titulos universitarios convencionais. A tradigfo viva 169 Nas tradigoes africanas — pela menos nas que conhego e que dizem respeita a toda a regio de savana ao sul do Sara -, a palavra falada se empossava, além de um valor moral fundamental, de um carter sagrado vinculado a sua origem divina e &s forgas ocultas nela depositadas. Agente magico por exceléncia, grande vetor de “forcas etéreas”, no era utilizada sem prudéncia. Intimeros fatores — religiosas, magicos ou sociais — concorrem, por conseguinte, para preservar a fidelidade da transmissio oral. Pareceu-nos indispensivel fazer ao leitor uma breve explanagdo sobre esses fatores, a fim de melhor situar a tradigao oral africana em seu contexto ¢ esclarecé-Ia, por assim dizer, a partir do seu interior. Se formuléssemos a seguinte pergunta a um verdadeiro tradicionalista* africano: “O que € tradigao oral?”, por certo ele se sentiria muito embaragado. ‘Talvez respondesse simplesmente, apés longo siléncio: “E 0 conhecimento total”, © que, pois, abrange a expresso “tradicao oral”? Que realidades veicula, que conhecimentos transmite, que ciéncias ensina e quem so os transmissores? Contrariamente ao que alguns possam pensar, a tradicao oral africana, com efeito, nao se limita a histérias ¢ lendas, ou mesmo a relatos mitolégicos ou histéricos, e os griots estio longe de ser seus tinicos guardiaes e transmissores qualificados. A tradigo oral é a grande escala da vida, ¢ dela recupera ¢ relaciona todos os aspectos. Pode parecer caética aqueles que nao Ihe descortinam o segredo desconcertar a mentalidade cartesiana acostumada a separar tudo em categorias bem definidas. Dentro da tradico oral, na verdade, o espiritual ¢ 0 material nio esto dissociados. Ao passar do esotérico para 0 exotérico, a tradicao oral consegue colocar-se ao alcance dos homens, falar-Ihes de acordo com o entendimento humano, revelar-se de acordo com as aptidées humanas. Ela € a0 mesmo tempo religiio, conhecimento, ciéncia natural, iniciagao 8 arte, histéria, divertimento ¢ recreagio, uma vez que todo pormenor sempre nos permite remontar a Unidade primordial. Fundada na iniciagdo e na experiéncia, a tradig%o oral conduz 0 homem & sua totalidade e, em virtude disso, pode-se dizer que contribuiu para criar um tipo de homem particular, para esculpir a alma africana. Umavez que se liga a0 comportamento cotidiano da homem e da comunidade, a “cultura” africana no 6, portanto, algo abstrato que possa ser isolado da vida. Ela envolve uma visio particular do mundo, ou, melhor dizendo, uma presenga particular no mundo — um mundo concebido como um Todo onde todas as coisas se religam e interagem. A tradigio oral baseia-se em uma certa concep¢io da homem, do seu lugar € do seu papel no seio do universo. Para situé-la melhor na contexto global, antes 170 Metodologia ¢pé-histra da Attica de estuda-la em seus varias aspectos devemos, portanto, retomar ao proprio mistério da criagao do homem e da instaura¢io primordial da Palavra: 0 mistério tal como ela o revela e do qual emana. A origem divina da Palavra Como niio posso discorrer com autenticidade sobre quaisquer tradigdes que nao tenha vivido ou estudado pessoalmente ~ em particular as relativas aos paises da floresta — tirarei os exemplos em que me apéio das tradigdes da savana ao sul da Sara (que antigamente era chamada de Bafur e que constitufa as regides de savana da antiga Africa ocidental francesa). A tradigao bambara do Komo? ensina que a Palavra, Kuma, € uma forca fundamental que emana do proprio Ser Supremo, Maa Ngala, criador de todas as coisas. Ela é 0 instrumento da criagao: “Aquilo que Maa Ngala diz, é!”, proclama o chantre do deus Komo. O mito da criayio do universo ¢ do homer, ensinado pelo inesue insiciador do Komo (que é sempre um ferreiro) aos jovens circuncidados, revela-nos que quando Maa Neala sentiu falta de um interlocutor, criow o Primeiro Homem: Maa. Antigamente a historia da génese costumava ser ensinada durante os 63 dias de retiro imposto aos circuncidados aos 21 anos de idade; em seguida, passavam is 21 anos estudando-a cada vez mais profindamente Na orla do bosque sagrado, onde Komo vivia, o primeiro circuncidado entoava ritmadamente as seguintes palavras: “Maa Ngala! Maa Ngalal Quem é Maa Ngala? Onde esté Maa Ngala?” chantre do Komo respondia: “Maa Ngala é a Fora infinita, Ninguém pode situé-lo no tempo e no espago. Ele € Dombali (Incognoscivel) Dambali (Incriado ~ Infinito)”. Entio, apés a iniciagao, comegava a narragio da génese primordial: “Nao havia nada, senao um Ser. 2 Uma das grandes escolas de iniciagio do Mande (Mali) A tradigfo viva 71 Este Ser era um Vazio vivo, a incubar potencialmente as existéncias possiveis. O Tempo infinito era a moradia desse Ser-Um. O Ser-Um chamou-se de Maa Ngala. Entio ele criou ‘Fan’, Um Ovo maravilhoso com nove divisdes No qual introduziu os nove estados fundamentais da existéncia. Quando 0 Ovo primordial chocou, dele nasceram vinte seres fabulosos que constituiram a totalidade do universo, a soma total das forsas existentes do conhecimento possivel. ‘Mas, ail, nenhuma dessas vinte primeiras criaturas revelou-se apta a tornar-se 0 interlocutor (kuma-nyon) que Maa Ngala havia desejado para si. ‘Assim, ele tomou de uma parcela de cada uma dessas vinte criaturas existentes € misturou-as; entio, insuflando na mistura uma centelha de seu préprio hilito igneo, criou um novo Ser, 0 Homem, a quem deu uma parte de seu proprio nome: Maa. E assim esse novo ser, através de seu nome e da centelha divina nele introduzida, continha algo do proprio Maa Ngala” Sintese de tudo o que existe, receptaculo por exceléncia da Forga suprema e confluéncia de todas as forcas existentes, Maa, o Homem, recebeu de heranga uma parte do poder criador divino, o dom da Mente e da Palavra. Maa Ngala ensinou a Maa, seu interlocutor, as leis segundo as quais todos os elementos do cosmo foram formados ¢ continuam a existir. Ele o intitulou guardiio do Universo e 0 encarregou de zelar pela conservagio da Harmonia universal. Por isso é penoso ser Maa. Iniciado por seu criador, mais tarde Maa transmitiu a seus descendentes tudo © que havia aprendido, e esse foi o inicio da grande cadeia de transmissio oral iniciatoria da qual a ordem do Komo (como as ordens do Nama, do Kore, ete., no Mali) diz-se continuadora. Tendo Maa Negala criado seu interlocutor, Maa, falava com ele e, ao mesmo. tempo, dotava-o da capacidade de responder. Teve inicio 0 didlogo entre Maa Ngala, criador de todas as coisas, e Maa, simbiose de todas as coisas. Como provinham de Maa Ngala para o homem, as palavras eram divinas porque ainda nao haviam entrado em contato com a materialidade, Apés 0 contato com a corporeidade, perderam um pouco de sua divindade, mas se carregaram de sacralidade. Assim, sacralizada pela Palavra divina, por sua vez a corporeidade emitiu vibragées sagradas que estabeleceram a comunicagao com Maa Neala. 1 Metodologia ¢pé-histra da Attica A tradicao africana, portanto, concebe a fala como um dom de Deus. Ela € ao mesmo tempo divina no sentido descendente ¢ sagrada no sentido ascendente. A fala humana como poder de criagio Maa Ngala, como se ensina, depositou em Maa as trés potencialidades do poder, do querer e do saber, contidas nos vinte elementos dos quais ele foi composto. Mas todas essas forcas, das quais é herdeiro, permanecem silenciadas dentro dele, Ficam em estado de repouso até o instante em que a fala venha colocé-las em movimento. Vivificadas pela Palavra divina, essas forcas comecam a vibrar, Numa primeira fase, tornam-se pensamento; numa segunda, som; e, numa terceira, fala, A fala é, portanto, considerada como a materializacio, ou a exteriorizagio, das vibragées das forsas. Assinalemos, entretanto, que, neste nivel, os termos “falar” ¢ “escutar” referemmse « realidades muito mais amplas do que ay que normualmente hes atribuimos. De fato, diz-se que: “Quando Maa Ngala fala, pode-se ver, ouvir, cheirar, saborear ¢ tocar a sua fala”, Trata-se de uma percepgio total, de um conhecimento no qual o ser se envolve na totalidade. Do mesmo modo, sendo a fala a exteriorizagao das vibragées das forcas, toda manifesta: considerada como sua fala. E por isso que no universo tudo fala: tudo € fala que ganhou corpo e forma. Em fulfillde, a palavra que designa “fala” (baala) deriva da raiz. verbal Aal, cuja ideia é “dar forca” e, por extensio, “materializar”. A tradigo peul ensina que Gueno, o Ser Supremo, conferiu forca a Kiikala, 0 primeiro homem, falando com ele. “Foi a conversa com Deus que fez Kiikala forte”, dizem os Silatigui (ou mestres iniciados peul). Se a fala é forca, é porque ela cria uma ligacao de vaivém (yaa-warta, em fulfulde) que gera movimento ¢ ritmo, ¢, portanto, vida ¢ ago. Este movimento de vaivém é simbolizado pelos pés do tecelio que sobem ¢ descem, como veremos adiante ao falarmos sobre os oficios tradicionais. (Com efeito, 0 de uma sé forga, seja qual for a forma que assuma, deve ser inteiramente na fala criativa em simbolismo do oficio do tecelao basei ago). A imagem da fala de Maa Ngala, da qual é um eco, a fala humana coloca em movimento forgas latentes, que sio ativadas e suscitadas por ela - como um homem que sc levanta ¢ se volta ao ouvir scu nome. A tradigfo viva 173 A fala pode criar a paz, assim como pode destrui-la. E como o fogo. Uma tinica palavra imprudente pode desencadear uma guerra, do mesmo modo que um graveto em chamas pode provocar um grande incéndio. Diz 0 adagio malinés: “O que € que coloca uma coisa nas devidas condigdes (ou seja, a arranja, a dispoe favoravelmente)? A fala. O que é que estraga uma coisa? A fala. O que & que mantém uma coisa em seu estado? A fala”. A tradigio, pois, confere a Kuma, a Palavra, nao sé um poder criador, mas também a dupla funcao de conservar e destruir. Por essa razdo a fala, por exceléncia, é 0 grande agente ativo da magia africana. A fala, agente ativo da magia Deve-se ter em mente que, de maneira geral, todas as tradig&es africanas postulam uma visdo religiosa do mundo. O universo visivel é concebido e sentido como o sinal, a concretizacio ou o envoltério de um universo invisivel ¢ vivo, coustituide de forgas em perpétuo movimento, No interior dessa vasta unidade cdsmica, tudo se liga, tudo € solidario, e o comportamento do homem em relago asi mesmo e em relagdo ao mundo que o cerca (mundo mineral, vegetal, animal a sociedade humana) ser objeto de uma regulamentacio ritual muito precisa cuja forma pode variar segundo as etnias ou regide A violagio das lei que se manifestaria em distdrbios de diversos tipos. Por isso a agi magica, ou seja, a manipulagdo das forcas, geralmente almejava restaurar 0 equilibrio perturbado e restabelecer a harmonia, da qual o Homem, como vimos, havia sido designado guardiao por seu Criador. Na Europa, a palavra “magia” é sempre tomada no mau sentido, enquanto que na Africa designa unicamente o controle das forgas, em si uma coisa neutra que pode se tornar benéfica ou maléfica conforme a direco que se Ihe dé. Como se diz: “Nem a magia nem o destino so maus em si. A utilizagao que deles fazemos os torna bons ou maus”. sagradas causaria uma perturbacao no equilibrio das forcas A magia boa, a dos iniciados e dos “mestres do conhecimento”, visa purificar os homens, 0s animais ¢ os objetos a fim de repor as forcas em ordem. E aqui é decisiva a forca da fala. Assim como a fala divina de Maa Ngala animou as forgas césmicas que dormiam, estéticas, em Maa, assim também a fala humana anima, coloca em movimento e suscita as forgas que esto estticas nas coisas. Mas para que a fala produza um cfcito total, as palavras devem ser cntoadas ritmicamente, porque 0 4 Metodologia ¢pé-histra da Attica movimento precisa de ritmo, estando ele proprio fundamentado no segredo dos nuimeros. A fala deve reproduzir o vaivém que é a esséncia do ritmo. Nas cangGes rituais e nas formulas encantatérias, a fala é, portanto, a materializagio da cadéncia, E se é considerada como tendo 0 poder de agir sobre 0s espiritos, é porque sua harmonia cria movimentos, movimentos que geram forgas, forgas que agem sobre os espiritos que so, por sua vez, as poténcias da aio. Na tradigao africana, a fala, que tira do sagrado o seu poder criador e operativo, encontra-se em relagao direta com a conservagao ou com a ruptura da harmonia no homem e no mundo que o cerca. Por esse motivo a maior parte das sociedades orais tradicionais considera a mentira uma verdadeira lepra moral. Na Africa tradicional, aquele que falta 4 palavra mata sua pessoa civil, religiosa e oculta. Ele se separa de si mesmo e da sociedade. Seria preferivel que morresse, tanto para si proprio como para os seus. O chantre do Komo Dibi de Kulikoro, no Mali, cantou em um de seus poemas rituais: “A fala é divinamente exata, convém ser exato para com ela”. “A lingua que falsifica a palavra vicia o sangue daquele que mente.” O sangue simboliza aqui a forga vital interior, cuja harmonia é perturbada pela mentira. “Aquele que corrompe sua palavra, corrompe a si proprio”, diz 0 a Quando alguém pensa uma coisa e diz, outra, separa-se de si mesmo. Rompe a unidade sagrada, reflexo da unidade césmica, criando desarmonia dentro e ao redor de si. Agora podemos compreender melhor em que contexto magico-religioso e social se situa o respeito pela palavra nas sociedades de tradigdo oral, especialmente quando se trata de transmitir as palavras herdadas de ancestrais ou de pessoas idosas. © que a Africa tradicional mais preza é a heranca ancestral. O apego religioso ao patriménio transmitido exprime-se em frases como: “Aprendi com meu Mestre”, “Aprendi com meu pai”, “Foi o que suguei no seio de minha mae”. Os tradicionalistas Os grandes depositarios da heranga oral sio os chamados “tradicionalistas”. Meméria viva da Africa, eles sao suas melhores testemunhas. Quem sio esses mestres? A tradigfo viva 175 Em bambara, chamam-nos de Doma ou Soma, os “Conhecedores”, ou Donikeba, “fazedores de conhecimento”; em fulani, segundo a regiao, de Silatigui, Gando ou Tebiorinke, palavras que possuem 0 mesmo sentido de “Conhecedor”. Podem ser Mestres iniciados (¢ iniciadores) de um ramo tradicional especifico (iniciagdes do ferreito, do teceldo, do cacador, do pescador, etc.) ou possuir o conhecimento total da tradigao em todos os seus aspectos. Assim, existem Domas que conhecem a ciéncia dos ferreiros, dos pastores, dos teceldes, assim como das grandes escolas de iniciagio da savana — por exemplo, no Mali, o Komo, o Kore, o Nama, o Do, o Diarrawara, o Nya, o Nyaworole, ete. Mas nao nos iludamos: a tradi¢ao africana nao corta a vida em fatias e raramente o “Conhecedor” é um “especialista”. Na maioria das vezes, é um. “generalizador”. Por exemplo, um mesmo velho conhecerd nao apenas a ciéncia das plantas (as propriedades boas ou mas de cada planta), mas também a “ciéncia das terras” (as propriedades agricolas ou medicinais dos diferentes tipos de solo), a “ciéncia das aguas”, astronomia, cosmogonia, psicologia, etc. Trata-se de uma ciéncia da vida cujos conhecimentos sempre podem favorecer uma utilizagio pratica. E quando falamos de ciéncias “iniciatérias” ou “ocultas”, termos que podem confundir o leitor racionalista, trata-se sempre, para a Africa tradicional, de uma ciéncia eminentemente pratica que consiste em saber como entrar em relagio apropriada com as forcas que sustentam 0 mundo visivel e que podem ser colocadas a servigo da vida. Guardido dos segredos da Génese césmica e¢ das ciéncias da vida, 0 tradicionalista, geralmente dotado de uma meméria prodigiosa, normalmente também € 0 arquivista de fatos passados transmitidos pela tradigao, ou de fatos contemporineos. ‘Uma histéria que se quer essencialmente africana deverd necessariamente, portanto, apoiar-se no testemunho insubstituivel de africanos qualificados. “Nao se pode pentear uma pessoa quando ela esta ausente”, diz 0 adagio. Os grandes Doma, os de conhecimento total, eram conhecidos ¢ venerados, ¢ as pessoas vinham de longe para recorrer ao seu conhecimento e & sua sabedoria. ‘Ardo Dembo, que me iniciou nas coisas fulani, era um Doma peul (um Silatigui). Hoje ¢ falecido. Ali Essa, outro Silatigui peul, ainda vive. Danfo Sine, que frequentava a casa de meu pai, na minha infincia, era um Doma quase universal. Nao somente era um grande Mestre iniciado do Komo, mas também possuia todos os outros conhecimentos de seu tempo histéricos, iniciatérios ou relativos as ciéncias da natureza. Era conhecido por todos na 176 Metodologia ¢pé-histra da Attica regiao que se estende de Sikasso a Bamako, isto ¢, 0s antigos reinos de Kenedugu e de Beledugu. Seu irmao mais jovem, Latif, que havia experimentado as mesmas iniciagdes, era também um grande Doma, Além do mais, tinha a vantagem de ler e escrever rabe e de ter prestado o servigo militar (nas forcas francesas) no Chade, o que Ihe permitira coletar grande quantidade de conhecimentos na savana chadiana, que se revelaram andlogos aos ensinados no Mali. Twa, pertencente a casta dos griots, é um dos maiores tradicionalistas do Mande vivos no Mali, assim como Banzoumana, 0 grande miisico cego. Neste ponto é preciso esclarecer que um griot nao é necessariamente um tradicionalista “conhecedor”, mas que pode tornar-se um, se for essa sua vocasio. Nio poderé, entretanto, ter acesso a iniciagio do Komo, da qual os griots sio excluidos’, ‘De maneira geral, os tradicionalistas foram postos de parte, senio perseguidos, pelo poder colonial que, naturalmente, procurava extirpar as tradig&es locais a fim de implantar suas préprias ideias, pois, como se diz, “Nao se semeia nem em campo plantado nem em terra alqueivada’. Por essa razio, a iniciagao geralmente buscava refiigio na mata ¢ deixava as grandes cidades, chamadas de Tubabudugu, “cidades de brancos” (ou seja, dos colonizadores). No entanto, nos diversos paises da savana africana que formam o antigo Bafur ~ e, sem divida, outras partes também — ainda existem “Conhecedores” que continuam a tansmitir a heranga sagrada aqueles que aceitam aprender € ouvir ¢ que se mostram dignos de receber os ensinamentos por sua paciéncia ¢ discregio, regras basicas exigidas pelos deuses. Dentro de 10 ou 15 anos, os tiltimos grandes Doma, os tiltimos anciiios herdeiros dos varios ramos da Tradigao provavelmente terdo desaparecido. Se no nos apressarmos em reunir seus testemunhos ¢ ensinamentos, todo 0 patriménio cultural ¢ espiritual de um povo cairé no esquecimento juntamente com eles, ¢ uma geragdo jovem sem raizes ficaré abandonada 4 propria sorte. Autenticidade da transmissio Mais do que todos os outros homens, os tradicionalistas-doma, grandes ou pequenos, obrigam-se a respeitar a verdade, Para eles, a mentira nio € 3A respeito dos griots, ver mais adiante. A tradigfo viva 17 simplesmente um defeito moral, mas uma interdigao ritual cuja violagao thes impossibilitaria o preenchimento de sua fungio. Um mentiroso nao poderia ser um iniciador, nem um “Mestre da aca”, ¢ muito menos um Doma. Se, excepcionalmente, acontecesse de um tradicionalista- -doma revelar-se um mentiroso, jamais voltaria a receber a confianga de alguém ‘em qualquer dominio e sua fungio desapareceria imediatamente. De modo geral, a tradigao africana abomina a mentira. Diz-se: “Cuida-te para nao te separares de ti mesmo. E melhor que 0 mundo fique separado de ti do que tu separado de ti mesmo”. Mas a interdigao ritual da mentira afeta, de modo particular, todos os “oficiantes” (ou sacrificadores ou mestres da faca, ete.)* de todos os graus, a comegar pelo pai de familia que € 0 sacrificador ou 0 oficiante de sua familia, passando pelo ferreiro, pelo tecelao ou pelo artesio tradicional — sendo a pritica de um oficio uma atividade sagrada, como veremos adiante. A proibigéo atinge todos os que, tendo de exercer uma responsabilidade magico -religiosa e de realizar os atos rituais, sao, de algum modo, os intermediérios entre os mortais comuns e as forgas tutelares; no topo esto o oficiante sagrado do pais (por exemplo, o Hagen, entre os Dogon) e, eventualmente, o rei. Essa interdigdo ritual existe, de meu conhecimento, em todas as tradigdes da savana africana. ‘A proibicdo da mentira deve-se ao fato de que se um oficiante mentisse, estaria corrompendo os atos rituais. Nao mais preencheria 0 conjunto das condigoes rituais necessdrias & realizagao do ato sagrado, sendo a principal estar ele proprio em harmonia antes de manipular as forgas da vida. Nao nos esquecamos de que todos os sistemas migico-religiosos africanos tendem a preservar ou restabelecer 0 equilibrio das forcas, do qual depende a harmonia do mundo material e espiritual. Mais do que todos os outros, os Doma sujeitam-se a esta obrigagio, pois, enquanto Mestres iniciados, sio 0s grandes detentores da Palavra, principal agente ativo da vida humana e dos espiritos. Sio os herdeiros das palavras sagradas encantat6rias transmitidas pela cadeia de ancestrais, palavras que podem remontar s primeiras vibragdes sagradas emitidas por Maa, o primeiro homem. Se o tradicionalista-doma é detentor da Palavra, os demais homens sao os depositarios do palavrério. Citarei o caso de um Mestre da faca dogon, do pais de Pignari (departamento de Bandiagara) que conheci na juventude e que, certa vez, foi forcado a mentir 4 Nem todas as ceriménias rtuais incluiam necessariamente o sacrificio de um animal. O “sacrificio” podia consist em uma oferenda de paingo, leite ou algum outro produto natural, 178 Metodologia ¢pé-histra da Attica a fim de salvar a vida de uma mulher procurada que ele havia escondido em sua casa. Apés o incidente, renunciou espontaneamente ao cargo, supondo que ja nio mais preenchia as condigées rituais para assumi-lo lidimamente. Quando se trata de questées religiosas e sagradas, os grandes mestres tradicionais nao temem a opiniio desfavoravel das massas e, se acaso cometem um engano, admitem o erro publicamente, sem desculpas calculadas ou evasivas. Para eles, reconhecer quaisquer faltas que tenham cometido é uma obrigacio, pois significa purificar-se da profanagao. Se o tradicionalista ou “Conhecedor”€ tao respeitado na Africa, é porque cle se respeita a si préprio. Disciplinado interiormente, uma vez que jamais deve mentir, é um homem “bem equilibrado”, mestre das forgas que nele habitam. Ao seu redor as coisas se ordenam ¢ as perturbacées se aquietam. Independentemente da interdi¢do da mentira, ele pratica a disciplina da palavra e nao a utiliza imprudentemente. Pois se a fala, como vimos, é considerada uma exteriorizagio das vibragdes de forcas interiores, inversamente, a forca interior nasce da interiorizagio da fala. A partir dessa dptica, pode-se compreender melhor a importancia que a educacao tradicional africana atribui ao autocontrole. Falar pouco é sinal de boa educagio e de nobreza. Muito cedo, o jovem aprende a dominar a manifestagao de suas emogées ou de seu sofrimento, aprende a conter as forcas que nele existem, a semelhanga do Maa primordial que continha dentro de si, submissas ¢ ordenadas, todas as forcas do Cosmo. Dir-se-a de um “Conhecedor” respeitado ou de um homem que é mestre de si mesmo: “E um Maa!” (ou um Neddo, em fulfulde), quer dizer, um homem completo. Nao se deve confundir os tradicionalistas-doma, que sabem ensinar enquanto divertem ¢ se colocam ao alcance da audiéncia, com os trovadores, contadores de historia ¢ animadores publicos, que em geral pertencem a casta dos Dieli (griots) ou dos Woloso (“cativos de casa”)°. Para estes, a disciplina da verdade nao existe; e, como veremos adiante, a tradicao lhes concede o direito de travesti-la ou de embelezar os fatos, mesmo que grosseiramente, contanto que consigam divertir ou interessar 0 publico, “O griot”, como se diz, “pode ter duas linguas”. Ao contririo, nenhum afticano de formagao tradicionalista sequer sonharia em colocar em diivida a veracidade da fala de um tradicionalista-doma, 5 Os Woloso (literalmente “os nascidos na casa"), ou “cativos de casa", eram empregados ou familias de empregados ligados ha geragdes a uma mesma familia. A tradigio concedia-Ihes liberdade total de ag30 € expressio bem como consideriveis direitos materiais sobre os bens de seus senhores. A tradigio viva FIGURA 8,1 tocando 0 “ardi AO-292).. Misicotukulor 3" (Kayes, Mali n Ficura 8.2 Cantor Mvet (Documentation Frangaise) 180 Metodologia ¢pé-histra da Attica especialmente quando se trata da transmissao dos conhecimentos herdados da cadeia dos ancestrais. Antes de falar, o Doma, por deferéncia, dirige-se as almas dos antepassados para pedir-lhes que venham assisti-lo, a fim de evitar que a lingua troque as palavras ou que ocorra um lapso de meméria, que o levaria a alguma omissio. Danfo Sine, 0 grande Doma bambara que conheci na infincia em Bougouni e que era o Chantre do Komo, antes de iniciar uma historia ou ligo costumava dizer: “Oh, Alma de meu Mestre Tiemablem Samaké! Oh, Almas dos velhos ferreiros e dos velhos tecelées, Primeiros ancestrais iniciadores vindos do Leste! Oh, Jigi, grande carneiro que por primeiro soprou Na trombeta do Komo, Vindo sobre o Jeliba (Niger)! Acercai-vos e escutai-me. Em concordancia com vossos dizeres Vou contar aos meus ouvintes Como as coisas aconteceram, Desde ws, no passado, até nés, no presente, Para que as palavras sejam preciosamente guardadas E fielmente transmitidas Aos homens de amanha Que serio nossos filhos E 05 filhos de nossos filhos. Segurai firme, 6 ancestrais, as rédeas de minha lingua! Guiai o brotar das minhas palavras A fim de que possam seguir ¢ respeitar Sua ordem natural”. Em seguida, acrescentava: “Eu, Danjo Sine, do cli de Samake (elefante), vou contar tal como o aprendi, na presenga de minhas duas testemunhas Makoro e Manifin™. “Qs dois como cu conhecem a trama’. Eles scrio a um tempo meus fiscais meu apoio.” ‘Makoto ¢ Manifin eram seus dois condiseipulos. ‘Uma narrativa tradicional possui sempre uma trama ou base imutivel que nio deve jamais ser modificada, mas a partir da qual pode-se acrescentar descnvolvimentos ou embelezamentos, segundo a inspiragio ou a atengio dos ouvintes. A tradigfo viva 181 Se 0 contador de historias cometesse um erro ou esquecesse algo, sua testemunha o interromperia: “Homem! Presta atencao quando abres a boca!” ‘Ao que ele responderia: “Desculpe, foi minha lingua fogosa que me traiu”. Um tradicionalista-doma que nao é ferreiro de nascenga, mas que conhece as ciéncias relacionadas a forja, por exemplo, dird, antes de falar sobre ela: “Devo isto a fulano, que deve a beltrano, etc.”. Ele renderé homenagem ao ancestral dos ferreiros, curvando-se em sinal de devogao, com a ponta do cotovelo direito apoiada no chao e o antebraco erguido. O Doma também pode citar seu mestre ¢ dizer: “Rendo homenagem a todos 08 intermedirios até Nunfayri...”8, sem ser obrigado a citar todos os nomes. Existe sempre referéncia a cadeia da qual o proprio Doma é apenas um elo. Em todos os ramos do conhecimento tradicional, a cadeia de transmissao se reveste de uma importincia primordial. Nao existindo transmissio regular, nio existe “magia”, mas somente conversa ou historias. A fala é, entdo, inoperante. A palavra transmitida pela cadeia deve veicular, depois da transmissio original, uma forga que a torna operante e sacramental. Esta nogio de “respeito pela cadeia” ou de “respeito pela transmissio” determina, em geral, no africano nao aculturado a tendéncia a relatar uma historia reproduzindo a mesma forma em que a ouviu, ajudado pela memoria prodigiosa dos iletrados. Se alguém o contradiz, ele simplesmente responder: “Fulano me ensinou assim!”, sempre citando a fonte. Além do valor moral proprio dos tradicionalistas-doma e de sua adesdo a uma adeia de transmissio”, uma garantia suplementar de autenticidade ¢ fornecida pelo controle permanente de seus pares ou dos ancidos que os rodeiam, que velam zelosamente pela autenticidade daquilo que transmitem e que os corrigem no menor erro, como vimos no caso de Danfo Sine. No curso de suas excursdes rituais pelo mato, o chantre do Komo pode rescentar as préprias meditagées ou inspiragdes as palavras tradicionais que herdou da “cadeia” e que canta para seus companheiros. Suas palavras, novos clos, vém, entio, enriquecer as palavras dos predecessores. Mas ele previne: “Isto é 0 que estou acrescentando, isto é 0 que estou dizendo. Nao sou infalivel, posso estar errado. Se estou, nao se esquecam de que, como vocés, vivo de um punhado de paingo, de uns goles de agua e de alguns sopros de ar. Q homem. nao é infalivel!”. 8 Ancestral dos ferreiros, 182 Metodologia ¢pé-histra da Attica Os iniciados e os neofitos que o acompanham aprendem essas novas palavras, de modo que todos os cantos do Komo sio conhecidos ¢ conservados na memoria. O grau de evolugio do adepto do Komo nio é medido pela guantidade de palavras aprendidas, mas pela conformidade de sua vida a essas palavras. Se um homem sabe apenas dez ou quinze palavras do Komo, ¢, as vive, entio ele se torna um valoroso adepto do Komo dentro da associagdo. Para ser chantre do Komo, portanto Mestre iniciado, € necessirio conhecer todas as palavras herdadas, ¢ vive-las. A educagio tradicional, sobretudo quando diz respeito aos conhecimentos relativos a uma iniciagdo, liga-se experiéncia e se integra & vida. Por esse motivo © pesquisador europeu ou afticano que deseja aproximar-se dos fatos religiosos africanos esté fadado a deter-se nos limites do assunto, a menos que aceite viver a iniciagio correspondente e suas regras, o que pressupde, no minimo, um conhecimento da lingua. Pois existem coisas que néo “se explicam”, mas que se experimentam e se vivem. Lembro-me de que em 1928, quando servia em Tougan, um jovem etndlogo chegara ao pais para fazer um estudo sobre a galinha sacrifical por ocasido da circuncisio. O comandante francés apresentou-se ao chefe de cantao indigena ec pediu que tudo fosse feito para satisfazer ao etnélogo, insistindo para que “Ihe contassem tudo”, Por sua vez, o chefe de canto reuniu os principais cidadaos e expés-Ihes os fatos, repetindo as palavras do comandante. O decano da assembleia, que era o Mestre da faca local, ¢, portanto, o responsivel pelas ceriménias de circuncisio ¢ da iniciacao correspondente, perguntou-lhe: —“Ele quer que Ihe contemos tudo?” — “Sim” respondeu o chefe de cantio. — “Mas ele veio para ser circuncidado?” —“Niio, veio buscar informagbes”, decano voltou o rosto para o outro lado e disse: —“Como podemos contar-lhe tudo se ele nao quer ser circuncidado? Vocé bem sabe, chefe, que isso nfo é possivel. Ele ter de levar a vida dos circuncidados para que possamos ensinar-lhe todas as liges. — “Uma vez que por forga somos obrigados a satisfazé-lo”- replicou o chefe do canto -, “cabe a vocé encontrar uma saida para essa dificuldade”. — “Muito bem!” ~ disse o velho. — “Nés nos desembaragaremos dele sem que ele perceba, ‘pondo-o na palha”. A tradigfo viva 183 A formula “por na palha”, que consiste em enganar uma pessoa com alguma histéria improvisada quando nao se pode dizer a verdade, foi inventada a partir do momento em que o poder colonial passou a enviar seus agentes ou representantes com o propésito de fazer pesquisas etnolégicas sem aceitar viver sob as condigdes exigidas. Muitos etndlogos foram vitimas inconscientes desta titica... Quantos nao pensavam ter compreendido completamente determinada realidade quando, sem vivé-la, nao poderiam verdadeiramente té-la conhecido. Além do ensino esotérico ministrado nas grandes escolas de iniciagao — por exemplo, 0 Komo ou as demais 4 mencionadas -, a educagao tradicional comeca, em verdade, no seio de cada familia, onde o pai, a mae ou as pessoas mais idosas sio a0 mesmo tempo mestres e educadores e constituem a primeira célula dos tradicionalistas. Sao eles que ministram as primeiras licées da vida, nao somente através da experiéncia, mas também por meio de histérias, fabul: lendas, maximas, adagios, etc. Os provérbios sio as missivas legadas a posteridade pelos ancestrais. Existe uma infinidade deles. Certos jogos infantis foram elaborados pelos iniciados com o fim de difundir, a0 longo dos séculos, certos conhecimentos esotéricos “cifrados”. Citemos, por exemplo, 0 jogo do Banangola, no Mali, baseado em um sistema numeral relacionado com os 266 sigiba, ou signos, que correspondem aos atributos de Deus. Por outro lado, o ensinamento nao ¢ sistemitico, mas ligado as circunstincias da vida. Este modo de proceder pode parecer cadtico, mas, em verdade, € pratico ce muito vivo. A licao dada na ocasiio de certo acontecimento ou experiéncia fica profundamente gravada na meméria da crianga. Ao fazer uma caminhada pela mata, encontrar um formigueiro dard ao velho mestre a oportunidade de ministrar conhecimentos diversos, de acordo com a natureza dos ouvintes. Qu falaré sobre 0 préprio animal, sobre as leis que governam sua vida ¢ a “classe de seres” a que pertence, ou dara uma licio de moral as criangas, mostrando-Ihes como a vida em comunidade depende da solidariedade ¢ do esquecimento de si mesmo, ou ainda poder falar sobre conhecimentos mais elevados, se sentir que seus ouvintes poderio compreendé- Jo. Assim, qualquer incidente da vida, qualquer acontecimento trivial pode sempre dar ocasiao a miiltiplos desenvolvimentos, pode induzir a narragio de um mito, de uma histéria ou de uma lenda. Qualquer fendmeno observado permite remontar as forcas de onde se originou e evocar os mistérios da unidade da Vida, que ¢ inteiramente animada pela Se, a Forga sagrada primordial, ela mesma um aspecto do Deus Criador. 184 Metodologia ¢pé-histra da Attica Na Africa, tudo € “Historia”, A grande Historia da vida compreende a Histéria das Terras ¢ das Aguas (geografia), a Histéria dos vegetais (botanica e farmacopeia), a Historia dos “Filhos do seio da Terra” (mineralogia, metais), a Historia dos astros (astronomia, astrologia), a Histéria das aguas, ¢ assim por diante. Na tradigiio da savana, particularmente nas tradigdes bambara e peul, 0 conjunto das manifestagdes da vida na terra divide-se em trés categorias ou “classes de seres”, cada uma delas subdividida em trés grupos: + Naparte inferior da escala, os seres inanimados, os chamados seres “mudos”, cuja linguagem é considerada oculta, uma vez que é incompreensivel ou inaudivel para 0 comum dos mortais. Essa classe de seres inclui tudo 0 que se encontra na superficie da terra (areia, Agua, etc.) ou que habita o seu . Dentre os inanimados mudos, encontramos interior (minerais, metais, etc. 08 inanimados solidos, liquidos e gasosos (literalmente, “fumegantes’). + No grau médio, 0s “animados iméveis", seres vivos que nao se deslocam. Essa 6a classe dos vegetais, que podem se estender ou se desdobrar, no espaco, mas cujo pé no pode mover-se. Dentre os animados iméveis, encontramos as plantas rastei a classe superior. + Finalmente, os “animados méveis”, que compreendem todos os animais, as, as trepadciras ¢ as verticais, estas tiltimas constituindo inclusive o homem. Os animados méveis incluem os animais terrestres (com € sem ossos), os animais aquaticos e os animais voadores. Tudo o que existe pode, portanto, ser incluido em uma dessas categorias’ De todas as “Histérias”, a maior e mais significativa é a do proprio Homem, simbiose de todas as “Histérias”, uma vez que, segundo o mito, foi feito com uma parcela de tudo o que existiu antes dele. Todos os reinos da vida (mineral, vegetal e animal) encontram-se nele, conjugados a forcas miltiplas e a faculdades superiores. Os ensinamentos referentes a0 homem baseiam-se em mitos da cosmogonia, determinando seu lugar e papel no universo revelando qual deve ser sua relacao com O mundo dos vivos dos mortos. Explica-se tanto 0 simbolismo de seu corpo quanto a complexidade de seu psiquismo: “As pessoas da pessoa sio numerosas no interior da pessoa”, dizem as tradigGes bambara € peul, Ensina-se qual deve ser seu comportamento frente @ natureza, como respeitar-Ihe 0 equilibrio e nao perturbar as forgas que a animam, das quais nio & mais que 0 aspecto visivel A iniciagdo o fara descobrir a sua propria relagio 9 C£.HAMPAI BA, A. 1972, p.23 e segs A tradigfo viva 185 com 0 mundo das forcas e pouco a pouco 0 conduzira ao autodominio, sendo a finalidade tiltima tornar-se, tal como Maa, um “homem completo”, interlocutor de Maa Ngala ¢ guardiio do mundo viv Os oficios tradicionais Os oficios artesanais tradicionais s4o os grandes vetores da tradigao oral. Na sociedade tradicional africana, as atividades humanas possuiam frequentemente um carter sagrado ou oculto, principalmente as atividades que consistiam em agir sobre a matéria e transformé-Ia, uma vez que tudo & considerado vivo. Toda fungao artesanal estava ligada a um conhecimento esotérico transmitido de geragao a geragio e que tinha sua origem em uma revelagio inicial. A obra do artesio era sagrada porque “imitava” a obra de Maa Ngala e completava sua criagao. A tradicao bambara ensina, de fato, que a criagao ainda nao esta acabada © que Maa Nyala, ao criat nossa terra, deixou as coisas inacabadas para que Maa, seu interlocutor, as completasse ou modificasse, visando conduzir a natureza A perfeigdo. A atividade artesanal, em sua operacio, deveria “repetir” 0 mistério da criagao. Portanto, ela “focalizava” uma forga oculta da qual nao se podia aproximar sem respeitar certas condigées rituais. Qs artesias tradicionais acompanham o trabalho com cantos rituais ou palavras ritmicas sacramentais, ¢ seus proprios gestos sio considerados uma linguagem. De fato, os gestos de cada oficio reproduzem, no simbolismo que lhe é proprio, o mistério da criacio primeira, que, como foi mostrado anteriormente, ligava-se ao poder da Palavra. Di “O ferrciro forja a Palavra, O tecelao a tece, sapateiro amacia-a curtindo-a”, Tomemos 0 exemplo do tecelio, cujo oficio vincula-se ao simbolismo da Palavra criadora que se distribui no tempo e no espaso. O tecelao de casta (um maado, entre os Peul) é 0 depositério dos segredos das 33 pecas que compéem a base fundamental do tear, cada uma delas com um significado. A armacio, por exemplo, constitui-se de oito pecas principais: quatro verticais, que simbolizam nao s6 os quatro elementos-mie (terra, 4gua, ar ¢ fogo), mas também os quatro pontos cardeais, ¢ quatro transversais, que simbolizam os quatro pontos colaterais. O tecelio, situado no meio, representa 186 Metodologia ¢pé-histra da Attica o Homem primordial, Maa, no centro das oito diregoes do espago. Com sua presenga, obtém-se nove elementos que lembram os nove estados fundamentais da existéncia, as nove classes de seres, as nove aberturas do corpo (portas das forcas da vida), as nove categorias de homens entre os Peul, etc. Antes de dar inicio ao trabalho, o tecelio deve tocar cada pega do tear pronunciando palavras ou ladainhas correspondentes as forgas da vida que elas encarnam. vaivém dos pés, que sobem e descem para acionar os pedais, lembra ritmo original da Palavra criadora, ligado ao dualismo de todas as coisas ¢ a lei dos ciclos. Como se os pés dissessem 0 seguint “Fonyonko! Fonyonko! Dualismo! Dualismo! Quando um sobe, 0 outro desce. ‘A morte do rei e a coroagio do principe, ‘A morte do avé e 0 nascimento do neto, Brigas de divércio misturadas ao barulho de uma festa de casamento....”. De sua parte, diz a naveta: “Eu sou a barca do Destino. Passo por entre os recifes dos fios da trama Que representam a Vida. Passo do lado direito para o lado esquerdo, Desenrolando meu intestino (0 fio) Para contribuir A construcao. E de novo passo do lado esquerdo para o lado dircito, Desenrolando meu intestino. ‘A vida é eterno vaivém, Permanente doacio de si”. A tira de tecido que se acumula e se enrola em um bastio que repousa sobre 0 ventre do teceldo representa o passado, enquanto o rolo do fio a ser tecido simboliza o mistério do amanha, o desconhecido devir. O tecelio sempre dir: “O amanha! Nao me reserve uma surpresa desagradavel!”. No total, o trabalho do tecelao representa oito movimentos de vaivém (movimentos dos pés, dos bracos, da naveta e o cruzamento ritmico dos fios do tecido) que correspondem as oito pegas da armagio do tear e as oito patas da aranha mitica que ensinou sua ciéncia ao ancestral dos teceldes. Os gestos do tecelao, ao acionar o tear, representam 0 ato da criagdo e as palavras que Ihe acompanham os gestos sio o proprio canto da Vida. A tradigfo viva 187 Quanto ao ferreiro tradicional, ele é 0 depositario do segredo das transmutagdes. Por exceléncia, é o “Mestre do Fogo”. Sua origem € mitica, e, na tradigo bambara, chamam-no de “Primeiro Filho da Terra”. Suas habilidades remontam a Maa, o primeiro homem, a quem o criador Maa Ngala ensinou, entre outros, os segredos da “forjadura”. Por isso a forja é chamada de Fan, 0 mesmo nome do Ovo primordial, de onde surgiu todo o universo e que foi a primeira forja sagrada. Os elementos da forja estio ligados a um simbolismo sexual, sendo esta a expresso, ou o reflexo, de um proceso césmico de criagio. Desse modo, os dois foles redondos, acionados pelo assistente do ferreiro, sio comparados aos testiculos masculinos. O ar com que sao enchidos é a substancia da vida enviada, através de uma espécie de tubo, que representa o falo, para a fornalha da forja, que representa a matriz onde age o fogo transformador. O ferreiro tradicional s6 pode entrar na forja apés um banho ritual de purificacdo preparado com o cozimento de certas folhas, cascas ou raizes de vores, escolhidas em fungio do dia. Com efeito, as plantas (como os minerais € os animais) dividem-se em sete classes, que correspondem aos dias da semana c esto ligadas pela lei de “correspondéncia analégica”."” Em seguida, o ferreiro se veste de modo especial, uma vez. que nao pode entrar na forja vestido com roupa comum. Todos os dias pela manhi, purifica a forja com defumagGes especiais feitas com plantas que ele conhece. Terminadas essas operagdes, lavado de todos os contatos com o exterior, o ferreiro encontra-se em estado sacramental. Voltou a ser puro ¢ assemelha-se agora ao ferreiro primordial. $6 entdo, 4 semelhanga de Maa Ngala, pode ele “criar”, modificando e moldando a matéria. (Em fulfulde, ferreiro traduz-se por bayle, palavra que literalmente significa “transformador’). Antes de comegar o trabalho, invoca os quatro elementos-mie da criagdo, (terra, agua, ar e fogo), que esto obrigatoriamente representados na forja: existe sempre um recepticulo com dgua, o fago da fornalha, 0 ar enviado pelos foles € um monticulo de erra ao lado da forja. Durante o trabalho, o ferreiro promuncia palavras especiais & medida que vai tocando cada ferramenta. Ao tomar a bigorna, que simboliza a receptividade feminina, diz: “Nao sou Maa Ngala, mas o representante de Maa Neala. Ele é 10 A respeito da lei de correspondéncia analégica, v. HAMPATE BA, A. Aspects de la civilisation africaine, Présence afficaine, Paris, 1972, p. 120 e segs. 188 Metodologia ¢pé-histra da Attica quem cria, nao eu”. Em seguida, apanha um pouco de agua, ou um ovo, oferece-a a bigorna e diz: “Eis teu dote”. Pega o martelo, que simboliza o falo, e aplica alguns golpes na bigorna para “sensibiliza-la”. Estabelecida a comunicagio, ele pode comegar a trabalhar. O aprendiz nao deve fazer perguntas. Deve apenas observar com atengio e soprar, Esta é a fase “muda” do aprendizado. A medida que vai avangando na assimilagio do conhecimento, o aprendiz sopra em ritmos cada vez mais complexos, cada um deles possuindo um significado. No decorrer da fase oral do aprendizado, o Mestre transmitira gradualmente todos os seus conhecimentos ao discipulo, treinando-o ¢ corrigindo-o até que adquira a mestria. Apés uma “ceriménia de liberagio”, 0 novo ferreiro podera deixar o mestre e instalar a sua propria forja. Comumente, o ferreiro envia os prdprios filhos para outro ferreiro a fim de iniciarem seu aprendizado. Como diz 0 adagio: “As esposas e os filhos do Mestre nao sio seus melhores discipulos”. Assim, o artesio tradicional, imitando Maa Negala, “tepetindo” com seus gestos a criagio primordial, realizava nio um “trabalho” no sentido puramente econémico da palavra, mas uma fungio sagrada que empregava as forcas fundamentais da vida e em que se aplicava todo o seu ser. Na intimidade da oficina ou da forja, participava do mistério renovado da criagao eterna. Os conhecimentos do ferreiro devem abranger um vasto setor da vida. Renomado ocultista, a mestria dos segredos do fogo e do ferro faz dele a tinica pessoa habilitada a praticar a circuncisao, e, como vimos, o grande “Mestre da faca” na iniciagio do Komo ¢ invariavelmente um ferreiro. Nao apenas sabe tudo que diz respeito aos metais, como também conhece perfeitamente a classificagao das plantas e suas propriedades. ferreiro de alto-forno, que a0 mesmo tempo extrai ¢ funde o mineral, € ‘© mais avangado em conhecimentos. A ciéncia de ferreiro fundidor, acrescenta © conhecimento perfeito dos “Filhos do seio da Terra” (mineralogia) e dos segredos das plantas e da mata. De fato, ele conhece as espécies de vegetais que cobrem a terra que contém determinado metal e detecta um veio de ouro simplesmente examinando as plantas e os seixos. Conhece as encantagdes da terra e as encantacées das plantas. Uma vez que se considera a natureza como viva e animada pelas forgas, todo ato que a perturba deve ser acompanhado de um “comportamento ritual” destinado a preservar e salvaguardar 0 equilibrio sagrado, pois tudo se liga, tudo repercute em tudo, toda agao faz vibrar as forgas da vida e desperta uma cadeia de consequéncias cujos efeitos sdo sentidos pelo homem. A tradigfo viva 189 A relagao do homem tradicional com 0 mundo era, portanto, uma relagao viva de participagdo ¢ no uma relagao de pura utilizagao. E compreensivel que, nesta visio global do universo, o papel do profano seja minimo. No antigo pais Batile, por exemplo, o ouro, que a terra oferecia em abundancia, cra considerado metal divino e nao chegou a ser explorado exaustivamente. Empregavam-no sobretudo na confecgio de objetos reais ou cultuais, mas igualmente o utilizavam como moeda de cambio ¢ objeto de presente. Sua extracdo era livre a todos, mas a ninguém era permitida a apropriagao de pepitas que ultrapassassem certo tamanho; toda pepita com peso superior ao padrao cra devolvida ao deus ¢ se destinava a aumentar o “ouro real”, depésito sagrado do qual os préprios reis nao tinham o direito de usufruir. Certos tesouros reais foram desta maneira transmitidos intactos até a ocupacio europeia. A terra, acreditava-se, pertencia a Deus, e ao homem cabia o direito de “usufruir” dela, mas nao o de possui-la. Voltando a0 artesio tradicional, ele é 0 exemplo perfeito de como o conhecimento pode se incorporar nao somente aos gestos € acdes, mas também a totalidade da vida, uma vez que deve respeitar um conjunto de proibicoes ¢ obrigagdes ligadas sua atividade, que constitui um verdadeiro cédigo de comportamento em relacao a natureza e aos semelhantes. Existe, desse modo, o que se chama de “Costume dos ferreiros” (numusira ‘ou numuya, em bambara), “Costume dos agricultores”, “Costume dos teceloes”, € assim por diante, e, no plano étnico, o que se chama de “Costume dos Peul” (Lawol fulfulde), verdadeitos cédigos morais, sociais ¢ juridicos peculiares a cada grupo, transmitidos e observados fielmente pela tradicao oral. Pode-se dizer que 0 oficio, ou a atividade tradicional, esculpe o ser do homem. Toda a diferenga entre a educagio moderna € a tradigao oral encontra-se ai. Aquilo que se aprende na escola ocidental, por mais titil que seja, nem sempre € vivide, enquanto o conhecimento herdado da tradigao oral encarna-se na totalidade do ser. Os instrumentos ou as ferramentas de um oficio materializam as Palavras sagradas; 0 contato do aprendiz com o oficio o obriga a viver a Palavra a cada gesto. Por essa razao a tradi¢Ao oral, tomada no seu todo, nao se resume a transmissio de narrativas ou de determinados conhecimentos. Ela é geradora ¢ formadora de um tipo particular de homem. Pode-se afirmar que existe a civilizagao dos ferreiros, a civilizagao dos tecelées, a civilizagao dos pastores, etc. Limitei-me aqui a examinar os exemplos particularmente tipicos dos ferreiros e dos tecelées, mas, de um modo geral, toda atividade tradicional constitui uma 190 Metodologia ¢pé-histra da Attica grande escola iniciatéria ou magico-religiosa, uma via de acesso a Unidade, da qual, para os iniciados, é um reflexo ou uma expresso peculiar. Geralmente, a fim de conservar restritos 4 linhagem os conhecimentos secretos € os poderes migicos deles decorrentes, todo grupo devia observar proibigdes sexuais rigorosas em relagio a pessoas estranhas ao grupo ¢ praticar a endogamia. A endogamia, portanto, nao se deve a ideia de intocabilidade, mas ao desejo de manter dentro do grupo os segredos rituais. Assim, podemos perceber como esses grupos, rigorosamente especializados e harmonizados com as “fungdes sagradas”, gradualmente chegaram & nogao de “casta”, tal como existe atualmente na Africa da savana. “A guerra ¢ 0 nobre fazem 0 escravo” ~ diz 0 adagio -, “mas é Deus quem faz 0 artesio (0 nyamakala).” A nogio de castas superiores ou inferiores, por conseguinte, nfo se baseia em uma realidade sociolgica tradicional. Ela surgiu com o decorrer do tempo, apenas em determinados lugares, provavelmente como consequéncia da aparigao de alguns impérios onde a fungio de guerreiro, reservada aos nobres, thes conferia uma espécie de supremacia. No pasado distante, a nogdo de nobreza era sem divida diferente, ¢ o poder espiritual tinha precedéncia sobre o poder temporal. Naquele tempo, eram os Silatigui (mestres iniciados peul), e nao os Ardo (chefes, reis) que governavam as comunidades peul. Contrariamente ao que alguns escreveram ou supuseram, o ferreiro é muito mais temido do que desprezado na Africa. “Primeiro filho da Terra”, mestre do Fogo e manipulador de forcas misteriosas, é temido, acima de tudo, pelo seu poder. De qualquer maneira, a tradigio sempre atribuiu aos nobres a obrigacao de garantir a conservagdo das “castas” ou classes de nyamakala (em bambara; nyeenyo, pl. nyeeybe, em fulani). Tais classes gozam da prerrogativa de obter mercadorias (ou dinheiro) nao como retribuigao de um trabalho, mas como o reclamo de um privilégio que o nobre nio podia recusar. Na tradigao do Mande, cujo centro se acha no Mali, mas que cobre mais ou menos todo 0 territdrio do antigo Bafur (isto é, a antiga Africa ocidental francesa, com excec’io das zonas de floresta e da parte oriental da Nigéria), as “castas”, ou nyamakala compreendem: + 0s ferreiros (numu em bambara, baylo em fulfulde); + os teceldes (maabo em bambara e em fulfulde); + 0s trabalhadores da madeira (tanto o lenhador como o marceneito; sai em bambara, Jabbo em fulfulde); + os trabalhadores do couro (garanke em bambara, sakke em fulfulde); A tradigfo viva 11 + os animadores puiblicos (dieli em bambara; em fulfulde, eles sao designados pelo nome geral de nyamakala ou membro de uma casta, isto é, nyeeybe). ‘Mais conhecidos pelo nome francés de grict Embora nao exista noo de “superioridade” propriamente dita, as quatro classes de nyamakala-artesios tém precedéncia sobre os griofs, pois demandam iniciagdo e conhecimentos especiais. O ferreiro est no topo da hierarquia, seguido pelo tecelio, pois seu oficio implica o mais alto grau de iniciagao. Ambos podem escolher indistintamente esposas de uma ou de outra casta, pois as mulheres sio oleiras tradicionais, tendo, portanto, a mesma iniciagao feminina. Na classificagao do Mande, os nyamakala-artesaos dividem-se em grupos de trés: Existem trés tipos de ferreiro (numu em bambara, baylo em fulfulde): +o ferreiro de mina (ou de alto-forno), que extrai os minérios e funde metal. Os ggandes iniciados entre eles podem, igualmente, trabalhar na forjas + 0 ferreiro do ferro negro, que trabalha na forja mas nfo extrai minérios; + 0 ferreiro dos metais preciosos, ou joalheiro, que geralmente € cortesio e, como tal, instala-se nos patios externos dos palicios de um chefe ou nobre. Existem trés tipos de teceldes (maabo): + 0 teceldo de a, que possui o maior grau de iniciagao. Os motivos dos cobertores sia sempre simhdlicos ¢ estio associados ans mistérins dos riimeros e da cosmogonia. Todo desenho tem um nome; + otecelao de Aerka, que tece imensos cobertores, mosquiteiros ¢ cortinas de algodio que podem ter até 6 m de comprimento com uma infinita variedade de motivos. Cheguei a examinar uma dessas cortinas com 165 motivos. Cada motivo recebe um nome tem um significado. O proprio nome é um simbolo que representa virias realidades; + otecelao comum, que confecciona faixas simples de tecido branco e que nao passa por uma grande iniciagao. As vezes ocorre de a tecelagem comum ser feita por nobres. Assim, alguns Bambara confeccionam faixas de tecido branco sem serem tecelées de casta. Como nao sao iniciados, porém, nao podem tecer nem ferka, nem 1a, nem mosquiteiros. Existem trés tipos de carpinteiros (sa&i em bambara, /abbo em fulfulde): + aquele que faz almofarizes, pildes e estatuetas sagradas. O almofariz, onde 0s remédios sagrados sao triturados, é um objeto ritual feito apenas com det jerminados tipos de madeira. Como na ferraria, a carpintaria simboliza ry Metodologia ¢pé-histra da Attica as duas forgas fundamentais: 0 almofariz representa, como a bigorna, © polo feminino, enquanto o pilao representa, como 0 martelo, 0 pélo masculino. As estatuetas sagradas sto executadas sob 0 comando de um iniciado-doma, que as “carrega” de energia sagrada prevendo algum uso particular, Além do ritual de “carregamento”, a escolha e o corte da madeira também devem ser realizados sob condigses especiais, cujo segredo 86 0 lenhador conhece. O proprio artestio corta a madeira de que precisa, Portanto, é também um lenhador e sua iniciagao esté ligada a0 conhecimento dos segredos das plantas e da mata. Sendo a arvore considerada viva e habitada por outros espiritos vivos, no pode ser derrubada ou cortada sem determinadas precaugdes rituais conhecidas pelo lenhador; + aquele que faz utensilios ou méveis domésticos de madeira; + aquele que fabrica pirogas, devendo ser iniciado também nos segredos da Agua. No Mali, as Somano, que se tornaram pescadores sem pertencer 4 etnia Bozo, também comegaram a fabricar pirogas. Sao eles que podemos ver trabalhando as margens do Niger entre Kulikoro e Mopti. Existem trés tipos de trabalhadores do couro (garanke em bambara, sakke em fulfulde): * os que fazem sapatos; + os que fazem arreios, rédeas, ete: + 0s seleiros ou correeiros. trabalho do couro também envolve uma iniciagao, e os garanke geralmente tém a reputacio de feiticeiros Os cagadores, os pescadores € os agricultores niu correspondent casts, mas sim a etnias, Suas atividades esto entre as mais antigas da sociedade humana: a “colheita” (agricultura) ¢ a “caga” (que compreende “duas cagas”, uma na terra ¢ outra na agua) representam também grandes escolas de iniciagio, pois nao ha quem se aproxime imprudentemente das forcas sagradas da ‘Terra-Mie e dos poderes da mata, onde vivem os animais. A exemplo do ferreiro de alto-forno, a cacador, de modo geral, conhece todas as “encantagées da mata”e deve dominar a fundo a ciéncia do mundo animal. Os curandeiros (que curam por meio de plantas ou pelo “dom da fala”) podem pertencer a qualquer classe ou grupo étnico, Normalmente eles sio Doma, A tradigfo viva 193 Cada povo possui como heranca dons particulares, transmitidos de geracao a geragio através da iniciagdo. Assim, os Dogon do Mali tém a reputacao de conhecer o segredo da lepra, que sabem curar muito rapidamente sem deixar ‘uma tinica marca, ¢ 0 segredo da cura da tuberculose. Além disso, sdo excelentes “restauradores”, pois conseguem recolocar os ossos quebrados, mesmo em caso de fraturas graves. Os animadores publicos ou “griots”(“dieli” em bambara) Se as ciéncias ocultas e esotéricas sto privilégio dos “mestres da faca” dos chantres dos deuses, a mtisica, a poesia lirica € os contos que animam as recreagées populares, e normalmente também a histéria, sio privilégios dos griots, espécie de trovadores ou menestréis que percorrem o pais ou esto ligados auma familia. Sempre se supés ~ erroneamente — que os griofs fossem os tinicos “uadicionalistas” possiveis. Mas quem sv eles? Classificam-se em trés categorias: * os griots muisicas, que tocam qualquer instrumento (monocérdio, guitarra, cora, tanta, etc.). Normalmente so excelentes cantores, preservadores, transmissores da miisica antiga ¢, além disso, compositores. + 0s griots “embaixadores” € cortesios, responsiveis pela mediagio entre as grandes familias em caso de desavengas. Esto sempre ligados a uma familia nobre ou real, as vezes a uma tinica pessoa. + os griots genealogistas, historiadores ou poetas (ou os trés ao mesmo tempo), que em geral sao igualmente contadores de historia e grandes viajantes, nao nccessariamente ligados a uma familia. A tradigio Ihes confere um status social especial. Com efeito, contrariamente aos Horon (nobres), tém o dircito de ser cinicos e gozam de grande liberdade de falar. Podem manifestar-se a vontade, até mesmo impudentemente e, as vezes, chegam a trogar das coisas mais sérias ¢ sagradas sem que isso acarrete graves consequéncias. Nao tem compromisso algum que os obrigue a ser discretos ou a guardar respeito absoluto para com a verdade. Podem as vezes contar mentiras descaradas e ninguém os tomara no sentido préprio. “Isso é o que o dieli diz! Nao € a verdade verdadeira, mas a aceitamos assim”. Essa maxima mostra muito bem de que modo a tradigao aceita as invengdes dos dicli, sem se deixar enganar, pois, como se diz, eles tém a “boca rasgada” 4 Metodologia ¢pé-histra da Attica Figura 8.3 Tocador de Valiha. O instrumento é de ‘madeira com cordas de ago (Foto Museu do Homem). Ficura 8.4 “Griot hutu’imitando o “mwami"eaido (Foto B. Nantet). A tradigfo viva 195 Em toda a tradigao do Bafur, o nobre ou o chefe nao s6 € proibido de tocar miisica em reuniées piiblicas, mas também deve ser moderado na expresso ¢ na fala, “Muita conversa nao convém a um Horon’, diz o provérbio. Assim, os griots ligados as familias acabam por desempenhar naturalmente o papel de mediadores, ou mesmo de embaixadores, caso surjam problemas de menor ou maior importincia. Eles so “a lingua” de seu mestre. Quando ligados a uma familia ou pessoa, geralmente ficam encarregados de alguma missio corriqueira e particularmente das negociagdes matrimoniais. Para dar um exemplo, um jovem nobre nao se dirigiré diretamente a uma jovem para dizer-lIhe de seu amor. Fara do grioto porta-voz que entrari em contato com a moga ‘ou com sua griote para falar dos sentimentos de seu mestre e louvar-lhe os méritos. Una vez que a sociedade africana esta fundamentalmente baseada no dilogo entre os individuos € na comunicagio entre comunidades ou grupos étnicos, 0s griots sio os agentes ativos naturais nessas conversacées. Autorizados a ter “duas linguas na boca”, se necessirio podem se desdizer sem que causem ressentimentos. Isso jamais seria possivel para um nobre, a quem no se permite voltar atrés com a palavra ou mudar de deciséo. Um griot chega até mesmo a arcar com a responsabilidade de um erro que nao cometeu a fim de remediar uma situagao ou de salvar a reputacao dos nobres. E aos velhos sabios da comunidade, em suas audiéncias secretas, que cabe 0 dificil dever de “olhar as coisas pela janela certa”; mas cabe aos griofs cumprir aquilo que os sabios decidiram ¢ ordenaram. Treinados para colher ¢ fornecer informagées, eles sio os grandes portadores de noticias, mas igualmente, muitas vezes, grandes difamadores. O nome dieli em bambara significa sangue. De fato, tal como o sangue, eles circulam pelo corpo da sociedade, que podem curar ou deixar doente, conforme atenuem ou avivem os conflitos através das palavras e das cangées. E necessario acrescentar, entretanto, que se trata aqui apenas de caracteristicas gerais € que nem todos os grio/s sio necessariamente desavergonhados ou cinicos. Pelo contrério, entre eles existem aqueles que sio chamados de dieli-faama, ou seja, “griots-reis”. De maneira nenhuma estes sio inferiores aos nobres no que se refere a coragem, moralidade, virtudes e sabedoria, e jamais abusam dos direitos que thes foram concedidos por costume. Os griots foram importante agente ativo do comércio e da cultura humana. Em geral dotados de consideravel inteligéncia, desempenhavam um papel de grande importancia na sociedade tradicional do Bafur devido a sua influéncia sobre os nobres ¢ os chefes. Ainda hoje, em toda oportunidade, estimulam e suscitam 0 orgulho do cli dos nobres com suas cangées, normalmente para 196 Metodologia ¢pé-histra da Attica ganhar presentes, mas muitas vezes para também encoraja-los a enfrentar alguma situagio dificil. Durante a noite de vigilia que precede o rito da circunciséo, por exemplo, eles encorajam a crianga ou 0 jovem a mostrar-se digno de seus antepassados permanecendo impassivel. Entre os Peul, canta-se o seguinte: “teu pai", Fulano, que morreu no campo de batalha, engoliu o ‘mingau do ferro incandescente’ (as balas) sem piscar. Espero que amanhé tu nao sintas medo da ponta da faca do ferreiro”. Na ceriménia do bastao, ou Sore, entre os Peul Bororo do Niger, as cangdes do griof animam o jovem que deve provar sua coragem ¢ paciéncia mantendo um sorriso e sem tremer as palpebras, enquanto recebe fortes golpes de bastao no peito. Os griots tomaram parte em todas as batalhas da histéria, ao lado de seus mestres, cuja coragem estimulavam relembrando-lhes a genealogia e os grandes feitos dos antepassados. Para o afticano, a invocagio do nome de familia é de grande poder. Ademais, é pela repetigdo do nome da linhagem que se satida e se louva um africano. A influéncia exercida pelos die/i, ao longo da histéria, adquiria a qualificagio de boa ou mé, conforme suas palavras incitavam o orgulho dos Iideres ¢ os impeliam a excessos ou, como era o caso mais frequente, chamavam-nos a0 respeito de seus deveres tradicionais. Como se vé, os griots participam efetivamente da histéria dos grandes impérios africanos do Bafur, e o papel desempenhado por eles merece um estudo em profundidade. O segredo do poder da influéncia dos Dieli sobre os Horon (nobres) reside no conhecimento que tém da genealogia e da histéria das familias. Alguns deles chegaram a fazer desse conhecimento uma verdadeira especializagio. Os _griots dessa categoria raramente pertencem a uma familia e viajam pelo pais em busca de informagées histéricas cada vez mais extensas. Desse modo, certamente adquirem uma capacidade quase magica de provocar o entusiasmo de um nobre a0 declamar para ele a propria genealogia, os objetos herildicos ¢ a histéria familiar, e, consequentemente, de receber dele valiosos presentes. Um nobre é capaz de se despojar de tudo o que traz consigo e possui dentro de casa para presentear a um grio¢ que conseguiu lhe mover os sentimentos. Aonde quer que vio, estes griofs genealogistas tém a sobrevivéncia largamente assegurada. 11 “Teupai’,em linguagem afticana, pode muito bem designar um tio, um avé ou um antepassado. Signifca toda a linha paterna, inclusive as colateras. A tradigfo viva 197 Nao se deve pensar, entretanto, que se trata de uma “retribuicao”. A ideia de remuneracio pelo trabalho realizado ¢ contraria 4 nocio tradicional de direito dos nyamakala sobre as classes nobres"”. Qualquer que seja sua fortuna, 0s nobres, mesmo os mais pobres, sio tradicionalmente obrigados a oferecer presentes aos die/i ou a qualquer nyamakala ou woloso® — mesmo quando o dieli é infinitamente mais rico do que o nobre. De um modo geral, é a casta dos Dieli a que mais reclama presentes. Quaisquer que sejam seus ganhos, porém, o dieli sempre é pobre, pois gasta tudo o que tem, contando com os nobres para seu sustento. “O!” canta o die/i solicitante, “a mao de um nobre nao esta grudada ao seu pescogo com avareza; ela est sempre pronta a buscar em seu bolso algo para dar aquele que pede”. E, se por acaso isso nao ocorrer, é melhor que o nobre se precavenha contra os problemas que tera com o “homem da boca rasgada”, cujas “duas linguas” podem arruinar negécios e reputagdes! Do ponto de vista econémico, portanto, a casta dos Dieli, como todas as classes de nyamakala e de waleso, é dependente da sociedade, especialmente das classes nobres. A progressiva transformagao das condigdes econdmicas e dos costumes alterou, até certo ponto, esta situagao, ¢ antigos nobres ou griofs passaram a accitar fungoes remuneradas. Mas 0 costume nao morreu, ¢ as pessoas ainda se arruinam, Por ocasiao de festas de batismo ou casamento para darem presentes aos griofs que vém animar as festas com suas cangées. Alguns governos modernos tentaram por fim a esse costume, mas, que se saiba, ainda nao conseguiram. Os dieli, sendo nyamakala, devem em princfpio casar-se dentro das classes de nyamakala, E ficil ver como os griots genealogistas, especializados em histérias de familias ¢ geralmente dotados de meméria prodigiosa, tornaram-se naturalmente, por assim dizer, os arquivistas da sociedade africana e, ocasionalmente, grandes historiadores. Mas é importante lembrarmos que eles nao sio os tinicos a possuir tal conhecimento. Os grits historiadores, a rigor, podem ser chamados de “tradicionalistas”, mas com a ressalva de que se trata de um ramo puramente histérico da tradigao, a qual possui muitos outros ramos. O fato de ter nascido dieli nao faz do homem necessariamente um historiador, embora o incline para essa diregio, e muito menos que se torne um sibio em 12. *Nobre" é uma tradugao bastante aproximativa de Horon. Em verdade, Horon é toda pessoa que no pertence nem & classe dos nyamakala nem a classe dos jon (‘cativos"), sendo esta iltima constituida por descendentes de prisioneiros de guerra. O Horon tem por dever assegurar a defesa da comonidade, dar sua vida por ela assim como garantir a conservagio das outras classes 13 Sobre Halos, “cativo de casa ef n. 5. 18 Metodologia ¢pé-histra da Attica assuntos tradicionais, um “Conhecedor”. De um modo geral, a casta dos Dielié a que mais se distancia dos dominios iniciatérios, que requerem siléncio, discre¢io e controle da fala. A possibilidade de se tornarem “Conhecedores” esti ao alcance deles, tanto quanto ao de qualquer outro individuo. Assim como um tradicionalista-dema (o “Conhecedor” tradicional no verdadeiro sentido do termo) pode vir a ser a0 mesmo tempo um grande genealogista ¢ historiador, um grief, como todo membro de qualquer categoria social, pode tornar-se um tradicionalista-doma se suas aptidées 0 permitirem e se ele tiver passado pelas iniciagdes correspondentes (com excecao, no entanto, da iniciagdo do Komo, que lhe ¢ proibida). No desenvolvimento deste estudo, mencionamos 0 exemplo de dois griots “Conhecedores” que atualmente vivem no Mali: Iwa e Banzoumana, sendo que este tiltimo é ao mesmo tempo grande miisico, historiador e tradicionalista-doma. O griot que é também tradicionalista-doma constitui uma fonte de informagées de absoluta confianga, pois sua qualidade de iniciado lhe confere um alto valor moral ¢ o sujeita 4 proibigao da mentira. Torna-se um outro homem. E ele o “griot-rei" do qual falamos anteriormente, a quem as pessoas consultam por sua sabedoria e seu conhecimento, e que, embora capaz de divertir, jamais abusa de seus direitos consuetudinarios. Quando um griof conta uma historia, geralmente Ihe perguntam: “E uma historia de die/i ou uma histéria de doma?” Se for uma historia de dieli, costuma-se dizer: “Isso € 0 que o dieli diz!", e envio se pode esperar alguns embelezamentos da verdade, com a intengio de destacar o papel desta ou daquela familia embelezamentos que nao seriam feitos por um tradicionalista-doma, que se interessa, acima de tudo, pela transmissio fiel. E necessario fazer uma distingio: quando estamos na presenga de um griot historiador, convém sabermos se se trata de um grief comum ou de um griof -doma, Ainda assim deve-se admitir que a base dos fatos raramente ¢ alterada; serve de trampolim inspirag%o poética ou panegirica, que, se no chega a falsificd-la, pelo menos a “ornamenta”. Um mal-entendido que ainda tem sequela em alguns dicionarios franceses deve ser esclarecido. Os franceses tomavam os dieli, a quem chamavam de “griots”, por feiticeiros (sorcier), 0 que nao corresponde a realidade. Pode acontecer de um griot ser korte-tigui, “langador de ma sorte”, assim como pode acontecer de um griot ser doma, “conhecedor tradicional”, nao porque nasceu griof, mas porque foi iniciado e adquiriu sua proficiéncia, boa ou ruim, na escola de um mestre do oficio. A tradigfo viva 199 O mal-entendido provavelmente advém da ambivalencia do termo francés “grit”, que pode designar 0 conjunto dos nyamakala (que incluem os dieli) e, mais frequentemente, apenas a casta dos Dieli. A tradicio declara que os nyamakala sio todos subaa, termo que designa um homem versado em conhecimentos ocultos a que s6 tém acesso 0s iniciados, uma espécie de “ocultista”. A tradigaio exclui desta designasao os dicli, que nao seguem uma via iniciatéria propria, Portanto, os nyamakala-artesios sio subaa. Dentre estes, encontra-se o garanke, trabalhador do couro, que possui a reputaco de ser um subaga, feiticeiro no mau sentido do termo. Quanto a mim, sou propenso a acreditar que os primeiros intérpretes europeus confundiram os dois termos subaa e subaga (semelhantes na promtincia) e que a ambivaléncia do termo “griot” fez o resto. Uma vez que a tradicao declara que “todos os nyamakala so subaa (ocultistas)”, 08 intérpretes devem ter entendido “todos os nyamakala sio subaga (feiticeiros)”, © que, devido a0 duplo uso, coletivo ou particular, da palavra “griot”, tornou-se “todos os ‘griots’ sao feiticeiros”. Daf o mal-entendido. Seja como for, a importancia do dieli nao se encontra nos poderes de bruxaria que cle possa ter, mas em sua arte de manejar a fala, que, alids, também é uma forma de magia. Antes de deixarmos os griots, assinalemos algumas excegdes que podem causar confusao. Por vezes, alguns teceldes deixam de exercer seu oficio tradicional para se tornarem tocadores de guitarra. Os Peul chamam-nos de Bammbaado, literalmente “aquele que é carregado nas costas”, porque suas despesas sio sempre pagas por outrem ou pela comunidade. Os Bammbaado, que so sempre contadores de historias, também podem ser poetas, genealogistas e historiadores. Alguns lenhadores também podem trocar suas ferramentas por uma guitarra ¢ se tornar excelentes mtisicos ¢ genealogistas. Bokar Ilo ¢ Idriss Ngada, que, pelo que sei, se encontravam entre os grandes genealogistas do Alto Volta, eram Jenhadores que se tornaram miisicos. Mas trata-se aqui de excegdes. Do mesmo modo, alguns nobres desacreditados podem se tornar animadores publicos, mas nao miisicos", e sio chamados de Tiapourta (em bambara e em fulfulde). Assim, sio mais impudentes cinicos do que o mais impudente dos griots, e ninguém leva a sério seus comentarios. Pedem presentes aos griofs com tal insisténcia que estes diltimos chegam a fugir ao ver um Tiapourta 14 Cabe lembrar que os Horow (nobres), peul ou bambara, jamais tocam miisica, pelo menos em pico Os Tigpourta conservaram, em geral, esse costume

You might also like