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LiBERALISMO eorToRa IDEIAS& [LETRAS Dae NCR yon A Lo CS Reg ect iee Mri e Renu muytollir e uma investigacao histérica e filoséfica inédita Ciedr ye eae bei Oke CO ot) PU Wer Muem tear lionmeonreueC lel Cree See OSE CTH COSTCO semua Rian mA aOR oem ty PoP ee os ne Ue Como 0 proprio autor explicita, “é s6 para chamar a atengao sobre aspectos até agora ampla e injustamente ocultados que o autor Came ILM re TO t er Mam gC) PSOE Po UD Mem CS oere OR aE eee ON a aOR OTe nar tee 2 FUER Doel tOme ome cen Ceuta Piecua ee Mor Mun een acctrZ ele Tal como para qualquer outro grande DTU Om NS OLY eC ET Peo ar ORME Moma ec REE SS PN aura em OP CBC Pate Ute Cer TOR: RET TU) OPM CeO RPT e meee te lary que se instaura entre essas duas dimensdes Cee CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO DOMENICO LOSURDO CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO Tradugao de Giovanni Semeraro IDEIAS & LETRAS Duron Eoronas: Tuauclo: Carlos da Silva Giovanni Semeraro Marcelo C. Aragjo Rowse: ‘Ana Lica de Casto Leite Enron: Avelino Grassi Duarwucto: Roberto Girola ‘Alex Luis Siqueica Santos Coon: a Alfredo Castillo Elizabeth dos Santos Rels Titulo original: Consroseria det liberalismo © 2005, Gius. Larerza and Figli S.p.a., Roma-Bari Edigdo brasileira publicada por prévio acordo com Eulama Literary Agency, Roma ISBN 88-420-7717-8 Todos os direitos em lingua portuguesa, para o Brasil, reservados & Editora Idéias & Letras, 2006 Cans Editora Iddias & Letras Rua Pe. Claro Monteiro, 342 ~ Centro 1270-000 Aparecida-SP Tel, (12) 3104-2000 - Fax (12) 3104-2036. Televendas: 0800 16 00 04 vendes@ideiaseletras.com.br hnttp//wwwideiaseletras.com.br Dados Intemactonals de Catalogecko na Publicaclo (CiP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasi) r ‘tradugo 1para a lingua portuguesa Giovanni Sermeraro. ~ Aparecida, SP: idéies & Letras, 2008. Tio Controstoria del lberalismo ISBN 85-96299-75.5, 1. Calhoun, John C., 1782-1850 2. Liberalismo - Hiatéria 3. Pesquisa hisiérica 4, Sociedade I. Titulo. 06-5703 c00-320.5109 Indiows para catdiogo sletemético: 1. Uberlsme: Hiri: Cmca palica 320.5109 A Jean-Michel Goux, com amizade ¢ gratidio. Sumario Uma breve premissa metodolégica - 11 I. O que é 0 liberalismo? - 13 1. Um conjunto de perguntas constrangedoras, p. 13 - 2. A revolugio americana e a revelagao de uma verdade constrangedora, p. 19 ~ 3. O papel da escravidao entre os dois lados do Atlantico, p. 24-4. Holanda, Inglaterra, América, p. 27 5. Irlandeses, indios ¢ habitantes de Java, p. 29 - 6. Grotius, Locke ¢ os Pais Fundadores: uma leitura comparada, p. 33 — 7. Historicismo vulgar ¢ a remogio do paradoxo do liberalismo, p. 39 — 8. Expansio colonial ¢ renascimento da escravidio: as posisdes de Bodin, Grotius ¢ Locke, p. 42 II. Liberalismo ¢ escravidao racial: um singular parto gémeo ~ 47 1, Limitagao do poder ¢ emergir de um poder absoluto sem precedentes, p. 47 - 2. Autogoverno da sociedade civil ¢ triunfo da grande propriedade, p. 49 - 3. O escravo negro ¢ 0 servo branco: de Grotius a Locke, p. 52 - 4. Pathos da liberdadc ¢ mal-estar pelo instituto da escravidio: 0 caso Montes- quieu, p. 56 — 5. O caso Somerset ¢ 0 dilenear-se da identidade liberal, p. 59 = 6. “Nao queremos ser tratados como negros”: a rebelido dos colonos, p. 61 - 7. Escravidao racial c ulterior degradacao da condicao do negro “livre”, p. 62 - 8. Delimitagao espacial ¢ delimitagao racial da comunidade dos livres, p. 64-9. A guerra de Secessio ¢ a retomada da polémica desenvolvida com a revolugao americana, p. 68 - 10. “Sistema politico liberal”, “modo liberal de sentir” ¢ instituto da escravidao, p. 71 - 11. Da afirmacao do principio da “inutilidade da escravidio entre nés” & condenagio da escravidio enquanto tal, p. 73 IIL. Os servos brancos entre metrépole ¢ colénias: a sociedade pro- to-liberal - 79 1, Franklin, Smith € os “residuos de escravidao” na metrépole, p. 79 ~ 2. Desempregados, mendigos ¢ casas de trabalho, p. 81 - 3. Liberais, va- gabundos ¢ casas de trabalho, p. 83 - 4. O servo como soldado, p. 86 ~ 5. Cédigo penal, formagao de uma forca de trabalho coercitiva ¢ processo de 8 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO __ colonizagio, p. 89 - 6. Os servos a contrato, p. 92 - 7. O “grande rapto he- rodiano das criangas” pobres, p. 95 - 8. Centenas ou milhares de miserdveis “quotidianamente enforcados por alguma inépcia, p. 97 - 9. Um Inteiro de caracteristicas singulares, p. 101 - 10. Trabalho assalariado ¢ categorias da escravidio, p. 102 IV. Eram liberais a Inglaterra ¢ os Estados Unidos nos séculos XVIII ¢ XIX? - 107 1. O liberalismo nao localizavel da América de Tocqueville, p. 107 - 2. Dominio absoluto ¢ obrigacdes comunitérias dos proprictarios de escravos, p. 109 - 3. Trés legislagdes, trés castas, uma “democracia para © povo dos senhores”, p. 115 - 4. Os livres, os servos € 0s escravos, p. 120 - 5. A Inglaterra ¢ as trés “castas”, p. 123 - 6. A reprodusao da casta servil ¢ 0 inicio da eugenética, p. 126 - 7. O liberalsimo nao loca- lizavel do Reino Unido na Gra Bretanha c Irlanda, p. 128 - 8. Libera- lismo, “individualismo proprietario”, “sociedade aristocrdtica”, p. 133 9. A “democracia para 0 povo dos senhores” entre Estados Unidos e Inglaterra, p. 135 V. A revolugio na Fran¢a ¢ em Santo Domingo, a crise dos mode- los inglés ¢ americano e¢ a formagao do radicalismo nos dois lados do Atlantico - 139 1, O primeiro inicio liberal da revolugao francesa, p. 139 - 2. Parlamen- tos, Dictas, aristocracia liberal ¢ servidao da gleba, p. 143 - 3. A revolucio americana ¢ a crise do modelo inglés, p. 145 - 4. A transfigurag3o em chave universalista da democracia americana para o povo dos senhores, p. 149 — 5. Qs colonos de S. Domingo, o modelo americano e o segundo io liberal da revolugao francesa, p. 150 - 6. Crise dos modelos inglés ¢ americano ¢ formagio do radicalismo francés, p. 155 - 7. O inicio liberal da revoluco na América Latina ¢ seu éxito radical, p. 159 - 8. Estados Unidos ¢ Santo Domingo-Haiti: dois pélos antagonistas, p. 163 - 9. Liberalismo e critica do radicalismo abolicionista, p. 166 - 10. A eficécia de longa duragio da revo- lugao negra de baixo, p. 170 - 11. O papel do fundamentalismo cristio, p. 172-12. O que € 0 radicalismo? O contraste com o liberalismo, p. 177 - 13. Liberalismo, autocelebragio da comunidade dos livres ¢ remogao da sorte infligida aos povos coloniais, p. 182 - 14. A questao colonial e o diferente desenvolvimento do radicalismo na Franga, Inglaterra e Estados Unidos, p. 187 — 15. O refluxo liberal do radicalismo cristao, p. 191 - 16. Liberal-socia- lismo ¢ radicalismo, p. 192 ___Introdugio __ 9 VI. A luta pelo reconhecimento dos intrumentos de trabalho na metrépole ¢ as reagdes da comunidade dos livres — 195 1. Os excluidos ¢ a luta pelo reconhecimento, p. 195 - 2. O instrumen- to de trabalho torna-se cidadao passivo, p. 198 - 3. Invengio da cidadania passiva ¢ da liberdade negativa ¢ restrigio da esfera politica, p. 201 - 4. “Leis civis” ¢ “leis politicas”, p. 205 — 5. Despolitizacao ¢ naturalizagio das relagdes econémicas ¢ sociais, p. 207 - 6. Liberalismo ¢ radicalismo: duas diferentes fenomenologias do poder, p. 209 - 7. A nova auto-representacio da comunidade dos livres como comunidade dos individuos, p. 212 - 8. Direitos econémicos ¢ sociais, “formigueiro” socialista ¢ “individualismo” liberal, p. 216 ~ 9. As criticas ao liberalismo como reacio anti-moderna?, p. 220 - 10. “Individualismo” ¢ repressio das coalizdes operérias, p. 224 - 11. Reivindicagao dos direitos econdmicos ¢ sociais e passagem do liberalismo paternalista ao liberalismo social darwinista, p. 227 VIL. O Ocidente ¢ os barbaros: uma democracia para 0 povo dos senhores de dimensées planetarias - 233 1. Autogoverno das comunidades brancas ¢ agravamento das condig6es dos povos coloniais, p. 233 - 2. Abolicao da escravidio ¢ desenvolvimento do trabalho servil, p. 236 - 3. Expansio da Europa nas colénias ¢ difuso na Europa da “democracia para o povo dos senhores”, p. 239 - 4. Tocqueville, a supremacia ocidental ¢ 0 perigo da “miscegenation”, p. 241 - 5. O “bergo vazio” ¢ 0 “destino” dos indios, p. 243 - 6. Tocqueville, a Argélia e a “de- mocracia para 0 povo dos senhores, p. 247 VIII. Autoconsciéncia, falsa consciéncia, conflitos da comunidade dos livres - 255 1. De volta & pergunta: 0 que € 0 liberalismo? Os bem-nascidos, os livres, os liberais, p. 255 - 2. A piramide dos povos, p. 260 - 3. A comu- nidade dos livres ¢ sua ditadura sobre os povos indignos da liberdade, p. 262 - 4. Como enfrentar rapidamente a ameaga dos barbaros da metrépo- lc, p. 265 - 5. A tradi¢io liberal ¢ as suas trés teorias da ditadura, p. 269 - 6. As doengas da comunidade dos livres: psicopatologia do radicalismo francés, p. 271 - 7. A leitura do interminavel ciclo revolucionério francés: da “doenga” a “rasa”, p. 274 — 8. A “doenga” como sintoma de degene- racio racial, p. 279 - 9. Gobineau, o liberalismo ¢ os mitos genealégicos da comunidade dos livres, p. 282 - 10. Disraeli, Gobincau e a “raga” como “chave da histéria”, p. 283 - 11. Remogao do conflito, busca do agente pa- togtnico ¢ teoria do compld, p. 287 - 12. O conflito dos dois liberalismos 10 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO _ € as acusacées reciprocas de traicdo, p. 292 - 13. A comunidade dos livres como comunidade da paz? Operagdes de policia ¢ guerras coloniais, p. 299 — 14. A autoconsciéncia orgulhosa da comunidade dos livres € o emergir do “patriotismo irritével”, p. 302 - 15. O “patriotismo irritavel” de Tocque- ville, p. 305 ~ 16. O conflito das idéias de misséo da revolugo americana primeira guerra mundial, p. 308 IX. Espago sagrado e espaso profano na histéria do liberalismo — 31 1. Historiografia ¢ hagiografia, p. 311 - 2. A revolusio liberal como entrelacamento de emancipacio ¢ de des-emancipacio, p. 315 - 3. A pers- pectiva da longa duragio ¢ da histéria comparada, p. 319 - 4. Realizacao do governo da lei no ambito do espago sagrado ¢ aprofundamento do abismo em relagio 20 espago profano, p. 323 — 5. Delimitagio do espaco sagrado teorizacio de uma ditadura planetéria, p. 325 - 6. O triunfo do expansioni- smo colonial: o liberalismo como idcologia da guerra, p. 329 - 7. Oscilagécs ¢ limites do modelo marxiano, p. 333 X. Liberalismo ¢ catastrofe do século XX - 339 1, Luta pelo reconhecimento ¢ golpes de Estado: 0 conflito na metrépo- le, p. 339 - 2. Luta pelo reconhecimento dos povos coloniais ¢ ameacas de secessio, p. 344 — 3. DesumanizagZo dos povos coloniais ¢ “canibalismo social”, p. 345 — 4. A “solucao final e completa” da questo india e negra, p. 350-5. Do século XIX ao século XX, p. 352 - 6. Depois da catdstrofe ¢ além da hagiografia: a heranca permanente do liberalismo, p. 357 Referéncias bibliograficas e siglas - 363 Indice de nomes - 391 Uma breve premissa metodoldégica Em que consiste a diferenga deste livro das histérias do liberalismo jé publicadas ¢ das que continuam a sair em niimero crescente? Consegue pro- duzir realmente a novidade que promete no titulo? No final de seu percurso, © leitor vai dar sua resposta. Por enquanto, o autor apenas pode limitar-se a uma declaracao de intengdes, para cuja formulagio encontra ajuda em um grande exemplo. Aprestando-se a escrever a histéria da queda do Antigo Re- gime na Franga, a propésito dos estudos sobre o século XVIII, Tocqueville observa: “Acreditamos conhecer muito bem a sociedade francesa daquele tempo porque percebemos claramente o que brilhava em sua superficie, porque possuimos até nos detalhes a histéria de seus personagens mais célebres ¢ porque criticos geniais ¢ clogiientes nos familiarizaram com as obras dos grandes escritores que a ilustraram. ‘Mas, em relago 4 conducao dos negécios, a verdadeira pritica das instituigdes, 20 posicionamento exato das virias classes em conflito, condigao aos sentimentos daqueles que ainda nao conseguiam ter voz nem visibilidade, em relagdo ao proprio fundo das opinides ¢ dos costumes, temos apenas idéias confusas ¢ muitas vezes repletas de erros”.! Nao ha porque deixar de aplicar a metodologia tao brilhantemente escla- recida por Tocqueville ao movimento ¢ a sociedade da qual € parte integrante ¢ intérprete reconhecido. £ s6 para chamar a atengio sobre aspectos até ago- ra ampla € injustamente ocultados, que o autor deste livro fala de “contra- histéria” no titulo. Pelo resto, trata-se de uma histéria, da qual é necessario Tocqueville (1951-), vol. Il, t. 1, p. 69-70 (O Antigo regime ¢ a revolugdo, de agora em diante AR, Preficio). 12 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO apenas focalizar 0 objeto: no o pensamento liberal em sua abstrata pureza, mas 0 liberalismo, quer dizer, o movimento ¢ as sociedades liberais em sua concretizacao. Tal como para qualquer outro grande movimento histérico, trata-se de indagar certamente as elaboracdes conceituais, mas também e acima de tudo as rela¢des politicas ¢ sociais nas quais ele se manifesta, assim como a ligacao mais ou menos contraditéria que se instaura entre essas duas dimensdes da realidade social. Portanto, ao dar inicio & pesquisa, somos levados a nos colocar uma pergunta preliminar sobre 0 objeto cuja hist6ria temos a intengdo de recons- truir: o que é 0 liberalismo? D.L. I O que é 0 liberalismo? 1. Um conjunto de perguntas constrangedoras As respostas usuais 4 pergunta que nos colocamos nao deixam dividas: o liberalismo é a tradigao de pensamento que situa no centro de suas preocu- pacdes a liberdade do individuo, desconsiderada ou pisoteada pelas filosofias organicistas de diferente orientacao. Sendo assim, como situar John C. Ca- lhoun? Este eminente estadista, vice-presidente dos Estados Unidos, na me- tade do século XIX, entoa um hino apaixonado a liberdade do individuo ¢, inspirando-se também em Locke, o defende energicamente contra qualquer imposigao ¢ contra toda a indevida interferéncia do poder do Estado. Mas, isso nao é tudo. Juntamente com os “governos absolutos” ¢ a “concentragao do poder”, ele n3o cansa de criticar ¢ condenar o fanatismo' ¢ o espirito de “cruzada”, aos quais contrapde 0 “compromisso” como principio inspirador dos auténticos “governos constitucionais”. Com igual clogiiéncia, Calhoun defende o direito das minorias: nao se trata apenas de garantir pelo sufragio a alternancia ao governo de diversos partidos: um poder excessivamente amplo € sempre inaceitavel, mesmo limitado no tempo ¢ amenizado pela promessa ou pela perspectiva da periddica inversio das fungdes na relacdo entre gover- Nantes € governados". Nao hi divida, teriamos aqui todas as caracteristicas do pensamento liberal mais maduro e sedutor; no entanto, por outro lado, desdenhando os meios-termos ¢ a timidez ou o temor dos que sc limitavam a accité-la como um “mal” necessario, Calhoun proclama que a escravidao, ao contrério, é um “bem positivo” ao qual a civilizagéo nunca pode renun- ciar. Certamente, ele denuncia repetidamente a intolerancia € 0 espirito de ‘Calhoun, 1992, p. 529. 2 Calhoun, 1992, p. 528-31, 469. Calhoun, 1992, p. 30-31. * Calhoun, 1992, p. 30-33. 14 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO__ cruzada, nio para colocar em discussio a subjugacao dos negros ou a caca impiedosa aos escravos fugitivos, mas sempre ¢ somente para estigmatizar os abolicionistas, estes “cegos fanaticos”®, que consideram ser “sua mais sagrada obrigacio lancar mao de todos os recursos para destruir” a escraviddo, uma forma de propriedade legitima ¢ garantida pela Constituigio®. Observe-se que das minorias defendidas com tanto vigor ¢ tanta sabedoria juridica nao fazem parte os negros. Ao contrario, neste caso, a tolerancia c 0 espirito de compromisso parecem se reverter: se o fanatismo conseguir realmente levar adiante o ensandecido projeto de aboligio da escravidio, haveria “a extirpa- 30 de uma ou outra raga”. E, considerando as concretas relagdes de fora existentes nos Estados Unidos, nao seria dificil imaginar qual das duas iria sucumbir: portanto, os negros poderiam sobreviver s6 continuando na con- digao de escravos. Entdo, Calhoun é ou nao é liberal? Nenhuma diivida tem a respeito lor- de Acton, figura procminente do liberalismo da segunda metade do século XIX, conselheiro ¢ amigo de William E. Gladstone, um dos grandes prota- gonistas da Inglaterra do século XIX. Entdo, aos olhos de Acton, Calhoun é um campeio da causa da luta contra o absolutismo em todas as suas formas, inclusive o “absolutismo democratico”: os argumentos utilizados por ele sio “a verdadeira perfeigdo da verdade politica”; em sintese, estamos diante de um dos grandes autores e dos grandes espiritos da tradigao e do pantedo liberais", Embora com uma linguagem menos enfatica, de maneira afirmativa pa- recem responder & pergunta que nos colocamos os que nos nossos dias ce- lebram Calhoun como “um distinto individualista”’, como um campeao da “defesa dos direitos da minoria contra os abusos de uma maioria inclinada a prevaricacao” , isto é, como um tedrico do senso do equilibrio e da autoli- mitagdo que devem ser proprios da maioria"". Livre de diividas apresenta-se uma editora dos Estados Unidos, dedicada a reeditar em chave neoliberalista 0s “Clissicos da Liberdade”, entre os quais aparece 0 eminente estadista ¢ idedlogo do Sul escravista”. * Calhoun, 1992, p. 474. “Calhoun, 1992, p. 582. ” Calhoun, 1992, p. 529, 473. * Acton, 1985-88, vol. 1, p. 240, 250; vol. III, p. 593. * Post, 1953, p. VII. '® Lence, 1991, p. XXIII. 1 Sartori, 1976, p. 151; 1978, p. 239, 252. " Calhoun, 1992. _ 1. O gue é 0 liberalismo? 15 A pergunta que nos colocamos nao emerge a partir apenas da recons- trugao da historia dos Estados Unidos. Estudiosos muito conceituados da revolugio francesa, ¢ de orientacao liberal garantida, nao hesitam em definir como “liberais” aquelas personalidades ¢ aqueles circulos que teriam o mé- Tito de ter feito oposigao a deriva jacobina mas que, por outro lado, estdo firmemente envolvidos na defesa da escravidao colonial. Trata-se de Pierre- Victor Malouet ¢ dos membros do Club Massiac: si “todos proprietérios de plantagdes ¢ de escravos”"’. E possivel, portanto, ser liberais ¢ escravistas a0 mesmo tempo? Nao é esta a opiniao de John S. Mill, a julgar pelo menos em relagdo a polémica desenvolvida por cle contra os “autodenominados” liberais ingleses (entre os quais provavelmente Acton ¢ Gladstone) que, no decorrer da guerra de Secessao, se alinhavam em massa ¢ “furiosamente a favor dos Estados do Sul” ou que pelo menos mantinham uma postura fria € 4cida em relagao 4 Unido ¢ a Lincoln’* Estamos diante de um dilema. Se a pergunta aqui formulada (Calhoun é ou nao é liberal?) respondemos afirmativamente, nao podemos mais susten- tar a tradicional (¢ edificante) configurac¢ao do liberalismo como pensamen- to ¢ vontade da liberdade. Se, ao contrario, respondemos negativamente, esbarramos diante de uma nova dificuldade ¢ de uma nova pergunta, nio menos problematica que a primeira: por que deveriamos continuar a atri- buir a dignidade de pai do liberalismo a John Locke? Sim, Calhoun fala da escravidio dos negros como de um “bem positivo”, mas embora utilize uma linguagem to altissonante, também o fildsofo inglés, ao qual o autor esta- dunidense remete explicitamente, considera ébvia c natural a escravidao nas colénias ¢ contribui pessoalmente para a formalizacao juridica desse instituto na Carolina. Participa na redacdo da norma constitucional pela qual “todo homem livre da Carolina deve ter absoluto poder e autoridade sobre os seus escravos negros seja qual for sua opiniio ¢ religiio””. Locke € “o sltimo grande filésofo que procura justificar a escravidio absoluta e perpétua”" © que nao Ihe impede de atacar com palavras de fogo a “escravidio” po- Iitica que a monarquia absoluta queria impor (Dois tratados sobre governo, de agora em diante TT, I, 1); de maneira andloga cm Calhoun a teorizacio da escravidao negra como “bem positivo” anda de maos dadas com o alerta contra uma concentragao dos poderes que corre o risco de transformar “os "3 Furet, Richet, 1980, p. 120-121 ¢ 160-161. ** Mill, 1963-91, vol. XXI, p. 157; Mill, 1963-91, vol. 1, p. 267 ( Mill, 1976, p. 209). 'S Locke, 1993c, p. 196 (art. CX). "Davis, 1975, p. 45. 16 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO governados” em “escravos dos governantes””. Afinal, o estadista americano é proprietério de escravos, mas também o fildsofo inglés tem sdlidos inves- timentos no trafico dos negros . A posicio do segundo, até, resulta ainda mais comprometedora: bem ou mal, no Sul escravista, do qual o primeiro é intérprete, ndo havia mais lugar para a deportacdo dos negros da Africa que no decorrer de uma horrivel viagem condenava muitos deles 2 morte bem antes da chegada a América. Para distinguir a posi¢io dos dois autores aqui comparados, queremos utilizar a distincia temporal ¢ excluir da tradigao liberal s6 Calhoun, que continua a justificar ou a celebrar o instituto da escravidao ainda cm pleno século XIX? Contra esse tratamento diferente iria reagir com indignagio o estadista do Sul, que, em relagio ao filésofo liberal inglés, talvez reafirmasse, com uma linguagem apenas diferente, a tese por ele formulada a propésito de George Washington: “Ele era um dos nossos, um proprietario de escravos cum fazendeiro””. Contemporanco de Calhoun é Francis Lieber, um dos mais eminen- tes intelectuais do seu tempo. Celebrado as vezes como uma espécie de Montesquieu redivivus, em relacdes epistolares ¢ de estima com Toque- ville, ele € sem divida um critico embora cauteloso do instituto da ¢s- cravidao: espera que se dissolva mediante uma transformagio gradual em uma espécie de servidaio ou semi-servidio, ¢ a partir da iniciativa auté- noma dos estados escravistas, cujo direito ao autogoverno nao pode ser colocado em discussio. Por isso, Lieber € admirado também no Sul, ainda mais porque ele mesmo, embora em proporgdes bem modestas, possui ¢, as vezes, aluga escravos ¢ escravas. Quando uma delas vem a falecer, por causa de uma misteriosa gravidez ¢ de sucessivos abortos, ele anota no seu diario a dolorosa perda pecuniéria assim softida: “Bem mil délares - 0 duro trabalho de um ano”””. Novas penosas economias impunham-se, en- to, para compensar a escrava falecida: sim, porque Licber, diversamente de Calhoun, nao é um fazendeiro ¢ nem vive de renda; € um professor universitério que langa mao dos escravos fundamentalmente para servigos domésticos. Com isso, estariamos autorizados a incluir o primeiro ¢ nao © segundo no Ambito da tradigio liberal? Em todo caso, a distancia tem- poral aqui nao tem peso algum. * Calhoun, 1992, p. 374. “Cranston, 1959, p. 114-15; Thomas, 1977, p. 199, 201. Calhoun, 1992, p. 590. % Freidel, 1968, p. 278, 235-59. _ Oogueéoliberalismo? ——_ 7 Observe- Se, agora, um contemporaneo de Locke. Andrew Fletcher é um “campeao da liberdade” e, a0 mesmo tempo, um “campeio da escravi- dio””, No plano politico ele declara ser “um republicano por principio”; € no plano cultural é “um profeta escocés do iluminismo””; ele também foge para a Holanda na onda da conspira¢ao antijacobita e antiabsolutista, exata- mente como Locke, com o qual mantém correspondéncia epistolar’. A fama de Fletcher atravessa o Atlantico: Jefferson o define um “patriota”, ao qual cabe 0 mérito de ter expressado os préprios “principios politicos” dos “pe- riodos mais puros da Constituigao Britanica”, os que depois se cnraizaram ¢ prosperaram na América® livre. Quem manifesta posigdes muito parecidas com as de Fletcher é um scu contemporanco e conterranco, James Burgh, que também goza da estima dos ambientes republicanos a /a Jefferson” ¢ € mencionado com simpatia por Thomas Paine, no opisculo mais célebre da revolugdo americana (Common Sense)”. No entanto, a diferenga dos outros autores, caracterizados como cles pelo singular entrelacamento de amor pela liberdade ¢ legitimagao ou reivin- dicacao da escravidao, Fletcher ¢ Burgh hoje estao praticamente esquecidos e ninguém parece inclui-los entre os expoentes da tradicao liberal. O fato é que, ao ressaltar a necessidade da escravidio, cles pensam em primeiro lugar nao nos negros das colnias, mas nos “vagabundos”, nos mendigos, na plebe ociosa ¢ incorrigivel da metrépole. Devemos consideré-los iliberais por esse motivo? Se assim fosse, 0 que distingue os liberais dos que nao sio seria a condenagio do instituto da escravidio nao apenas a discriminagao negativa contra os povos de origem colonial. A Inglaterra liberal nos coloca diante de um caso ainda diferente. Fran- cis Hutcheson, um filésofo oral com alguma visibilidade (é 0 “inesqueci- vel” mestre de Adam Smith”), por um lado manifesta criticas ¢ reservas em relagdo 4 escravidio 4 qual esto submetidos de maneira indiferenciada os negros; por outro lado sublinha que, principalmente quando se lida com os “niveis mais humildes” da sociedade, a escravidio pode scr uma “punigdo itil”: ela deve ser 0 “castigo normal para aqueles vagabundos preguicosos ® Morgan, 1972, p. 11; of. Marx, Engels, 1955-89, vol. XXII, p. 750, nora 197. 2 Marx, Engels, 1955-89, vol. XXIII, p. 750, nota 197. 2 Morgan, 1995, p. 325. % Bourne, 1969, vol. I, p. 481; Locke, 1976-89, vols. V-VIL, passim. 2 Jefferson, 1984, p. 1134 (carta a conde de Buchan, 10 de julho de 1803). * Morgan, 1995, p. 382; Pocock, 1980, p. 888. ine, 1995, p. 45 nora. 3 Smith, 1987, p. 309 (carta a A. Davidson, 16 de novembro de 1787). 18 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO que, mesmo depois de ter sido justamente advertidos ¢ submetidos a servi- dao temporéria, nao conseguem sustentar a si proprios ¢ as suas familias com um trabalho itil””, Estamos na presenga de um autor que, mesmo sentindo o mal-estar pela escravidao hereditéria ¢ racial, reivindica por outro lado uma espécie de escravidio penal para aqueles que, independentemente da cor da pele, seriam culpados de vadiagem: é liberal Hutcheson? Situado temporalmente entre Locke ¢ Calhoun, e olhando para a rea- lidade aceita por ambos como Obvia € pacifica ou até celebrada como um “bem positivo”, Adam Smith formula um raciocinio e expressa uma prefe- réncia que merecem ser relatados por extenso. A escravidio pode ser mais facilmente suprimida em um “governo despético” do que em um “governo livre”, cujos organismos representativos ficam exclusivamente reservados aos proprietarios brancos. Nesse caso, é desesperadora a condi¢ao dos escravos negros: “toda lei é feita pelos seus donos, os quais nunca vo deixar passar uma medida desfavoravel a eles”. E, portanto: “A liberdade do homem livre é a causa da grande opressdo dos escravos [...]. E uma vez que eles constituem a parte mais numerosa da popula¢ao, pessoa alguma imbuida de humanidade vai desejar a liberdade em um pais no qual foi estabelecida esta instituigio”” Pode ser considerado liberal um autor que, pelo menos em um caso concre- to, exprime a sua preferéncia por um “governo despético”? Ou, com uma di- versa formulagao: € mais liberal Smith ou Locke ¢ Calhoun que, juntamente com a escravidao, defendem os organismos representativos condenados pelo primeiro enquanto sustenticulo, no 4mbito de uma sociedade escravista, de uma institui¢ao infame ¢ contraria a todo o sentido de humanidade? Na verdade, como havia previsto o grande economista, a escravidio € abolida nos Estados Unidos nao gracas ao governo local, mas pelo punho de ferro do exército da Unido ¢ pela ditadura militar imposta por algum tempo. Nessa ocasido, Lincoln € acusado pelos seus adversdrios de despotismo ¢ de jacobinismo: recorre a “governos militares” ¢ “tribunais militares” ¢ interpreta “a palavra ‘lei’ “como a “vontade do presidente” ¢ o habeas corpus como 0 “poder do presidente de aprisionar qualquer um e pelo periodo de tempo que Ihe agradar”", Na formulacao desse ato de acusagZo, além dos expoentes da Confederacao secessionista, estao aqueles que aspiram a uma paz acordada, até para voltar 4 normalidade constitucional. E aqui novamente somos obrigados a nos colocar a pergunta: € mais liberal Lincoln ou os seus antagonistas do Sul, ou os seus adversérios que no Norte se pronunciam a favor do compromisso? » Davis, 1971, p. 423-27; p. 425. * Smith, 1982, p. 452-53, 182. » Schlesinger Jr., (org.) 1973, p. 915-21. 1. O que é 0 liberalismo? 19 Vimos Mill tomar posicao a favor da Unido ¢ condenar os “autodeno- minados” liberais que gritam escandalizados diante da firmeza com que ela conduzia a guerra contra o Sul ¢ controlava aqueles que, no proprio Nor- te, se inclinavam a aceitar a secessio escravista. Mas, veremos que, com o olhar voltado para as colénias, o liberal inglés justifica 0 “despotismo” do Ocidente sobre as “racas” ainda em “menoridade”, obrigadas a observar uma “obediéncia absoluta”, de modo que possam ser postas no caminho do progresso. E uma formulacao que nio iria desagradar Calhoun, que também legitima ¢ celebra a escravidio quando ele também se refere ao atraso € 3 menoridade da populagao de origem africana: sé na América, € gracas aos cuidados paternais dos patrdes brancos, a “raca negra” consegue avangar € passar da anterior “condigio infima, degradada ¢ selvagem” para a nova “condigio relativamente civilizada””, Para Mill, “qualquer meio” € Kicito para quem assume a tarefa de educar as “tribos selvagens”; a “escravidio” as vezes € uma passagem obrigatéria para conduzi-las ao trabalho e tornd-las iteis & civilizag3o ¢ ao progresso (infra, cap. VII, § 3). Mas esta € também a opiniao de Calhoun, para o qual a escraviddo é um meio inevitavel para che- gar a civilizar os negros. Claro, diferentemente da eterna escravidao a qual, conforme o teérico € politico estadunidense, devem ser submetidos os ne- gros, a ditadura pedagégica de que fala Mill esta destinada a se dissolver em um futuro, embora remoto € problemitico; 0 outro lado da medalha é que a esta condigao de falta de liberdade esta explicitamente subjugado nio apenas um grupo étnico particular (0 pequeno pedaco de Africa situado no cora¢io dos Estados Unidos), mas também o conjunto dos povos progressivamente tomados pela expansio colonial ¢ obrigados a sofrer o “despotismo” politico ¢ formas de trabalho servil ou semi-servil. Exigir a “obediéncia absoluta”, por um periodo de tempo indeterminado, de grande parte da humanidade € compativel com a profissdo de fé liberal ou é sinénimo de “autodenomina- do” liberalismo? 2. A revolugio americana ¢ a revelagao de uma verdade constrangedora Nao hé divida: em primciro lugar € o problema da escravidio que divide 08 autores até aqui citados. De uma forma ou de outra, todos eles remetem a Inglaterra derivada da Revolucio Gloriosa ou aos Estados Unidos. Trata- se de dois paises que ao longo de um século e meio foram a tinica realidade * Calhoun, 1992, p. 473. 20 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO estatal e constituiram, por assim dizer, um s6 partido politico. Antes da cri- se que leva a revolugio americana, nos dois lados do Atlantico, os ingleses se sentem siiditos ou cidadaos orgulhosos de “um pais, talvez 0 tnico, no universo em que a liberdade civil ou politica € 0 verdadeiro fim € 0 objetivo da Constituicao”. Quem assim se expressa € Blackstone. Para confirmar a sua tese ele remete a Montesquicu que fala da Inglaterra como sendo “uma nagio que tem como objetivo preciso da sua Constituigio a liberdade polt- tica” (De Pesprit des lois, de agora em diante EL, XI, 5)”. Sim, nem o liberal francés tem davidas quanto ao fato de que “a Inglaterra € atualmente o pais mais livre do mundo, sem excluir republica alguma””, a “nagio livre” por exceléncia, o “povo livre” por exceléncia (EL, XIV, 13; XIX, 27). Neste momento, nenhuma sombra parece pairar sobre as relacdes entre 0 dois lados do Atlantico. Nao hé conflitos ¢ nem poderia haver, pelo menos para Montesquieu, pelo fato de que também na sua rela¢ao com as colénias € 0 amor pela liberdade que caracteriza a Inglaterra: “Se esta nagio estabelecesse coldnias longinquas, o faria para ampliar ainda mais, © proprio comércio do que o préprio dominio. Uma vez que se deseja estabelecer em outros lugares o que esté j4 consolidado entre nés, ela daria aos povos das coldnias a sua mesma forma de governo, ¢ jé que esse governo carrega consigo a prosperidade, veramos a formacio de grandes povos até nas florestas destinadas para a sua habitagdo” (EL, XIX, 27). No decorrer desses anos, também os colonos ingleses na América se re- conhecem orgulhosamente na tese de Blackstone, conforme a qual “a nossa livre Constituicao”, “de pouco distante da perfcigao”, se diferencia nitida- mente “das constituigdes modernas de outros Estados”, do ordenamento politico do “continente curopeu” no seu conjunto™. com base nessa ideologia que o Império Britanico conduz a guerra dos Sete Anos: os colonos ingleses na América sio os mais propensos a interpre- ta-la como o enfrentamento entre os “promotores da liberdade no mundo”, os britanicos “filhos da nobre liberdade” ou os defensores do protestantis- mo, e a Franga “cruel e opressora”, despética no plano politico e seguidora do despotismo, da “beatice romana” ¢ do papismo no plano religioso. Neste momento, também os sitditos da Coroa inglesa, situados além do Atlantico, amam repetir com Locke que “a escravidio” ¢ “diretamente oposta 4 nature- “Blackstone, 1979, vol.1, p. 6 (Introdugio, seg. 1). ™ Montesquieu, 1949-51, vol. I, p. 884. * Blackstone, 1979, vol. I, p. 121-23 (livro 1, cap. 1). _ __ 1. O que é 0 liberalismo? 21 za generosa ¢ corajosa da nossa nag3o”: ela ¢ absolutamente impensével para um “inglés” (TT, I, 1). Os franceses teriam gostado de reduzir os colonos americanos a uma “subjugacio escrava”; felizmente, esta tentativa foi des- mantelada pela Gri-Bretanha, “a Senhora das nacées, o grande sustentaculo da liberdade, o flagelo da opressio ¢ da tirania”™. Trata-se de uma idcologia que Burke, ainda cm 1775, procura ressusci- tar na desesperada tentativa de evitar a ruptura que se desenha no horizonte. Ao apresentar a sua Mocio de conciliago, ele convida a nao perder de vista € a nao cortar os elos que vinculam os colonos americanos & patria-mie: es- tamos sempre na presenga de uma tinica “nacio”, unificada por um “templo sagrado dedicado a uma f€ comum”, a fé na “liberdade”. Substancialmente intocada em paises como a Espanha ou a Prissia, a escravidio “medra em todos os terrenos”, menos no inglés. Entio, é absurdo querer dobrar com a forga os colonos rebeldes: “um inglés € a pessoa menos apta no munde para induzir com argumentos um outro inglés a se submeter a escravidio””. Obviamente, a escravidao da qual aqui se fala é a escravidao cuja respon- sabilidade € do monarca absoluto. A outra, a que algema os negros, nao tem peso algum no discurso politico daqueles anos. Quando torna-se irreversivel a revolucdo ou a “guerra civil”, com todos os seus “horrores”™, como prefe- rem dizer os fiéis leais Coroa e os préprios homens politicos ingleses favo- rveis a9 entendimento ¢ 4 manutengio da unidade da “nacio” ¢ da “raga” inglesa”, +0 quadro muda sensivelmente. Fica claro o elemento de continui- dade. Cada uma das partes em luta acusa a outra de querer reintroduzir 0 despotismo, a “escravidao” politica. O requisitério dos colonos rebeldes é amplamente conhecido: cles nao cansam de denunciar a tirania da Coroa ¢ do Parlamento ingleses, o seu insano projeto de submeter osr residentes na América a uma condi¢ao de “servidao perpétua c escravidao”” . Mas, a res- posta nao tarda a chegar. Ja em 1773, um legalista de Nova York langa uma adverténcia: até hoje “estivemos em alerta contra os ataques externos a nossa liberdade” (a referéncia é 4 guerra dos Scte Anos), mas agora aparcccu um perigo mais insidioso, o de “sermos escravizados por tiranos internos”. Sem- pre em Nova York, um outro legalista reafirma dois anos depois: os rebeldes aspiram a “nos reduzir a condigdes piores do que os escravos”"’. Os dois % Potter, 1983, p. 115-16. * Burke, 1826, vol IIT, p. 123-24, 66 (= Burke, 1963, p. 142-43, 100). * Boucher, cit. in Zimmer, 1978, p. 153. ™ Burke, 1826, vol. IIT, pp 135. # Shain, 1994, p. 290. “ Porter, 1983, p. 16. 22 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO troncos nos quais o partido liberal se dividiu retomam, um contra o outro, a ideologia c a retérica que haviam caracterizado a auto-exaltago da nagio inglesa no seu conjunto como inimiga jurada da escravidio politica. ‘A novidade consiste no fato de que, na onda da troca de acusagoes, jun- tamente com a politica, irrompe pesadamente na polémica também a outra escravidio, aquela que ambas as partes haviam removido como elemento incémodo da sua orgulhosa autoconsciéncia de membros do povo ¢ do par- tido da liberdade. Para os colonos rebeldes 0 governo de Londres, que im- pdc soberanamente a taxacao a cidadaos ou stditos que inclusive nao estao representados na Camara dos Comuns, comporta-se como um patréo em telagao aos escravos. Mas — objetam os outros — se for mesmo necessario falar de escravidio, por que nao comecar a colocar em discussio aquela que sc manifesta de forma brutal e evidente exatamente onde com maior grandilo- qiiéncia se aclama a liberdade? Jé em 1764, Franklin, na época em Londres para defender a causa dos colonos, deve enfrentar os comentarios sarcasticos dos scus interlocutores: “Vés americanos fazeis um grande alarido frente a menor violagio imagindria das vossas liberdades consideradas tais; contudo, neste mundo ndo hé um povo tio tirinico, to inimigo da liberdade como € 0 vosso quando isto Ihe convém”™”. Os pretensos campedes da liberdade retratam como sendo sinénimo de despotismo ¢ de escravidio uma imposigio fiscal promulgada sem 0 seu ex- plicito consenso, mas nao tém escriipulo para exercer o poder mais absoluto € mais arbitrario em detrimento dos seus escravos. E um paradoxo: “Como se explica que os gritos mais elevados de dor pela liberdade se clevam dos cacadores de negros?” ~ pergunta-se Samuel Johnson. De forma andloga, no outro lado do Auintico ironizam os que procuram contrastar a secessao. Thomas Hutchinson, governador régio do Massachusetts, acusa os rebeldes de incocréncia ou hipocrisia: negam radicalmente aos afficanos aqueles dirci- tos que proclamam como sendo “absolutamente inalicnaveis”?, Em sintonia com este, um legalista americano (Jonathan Boucher) refugiado na Inglater- ra, rememorando os acontecimentos que o haviam levado ao exilio, observa: “Os mais barulhentos advogados da liberdade cram os mais duros ¢ mais selvagens patrées de escravos”™. “ Franklin, 1987, p. 646-47. * Foner, 2000, p. 54. “ Boucher, cit. in Zimmer, 1978, p. 297. 1, O gue é 0 liberalismo? ae ‘Com tanta dureza nao falam apenas as personalidades mais diretamente envolvidas na polémica ¢ na luta politica. £, particularmente, mordaz a inter- vengio de John Millar, expoente de primeira linha do iluminismo escocés: “£ singular que os mesmos individuos que falam com estilo refinado de liber- dade politica e que consideram como um dos direitos inaliendveis da humanidade o direito de impor as taxas néo tenham escripulo em reduzir uma grande quantidade dos scus semelhantes a condigbes de serem privados ndo apenas da propriedade, mas também de quase todos os direitos. Provavelmente, a sorte nunca produziu uma situago maior do que esta para ridicularizar uma hipétese liberal ou mostrar quanto a conduta dos homens, no fundo, seja pouco dirigida por algum principio filoséfico”” Millar € um discipulo de Adam Smith. O mestre, também, parece pensar da mesma forma. Quando declara que ao “governo livre”, controlado pelos proprictarios de escravos, prefere o “governo despético” capaz. de cancelar a infimia da escravidao, faz explicita referencia 4 América. Posto em termos imediatamente politicos, o discurso do grande economista significa: 0 despo- tismo acusado na Coroa preferivel a liberdade reivindicada pelos propric- térios de escravos ¢ que beneficia apenas uma restrita classe de fazendeiros patrdes absolutos”. Os abolicionistas ingleses pressionam mais. Conclamam na defesa das instituigdes britanicas, ameacadas pelos “modos arbitrarios e desumanos que prevalecem cm um longinquo pais”. Arbitririos ¢ desumanos a tal ponto que, como mostra um classificado do “New York Journal”, uma mulher ne- gra ¢ seu filho de trés anos sio vendidos separadamente no mercado, como se fossem uma vaca € um bezerro. E, portanto, ~ conclui em 1769 Granville Sharp - nao podemos ser levados ao engano pela “grandilogiiéncia teatral ¢ pelas declamagées em honra da liberdade”, as quais recorrem os rebeldes escravistas; contra eles € preciso defender com firmeza as livres instituigdes inglesas“. Os acusados, por sua vez, reagem desmascarando a hipocrisia da Ingla- terra: ela enaltece a sua “virtude” e o seu “amor pela liberdade”, mas quem promoveu ¢ continua a promover o comércio dos negros? E desta forma que Benjamin Franklin” argumenta, levantando uma motivacio que depois se 1986, p. 294 (= Millar, 1989, p. 239). in Davis, 1975, p. 272-73, 386-87. 987, p. 648-49. 24 _CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO torna central no projeto inicial de Declaragio de independéncia elaborado por Jefferson. Eis como, na versio original desse documento solene, sio acu- sados a Inglaterra liberal derivada da Revolugao Gloriosa ¢ George III. Este promoveu uma guerra cruel contra o proprio género humano, violando os mais sagrados dircitos a vida ¢ a liberdade das pessoas de um povo longinquo que nunca Ihe causou ofensa, tornando-as prisioneiras ¢ transportando-as como escravas para um outro hemisfério, ou condenando-as a uma esquilida morte durante o translado. Essa guerra de piratas, vergonha das poténcias infidis, é a guerra do rei CRISTAO de Gra-Bretanha. Determinado a manter aberto um mercado onde se vendem e compram HOMENS, ele prostituiu 0 seu direito de veto ao reprimir qualquer tentativa legislativa que impedisse ou limitasse esse execravel comércio” 3. O papel da escravidao entre os dois lados do Atlantico Que dizer dessa polémica incandescente ¢ inesperada? Nao ha diivida de que as acusacdes dirigidas aos rebeldes deixam exposto um nervo fraco, Na revolugdo americana a Virginia desempenha um papel de destaque: aqui ha 40% dos escravos do pais; mas, daqui surge o maior niimero de protagonistas da revolta que explode em nome da liberdade. Em trinta ¢ dois anos dos primeiros trinta e seis de vida dos Estados Unidos, quem ocupa o cargo de Presidente sio os proprietarios de escravos provenientes da Virginia. E essa colénia ou esse Estado, fundado sobre a escravidao, que fornece ao pafs os seus estadistas mais ilustres; sé para lembrar: George Washington (grande protagonista militar ¢ politico da revolta anti-inglés), James Madison e Tho- mas Jefferson (autores respectivamente da Declaracao de independéncia ¢ da Constituigio federal em 1787), os trés proprictdrios de escravos”. Inde- pendentemente deste ou daquele Estado, resta claro o peso que a escravidio exerce sobre o pafs no seu conjunto: sessenta anos depois da sua fundagio observa-se que “nas primeiras dezesseis eleigdes presidenciais, entre 1788 € 1848, todas, salvo quatro, colocaram um proprietirio de escravos do Sul na Casa Branca”®’. Compreende-se entao a persisténcia da polémica anti-ame- ricana nesse ponto. “Cf. Davis, 1975, p. 273; Jennings, 2003, p. 174-75. * Morgan, 1995, p. 5-6. % Foner, 2000, p. 61. I. O que ¢ 0 liberalismo? 25 “No lado oposto, conhecemos a ironia de Franklin e Jefferson em relagio ao moralismo antiescravista manifestado por um pais profundamente envol- vido no comércio dos negros. Trata-se de um ponto sobre o qual insiste também Burke, tedrico da “conciliag3o com as colénias”. Ao repelir a pro- posta dos que reivindicavam “uma geral libertac3o dos escravos” de modo a contrastar a revolta dos seus donos e colonos em geral, ele observa: “Por quanto sejam escravos esses negros desafortunados, ¢ tornados obtusos pela escravidao, seré que nao suspeitardo desta oferta de liberdade provenicnte daquela nago que os vendeu aos seus atuais patrdes?” Isto é tanto mais ver- dade, se depois aquela na¢io insiste em querer praticar 0 comércio dos ne- gros, chocando-se com as colénias que queriam limité-lo ou suprimi-lo. Para ‘os escravos desembarcados ou deportados para a América se apresentaria um espetéculo singular: “Uma oferta de liberdade da Inglaterra chegaria para eles de forma um tanto estranha, enviada em um navio africano, para o qual os portos da Virginia ¢ da Caro- lina recusam o ingresso, com uma carga de trezentos negros de Angola. Seria curioso ver a cara de um capitio proveniente da Guiné tentar a0 mesmo tempo manifestar a sua proclamagio de liberdade ¢ fazer propaganda da sua venda de escravos” Aronia de Burke acerta no alvo. Além de considerar o papel da Inglater- ra no comércio dos negros, deve-se acrescentar que os escravos continuaram presentes por muito tempo no préprio territério metropolitano: calcula-se que, em meados do século XVIII, havia 10 mil escravos” . Os abolicionistas ingleses se horrorizavam frente ao mercado de carne humana nas colénias americanas e em Nova York? Em Liverpool, em 1766 eram colocados a ven- da onze escravos negros, e 0 mercado de “gado negro” em Dublin manti- nha-se ainda aberto doze anos depois, regularmente divulgado pela imprensa local”, O peso que o comércio ¢ a exploragao dos escravos desempenhavam na economia do pais era também consideravel. “O Liverpool Courier de 22 de agosto de 1832 calculava que 3/4 do café britanico, 15/16 do seu al- godio, 22/23 do seu agiicar ¢ 34/35 do seu tabaco cram produzidos por escravos”™. No conjunto convém levar em consideracao a avaliagdo aberta de duas testemunhas inglesas do século XVIII. O primeiro, Joshua Gee, re- * Burke, 1826, vol. II], p. 67-68 (= Burke, 1963, p. 101-102) 5 Blackburn, 1990, p. 80. Drescher, 1987, p. 174, nota 34. * Drescher, 1987, p. 170, nota 19. 26 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO conhece: “Todo esse aumento da nossa riqueza deriva em grande parte do trabalho dos negros nas plantagées”*. O Segundo, Malachy Postlethwayt, empenhado em defender o papel da Royal African Company, a sociedade que administra o comércio dos escravos, é ainda mais claro: “O comércio dos Negros e as naturais conseqiiéncias que derivam disso podem ser certamente avaliadas como uma inesgotével reserva de riqueza ¢ de poder naval para esta Nagao”; sio “o principio Primeiro € 0 fundamento de tudo, a mola principal que movimenta todas as rodas”™; 0 império britanico no seu conjunto nio passa de “uma magnifica superestrutura” daquele comércio”. Enfim, o peso politico do instituto da escravidio. Embora obviamente inferior ao que exer- ce nas colénias americanas, certamente nao é irrelevante na Inglaterra: no Parlamento de 1790 havia duas ou trés dizias de membros com interesses nas {ndias ocidentais™. Em conclusao. A troca de acusagées entre colonos rebeldes ¢ ex-pa- tria-mae, ou seja, entre os dois troncos do partido que até entdo havia se vangloriado de ser o partido da liberdade, € uma reciproca, impiedosa desmistificacio. A Inglaterra que desponta da Revolucao Gloriosa nio se limita a evitar a discussio sobre 0 comércio dos negros; nao, esta conhece agora um poderoso desenvolvimento” e, por outro lado, um dos primeiros atos de politica internacional da nova monarquia liberal consiste em arran- car da Espanha o monopélio do comércio dos escravos. No lado oposto, a revolugao que eclode na outra margem do Atlantico em nome da liberdade comporta a consagracio oficial do instituto da escraviddo e a conquista ¢ 0 exercicio por longo tempo da hegemonia politica por parte dos proprieté- tios de escravos. Talvez, a interven¢ao mais articulada ¢ mais sofrida no 4mbito dessa po- lémica veio de Josiah Tucker, “padre e tory, mas de resto uma boa pessoa ¢ um valioso economista™, Ele denuncia o papel proeminente da Inglaterra no comércio dos negros: “Nés, os orgulhosos Campedes da Liberdade e os declarados Advogados dos Direitos naturais da Humanidade, nos dedicamos a esse comércio desumano e criminoso mais profundamente do que alguma outra nagdo”. Mas, ainda mais hipécrita é 0 comportamento dos colonos rebeldes: “Os advogados do republicanismo e da suposta igualdade da hu- ¥ Gee, cit. in Hill, 1977, p. 260. % Postlethwayt, cit. in Davis, 1971, p. 187; Wolf, 1990, p. 291-92. + Postlethwayr, cit. in Jenneings, 2003, p. 212. + Blackburn, 190, p. 143. + Dunn, 1998, p. 463-65. “Ea definigio de Marx (Marx, Engels, 1955-89, vol. XXII, p. 788). ee __ LO que éoliberalismo? —_ _ 27 manidade deveriam ser os primeiros a sugerir algum humano sistema de abo- ligdo da pior de todas as escravidées””. E, no entanto... 4, Holanda, Inglaterra, América Se, antes de se constituir como Estado independente, as colénias rebel- des da América faziam parte do Império inglés, este assumiu sua configu- racio liberal a partir da chegada ao trono de Ghilherme III d’Orange que desembarca na Inglaterra vindo da Holanda. Por outro lado, se com o seu projeto de Constituico da Carolina remete 4 América, Locke escreve a sua (primeira) Carta sobre a tolerdncia na Holanda, naquele momento “centro da conspiragio” contra o absolutismo Stuart’ , ¢ € também na Holanda que nasce Mendeville, sem diivida, uma das figuras mais importantes do primeiro liberalismo. Nao se deve perder de vista fato de que as Provincias Unidas, deriva- das da lutas contra a Espanha de Filipe II, estabelecem um ordenamento de tipo liberal um século antes da Inglaterra. Trata-sc de um pais que também do ponto de vista econémico-social deixou para trés 0 Antigo Regime: no século XVIII goza de uma renda per capita mais do que o dobro daquela da Inglaterra; se aqui a forca-trabalho dedicada & agricultura é de 60% da popu- lacdo, na Holanda é de apenas 40%. Também, a estrutura do poder € muito significativa: no pafs que sai vitorioso do confronto com Filipe II quem do- mina é “uma oligarquia burgués que rompeu decididamente com o ethos da aristocracia da terra”. Sao esses burgueses iluminados e tolerantes, liberais, que se langam na expansao colonial, ¢ dela é parte integrante, nesse periodo histérico, o comércio dos negros: “Os holandeses orientaram o primeiro verdadeiro comércio de escravos para fornecer a mao-de-obra necessdria as plantagdes de agticar: quando perderam as plantacoes, tentaram permanccer na cena como mercadores de escravos, mas em 1675 terminou a supremacia holandesa, deixando o campo para a Royal African Company, recém-fundada pelos inglescs”™. * Tucker, 1993-96, vol. V, p. 21-22. * Bourne, 1969, vol. I, p. 481. ™ Drescher, 1999, p. 203, 199. Wallerstein, 1978-95, vol. II, p. 66. 28 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO Locke é acionista da Royal African Company. Mas, além de nos remeter a Inglaterra, a histéria das Provincias Unidas nos leva também a América. Pelo que se sabe, é um traficante holandés quem introduz na Virginia os escravos africanos’. Nova Amsterdam, que os holandeses sio obrigados a ceder aos ingleses ¢ que se torna Nova York, tem 20% da populacao formada por negros, em sua maioria escravos; aproximadamente 42% dos propriet4- rios de casas, em 1703, sio ao mesmo tempo proprietérios de escravos™. Volta 0 paradoxo jd examinado em relagio 4 Inglaterra ¢ aos Estados Unidos. Até a metade do século XVII, a Holanda, pais onde ocorre o prélo- go das sucessivas revolugdes liberais, concentra “o predominio” sobre “o co- mércio de escravos”’ : ainda “no inicio do século XVIII todas as suas posses estavam lastreadas sobre a escravidao ou sobre o trabalho forcado”™. Se por um lado é sinénimo de liberdade, por outro, a Holanda no século XVIII é si- nénimo de escravidao, ¢ de escravidio particularmente cruel. No Candide de Voltaire, € 0 encontro em Suriname (“de propriedade dos holandeses”) com um escravo negro, reduzido “em condi¢io horrivel” pelo patrio holandés, que aplica um duro golpe ao ingénuo otimismo do protagonista. O escravo relata assim as condicécs de trabalho as quais est4 submetido: “Quando trabalhamos nas usinas de agcar, ¢ a méquina de moer agarra um dedo, nos cortam a mao; quando tentamos fugir, nos cortam uma perna: tive os dois casos. Este € 0 prego para se comer agicar na Europa”™” Por sua vez, Condorcet, ao langar em 1781 a sua campanha abolicio- nista, ataca espccificamente a Inglaterra ¢ a Holanda, onde a instituigio da escravidao parece particularmente arraigada por causa da “corrup¢ao geral dessas nacdes””*. Convém citar o legalista americano (Jonathan Boucher) que vimos ironizar a paixdo pela liberdade exibida pclos proprietarios de escravos envolvidos na rebeliao. Ele acrescenta: “Estados despoticos tratam 0s seus escravos melhor do que os republicanos; os espanhéis eram methores patrdes, enquanto os holandeses eram os piores” O primeiro pais a entrar no caminho do liberalismo € 0 pais que revela um apego particularmente ferrenho ao instituto da escravidao. Pelo que se Jennings, 2003, p. 24. * Davis, 1986, p.75. © Hill, 1977, p. 175. Drescher, 1999, p. 2 ™ Voltaire, 1982, p. oa cap, XIX), % Condorcet, 1968, vol. VII, p. 135. ™ Boucher, cit. in Zimmer, 1978, p. 297. O que é 0 liberalismo? 29 sabe, sio os colonos de origem holandesa os que opdem a mais dura resis- téncia as primeiras medidas abolicionistas, aquelas introduzidas no Norte dos Estados Unidos no decorrer c na esteira da revolugao”*. No tocante 4 Holan- da propriamente dita, cm 1791, os Estados gerais declaram formalmente que 0 comércio dos negros € essencial para o desenvolvimento da prosperidade ¢ do comércio nas colénias. Sempre nesse mesmo periodo, diferenciando-se nitidamente da Inglaterra, a Holanda reconhece aos proprietarios de escravos © direito de transportar ¢ de depositar a sua mercadoria humana na patria- mae antes de voltar as colénias. Enfim, deve-se lembrar que a Holanda abole a escravidio nas suas colénias apenas em 1863, quando jé a Confederacao se- cessionista ¢ escravista do Sul dos Estados Unidos caminha para a derrota”. 5. Irlandeses, indios ¢ habitantes de Java A rebeliio dos colonos ingleses na América vem acompanhada de uma outra grande polémica. Por muito tempo, tanto a sorte dos negros quanto a dos indios nao haviam sequer arranhado a autoconsciéncia orgulhosa dos ingleses nas duas margens do Atlantico de serem 0 povo eleito da liberdade. Em ambos 0s casos, evocava-se Locke para 0 qual, como veremos, os nativos do Novo Mundo esto muito perto das “bestas selvagens”. Mas, ao emergir © conflito entre colénias e patria-mae, a troca de acusagdes estende-se tam- bém ao problema da relaco com os peles-vermelhas. A Inglaterra - procla- ma Paine em 1776 - é “a poténcia barbara e infernal que aticou os negros € 0s indios a nos destruir”, ou seja, a “cortar a garganta dos homens livres na América”. Analogamente, a Declaragao de independéncia acusa George III no s6 de ter “fomentado dentro dos nossos territérios a revolta” dos escra- vos negros, mas também de ter “procurado aticar os habitantes das nossas fronteiras, os cruéis ¢ selvagens indios, cuja maneira de guerrear ¢, como se sabe, um massacre indiscriminado, sem distingio de idade, de sexo ou de condi¢éo”. Em 1812, em ocasiao de uma nova guerra entre os dois lados do Atlantico, Madison condena a Inglaterra pelo fato de atingir com a sua frota indiscriminadamente a populagao civil sem poupar mulheres e criangas, por- tanto, com uma conduta semelhante a dos “selvagens” peles- vermelhas’. De cimplices dos barbaros os ingleses se tornam eles mesmos barbaros. ilversmit, 1969, p. 165, 182. 7 Drescher, 1999, p. 211, 218, 196. ** Paine, 1995, p. 35, 137. > Commager (org. ), 1963, vol. 1, p. 208-209. 30. «= CONTRA-HISTORIA_ DO LIBERALISMO Na verdade, a polémica havia comeyado bem antes, apés a Proclamagao da Coroa que, em 1763, limitava a expansio dos brancos a oeste dos mon- tes Allegheny. Tratava-se de uma medida que no agradava aos colonos ¢ a George Washington, que a considera “um expediente temporario”, destinado a ser rapidamente superado, mas que ndo se deve levar em consideragio nem no imediato: estapido € quem “deixa a presente oportunidade para ir 4 caga de uma boa terra””®, Desses “estipidos” nao faz parte o futuro presidente dos Estados Unidos. Nesta nova roupagem, se por um lado nos discursos Oficiais cle declara que quer levar “as béngaos da civilizago” € ae “felicidade” para uma “raca nao iluminada” (an unenlightened race of men)”, por outro lado, na correspondéncia particular assimila os “selvagens” peles-vermelhas a “animais selvagens da floresta” (Wild Beasts of the Forest). Sendo assim, absurda ¢ até imoral havia sido a pretensio da Coroa inglesa em bloquear a ulterior expansdo dos colonos, a qual ao contrario - proclama uma carta de 1783 — obrigara “o selvagem tal como 0 lobo a se retirar” Neste sentido, ainda mais drastico se revela Franklin que na sua Astobio- Srafia observa: “Se faz parte dos designios da Providéncia extirpar esses sel- vagens para abrir espaco aos cultivadores da terra, parece-me oportuno que o rum seja 0 instrumento apropriado. Ele ja aniquilou todas as tribos que antes habitavam a costa””. A dizimacio ou aniquilamento de um povo que adora “o Deménio”™ faz parte de uma espécie de plano eugenético de inspiragio divina. A desumanizagio dos peles-vermelhas é accita também por aqueles que na Inglaterra se pronunciam a favor da conciliagao dos rebeldes. A ten- tativa da Coroa de bloquear a marcha expansionista dos colonos aparece aos olhos de Burke absurda ¢ sacrilega, pelo fato de estar “voltada a proibir como crime ¢ reprimir como mal o mandamento e a béngao da Providéncia: ‘Cres- cei ¢ multiplicai-vos™. Trata-se, em ultima anilise, de um infeliz “esforco voltado a conservar como toca de bestas ferozes ( wild beasts) aquela terra que Deus tem declaradamente concedido aos filhos do homem”” Os que levantam alguma resisténcia a esse processo de desumanizacao sio, obviamente, aqueles que nos dois lados do Atlantico apéiam ou justi- ™ Delanoé, Rostkowski, 1991, p. 39 (carta de Washington ao amigo W. Crawford, 21 de setembro de 1767), Washington, 1988, p. 475-76 (mensagem presidencial de 25 de outubro de 1791). 7 Delanoé, Rostkowski, 1991, p. 50-52 (carta de Washington a J. Duane, 7 de setembro de 1783). ™ Franklin, 1987, p. 1422. © Franklin, 1987, p. 98. "\ Burke, cit. In Zimmer, 1978, p. 294-95. I. O que é 0 liberalismo? 31 ficam a politica da Coroa de “conciliacao” nao tanto com os colonos, mas com os indios. Nesse contexto, cabe uma mencio particular a figura do sim- patico legalista americano que j4 encontramos na roupagem de critico do singular zelo libertario exibido pelos “mais duros e cruéis patrdes de escra- vos”, Para os mesmos ambientes leva a crueldade contra os indios: as vezes, é com verdadeiro fervor religioso que sio assassinados ¢ se procura 0 seu escalpo; cles se tornam até 0 alvo dos que se exercitam no tiro. Sim, sdo es- tigmatizados como selvagens. Mas - objeta Jonathan Boucher ~ ainda mais selvagens “figuravam os nossos antepassados a Juilio César ou a Agricola”™ Vimos Paine acusar 0 governo de Londres de buscar a alianga dos cortado- res de garganta indios. Na verdade — alerta um comandante inglés em 1783 ~ 0s préprios colonos jé vitoriosos “se preparam para cortar a garganta dos indios”. O comportamento dos vencedores — acrescenta um outro oficial = é “humanamente chocante””. Trata-se de uma polémica que dura por muito tempo. No final do século XIX, um historiador descendente de uma familia de legalistas refugiado no Canada assim argumenta: seré que os colo- nos rebeldes pensavam em serem descendentes dos que haviam chegado na América para escapar da intolerancia ¢ serem fiéis 4 causa da liberdade? Na verdade, revertendo a politica da Coroa inglesa que visava 4 conversio, os puritanos deram inicio ao massacre dos peles-vermelhas, identificados com os “canaanitas e amalecitas”, fadados ao exterminio nas paginas do Antigo Testamento. Trata-se de “uma das p4ginas mais sombrias da histéria colonial inglés”, as quais se juntam também aquelas, ainda mais repugnantes, escritas durante a revolugo americana, quando os colonos rebeldes se dedicam ao “exterminio das seis nagdes” peles-vermelhas, fiéis 8 Inglaterra: “Com uma ordem que, acreditamos, nao tem precedentes nos anais de uma nacio ci o Congresso determinou a completa destruigao desse povo enquanto nacao [...J, incluindo mulheres e criangas' Pelo menos na sua correspondéncia privada, Jefferson nao tem dificulda- de em reconhecer o horror da guerra contra os fndios. Mas, aos seus olhos, responsdvel disso tudo é o proprio governo de Londres que atigou essas “tri- bos” selvagens ¢ sanguinérias: € uma situag3o que “nos obriga agora a per- segui-las ¢ exterminé-las ou a empurré-las para novos espacos fora do nosso alcance”. Resta o fato de que “o tratamento brutal, ¢ até o exterminio desta raca na nossa América” devem ser postos na conta da Inglaterra; assim como * Boucher, cit. in Zimmer, 1978, p. 294-95 ™ Calloway, 1995, p. 278, 272. ™ Ryerson, 1970, vol. I, p. 297-98 nota; vol. Il, p. 100. 32 CONTRA-HISTORIA DO BERALISMO a sorte andloga dos “povos asidticos da mesma cor” (dos peles-vermelhas) € dos irlandeses (que para os ingleses, com os quais dividem a “cor” da pele, deveriam ser “irmaos”) deve ser sempre atribuida a uma politica que semeia destruig’o ¢ morte “onde a cupidez anglo-mercantil pode encontrar o me- nor interesse para inundar a terra de sangue humano”. Jefferson nio esta errado quando cstabelece uma comparacao entre o tratamento sofrido pelos peles-vermelhas ¢ o reservado aos irlandescs. Assim como, conforme a acusagio dos legalistas, puritanos ¢ colonos rebeldes as- similam os indios aos “amalecitas”, também aos “amalecitas” destinados ao exterminio sao j4 comparados os irlandeses, desta vez, pelos conquistadores ingleses™. A colonizagio da Irlanda, com todos os seus horrores, € 0 mode- lo da sucessiva colonizacio da América do Norte”. Se o Império britanico arrasa em primeiro lugar irlandeses ¢ negros™, indios e negros so as vitimas principais do expansionismo territorial ¢ comercial, inicialmente das colénias inglesas na América € depois dos Estados Unidos. Tal como pela questio dos negros, também no caso dos peles-vermelhas a troca de acusagdes acaba por se configurar como uma reciproca desmi ficagio: nao h4 diivida de que, juntamente com a escravidio € 0 tréfico dos negros, a ascensio dos dois paises liberais nas duas margens do Atlantico significou um processo de desapropriacio sistemitica e de praticas genocidas, inicialmente contra os irlandeses ¢ depois contra os indios. Andlogas consideragdes podem ser feitas também em relacao 4 Holanda. Um alto funcionirio inglés, sir Thomas Stamford Raffles, que por algum tempo, na época das guerras napolednicas, é vice-governador de Java, decla- ra que a administracao anterior “mostra um quadro insuperdvel de traigdes, corrupsdes, assassinatos ¢ infimias”. E evidente que nessa avaliagio desem- penha um papel determinante a rivalidade colonial. Marx o menciona, mas pelo resto associa na sua condenagao uma “administracao colonial holande- sa” ¢ inglesa. No que diz respeito mais propriamente a Holanda: “Mais caracteristico de todos ¢ o seu sistema de roubo de homens a Celebes para obter escravos para Java {...). A juventude roubada era escondida nas prisdes secretas de Celebes até estar pronta para ser enviada para os navios negreiros. Uma relacio oficial diz: “Sé esta cidade de Macassar por exemplo est4 cheia de prisoes se- ~® Jefferson, 1984, p. 1312-13 (carta a Alexander von Humboldt, 6 de dezembro de 1813). % Marx, Engels, 1955-89, vol. XVI, p. 447. ” Fredrickson, 1982, p. 14-16. ™ Hill, 1977, p. 185. 1. que é 0 liberalismo? 33 cretas, uma mais horrivel do que a outra, repletas de infelizes, vitimas da cupidez¢ da tirania, amarrados com correntes, arrancados pela violéncia as familias” [...]. Onde os holandeses punham o pé, se seguiam a devastacio ¢ o despovoamento. Banjuwan- gi, provincia de Java, contabilizava em 1750 mais de oitenta mil habitantes, em 1811 havia s6 ito mil. Eis 0 doux commerce!”” Novamente: processos de escravidao ¢ praticas genocidas entrelagam-se fortemente. 6. Grotius, Locke e os Pais Fundadores: uma leitura comparada No inicio do século XVIII, Daniel Defoe salienta a fraternidade ideo- légica entre o pais derivado da Revolugao Gloriosa ¢ o pais que um século antes rebelara-se a Filipe Il ¢ conquistara a “liberdade” ¢ a prosperidade “gracas a0 Céu ¢ a assisténcia da Inglaterra””. Na metade do século XIX, a Franca envolvida com um intermindvel ciclo revoluciondrio ¢ com o bo- napartismo os autores liberais gostam de contrapor o triunfo ordenado da liberdade ocorrido na Holanda, na Inglaterra ¢ na América”. Entao, pode ser ttil fazer uma suméria andlise comparada dos textos ¢ dos autores nos quais encontram expressio ¢ consagracao tedrica as trés revolugdes liberais desses trés paises. Em relacio a primeira nao podemos deixar de mencionar Hugo Grotius, que a revolta contra o absolutismo de Filipe II ¢ ao pais dela derivado dedica dois dos seus livros mais significativos (Annales et Historiae de Rebus Belgicis ¢ De antiquitate Reipublicae Batavicae). A Holanda liberal se langa logo na expansio ultramar, ¢ € interessante observar a mancira como Grotius se co- loca diante dos povos coloniais. Depois de ter condenado o cardter supersti- cioso ¢ idolatrico do “culto religioso”, proprio do paganismo, ele acrescenta: “E se ele é dedicado a um espirito mau, é falso ¢ mentiroso ¢ significa um crime de rebelido; uma vez que a honra devida ao Rei nao apenas Ihe sub- traida, mas é inclusive transferida para um trinsfuga e inimigo”. Assim, alveja 08 povos com um “tipo de culto que nao convém a uma inteligéncia boa ¢ honesta, cujo tributo é feito por meio de sacrificios humanos, corridas de homens nus nos templos, jogos ¢ © Marx, Engels, 1955-89, vol. XXIII, p. 779-80; cf. Sombart, 1987, vol. I, t. 2, p. 709. ** Defoe, 1982, p. 69. *! Laboulaye, 1863, p. VIII; Guizor, 1850, p. 41-42. 34 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO dangas carregadas de obscenidades, que até hoje se observam nos povos da América eda Africa ainda nas trevas do paganismo”. Os povos atingidos pela expansio colonial da Europa sio assim culpa- dos de rebelido contra Deus ¢ devem ser punidos por esse crime: “Estapida é a convicgio pela qual se imagina que 0 Deus bondoso nio vai se vingar disso, pois, isso seria contrério 4 bondade. De fato, a cleméncia para ser justa tem seus limites, ¢ onde as maldades passam da medida, a justiga emana quase ne- cessariamente a pena”. Contra povos que, ao se manchar “dos delitos que se cometem contra Deus” e ao violar as normas mais elementares do direito natural, se configu- ram como “barbaros” ou como “animais selvagens mais do que homens”, a guerra é “natural”, independentemente das fronteiras do Estado e das dis- tincias geogréficas; sim, “a guerra mais justa € aquela que se trava contra as bestas ferozes , depois, a que se faz contra homens semelhantes as bestas ferozes [homines belluis similes|” (De jure belli ac pacis libri tres, de agora em diante JBP, II, XX, §§ 40, 44). E a ideologia que preside a conquista do Novo Mundo. O pecado de idolatria fora o primeiro dos argumentos que haviam levado Sepiilveda a considerar “justas” a guerra contra os indios ¢ a sua escravizagio’. E em Grotius, juntamente com essa implicita justificago das praticas genocidas ja em ato, emerge a justificagao explicita e insistente da escravidao. Essa é, as vezes, a punigao de um comportamento delituoso. Mas, isso nao vale s6 para 0s individuos: “também os povos podem ser reduzidos a uma subjugacio publica para a punicao de um crime publico” (JBP, II, V, § 32). Além do fato de screm “rebeldes” contra o Rei do universo, os habitantes da América ¢ da Africa podem ser reduzidos a escravidio também por uma “guerra jus- ta” (bellum justum), conduzida por uma poténcia européia. Os prisionciros feitos no decorrer de um conflito armado, proclamado solenemente e “nas formas” que cabem a uma suprema autoridade de um Estado, sio legiti- mamente escravos (JBP I, III, § 4; III, III, § 4). E escravos legitimos sdo também os seus descendentes: que interesse teria diversamente o vencedor ‘em manter o derrotado em vida? Enquanto escravo de quem Ihe poupou a vida, o derrotado passa a fazer parte da propriedade do vencedor, ¢ essa pro- priedade pode ser transmitida por via hereditdria ou ser objeto de compra ¢ ® Grozio, 1973, p. 106-107. * Hanke, 1959, p. 41 1. O que é 0 liberalismo? 35 venda, exatamente como “a propriedade das coisas” (rerum dominium: JBP III, VIL, $§ 2, 5). Naturalmente, tudo isso n3o vale para “aquelas nagdes onde o direito de escravidao derivado da guerra nao vigora mais”, nio vale para os paises “cristos”, que se limitam a trocar seus prisioneiros (JBP III, XIV, § 9; VII, § 9). Eliminada dos conflitos intra-europeus, a escravidio por direito de guerra continua sendo uma realidade quando a Europa cristae civil enfrenta os po- vos coloniais, bérbaros ¢ pagios. Por outro lado, independentemente do seu comportamento concreto, nao se deve esquecer a ligio de um grande mestre: “Como disse Aristételes, ha homens naturalmente escravos, nascidos para serem servos, assim como h4 povos cuja natureza € saber melhor obedecer do que governar” (JBP I, III, § 8). E uma verdade confirmada também pelos textos sagrados: “o apéstolo Paulo” conclama individuos ¢ povos reduzidos eventualmente a escravidio “por uma causa legitima”, a suportar serenamen- te a sua condicao e a nao se subtrair nem com a rebelido nem com a fuga” BP, II, XXII, § 11). Conclusio: de um lado Grotius homenageia 0 “povo livre” (JBP, II, XVI, § 16), que na Holanda recorreu ao seu direito de resisténcia para se livrar do jugo de um principe despético (JBP, I, IV, § 11), por outro lado, nao tem dificuldade em justificar a escravidao ¢ até aquela espécie de cacga as “bestas selvagens” em ato na América contra os peles-vermelhas. Passemos, agora, 4 Revolugao Gloriosa ¢ a Locke. Os Dois tratados so- bre 0 governo podem ser considerados momentos essenciais da preparagio ¢ consagracio ideolégica desse acontecimento que marca o nascimento da Inglaterra liberal. Estamos na presenga de textos perpassados pelo pathos da liberdade, pela condenagio do poder absoluto, pelo apelo a se insurgir contra aqueles infelizes que quisessem privar o homem da sua liberdade ¢ reduzi-lo a escravidio. Mas, de vez em quando, no ambito dessa celebragao da liberda- de, se abrem fendas assustadoras, pelas quais passa na realidade a legitimagio da escravidio nas colénias. Para confirmar mais esse instituto, Grotius evoca © exemplo dos Germanos que, conforme o testemunho de Ticito, “jogavam sua liberdade com um tiltimo lance de dados” (JBP, II, V, § 27). Aos olhos de Locke, os “prisioneiros capturados no decorrer de uma guerra legitima” (por parte dos vencedores) chegaram “por assim dizer a jogar (forfeited) a sua vida e com isso a sua liberdade”. Eles sio escravos, “pela lei da natureza sujeitos a0 dominio absoluto € ao incondicionado poder dos seus donos” (TT, II, 85). Até agora estamos considerando os negros deportados da Africa. Cer- tamente, a sorte reservada aos indios no é melhor. Além do comércio dos 36 __CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO negros, como acionista da Royal African Company, o filésofo inglés esta in- teressado na marcha expansionista dos colonos brancos enquanto secretario (cm 1673-74) do Council of Trade and Plantations. Foi justamente obser- vado: “0 fato de tantos exemplos citados por Locke no Segundo Tratado remeterem a ‘América mostra que a sua intengio era a de fornecer aos colonos, para os quais havia operado de tantas maneiras, um poderoso argumento baseado sobre a lei natural mais do que sobre decretos legislativos para justificar as suas depredagdes”” Repetidamente 0 Segundo Tratado faz referéncia ao “indio selvagem” (wild Indian), que ronda “ameacador e fetal nas florestas da América” ou nas “florestas virgens ¢ incultos campos da América” (TT, II, 26, 92, 37). Ao ignorar o trabalho, o que s6 confere o direito de propriedade, ¢ ocupar uma terra “nao fecundada pelo trabalho” (II, 41), isto é, “amplos espagos que ficam inutilizados” (TT, II, 41, 45), ele habita em “territérios que nao pertencem a ninguém”, “in vacuis locis” (TT, II, 74, 121). Além do trabalho ¢ da propriedade privada, os indios ignoram também o dinheiro: de modo que cles resultam nao apenas alhcios & civilizagio, mas também nao “asso- ciados ao resto da humanidade” (TT, II, 45). Pelo seu proprio comporta- mento, tornam-se objeto de uma condenagao que nao deriva s6 dos homens: sem diivida, “Deus prescreve o trabalho” ¢ a propriedade privada, nao pode certamente querer que o mundo por ele criado permanega “para sempre in- forme ¢ inculto” (TT, II, 35 34). Quando, depois, tenta impedir a marcha da civilizac3o, opondo-se com a violéncia a transformagao mediante o trabalho das terras incultas por ele ocu- padas, 0 indio, juntamente com todo criminal, ¢ bem assimildvel a “bestas selvagens com as quais o homem nao pode viver em sociedade ou seguranga” €, portanto, “poder ser destruido como um ledo ou um tigre”. Locke nao cansa de insistir sobre o dircito que cada homem tem de aniquilar os que sio. reduzidos ao nivel de “bestas de caca” ( Beasts of Prey), de “bestas selvagens” (Savage Beasts) (TT, 11, 11, 16), a0 estado de “uma besta selvagem ¢ voraz (savage ravenous Beast), perigosa a existéncia alheia” (TT, II, 181). Trata-se de expressécs que lembram as utilizadas por Grotius a propé- sito dos povos barbaros ¢ pagaos em geral e por Washington em relacao aos indios. Mas, antes de passar aos Pais Fundadores ¢ aos documentos solenes que marcam 0 nascimento dos Estados Unidos, convém examinar uma outra Pagden, 1998, p. 43. LO que é 0 liberalismo? 7 macroscépica cléusula de exclusdo que caracteriza a celebracao da liberdade de Locke. Os “papistas” - declara o Ensaio sobre a tolerdncia ~ sio “como serpentes, nunca \ vai se conseguir com um tratamento gentil que abram mao de seu veneno”™. Mais do que aos catélicos ingleses, uma declaracio tio dura é formulada tendo os olhos voltados para a Irlanda, onde, nesses anos, quando nao sao punidos com penalidades mais severas ou com a morte, os padres nao registrados sio marcados com fogo”. Dos irlandeses, em deses- perada endémica revolta contra a espoliagdo ¢ a opressio impostas pelos co- lonos anglicanos, Locke fala em termos de desprezo como de uma populacio de bandidos (TT, I, 137). Depois, reafirma: “Qs homens [...] estio prontos a ter compaixio de quem sofre, € a considerar pura aquela religido, e sinceros aqueles seus fikis que tém condigdes de superar aque- la perscguigio. Mas cu acho que as coisas estejam de mancira bem diferente no caso dos catélicos, que sio menos suscetiveis do que os outros de serem compreendidos enquanto nao recebem outro tratamento que nao seja a crueldade dos seus principes ¢ das suas praticas que notoriamente Ihes dedicam” © alerta contra o sentimento da “compaixdo” esclarece que aqui, em primeiro lugar, estamos diante da Irlanda. Locke nao parece ter objecio al- guma em relacdo a impiedosa repressio que se abate sobre os irlandeses, cuja sorte leva a pensar na que acontece no outro lado do Atlintico reservada aos peles-vermelhas. Podemos assim passar a examinar os documentos que presidem a ter- ceira revolugao liberal ¢ a fundagdo dos Estados Unidos. A primeira vista a Declaragao de independéncia e a Constituiggo de 1787 parecem inspiradas € permeadas por um pathos universal de liberdade: “Todos os homens fo- ram criados iguais” - € 0 grito solene do primeiro documento; é necessério “salvaguardar para nés mesmos ¢ para os nossos descendentes o dom da liberdade” - é a declaragio n3o menos solene do segundo. Mas, basta uma leitura um pouco mais atenta para esbarrar, j4 no artigo I da Constitui¢ao, na contraposig3o entre “homens livres” € “resto da populagi0” (other persons). Sim, trata-se dos escravos, cujo ntimero, reduzido a trés quintos, deve ser levado em consideragao para ser somado ao das “pessoas livres” (free persons) e calcular assim o ntimero de deputados na Camara dos Representantes, a0 qual tém direito os estados em que existe a instituigao da escravidao. * Locke, 1993b, p. 202 (= Locke, 1977, p. 111). ™ Lecky, 1883-88, vol. I, p. 296-97. * Locke, 1993b, p. 203 (= Locke, 1977, p. 112). 38 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO Asa situacao se refere, com diferentes eufemismos, todo um conjunto de outros artigos: “Pessoa alguma submetida a prestagdes de servigo ou de trabalho em um dos es- tados, conforme as leis nele vigentes, e que tenha se refugiado em um outro estado, poderd, em virtude de qualquer lei ou regulamento aqui em vigor, estar isenta de tais prestacées de servico ou de trabalho; mas, a pedido do interessado, seré devolvida & parte cujas prestagdes sio devidas”. Se antes ficava ocultado entre 0 “resto da populacao” (0 nao constituido de “pessoas livres”), agora a relac3o de escravido é pudicamente assumida na categoria geral de “prestagdes de servigo ¢ de trabalho”, que todo Estado, em base aos principios do auto-governo, tem o direito de regular como me- lhor acredita, enquanto a obrigacao para cada Estado de devolver 0 escravo fugitivo se configura como obrigacao moral para garantir ao legitimo pro- prietario as “prestacdes” que lhe “so devidas”. Com uma ulterior sutileza lingiifstica, sempre devida ao mesmo pudor, 0 comércio dos escravos negros se torna “a imigra¢ao ou a introducao daquelas pessoas que os estados atu- almente existentes podem achar conveniente accitar”: mas, esse “nao poderd ser proibido pelo Congresso antes de 1808” e, antes daquela data, poder ser submetido apenas a uma taxagdo muito modesta (“dez délares por pessoa” ou por escravo). De modo analogamente eliptico se expressam os artigos que chamam a Unido no seu conjunto a “suprimir as insurreigdes” ou a “vio- lencia nas nossas fronteiras” (domestic violence), isto é, em primeiro lugar, a possivel ou temida revolta dos escravos neste ou naquele Estado” Embora removido em virtude de uma censura lingiifstica, o instituto da escravidio revela uma presenga que permeia a Constituigio americana. Nao falta sequer na Declaracao de independéncia, onde a acusagao contra George III de ter feito apelo aos escravos negros se configura como a acusa¢ao j4 vista de ter “fomentado revoltas em nossas fronteiras”. Na passagem de Grotius a Locke e desse aos documentos constitutivos da revolugdo americana, assistimos a um fenémeno sobre o qual vale a pena refletir: mesmo considerada legitima nos trés casos, o instituto da escravidio é teorizado ¢ afirmado sem alguma reticéncia apenas pelo autor holandés que vive entre 1500 e 1600. Em Locke, ao contrario, pelo menos nos Dois tratados sobre 0 governo, escritos ¢ publicados na véspera ¢ A conclusio da Revolugao Gloriosa, a legitimagao da escravidao tende a ser confinada nas "™ Cf. Finkelman, 1996, p. 3-5. I. O que é 0 liberalismo? 39 dobras do discurso de celebracao da liberdade inglesa. A reticéncia alcanga © seu dpice nos documentos que consagram a fundagao dos Estados Unidos como o capitulo mais glorioso da histéria da liberdade. As coisas sao diferentes no tocante a relacao com os indios. Seja Grotius como Locke ¢ Washington falam deles como de “bestas selvagens”; com maior cautela verbal se apresenta um documento como a Declaracio de in- dependéncia, que se dirige a opiniao publica internacional ¢ que, como sabe- mos, entre os crimes mais graves de George III indica o de ter aticado contra os colonos rebeldes os “cruéis indios selvagens”. Resta o fato de que nas trés revolugdes liberais, rcivindicacio da liberdade e justificagao da escravidio ¢ dizimagao (ou aniquilagao) dos barbaros, se entrelacam estrcitamente. 7. Historicismo vulgar ¢ a remogio do paradoxo do liberalismo Conclusio: os paises protagonistas das trés grandes revolucées liberais s40 ao mesmo tempo os protagonistas de dois tragicos capitulos da histéria moderna (¢ contemporanea). Mas, entao, pode ser considerada ainda valida a habitual representagao em base 4 qual o que caracteriza a tradi¢ao libe- ral é 0 amor A liberdade enquanto tal? Voltemos & pergunta inicial: 0 que € 0 liberalismo? Ao verificar 0 desaparecimento das anteriores, presumidas certezas, vem-nos 4 mente um grande dito: “O que é notério, justamente porque é notério, nao é conhecido. No processo do conhecimento, 0 modo mais comum de enganar a si mesmos ¢ aos outros € pressupor algo notério € accité-lo como tal”. Colocando em crise uma difusa apologética, resulta inquietante o entre- lagamento paradoxal com 0 qual nos deparamos ao reconstruir historicamen- te 0s inicios do liberalismo. Compreende-se, entdo, a tendéncia a remosio. No fundo, é assim que tém feito Locke ¢ acima de tudo os colonos america- nos rebeldes, que gostavam de estender um véu de siléncio, mais ou menos espesso, sobre o instituto da escravidio. A esse resultado € possivel chegar também de outra forma. De acordo com Hannah Arendt, o que caracteriza a revolugdo americana € 0 projeto de realizar uma ordem politica fundada sobre a liberdade, enquanto a per- sisténcia da escravidao negra remete a uma tradicao cultural difusa de modo homogénco nos dois lados do Atlantico: Hegel, 1969-79, vol. III, p. 35. 40 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO “Esta indiferenga, dificil de compreender para nés, nio era tipica dos america- nos € nao pode ser debitada nem a uma particular dureza de coragao nem a interesses de classe [...]. Para 0s europeus, a escravidio nio fazia parte da questio social, como no fazia parte para os americanos” Na realidade, na Europa do tempo, o mal-estar em relacio a escravidio € tio fortemente sentido que, nio poucas vezes, autores proeminentes pro- cedem a uma nitida contraposi¢ao entre os dois lados do Atlantico. Leia-se Condorcet: “O americano esquece que os negros so homens; ele nao estabelece com eles nenhuma relagdo moral; para ele os negros no passam de objeto de lucro; excesso do seu estiipido desprezo por essa espécic infeliz ¢ tal que, a0 voltar para a Europa, ele se indigna ao vé-los vestidos como homens e pastos ao seu lado” “O americano” aqui objeto de condenagio € 0 colono do outro lado do Atlintico, seja francés como inglés. Por sua vez, Miller em 1771 denuncia “aquela perturbadora barbarie 4 qual estao, frequentemente, expostos os ne- gros das nossas colénias”. Felizmente, a pratica da escravidio foi abolida de forma tao generalizada na Europa”; aonde subsiste, do outro lado do Atlin- tico, aquela pritica envenena a inteira sociedade: de crueldade e de sadis- mo “tornam-se protagonistas também pessoas do sexo fragil, em uma época que se destaca por humanidade ¢ educacao”'”. E essa a opinido também de Condorcet, que faz. notar como “a jovem americana assiste” ¢, 4s vezes, até “preside” aos “suplicios” cruéis aplicados aos escravos negros'”. A tese formulada por Arendt pode ser até invertida. No final do século XVIII 0 instituto da escravidio comega a ser nao apresentavel nos saldes em que circulam as idéias dos philosophes e nas igrejas influenciadas pelos quacres ou por outros setores abolicionistas do cristianismo. No mesmo momento em que a Convencio de Filadélfia promulga a Constituig3o que sanciona a escravidao-mercadoria sobre base racial, um defensor francés deste instituto constata amargamente o seu isolamento: Este império tao poderoso da opinido piiblica [...] oferece j4 0 seu apoio aos que na Franga c na Inglaterra atacam a escravidio dos negros ¢ visam & sua abolicdo; "00 Arendt, 1983, p. 74. 191 Condorcet, 1968, vol. III, p. 647-48. ‘ Millar, 1986, p. 258, 261 (= Millar, 1989, p. 219-20) "™ Condorcet, 1968, vol. I11, p. 648. a 1.0 que 0 liberalismo? 41 as mais, odiosas interpretagdes sio reservadas aos que ousassem ter uma opinio di- ferente'™. Alguns anos mais tarde, um outro defensor francés da escravidao lamenta © fato de que a “negrofilia” tenha se tornado “uma extravagancia na moda”, até 0 ponto de cancelar o senso da distincia das duas racas: “O sangue aftica- no corre até abundantemente nas veias das préprias parisicnses”" Se partirmos do pressuposto de uma geral “indiferenga”, naqueles anos, pela sorte dos escravos negros, nada se compreende da revoluao americana. O “ultimo grande fildsofo” a justificar a escravidio, Locke, nao é contestado, ¢ é interessante notar que ele ¢ objeto de acusagao juntamente com a “atual rebelido americana” da qual considerado o inspirador'®, Em ambos os casos, a celebragio de uma liberdade de tendéncia republicana se entrelaga com a legitimagio do instituto da escravidio. Apés ter citado as diversas passagens do filosofo que nao deixam divida a tal propésito, Josiah Tucker comenta: “Esta é a linguagem do humano senhor Locke, o grande e glorioso defensor dos direitos naturais ¢ das liberdades da humanidade”; cis “os seus reais sentimentos em relacao a escravidio”"”. De mancira andloga, o legalis- ta americano que j4 conhecemos, isto € Boucher, condena conjuntamente a sccessao republicana ¢ a pretensao de Locke de conferir a “cada homem livre da Carolina” um poder absoluto ¢ incondicionado sobre os escravos de sua propriedade'™. Se os patriotas ingleses e os legalistas contrérios 4 secessio ironizam a respeito da bandcira agitada pelos proprietérios de escravos, os colonos re- beldes reagem reivindicando nao a legitimidade da servidao dos negros, mas, ao contrério, ressaltando 0 envolvimento macigo € as responsabilidades pri- vilegiadas da Coroa inglesa no trifico e no comércio de carne humana. 6 claro, o instituto da escravidio esta j4 amplamente deslegitimado. Explicam- se assim as interdi¢ées lingiiisticas que caracterizam a Constitui¢ao do novo Estado. Como observa um delegado 4 Convencio de Filadélfia, os seus cole- gas “procuravam ansiosamente evitar de introduzir expressdes que poderiam resultar odiosas aos ouvidos dos americanos”, mas, “eram intencionados a inserir no seu sistema aquelas coisas que as expresses indicavam”'”. O fato é 1% Malouet, 1788, p. 152. ‘* Baudry des Loziéres, 1802, p. 48, 156. ‘= Tucker, 1993-96, vol. V, p. 53. © Tucker, 1993-96, vol. V, p. 103-104. “ Boucher, cit. in Zimmer, 1978, p. 296. '™ Foner, 2000, p. 60. 42 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO que, desde o inicio do debate sobre o novo ordenamento constitucional — faz otar uma outra testemunha -, “havia vergonha de usar 0 termo ‘escravos’ que assim cra substituido por uma circunlocugao”""”. Quem mostra maior ousadia - observa Condorcet em 1781 — sio os “proprictarios” de escravos: esses so “guiados por uma falsa consciéncia [fausse conscience]”, que os tor- na impermedveis aos “protestos dos defensores da humanidade” ¢ “os leva a agir nao contra os préprios interesses, mas em sua vantagem” Como se vé, apesar da opiniao contriria de Arendt, os “interesses de classe”, em primciro lugar dos que possuiam extensas plantaées ¢ um ni- mero relevante de escravos, jogam um papel importante, que nao escapa aos observadores do tempo. O fato é que Arendt em dltima andlise acaba por identificar-se com 0 ponto de vista dos colonos rebeldes, que mantinham a boa consciéncia de serem campedes da causa da liberdade, removendo o fato macroscépico da escravidio mediante os seus engenhosos cufemismos: no lugar desses cufemismos entra agora a explicagao “historicista”. 8. Expansio colonial e renascimento da escravidio: as posi¢ées de Bodin, Grotius e Locke Aabordagem “historicista”, claramente desviante em relacio 4 revolugao americana, pode ter alguma utilidade para esclarecer as razdes do entrelaca- mento entre liberdade ¢ opressio que se manifestam ja nas anteriores revolu- des liberais? Embora contemporaneos entre 1500 ¢ 1600, Hugo Grotius de um lado e Jean Bodin de outro expressam posicdes diretamente contrapostas sobre o tema que nos interessa. Se o primeiro justifica a escravido evocando tanto a autoridade da Biblia como de Aristételes, o segundo contesta os dois argumentos. Apés observar que no mundo hebraico s6 os gentis podiam ser submetidos a escravidao perpétua e que os cristios ¢ os islamicos seguem normas e costumes andlogos, Bodin conclui: “Os povos das trés religides cortaram pela metade a lei de Deus relativa 4 escravidio”, como se a proibi- 40 deste horrivel instituto fosse referida sé aos consangiiincos € nao a toda a humanidade. Se fosse possivel estabelecer uma distin¢io no ambito das trés religiées monoteistas, essa seria em vantagem do islamismo, que soube expandir-se gracas a uma corajosa politica de emancipacio' "Finkelman, 1996, p. 3. ™* Condorcet, 1968, vol. VII, p. 126. ™ Bodin, 1988, vol I, p. 257-59 (livro I, cap. 5). 7 1.0 que é 0 liberalismo? 43 repele também a tese de Aristételes, retomada e até radicalizada por Grotius, pela qual haveria homens ¢ povos escravos por natureza. Para confirmar isso, freqtientemente se menciona o fato da difusio universal no tempo ¢ no espaso do instituto da escravidao; mas — objeta o autor francés — nao menos universalmente difusas s4o as revoltas dos escravos: “Que a escravidio nao teria durado muito tempo se fosse algo contra a natu- reza, é um discurso vilido para as coisas naturais, que seguem a ordem imutivel de Deus: mas, 0 homem, 20 qual foi dado a livre escolha do bem e do mal, transgride muitas vezes a proibigdo e escolhe o pior contra a lei de Deus; ¢ a decisio malvada tem tanto poder nele que chega a ter forga de lei ¢ adquire mais autoridade do que a prdpria natureza, de modo que nao hé impiedade nem maldade, por maior que seja, que, por isso, nao possa vir a ser considerada virtude e piedade” Embora por tanto tempo tenha se mostrado ¢ continua a aparecer como algo Sbvio ¢ geralmente aceito, © instituto da escravidao remete nao a na- tureza mas & histéria, mais exatamente a um capitulo de hist6ria deploravel € execrado, que & necessdrio se apressar a concluir uma vez para sempre. Nao tem sentido querer justificd-lo com base no direito de guerra (como faz também Grotius): “guardar para si os prisioneiros para ter proveito como 0 animais nao € caridade”'"“. Em conclusao: Grotius ¢ Bodin sio contem- porineos; se o primeiro, de qualquer modo, é expressio da Holanda liberal, © segundo é um teérico da monarquia absoluta, mas € 0 segundo, ¢ nio 0 primeiro, quem coloca em discussio o poder absoluto que o dono exerce sobre os seus escravos. Chegamos a um resultado andlogo quando, no lugar de Grotius, frente a Bodin colocamos Locke, que € posterior de algumas décadas. Se o liberal inglés, ao justificar a escravidao também com o olhar voltado para 0 passado, indica Espartaco como 0 responsivel de uma “agressio” contra a “proprie- dade” € o poder legitimo (TT, II, 196), de modo diferente se expressa Bo- din: “ Os romanos, que cram to grandes e poderosos [...], por quantas leis fizessem, nao conseguiram impedir a rebelido de sessenta mil escravos tendo Espartaco como chefe, que por trés vezes venceu o exército romano disposto em batalha”''*. No liberal inglés desaparece a forca universalista presente em Bodin, assim como nao ha mais sinal da condenagao incondicionada da escravidao que se encontra, ao contrario, no tedrico francés do absolutismo ™ Bodin, 1988, vol I, p. 239, 247, 240 (livro I, cap. 5). + Bodin, 1988, vol, I, p. 242 (livro I, cap. $) "5 Bodin, 1988, vol, 1, p. 247 (livro I, cap. 5) 44 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO monérquico: se levarmos em consideraao “quantas maldades ¢ crueldades abomindveis foram cometidas pelos senhores contra os escravos, podemos concluir que € pernicioso admitir a escravidao, ou, depois de abolida, rein- trodizi-la” Aqui fala-se de reintrodugio. De fato, Bodin delineia uma breve histé- ria da escravidao no mundo ou, mais propriamente, no Ocidente (¢ na area geografica por este dominada). Certamente, este instituto era muito vital lade grego-romana. No exemplo ¢ no modelo dessa espléndida civilizagao irdo inspirar-sc, ainda no curso da guerra de Secessao, os tedricos ¢ os defensores da causa do Sul para condenar o abolicionismo. Ao contra- rio, Bodin traca um quadro bastante realista da antigiiidade classica: esta era fundada sobre a servidio de um ntimero de homens nitidamente superior a0 dos cidadaos livres; portanto, vivia constantemente o pesadelo da revolta dos escravos ¢, para resolver 0 problema, nio hesitava em recorrer as medidas mais barbaras, como confirma © massacre em Esparta, “durante uma s6 noi- te”, de 30.000 hilotes'”. Em seguida, também pela influéncia do cristianis- mo, as coisas parecem mudar: “A Europa foi libertada da escravidao depois de 1250, aproximadamente”, mas, “observamos que hoje est voltando de novo”; com a expansio colonial esta “foi se renovando no mundo todo”; ha uma volta maciga dos escravos e no Portugal “h4 uma posse deles como de verdadeiros rebanhos de animais” E, portanto, longe de ser enfraquecido pelas tentativas de remogio do historicismo vulgar, 0 paradoxo que caracteriza a revolugio americana ¢ © primeiro liberalismo em geral nao apenas continua a subsistir, mas resulta ainda mais nitido: estamos na presenga de um movimento politico na contra- mio de autores que, ja séculos antes, haviam pronunciado uma condena¢io sem apelagio do instituto da escravidao. Se Locke, campedo da luta contra o absolutismo monarquico, justifica o poder absoluto do patrao branco sobre © escravo negro, quem condena tal poder é um te6rico do absolutismo mo- narquico, como é Bodin. Em conclusio, ao analisar a relagio que as trés revolugées liberais de- senvolvem com os negros de um lado e com os irlandeses, os indios, os nati- vos de outro, € uma distorgao partir do pressuposto de um tempo histérico homogéneo, que nao é atravessado por fraturas e corre de mancira lincar. Nitidamente anterior a Locke ¢ a Washington, e contemporanco a Grotius, é Bodin, 1988, vol, I, p. 261 (livro I, cap. 5) Bodin, 1988, vol, I, p. 247-48 (livro I, cap. 5). ™™ Bodin, 1988, vol, I, p. 253, 238, 260 (livro I, 1.0 que é0 liberalismo? 45 Montaigne, no qual encontramos uma memordvel reflexio autocritica sobre a expansio colonial do Ocidente que em vao se encontraria nos primeiros. Tal reflexdo pode até ser lida como uma critica antecipada da atitude assu- mida por Grotius, Locke ¢ Washington em relaao as populagdes extra-eu- ropéias: nestas ndo hd “nada de barbaro e de selvagem”; o fato & que “cada um chama de barbaro o que nao existe nos scus costumes”. Assume-se como modelo © proprio pais: “aqui temos sempre a religiio perfeita, o governo perfeito, o uso perfeito ¢ pleno de qualquer coisa”"”. Ainda antes, nos depa- ramos com Casas ¢ a sua critica dos argumentos com os quais se praticava a desumanizacio dos “barbaros” indios” argumentos que ao contrario con- tinuam presentes em Grotius, Locke e Washington. Deve-se acrescentar que a explicagao “historicista” revela-se inconsisten- te ndo apenas em relacdo aos povos coloniais. Se Fletcher, “republicano por principio”, como ele se define, membro do Parlamento escocés ¢ expoente do mundo politico liberal derivado da Revolucao Gloriosa, exige “fazer es- cravos todos os que sio incapazes de providenciar 4 sua sobrevivéncia”™”', Bodin condena a escravidio também para os “vagabundos ¢ os ociosos”"””. De acordo com uma observagio de um grande sociélogo, é “no periodo entre 1660 e 1760” (isto é, durante as décadas de ascensio do movimento liberal) que na Inglaterra se propaga — em relagdo aos assalariados ¢ desem- pregados - uma atitude de dureza sem precedentes, “a tal ponto que nao encontra paralelo nos nossos tempos, sendo no comportamento dos mais despreziveis colonizadores brancos contra os trabalhadores de cor”. Para compreender o caréter radical do paradoxo que estamos investigan- do, voltemos a Bodin. Este, em primciro lugar, atribui a “avidez dos merca- dores” a volta da escravidio no mundo e depois acrescenta: “Se os principes nao colocarem ordem, esse em breve estara cheio de escravos”'™", Nao ape- nas a escravidio nao é um residuo do passado € do atraso, mas 0 remédio para ela é apontado nao nas novas formas politicas ¢ sociais (de orientagio liberal) que esto emergindo em decorréncia do desenvolvimento econdmi- co € colonial, mas, a0 contrario, no poder monérquico: assim argumenta, dois séculos depois Smith. Por outro lado, ao recomendar a transformagio 4 Montaigne, 1996, p. 272 (livro I, cap. 31). + Casas, 1981, cap. XI 4 Marx, Engels, (1955-89), vol. XXIII, p. 750, nota 197. Bodin, 1988, vol. I, p. 262 T, cap. 5). "23 Tawney, 1975, p. 513; 4 mesma conclusio chegam Macpherson (1982, p. 260) ¢ Mor- gan (1995, p. 325) "4 Bodin, 1988, vol. I, p. 260 (livro I, cap. 5). 46 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO em escravos dos mendigos, Fletcher polemiza contra a Igreja, que, acusada de se opor a sua reintroducio no mundo moderno, favoreceria assim a pre- guica ¢ a libertinagem dos vagabundos"”*. Também nesse caso, 0 instituto da escravidio é percebido em contradic3o nao tanto com as novas forcas sociais ¢ politicas, mas com um poder de origem pré-moderna. Esta considerac3o pode ser utilizada também a propésito de Grotius, o qual desenvolve tam- bém uma polémica, se no contra o cristianismo enquanto tal, em todo caso contra as suas leituras em chave abolicionista: “Os apéstolos ¢ os antigos cinones prescrevem aos escravos de nio se subtrair 0s seus patrdes com a fuga; provavelmente € um preceito geral oposto ao erro dos que recusam qualquer submiss3o, seja privada seja piblica, como estando em con- tradigio com a liberdade crist&” (JBP, II, V, § 29). Os proprietérios que na Virginia do final do século XVII impedem o batismo dos escravos, com o objetivo de ndo comprometer o espirito de submissdo ¢ evitar o emergit neles de um sentimento de orgulho pelo fato de pertencerem 4 mesma comunidade religiosa dos patrdes, provocam as reacées tanto da Igreja como da Coroa’™: e mais uma vez podemos ver que so as forcas do Antigo Regime que desempenham uma acio de freio ¢ de contengao em relacdo ao novo representado pela escravidao racial. Em conclusio, nao adianta recorrer ao historicismo vulgar para “expli- car” ou remover o entrelacamento surpreendente entre liberdade ¢ opres- sido que caracteriza as trés revolucées liberais de que se fala aqui. O pa- radoxo continua de pé, ¢ esse espera por uma explicagao efetiva ¢ menos consolatéria. ™ Morgan, 1995, p. 325. % Morgan, 1995, p. 332. I Liberalismo e escravidao racial: um singular parto gémeo 1. Limitagao do poder ¢ emergir de um poder absoluto sem precedentes Mas para poder ser explicado, antes de mais nada, esse paradoxo deve ser exposto em toda a sua radicalizacao. A escravidao nao € algo que permaneca néo obstante o sucesso das trés revolucées liberais; ao contrario, ela conhece © seu maximo desenvolvimento em virtude desse sucesso: “O total da po- pulacao escrava nas Américas somava aproximadamente 330.000 no ano de 1700, chegou a quase trés milhées no ano de 1800, até alcancar o pico de mais de 6 milhdes nos anos °50 do séc. XIX"". O que contribui de forma decisiva para o crescimento desse instituto sinénimo de poder absoluto do homem sobre 0 homem é o mundo liberal. Na metade do séc. XVIII a Gra Bretanha é a que possui o maior niimero de escravos (878.000). Nao hé nada de dbvio nesse dado. Embora o seu império seja de longe o mais extenso, a Espanha segue a muita distancia. Quem ocupa o segundo lugar é o Portugal, que possui 700.000 escravos e que na verdade € uma espécie de semi-colénia da Gra Bretanha: boa parte do ouro extrafdo pelos escravos brasileiros acaba em Londres’. Portanto, nao hé diivida de que quem se destaca nesse campo pela sua posicado absolutamente eminente € 0 pais que esta ao mesmo tempo: na frente do movimento liberal e que conquistou o seu primado no comércio ¢ na posse dos escravos negros exatamente a partir da Revolugao Gloriosa. Por outro lado, é 0 proprio Pitt, o jovem, quem em sua intervencao em abril de 1792 na Camara dos Comuns sobre o tema da escravidio e do trafico dos negros, reconhece que “nenhuma nacdo na Europa [...] est tio profunda- mente mergulhada nessa culpa como a Gra Bretanha™. " Blackburn, 1997, p. 3. ? Blackburn, 1990, p. 5. ? Pitt, cit. in Thomas, 1997, p. 237. 48 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO E tem mais. Com algumas diferengas nas colénias espanholas ¢ portu- guesas sobrevive a “escravidao ancilar”, bem distinta da “escravidao sistémi- ca, ligada ao plantio ¢ 4 produgao das mercadorias”; ¢ é este segundo tipo de escravidao, que se afirma principalmente no séc. XVIII (a partir da revolug3o liberal de 1688-89) ¢ que predomina nitidamente nas colénias inglesas, que expressa mais plenamente a desumanizagao dos que nao passam de instru- mentos de trabalho ¢ mercadorias, objeto regular de compra ¢ venda no mercado’. Nem se trata da retomada da escravidao propria da antigiiidade classi- ca. Certamente, j4 em Roma a escravidio-mercadoria havia alcangado uma ampla difusio. Mesmo assim, 0 escravo podia ainda esperar que, se nao cle mesmo, os filhos ou os netos chegariam a conquistar a liberdade ¢ até uma posigo social eminente. Agora, no entanto, a sorte deles se configura sem- pre mais como uma jaula da qual é impossive! fugir. Na primeira metade do séc. XVIII, numcrosas colénias inglesas na América decretam normas que tornam cada vez mais dificil a emancipacao dos escravos’. Os quacres lamentam a introdugao do que para cles parece um sistema novo ¢ repugnante: a escraviddo a tempo determinado e as outras formas de trabalho mais ou menos scrvil, em vigor até entdo, tendem a dar lugar a ¢s- cravidio propriamente dita, a condenacdo perpétua c hereditaria de um povo inteiro, a0 qual € negada qualquer perspectiva de mudanga e melhoria, qual- quer esperanca de liberdade*, Até o ano de 1696, a Carolina do Sul declarava em um estatuto que nao podia prosperar “sem o trabalho ¢ as prestagdes de negros € outros escravos””. Ainda ndo estava bem definida a barreira que separa servidio ¢ escravidio, ¢ este ultimo instituto ainda no havia sc ma- nifestado em toda a sua dureza. Mas esta j4 em curso 0 processo que reduz cada vez mais 0 escravo 4 mercadoria ¢ afirma o cardter racial da condi¢io 4 qual ele esta submetido. Um abismo intransponivel separa os negros da populacao livre: leis cada vez mais rigorosas profbem e estigmatizam como crime as relagdes sexuais ¢ matrimoniais inter-raciais. Estamos j4 na presenca de uma casta hereditaria de escravos, definida e reconhecivel apenas pela cor da pele. Neste sentido, aos olhos de John Wesley 2 a “escraviddo americana” é “a mais vil jamais aparecida sobre a face da terra” * Blackburn, 1990, p. 9. $ Jordan, 1977, p. 123 ¢ 399. $ Zilversmit, 1969, p. 66. ? Jordan, 1977, p. 109. * Wilberforce, 1838, vol. I, p. 297 (carta de W. Wilberforce, 24 de fevereiro de 1791). II, Liberalismo ¢ escravidio racial 49 A andlise dos quacres americanos e do abolicionista inglés € plenamente confirmada pelos historiadores dos nossos dias: ao término de um “ciclo de degradag3o” em detrimento dos negros, com a mobilizagao da “m4quina da opresséo” branca ¢ a consolidacao definitiva da “escravidao e discriminacao racial”, no final do séc. XVII observa-se nas “colénias do império britani- co” uma “escravidio-mercadoria sobre base racial” (chattel racial slavery), desconhecida na Inglaterra clisabetiana (e também na antigilidade classica), mas “familiar aos homens que vivem no séc. XIX” ¢ conhecem a realidade do Sul dos Estados Unidos’. Portanto, a escravidao na sua forma mais radical triunfa nos séculos de ouro do liberalismo e no cora¢io do mundo liberal. Quem reconhcce isso é James Madison, proprictério de escravos ¢ liberal (as- sim como outros numerosos protagonistas da revolugdo americana), 0 qual observa que “o dominio mais opressor jamais exercido pelo homem sobre o homem”, o dominio fundado sobre a “mera distingdo de cor”, se impde “no periodo de tempo mais iluminado””?, Formulado corretamente ¢ em toda a sua radicalidade, o paradoxo dian- te do qual nos encontramos consiste nisso: a ascensio do liberalismo ¢ a fusio da escravidao-mercadoria sobre base racial si0 o produto de um parto gémeo que apresenta, como veremos, caracteristicas muito singulares. 2. Autogoverno da sociedade civil ¢ triunfo da grande propriedade Desde 0 seu surgimento, o paradoxo que aqui procuramos explicar nio escapa aos observadores mais atentos. Acabamos de ver a admissio de Madi- son; ¢ por outro lado conhecemos a ironia de Samuel Johnson a respeito do amor apaixonado pela liberdade exibido pelos proprietdrios de escravos, ¢ a observacio de Adam Smith relativa ao nexo entre permanéncia e fortaleci- mento do instituto da escraviddo de um lado, e poder dos organismos repre- sentativos hegemonizados pelos proprietarios de escravos por outro. Mas, a respeito, precisamos registrar outras intervengées, nao menos significativas. Ao defender a conciliac3o com as coldnias rebeldes, Burke reconhece © peso que a escravidio exerce no seu interior, mas esta circunstancia nio amcaca © “espirito de liberdade”: a0 contririo, justamente aqui a liberdade aparece “mais nobre € mais liberal”; sim, “os habitantes das colénias meridionais si0 mais fortemente apegados 4 liberdade dos setentrionais”"'. E uma conside- * Jordan, 1977, p. 98. '® Farrand (org.), 1966, vol. 1, p. 135. " Burke, 1826, vol. II], p. 54 (= Burke, 1963, p. 91). 50 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO ra¢3o que podemos encontrar, alguns decénios depois, em um fazendeiro de Barbados: “Nao hé no mundo nagdes mais ciosamente agarradas a liber- dade daquelas onde vigora o instituto da escravidio”"”. Do lado oposto, na Inglaterra, ao contrastar Burke ¢ a sua pol{tica de conciliagio com os colo- nos rebeldes, Josiah Turcker observa como “os campedes do republicanismo americano” sejam ao mesmo tempo os promotores da “absurda tirania” que eles exercem sobre os escravos: ¢ “a tirania republicana, a pior de todas as tiranias” Nos autores aqui citados estd presente a consciéncia, mais ou menos nitida ¢ acompanhada por um diversificado juizo de valor, do paradoxo que estamos investigando. E talvez s6 agora comega a perder a sua aura de impe- netrabilidade. Por que deverfamos nos surpreender que quem reivindica ou quem participa em primeira linha da reivindicagio do autogoverno ¢ da “li- berdade” em relagio ao poder politico central sejam os grandes proprietarios de escravos? Em 1839, um eminente expoente da Virginia da época, observa que a posicao do proprietdrio de escravos estimula nele “uma natureza ¢ um caréter mais liberal (a more liberal caste of character), prin- cipios mais elevados, uma abertura maior da mente, um amor mais profundo e mais fervoroso ¢ uma consideragio mais justa daquela liberdade, gragas a qual cle chega a ser tdo altamente distinto” . A riqueza € 0 conforto de que goza e a cultura que consegue adquirir, dessa forma, reforgam a auto-consciéncia orgulhosa de uma classe, que se torna cada vez mais intolerante com as imposiges, as intervengées, as in- terferéncias, os vinculos impostos pelo poder politico ou pela autoridade religiosa. Sacudindo esse jugo, 0 fazendeiro ¢ proprietario de escravos ama- durece um espirito liberal e um pensamento livre. ‘As mudancas ocorridas a partir da Idade Média ajudam a confirmar esse fenémeno. Entre 0 ano de 1263 e 1265, por meio das Siete partidas, Afonso X de Castilha regulamenta o instituto da escravidao, que parece reconhecer a contragosto, pelo fato de ser sempre “inatural”. A limitagdo do direito de propriedade vem em primeiro lugar da religiio: a um infiel nao é permitido possuir escravos cristdos, ¢ em todo caso ao escravo deve ser garantida a pos- sibilidade de conduzir uma vida em conformidade com os princfpios cristios; ” Williams, 1990, p. 199-200. Tucker, 1993-96, vol. V, p. 21 € 72 « Bowman, 1993, p. 21. _ II. Liberalismo ¢ escravidao racial 51 daqui o reconhecimento do seu direito em formar uma familia ¢ ver respeitadas a castidade c a honra da mulher e das filhas. Mais tarde, haver4 casos de donos denunciados 4 Inquisicao pela falta de respeito dos direitos dos seus escravos. Outra limitagao do poder do proprictario vem depois do Estado, profunda- mente influenciado pela religido: este se compromete a disciplinar e limitar a punicao do dono aplicada ao escravo ¢ procura de diversas formas promover a sua alforria (trata-se de qualquer mancira de um sidito cristao). A alforria pode vir do alto se o escravo realizar uma a¢ao meritéria para Q pais: neste caso © dono privado da sua propriedade é indenizado pelo Estado. A introdugo da propriedade moderna confere ao dono a faculdade de dispor dela como quiser. Na Virginia da segunda metade do séc. XVII vigora uma norma que sanciona a substancial impunidade do dono mesmo em caso de matanga do seu escravo. Tal comportamento nao pode ser considerado “delito grave” (felony), enquanto “nio se pode supor que uma maldade in- tencional (€ apenas esta que faz de uma matanga um assassinato) leve um homem a destruir a sua propricdade”””. A partir da Revolucio Gloriosa ¢ depois, de mancira mais completa, com a revolucdo americana, a afirmagio do autogoverno da sociedade civil hegemonizada pelos proprietérios de es- cravos determina a definitiva liquidacao das tradicionais “interferéncias” das autoridades politicas ¢ religiosas; passam também a ser irrelevantes o batismo € a profissao de fé crista. Na Virginia, no final do ‘600, “sem a solenidade do jari”, se pode executar um escravo culpado de um crime capital; o matrimé- nio entre escravos nao é mais um sacramento ¢ também os funerais perdem a sua solenidade. No inicio do séc. XIX um jurisconsulto virginiano (George Tucker) pode observar que o escravo € colocado “em baixo do nivel dos se- res humanos nao apenas politicamente mas também fisica e moralmente”" Além dos negros, a conquista do autogoverno da parte da sociedade civil hegemonizada pela grande propriedade, comporta o agravamento, de maneira ainda mais drdstica, da condi¢4o da populagio indigena. A auséncia de controle exercido pelo governo de Londres remove os tiltimos obstaculos que seguram a marcha expansionista dos colonos brancos. Almejada j4 por Jefferson ¢ depois formulada de forma explicita ¢ brutal pela administracao Monroe (os nativos do Leste devem limpar o terreno, “estejam ou nao de acordo, sejam ou nao civilizados”), a idéia da deportagao dos peles-verme- Ihas torna-se uma tragica realidade com a presidéncia Jackson: '5 Klein, 1989, p. 59-65; Blackburn, 1990, p. 39; 1997, p. 50-52. ™ Klein, 1989, p. 38-39; Elkins, 1959, p. 59. ” Klein, 1989, p. 49 ¢ 39. 52 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO “O general Winfield Scott, com seis mil homens acompanhado pelos ‘volunté- rios civis’, invadiu o territério Cherokee, seqiiestrou todos os indios que encontrou, ¢ no meio do inverno os colocou em marcha em direco ao Arkansas e Oklahoma; os “voluntérios civis’ se apropriaram do gado dos indios, dos seus bens domésticos dos seus instrumentos agricolas ¢ queimaram as suas casas. Aproximadamente quatorze mil indios foram obrigados a atravessar a ‘trilha das lagrimas’, como depois foi cha- mada, ¢ praticamente quatro mil morreram durante a viagem. Uma testemunha do éxodo escreveu: ‘Até mulheres de idade, aparentemente préximas da morte, segui- ram caminho com pesados fardos nas costas, ora por terras geladas ora por estradas de lama, com os pés descalgos’”"*. 3. O escravo negro ¢ o servo branco: de Grotius a Locke Enquanto estimula o desenvolvimento da escravidio-mercadoria sobre a base racial ¢ escava um abismo intransponivel ¢ sem precedentes entre bran- cos € povos de cor, o autogoverno da sociedade civil triunfa agitando a ban- deira da liberdade e da luta contra o despotismo. Entre estas duas faces, que aparecem simultaneamente no curso de um parto gémeo, se instaura uma relagao cheia de tensdes ¢ de contradi¢des. Nesta celebragao da liberdade, que se entrelaca com a realidade de um poder absoluto sem precedentes, pode ser percebida uma ideologia. Mas, mesmo mistificadora, a ideologia nunca é 0 nada; pelo contrario, a sua fungio mistificadora nao pode ser pen- sada sem alguma incidéncia na concreta realidade social. E menos ainda a ideologia pode ser considerada sinénimo de mentira consciente: se assim fosse, nio conseguiria inspirar as mentes ¢ produzir uma real ago social e se condenaria 4 impoténcia. Os teéricos ¢ os protagonistas das revolugdes ¢ dos movimentos liberais sio tomados por um forte pathos convictos da liberdade ¢, justamente por isso, sentem constrangimentos em relagio a escravidao. Obviamente, na maioria dos casos, esse constrangimento nao chega ao ponto de colocar em discussio a “propriedade” sobre a qual deitam a riqueza ¢ a influéncia social da classe protagonista da luta pelo autogoverno da sociedade civil. No tocante a Inglaterra, segue-se o caminho que remove a escravidao propriamente dita para uma rea distante da metrépole, colocada nos confins do mundo civil, onde, em virtude da contigiiidade ¢ da pressio da barbérie circunstante, 0 espirito da liberdade nao consegue se manifestar em toda a sua pureza, como acontece na propria Inglaterra, naquela que é a patria au- téntica, a terra prometida da liberdade. Gossett, 1965, p. 233. __ I Liberalismo e escravidao racial —_ 8. No entanto, a essa conclusao se chega mediante um percurso caracteri- zado por diversas oscilacdes e contradicdes. Em Grotius ainda nao é visivel a barreira da cor, que separa o destino reservado aos negros da condi¢ao 4 qual podem ser submetidas as camadas mais pobres da populagio branca. Podemos ler: “h4 uma servidio perfeita (servitus pefecta), que obriga a fazer servigos perpétuos em troca de alimentos ¢ das outras coisas necessdrias & vida; assim entendida e contida nos limites da natureza, ela nao tem nada de muito duro”. Todavia, a escravidao nao é a unica forma de servitus, é apenas “a espécie mais vil de sujeicao” (subjectionis species ignobilissima) (JBP, Il, V, § 27). Hé também a servitus imperfecta, propria, entre outros, scja dos servos da gleba quanto dos mercendrias ou assalariados (JBP, II, V, § 30). Portanto, € 0 trabalho enquanto tal a ser incluido na categoria de “servidao” (servitus) ou de “sujcicdo” (swbjectio). Obviamente, entre as duas formas de “servidio” ¢ de “sujeicao” ha uma diferenga. Mesmo violando a “razao natural” ou a “justiga plena ¢ interior”, quer dizer, as normas da moral, em base a legisla- ¢40 vigente cm alguns paises, o dono pode matar impunemente 0 seu escravo € portanto exercer sobre ele um direito de vida ¢ de morte (JBP, II, V, § 28 ¢ III, XIV, § 3). E uma situagao que nao se verifica no Ambito da servitus imperfecta c da relacio de trabalho que recorre aos mercendrios ou assalaria- dos. Contudo, tem sempre a ver com uma species particular daquele Gnico genus que € a escravidio ou sujeigao. A fronteira entre as diversas espécies é ténue. Por exemplo, em relagao aos “aprendizes (apprenticit) na Inglaterra”, observa-se que “durante o perfodo do seu aprendizado eles se aproximam da condigao servil” (conditio servilis) por exceléncia, ou seja, da condigao dos escravos propriamente ditos (JBP, II, V, § 30 nota). Por outro lado, para expiar um crime é possivel ser condenados a trabalhar ¢ a prestar os proprios servicos tanto na qualidade de escravo como de individuo submisso a alguma forma de “servidao imperfeita” (JBP, II, V, § 32). Em relagio a Grotius, Locke se preocupa em distinguir mais rigorosa- mente entre as diversas formas de servidio. Naturalmente, nao faltam os elementos de continuidade. Ao falar do trabalho assalariado ¢ do contrato que o institui, o filésofo liberal inglés escreve: “Um homem livre se faz servo do outro”. Como € possivel observar, o trabalho enquanto tal continua a ser assimilado na categoria de servidao: de fato, o contrato introduz o assalaria- do “na familia do seu patrio ¢ o submete 3 sua disciplina normal”, a qual disciplina ¢ bem diferente do poder ilimitado que caracteriza a relagao de escravidao e define “a condigao de escravidao perfeita” (perfect condition of slavery) (TT, II, 85 ¢ 24). Em grandes linhas reaparece a distingo groziana de servitus perfecta e servitus imperfecta. 54 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO Mas, Locke alerta para nao confundir o servant ¢ o slave. Grotius com- para o escravo a um “mercenério perpétuo” ou a um assalariado vinculado durante a sua vida inteira ao mesmo patrao (JBP, III, XIV, § 2). Locke, a0 contrdrio, destaca que se trata de duas “pessoas em condicées muito diferen- tes”. Além de ser “contemporaneo”, o poder que 0 dono exerce sobre o ser- vo “ndo & maior do que est previsto no contrato”; € um “poder limitado” (TT, Il, 85 ¢ 24). Se por um lado melhora a condigao do servo, por outro piora de maneira clara a do escravo propriamente dito. Deixando para tras as. reservas morais de Grotius, que convida o patrao a respeitar no apenas a vida mas também o peciilio do seu escravo (JBP, III, XIV, § 6), Locke nao cansa de evidenciar que o patrio exerce sobre 0 escravo um “dominio absoluto” ¢ um “poder incondicionado”, um “poder legislativo de vida ¢ de morte”, “um poder arbitrério” que atinge a propria “vida” (TT, I, 85-86 ¢ 24). Neste ponto, o escravo tende a perder as suas caracteristicas humanas para reduzir-se a coisa ¢ mercadoria, como fica evidente em particular na referéncia aos fazendeiros das {ndias ocidentais, os quais possuem “escravos ¢ cavalos” (Slaves or Horses) em base a uma “compra” (purchase) regular ou “gracas ao contrato ¢ ao dinheiro” (TT, 1, 130). Sem acento critico algum, Locke chega a fazer uma aproximag3o que na literatura abolicionista tem um significado de forte ¢ indignada dentincia. Isto vale para Mirabeau, que compara, como veremos, a condicao dos escravos americanos a “dos nossos cavalos e das nossas mulas”; ¢ vale para Marx, que em O Capital observa: “O proprietério de escravos compra o trabalhador como compra 0 cavalo”. Locke representa um momento de virada no plano teérico. Libertos as vezes pelos seus patrées, a0 longo do tempo os escravos negros foram sub- metidos a uma condigg0 nao muito diferente daquela dos indentured ser- vants ou dos brancos semi-escravos por tempo determinado ¢ cm base a um contrato: é essa ambigiiidade que encontra expresso no texto de Grotius, 0 qual pode portanto fazer valer a categoria de contrato também para a servi- tus perfecta. Em Locke, ao contririo, € possivel ler o desenvolvimento que a chattel slavery ¢ a escraviddo racial comegam a conhecer a partir do final do séc. XVII. Muitas colénias inglesas na América emanam leis voltadas a esclarecer que a conversao do escravo nao comporta a sua alforria . Neste sentido se expressa também Locke em 1660 quando, evocando Paulo de Tarso, afirma: ' Marx, Engels, 1955-1989, vol. XXIII, p. 281. ** Jordan, 1977, p. 84-93. _Il, Liberalismo ¢ escravidao racial 55 “A conversio ao cristianismo nio elimina obrigacio alguma antes existente; [..] o Evangelho continua a manter os homens na mesma condi¢o € sujeitos 3s mesmas obrigagdes civis nas quais os havia encontrado. As pessoas casadas nao devem aban- donar 0 cénjuge nem o servo torna-se emancipado do seu dono”. Em total cocréncia com essa imposta¢ao teérica, no projeto de Cons- tituigao da Carolina Locke reafirma a irrelevancia da eventual conversio 20 cristianismo do escravo. E, mais uma vez, emerge o elemento de novidade. Mesmo recusando a leitura em chave abolicionista do cristianismo, Grotius evoca repetidamente a literatura crista para sublinhar a humanidade comum do servo ¢ do dono, ambos submetidos ao Pai que est nos céus, e, portanto, entre eles vinculados com uma relagao que é de alguma mancira de fraterni- dade (JBP, IIL, XIV, § 2). O Segundo tratado sobre 0. governo se preocupa, 20 contrario, em esclarecer que principio da igualdade vale apenas para “cria- turas da mesma espécie ¢ grau” (Creatures of the same species and rank), ape- nas “se o Senhor ¢ Dono de todas elas nao tenha, com declaragao manifesta (manifest Declaration) da sua vontade, colocada uma sobre as outras, e Ihes conferido, com uma evidente ¢ clara designacao, um indubitavel dircito a0 dominio e a soberania” (TT, II, 4). Sobre os negros pesava a maldigao que, conforme a narrativa vetero-testamentaria, Noé havia langado contra Cam € seus descendentes: este motivo ideoldgico, freqiientemente invocado pelos defensores do instituto da escraviddo, parece encontrar algum eco também em Locke. Nao ha divida. O fildsofo liberal inglés legitima a escravidao racial, que esta se afirmando na realidade politico-social do seu tempo. Submetida a condigées cada vez mais penosas, a pratica da alforria tende a desaparccer, enquanto para consolidar o cardter insuperavel da barreira entre brancos ¢ negros contribuem, junto com a eliminagdo da religiéo e do batismo, as normas que sancionam a proibigdo de relacdes sexuais ¢ matrimoniais in- ter-raciais: neste ponto a categoria do contrato pode servir para explicar sé a figura do servant, enquanto o escravo é tal em decorréncia do dircito de guerra (mais exatamente da guerra justa da qual sao protagonistas os euro- peus voltados para as conquistas coloniais), quer dizer de uma “manifesta declaragio” divina. Para esclarccer a diferenga entre a “condigao de escravidao perfeita” e a do servo a contrato, Locke remonta ao Antigo Testamento, que prevé a Locke, 1982, p. 441. 56 CONTRA HISTORIA DO_ LIBERALISMO escravidao perpétua e hereditaria s6 para os estrangeiros, excluindo os servos consangiiineos do dono hebreu (TT, Il, 24). A linha vetero-testamentéria de demarcacao entre hebreus e estrangeiros se configura em Locke como a linha de demarcagao entre brancos ¢ negros: os servos de origem curopéia nao sao submetidos a “escravidao perfeita”, destinada aos negros e deslocada para as colénias. 4. Pathos da liberdade ¢ mal-estar pelo instituto da escravidao: 0 caso Montesquieu O mal-estar pela escravidao encontra a sua expressio possivelmente mais aguda em Montesquieu, que a critica de tal instituto dedica paginas memora- veis. “Nao ha nada de sensato” nas razdes tradicionalmente apontadas pelos “jurisconsultos” para justificar tal instituto (EL, XV, 2). E € intitil cansar-se na busca de outras: “Se cu tivesse de sustentar o direito que nés reivindicamos para escravizar os negros, eis o que diria: os povos da Europa tendo exterminado os da América foram levados a escravizar os da Africa com o intuito de utiliz4-los para o cultivo das suas terras” (EL, XV, 5). E, contudo, essa condena¢ao tao retumbante ¢ aparentemente sem ape- lagdo nao tarda a dar lugar para um discurso bem mais ambiguo: “hd paises onde o calor desfibra o corpo ¢ diminui de tal forma a coragem que os ho- mens sio levados a um dever penoso apenas pelo medo da punicio: aqui a escravidao, portanto, ofende (chogue) menos a raza0”. Neste caso, sc nao é com a razao abstrata, a escravidao esta em consonancia com a “razao natu- ral” (raison naturelle), que leva em consideracao o clima ¢ as circunstancias concretas (EL, XV, 7). Por outro lado, Montesquieu observa que “nao ha talvez clima sobre a terra onde ndo se possam utilizar homens livres” (EL, XV, 8). Mas, se aqui o tom é problematico, bem mais clara aparece a afirma- do pela qual € necessério “distinguir bem” os paises nos quais o clima pode ser de alguma maneira um elemento de justificagao da escravido dos paises nos quais “também as raz6cs naturais a repelem, como nos paises da Europa onde a escravidao tem sido felizmente eliminada” (EL, XV, 7). E, portan- to, precisa tomar consciéncia da “inutilidade da escravidao entre nés”, “nos nossos climas” e “limitar a escravidao natural (servitude naturelle) a alguns paises particulares” (EL, XV, 7-8). Por outro lado, Montesquieu nao cansa de evidenciar que a liberdade € um atributo, um modo de viver ¢ de ser até, L dos povos nérdicos; diversamente, “a escravidao tornou-se natural nos povos do Sul” (EL, XXI, 3). Assim, pode ser formulada uma lei geral: “Nao ha por- que se surpreender se a debilidade dos povos dos climas quentes os tornou quase sempre escravos ¢ que a coragem dos povos dos climas frios os tenha preservado livres. Trata-se de um efeito que deriva da sua causa natural” (EL, XVII, 1-2). Bastante presente em Grotius ¢ Locke, a contraposi¢ao entre metrépole ¢ colénias acaba emergindo também em Montesquieu. Nao € por acaso que no Espirito das leis, mais do que nos livros dedicados a anilise da liberdade, as consideragées sobre a escravidao aparecem no ambito do discurso dedicado a relacdo entre clima de em lado ¢ leis e costumes do outro. A passagem dos livros XI-XIII, que tém por objeto a “Constituico”, a “liberdade politica” a “liberdade” enquanto tal, aos livros XIV-XVII, que se ocupam do “clima”, do despotismo ¢ da “escravidio doméstica” (a verdadeira escravidio), € a Passagem ao mesmo tempo da Europa (ce, cm particular da Inglaterra) ao mundo extra-europeu e as colénias. Por isso, ao valorizar a justificagio cli- miatica da escravidao, os seus promotores nao terdo dificuldades em invocar Montesquieu”. Com a sua polémica o fildsofo francés ataca nao os tedricos da escravidio enquanto tal, mas aqueles que defendem a tese conforme a qual “seria bem que entre nés nao houvesse escravos” (EL, XV, 9). Em relacio as coldnias, a0 contrario, trata-sc de ver “o que as leis devem fazer com a escravidao”. Mais do que sobre a abolicio, o discurso visa emen- dar tal instituto: “qualquer que seja a natureza da escravidio, & necessario que as leis civis procurem eliminar de um lado os abusos ¢, por outro, os perigos” (EL, XV, 11). As “leis civis” aqui mencionadas seriam o Codigo ne- gro emanado décadas antes por Luis XIV, que consagra ¢ a0 mesmo tempo se propée a regulamentar a escravidao negra? A linguagem desse documento faz pensar: enquanto reafirma o seu “poder”, o soberano ja no Preémbulo assegura as suas atengdes aos escravos negros, que vivem em “climas infini- tamente distantes do nosso habitual ambiente”. A eles devem ser garantidas alimentacio ¢ roupas adequadas (art. 22 ¢ 25); ¢ essas garantias, juntamente com 0 cuidado necessétio, valem também para “os escravos enfermos por ve- lhice ou outra circunstancia, sendo a doenga curavel ou nao” (art. 27)", Sao preocupagdes que encontram expressao também no Espirito das leis (EL, XV, 17): “O magistrado deve vigiar para que o escravo tenha a sua alimentacio € as suas roupas; tudo deve ser regulado pela lei. As leis devem garantir que iberalismo ¢ escravidao racial 57 1 Davis, 1971, p. 210, 453 ¢ 455. "© Code Noir é trazido ¢ comentado in Sala-Molins, 1988, p. 89-203. 58 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO ele seja atendido durante as doengas ¢ na sua velhice”. Montesquieu conti- nua afirmando que o escravo nao deve ser entregue completamente indefeso a violéncia arbitréria do patrio: este pode infligir a eventual condenagio & morte, na sua qualidade de “juiz”, respeitando as “formalidades da lei”, nao enquanto pessoa privada. De maneira andloga argumenta 0 Cédigo negro, que prevé sangdes para o patrio culpado de mutilacio ou morte arbitraria do seu escravo (art. 42-43). Entre os principais “abusos da escravidao” o Espirito das leis menciona a exploragao sexual das escravas: “A razio quer que o poder do patrio nao ultrapasse as coisas que fazem parte do seu servico; € necessdrio que a escravidio seja para a utilidade € nao para os dese- jos do patrio. As leis do pudor fazem parte do direito natural e devem ser percebidas por todas as nagdes do mundo” (EL, XV, 12). Em obséquio aos preceitos da “religido catélica, apostélica e romana” o Cédigo negro considera “matriménios vilidos” os contraidos entre escravos que professam tal religiao (art. 8), profbe a venda separada dos membros da assim constituida (art. 47) ¢ procura conter a exploragao sexual das : um homem livre ¢ celibatério, que tenha tido filhos de uma escrava, € obrigado a casar com ela ¢ a reconhecer a prole, liberta juntamente com a mie (art. 9). Para ulterior confirmagao do fato que entende emendar mais do que abolir a escravidio, Montesquieu, além dos “abusos”, indica os “perigos” que tal instituto comporta ¢ as “precaugdes” necessarias para poder enfrenta- los. Uma particular atengao é preciso prestar a0 “perigo do grande numero de escravos” ¢ ao perigo dos “escravos armados”. Vale uma recomenda¢ao de carater geral: “A humanidade que vird a se formar com os escravos poder4 prevenir no Estado moderado os perigos que poderiam ser temidos por causa do seu grande ntimero. Os homens se acostumam a tudo e propria escra- vidio, desde que o patrio nao seja mais rigoroso que a propria escravidio” (EL, XV, 13-14 € 16). Conclusio. Em sua aspiracao para amenizar a escravidio colonial, Mon- tesquiew busca inspiracdo nas normas deliberadas pelo Antigo Regime, que no entanto nao exercem influéncia alguma no mundo liberal inglés por ele admirado. Em todo caso, a condenacao da escravidao é nitida s6 onde ela mper também “entre nés”, colocando assim em crise a orgulhosa autoconsciéncia da Europa de ser o lugar exclusivo da liberdade. Juntamente com o despotismo, a escravidao esté bem presente na Turquia ¢ no mundo II. Liberalismo ¢ escravidio racial 59 islimico, na Rassia (na forma de uma infame servidao da gleba), domina livre na Africa. Mas, para ela nao ha lugar na Europa ou, melhor, nao hd lugar no seu territério metropolitano. Diferente € mais complexo, ao contrario, € 0 discurso que diz respeito as colénias. 5. O caso Somerset ¢ o delinear-se da identidade liberal A posigio de Montesquieu pode ser aproximada a de Blackstone. Esta- mos na metade de séc. XVIII: “A lei da Inglaterra abomina e nao pode tole- rar a existéncia da escravidao no interior desta nacio”; nem os seus membros mais humildes ¢ desqualificados nem os “ociosos vagabundos” podem ser submetidos a escravidao™*, O “espirito da liberdade” - continua o grande jurisconsulto — “est4 tao profundamente impregnado na nossa Constituic¢ao ¢ enraizado até no nosso verdadeiro solo (very soil), que nao permite em caso algum a presenga c a vista de uma relagao que é a expresso concentrada do poder absoluto”’. A “escravidio em sentido estrito” existiu na “antiga Roma” ¢ continua a despontar no “mundo barbaro moderno” (modern Bar- bary), mas esté em contradic’o com o “espirito da na¢ao” inglesa”*. Por outro lado, entre os direitos gozados pelos livres faz parte também © do livre ¢ intocavel gozo da propriedade, inclusive da propriedade dos escravos, 4 condi¢do que estes tiltimos permanecam relegados no mundo co- lonial. A relagao entre dono ¢ servo ~ ¢ isto vale para todos os “tipos de ser- vo”, inclusive o escravo — é uma das “grandes relagdes da vida privada”?’: o poder politico ndo tem o direito de intervir nelas. Desta forma, a celebracio da Inglaterra como terra da liberdade nao € percebida por Blackstone como contraditéria na reafirmacao que cle faz da obrigagio do escravo negro de servir a0 seu dono; trata-se de uma obrigasdo que, pelos “principios gerais” da “lei da Inglaterra”, nunca deixa de existir mesmo se 0 “negro pagio” viesse a se converter ao cristianismo; nem assim o escravo poderia reivindicar a “liberdade”**. Mesmo reconhecido, o instituto da escravidao acaba removido para fora do “verdadeiro solo” inglés, de modo a ficar circunscrito 4 zona de fronteira + Blackstone, 1979, vol. % Blackstone, 1979, vol. I, p. 123 (livro 1, cap. 1). % Blackstone, 1979, vol. I, p. 412 (livro I, cap. 14). ® Blackstone, 1979, vol. I, p. 410-11 (livro I, cap. 14). Blackstone, 1979, vol. 1, p. 412-13 (livro I, cap. 14). . 412-13 (liveo I, cap. 14). 60 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO entre 0 mundo civil € a barbarie. Mas, o que acontece quando um patrio branco traz consigo das colénias, como bem mével, algum seu escravo? £ o problema que suscita um aceso debate na Inglaterra de 1772. Dirigindo-se A magistratura, um escravo, James Somerset, consegue se subtrair ao patrio que queria levé-lo consigo, sempre na qualidade de bem mével, na sua via- gem de volta para a Virginia. A sentenca do juiz nao coloca em davida o ins- tituto da escravidao: limita-se a afirmar que “a lei colonial” aplica-se apenas “nas colénias” € que, portanto, na Inglaterra a escravidio fica destituida de base legal. O defensor de Somerset proclama com eloqiiéncia: “O ar da In- glaterra é demasiado puro para escravos respird-lo”. Mas deste principio cle faz derivar a conclusio de que é necessério evitar qualquer afluxo na Ingla- terra de negros oriundos da Africa ou da América. Mais do que de violagio da liberdade ¢ da dignidade de um ser humano, o dono de Somerset havia se tornado responsdvel de atentado a pureza da terra dos livres, os quais nio toleram ser confundidos ¢ misturados com os escravos. Nao € por acaso que a sentenga de 1772 coloca as premissas para a sucessiva deportagio 4 Serra Leoa dos negros que, como siditos fiéis da Coroa, procuram abrigo na In- glaterra depois da vitéria dos colonos rebeldes”. Agora comegam a se definir os contornos da identidade liberal. Autores como Burgh e Fletcher podem ainda ser considerados campedes da causa da liberdade por Jefferson, que vive em uma realidade onde a escravidio negra € a difusa propriedade da terra (arrancada dos indios) tornam meramente académico 0 projeto de escravidio dos vagabundos brancos. Na Europa as coisas andam de forma diferente, como resulta das intervengdes de Montes- quicu ¢ Blackstone. Comegam a ser considerados estranhos ao partido libe- ral, que vem se formando, os que no aceitam o principio da nao admissio da “inutilidade da escravidao entre nés”. A partir primeiro de Montesquieu ¢ depois, de forma mais nitida, de Blackstone ¢ da sentenca dos juizes do caso Somerset, 0 que caracteriza © partido liberal, em fase de formagio, sio. dois pontos essenciais: 1) a condenago do poder politico despético ¢ a rei- vindicagio do autogoverno da sociedade civil em nome da liberdade ¢ do governo da lei; 2) a afirmagio do principio da nao admissio ¢ “inutilidade da escravidao entre nds” ou do principio em base ao qual a Inglaterra (¢ em perspectiva a Europa) tem um ar “puro demais” para poder tolerar, sobre © seu “verdadeiro solo”, a presenga de escravos. O segundo ponto nio é menos essencial que 0 primeiro. A legitimagao da “escravidao entre nés” ® Drescher, 1987, p. 373 Davis, 1975, p. 231, 472 ¢ 495-96, II. Liberalismo ¢ escravidao racial 61 comportaria a dissolugao do pathos da liberdade, que desempenha um papel de primeiro plano na reivindicagao liberal do autogoverno da sociedade civil ou do autogoverno da comunidade dos livres. 6. “Nao queremos ser tratados como negros”: a rebelido dos colonos Mas a contraposi¢o metrépole/colénia, com a tendéncia a excluir essa Ultima do sagrado espaco da civilizacao ¢ da liberdade, nao podia deixar de suscitar a rea¢3o dos colonos. Sem mencionar as concretas reivindicagdes politicas ¢ sociais de cada uma, 0 que estava sendo ferida cra a propria autoconsciéncia. A metrépole parece aproximar as colénias americanas do “mundo barbaro moderno” denunciado por Blackstone, parece degradé- las a uma espécie de lixeira, onde sio despejados os residuos ou a populagio carcerdria da metrépole: os detentos das prisdes da patria-mac sio depor- tados para 0 outro lado do Atlantico para alimentar, juntamente com os negros oriundos da Africa, a mio-de-obra mais ou menos forgada de que se necesita. Conforme a observacao do abolicionista inglés David Ramsay, a escravidao continuava a subsistir na area periférica do mundo civil ou do Ocidente, “onde a sua religido ¢ as suas leis no vigoravam plenamente € onde os individuos se consideravam muitas vezes dispensados das normas em vigor na patria-mac””. Se a honra da metrépole como lugar privilegiado da liberdade estava salva, no obstante a permanéncia da escravidéo na sua extrema periferia, para os colonos, essa visio cometia o erro de confundir ¢ assimilar ingleses livres, escéria carceraria ¢ povos de cor. Desta forma - lamenta James Otis, um destacado expoente da revolugio liberal em ascensio ~ se esquece que as colénias foram fundadas “nao pela mistura de ingleses, indios e negros, mas por siiditos britanicos, nascidos livres e brancos”. Ainda mais drastico é Washington, o qual alerta que os colonos americanos se sentem “misera- velmente oprimidos como os nossos negros”!. Depois de ter reafirmado que os colonos americanos podem se orgulhar de uma linhagem nao menos nobre ¢ nao menos merecedora da liberdade dos ingleses da metrépole, em relago aos governantes de Londres, John Adams proclama: “Nao quere- mos ser os negros deles!"*? % Ramsay, cit in Davis, 1975, p. 387. " Blackburn, 1990, p. 92 ¢ 14 Adams, cit. in Davis, 1998, p. 50, nota 3, 62 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO Independentemente até do problema da representacao, a delimitagao es- pacial da comunidade dos livres € percebida como uma exclusio intoleravel. Por outro lado os colonos, ao reivindicar a igualdade com a classe dominante inglesa, aprofundam o abismo que os separa dos negros ¢ dos peles-verme- Ihas. Se em Londres se faz a distingao entre a 4rea da civilizagao ¢ a rea da barbérie, entre o espaco sagrado e o profano, contrapondo em primeiro lu- gar a metropole as colénias, os colonos americans sao levados por sua vez a localizar a linha de separacao em primciro lugar no pertencimento étnico e na cor da pele: em base a0 Naturalization Act de 1790, s6 os brancos podem se tornar cidadaos dos Estados Unidos**. A passagem da delimita¢ao espacial para a étnica ¢ racial da comunidade dos livres comporta efeitos combinados ¢ contraditérios de inclusio ¢ ex- clusio, de emancipagao ¢ des-emancipacao. Os brancos, até os mais pobres, entram também a fazer parte do espaco sagrado, eles também pertencem a comunidade ou & raga dos livres, mesmo ocupando niveis inferiores. Desapa- rece a servidao branca, condenada pela boa sociedade de New York enquanto “contraria (...] ao principio de liberdade que este pais estabeleceu com tanto sucesso”. Mas a tendéncia a emancipar os brancos pobres ¢ apenas a outra face da ulterior des-emancipacio dos negros: a condico do escravo negro piora s6 pelo fato de nao ser mais, como na América colonial, um dos diver- sos sistemas do trabalho ndo livre. Na Virginia (€ nos outros estados) aos veteranos da guerra de independéncia sao concedidos, como reconhecimen- to da sua contribuigdo & causa da luta contra o despotismo, terras ¢ escravos negros*s; as possibilidades de ascensio social dos brancos pobres coincidem com a ulterior degradac3o ¢ desumanizac’o dos escravos negros. 7. Escravidao racial ¢ ulterior degrada4o da condiglo do negro “livre” Nao se trata s6 dos escravos. O triunfo da delimitagao étnica da comu- nidade dos livres ndo deixa de influenciar pesadamente também a condigio dos negros teoricamente livres, atingidos agora por uma série de medidas que visam tornar intransponivel a linha da cor, a demarcagao entre raga dos livres € raca dos escravos. Os negros ndo submetidos a escravidio comesam a se preo- cupar com a anomalia contra a qual mais cedo ou mais tarde precisa encontrar Foner, 2000, p. 65. » Foner, 2000, p. 37. Foner, 2000, p. 37 ¢ 55; Blackburn, 1990, p. 116. . II, Liberalismo ¢ escravidao racial remédio. A condi¢ao destes no fim do séc. XVIII € assim deles, em Boston, ao referir-se seja 4s proprias discriminagdes juridicas seja aos insultos ¢ as ameacas extra-legais mas amplamente toleradas pelas autoridades: “Carregamos a nossa vida nas nossas mios ¢ as flechas da morte voam por cima das nossas cabecas”*. Trata-se de uma descricdo que pode parecer exces- sivamente emotiva. Entio, vamos passar a palavra a Tocqueville: “Em quase todos os estados, nos quais a escravidao esta abolida, so concedidos ao negro direitos cleitorais; mas, se cle se apresentar para votar, corre risco de vida”. “Oprimido”, pode até “lamentar-se” e dirigir-se 4 magistratura, “mas encontra s6 brancos entre os seus juizes”2”. Observando bem, os proprios “negros liber- tos [...] esto diante dos europeus em posicdo analoga a dos indigenas”, ¢ até, em alguns aspectos, sio ainda “mais desafortunados”. Em todo caso, resultam “privados de direitos” ¢ “dominados pela tirania das leis ¢ da intolerancia dos costumes”. Portanto, para os negros nao submetidos a escravidio, a situacio nao muda ¢ ndo melhora de modo algum na passagem do Sul ao Norte. Pelo contrério - observa impiedosamente Tocqueville ~ “o preconceito racial pare- ce mais forte nos estados onde ocorreu a aboli¢ao da escravidao do que onde a escravidao ainda existe, e em nenhum lugar se apresenta tio intolerante como nos estados em que a escravidao foi sempre desconhecida”™. Em conclusio, a condigao do negro em teoria livre se distingue daquela do escravo, mas talvez ainda mais daquela do branco realmente livre. SO assim se explicam © perigo que constantemente incumbe sobre ele de ser reduzido a condigdes de escravidio ¢ a tentas3o que emerge periodicamente entre os brancos, por exemplo, na Virginia depois da revolta ou a tentativa de revolta servil de 1831, de deportar para a Africa ou para outros lugares a po- pulacdo inteira dos negros livres. Estes, sio obrigados a se registrar ¢ podem mudar de residéncia s6 com a permissio das autoridades locais; a principio sao escravos ¢ sao detidos sem problemas até demonstrar o contrario. O des- potismo exercido sobre os escravos acaba atingindo de uma mancira ou outra a populagao de cor no seu conjunto. E 0 que explica em 1801 0 ministro dos Correios da administra¢ao Jefferson em uma carta onde recomenda a um senador da Geérgia de excluir negros ¢ homens de cor do servico postal: é sumamente perigoso “todo elemento que visa a aumentar o seu conheci- % Litwack, 1961, p. 16-17. * Tocqueville, 1951, vol. 1, t. 1, p. 358-59 (La democrazia in America, em diante DAI -, cap. 11, 10). 4 Tocqueville, 1951, vol. 1, t. 1, p. 366-367 (DAI, cap. II, 10) Tocqueville, 1951, vol. I, t. 1, p. 358 (DAL, cap. Il, 10). 64 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO mento dos direitos naturais, dos homens ¢ das coisas, que oferece a opor- tunidade de se associar, de adquirir ¢ comunicar sentimentos, de estabelecer uma corrente ¢ uma linha de intelligence”. Portanto, € necessério bloquear ou obstaculizar com todos os meios até a comunicacio dos sentimentos ¢ das idéias. De fato, a situacdo vigente na Virginia, logo depois da revolta de 1831, é assim descrita por um viajante: “O servico militar [das patrulhas brancas] € realizado dia e noite, Richmond se parece com uma cidade sitiada [...]. Os negros [...] nao se atrevam a se comunicar uns com os outros pelo medo de serem punidos”™”. 8. Delimitagao espacial ¢ delimitagao racial da comunidade dos livres A revolugio americana coloca em crise 0 principio, que parecia conso- lidado no 4mbito do movimento liberal, da “inutilidade da escravidio entre nés”. Ora, longe de ser confinada nas colénias, a escravidio ganha visibi- lidade e centralidade novas em um pais com uma cultura, uma religiio uma lingua de origem européia, que fala em pé de igualdade com os paises europeus € que até reivindica uma espécie de primado ao encarnar a causa da liberdade. Declarado desprovido de base na Inglaterra de 1772, o insti- tuto da escravidao encontra a sua consagracio juridica ¢ até constitucional, mesmo recorrendo aos eufemismos ¢ as circunlocugées que conhecemos, no Estado nascido da revolta dos colonos decididos a nao se deixar tratar como “negros”. Emerge assim um pais caracterizado pelo “vinculo estével e dire- to entre propriedade escrava ¢ poder politico”"', como revelam de maneira clamorosa tanto a Constituicio como o niimero de proprictarios de escravos que ascendem a mais alta carga institucional. ‘Mas, como se configura a plataforma do partido liberal em um pais que nio pode orgulhar-se, como a Inglaterra no final de séc. XVIII, de ter 0 ar “muito puro” para que pudesse ser respirado pelos escravos? Na realidade, também nos Estados Unidos continua a circular a aspirag3o a recuperar 0 principio da inadmissibilidade ¢ da “inutilidade da escravidao entre nés”. Embora sendo s6 uma veleidade, Jefferson sonha com a idéia de deportar 08 negros para a Africa. Mas, pela nova situagao criada, 0 projeto de trans- formar a repiblica norte-americana em uma terra habitada exclusivamente por homens livres se revela de dificil realizagao: precisaria afetar pesadamente * Blackburn, 1990, p. 279-80. " Davis, 1982, p. 33. IL. Liberalismo e escravidao racial 65 © direito, que cabe as pessoas realmente livres, de gozar sem interferéncias externas da sua propricdade! Acontece, entio, que nas primeiras décadas do séc. XIX emerge um movimento (American Colonization Society) que encontra uma nova safda: tenta convencer os proprictarios, apelando para os seus sentimentos religiosos ou recorrendo também a incentivos econdmicos, a libertar ou vender seus escravos, os quais, juntamente com todos Os outros negros, seriam enviados a Africa | para colonizi-la e cristianizé-la”; e assim, sem atingir os direitos de propriedade garantidos pela lei ¢ pela Constituicao, teria sido possivel transformar também os Estados Unidos em uma terra ha- bitada exclusivamente por homens livres (¢ brancos). Trata-se de um projeto condenado ao fracasso desde o inicio. A compra dos escravos pela Unido exigia grande quantidade de recursos financciros ¢, portanto, uma clevada imposigao fiscal. Expulso pela porta da expropriacio forgada, o fantasma da interven¢do despética do poder politico sobre a pro- pricdade privada acabava por irromper fortemente pela janela da imposicao fiscal necessdria para estimular os proprictarios a renunciar livremente aos seus escravos, mediante um rentdvel contrato de compra ¢ venda. Por outro lado, em seu conjunto, a classe dos fazendeiros nao tem intencao alguma de renunciar a fonte nao sé da sua riqueza como também do seu poder. Diferente é a situacdo vigente no Norte, onde os escravos sio em niimero reduzido e nao desempenham uma fungio cconémica essencial. Abolindo a escravidao, mas assinando ao mesmo tempo a ordem federal que a legitima ¢ a garante no Sul, os estados do Norte parecem querer ressuscitar na nova situag3o 0 compromisso que j4 conhecemos: sem ser abolido, passa a ser de qualquer maneira relegado no profundo Sul o instituto, que com a sua pre- senga constitui uma espécie de irénico canto s avessas a pretensio dos cam- pedes da causa da liberdade. De fato, quatro estados (Indiana, Illinois, lowa ¢ Oregon) proibem severamente o ingresso dos negros nos scus territérios*®. Desta forma evitava-se de ser contaminados pela presenca nao apenas dos escravos mas dos préprios negros. Tal proibigio € andloga a medida em base & qual a Inglaterra dos anos seguintes ao caso Sumerset, deporta para Serra Leoa os negros, que além de livres tinham também o mérito de ter lutado contra os colonos rebeldes ¢ pela causa do Império. E, contudo, até no Nor- te dos Estados Unidos, mesmo tendo sido abolida, a escravidio consegue um reconhecimento que nao tinha na Inglaterra, como mostra em particular a # Fredrickson, 1987, p. 6ss. © Foner, 2000, p. 112. 66 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO norma constitucional que impde a devolucao dos escravos fugidos aos legiti- mos proprietérios, com a indireta sangdo do instituto da escravidio também nos estados que formalmente eram livres. E um ponto sobre o qual chama a atengao, satisfeito, um expoente do Sul: “Obtivemos o direito de recuperar 0 nossos escravos em qualquer lugar da América onde possam procurar abri- go; é um direito que antes nao tinhamos”*. Evidentemente, no conjunto dos Estados Unidos é entrado em crise 0 principio da inadmissibilidade e da “inutilidade da escravidao entre nds” reafirmado cada vez mais, ao contra- rio, no outro lado do Atlantico. Como se chega a tal resultado? Voltemos a Burke. Ao afirmar que o “espirito de liberdade” ¢ a visdo “liberal” encontram a sua encarnacao mais acabada justamente nos proprietarios de escravos das colénias meridionais, ele acrescenta que os colonos fazem plenamente parte da “nacdo em cujas veias corre o sangue da liberdade”, da “raca eleita dos filhos da Inglaterra”: € uma questo de “genealogia”, contra a qual se reve- lam impotentes os “artificios humanos”**. Como é possivel observar, a deli- mitacao espacial da comunidade dos livres, que € 0 princ{pio sobre 0 qual se funda a Inglaterra liberal do final do séc, XVIII, parece chegar aqui ao ponto de se transformar em uma delimitagao racial. E, portanto, em Calhoun ¢ nos idedlogos do Sul escravista em geral, chega a realizar-se uma tendéncia ja presente em Burke. De espacial, a linha de demarcag3o da comunidade dos livres passa a ser racial. Mas, entre os dois tipos de delimitac3o nao ha uma barreira intransponi- vel. Em 1845 John O'Sullivan, o popular teérico do “destino manifesto” providencial que dé asas 4 expansio dos Estados Unidos, procura contornar com um argumento muito significativo as preocupagdes dos abolicionistas com a introdugio da escravidio no Texas (arrancado do México ¢ prestes a ser anexado 4 Unido): é justamente a momentanea extensao que cria as con- digdes para a abolicao da “escravidio de uma raca inferior em relacio a uma raga superior” e, portanto, que “torna provavel o definitivo desaparecimento da raca negra das nossas fronteiras”. No tempo oportuno, os ex-escravos serio empurrados ainda mais para o Sul, no “solo receptéculo” adequado a eles: na América Latina, a populagio de sangue misturado, que se formou a partir da fusio dos espanhdis com os nativos, poderé acolher também os negros*, A delimitacao racial da comunidade teria entao dado o lugar a deli- * Finkelman, 1985, p. 28. 45 Burke, 1826, vol. III, p. 66 ¢ 124 (= Burke, 1963, p. 100, 142-43). O'Sullivan, 1845, p. 7:8. II, Liberalismo ¢ escravidiio racial — 7 mitagio territorial; o fim da escravidao teria determinado ao mesmo tempo 0 fim da presenga dos negros na terra da liberdade. Para essa dire¢3o indicava, nao obstante as gritas de alarme dos abolicionistas, a concentra¢ao dos escra- vos em uma rea préxima de territérios fundamentalmente alheios a area da civilizagao ¢ da liberdade. Por algum tempo, Lincoln sonha com a idéia de deportar dos Estados Unidos para a América Latina, apés a sua emancipacio, os negros conside- rados afinal também por cle alheios 4 comunidade dos livres”. Neste senti- do, depois de se defrontar por décadas, no decorrer da guerra de Secessio, se enfrentam nao mais a causa da liberdade e a da escravidao, e sim, mais exatamente, duas diversas delimitacées da comunidade dos livres: as partes contrapostas se acusam uma a outra de nao saber ou de nao querer delimitar com eficdcia a comunidade dos livres. Para aqueles que agitam o fantasma da contaminagio racial como conseqiiéncia inevitavel da aboli¢ao da escravidio, Lincoln responde colocando em evidéncia que nos Estados Unidos a maioria dos “mulatos” é o resultado das relagdes scxuais dos patrdes brancos com as escravas negras: “a escravidao é a maior fonte de mistura” (amalgamation). Pelo resto, cle nao tem “intengao alguma de introduzir igualdade politica ¢ social entre as racas brancas ¢ negras” ou de reconhecer ao negro o direito de participar a vida publica, de ocupar fungdes piblicas ou assumir o papel de juiz popular. Lincoln se declara consciente, assim como qualquer outro branco, da diferenga radical entre as duas racas ¢ da supremacia que cabe aos brancos**. A crise dé um passo decisivo em dire¢io ao ponto de ruptura depois da sentenga da Corte Suprema sobre o caso Dred Scott no verao de 1857: “a semelhanga de um objeto comum de mercadoria e propriedade”, o legitimo proprietério de um escravo negro tem direito de levd-lo consigo em qual- quer lugar da Unido’. Compreende-se, entdo, a reagao de Lincoln: o pais nao pode ficar permanentemente dividido “metade escravo e metade livre”; contrariamente 4 Inglaterra do caso Somerset, 0 norte dos Estados Unidos nio pode arvorar-se em terra dos livres, cujo ar € “muito puro” para ser res- pirado por um escravo. A passagem da delimitagao espacial para a racial da comunidade dos li- vres torna ja impossivel remover a realidade da escravidio. A condenagio © Gossett, 1968, p. 254-55. Lincoln, 1989, vol. I, p. 400, 511-12, 636. © Hofstadter (org) 1958-82, vol. 11, p. 369. Lincoln, 1989, vol. 1, p. 426. 68 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO desse instituto agora nao hé outra alternativa se ndo a sua explicita defesa ou celebragao. Quanto mais claramente emerge o conflito que divide as duas segdes da Unido, tanto mais provocatoriamente os idedlogos do Sul escar- necem as circunlocugées ¢ as interdigées lingiifsticas que tornaram possivel © compromisso de Filadélfia de 1787: a “escravidao negra” - declara John Randolph of Roanoke - ¢ uma realidade que “em vio a Constituigao ten- tou esconder, evitando 0 uso do termo”". Com o desaparecimento desse tabu, a legitimagao da escraviddo perde a timidez que a caracterizava ante- riormente para assumir um tom de desafio; de mal necessério a escravidao torna-se, nas palavras de Calhoun que j4 conhecemos, um “bem positivo”. Nao tem sentido remové-la como algo do que se envergonhar: trata-se do proprio fundamento da civilizacao. Ao colocar em crise o pathos da liberdade que presidiu a fundacdo dos Estados Unidos e deslegitimando de qualquer mancira a propria guerra de independéncia, essa nova atitude contribui para tornar inevitavel o embate entre Norte ¢ Sul. 9. A guerra de Secessio ¢ a retomada da polémica desenvolvida com a revolucdo americana Nessa circunstancia, enquanto os abolicionistas retomam, na polémica contra 0 Sul, os argumentos utilizados durante a guerra americana de inde- pendéncia pelos ingleses ¢ pelos legalistas, os tedricos do Sul recorrem aos arguments agitados pelos colonos rebeldes. Vimos O'Sullivan, advogado e jornalista de New York, considerar o Sul como o lugar mais adequado, pela frontcira com 0 México ¢ a América Latina, para depositar provisoriamente Os negros, antes da sua emancipagio ¢ deportagao fora dos Estados Unidos. O Sul constitufa, portanto, um territério nao totalmente incontaminado pela barbérie dos negros que ali residiam na qualidade de escravos. A convivéncia com os negros ¢ a contaminacio sexual, testemunhada pelo elevado numero de mulatos - carregava a dose o abolicionista Theodore Parker — havia deixa- do tracos profundos também nos brancos do Sul: era exatamente a influéncia do “elemento africano” que explicava o apego a uma instituigao contraria aos principios da liberdade™. E assim como havia feito a América pré-revo- lucionéria ¢ revolucionéria, assim também o Sul protesta contra a tendéncia » Randolph, cit. in Kirk, 1978, p. 175. 5 Parker, cit. in Slotkin, 1994, p. 231-32. IL. Liberalismo e escravidao racial 69 a exclusdo, da qual se sente vitima, da auténtica comunidade dos livres. Nio so mais as colénias americanas no scu conjunto, agora sio os estados do Sul que se sentem comparados ao “mundo barbaro moderno” do qual fala Blackstone. Juntamente com o que acabamos de ver voltam os outros aspectos do contencioso que haviam contraposto os colonos rebeldes a Inglaterra. Aos olhos de Calhoun, os abolicionistas do Norte, que gostariam de apagar a escravidao mediante uma lei federal, pisotciam o dircito de cada estado a0 autogoverno ¢ pretendem fundar a Unido sobre a escravidio politica, sobre a “ligacao entre patrao ¢ cscravo” * O Norte reage ironizando, obviamente, essa apaixonada defesa da liberdade, conduzida pelo Sul “democratico” ¢ es- cravista. Para compreender a ulterior réplica deste ultimo, convém voltar por um momento a Franklin. Respondendo aos seus interlocutores ingleses, que zombavam da bandeira da liberdade agitada pelos colonos rebeldes ¢ pelos proprietdrios de escravos, cle nao havia sc limitado a Iembrar os interesses € 0 compromisso da Coroa no comércio dos negros. Havia levantado um segundo argumento, chamando a atengio sobre o fato de que a escravidio € a servidao nao haviam desaparecido nem do outro lado do Atlantico: em particular, os mineiros da Escécia sio “totalmente escravos (absolute Slaves) em base 4 vossa lei”; eles “foram comprados ¢ vendidos com a mina de car- vao, ¢ nao sao livres de deixa-| la, tanto quanto os nossos negros nao sao livres de deixar o plantio do patrio”” ** Os autores da deniincia contra a escravidao Negra cram os responsaveis de uma escraviddo branca, certamente nado me- Ihor daquela condenada com tanta veeméncia. De maneira andloga, em ocasiao do conflito amadurecido por décadas e que chega ao ponto de ruptura com a guerra de Secessao, o Sul retruca as acusacdes langadas contra ele de duas formas: faz notar que o Norte ¢ a Inglaterra abolicio- nista nao tém autoridade para dar licdes no que diz respeito ao tratamento dos negros (e dos povos coloniais em geral); evidencia o quanto de escravista continua a existir na sociedade industrial fundada teoricamente sobre 0 trabalho “livre”. Por enquanto, vamos nos deter sobre o primeiro ponto. Em ocasiio da Convengio de Filadélfia, os proprietirios de escravos rejeitam os sermdes a eles dirigidos em nome da moral, mostrando que do instituto da escravidio tira grandes vantagens também o Norte, cuja marinha mercantil providencia a0 transporte dos escravos ¢ das mercadorias produzidas por eles”. De fato, a § Calhoun, 1992, p. 436. Franklin, 1987, p. 651. 55 Finkelman, 1996, p. 23-24. 70 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO partir de 1808 entra em vigor a proibicdo prevista pela Constituigao federal sobre “imigragio ou introdugdo” dos escravos negros. Resta, no entanto, © fato — observam os idedlogos do Sul — que os negros do Norte, além de sofrer a miséria ¢ a opressao ali reservadas para os pobres em geral, sio ex- postos a maus-tratos ¢ violéncias de toda espécie, como mostra a explosio periddica de verdadeiros pogrons. Ainda mais repugnante é — sublinha em particular Calhoun — a hipocrisia da Inglaterra (0 pais no qual se inspiram 08 abolicionistas americanos): “a maior traficante de escravos da terra”, 0 pais “responsavel mais do que outros pela extensio desta forma de servi- dio” no continente americano, dedica-se depois a agitar a bandeira do abo- licionismo, com o intuito de atrair nas suas colénias a produgio lucrativa de tabaco, algodio, agiicar, café ¢ de arruinar os possiveis concorrentes™. Na realidade, que resultados tem produzido nas colénias inglesas a presumida emancipacao dos escravos? A condi¢ao dos negros ndo tem melhorado, a liberdade no caso deles nao passa de uma miragem, enquanto continua inquestiondvel “a supremacia da raga curopéia””’. Incvitavelmente, quando chegam a conviver “duas racas de cor diferente” ¢ nitidamente desiguais na cultura ¢ civilizagao, a raca inferior est4 destinada a ser subjugada’. Justa- mente o pais que se erguc a campeao na luta contra a escravidao se destaca pela direcao ¢ pelo sentido contrario: nio apenas recorte ao trabalho dos “escravos” na india ¢ nas outras colénias, mas “segura em uma subjugaco sem limites até cento ¢ cingitenta milhdes de seres humanos espalhados pelos cantos do globo”. Encontramos uma referéncia ainda mais explicita 4 sorte dos coolies em um outro eminente representante do Sul, George Fitzhugh, e mais uma vez a ser acusada é a Inglaterra, que se orgulha de ter abolido a escraviddo nas suas colénias: na realidade, os “escravos tempor4- rios” provenientes da Asia, que ocuparam o lugar dos negros, sio “obriga- dos a morrer de trabalho antes do término do seu servigo” ou a morrer, em seguida, de inanicio™. Em grandes linhas, a polémica que se espalha na véspera ¢ no decorrer da guerra de Secessio reproduz ¢ retoma a que, décadas antes, havia ocorrido em ocasiao do enfrentamento entre os dois lados do Atlantico. % Calhoun, cit. in Salvadori, 1996, p. 190-91 * Calhoun, 1992, p. 475. ™ Calhoun, 1992, p. 467. * Calhoun, cit in Salvadori, 1996, p. 193. © Fitzhugh, 1854, p. 210-11. II. Liberalismo e escravidao racial 7 10. “Sistema politico liberal”, “modo liberal de sentir” ¢ instituto da escravidio Para compreender a difusdo, em seus diferentes significados, do uso po- litico do termo liberal, precisa levar em consideracio dois pontos de referén- cia: em primeiro lugar, a autoconsciéncia orgulhosa amadurecida no Império britanico na onda da vitéria obtida durante a guerra dos Sete anos sobre a Franga do absolutismo monérquico ¢ religioso, ¢ ulteriormente fortalecida na propria Inglaterra pelo éxito do caso Somerset; em segundo lugar, as lutas que se desenvolvem no 4mbito da comunidade dos livres. Quando eclode a polémica provocada pela agitacao dos colonos rebeldes, as diversas posicdes que se confrontam tendem a se definir de qualquer forma todas “liberais”. Burke busca promover a conciliagéo chamando o “governo liberal desta li- vre nagao” (the liberal government of this free nation) a dar prova de espirito de compromisso*'. Do outro lado do Atlantico, no momento da fundagio dos Estados Unidos, Washington coloca em evidéncia “os beneficios de um governo sdbio ¢ liberal” (wise and liberal Government) ou de um “sistema politico liberal” (liberal system of policy), que se afirma “em uma época ilumi- nada, liberal” (/iberal) ¢ que tem como fundamento “o livre (free) cultivo das letras, a ilimitada extensio do comércio”, ou seja, o “comércio liberal ¢ livre” (liberal and free), “o progressivo refinamento dos costumes, o fortalecimen- to do modo liberal de sentir” (the growing liberality of sentiment), pela preva- léncia do “sentimento liberal” (/iberal sentiment) de tolerancia também nas relacdes entre “os diversos grupos politicos religiosos do pais”®. Até aqui, © termo liberal € usado sé como adjetivo. Em outros contextos, adjetivo ¢ substantivo aparecem trocaveis: “todo liberal inglés” (every Liberal Briton) - escreve em 1798 a London Gazette - alegra-se pela dificil situac3o em que se encontra a Franga revolucionéria ¢ tiranica, que em S. Domingo deve enfren- tar a dificil situagao provocada pelo levante dos escravos negros®, Enfim, o termo em questio faz a sua apari¢ao também como substantivo: quem assina “A Liberal” € 0 autor (talvez Paine) de um artigo sobre Pennsylvania Packet do 25 de marco de 1780, que se declara pela aboli¢ao da escravidio™. * Burke 1826, vol. III, p. 153. * Washington, 1988, p. 242, 247 ¢ 241 (Circular to the States , 4 de junho de 1783), p. 326 (carta a M. J. G. La Fayette de 15 de agosto de 1786) ¢ p. 545 (carta a “Hebrew Con- gregations” de janciro de 1790). Cf. Geggus, 1982, p. 130. Zilversmir, 1969, p. 132; Blackburn, 1990, p. 118 72. CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO _ Estamos na presenga de quatro interven¢des, associadas pela profissio de fé liberal, mas com orientagao muito diferente no que diz respeito a postura assumida diante da escravidao negra. Na Europa, embora nao faltem posigdes a seu favor, em virtude particularmente de circulos conectados com as cold- nias do Caribe, prevalece a orientagao critica: a tendéncia € tomar distancia, mais ou menos clara, do instituto que foi necessério remover para as colénias, para conferir credibilidade 4 consciéncia de si amadurecida da comunidade dos livres. A riqueza das nagées (a obra-prima de Adam Smith que sai no mesmo ano da Declarago da independéncia, redigida por Jefferson, ou seja, de um respcitado expoente dos fazendeiros e proprictérios de escravos da Virginia) observa que a “rcmuncracio liberal (liberal) do trabalho”, com a correspondéncia de um saldrio do qual o “servo livre” (free servant), o “ho- mem livre” (free man) pode livremente dispor, é a Gnica capaz de estimular a operosidade individual; enquanto a estagnagdo econdmica é a conseqiléncia do trabalho servil, seja se trate da servidao da gleba seja da escravidao negra propriamente dita. Por sua vez, Millar considera o instituto da escravidao em contradi¢a0 com os “sentimentos liberais alimentados no fim do século XVIII”, com as “idéias mais liberais” desenvolvidas no mundo moderno®. Indo mais adiante, 0 discipulo do grande economista declara que se pode devolver credibilidade 4 “hipétese liberal” s6 evitando o confronto com os que agitam a bandcira da liberdade, mesmo sustentando c até desenvolvendo a pritica da escravidao. Do outro lado do Atlantico, ao contrario, a defesa desse instituto é mui- to mais aguerrida. Contudo, seria um cquivoco delinear uma nitida con- traposig4o. Seria suficiente refletir sobre 0 fato de que o deus protetor do Sul escravista € em primeiro lugar Burke. Em 1832 um influente idedlogo virginiano, Thomas R. Dew, enaltece as vantagens contidas na escravidao: as “tarefas servis ¢ humildes” sio reservadas aos negros, de modo que o amor pela liberdade ¢ 0 “espirito republicano”, proprio dos cidadaos livres € brancos, florescem com uma pureza ¢ um vigor desconhecidos no resto dos Estados Unidos e encontram antecedentes s6 na antigijidade classica. Mas, nisso, Dew evoca Burke ¢ a sua tese, pela qual, exatamente onde floresce a escravidio, 0 espirito de liberdade se desenvolve mais prodigiosamente*”. Desta forma, 0 teérico do Sul escravista indiretamente retoma ¢ aprova a profissio de fé “liberal” do whig inglés. * Smith 1981, p. 98-99 (= Smith, 1977, p. 80-81) (livro I, cap. 8). Millar, 1986, p. 296 ¢ 250 (= Millar, 1989, p. 240 ¢ 214). * Hofstadter (org.) 1958-82, vol. Il, p. 319-320. IL. Liberalismo ¢ escravidao racial 73 Nas décadas seguintes, no decorrer da luta primeiro politica e depois tam- bém militar contra 0 Norte, 0 Sul escravista pode contar com muitos amigos na Inglaterra liberal. Poucos anos antes da guerra de Secessio, os argumentos dos idedlogos do Sul encontram explicitamente eco em Benjamin Disraeli. Tendo como pano de fundo a aboligio da escravidio nas colénias inglesas € francesas, cle a define um assunto de “ignorincia, injustica, espirito confuso, desperdicio ¢ devastagdo com raros paralelos na historia da humanidade”™. Por outro lado, se na América tivessem se misturado com os negros, os bran- cos “teriam sofrido uma deterioracio tal que os seus estados provavelmente acabariam por ser reconquistados pelos aborigines”. A aboligao da escravidio nos Estados Unidos nio teria favorecido essa mistura, conferindo a ela uma nova dignidade? Mais tarde, a batalha desesperada da Confederagdo secessio- nista suscita um profundo eco empatico em destacados expoentes culturais ¢ politicos da Inglaterra liberal, o que suscita a indignagao de J. S. Mill. Em conclusio, antes em ocasiio do caso Somerset, depois da revolugio americana ¢ por fim da guerra de Secesso, o mundo liberal apresenta-se pro- fundamente dividido em relagdo ao problema da escravidio. Como orientar- se nessa aparente babel? 11. Da afirmagao do principio da “inutilidade da escravidio entre nés” 4 condenagio da escravidio enquanto tal ‘Vamos tentar responder as perguntas que nos colocamos no inicio: po- dem ser considerados liberais autores como Fletcher e Calhoun? Na Ingla- terra liberal derivada da Revolug3o Gloriosa, Fletcher pode tranqiiilamente reivindicar a introdugao da escravidao para os vagabundos, sem ficar isolado de forma alguma, assim como nao estio isolados Hutcheson e Burgh, que manifestam posigdes mais ou menos semelhantes. Se Hutcheson é o mestre de Smith, Fletcher est4 em relagdes epistolares com Locke ¢ goza, junta- mente com Burgh, da estima de Jefferson ¢ dos ambientes préximos a ele. Estamos nos anos em que, como dizia Hume, “alguns apaixonados admi- radores dos antigos ¢ a0 mesmo tempo zelosos defensores das liberdades civis [...] nao conseguem deixar de lamentar a perda daquela instituigio” (a escravidao), que tinha engrandecido Atenas ¢ Roma’, Mas, com a afirmagéo 852, p. 325 (cap. 18) © Disraeli, 1852, p. 496 (cap. 24). * Hume, 1987, p. 383 (= Hume, 1971, vol. II, p. 786). 74 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO do princfpio da “inutilidade da escravidao entre nés”, as posigdes manifes- tadas por Fletcher deixam de existir ou de serem aceitas como liberais. E verdade, revelam-se duras de morrer. Ainda em 1838, um liberal alemao menciona o “conselho insinuado mais do que claramente pronunciado, que queria encontrar remédio ao perigo iminente [representado por uma dificil questo social] com a introdusao de uma verdadeira escravidao dos operdrios de fabvrica””', Mas, trata-se de uma sugestio repelida com desdém: a linha de demarcagao do “partido” liberal resulta jé tragada ha muito tempo. De forma andloga se pode argumentar em relacdo a Calhoun. Para este, € 0 Norte que se torna culpado de traigao dos principios liberais que haviam inspirado a revolucdo americana. Sim, “a defesa da liberdade humana contra as agressées de um poder despético foi sempre particularmente eficaz nos estados nos quais a escravidao doméstica se afirmou”; no ambito da Uniao, € 0 Sul que se levanta “com mais forga ao lado da liberdade”, é “o primeiro que percebe ¢ € o primeiro que contrasta as usurpagdes do poder”””. E no Sul que 0 liberalismo encontra a sua expresso mais auténtica e mais madura. O termo “liberal” — alerta John Randolph of Roanoke, as vezes definido o “Burke americano” — que originariamente indicava “um homem agarrado a principios amplos ¢ livres, um devoto da liberdade”, acharia o seu significado auténtico deformado se fosse utilizado para designar os que flertam com o abolicionismo”?. Um liberal hodierno poderia ser tentado a se livrar da presenca incd- moda, no ambito da tradi¢ao de pensamento a qual se vincula, de um autor como Burke, que celebra a intensidade particular do espirito liberal ¢ do amor pela liberdade nos proprietérios de escravos, ou de um autor como Calhoun, que ainda na metade do séc. XIX enaltece aquele “bem positivo” que é a escravidao. Acontece, entdo, que tanto um como 0 outro acabam for- malmente inscritos no partido conservador. Mas, essa operacao revela ime- diatamente a sua inconsisténcia. A categoria ‘conservador’ é um formalismo, uma vez que pode subsumir contetidos entre eles sensivelmente diferentes: trata-se de ver o que se entende por conservar e guardar; ¢ no hi diivida de que Burke ¢ Calhoun querem ser os guardides vigilantes das relacdes sociais € das instituigdes politicas derivadas respectivamente da Revolucio Gloriosa ¢ da revolug3o americana, ou seja, de duas revolucées eminentemente liberais. Nao teria sentido considerar liberais Jefferson e Washington e nao Burke * Mohl, 1981, p. 91. 7 Calhoun, 1992, p. 468 ¢ 473. ” Randolph, cit. in Kirk, 1978, p. 63 e p. 43 (para a definigao de “Burke americano”). II. Liberalismo ¢ escravidiao racial 75 que, ao contrario dos primeiros, no € proprietério de escravos ¢ que, quan- do celebra o “espirito de liberdade” ¢ a énfase “liberal” do Sul escravista, pensa exatamente em personalidades como os dois estadistas virginianos. Por outro lado, ainda em 1862 lorde Acton cita por extenso e¢ im sina o texto do whig inglés que, longe de excluir os proprietérios de escravos, confere a eles um lugar privilegiado no ambito do partido da liberdade”*. Seria também ildgico excluir de tal partido Calhoun, que nao cansa de reafirmar 0 seu apego aos organismos representativos ¢ ao princ{pio da limi- taco do poder. Se depois, indo para além do significado meramente formal do termo, por conservadorismo viesse a ser entendido 0 apego acritico a uma sociedade pré-moderna ¢ pré-industrial, caracterizada pelo culto do pedaco de terra e da comunidade, dificilmente tal categoria poderia servir para ex- plicar as posigdes de Calhoun. Uma vez garantidos os direitos da minoria, ele nao tem dificuldade para ampliar o sufragio ¢ até introduzir 0 “sufragio universal” masculino; por outro lado, juntamente com os organismos repre- sentativos, ele celebra o desenvolvimento das “manufaturas”, da industria ¢ do livre comércio”’. Talvez, a categoria de conservadorismo poderia valer para Jefferson. Este, localiza nos camponeses “o povo eleito de Deus”, socia as “grandes cidades” as “pragas” de um corpo humano” e, em 1812, em ocasiao da guerra com a Inglaterra, acusa esta de ser um instrumento de “Satanas”, pelo fato de obrigar a América a abandonar 0 “paraiso” da agricultura e se dedicar as “inddstrias manufatureiras”, de modo a enfrentar a prova das armas (infra, cap. VIII, § 16). E a categoria de conservado- rismo, quem sabe, poderia valer para Washington: ele também olha com preocupacao a possibilidade que os americanos possam se tornar “um povo manufatureiro”, no lugar de continuar a ser “cultivadores” da terra ¢ evitar assim o flagelo da “plebe tumultuada das grandes cidades””. Em particular, contra Jefferson parece polemizar Calhoun, quando rejeita a tese pela qual a manufatura “destréi o poder moral ¢ fisico do povo”: na realidade trata-se de uma preocupasao tornada cada vez mais obsoleta pela “grande perfeicio da maquinaria” introduzida pela industria”. Enfim, se parte integrante do liberalismo é a aceitacao do free trade, é evidente que nessa tradicio Ca- Acton, 1985-88, vol. I, p. 329. * Calhoun, 1992, p. 35-36 e 315. ® Jefferson, 1984, p. 290. ” Washington, 1988, p. 455 (fragmentos do primeiro esbogo do discurso de posse presi- dencial, abril de 1789) e554 (carta a M. J. G. La Fayette, 28 de julho de 1791) ™ Calhoun, 1992, p. 308. 76 CONTR: ISTORIA DO LIBERALISMO Ihoun pode ser inserido muito mais facilmente do que os seus antagonistas do Norte, envolvidos em rigidas praticas protecionistas suscetiveis, conforme a denincia do tedrico do Sul, de “destruir a liberdade do pais”. No sentido mais amplo do termo, o partido liberal abarca tanto os whi- gs como 0s tories. Os primeiros nao constituem necessariamente a ala mais avangada. Tory é Josiah Tucker, que admoesta Locke ¢ Burke por serem se- guidores de um “republicanismo” fundado sobre a escravidio ou a servidio da gleba. Pelo resto, em polémica com os “zelotes republicanos”, ele faz questdo de se colocar entre os intérpretes auténticos da “liberdade constitu- cional inglesa”™’. Tory ¢ também Disraeli, que, se de um lado ecoa os argu- mentos do Sul escravista, por outro, amplia sensivelmente a base social dos organismos representativos ingleses, permitindo o sufragio também a setores consideraveis das classes populares e ampliando-o muito mais do que, até entio, tivessem feito os whigs. No entanto, ainda antes da guerra de Secessao, fora do partido liberal se colocam os que, a partir da preocupacio de salvar o instituto da escravidio € da indignacio pelas armas fornecidas pelos organismos representativos a uma agitago abolicionista cada vez mais ameacadora, no Sul dos Estados Unidos falam como Fitzhugh de “fracasso da sociedade livre”, ou na propria Europa ironizam juntamente com Carlyle as ruinosas “épocas anarco-consti- tucionais”*'. Com o intuito de reafirmar a absoluta necessidade da escravidio como fundamento da civiliza¢ao, ambos acabam recolocando em discussio, pelo menos no plano tedrico, seja a delimitagao étnica como a delimitacao espacial do instituto da escravidao. Para Fitzhugh, como mostra também o exemplo da antigiiidade classica e como confirma a realidade do mundo mo- derno, o trabalho é insepardvel da escravidao, de modo que de uma forma ou de outra, “negra ou branca que seja, a escravidio é justa ¢ necesséria”*?. Ao justificar a escravidao dos afro-americanos do outro lado do Atlantico e ao retratar como “negros” os irlandeses®, Carlyle, admirado por Fitzhugh € por outros sulistas e em relagao epistolar com alguns deles™, chega a uma “conclusio” de cardter geral: “sancionada por lei ou anulada pela lei, a es- cravidao existe amplamente neste mundo, nas Indias Ocidentais e fora delas. A escravidao nao pode ser abolida com um ato do Parlamento; s6 € possivel ” Calhoun, 1992, p. 313. % Tucker, 1993-96, vol. V, p. IX, 12 ¢ 96. * Carlyle, 1983, p. 439. * Fitzhugh, 1854, p. 98 ¢ 225; cf. Losurdo 2002, cap. 12, passim, cap. 22, § 1 "Carlyle, 1983, p. 463-65. ™ Fitzhugh, 1854, p. 286; Genovese, 1998 a, p. 107. II. Liberalismo e escravidao racial 77 abolir o nome, € isto € muito pouco”’. Seja quando se fala de escravos ou de “servos assalariados a vida intcira”, ou de “adscripti glebae”, trata-se sempre de escravidao. Por outro lado, se 0 escravo é um “servo assalariado pela vida inteira”, por que a essa figura deveria ser preferido o “servo assalariado por um més” ou por um “dia”?** Movidos pela dureza da luta em curso, Fitzhugh e Carlyle voltam afinal as posigdes de Fletcher, antes marginalizadas e depois consideradas alheias pelo partido liberal. A passagem da primcira para a segunda posigao do par- tido liberal pode ser assim sintetizada: depois da derrota do Sul, da emanci- pacao dos escravos negros e das emendas introduzidas na Constituigao ame- ricana neste sentido, se passa da afirmagio do principio da “inutilidade da escravidao entre nés” na Europa ¢ nos “estados livres” do Norte dos Estados Unidos para a condenagio generalizada, nos dois lados do Atlintico, da es- cravidao enquanto tal. A partir desse segundo resultado, também as posigdes manifestadas por Calhoun sio rejeitadas pelo partido liberal. Mas, isso nao motivo para expurga-lo retrospectivamente da tradigio liberal; diversamente, a mesma sorte deveria ser reservada a Locke ¢ 4 grande parte dos protago- nistas da revolu¢ao americana ¢ das primeiras décadas de hist6ria dos Estados Unidos. Em todo caso, com o fim da guerra de Secessao, se fecha um ciclo his- térico. Derivados juntos de um singular parto gémeo, que os entrelaca um ao outro em uma relagdo nao isenta de tensdes, agora o liberalismo no seu conjunto rompe com a escravidio propriamente dita, com a escravidao racial ¢ hereditria. Mas, antes de cxaminar esses novos percursos, convém apro- fundar a andlise da socicdade que se afirma nos dois lados do Atlantico até a guerra de Secessao. Até agora temos centrado as atengdes sobre o problema da escravidao negra: mas quais relacdes se desenvolvem no ambito da comu- nidade branca? * Carlyle, 1983, p. 439. * Carlyle, 1983, p. 464-66. Il Os servos brancos entre metrépole e colénias: a sociedade proto-liberal 1. Franklin, Smith ¢ os “residuos de escravidao” na metrépole Em um primeiro momento os colonos rebeldes, em ocasiao da revo- lugdo americana, e depois 0 Sul dos Estados Unidos, quando do conflito que © contrapée ao Norte, acusam de hipocrisia os seus antagonistas: ficam indignados com a escravidao negra, mas fecham os olhos sobre © fato de que no ambito da socicdade apontada por cles como modelo continuam a subsistir relagdes substancialmente escravistas. Como se sabe, Franklin compara os mineiros da Escécia aos negros das planta- cs americanas ¢ contesta assim a pretensio do governo de Londres de erigir-se a campedo da liberdade. Trata-se de uma intervengao polémica cuja validade ¢ confirmada por uma testemunha muito respeitada. Mesmo partilhando da autoconscién- cia orgulhosa dos seus compatriotas ou da classe dirigente do seu pais, Adam Smith reconhece a permanéncia na Gra Bretanha de “residuos de escravidio”: nas salinas ¢ nas minas vigora uma relacao de trabalho nao diferente da servidao da gleba. Tal como os adscripti glebae (os servos da gleba), ainda muito numerosos na Europa oriental, esto vinculados coercitivamente a terra de cultivo ¢ vendidos de acordo com ela, assim no pais que deveria ter deixado para trés o Antigo Regime, os adscripti operi sio de certa forma parte integrante do opus ou do work (a salina ou a mina) e, em caso de venda deste, passam junto com a sua familia a0 servico do novo patra. Nao se trata portanto de verdadeira escravidao, da chattel slavery, que consente de introduzir separadamente no mercado os membros da familia como qualquer outra mercadoria. Os adscripti operi podem contrair matriménio e gozar de uma efetiva vida familiar, podem também possuir um minimo de propriedade ¢, naturalmente, ndo correm 0 risco de serem mortos impunemente: “as suas vidas estao sob a 80 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO protecdo da lei”!. Resta o fato que, na Escécia, os trabalhadores das minas de carvio ¢ das salinas cram obrigados a carregar um colar sobre 0 qual estava escrito o nome do patrao’. Na esteira do grande economista, Millar também nao deixa de “lamentar o fato de que qualquer tipo de escravidao deva ainda permanecer nos dominios da Gra Bretanha” ¢ faz votos para que o Parlamento intervenha para encontrar remédio, sancionando final- mente a “liberdade dos trabalhadores” também nas minas ¢ nas salinas escocesas”’. A julgar pelas Lezioni di Giurisprudensa de Smith, se trataria dos “ni- cos residuos de escravidio que permanecem entre nés”. Isto significa que as outras relages de trabalho seriam fundadas sobre a liberdade? Em relagao & Inglaterra da segunda metade do século XIX, Blackstone distingue trés tipos de “servos” em sentido estrito (vamos abstrair aqui do pessoal encar- regado de vigiar e proteger a propriedade do patrio): os menial servants ou os “domésticos”, os “aprendizes” e, por fim, os “trabalhadores” (/abourers), que trabalham fora da casa do patrio. A relacio de trabalho mais moderna, menos carregada de reminiscéncias feudais ¢ servis, seria esta ultima; mas, aqui, 0 grande jurista se abandona a celebracgio dos “regulamentos muito oportunos”, em base aos quais, por exemplo, “todas as pessoas privadas de visiveis meios de subsisténcia podem ser obrigadas a trabalhar”, enquanto sdo punidos os que “deixam ou abandoam o proprio trabalho”. Em relacio ao doméstico ¢ ao aprendiz, o patrao exerce sobre ele um direito de “punicao corporal”, que no entanto deve procurar evitar a morte ou a mutilagio’. Mas, o que acontece se esse limite é superado? Podemos deduzir a res- posta de Smith: “o patrio tem direito a punir o seu servo (servant) de manei- ra moderada, ¢ se o servo morrer por causa de tal punicao, nao € homicidio, a menos que nao tenha ocorrido com uma arma ofensiva ¢ com premeditacio € sem provocacao”. E dificil considerar tais servos homens livres embora, conforme o grande economista, eles gozem de “quase os mesmos privilégios dos patrdes, liberdade, saldrios etc”. Na realidade, 0 que estabelece uma ra- dical diferenga € 0 poder de correcao que alguns exercitam sobre outros; por outro canto, é o préprio Smith quem coloca os menial servants, a0 lado dos verdadeiros escravos, no ambito da familia ampliada do patrao’. ‘Smith, 1982, p. 191. * Davis, 1971, p. 489. + Millar, 1986, p. 289-90 (= Millar, 1989, p. 236-37). + Smith, 1982, p. 191. *Blackstone, 1979, vol. 1, p. 413-16 (livro 1, cap. 14). * Smith, 1982, p. 456. LIL. Os servos brancos entre metrépole e colénias 81 Este nao se limita a controlar a laboriosidade do servo. Vamos ouvir o testemunho de Hume: “Atualmente todos os patrdes desencorajam os pré- prios servos masculinos a se casar ¢ nao aceitam de maneira alguma que en- contrem marido as fémeas, as quais em tal caso nao teriam mais condi¢io de cumprir com seus deveres””. Nao apenas ao escravo negro, mas também ao servo doméstico branco parece amplamente fechada a possibilidade de for- mar familia: a vida particular dos dois esta submetida ao poder ¢ ao arbitrio do patrao. Por fim, deve ser observado que aos menial servants podem ser apro- ximados os “aprendizes”, cuja condigo, no que diz respeito & Inglaterra, havia sido considerada por Grotius muito proxima da do escravo. E esta é, no fundo, também a opiniaio de Bleckstone. Ele reafirma a obrigacdo do escravo de prestar “servico perpétuo” com um argumento muito eloqiiente: afinal, trata-se da mesma relaco que aprendiz estabelece com 0 patrao; s6 que neste segundo caso entra uma limitagao temporal (sete anos ¢ as vezes mais)’. Como tem sido justamente observado, “para Brande parte da histéria humana a expressio ‘trabalho livre’ foi um oximoro” 2. Desempregados, mendigos ¢ casas de trabalho Enquanto a polémica entre as duas partes da Unido torna-se cada vez mais aspera, Calhoun contrapée positivamente a condig4o dos escravos ame- ricanos 4 dos detentos da Inglaterra nas casas de trabalho ou nos abrigos para pobres: os primeiros cercados de cuidados e assistidos amavelmente pelo pa- trao ou pela patroa nos momentos de doenga ¢ durante a velhice, os segun- dos reduzidos a uma “condi¢ao desumana ¢ abjeta”; os primeiros que conti- nuam a viver no circulo da familia ¢ dos amigos, os segundos desenraizados do seu ambiente ¢ separados também dos seus entes queridos''. E evidente a intengao apologética que orienta a descricdo ou transfiguragao do instituto da escravidio. Contudo, no que diz respeito 4s casas de trabalho na Ingla- terra, nao € apenas Calhoun quem salienta 0 erro. Aos olhos de Tocqueville, 7 Hume, 1987, p. 386 (= Hume, 1971, vol. II, p. 790). * Smith, 1982, p. 456. » Blackstone, 1979, vol. I, p. 412-13 (livro I, cap. 14). Drescher, 1999, p. 401, "Calhoun, 1992, p. 474. 82 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO elas oferecem o espetdculo “o mais horrivel ¢ o mais repugnante da miséria”: de um lado os enfermos sem condi de trabalhar e que esperam a morte, de outro mulheres e criangas amontoadas “como suinos na lama do seu chi- queiro; é dificil nao pisar em algum corpo seminu”. Enfim, os relativamente mais “afortunados”, os que estio em condicao de trabalhar: ganham pouco ou nada se alimentam também das sobras das casas senhoriais'. Mas, por quanto sejam horriveis, a miséria e a degradacio nao repre- sentam o aspecto mais significativo das casas de trabalho. No inicio do séc. XVIII, Defoe menciona com simpatia o exemplo “da workhouse de Bristol, transformada em terror para mendigos a tal ponto que agora ninguém arrisca se aproximar da cidade”". De fato, a casa de trabalho seré mais tarde descri- ta por Engels como uma institui¢ao total: “Os papers vestem o uniforme da casa € estdo sujeitos ao arbitrio do diretor sem a menor prote¢’o”; para que “os pais ‘moralmente degradados’ evitem influenciar os seus filhos, as familias so separadas; o homem é posto em uma sala, a mulher em outra, os filhos em uma terceira”. A unidade familiar € rompida, mas pelo resto, todos ficam amontoados as vezes com até doze ou dezesseis em um quarto e contra todos é praticado todo tipo de violéncia que no poupa velhos nem criangas ¢ que comporta atengées particulares para as mulheres. Na pratica, os internados das casas de trabalho sio tratados como “objetos de desprezo ¢ horror colocados fora da lei ¢ da comunidade humana”. Explica-se entao © fato, sublinhado por Engels, que, para escapar das “bastilhas da lei dos po- bres” (poor-law bastiles) — como haviam sido batizadas pelo povo - “freqiien- temente os internados das casas de trabalho se tornavam intencionalmente culpados de um delito qualquer para entrar na prisio”"". Até, — acrescentam historiadores dos nossos dias - “numerosos indigentes preferiam morrer de fome c de doenca” no lugar de submeter-se a uma casa de trabalho’. Leva a pensar no suicidio ao qual freqiientemente recorriam os escravos para escapar da sua condiga0. Olhando bem, a lei de 1834, que recolhe nas casas de trabalho os que pediam assisténcia, confere alguma razao a Calhoun € aqueles que indicavam na escravidio a Gnica solugdo possivel para o pro- blema da pobreza. Ao lutar pela nova legislacio, Nassau W. Senior, que ¢ 0 inspirador dela, denuncia nestes termos a mortal contradi¢o da normativa vigente até entdo, que permitia ao pobre receber um minimo de assisténcia * Tocqueville, 1951, vol. V, t. 2, p.97. '3 Defoe, 1982, p. 77. “Marx, Engels, 1958-89, vol. If, p. 496-97. ' Barret-Ducrocq, 1991, p. 94. III, Os servos brancos entre metrépole ¢ colénias 83 mesmo continuando a ter a sua vida normal: “O trabalhador deve ser um agente livre sem os riscos da livre ago, deve ser livre da coer¢ao € no entan- to usufruir ao mesmo tempo da subsisténcia assegurada ao escravo”. Mas é totalmente absurda a pretensdo de “unir as vantagens inconcilidveis da liber- dade e da escravidio”: impde-se uma escolha’®. Argumentando desta forma, © influente economista € teérico liberal, interlocutor ¢ correspondente de Tocqueville, acaba por reconhecer a natureza substancialmente escravista das relages vigentes no interior das casas de trabalho. Emanada em 1834, a nova legislagao chega a coincidir com a emancipacio dos negros nas colénias. Entende-se, entio, a ironia de um lado dos teéricos do Sul escravista nos Estados Unidos, por outro das massas populares inglesas em relacio a uma classe dominante que, enquanto se gabava de ter abolido a escravidao nas coldnias, a reedita de maneira diferente na propria metrépole. 3. Liberais, vagabundos e casas de trabalho Vimos como Sénior desempenhou a sua funcdo na elaboracio da Ici de 1834. Mas, como se comporta a tradi¢ao liberal no seu conjunto em relagio as casas de trabalho e, em geral, da politica disciplinar da pobreza? Para Lo- cke, € necessdrio intervir de forma capilar ¢ drdstica em uma 4rea infectada da sociedade em continua expansio. Convém assim, jé desde os trés anos, direcionar para 0 trabalho as criancas das familias que nao tém condigdes para alimenté-las”. E necessério, também, intervir na vida dos seus pais. Para desencorajar o écio ¢ a degradagao dos vagabundos, scria oportuno efetuar nas Areas por eles freqiientadas a “supressio das vendas de bebidas nao estri- tamente indispensdveis e das tabernas nao necessarias” . Em segundo lugar, trata-se de desencorajar e reprimir a csmola. Os mendigos tém a obrigacao de carregar um “distintivo obrigatério”; para vigié-los, ¢ para impedir que eles possam exercer a sua atividade fora da 4rea c do hordrio permitidos, € providenciado um corpo especial, os “espantadores de mendigos”, que por sua vez devem ser controlados pelos “guardiées” de maneira que os primei- ros venham a desempenhar a sua tarefa com a necessaria aplicacao ¢ 0 devido rigor”. Mas, para a caca dos mendigos abusivos ¢ chamada a participar de Senior, 1966, p. IX. ¥ Locke, 1993a, p. 454. * Locke, 1993a, p. 447. ** Locke, 1993a, p. 460. 84 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO forma coletiva a inteira comunidade, a partir dos habitantes da casa onde os desventurados tiverem se dirigido para pedir esmola”. Punigdes draconianas esperam por vagabundos que consigam escapar desse controle olhudo. Para os que forem surprecndidos a pedir a esmola fora da prépria pardquia ¢ perto de um porto de mar serd conveniente em- barca-los coercitivamente na marinha militar; “se depois descerem em terra sem permissao, se afastarem ou se detiverem em terra por mais tempo do quc 0 permitido, serio punidos como desertores”ou com a pena capital. Os outros pedintes abusivos sao internados em uma casa normal de trabalho ou de corregio. O diretor “nao tera outra remuneragao ou gratificagao fora aquela que rende o trabalho dos internados na casa de correcio, que cle teré a faculdade de fazer trabalhar 4 sua discric¢ao”. Esse poder arbitrario evoca de novo o espectro da escravidao. O que é confirmado com mais um particular: “Quem falsificar um salvo-conduto [saindo sem permiss4o] seja punido com o corte das orelhas na primeira vez, na segunda seja deportado nas plantacdes como se fosse por um crime”! Certamente, no séc. XIX a situag4o é diferente. Com a reforma de 1834, nas casas de trabalho chegam os que procuram escapar de qualquer maneira A morte por inanigao: é preciso portanto torna-las odiosas o mais possivel para reduzit a0 minimo o niimero dos que nelas procuram abrigo. Desta filosofia, que comega a se delinear com Malthus”, partilha também Tocqueville: “E evidente que precisamos tornar desagradavel a assisténcia, precisamos separar as familias, transformar a casa de trabalho em uma prisio e tornar a nossa caridade repugnante” Ao denunciar essa situagdo, Calhoun menciona s6 a Europa. Mas, ela est4 presente, de uma forma ou outra, também nos Estados Unidos. Tocqueville fala disso significativamente no ambito da anilise do “sistema penitencidrio”. Quem sao os presos? A resposta é clara: “Os indigentes que | nao podem e 0s que nao querem ganhar a vida com um trabalho honesto””. Entende-se, entdo, porque as casas de trabalho acabam sendo particularmente apinhadas em situagées de crise: “As flutuacdes da indastria atraem, quando cla ¢ préspera, um namero grande de operdrios, que nos momentos de crise, se encontram sem trabalho. Observamos ® Locke, 1993a, p. 480. » Locke, 1993a, p. 449. 2 Malthus, 1977, p. 46-47 Tocqueville, nota do didrio de 4 de fevereiro de 1851, in H. Brogan, 1991, p. 35. Tocqueville, 1951, vol. IV, t. 1, p. 319. __ HII. Os servos brancos entre metrépole ¢ colénias 85 assim que a vagabundagem, que nasce do écio, ¢ 0 roubo, que na maioria das vezes € conseqiiéncia da vagabundagem, sio os dois delitos que no estado atual da sociedade conhecem a progressio mais répida”™5. O delito que condena ao internato é localizado j4 na desocupagio ¢ na indigéncia. Quem toma a decisao é, por exemplo em Nova York, um fun- ciondrio que pode tranqiiilamente privar da liberdade os que, no entender dele, “nao tém meios de subsisténcia”””. Nao faltam protestos: 0 pobre assim recluso “considera-se infeliz, nao culpado; cle contesta a sociedade o direito de forca-lo com a violéncia a um trabalho infrutifero ¢ de deté-lo contra a sua vontade””, Mas, voltemos a Inglaterra. John S. Mill € propenso a minimizar o hor- ror das casas de trabalho quando observa: “Também o trabalhador que perde © emprego porque é ocioso € negligente nao tem nada de pior a temer, na hipétese mais desventurada, do que a disciplina de uma workhouse” . Mas, 8 opiniao do filésofo liberal se pode contrapor a dos nossos estudiosos con- temporaneos: uma vez dentro das casas de trabalho, os pobres “deixavam de ser cidadaos em todo sentido genuino da palavra”, j4 que perdiam o “direito civil da liberdade pessoal”, E trata-se de uma perda radical: aos “guardides” das casas de trabalho era conferido o livre poder de aplicar aos detentos as punigdes corporais consideradas mais oportunas”. ~ Claramente entusiasta é ao contrario Bentham. Este nao cansa de exaltar os beneficios dessa instituigio, que ele pretende aperfeicoar, colocando a casa de trabalho em um edificio “panético”, que permita ao diretor exercer um controle secreto ¢ total, isto é, observar em qualquer momento todo o comportamento dos detentos ignaros: “Qual é o empresdrio que teré sobre os seus operérios um poder (hold) igual a0 que eu pratico sobre os meus? Qual é o patrio que pode reduzir os proprios ope- rérios, quando ociosos (idle), a uma condigao proxima da inanicao, sem temer que saiam? Qual o patrdo que tem homens que nunca podem se embriagar sem que cle mesmo o decida? E qual € o operario que, longe de poder aumentar o proprio salério » Tocqueville, 1951, vol, IV, t. 1, p. 50-51. % Tocqueville, 1981, vol. V, t. 1, p. 71. ” Tocqueville, 1951, vol. V, t. 1, p. 319-20. » Mill, 1983, p. 340 (livro Il, cap. 1). * Marshall, 1976, p. 20. % Davis, 1986, p. 122. 86 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO pela associag’o (combination) com outros operirios, obrigado a aceitar qualquer miséria que o patrio, com base em seus interesses, considera oportuno Ihe conceder? [.-.] Qual o patio ou empresério em condigio de manter sob controle, toda vez que Ihe parece util, qualquer olhar ou movimento de todos os operérios?”*" Ser4 prodigiosa, portanto, a contribuigio para o desenvolvimento da riqueza nacional oferecida pelas casas de trabalho, chamadas a funcionar como “casas empresas” ( Industry-houses). Convém difundi-las sobre todo © territério nacional, trancando até 500.000 detentos, e “qualquer pessoa totalmente privada de propriedade evidente ou presumida, quer dizer de meios de subsisténcia honestos ou suficientes”. Gragas a este gigantesco universo concentrado, onde chega-se a ser internado sem ter cometido crime algum e sem ter controle algum da magistratura, ser4 possivel operar © milagre da transformagio em dinheiro daquele “material descartado” (dross) que € 0 “lixo da populacio””’. E isso nao € tudo. Por meio do isolamento que comporta, a casa de trabalho permite experimentar, como veremos, a producao de uma espécie de operdrios particularmente laborio- sos € responsiveis. Certamente, para que tais objetivos sejam alcancados, é necesséria uma disciplina rigorosa, que deve ser interiorizada até o fundo pelos detentos na casa de trabalho: “Os soldados vestem uniformes: por que nao deveriam usé-los os pobres? Se quem defende o pais os veste, por que no deveriam também usé-los os que por ele so sustentados? Nao s6 a forca de trabalho que reside permanentemente, mas também os trabalhadores eventuais deveriam vestir o uniforme quando estio na casa, para a boa ordem e a facilidade de serem separados ¢ reconhecidos, e ao mesmo tempo pela limpeza”™. 4. O servo como soldado Como acabamos de ver, € 0 proprio Bentham quem compara a condi- 20 do detento nas casas de trabalho a do soldado. Mas, convém voltar a0 passado. Durante a sua permanéncia em Londres, posto em dificuldade pelos seus interlocutores ingleses, que zombam da bandeira da liberdade agitada + Bentham, 1838-43, vol. IV, p. 56 (= Bentham, 1983, p. 76-77). Bentham, 1838-43, vol. VIII, p. 368-70. » Bentham, 1838-43, vol. VIII, p. 398; Himmelfarb, 1985, p. 80. ™ Bentham, 1838-43, vol. VIII, p. 389. III. Os servos brancos entre metrépole ¢ colénias 87 pelos colonos muitas vezes proprictarios de escravos, Franklin reage eviden- ciando a persisténcia na Inglaterra de relagdes cscravistas até no ambito das forgas armadas"’. Refere-se particularmente a marinha, Vamos dar a palavra aos historiadores dos nossos dias: “Os marinheiros eram tao mal pagos, mal alimentados € maltratados, que era impossivel recrutar tripulagdes com alis- tamento voluntério”. Muitos procuravam escapar desta espécie de seqiiestro de pessoa, mas a Gra Bretanha os perseguia, sem hesitar em bloquear os navios americanos ¢ capturar com a forca das armas os desertores, inclusive ‘os que haviam se tornado cidadaos estadunidenses. Era necessario recorrer a métodos drésticos para garantir 0 funcionamento de “mais de 700 navios de guerra com cerca de 150.000 homens”. Eis entdo que também Calhoun denuncia, assim como Franklin, a “escravidao dos nossos marinhciros recru- tados a forca””. Tratava-se de um motivo bastante divulgado na imprensa da época: na propria Inglaterra, os defensores da escravidao evidenciavam a analogia entre esse instituto ¢ o recrutamento forgado da marinha: as duas praticas cram jus- tificadas pelas circunstdncias excepcionais, ou pela necessidade de manter res- pectivamente as colénias ¢ a marinha a militar; por outro lado, o abolicionista Sharp condenava ambas as priticas". Ao contrério, quem fazia distincdes era William Wilberforce, acusado de hipocrisia pelos scus adversérios”: 0 piedoso pastor comovia-se pelos escravos negros, mas era insensivel aos softi- mentos nao menos graves padecidos por aquela espécie de escravos brancos sobre os quais se fundavam a poténcia militar ¢ a gléria do Império britanico. O argumento nio podia ser desprezado: 08 marinheiros cram “recrutados com a forca pelas ruas de Londres ¢ Liverpool”, ¢ na populagao nio havia instituigao mais odiada do que a press gang, o recrutamento forcado"" -Aque tipo de condigdes cram depois submetidos pode ser facilmente deduzido pela comparacio indireta que Locke traca entre o poder do “capitao de uma galé” ¢ aquele do “senhor dos escravos” (TT, II, 2). A captura dos marinhei- ros nos bairros populares tinha pontos em comum com a captura dos negros na Africa. » Franklin, 1987, p. 652. % Nevins, Commager, 1960, p. 170. * Calhoun, 1992, p. 291. * Davis, 1975, p. 376, 394. » Rice, 1982, p. 151. * Foner, 2000, p. 19. “ Thompson, 1988, p. 88. 88 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO Por outro lado, nao se tratava apenas da marinha. Uma estudiosa con- temporanea sintetiza assim a condicao desses “detentos em uniforme” (mi- litar) que eram na realidade os soldados, chamados a defender em todos os cantos do mundo um Império em répida expansio: “Eram embarcados ¢ levados para terras longinquas muitas vezes em condigdes repugnantes ¢ até contra a propria vontade. Podiam ser separados por décadas ¢ as vezes para sempre das suas familias, das suas mulheres ¢ da sua cultura de origem. Se julgados desobedientes ou rebeldes, eram facilmente chicoteados. Se condena- dos por tentar a fuga podiam sofrer a pena capital; mas permanecendo no lugar € obedecendo as ordens era de qualquer modo provavel que morressem de morte prematura™*?, Por outro lado, é significativa a maneira pela qual Locke descreve a “pré- tica corrente na disciplina militar”: “A preservagio do exército ¢, com cle, do Estado no seu conjunto exige obe- diéncia absoluta das ordens de qualquer oficial superior, ¢ desobedecer ou discutir mesmo as mais irracionais significa exatamente a morte. Contudo, observa-se que nem o sargento, que pode dar ordens a um soldado de marchar em direso a boca de um canbio ou de ficar em lugares onde a morte & quase certa, pode dar ordens para que aquele soldado venha a Ihe dar algum dinheiro; nem o general, que pode condené-lo por desergio ou por nio ter executado as ordens mais impossiveis, pode, com todo o seu absoluto poder de vida e de morte, dispor de um centavo de proprie- dade daquele soldado ou apropriar-se de uma migalha dos seus bens; isto, mesmo podendo exigir qualquer coisa podendo enforcé-lo pela menor desobediéncia” (TT, II, 139). Dé particularmente que pensar o “absoluto poder de vida ¢ de mor- te” que 0 oficial exerce sobre os seus subordinados. E a expressio que Lo- cke normalmente usa para definir a esséncia da escravidao. Trata-se de uma amplificago ret6rica? Jé em Grotius encontramos a observagao pela qual a condigao do escravo nao é muito diferente da condicao do soldado (JBP, IL, V, § 28). Mas, vamos nos concentrar sobre a Inglaterra liberal. A taxa de mortalidade dos soldados na viagem para a india € compardvel & que atingia 0s escravos negros ao longo da sua deportacao de um lado para 0 outro do Atlantico. Por outro lado, os soldados ingleses eram submetidos a punicio tradicionalmente reservada aos escravos, isto €, ao chicote, ¢ de mancira pa- * Colley, 2002, p. 314. IIL. Os servos brancos entre metrépole ¢ colénias 89 radoxal continuaram a ser submetidos a isso mesmo quando essa disciplina havia sido abolida pelas tropas indianas". No exército as relagdes de poder reproduzem as existentes na sociedade. A figura do soldado tende a coincidir com a do servo. No inicio do séc. XVIII Defoe observa: “Qualquer homem deveria desejar carregar 0 mosquete antes que morrer de fome. [...] E a pobreza que torna os homens soldados, que leva as multiddes nos exércitos”” . No final do século Townsend reafirma que “q indigéncia ¢ a pobreza” podem empurrar “as classes inferiores do povo a enfrentar todos os horrores que os esperam no oceano tempestuaso ‘ou sobre © campo de batalha”*’. Quer dizer, nas palavras de Mandeville, “as durezas € 0 peso da guerra, tudo o que suporta pessoalmente, recacm sobre os que sustentam qualquer coisa”, isto é, sobre os servos habituados a trabalhar ¢ a sofrer “de maneira semelhante aos escravos””. Neste sentido, a figura do oficial tende a coincidir com a do senhor, ¢ declarado ¢ até ostentado é 0 desprezo que 0s oficiais-senhores tém cm relasio a tropa: nas palavras de um soldado simples, esta era “como a classe mais infima de animais, digna sé de ser governada com o gato de sete rabos””, ou seja, com o chicote capaz de infligir as punig6es mais sddicas, as que normalmente so reservadas 20s escravos desobedientes. 5. Cédigo penal, formagao de uma forsa de trabalho coercitiva € processo de colonizagio Podemos entender entao as dificuldades do recrutamento militar: “as prisdes sao rastreadas para extrair delas malfcitores a serem recrutados”; 0 Oficio do soldado - observa Defoe - € repassado particularmente a “ho- mens provenientes da forca”™". E esses eram em grande niimcro na época. De 1688 a 1820 os crimes que comportavam a pena de morte passam de 50 a 200-250, ¢ trata-se quase sempre de crimes contra a propriedade: enquanto até 1803 a tentativa de homicidio € considerada crime leve, 0 furto de um shilling (quer dizer de um lengo) ou o corte abusivo de uma cerca ornamen- tal podem levar a forca; ¢ é possivel ser entreguc ao carrasco também com a * Colley, 2002, p. 314-16. * Defoe, 1982, p. 84-85, + Townsend, 1971, p. 35. “ Mandeville, 1988, vol. I, p. 119. * Colley, 2002, p. 314. Defoe, 1982, p. 84. 90 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO idade de onze anos". Em alguns casos, até, quem corre esse risco so criangas de idade inferior: em 1833 a pena capital ¢ aplicada a um pequeno ladrao de nove anos, embora a sentenga acabou nao sendo executada™”. ‘Ainda mais significativa do que o agravamento das penas é a criminaliza- ¢40 de comportamentos até entdo totalmente licitos. A cerca ¢ a apropriacio privada das terras comuns chegam a alcangar um grande desenvolvimento; € 0 camponés ou 0 homem do povo que demora a se aperceber da nova situagdo torna-se um ladrao, um criminoso a ser enquadrado nos rigores da lei. Pode parecer um comportamento arbitrario e brutal. Mas, nao é assim que pensa Locke. Ao legitimar a apropria¢ao por parte dos colonos das ter- ras deixadas incultas pelos indios, o segundo Tratado sobre 0 governo assume a0 mesmo tempo clara posicao a favor das cercas na Inglaterra. “No inicio todo o mundo era América” (TT, II, 49); ¢ as terras comuns sio uma espé- cie de residuo daquela condigdo originaria e selvagem que, sucessivamente, trabalho, apropriag3o privada ¢ dinheiro contribuem para superar. Trata-se de um processo que se manifesta em larga escala no outro lado do Adiantico, mas que nao est4 ausente também na Inglaterra: “também entre nés uma terra deixada inteiramente no estado natural, nao feita frutificar pelo pasto, o cultivo ou a plantaco, é chamada de deserto (wast), como de fato é, e a sua utilidade € pouco mais do que nada”, até que intervenham a benéfica cerca e a apropriacao privada (TT, II, 42). Juntamente com a espolia¢ao contra os indios e os camponeses ingleses, Locke justifica também a legislacao terrorista em defesa da propriedade: “O homem tem direito de matar um ladrdo que nio Ihe tenha causado lesio alguma e que, em relagio a vida, ndo tenha passado da manifestagio de um desenho para reduzi-lo com a forca em seu poder, de modo a levar dinheiro ou outra coisa” (TT, It, 18). S6 aparentemente trata-se de um crime menor; na realidade, desta for- ma o culpado, embora por um momento, privou do “direito a liberdade” a sua vitima, a tornou “escrava”; assim ninguém pode excluir que depois do furto nao venha o assassinato, uma vez que € exatamente o poder de vida ¢ de morte o que define a relagao de escravidao. Esta ¢ sindnimo de estado de guerra ¢ portanto nao h4 motivo algum para nio infligir a morte ao ladrio, seja qual for a natureza do furto (TT, II, 17-18). O que est4 em jogo — pa- * Thompson, 1989, p. 28-29; Arblaster, 1987, p. 172; Hughes, 1990, p. 58 % Harris, 1963, p. 211 III. Os servos brancos entre metrépolee colénias 91 rece dizer Locke - nao é apenas o shilling ou 0 lenco ou algum outro roubo modesto; o que esté em perigo é a propriedade privada enquanto tal ¢, por tris dela, a liberdade. Ou seja, 0 que legitima a matanga ou a execugdo do ladrao é o mesmo pathos liberal que preside a condenagdo do despotismo monarquico como fonte da escravidio politica. ‘Além das terras comuns, também as aves ¢ 0s animais selvagens tornam- se objeto de apropriagao privada pela aristocracia da terra. Neste caso nao é possivel evocar Locke. Ao contrario, com base na sua teoria, nao tendo sido transformados pelo trabalho, aves ¢ animais selvagens deveriam ser conside- rados propriedade de todos. Todavia, pela legislagio emanada depois da Re- volusao Gloriosa, se o camponés desliza para a condigio de ladrio, o cagador transforma-se em invasor; ¢ também Neste caso para fazer respeitar 0 abuso é invocado o terrorismo do cédigo penal’. Tal como pelo comércio ¢ a escravidao dos negros, também em relacio a expansio dos crimes contra a propriedade e 0 agravamento das penas pre- vistas contra elas, a explicagio histérica vulgar nao se sustenta. E escapista a explicaao que remete ao espirito do tempo. “Duvida-se que em algum ou- tro pais vigorasse um cédigo criminal rico de tantos artigos relativos 4 pena de morte”. O cardter impiedoso da legislacao inglesa torna-se proverbial j4 na sua publicacgo. Enquanto Napoledo usa sua mio de ferro na Franca, um reformador como sir Samuel Romilly chega a uma amarga constatagio: “Provavelmente no mundo nao hé outro pais, além da Inglaterra, no qual tantas agdes € de tipo tao diverso sejam puniveis com a perda da vida”® Ainda no inicio do séc. XIX, Hege! denuncia a severidade “draconiana” com a qual “na Inglaterra ¢ enforcado qualquer ladrao”, com uma absurda assimi- lacdo de vida ¢ propriedade, dois crimes “qualitativamente diferentes” como © assassinato ¢ 0 roubo. Fica também clara a origem de classe de tal severi- dade “draconiana”: aos camponeses culpados de caca ilegal sio imputadas “as penas mais duras ¢ exageradas”, pelo fato de que “quem faz aquelas leis ¢ senta nos tribunais, na qualidade de magistrado e jurado” é a aristocracia, justamente a classe que tem sc reservado 0 monopélio do dircito de caga™ . A necessidade de manter ordem ¢ lei ¢ apenas um aspecto do problema. Nao sio poucas as vezes em que os condenados a morte (ou até a uma longa detencio) se deparam com a sua pena transformada em deportacao nas co- # Thompson, 1989. 2 Assim o historiador do dircito Leon Radzinowicz, cit. in Thompson, 1989, p. 29. Harris, 1963, p. 211, 214. + Losurdo 1992, cap. V, § 8. 92 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO lénias, Em ato hd mais tempo, desde 1717, a pritica da deportagao assume cardter oficial ¢ proporgdcs considerdveis”*. Quer dizer, depois da Revolugo Gloriosa observa-se de um lado a emanagao de uma legislacao terrorista e por outro a intensificac3o do fendmeno da deportacao em colénias longinquas. Hé uma relacio entre esses dois fendmenos? Fica dificil negar que a forma- 40, mediante 0 drastico endurecimento do cédigo penal, de uma ampla forca de trabalho coercitiva, obrigada a sofrer condic&es que nenhum colono livre teria aceito, permite finalmente satisfazer as “necessidades das planta- ges”. Por outro lado, na raiz dessa prdtica existe uma teoria clara. Locke exige repetidamente a escraviddo penal para quem atenta contra a vida ou a propriedade de um outro. J4 no estado de natureza “a pessoa lesada tem 0 poder de apropriar-se dos bens ou dos servicos (service) de quem a ofendeu” (TT, II, 11). A situagao torna-se ainda mais clara no estado social: “Se alguém por culpa propria, cumprindo um ato merecedor da morte, chegou a comprometer (forfeited) a propria vida, aquele para 0 qual a deu em penhor (forfeited) pode, uma vez capturada, poupd-la e reduzir 0 homem a seu servico (service). Nem por isso Ihe causa um mal, porque 0 culpado, quando sentir que a dureza da sua escra- viddo (the hardship of his Slavery) supera o valor da sua vida, poderé opor-se 4 vontade do patrio e assim procurar a morte, conforme o seu desejo” (TT, II, 23). A teoria da guerra colonial como guerra justa (por parte dos europeus) ¢ a teoria da escravidao penal legitimam e estimulam a deportacio respectiva- mente dos escravos negros ¢ dos semi-escravos brancos dos quais tem neces- sidade o desenvolvimento das colénias. Na véspera da revolug3o americana, sé em Maryland havia 20 mil servos de origem criminal. Nas palavras de Samuel Johnson, estamos na presenga de “uma raga de detentos, ¢ eles de- veriam ficar contentes por tudo o que lhe oferecemos para escapar da forca”. £ dessa forma que é alimentada uma fonte inesgotavel de forca de trabalho imposto”. 6. Os servos a contrato E uma forga de trabalho que se revela preciosa para povoar ¢ fazer frutificar as colénias progressivamente conquistadas. Em uma primeira fase $5 Hughes, 1990, p. 71 % Williams, 1990, p. 12; ef. Hughes, 1990, p. 70. * Jernegan, 1980, p. 47-49, em particular p. 48 (pela citagdo de S. Johnson). III. Os servos brancos entre metrépole ¢ colénias 93 © fluxo dos indentured servants se dirige para a América; em seguida, su- plantados e tornados supérfluos pela introdugao maciga de escravos negros ¢ em todo caso depois da obtengao da independéncia por parte dos Esta- dos Unidos, os semi-escravos brancos sio enviados em dire¢io 4 Australia, ‘onde fornecem uma contribuigio ainda mais importante ao processo de valorizagio da nova colénia. Quais sio as caracteristicas dessa nova rela- do de trabalho? Comecemos pela viagem ou pela deportacao a partir da Inglaterra. Horrores ¢ taxa de mortalidade levam a pensar ao famigerado Middle Passage, ao qual eram submetidos os escravos negros. As vezes, nem a metade dos “passagciros” sobrevivia 4 viagem. Entre cles havia também criangas de um a sete anos: raramente escapavam da morte. Uma testemu- nha narra ter visto, durante uma s6 viagem, trinta ¢ duas pequenas criangas langadas ao oceano. As doengas continuavam a enfurecer também depois de atravessar 0 Atlantico; por isso os recém-chegados cram submetidos a quarentena. Depois era a vez do mercado. Nos jornais podiam ser lidos antincios comerciais deste tipo: “Acaba de atracar a Leedstown o navio Justia com uma carga de cem servos, em boas condigées de satide, ho- mens, mulheres, garotos, entre os quais numerosos artesios [...] A venda iniciara terga-feira, dia 2 de abril” ( Virginia Gazette de 28 de marco de 1771). Marido ¢ mulher cram freqiientemente separados ¢ podiam ficar separados por muito tempo ou para sempre dos seus filhos; criangas com idade inferior aos cinco anos eram assim obrigadas a prestar servico até 0 vigésimo primeiro ano de idade. Chicoteados pelos seus patrdes em caso de indisciplina ou desobediéncia, as vezes os servos escolhiam a fuga, quando entio desencadeava-se a caga a0 homem. A imprensa local providenciava uma cuidadosa descrigio fisica dos fugitivos que, uma vez capturados, cram punidos ¢ marcados a fogo com a letra R (quer dizer “Rogue”) ou eram submetidos ao corte das orelhas: assim, imediatamente reconhecidos, nao tinham mais como escapar™. Qual era entio a diferenga em relagio aos préprios escravos? As vezes os semi-escravos brancos se lamentavam: “Muitos negros tém tratamento melhor”. Na realidade, a0 contrario dos escravos propriamente ditos, os ser- vants podiam se dirigir 4 magistratura € podiam esperar serem admitidos na comunidade dos livres ¢ acabavam sendo incluidos, naturalmente “supondo que sobrevivessem ao periodo do trabalho”. Na verdade, freqiientemente a Jernegan, 1980, p. 50-54. * Foner, 2000, p. 26. 94 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO morte chegava antes; € de considerar que estamos na presenga de uma rela- Gao social que é diferente da escravidio hereditéria ¢ racial. Trata-se de uma relacdo social na insignia da liberdade? Vimos Locke por um lado sublinhar a génese contratualista ¢ portanto livre da figura do ser- vant, por outro lado deixar-se escapar a admissao que ele nao € propriamente re. Mas, a respeito, convém ouvir a opiniao também de Sieyés, que, com o olhar voltado para o outro lado do Atlantico, argumenta assim: “A diltima classe composta por homens que possuem sé os seus bragos pode ter necessidade da escravidao regulada pela lei para escapar da escravidao da necessidade. Por que limitar a liberdade natural? Quero vender o meu tempo ¢ os meus servigos de toda espécie (no a minha vida) por um ano, dois anes etc., como acontece na América inglesa. A lei cala a respeito, ¢ ela ndo deve falar se ndo para impedir os abu- sos deste instituto perigoso para a liberdade. Assim, nao ser4 possivel comprometer- se a servir por mais de cinco anos™®. Sieyés no o esconde: 0 que caracteriza a figura do indentured servant é a servidao, o “compromisso servil” (engageance serve), ou a “escravidio re- gulada pela lei”. Contudo, sobretudo depois da eclosio da revolugio france- sa, a preocupacao apologética parece ganhar forga: no novo clima ideolégico ¢ politico nao € mais possivel pronunciar-se a favor de um instituto do qual se reconhece o carater substancialmente escravista. Por isso, Sieyés polemiza contra Os que enxergam no servo contratual uma pessoa que “perde uma parte da sua liberdade”. Nao: “E mais correto dizer que, no momento em que estipula o contrato, longe de ser obstaculizado na sua liberdade, ele o exerce da maneira que mais lhe convém; toda convencio é um intercambio em que cada um ama o que recebe mais daquilo que oferece”. E verdade, pela duracao do contrato, o servo nao pode exercer a liberdade por ele cedi- da, mas € uma regra geral que a liberdade de um individuo “nunca se estende a tal ponto de prejudicar os outros””’. Por outro lado, desde 0 inicio Sieyés reivindica a servidao contratual em nome da “liberdade natural”, do direito que compete a cada individuo de estipular o contrato que considera mais oportuno. Em outras palavras, a ca- tegoria-chave do pensamento liberal (a categoria de contrato) invocada por Grotius também para legitimar a verdadeira escravidao, por Sieyés € aplicada 86 em relacao ao trabalho que vincula o indentured servant ao scu patrio. Sicyds, 1985, p. 76. * Sieyds, 1985, p. 89, 196. III. Os servos brancos entre metropole e colonias 95 Nao é muito distante de Locke, com a diferenga que o autor francés, pelo menos antes da revolugao, sublinha com forca o carater fundamentalmente escravista dessa relacao. Por isso, preocupa-se em evidenciar a vigilancia que a lei seria chamada a exercer: funciondrios pablicos deveriam controlar a ati- vidade do patrdo de maneira a impedir que a “persona” do servo “possa ser lesada mediante contratos muito extensos ou no decorrer do contrato’ Sieyés parece propor uma espécie de cédigo para a regulamentacio dessa semi-escravidao branca 4 semelhanga do Code noir, ao qual em teoria deve- riam se ater os patrdes dos escravos negros. 7. O “grande rapto herodiano das criangas” pobres Entre a forca de trabalho imposta chamada a assegurar o desenvolvimen- to das coldnias havia também criangas de condicdo pobre, atraidas engano- samente com doces, raptadas ¢ deportadas para 0 outro lado do Atlantico™. Diversamente, chegam 4 América juntamente com os seus pais, que muitas vezes sio obrigados a vendé-los para nunca mais vé-los. Na Inglaterra, por outro lado, a situacdo das criangas de origem popular nao era muito melhor. Marx denuncia “o grande rapto herodiano das criangas realizado pelo capital no inicio do sistema de fabrica nas casas dos pobres e dos orfanatos, por meio do qual chegou a incorporar um material humano totalmente desprovido de vontade”™. Indo além da utilizag3o dos orfanatos como fonte de forca de trabalho a baixo custo € mais ou menos coercitiva, € possivel fazer aqui uma consideragao de caréter mais geral. Se na teoria e na pratica proto-liberal do tempo o trabalhador assalariado é, como veremos daqui a pouco, 0 instru- mentum vocale de que fala Burke ou a “maquina bipede” nas palavras de Sieyés, os seus filhos sio em tiltima anilise res nullius, destinados & primeira ocasiio a serem utilizados exatamente na sua qualidade de instrumentos € méquinas de trabalho. Locke declara explicitamente que as criangas pobres, a serem encaminhadas ao trabalho desde os trés anos de vida, devem ser “retiradas das mos dos pais”*’. Embora distante mais de um século nio é diferente a atitude de Bentham. Este convida a se inspirar nos “exemplos de fabricas (manuflctures) onde criangas até os quatro anos de idade ganham * Sieyes, 1985, p. 76. © Williams, 1990, p. 11. Marx, Engels, 1955-89, vol. XXIII, p. 425, nota 144, Locke, 1993 a, p. 454. 96 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO alguma coisa, ¢ onde criangas com algum ano a mais ganham do que viver ¢ bem”. E licito ¢ benéfico “tomar as criangas das mios dos pais o mais pos- sivel ¢ até totalmente”. Nao se deve hesitar: “Vocés podem jogi-las em uma casa de inspecdo € depois fazer 0 que bem en- tenderem. Poderiam permitir, sem remorso, aos pais de dar uma espreitada por tras da cortina no lugar do mestre (...]. Poderiam manter separados por dezessete ou dezoito anos 0s vossos jovens alunos homens ¢ mulheres”. A sociedade pode dispor completamente dos filhos dos pobres. Somos levados a pensar na sorte reservada aos escravos no outro lado do Atlantico. Para pér fim a sua presenca no solo americano — sugere Jefferson — se poderia adquirir a baixo preco ¢ até obter gratis os negros recém-nascidos, entrega- los “A tutela do Estado’, submeté-los ao trabalho o mais cedo possivel ¢ as- sim recuperar em grande parte as despesas necessérias para a “deportacio” a Santo Domingo, a ser colocada em ato no momento oportuno. Certamente, ‘a separacdo das criangas das suas mes pode gerar escriipulos humanitarios”, mas nao € necessirio ser tao sensiveis_. Embora cle seja motivado pelo cél- culo econémico mais do que pela preocupacao da pureza racial, resta 0 fato de que, com os filhos dos pobres na Inglaterra, Bentham gostaria de agir de modo ainda mais ousado: “Uma casa de inspegio, & qual fosse entregue um grupo de criangas desde o nas- cimento, permitiria um bom numero de experimentagdes (...]. © que vocés acham de um internado fandado sobre esse principio?” Veremos que Bentham pensa também em experimentagées de carater cugenético. Mas, por enquanto, se pode chegar a uma conclusio, dando a palavra a um economista inglés (Edward G. Wakefield), que em 1834 publi- ca um livro de sucesso dedicado & comparagio entre América ¢ Inglaterra: “Nao sou eu, é toda a imprensa inglesa que chama de escravos brancos as criangas inglesas” de derivado popular. A maioria € obrigada a trabalhar por um tempo tao longo que chega a cair no sono sem perceber, para ser depois acordada ¢ obrigada novamente 20 trabalho mediante pancadas ¢ tormentos “ Bentham, 1838-43, vol. IV, p. 56 (= Bentham, 1983, p. 76). * Bentham, 1838-43, vol. IV, p. 64-65 (= Bentham, 1983, p. 98). ** Jefferson, 1984, p. 1450 ¢ 1485-87 (carta a A. Gallatin, 26 de dezembro de 1820, ¢ a J. Sparks, 4 de fevereiro de 1824). Bentham, 1838-43, vol. IV, p. 64 (= Bentham, 1983, p. 98) IIL. Os servos brancos entre metrbpole ¢ colénias 97 de toda espécie. Quanto aos érflos, € possivel se livrar deles de modo muito simples: nas portas das casas de trabalho hé aniincios que promovem a sua venda. Em Londres, 0 prego de meninos e meninas colocados assim no mer- cado é sensivelmente inferior ao dos escravos negros na América; nas regides rurais a mercadoria em questao é ainda mais barata””. 8. Centenas ou milhares de miseraveis “quotidianamente enforcados por alguma inépcia” Sobre essa massa de miseraveis pesa uma legislagio que certamente no € caracterizada por garantias. Havia mandatos em branco, que permitiam a policia prender ou revistar uma pessoa a seu bel-prazer. Eliminado da quarta emenda da Constituigao americana, este “intolerdvel instrumento de opressio”, para retomar a definicao do liberal francés Laboulaye” em 1866, continua a subsistir por muito tempo na Inglaterra. O préprio Smith, nao conseguindo justificd-lo, procura minimiz4-lo. Admira-se pelo fato de que a “gente comum”, no lugar de defender a livre circulagao e 0 comércio da for- ga de trabalho, manifesta toda a sua indignacio “contra os mandatos gerais de prisio (general warrants), pratica sem duivida abusiva, mas que nao parece capaz de determinar uma opressio geral””. A propria pena de morte ¢ infligida ndo s6 com grande facilidade, mas também com algumas arbitrariedades. Com a publicacao em 1723 do Black Act — os Blacks provavelmente eram ladrdes de cervos — em alguns casos nio hi necessidade de recorrer a um processo formal para cominar a pena capital, pois esta cntrega a0 carrasco também os que ajudaram de qualquer mancira © ladrao a escapar da justica’’. Sem perturbar-se, Mandeville reconhece que € cancelada a “vida de cen- tenas, de milhares até, de miseraveis delinqiientes, quotidianamente enforca- dos por alguma inépcia” ; a execugao forna-se muitas vezes um espetaculo de massa com finalidades pedagégicas”*. O liberal inglés cxorta os magis- trados a nao se deixar estorvar nem por uma “comogao” fora de lugar nem por dividas ¢ escrapulos excessivos. Certamente, os ladrdes poderiam ter cometido o roubo levados pela necessidade: “o que podem ganhar hones- ” Wakefield, 1967, p. 52-55. *' Laboulaye, 1866, vol. 111, p. 541-42. » Smith, 1981, p. 157 (= Smith, 1977, **Thompson, 1989, p. 29 ¢ 186-87. “* Mandeville, 1988, vol. 1, p. 273 * Hughes, 1990, p.'59. >. 141) (liveo I, cap. X, 2). Mandeville, 1974, p. 75-76). 98 _ CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO tamente nao é¢ suficiente para sustent “no entanto a justica ea paz da sociedade exigem que os culpados “sejam enforcados”. Claro, “talvez as provas nao sejam totalmente certas ou sao insuficientes” e hd o risco de levar 4 morte um inocente; mas, por “terrivel” que isso possa ser, é necessirio de qualquer modo alcangar o objetivo que “nenhum culpado fique impune”. Seria grave se juizes muito escrupulosos preferissem a “propria serenidade” a “vantagem” da “nacao””*, Os tribunais dos j juizes-proprietarios sio chama- dos a funcionar como uma espécie de Comité de satide publica. Podemos chegar entdo & conclusio de que, mesmo querendo abstrair das colénias no seu conjunto (inclusive a Irlanda), na prdpria Inglaterra o gozo pleno de uma esfera privada de liberdade garantida pela lei - a “liber- dade moderna” ou “negativa” da qual falam respectivamente Constant ¢ Berlin” - é o privilégio de uma restrita minoria. A massa € submetida a uma regulamentacdo ¢ a uma coer¢io, que ultrapassam o lugar do trabalho (ou © lugar de puni¢4o que nao é s6 0 cércere, mas abrange também as casas de trabalho ¢ 0 exército). Se Locke se propée a regulamentar o consumo de 4lcool das classes populares, Mandeville considera que a elas, pelo menos aos Domingo, “deveria ser impedido [...] 0 acesso a todo tipo de diversio fora da igreja””®. Em relacao ao 4lcool, Burke argumenta de maneira diferente: embora nao tenha propriedades nutritivas, ele pode pelo menos aliviar 0 estimulo da fome no pobre; por outro lado, “em qualquer época ¢ em toda nacio” o alcool, juntamente com o “épio” ¢ 0 “tabaco”, tem sido chama- do a fornecer as “consolagées morais” que 4s vezes si0 necessérias para 0 homem’. Ora, mais do que o disciplinamento de operarios e vagabundos, como em Locke e Mandeville, o problema é 0 encobrimento da consciéncia ¢ do sofrimento do faminto em geral. A tendéncia a governar a existéncia das classes populares até nos seus aspectos mais mitidos permanece inabalivel. A referéncia ao épio acrescenta apenas um toque de cinismo. Mais tarde, os proprios relatérios das comissdes governamentais de inquérito vio denunciar a catéstrofe: nos bairros mais pobres se alastra 0 consumo do épio, que se torna um meio de alimentacao ou um seu paliativo; as vezes, ele € oferecido até aos lactantes, os quais “se encolhem como velhinhos ¢ enrugam como macaquinhos”®. ** Mandeville, 1988, vol. I, p. 272-73, 87 (= Mandeville, 1974, p. 74-75, 56). ” Constant, 1980; Berlin, 1989, p. 185-241. ™ Mandeville, 1988, vol. I, p. 307 (= Mandeville, 1974, p. 112). Burke, 1826, vol. VII, p. 413-14. © Marx-Engels, 1955-89, vol. XXIII, p. 420-21 ¢ nota 133. III. Os servos brancos entre metrépole ¢ colénias 99 Essa regulamentacio capilar nao pode obviamente deixar de lado a re- ligido. Para Locke, a iniciagao das criangas pobres ao trabalho desde os trés anos é uma medida benéfica ndo apenas no plano econémico, mas também no 4mbito moral: ela oferece a “oportunidade de obrigé-los a ir a igreja regularmente todo domingo, ao lado dos seus préprios mestres, ¢ com isso ensinar-Ihes 0 sentido da religigo””. Por outro lado, Mandeville exige que a freqiiéncia a igreja aos Domingo ¢ a doutrinagao religiosa tornem-se uma “obrigacao para os pobres ¢ os iletrados”. Nao é suficiente apelar espon- tancidade do sentimento religioso: “E um dever premente para todo ma- gistrado tomar conta particularmente” do que acontece aos Domingos: “os pobres ¢ as suas criancas deveriam ser dirigidos para a igreja de manha e de noite”. Os resultados positivos nao vio faltar: “Se os magistrados tomarem todas as medidas ao alcance deles, os ministros do Evangelho poderio incul- car nos cérebros mais fracos” a devogio ¢ a virtude da obediéncia™. Além de sua vida privada, as classes populares sio ainda mais controladas na vida publica que, entre tantas dificuldades, procuram alcangar: “Entre 1793 ¢ 1820, foram aprovados pelo Parlamento mais, de sessenta decretos voltados a reprimir ages coletivas da classe operdria”™ * Bem antes da ativi- dade sindical propriamente dita, quer dizer, da aco direta a elevar o nivel dos salérios ¢ a melhorar as condigées de trabalho, o que é visto com suspeita € a tentativa dos servos de sair do isolamento ¢ de comunicar-se entre eles. Estes — troveja alarmado Mandeville - “se retinem impunemente quando querem”. Desenvolvem até relagdes de reciproca solidariedade: procuram ajudar o colega licenciado ou punido pelo seu patrao. S6 pelo fato de nao se limitar 4 relagdo vertical ¢ subalterna com os seus supcriores ¢ de querer desenvolver relagdes horizontais entre eles, os servos devem ser considerados responsiveis de uma subversio inadmissivel: “usurpam a cada dia os direi- tos dos seus patrdes ¢ fazem de tudo para se colocar no mesmo nivel”; es- tio “perdendo aquele sentido de inferioridade que apenas poderia torné-los teis ao bem-estar piblico”. Ultrapassando qualquer limite, 0 servo assume poses de gentimen: & a comédia do “servo-gentlmen”, uma comédia que, se nao for interrompida rapidamente, pode transformar-se em uma “tragédia” para a nacao inteira . * Locke, 1993 a, p. 454. © Mandeville, 1988, vol. 1, p. 307-308 (= Mandeville, 1974, p. 111-12) © Wallerstein, 1978-95, vol. III, p. 193. Mandeville, 1988, vol. 1, p. 306 (= Mandeville, 1974, p. 110-11). 100 _CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO Nesse contexto, revela-se particularmente significativa a tomada de po- sigao de Adam Smith. Ele reconhece que “nio existem leis do parlamento contra as coalizdes voltadas a baixar 0 preso do trabalho enquanto hé mui- tas contra as coalizdes voltadas a elevi-lo”. Por outro lado: “Os patrées, sendo em numero menor podem unir-se mais facilmente [...]. Os patres estio sempre ¢ em qualquer lugar em uma espécie de técita mas nem por isso menos constante ¢ uniforme coalizdo voltada a impedir 0 aumento dos salérios acima do nivel atual” ou voltada a “baixar ulteriormente o nivel dos salérios”™. Portanto, mesmo se no plano legislativo patrées ¢ operarios sio tratados da mesma forma, os primeiros continuariam sempre a gozar de uma situagdo de vantagem. Por outro lado, eles sio favorecidos também pelas condigées de vida muito precérias em que se encontra a contraparte: “Para pressionar a uma decisio répida, os operérios recorrem sempre aos meios mais clamorosos ¢ as vezes as violéncias € as ofensas mais impressionantes. S30 de- sesperados e agem com a loucura ¢ os excessos de homens desesperados que devem morrer de fome ou obrigar os seus patrdes a aceitar as suas solicitagoes”™. Isso nao impede Smith de recomendar ao governo de agir com rigor contra as coalizées operarias. Certamente, “€ dificil que pessoas do mesmo oficio se encontrem para festejar ¢ se divertir, sem que a conversacao termi- ne com uma conspiracao contra o Estado ou com algum outro expediente para clevar os precos”. Por outro lado, é “impossivel impedir esses encon- tros por meio de uma lei compativel com a liberdade ¢ a justica”. Mas, o governo deve prevenir qualquer agregacao operdria, mesmo a mais casual €, aparentemente, mais inécua. Por exemplo, a obrigacao do registro buro- cratico para os que exercem um determinado oficio acaba por colocar “em relagdo entre cles individuos que diversamente poderiam nao se conhecer uns aos outros”. Em nenhum caso pode ser tolerado “um regulamento que autoriza os que desempenham o mesmo oficio a se taxar para providenciar aos préprios pobres, aos proprios doentes, as préprias vitivas ¢ aos proprios 6rfaos, atribuindo-se um interesse comum a ser administrado””. Portanto, nao apenas a aco sindical, mas também uma socicdade de mituo socorro deve ser considerada ilegal. No entanto, Smith reconhece que estamos na presenca de “homens desesperados”, que arriscam a morte pela inédia. Mas, th, 1981, p. 83-84 (= Smith, 1977, p. 67) (livro I, cap. 8). , 1981, p. 84-85 (= Smith, 1977, p. 68) (livro I, cap. 8). 1981, p. 145 (= Smith, 1977, p. 128-29) (livro I, cap. X, 2). __IIL Os servos brancos entre metrépole colénias 101 esta consideragdo passa em segundo plano em relacao a necessidade de evi- tar reunides, “conversagées”, agregacdes que tendem a serem sinénimos de “conspiracio contra o Estado”. Com 0 intuito de criminalizar desde a origem qualquer associac3o popu- lar, a classe dominante recorre a métodos ainda mais sumérios, que podemos descrever com as palavras de Constant: é “o horrendo expediente de enviar espides ¢ aticar os espiritos ignorantes e propor-lhes a revolta para depois podé-la denunciar”. Os resultados no faltam: “Os miscraveis seduziram os que tiveram a desventura de ouvi-los ¢ provavelmente acusaram também os que nao conseguiram seduzir”. E sobre ambos se abate a justiga™ 7 9. Um Inteiro de caracteristicas singulares Vimos Mandeville convidar os juizes a serem mais sumérios na conde- nag3o 4 morte dos culpados ou suspeitos de roubos e pequenos roubos, mesmo a custa de atingir algum inocente: torna-se prioritéria a exigéncia de salvaguardar a “paz da sociedade” ou a “vantagem” da “nacao”. Blackstone reconhece que o recrutamento forcado dos marinheiros aparece muito dis- cutivel ¢ lesivo a liberdade; ele “pode ser justificado sé com a necessidade publica (public necessity), a qual devem se submeter todas as consideracdes particulares”™. Por sua vez, Locke chama repetidamente a atengio para no perder de vista o “interesse ptiblico”, o “bem da nagao” (TT, II, 167), o “bem piiblico”, a “salvagao do povo” (TT, II, 156) ou a “preservacio da totalidade” (preservation of the whole) (TT, II, 171), do “Estado inteiro” (the whole commonwealth) (TT, II, 139). O que aqui est sendo tao apaixonadamente invocado é um Inteiro que exige 0 sacrificio nio momentineo mas permanente da grande maioria da populagao, cuja condi¢o é tanto mais tragica pelo fato de que aparece muito remota qualquer perspectiva de melhora. Pelo contririo, s6 vislumbrar proje- tos que apontem nessa dire¢do é sinénimo nao apenas de utopismo abstrato mas também e sobretudo de perigoso subversivismo. Segundo Townsend, “o capital de felicidade humana é fortemente acrescido” pela presenga de “pobres”, obrigados a oferecer os trabalhos mais pesados ¢ mais penosos. Os pobres merecem plenamente a prépria sorte por serem gastadores ¢ vagabun- dos, mas para a sociedade seria um desastre se porventura cles chegassem a se * Constant, 1830, vol. I, p. 28 ¢ passim. ™ Blackstone, 1979, vol. I, p. 407 (livro I, cap. 13). 102 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO emendar: “As frotas ¢ os exércitos do Estado sentiriam a falta de marinheiros ¢ soldados, se a sobriedade ¢ a diligéncia prevalecessem universalmente” Também a economia do pais viria a se encontrar em uma situa¢3o muito di- ficil. A mesma concluso chega Mandeville: “Para a felicidade da sociedade é necessirio que a grande maioria permaneca ignorante ¢ pobre”; “a riqueza mais segura consiste em uma massa de pobres laboriosos””'. E agora vamos ler Arthur Young: “Todos, menos os idiotas, sabem que as classes inferiores devem ser mantidas pobres, diversamente deixam de ser produtivas”” e de contribuir a “riqueza das nagdes” de que fala Smith. Mais tarde, na Franca, as mesmas conclusdes chega Destutt de Tracy: “As nagdes pobres sao aquelas em que 0 povo vive em condigées de bem-estar, enquanto as nagdcs ricas so aquelas em que ele fica normalmente pobre”””. Por que nio é percebida como contraditéria a proposi¢o, nas suas diferentes variagdes, em base 3 qual a felicidade ¢ a riqueza da sociedade dependem do esgotamento ¢ das privagdes dos pobres que constituem a grande maioria da populacio? Quem explica a légica desse Inteiro em suas caracteristicas singulares Locke: os es- cravos “nao podem ser considerados parte da sociedade civil, cuja finalidade principal € a conservacao da propriedade” (TT, II, 85). E esta é também a opiniao de Algernon Sidney: “Um reino ou uma comunidade [...] € com- posta de homens livres ¢ iguais; os servos podem estar presentes nela, mas nao sao seus membros”; sim, “nenhum homem, enquanto é servo, pode ser membro do Estado” (commonwealth); nem membro do povo ele é, porque 0 “povo” é 0 conjunto dos “homens livres”™. Os pobres sao a casta servil da qual a sociedade tem necessidade, sio o fundamento subterranco do edificio social, si0 os que depois Nietzsche vai definir como “cegas toupeiras da cul- tura”; resta o fato que, em relacao a socicdade ¢ a civilizagio, os pobres cas toupeiras continuam sempre a manter uma relacao de alheamento. a 10. Trabalho assalariado ¢ categorias da escravidao Algumas décadas depois de Franklin, na passagem da primeira a segunda grande polémica no partido liberal, também o governador da Carolina do Townsend, 1971, p. 35 ““In Marx, Engels, 1955-89, vol. XXIII, p. 643. “Young, cit. in Tawney, 1975, p. 514. % Destutt de Tracy, cit. in Marx-Engels, 1955-89, vol. XXIII, p. 677. ™ Sidney, 1990, p. 89, 103. CE. Losurdo, 2002, cap. 12, § 4. 103 Sul, James Harry Hammond, dedica-se a evidenciar o quanto de escravis- ta continua a subsistir na Inglaterra. Ele envia uma carta aberta a Thomas Clarkson, o venervel patriarca do abolicionismo inglés, colocando o dedo sobre a praga da condicao operaria no pais que se orgulha de ter abolido a escravidio nas suas colénias: III. Os servos brancos entre metropole ¢ colinias “Como vocés ousam falar-nos do mundo da escravidio? [...] Se forem verda- deiramente humanos, filantrépicos e caridosos hé vitimas no vosso meio. Socorrei- as. Emancipai-as. Elevai-as da condigio de brutos ao nivel de seres humanos, pelo menos de escravos americanos”™. Obviamente, as reagdes da Inglaterra sao indignadas. Eis entio a insistén- cia sobre a caracteristica de homem livre que compete também ao trabalha- dor assalariado mais miscravel. No entanto, ao definir a sua figura, a tradicao liberal muitas vezes recorre as mesmas categorias utilizadas na antigitidade classica € no outro lado do Atlantico em relaao ao escravo negro. ‘Aos olhos de Locke, nao é propriamente capaz de vida intelectual e mo- ral “a maior parte da humanidade destinada ao trabalho e tornada escrava (enslaved) pelas necessidades da sua condi¢io medfocre e cuja vida se con- some apenas na busca das suas necessidades”. Completamente “absorvidas pelo esforgo de acalmar o murmirio do seu estémago ou os gritos dos seus filhos”, essas pessoas no tém a possibilidade de pensar em outra coisa: “Nao podemos esperar que um homem submetido durante a vida inteira a um trabalho cansativo conheca a variedade das coisas que hd no mundo mais do que um cavalo de carga, que conduzido para cima ¢ para baixo pelo mercado através de sendas estreitas ¢ estradas imundas possa ser especialista da geografia do pais”. Locke nao hesita em afirmar que “entre alguns homens ¢ outros hé uma distancia maior que entre alguns homens e alguns animais”: para entender bastaria comparar de um lado o “palacio de Westminster”, ¢ a “Bolsa” ¢ do outro os “hospicios de mendicdncia” ¢ 0 “manicémio””. Imperceptivel ¢ evanescente é a linha que separa mundo humano ¢ mundo animal: “Se com- pararmos 0 intelecto ¢ as habilidades de alguns homens ¢ de alguns animais, encontraremos uma diferenga tio pequena que seré dificil dizer que as do homem so mais claras ¢ mais extensas”™. ™ Clarkson, cit. in Davis, 1986, p. 233-34. ¥ Locke, 1971, p. 804-805 (livro IV, cap. XX, 2) , 807 (livro IV, cap. XX, 5). ™ Locke, 1971, p. 760 (livro IV, cap. XVI, 12). 104 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO Também Mandeville, a0 condenar a difuséo da instrugdo entre as cama- das populares, compara o trabalhador assalariado a um “cavalo”: “Ninguém se submete voluntariamente aos seus iguais ¢ se 0 cavalo soubesse tudo 0 que um homem sabe, cu certamente nao gostaria de ser o seu cavaleiro”™”. E uma metéfora que volta também em ocasiio da polémica contra a excessiva generosidade da qual na Inglaterra daria prova o patrio rico em relacio a0 servo: “Um homem pode ter vinte € cinco cavalos nos seus estébulos sem que seja julgado um louco se isto estiver de acordo com as suas propriedades; mas se tiver um 86 cavalo ¢ 0 alimenta muito para mostrar assim a sua propria riqueza, tera s6 a fama de louco em troca de todos os seus esforgos”™, Argumentar nesses termos nao € sb prerrogativa do liberalismo inglés. Na verdade, o processo de desumanizagao alcanga talvez o seu ponto mais alto com Sicyés: “Os infelizes destinados aos trabalhos pesados, produtores dos prazeres alheios, que recebem apenas o essencial para sustentar os seus corpos sofridos ¢ necessitados de tudo, esta imensa multidao de instrumentos bipedes, sem liberdade, sem morali- dade, scm faculdades intelectuais, dotados apenas de maos que ganham pouco ¢ de uma mente carregada com mil preocupagdes que serve s6 para softer, [...] sto estes que vocés chamam de homens? Sio considerados civilizados (policés), mas alguma vez viu-se um $6 desses que fosse capaz de entrar em sociedade?”" Em outros casos, 0 processo de desumanizacio acontece por meio de di- ferentes modalidades. Retomando a distincao, propria da antigitidade classi- a entre os diversos instrumentos de trabalho, Burke subsume o trabalhador assalariado na categoria de instrumentum vocale”. Analogamente, Sieyés fala da “maioria dos homens”, definidos, sobretudo nas anotagdes privadas anteriores a 1789, como “méquinas de trabalho” (machines de travail), “ins- trumentos de trabalho” (instruments de labeur) ou “instrumentos humanos da produgao” (instruments humains de la production) ou como “instrumen- tos bipedes” (instruments bipédes)'”. * Mandeville, 1988, vol. I, p. 290 (= Mandeville, 1974, p. 93). ‘% Mandeville, 1988, vol. i, p. 305 (= Mandeville, 1974, p. 109). ‘01 Sieyés, 1985, p. 236, 75, 81. ‘* Burke, 1826, vol. VII, p. 383. 198 Sicyds, 1985, p. 236, 75, 81. III. Os servos brancos entre metrépole ¢ colénias 105 Tragos desse processo de desumanizasio podem ser surpreendidos até em Smith: por causa da obrigacao ¢ da monotonia do trabalho, um trabalha- dor assalariado “em geral torna-se tao estipido e ignorante quanto pode vir a ser uma criatura humana” incapaz. de tomar parte “de alguma conversacio racional” e de “conceber algum sentimento generoso”"™, Tal como no outro lado do Atlantico a classe dominante é separada dos escravos negros ¢ dos negros em geral, assim na Europa é separada dos servos brancos por um abismo que tem conotagdes étnicas ¢ raciais. Para Locke “um trabalhador manual [...] ndo esté em condigdes de raciocinar melhor que um indigena” (a perfect natural): tanto um como 0 outro ainda nao alcangaram © “nivel de criaturas racionais ¢ de cristios”'”’. E Sieyés est4 convencido de que os “instrumentos humanos da produgio” pertencem a um “povo” dife- rente € (inferior) daquele do qual fazem parte os “chefes da produgao” ou “as pessoas inteligentes”, a “gente respeitével”™ Hé um motivo ulterior que torna intransponivel o abismo que separa a comunidade dos livres de um lado € os servos ¢ escravos do outro. Estes ltimos sio considerados incapazes de sentir plenamente a humilhagio, as frustragdes, os afetos, a dor assim como todos os outros sentimentos que caracterizam a vida espiritual do homem. Observe-se de que forma argumen- ta Mandeville a propésito da massa dos miseraveis na Europa: sim, cles sio obrigados a sofrer cansaco ¢ penirias, freqiientemente sao enforcados “por alguma inépcia”, da qual se tornam culpados na tentativa de escapar da fome. E, no entanto, “ser feliz. consiste em ser satisfeito ¢ um homem se contenta facilmente do que tem se nao conhecer um modo de vida melhor [...]. Quando um homem se diverte, ric canta ¢ no seu comportamento posso notar todos os sinais da alegria e satisfacd0, digo que € um homem feliz”. Observando bem, “o maior dos reis” poderia invejar “a encantadora [...] serenidade de espirito” do “mais humilde ¢ ignorante camponés” ¢ “a calma ililidade da sua alma”"”. Em termos no menos enfiticos se expressa © te6rico virginiano que j4 conhecemos, Thomas R. Dew, a propésito dos ‘© Smith, 1981, p. 782 , 784 (= Smith, 1977, p. 770, 772), (livro V, cap. I, parte Ill, art. 2). ° Locke, 1979, p. 685, 692 (§6 6,8). © Sicyés, 1985, p. 89, 75. "= Mandeville, 1988, p. 311-16 (= Mandeville, 1974, p. 116-19). 106 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO escravos: “Nao temos diividas de que eles constituem a parte mais feliz da nossa sociedade. Sobre a face da terra nao ha ser mais feliz que 0 escravo negro nos Estados Unidos”™. Em conclusao. Nao sé é muito dificil definir livre a condigio dos servos brancos na Europa, mas a imagem que deles nos transmite o pensamento li- beral da época nao é muito diferente da imagem do escravo negro no Sul dos Estados Unidos. Tem raz4o, entao, o governador da Carolina do Sul quando zomba da hipocrisia ¢ da polidez dos abolicionistas? Seria uma conclusio precipitada. Somos, portanto, obrigados a refletir ulteriormente sobre as ca- racteristicas da sociedade que veio se formando nos dois lados do Adantico ¢ sobre as categorias mais apropriadas para compreendé-la. Dew, cit. in Hofstadter (org.), 1958-82, vol. II, p. 318. Iv Eram liberais a Inglaterra e os Estados Unidos nos séculos XVIII e XIX? 1. O liberalismo nio localizavel da América de Tocqueville Como podemos definir o regime politico que, depois do prélogo holan- dés, a partir das revolucdes liberais se afirma antes na Inglaterra e depois nos Estados Unidos? Em relacio a este tiltimo pais, Washington nao tem divi- das. Vimos como ele celebrou, logo depois da obtengao da independéncia, 0 “governo sdbio e liberal” que se implantou no seu pais. Alguns anos depois, na véspera da promulgacio da Constituicdo federal, que consagra um poder executive muito forte, o general-Presidente cunha uma espécie de slogan publicitério, declarando-se por um governo “liberal & enérgico” (liberal & energetic). E, no entanto, se por liberalismo entende-se a igual fruicio que cada individuo pode ter de uma esfera privada de liberdade garantida pela lei -a “liberdade moderna” ou “negativa” — nao é dificil se aperceber do carater muito problematico do uso desta categoria. Mesmo nao levando em conside- racdo 0 problema da escravidio, conhecemos a condigdo de semi-escravidao 4 qual sio submetidos os negros em teoria livres. Poderiamos também ignorar a populacao de cor no seu conjunto: n3o chegarfamos a resultados muito diferentes. Nao gozam propriamente da igualdade civil nem da liberdade moderna os que, nos Estados Unidos, sem ter cometido crime algum, sao internados nas casas de trabalho, parte inte- grante, como 0 préprio Tocqueville reconhece, do “sistema penitenciério”. Mas nio é tudo: a condicio dos pobres € tal que, mesmo na condigao de testemunhas, eles sao trancafiados na prisao até a conclusao do processo ju- diciario. De modo que, “no mesmo pais em que quem apresenta acusacio é colocado na prisio, o ladrao permanece em liberdade, se puder pagar uma "Cf. Losurdo, 1993, cap. III, § 3. 108 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO fianga”. Entre os “mil exemplos” que poderiam ser apresentados, podemos citar o de dois jovens irlandeses “detentos por um ano inteiro na expectativa que os juizes se dignassem ouvir 0 seu depoimento”. Podemos entdo nos ater a conclusio insuspeita de Tocqueville: estamos na presenga de leis con- solidadas pelo “habito” e que, no entanto, podem parecer “monstruosas”; elas “previram tudo para o beneficio do rico ¢ praticamente nada para a ga- rantia do pobre”, de cuja liberdade “dispdem a baixo preco”?. Vamos deixar, por enquanto, as populagdes de origem colonial ¢ as ca- madas mais pobres da comunidade branca, 3s quais sio negados ndo apenas os direitos politicos mas também as “liberdades modernas”. Concentremos exclusivamente a nossa aten¢4o sobre a classe dominante, ou scja, sobre os proprietérios brancos ¢ homens. Neste 4mbito, vigora a plena igualdade civil ¢ politica? A davida torna-se legitima. Pensemos na clausula constitucional dos “trés quintos”, pela qual, ao calcular o numero das cadeiras reserva- das aos estados do Sul, se levava parcialmente cm consideragio também a quantidade dos escravos. Longe de ser um particular insignificante, trata-se de uma clusula que desempenha um papel muito importante na historia dos Estados Unidos: “quatro votantes do Sul” acabavam exercendo “mais poder politico do que dez votantes do Norte”; explica-se assim a “dinastia virginiana” que por muito tempo consegue manter a presidéncia do pais’. Por isso Jefferson ¢ apelidado de “presidente negro” pelos scus adversarios: havia chegado ao poder gragas ao cdlculo, no resultado eleitoral, dos negros que, no entanto, continuavam a ser seus escravos. Na véspera da guerra de Secessao, Lincoln proclama polemicamente “uma verdade que nio pode ser negada: em nenhum estado livre um branco ¢ igual a um branco dos estados escravistas”®. E uma tese reafirmada, em 1864, por um liberal francés (Edou- ard Laboulaye). Com a cléusula dos trés quintos é como se a Constituigéo americana sc dirigisse assim 4 populagio do Sul: “uma vez que voces tém escravos, vos serd permitido eleger um deputado com dez mil votos, enquanto aos yankees [do Norte], que vivem do seu trabalho, serio necessérios trinta mil votos; a conclusio para quem vive no Sul é que eles constituem uma raga particular, superior, que se trata de grandes senhores. O espirito aristocrati- co tem sido desenvolvido, fortalecido pela Constituico”*. 7 Tocqueville, 1951, vol. IV, t. 1, p. 323-26. 3 Jennings, 2003, p. 315-16. * Wills, 2003. 5 Lincoln, 1989, vol. II, p. 378 * Laboulaye, 1866, vol. III, p. 359. IV, Eram liberais a Inglaterra ¢ os Estados Unidos nos siculos XVIII XIX? 109 Acusados de violar o principio da igualdade politica no ambito da pré- pria elite dominante, os fazendeiros do Sul respondem declarando que, na realidade, 0 que € pisoteado contra eles € © principio da igualdade civil. Consideram-se discriminados negativamente, porque tolhidos da liberdade de transferir 0 scu gado humano para qualquer parte da Unido: nao admitem que os proprictarios do instrumentum vocale sejam tratados de forma pior que os proprictarios de outros bens méveis. No momento do abandono da Unido, Jefferson Davis, o presidente da Confederagao secessionista, declara que o Norte comete o erro de obstaculizar de todas as maneiras a “propric- dade de escravos”, agindo “em prejuizo, detrimento c desanimo dos titulares desta espécie de propriedade”, que é “reconhecida pela Constituicao” e que, com base nela, deveria ser tratada cm pé de igualdade com as outras formas de propriedade”. Essa troca reciproca de acusagdes desempenha um papel nao secundério no conflito que depois desagua na guerra de Secessio. 2. Dominio absoluto ¢ obrigagées comunitarias dos proprietérios de escravos A partir de Constant, a liberdade moderna ou liberal tem sido descrita e cclebrada como fruigao tranqiiila da propriedade privada. Mas, na realidade, os proprietarios de escravos ficam obrigados a um conjunto de exigéncias piiblicas. Nao ha divida de que primciro a Revolucio Gloriosa ¢ depois a revolucdo ame- ricana consagram 0 autogoverno de uma sociedade civil constituida ou hegemo- nizada pelos proprictérios de escravos, fortemente decididos a nao tolerar inter- feréncias por parte do poder politico central ¢ da propria igreja. Mas seria um erro fazer coincidir 0 autogoverno da sociedade civil, jé liberada dessas algemas, com o livre movimento dos membros que a constituem. Certamente, cada um deles pode reduzir 4 mercadoria como quiser os escravos que possui como legi- tima propricdade. Em 1732, no New England, um patrio coloca 4 venda uma escrava de dezenove anos junto com o filho de seis meses: podem ser adquiridos ~ esclarece 0 anuncio publicitério - “juntos ou separados”. Nao ha obstdculos para langar no mercado também filhos adulterinos, como faz um patrio de New Jersey com a prole derivada das relasées com trés mulheres negras das quais proprictério. Nao é um acaso que aos escravos sio freqiicntemente aplicados nomes reservados normalmente a cachorros ¢ cavalos*. ” Jefferson Davis, cit. in Hofstadter (org. ), 1958-82, vol. II, p. 399-400. * Zilversmit, 1969, p. 10-11 ¢ 7. 110 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO Nio hé diivida: sobre a sua legitima “propriedade” o patrio de escravos exerce um poder absoluto, porém, nao 2o ponto de poder livremente colocar em discussio 0 processo de reificagio € de mercantilizagao j4 consolidado. Neste caso, prevalecem as exigéncias da comunidade de manter clara e firme a barreira entre raca dos senhores ¢ raca dos servos. Vamos dar a palavra a Tocqueville: “sob penas severas ¢ proibido ensinar aos escravos a ler e escre- ver”®, Claramente, a proibigdo visa excluir a raga dos servos de toda forma de instrugao, considerada uma fonte de grave perigo n3o apenas porque susce- tivel de alimentar esperangas ¢ pretensdes inadmissiveis mas porque objetiva facilitar entre os negros aquela comunicacao de idéias € sentimentos que deve ser obstaculizada de qualquer maneira. No entanto, em caso de violacio. de tal norma, os atingidos em primeiro lugar so os proprietérios brancos, que ficam com a sua liberdade negativa gravemente limitada. As proibicdes que atingem os escravos nio livram os seus patrdes. Depois da revolta de Nat Turner, em Geérgia, ¢ crime até fornecer a um escravo papel ¢ material para escrever'®, Particularmente significativa é a legislacao que protbe as relagdes sexuais ¢ 05 matriménios entre racas. Mais tarde, em 1896, ao sancionar a legitimi- dade constitucional da normativa relativa a segrega¢ao racial no seu conjun- to, a Suprema Corte estadunidense admite que o favorecimento dos “matri- ménios entre as duas racas” poderia violar “em sentido técnico” a freedom of contract, mas sai do impasse acrescentando que o direito de legislagao de cada estado em tal matéria é “universalmente reconhecido”''. Na verdade, nao faltavam as oposic6es. Significativa é a norma emanada na Virginia no inicio do século XVIII, pela qual a punicao nao era s6 para os responsaveis diretos da relagio sexual ou matrimonial; “penas extremamente rigorosas” poderiam ser aplicadas ao sacerdote culpado de ter consagrado a ligacdo fa- miliar inter-racial'?, Portanto, junto com a “liberdade de contrato” era de qualquer maneira atingida a propria liberdade religiosa. O poder absoluto mantido sobre os escravos negros acaba levando con- seqiléncias negativas ¢ até draméticas também para os brancos. Tomemos a Pensilvania das primeiras décadas do século XVIII: o negro livre surpreen- dido a violar a proibi¢ao de miscegenation (como era chamada mais tarde)'*, * Tocqueville, 1951, vol. I, Genovese, 1998a, p. 24. " Plessy versus Ferguson, cit. in Hofstadter (org.), 1958-82, vol. III, p. 56. " Klein, 1989, p. 51 ¢ 234-35. 0 termo € cunhado no final de 1863: cf. Wood, 1968, p. 535s. 1, p. 377 (DAI, cap. II, 10). IV. Eram liberais a Inglaterra ¢ os Estados Unidos nos séculos XVII e XIX? 111 corre o risco de ser vendido como escravo. Isso traz conseqiiéncias muito penosas também para a mulher branca, obrigada a sofrer a separagio forgada do seu parceiro e a terrivel puni¢ao aplicada a ele. Vejamos agora o que acon- tece na Virginia colonia! logo depois da Gloriosa Revolugao. Com base em uma norma de 1691, uma mulher branca ¢ livre que tenha tido um filho de um negro ou de um mulato pode ser condenada a cinco anos de servidao e, sobretudo, é obrigada a ceder o filo a paréquia, que depois o vende como servant, deixando-o nesta condigao por trinta anos!*. Hé mais. Barreiras pra- ticamente intransponiveis se erguem no reconhecimento da prole derivada da eventual relago do proprietério com uma das suas escravas. O pai en- contra-se diante de uma alternativa dramitica: ou sofrer junto com a sua familia efetiva 0 exilio da Virginia ou consentir que o filho seja escravo junto com a mie'’. Mais suméria é, por outro lado, a legislagao de New York que transforma automaticamente em escravos todos os filhos nascidos de mac escrava'®, Estamos, assim, na presenca de uma sociedade que até sobre os seus membros privilegiados exerce uma repressio tio dura, em parte juridica ¢ em parte social, de modo a sufocar os sentimentos mais naturais: como foi justamente observado, ao escravizar “os préprios filhos ¢ os filhos dos seus filhos”, de fato, “os brancos escravizam a si mesmos””, Para esclarecer ulteriormente o entrelagamento entre poder absoluto de cada proprietério sobre 0 gado humano que ele possui ¢ a sua submisséo ao “povo dos senhores” do qual é membro, pode ser feita uma tiltima conside- racio. Ja nos ocupamos da norma em vigor na Virginia, pela qual era despro- vido de sentido definir ¢ tratar como “infamia” o assassinato do escravo por parte do proprietario. Contudo, em nao poucos estados, por uma legislaco que continuar4 a vigorar ainda depois da segunda guerra mundial ( infra, cap. X, § 5), € culpado de “infamia” o branco que mantenha relacdes sexuais com uma negra. Quer dizer, ao proprietdrio € permitido chicotear e bater na sua escrava até provocar a morte - o sagrado direito de propriedade; mas ele s6 expondo-se a diversos riscos pode manter relacdes sexuais com ela — tao forte € 0 controle que a classe dos proprietarios ¢ a comunidade dos livres exerce sobre os seus membros. Para além da norma juridica, 0 que leva a fazer res- peitar a proibicao de miscegenation sao, em meados do século XVIII, bandos Klein, 1989, p. 50-51. Klein, 1989, p. 242-43. "© Zilversmit, 1969, p. 13. ” Williamson, 1980, p. 63. 112 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO de vigilantes, dedicados a espionar, intimidar e atingir os brancos propensos a softer o fascinio das suas escravas ¢ das mulheres de cor em geral”. Se por um lado os escravos sio uma propriedade € uma mercadoria a dis- posigao completa do legitimo patrio, por outro lado representam o inimigo interno contra o qual é necessdrio estar constantemente alerta. Certamente, para afastar o perigo se pode recorrer ao terror, atingindo de maneira impie- dosa ¢ até sédica os culpados ¢ transformando a execugao em uma espécie de aterrorizante espeticulo pedagégico para os outros: os escravos de uma determinada 4rea sio obrigados a assistir a0 suplicio de dois de seus compa- nheiros, culpados de assassinato ¢ condenados a serem queimados vivos”. Mas, isso nao basta. Mais uma vez, a manutengio do instituto da escravidao exige sacrificios pesados também por parte da classe dominante. Em 1741, em New York, alguns incéndios misteriosos alimentam 0 medo de uma re- volta dos escravos: sio condenados a morte ¢ queimados vivos também dois negros, cuja vida o patrio havia em vio tentado salvar, declarando que es- tavam em casa no momento do incéndio. Poucos anos depois, nas proximi- dades da mesma cidade, um negro, réu confesso por ter atado fogo a um celeiro, sofre o mesmo suplicio. Com uma diferenga: usando de expedientes diabélicos, a multidao dos espectadores brancos faz com que as chamas no queimem muito rapidamente, de modo que possam durar o mais possivel 0 espetaculo ¢ os sofrimentos do negro rebelde: seus gritos podiam ser ouvidos a trés milhas de distancia. Estes tocam claramente o seu patrio que soluga ruidosamente, até porque tém vinculos afetivos com o seu escravo; mas ele é impotente, s6 consegue obter que 0 suplicio nao se prolongue por muito tempo’”. Colocados diante das exigéncias de seguranca da comunidade da qual fazem parte, os proprietarios de escravos ndo podem reivindicar a livre disponibilidade da sua propriedade. Devido as circunstancias, essas exigéncias de seguranga sto um dado per- manente. Podemos apresentar uma consideragio de carater geral: “A primeira vista, os cédigos coloniais dos escravos parecem voltados a dis nar os negros, ncgando a eles a liberdade da qual podem gozar os outros americanos. Mas, basta uma pequena mudanca de perspectiva para perceber os cédigos em uma outra luz: paradoxalmente eles visam disciplinar os brancos. Nao cra a0 negro mas principalmente ao branco que a lei indicava o que devia fazer; os cédigos eram feitos para os olhos ¢ 0s ouvidos dos proprietirios de escravos (3s vezes a lei exigia que lliamson, 1980, p. 66, " Zilversmit, 1969, p. 21 » Zilversmit, 1969, p. 19-22. _IV, Eram libernis a Inglaterra ¢ os Estados Unidos nos séculos XVIII ¢ XIX? 113 0 cédigos fossem publicados nos jornais ¢ lidos pelos eclesidsticos a suas congre- gagdes). Do branco exigia-se que punisse os seus escravos fugitivos, que prevenisse reunides de escravos, que fizesse respeitar o toque de recolher, que sentasse nos tribunais especiais ¢ participasse do patrulhamento”™. Eram previstas sangdes para os proprictarios de escravos que viessem a omitir a aplicagdo de punigdes previstas pela lei. Conforme uma norma vigente no Sul da Carolina, uma escrava na sua quarta tentativa de fuga deveria ser “severamente agoitada [...], marcada pelo fogo com a letra R na face esquerda e amputada da orelha esquerda”. Mas, até 1722, os proprios proprietarios de escravos deveriam providenciar, direta ou indiretamente, 4 execugio dessas operagées”. Em situagdes de crise a obrigac3o da vigilancia se faz sentir de maneira premente. Vimos em Richmond, em 1831, “o servico militar” das patru- Ihas brancas sendo “realizado dia ¢ noite”. Neste caso — observa Gustave de Beaumont durante a sua viagem em companhia de Tocqueville - “a socieda- de se arma com todos os seus rigores” ¢ mobiliza “todas as forcas sociais”, procurando de qualquer maneira favorecer a “delac30” ¢ 0 controle: no Sul da Carolina, juntamente com o escravo fugitivo a pena de morte espera “por qualquer pessoa que a tenha ajudado na sua evasio””. Muito significativas sio também as conseqiiéncias da promulgacao da lei sobre os escravos fugiti- vos de 1850: passivel de punicao nao é apenas 0 cidadao que tenha procura- do esconder ou ajudar 0 negro perseguido ou procurado pelos seus legitimos proprictarios, mas também quem nio colabora na sua captura; trata-se de uma norma de lei que, para usar as palavras dos seus criticos, pretende obri- gar todo americano a “tornar-se um cagador de homens” Além dos proprietarios de escravos, a sociedade escravista acaba atin- gindo a comunidade branca no seu conjunto. Pelo fato dos escravos negros, além de mercadoria, serem também o inimigo interno, os abolicionistas pas- sam entio a ser suspeitos de traigZo ¢ tornam-se assim alvo de um conjun- to de medidas de repressio mais ou menos duras conforme a gravidade do perigo no horizonte. Severas restricécs so impostas 4 imprensa: cm 1800, a revolta dos escravos na Virginia € muitas vezes silenciada pelos jornais do Sul; hd 0 perigo de difundir ainda mais o contégio da subversio’. Em 1836, ™ Jordan, 1977, p. 108. 2 Jordan, 1977, p. 112. » Beaumont, 1840, p. 230. ¥ Fogel, 1991, p. 342 25 Jordan, 1977, p. 395. 114 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO o presidente dos Estados Unidos (Andrew Jackson) autoriza o ministro dos Correios a bloquear a circulaco de todas as publicagécs criticas em relagao ao instituto da escravidao; junto com a mordaca imposta aos abolicionistas, a Camara dos representantes adota a resolucao para impedir o exame das petigdes anti-escravistas A repressio pode chegar a formas mais drasticas. Em 1805, ao denunciar 0s escritos que poderiam disseminar um efcito incendidrio sobre os escravos, © Sul da Carolina emana normas que estabelecem a condenasao a morte, por traigdo, dos que de qualquer maneira se tenham manchados da culpa por terem estimulado ou apoiado uma revolta servil. A Gedrgia” procede analogamente. Ao terror do alto se entrelaga o terror de baixo. Se no Norte assume formas menos cruéis (visa impedir reunides ¢ destruir os meios de propaganda ou propriedade dos “agitadores”), no Sul a violéncia contra os abolicionistas configura-se como um pogrom que nao hesita a torturar ¢ eli- minar fisicamente os traidores ¢ os seus colaboradores, gozando da total im- punidade™. A situacdo do Sul nos anos que antecedem a guerra de Secessio foi assim descrita por Joel Poinsett, uma importante personalidade politica da Unido, em uma carta escrita por ele no final de 1850: “Estamos ambos profundamente cansados desta atmosfera carregada de violén- cia insana [...]. Aqui hd um forte partido contra gente violenta ¢ medidas violentas, mas ele € movido pelo medo da submissio; nem se arriscam a trocar opinides com outros que pensam como eles, pelo receio de serem traidos””. E, de fato, o historiador contemporaneo que refere este testemunho, conclui que com o recurso aos linchamentos, 3s violéncias ¢ as ameagas de todo tipo, o Sul consegue calar nao apenas toda oposi¢o mas também qual- quer timido dissenso. Além dos abolicionistas, sio e sentem-se também amea- gados os que gostariam de tomar distancias dessa impiedosa caga as bruxas. Dominados pelo terror sio todos levados a “manter bem fechada a boca, a sufocar suas proprias dividas, a sepultar suas proprias reservas”™”. Nao ha dii- vidas. O dominio terrorista que os proprietirios de escravos exercem sobre 0s negros acaba por golpear, ¢ duramente, também os membros ¢ fragbes da classe dominante. % Foner, 2000, p. 125. ” Jordan, 1977, p. 399. ™ Grimsted, 1998, p. 85-86. ® Grimsted, 1998, p. 114. % Grimsted, 1998, p. 124. IV. Eram liberais a Inglaterra ¢ os Estados Unidos nos séculos XVII ¢ XIX? 115 3. Trés legislagdes, trés castas, uma “democracia para o povo dos senhores” E, entio, como definir 0 regime politico da sociedade que estamos exa- minando? Estamos na presenga de uma sociedade liberal? O problema que nos colocamos a propésito de uma personalidade como Calhoun reapresen- ta-se agora cm termos mais gerais. Pelo menos até a guerra de Secessio, nos Estados Unidos, deparamo-nos com trés legislagdes diferentes. Em relacio aos escravos a realidade € imediatamente evidente. Em meados do séc. XIX, o abolicionista negro Frederick Douglass calcula que na Virginia ha setenta c dois crimes que, cometidos pelo escravo, comportam a condena¢ao 4 Morte, enquanto apenas dois deles estabelecem a mesma pena para o branco". Uma legislagao especial atinge também os homens de cor livres na teo- ria, nao sé pelo fato de, conforme as diversas realidades locais ¢ os diversos periodos histéricos, serem excluidos de certas profissdes, do direito de pos- suir a terra, da possibilidade de no tribunal testemunhar contra os brancos ou de fazer parte do colégio julgador. Mas, hd uma circunstancia ainda mais ilustrativa: sem considerar 0 caso dos escravos, um mesmo crime continua a ter diferentes conseqiiéncias conforme a pele do responsavel. Os que correm © risco de serem reduzidos a escravidio sio obviamente apenas as pessoas de cor que so livres: é esta a sorte que as espera na Pensilvania nas primeiras décadas do séc. XVIII, se forem surpreendidas a violar a proibicao de mis- cegenation ou sc nao estiverem cm condigao de pagar a multa que as atinge por ter comercializado sem permissao regular com os outros negros”. Certa- mente, a situago muda, no Norte, com a aboligao da escravidio que ocorre depois da revoluggo. Permanece, no entanto, o controle total que os bran- cos exercem sobre a magistratura. Trata-se de uma circunstancia evidenciada também por Tocqueville ¢ cujas conseqtiéncias so assim esclarecidas por um juiz do Ohio particularmente corajoso: “O branco pode agora depredar © negro, pode abusar da sua pessoa, pode tirar-Ihe a vida. Pode fazer tudo isso a luz do dia [...],¢ ele deve ser absolvido, a menos que [...] nao estivesse presente algum outro branco” (disposto a testemunhar contra o culpado)”. E nitida ¢ insuperavel a barreira que separa dos brancos, da raga domi- nante, os homens de cor enquanto tal. Nas palavras de Beaumont: “Escravos ou livres que sejam, os negros constituem por toda parte um povo diferente * Douglass, 2000, p. 23-24. » Zilversmit, 1969, p. 19. » Litwack, 1961, p. 94. 116 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO dos brancos”™, £ uma observacao confirmada por Tocqueville: “Na Filadél- fia os negros nao sao sepultados no mesmo cemitério dos brancos”. A segre- gacao acontece também nas prisdes: “os negros eram separados dos brancos também para as refeigdes”. Mais: “em Maryland [Estado escravista] os ne- gros livres pagam como os brancos a taxa para as escolas, mas ndo podem enviar os seus filhos””*. E - podemos acrescentar - em meados do séc. XIX, na Virginia as leis negam aos negros livres na teoria “o direito de aprender a ler ¢ escrever”™. Estamos na presenga de um Estado racial, articulado, pela declaragio explicita dos seus teéricos e apologistas no Sul, em “trés castas, os brancos livres, a gente de cor livre, a gente de cor escrava””. Sempre nas primeiras décadas do séc. XIX, o modelo de casta € evocado também por alguns obser- vadores do Norte, quando, em relagio propria sociedade, onde a escravidio tem sido abolida, falam da divisio em “brimanes e périas”, como demonstra a segregacio racial instalada em todos os niveis, desde os transportes piiblicos até os teatros ¢ desde as igrejas até os cemitérios, ¢ que permite aos negros entrar nos hotéis, nos restaurantes ¢ nos lugares de convivio apenas na qua- lidade de servos. £ verdade, reconhece um outro observador, que visa banir os negros da Indiana para evitar a cles um destino ainda mais duro: eles sio tratados como “uma raga legal ¢ socialmente excomungada, como os hilotas de Esparta ¢ os pdrias da india, membros de uma subcasta (outcasts) privada de direitos, uma casta separada ¢ degradada”™. Quando nos Estados Unidos antes da guerra de Secessio se definem trés castas, se excluem claramente os indios, considerados, até 0 Dawes Act de 1887, como domestic dependent nations, quer dizer como um conjunto de nagdes com uma sua identidade peculiar, mas submetidas ao protetorado de Washington, ¢ cujos membros nio fazem parte da sociedade americana em sentido pleno™. Deve-se acrescentar que o discurso das trés castas nao est4 isento de uma discutivel componente ideolégica: ele tende a passar por cima das diferengas que persistem no interior da comunidade branca ¢ podem incidir pesadamente nao apenas sobre as condigdes materiais de vida mas também sobre os direitos civis das camadas mais pobres. Os Artigos da Con- federac4o, chamados a regulamentar 0 novo Estado que vem se formando, “ Beaumont, 1840, p. 3. % Tocqueville, 1981, vol. V, t.1, p. 247. ™ Stevenson, 1996, p. 278; Davis, 1997, p. 35. * Dew, cit. in Hofstadter (org), 1958-82, vol. II, p. 319. * Litwack, 1961, p. 97 € 67. ® Delanoé-Rostkowski, 1991, p. 74-75 ¢ 124. IV. Eram liberais a Inglaterra e os Estados Unidos nos séculos XVIII ¢ XIX? 117 excluem de mancira explicita os “paupers” ¢ os “vagabundos” do elenco dos “habitantes livres” (art. IV). Mas a verdade é que, examinando a sociedade no seu conjunto, as demarcagdes principais so a linha de cor e, no ambito da comunidade negra, a linha que separa os escravos propriamente ditos dos outros, dos negros “livres”, que na realidade vivem o pesadelo de serem deportados ou por sua vez vir a ser escravizados. Por outro lado, a absoluta centralidade da linha de cor estimula, como observa o idedlogo sulista das trés castas, 0 “espitito de igualdade” no ambito da comunidade branca, a0 desaparecerem rapidamente as discriminagdes mais odiosas””. Neste sentido, pode-se falar de “castas”, como fazem historiadores emi- nentes do instituto da escravidio"'. Mas, a constatagao do enrijecimento na- turalista ¢ racial das relagGes entre as classes sociais nos diz ainda pouco sobre a natureza do regime politico vigente no ambito da sociedade aqui investiga da. As vezes, partindo sobretudo da histéria do Sul da Africa, no intuito de esclarecer o entrelagamento de liberdade (para os brancos) e de opressao (para as populagées coloniais), se chegou a falar de “liberalismo segregacionista””’ Trata-se de uma categoria que exclui completamente do campo de atengio as praticas de expropria¢do, deportagdo c aniquilamento postas em ato contra as populagées nativas da Africa austral ou os amerindios. Mesmo em relacao aos negros ¢ outros grupos étnicos, tal categoria parece referir-se sé a0 periodo seguinte a abolicdo da escravidao. Além do adjetivo, é descabido também © substantivo. Por um lado a comunidade branca se livra da discriminagio censitaria, insistentemente recomendada ¢ até considerada insuperavel pelos expoentes do liberalismo classico. Por outro lado os proprietarios-cidadaos estio submetidos a uma série de obrigacdes que dificilmente poderiam ser incluidos no ambito da liberdade moderna, teorizada por Constant. Outras vezes, no lugar de “liberalismo segregacionista”, prefere-se falar, em referéncia aberta aos Estados Unidos anteriores a guerra de Secessao, de “republicanismo aristocratico” (aristocratic republicanism)". . Nesta definigao ficam completamente na sombra a natureza tanto da aristocracia dominante como da plebe por ela oprimida ¢ a relacdo entre classes sociais ¢ grupos ét- nicos. Contudo, o substantivo permite dar um passo frente: nao estamos na presenca de proprietérios interessados s6 na fracao da sua esfera privada; eles conduzem também uma rica vida politica. Enquanto € objeto de uma fruicio. * Dew, cit. in Hofstadter (org.), 1958-82, vol. II, p. 320. “Van den Berghe, 1967, p. 6 ¢ 10; Blackburn, 1990, p. 62, 205 ¢ 425. * Jaffe, 1997, p. 150. “ Fogel, 1991, p. 413. 118 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO nao generalizada, a “liberdade moderna” estd longe de ser 0 tinico objetivo a0 qual aspiram os protagonistas da revolucdo ¢ os Padres Fundadores dos Estados Unidos. Para Hamilton é clara a “distingo entre liberdade ¢ escravi- dao”: no primeiro caso “um homem é governado por leis as quais ele deu o seu consenso”; no segundo “é governado pela vontade de um outro”. Ou, nas palavras de Franklin, sofrer uma taxag3o de um corpo legislativo no qual nao se é representados significa ser considerados ¢ tratados como um “povo subjugado”™. Ficar excluidos das decisdes politicas, ser submetidos a normas impostas do exterior, por razoaveis ¢ liberais que sejam, € jé sindnimo de escravidio politica ou, pelo menos, constitui o seu inicio. De fato, Calhoun, o autor do qual partimos quando nos colocamos a pergunta crucial (O que € 0 liberalismo?), mais do que de liberalismo faz profissio de democracia, € membro influente do partido democratico dos Estados Unidos. A categoria de liberalismo deveria unificar os dois paises anglo-saxées, mas Calhoun define a Constituicio do seu pais “democritica, m contraposicao a aristocracia ¢ 4 monarquia”, ¢ portanto em contrapo- sigdo 4 Gra-Bretanha, onde permanecem os “titulos nobiliares” € as outras “distingOes artificiais”, abolidas na repablica norte-americana™. Claro, nio se trata da democracia sem adjetivos, como leva a pensar o titulo do livro de Tocqueville que, como veremos, ao se expressar assim, acha que pode fazer abstracao da condigao dos peles-vermelhas ¢ dos negros. Menos ainda trata- se da “democracia da fronteira” que um ilustre historiador estadunidense homenageia, propenso a hagiografia”; sem considerar 0 resto, a definicio sugerida por ele evoca, de maneira reticente ¢ acritica, 6 a progressiva cx- pansio dos colonos brancos pata o Oeste e portanto sé a relacio entre duas das “trés racas” de que, como veremos, fala A democracia na América. Calhoun preocupa-se em distinguir a democracia, da qual quer ser 0 te6- rico, da “democracia absoluta”, culpada por querer pisotear os direitos dos estados e dos proprietarios de escravos”’. Estamos nos antipodas, portanto, da “democracia abolicionista” cara, ao contrario, a um eminente historiador estadunidense e apaixonado militante afro-americano”. Mas, entio, como definir uma democracia que, longe de querer abolir ou também 6 remover ou ocultar a escravidao, a celebra como um “bem positivo”? As vezes, tem “Hamilron, 2001, p. 11. ‘5 Franklin, 1987, p. 405. “ Calhoun, 1992, p. 81-82. © Turner, 1994, p. 54. “ Calhoun, 1992, p. 120, 61 * Du Bois, 1992, p. 185. _IV.Eram liberais a Inglaterra ¢ 0s Estados Unidos nos séculos XVIII ¢ XIX? 119 se falado de “democracia helénica, fundada sobre o trabalho para escravos nao europeus™, Mas também essa definigio nao é adequada. Ignora ou nao descreve de forma correta o destino reservado aos indios ¢ nao leva em considerac3o um outro elemento essencial: na Grécia antiga estava ausente a escravidao-mercadoria sobre base racial que, no caso americano, se con- juga nao com a democracia direta mas com a democracia representativa: & modernidade do modo de produgao corresponde a modernidade do regime politico. Em relagao particularmente as colonias inglesas, um outro ilustre histo- riador militante negro fala sem distingio de “plantocracia branca” (whi- te plantocracy) ou de “democracia dos plantadores” (planter democracy)". Mas, ao chamar a atengao apenas sobre um restrito grupo social, essa defi- nigao comete o equivoco de concentrar o seu olhar excusivamente sobre 0 Sul, que nao é separado por uma barreira do Norte. Isso vale para o campo econémico: depois da terra, os escravos constituiam o patriménio mais cons- picuo do pais; em 1860, o scu valor chegava a trés vezes 0 capital aciondrio da industria manufatureira ¢ ferrovidria; 0 algodao cultivado no Sul era de longe a exportagio mais relevante dos Estados Unidos ¢ servia de manei- ra decisiva para financiar as importagdes ¢ o desenvolvimento industrial do pais”. No plano politico-constitucional a obrigag3o na participagao a caga contra os escravos fugitivos ¢ sua devolucdo envolvia obviamente também 0s cidadios do Norte. Enfim, no plano ideolégico, nao deve ser esquecido o apartheid racial em vigor nos estados livres. Se acrescentarmos a isto os processos de desapropiacao e deportagao contra os indios, fica evidente que, mesmo com as Obvias diferencas entre as duas secGes, a discriminagio racial desempenha nos Estados Unidos um papel decisivo em ambito nacional. En- fim, embora mais adequada em relacao as citadas acima, também a categoria de “democracia branca”™ apresenta um limite, o de nao destacar a orgulhosa autoconsciéncia senhorial da comunidade dos livres ¢ a carga de violéncia que tal comunidade pode desencadear contra os excluidos. Scguindo entio a sugestdo de ilustres historiadores ¢ socidlogos estadu- nidenses, convém falar de Herrenvolk democracy, ow de democracia que vale sé para o “povo dos senhores”™. A nitida linha de demarcacio, entre brancos © Jaffe, 1997. p. 177. 4 Williams, 1972, p. 95; 1970, p. 394, 397. + Fredrickson, 2004, p. 34. » Jaffe, 1997, p. 150. % Van den Berghe, 1967, passim; Fredrickson, 1982, passim; Jennings, 2003, passim. 120 de um lado ¢ negros ¢ peles-vermelhas de outro, favorece 0 desenvolvimento de relagées de igualdade no interior da comunidade branca. Os membros de uma aristocracia de classe ou de raga tendem a se auto-celebrar como os “pares”; a nitida desigualdade imposta aos excluidos € a outra face da re- lagao de paridade que se instaura entre os que gozam do poder de excluir os “inferiores”. Precisa acrescentar que a igualdade da qual aqui se trata € em primeiro lugar uma nitida linha de demarcag3o em relagao aos excluidos, a explicitada pelo mote que preside a revolugo americana: “Nao queremos ser tratados como negros”! De resto, no ambito da mesma comunidade dos livres ¢ dos senhores, nao faltam, como sabemos, os conflitos ¢ as acusagdes reciprocas de prevaricagao ¢ de violagio do principio de igualdade. No fundo, Josiah Tucker havia jé se aproximado da compreensio da natureza real do republicanismo por cle criticado em Locke ¢ nos colonos americanos rebeldes: ONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO “Todos os republicanos antigos ¢ modernos [...] ndo sugerem outro esquema que nio seja o de abater e igualar todas as distingdes acima deles; usando de tirania 20 mesmo tergpo com os seres miseréveis que, desaforrunadamente, estéo colocados abaixo deles”™. E mais: “Quem é tirano com os seus inferiores é, obviamente, um patrio- ta ¢ um nivelador em relagdo aos seus superiores”™. 4. Os livres, os servos € os escravos Mas, se podem servir para a andlise da sociedade derivada da revolugao americana, que ajuda podem fornecer o discurso das trés castas ¢ a categoria de “democracia para 0 povo dos senhores” na compreensio das relagdes politico-sociais vigentes na Inglaterra? Pelo menos até a abolicao da escravi- dao nas colénias, a situagdo nos dois lados do Atlantico apresenta nao poucos pontos de contato. E nao apenas pelo fato de que na mesma metrépole nio estéo completamente ausentes os escravos € 0 prdprio mercado dos escra- vos; mais importante é a consideragdo de que o Império britanico deve ser analizado na sua totalidade, sem revolver a realidade das colénias. O seu desenvolvimento econémico ¢ a sua ascensio politica ¢ militar devem muito 5 Tucker, 1993-96, vol. V, p. 22. *Tucker, 1993-96, vol. V, p. 20. TV. Eram liberais a Inglaterra e os Estados Unidos nos steulos XVII ¢ XIX? 121 a0 asiento, quer dizer a0 monopélio do comércio dos escravos; por outro lado os que derivam a sua riqueza do comércio ou da propriedade do gado humano esto muito presentes no Parlamento inglés. E, portanto, podemos ver em a¢ao também neste caso a casta dos brancos livres ¢ a dos escravos. Certamente, vista pelo observatério de Londres, a terceira casta, a dos ne- gros livres em teoria, desempenha um papel totalmente irrelevante. Aqui esté uma primeira diferenga entre os dois lados do Atlintico. Mas, hd uma outra mais significativa que se refere ao grosso da popu- lagdo da metrépole. No ambito da propria comunidade branca americana ha pequenos sctores aos quais sio negadas a igualdade juridica ¢ até a liberdade negativa. E 0 que emerge da descrigio de Tocqueville, que assim comenta: € a heranga das “leis civis” da Inglaterra, nitidamente desequilibradas a favor do rico”. Nos Estados Unidos trata-se de uma area muito limitada, que de- saparece em tempos relativamente rdpidos. A propria presenga dos negros, escravos ou semi-escravos que sejam, favorece a difusdo de um sentimento de relativa igualdade entre os membros da “casta” superior. Diferente ¢ a sitagao da comunidade branca na Inglaterra. Aqui, a cxclusao do beneficio da igual- dade juridica c da liberdade negativa é um fendmeno de amplissimas propor- g0¢s. Podemos até prescindir da Irlanda que, mesmo depois da formagio do Reino Unido, continua na realidade a ser uma colénia. Concentremo-nos na Inglaterra propriamente dita, partindo de Locke. Este faz uma nitida distingao entre trés grupos: os homens “por lei de natureza sujeitos a0 dominio absolute ¢ ao poder incondicionado dos scus patrdes” ou submetidos a uma “condigao de escravidao perfeita” (TT, II, 85, 24) — so os escravos negros provenientes da Africa; temos depois os livres ¢, por fim, os servos brancos consangitineos dos livres. Um paragrafo central do Segundo Tratado esclarece bem tudo isso: Entre os hebreus, assim como entre outras nagdes, encontramos o caso de ho- mens que se venderam (did sell themselves), mas trata-se evidentemente de servidio (drudgery), nao de escravidio (slavery). A pessoa vendida (the Person sold) nio est& sujcita a um poder absoluto, arbitrario € despético: o senhor nao tem em momento algum o dircito de matar quem depois de um tempo deverd libertar do seu servico. senhor de um servo como esse estava tio longe de possuir um poder arbitrario sobre a sua vida que nem podia mutili-lo a seu bel-prazer, uma vez que a perda de um olho ou de um dente rendia para aquele servo a recuperacao da liberdade (Exo- do, XXI) (TT, II, 24). * Tocqueville, 1951, vol. IV, t.1, p. 326. 122 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO Quando se expressa dessa forma, Locke estd pensando em primeiro lugar nas duas figuras do escravo negro ¢ do servo branco contratado. Como vi- mos, 0 segundo também € objeto de compra e venda, € uma mercadoria em larga escala, exportada para a América ¢ regularmente langada no mercado, Para onde confluem os possiveis compradores, informados pelos anincios publicitarios da imprensa local. Naturalmente, 0 patrio é detentor de um amplo direito de punigao, embora nao tio ilimitado como o exercido sobre © escravo negro. Compreende-se, entéo, a comparacao com o servo do Anti- go Testamento, que, embora nao submetido a uma “condi¢ao de escravidio perfeita”, sofre uma condi¢3o que poderiamos definir, em contraposicao, de escravidao imperfeita”. E esta escravidao imperfeita que Locke define com o termo de servidao ou serventia (drudgery). No ambito do Império britanico convivem trés diversas situacdes ju- ridicas, a primeira caracterizada pela liberdade, a segunda pela servidao ¢ a terceira pela escravidao no sentido estrito, Nao obstante o abismo racial que se abriu ¢ que separa 0 escravo negro do servo branco, o fato é que nem este Uiltimo faz parte da comunidade dos livres propriamente dita. Mesmo dife- rente do exercido por “um senhor sobre o seu escravo” (a Lord over his Sla- ve), € indiscutivel o poder de “um dono sobre o seu servo” (a Master over his Servant: TT, II, 2), uma vez que este estd submetido a “disciplina normal” que o amo implementa no ambito da familia (TT, II, 85). Significativamente, embora se preocupe em distinguir o slave do servant, Locke as vezes usa este Ultimo termo também em relagio a figura do escravo propriamente dito. No Primeiro Tratado sobre 0 governo podemos ler: “Os que eram ricos no tempo dos patriarcas, assim como os que sio ricos hoje nas indias Ocidentais, compravam servos ¢ servas (men and maid-servants) c, scja pela proliferacao (increase) destes tiltimos seja pelas novas aquisigdes, chegavam a possuir familias amplas ¢ numerosas” (TT, I, 130). Como mostra a referéncia aos proprietarios das indias Ocidentais ¢ ao direito de propriedade exercido por eles também sobre a prole dos “servos”, fica claro que aqui o discurso é dirigido a escravidao hereditiria. A tripartigdo formulada por Locke emerge também em Mandeville. Te- mos, em primeiro lugar, “o grande numero de escravos que a cada ano sio transportados da Africa” para a América". Na Inglaterra, ao contrario, “os escravos nao sao permitidos”, mas os livres podem langar mao “dos filhos dos ~~ ™ Mandeville, 1988, vol. II, p. 199 (Quinto didlogo). IV. Eram liberais a Inglaterra ¢ os Estados Unidos nas culos XVII e XIX? 123 pobres”, das “maos voluntariosas para todas as scrviddes (all the Drudgery) ligadas ao duro ¢ sujo trabalho”. E novamente nos deparamos nas trés fi- guras do livre, do servo ¢ do escravo. A segunda pode ser pouco confundida com a primeira, mas aos olhos saltam as analogias com a terceira: “a parte mais mesquinha e pobre da nacio” é “a gente que trabalha e pena de ma- neira semelhante aos escravos” (the working slaving people) ¢ que € destinada Para sempre a realizar um “trabalho sujo ¢ semelhante ao do escravo” (dirty slavish Work)”. Enfim, vejamos Blackstone. Ao celebrar a Inglaterra como terra da li- berdade, ele destaca que nela nao hé lugar para a “verdadeira escravidio” (proper slavery), para a “escravidao em sentido estrito” (strict slavery), para a “escravidao absoluta” (absolute slavery), no ambito da qual “ao dono € con- ferido um poder absoluto ¢ ilimitado sobre a vida ¢ a fortuna do escravo”. Essa insistente caracterizacao deixa espaco para formas de trabalho forgado diferentes daquelas as quais sio submetidos os negros das colénias. Tam- bém no grande jurista acaba por emergir uma condicio intermediaria entre a liberdade ¢ a escravidao, uma espécie de escravidao nao “absoluta” ¢ nao entendida “em sentido estrito”. Por outro lado, ao lado dos escravos, tam- bém “domésticos”, “aprendizes” c “trabalhadores” sfo servos; estamos na presenca de “diversos tipos de servos”, cada um com caracteristicas especifi- cas, mas todos unificados pelo fato de serem submetidos a servidio”. Mais uma vez age a heranca de Grotius, para o qual servitus € a categoria geral para compreender ¢ definir a realidade do trabalho. Em Locke, Mandeville, Blackstone a novidade € a insisténcia sobre a distingao entre dois grupos de Servitus, a que estd em vigor na metrépole e a que esta cm ato nas colénias: assim da biparti¢ao grociana se passa para uma triparticao. 5. A Inglaterra ¢ as trés “castas” Mas, agora, deixando de lado os grandes autores, vamos observar a rca- lidade social ¢ a ideologia que caracterizam a Inglaterra nos séculos XVIII ¢ XIX. Muito além dos “residuos de escravidio” de que fala Smith, a per- sisténcia das rclacdes servis é muito evidente no tratamento dos pobres ¢ na # Mandeville, 1988, vol. II, p. 259 (Quinto didlogo). ® Mandeville, 1988, vol. I, p. 119; Mandeville, 1988, vol. 1, p. 302 (- Mandeville, 1974, p. 106). ‘*' Blackstone, 1979, vol. I, p. 411-12 (livro I, cap. 14). 124 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO possibilidade de dispor dos filhos deles como uma res nullius, nas casas de trabalho, no exército, nas prisées, no recrutamento dos servos enviados a colonizar as colénias. Quem chama a atengio sobre a “escravidio inglesa” ¢ sobre os “escravos brancos”, em 1834, é Wakefield”, o economista que jé encontramos. Nesse momento autores das mais diversas orientacdes politicas comparam os escravos do outro lado do Atlintico aos operdrios que penam na Inglaterra: os anti-abolicionistas, que ecoam 0 discurso @ fa Calhoun; as correntes mais ou menos radicais que aspiram a uma cmancipacio do trabalho de forma mais geral; os observadores mais destacados que se limi- tam a registrar 0 fato, como 0 economista acima citado. E a comparacio é instituida sem se concentrar exclusivamente sobre 0 espectro da morte por inanig3o que incumbe a todo momento sobre o operario inglés. Certamente, é um aspecto que nao pode ser ignorado: nao s4o poucos os pobres que, para escapar & inanigio cometem algum crime na esperanga de poder sobreviver como deportados ou “escravos de galés” . Mas, uma atencao nao menos im- portante é dedicada a violacao da liberdade mais propriamente liberal ou da “liberdade moderna”. Para maior clareza, deixemos as cidades € os centros urbanos ¢ vamos ouvir o protesto dos camponeses: “Falando em termos gerais, j4 que toda regra tem suas excegdes, as classes pri- vilegiadas dos nossos distritos rurais fazem de tudo para screm odiadas pelos scus vizinhos mais pobres. Elas cercam as terras comuns [...]. Constroem prisdes ¢ as lotam. Inventam novos crimes ¢ novas punicdes para os pobres. Interferem nos ma- triménios dos pobres, impondo alguns ¢ impedindo outros. Trancam os miseraveis nas casas de trabalho, separando marido e mulher, isolando-os de dia e prendendo- 0s de noite. Amarram 0 pobre ao carro [como um boi]. Controlam os bares, proi- bem os jogos do bilhar, condenam as lojas de cerveja, fazem intervencio nas festas populares, procuram de toda maneira restringir ulteriormente 0 pequeno espago de divers’o do pobre” Quase vinte anos depois, um jornal de linha radical, ao condenar a “es- cravidio” existente na Inglaterra, levanta acusagées sobre o acoitamento de soldados e marinheiros, a separac¢io de marido e mulher nas casas de traba- Iho, a necessidade que os servos dos campos tinham de pedir permissio a0 senhor antes de poder contrair matriménio, os abusos sexuais sistematicos de que eram objeto “as mulheres ¢ as filhas das camadas pobres”* ‘© Wakefield, 1967, p. 47, 41 * Wakefield, 1967, p. 48. + Wakefield, 1967, p. 45. “* Lorimer, 1978, p. 94. _ IV. Eram liberais a Inglaterra ¢ os Estados Unidos nos séculos XVIII ¢ XIX? 125 Quem registra € considera inquestionivel 0 cahier de doléances prove- niente dos campos € Wakefield, o qual, escrevendo na véspera imediata da abolicao da escravidao nas colénias inglesas, com o olhar para o Império no seu conjunto, acha poder distinguir trés figuras, o “homem livre” (freeman), 0 “escravo” (slave), o “miseravel” (pauper). Somos levados a pensar no dis- curso das trés castas que encontramos em um tedrico do Sul. Na realidade, em 1864, a “Saturday Review” — trata-se neste caso de uma revista difundida entre as classes médias ¢ altas - constata que os pobres constituem na Ingla- terra “uma casta separada, uma raga”, colocada em uma condi¢ao social que nao sofre modificagdes “do berco até o timulo” ¢ que esté dividida do resto da sociedade por barreiras semelhantes 4s que subsistem na América entre brancos ¢ negros. A respeitavel revista inglesa continua assi “Do garoto ou do homem pobre inglés espera-se que ele se lembre sempre da condigio na qual Deus o colocou, exatamente como do negro espera-se que se lem- bre da pele que Deus Ihe deu. Em ambos os casos a relagio € a que subsiste entre um superior € um inferior perpétuo, entre um chefe ¢ um dependente: por maior que possa ser, gentileza ou bondade nenhuma pode alterar essa relagio””. Estamos — convém nao esquecer - em 1864. Muitas décadas se passaram desde a Gloriosa Revolugio € o nascimento da Inglaterra liberal. E, no en- tanto, embora a situagdo seja instdvel e tenda a modificar-se em conseqiiéncia das lutas populares, a realidade de uma sociedade de casta continua a existir: abolida hé trinta anos nas colénias inglesas, a casta dos escravos est para desaparecer também nos Estados Unidos. De trés, as castas transformam-se em duas nos dois lados do Atlantico: aos semi-escravos negros dos Estados Unidos correspondem os servos brancos da Inglaterra; uma barreira mais ou menos rigida continua a separar uns ¢ outros da casta dos homens realmente livres. Ao apartheid racial parece corresponder uma espécie de apartheid social. Na Inglaterra do século XVIII podemos ver Charles Seymour, 6° Duque de Somerset enviar batedores na frente da sua carruagem encarregados de limpar 0 caminho para evitar a0 nobre homem o mal-estar de cruzar com pessoas ¢ olhares plebeus™. Um século depois, nas igrejas i iglesas vigora ainda uma espécie de segregacao entre as diversas classes sociais”’; ¢ 0 j4 co- & Wakefield, 1967, p. 42. * Lorimer, 1978, p. 101-102, * Cannon, 1984, p. 172. © Lorimer, 1978, p. 104. 126 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO nhecido cabier de doléances claborado pelos camponeses lamenta o fato de que também nessa circunstancia o aristocratic recorre a uma cortina para se proteger de qualquer “olhar vulgar”. Quando depois Sénior visita Népoles, fica intrigado com a mistura das classes: “Nos climas mais frios, as classes inferiores permanecem em casa; aqui vivem na rua”. Pior, elas sio tio pouco distantes das classes superiores que chegam a morar nos subterrancos dos palécios senhoriais, Resultado: “Nao € mais possivel escapar da vista nem do contato com uma repugnante degradacio””". 6. A reprodugio da casta servil ¢ 0 inicio da eugenética Como “preservar a raca dos diaristas e dos servos”? A expressio utili- zada por Smith, aqui citado, revela que a mobilidade social é muito reduzida ou totalmente inexistente: os trabalhos mais pesados ¢ pior remunerados sio entregues a uma classe que tende a se reproduzir de gerag3o em geracio, ¢ portanto a uma espécie de casta servil hereditéria. ‘A reprodugio dessa casta ou raca é absolutamente necesséria. Para Men- deville a guerra desempenha uma fungao claramente benéfica. Se esta com suas matangas periédicas ndo providenciasse a colocar um freio ao excesso de machos que se verifica no momento do nascimento, as mulheres, dispu- tadas entre muitos aspirantes e concorrentes, se tornariam uma espécie de mercadoria rara acessivel s6 aos ricos. Viria a se esgotar para a sociedade o fornecimento dos “filhos dos pobres”, “a maior ¢ mais difundida de todas as béncdos temporais”, isto é, resultaria dificil ou impossivel a reproduco hereditaria dos pobres destinados a realizar “todo o necessério trabalho duro € sujo” A ordem natural, no ambito da qual entra a fazer parte também a guerra, gera de maneira espontanea a raga dos semi-escravos dos quais a sociedade de modo algum pode prescindir. Mas, esta presumida espontaneidade deve ser estimulada com oportunas intervengdes politicas pelo alto. E absolutamen- te necessario evitar, para Mendeville, o acesso a instrugao Para os “pobres laboriosos”: ficaria comprometido o “equilibrio da sociedade””™. Correria © risco de anular a forca-trabalho a baixo custo, décil e obediente de que se ™ Wakefield, 1967, p. 45. Senior, cit. in Brogan, 1991, p. 52 7 Smith 1981, p. 98 (= Smith, 1977, p. 80) (livro I, cap. Mandeville, 1988, vol. II, p. 258-59, 261-62 (Quinto “Mandeville, 1988, vol. I, p. 302 (= Mandeville, 1974, p. 105-106). __ _IV. Eram liberais a Inglaterra ¢ os Estados Unidos nos séculos XVII ¢ XIX? 127 tem necessidade. De alcance bem maior so as intervengdes levantadas por outros expoentes da tradigdo liberal. Com a finalidade de reproduzir uma raga possivelmente perfeita de operarios déceis e de instrumentos de trabalho pode ser até util o universo de concentragao das “casas de trabalho”. Confi- nando aqui também os filhos dos delingiientes ¢ dos “suspeitos”, se poderia produzir ~ observa Bentham — uma “classe indigena” (indigenous class), que se destacaria pela sua laboriosidade ¢ senso de disciplina. Se depois, se pro- movessem matriménios precoces no interior dessa classe, segurando a prole como aprendizes até alcangar a maior idade, eis que as casas de trabalho ¢ a sociedade viriam a dispor de uma reserva inesgotavel de forca-trabalho de primeira qualidade. Ou seja, por meio de “a mais gentil das revolugdes”, a sexual”, a “classe indigena”, prolongando-se hereditariamente de geracio em geracao, se transformaria em uma espécie de raga “indigena”. Em uma revolugio também “gentil” pensa Sieyés, ¢ sempre com a fina- lidade de produzir uma classe ou raca de trabalhadores a mais décil possivel. Como Bentham, também o liberal francés se abandona a uma utopia (ou distopia) eugenética. Imagina um “cruzamento” (croisement) entre macacos (por exemplo o orango) “negros”, para a criacdo de seres domesticéveis € aptos ao trabalho servil: “as novas raas de macacos antropomorfos”. Dessa forma os brancos, que permanecem no alto da hierarquia social como diri- gentes da producio, poderiam dispor tanto dos negros, como instrumentos auxiliares de produgdo, como dos verdadeiros escravos, que seriam exata- mente os macacos antropomorfos: “Por quanto extraordinéria, por quanto imoral esta idéia possa aparecer & pri- meira vista, meditei nela longamente, ¢ ndo vio encontrar outra saida em uma grande nnagdo, sobretudo nos paises muito quentes ou muito frigs, para conciliar os direrores dos trabalhos com os meros instrumentos de trabalho” Se por um lado precisa estimular a produgio ¢ a reprodugio de uma raca de servos e de verdadeiros escravos, por outro lado é necessario limitar ao mdximo o excesso de populacio improdutiva ¢ parasitéria, a massa dos pobres que, longe de produzir riqueza, a devoram como gafanhotos. Para manter 0 equilibrio demografico Malthus invoca uma politica que retarde os matriménios ¢ a procriacao entre as classes populares; diversamente a nature- za vai providenciar com as guerras, as carestias, as epidemias. Desse ponto de * Bentham, cit. in Himmelfarb, 1985, p. 78-83. © Sieyés, 1985, p. 75. 128 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO vista resulta problemitico o papel da medicina. Em 1764, Franklin escreve a um médico: “A metade das vidas que vocés salvam ndo é digna de ser salva, porque é indtil, enquanto a outra metade nem mereceria ser salva porque pérfida. A vossa consciéncia nunca vos acusa desta guerra permanente contra os planos da Previ- déncia? Décadas mais tarde, Tocqueville auspicia a possibilidade de livear-se final- mente da “canalha penitenciéria” como dos “ratos”, quem sabe até por meio de um incéndio colossal”. O liberal francés “sonha com o genocidio”?” A afirmagao € exagerada. Resta a dura polémica contra uma “caridade bastar- da” que ameaga a ordem: “E a filantropia de Paris que nos mata”. Uma conclusio de cardter geral se impée. A tentagio eugenética perpas- sa em profundidade a tradigdo liberal. Nao é um acaso que a disciplina que leva esse nome recebe o seu batismo na Grd Bretanha ¢ alcanca depois uma extraordinaria fortuna nos Estados Unidos". 7. O liberalismo nio localizavel do Reino Unido na Gra Bretanha ¢Irlanda E, tal como para os Estados Unidos, também para a Gra Bretanha somos obrigados a nos colocar um problema crucial: trata-se de uma sociedade libe- ral? Mesmo depois da aboli¢io da escravidao nas colénias propriamente ditas, nao se pode falar, para os habitantes do Reino Unido, de uma fruicao genera- lizada da liberdade liberal por exceléncia, isto é, da liberdade moderna. Desta, certamente, nao gozam os irlandeses, submetidos permanente- mente — reconhece Tocqueville — a “medidas de excego” ¢ a mercé dos “tribunais militares” ¢ de uma gendarmaria numerosa ¢ odiosa: a Castlebar, com base no Insurrection Act, “todo homem surpreendido sem passaporte fora da sua casa depois do pér-do-sol € deportado””’. Na imprensa do tempo, ” Franklin, 1987, p. 803 (carta a J. Fothergill de 1764), ™ Tocqueville, 1951, vol. VIII, t. 1, p. 173-74 (carta a G. de Beaumont, 22 de novembro de 1836). * Perrot, 1984, p. 38. * Tocqueville, 1951, vol. IV, t. 1, p. 38. *' Cf, Losurdo, 2002, cap. 19, § 1; cap. 23, § 2. " Tocqueville, 1951, vol. V, t. 2, p. 128-29, 169. __ _ IV. Eram liberais a Inglaterra cos Estados Unidos ns steulos XVIII e XIX? 129 a condigao dos irlandeses ¢ muitas vezes comparada com a dos negros do outro lado do Atlantico. Na opinido formulada em 1824 por um rico merca- dor inglés, discipulo de Smith ¢ fervoroso quacre ¢ abolicionista (James Cro- pper), 08 irlandeses encontram-se em uma condigao pior que a dos escravos negros™. * Em todo caso, os irlandeses representam para a Inglaterra o que os negros sao 0 para os Estados Unidos, trata-se de “dois fendmenos da mesma natureza”™: a opinido expressa por Beaumont encontra uma confirmagao indireta em Tocqueville. Conforme a Democracia na América sabemos da total surdez da magistratura, monopolizada pelos brancos, diante das justas reivindicagdes dos negros. Impde-se uma conclusio, sugerida também por um testemunho recolhido no Maryland: “A populacao branca ¢ a populacio negra esto em um estado de guerra. Elas nunca vao se misturar. £ necess4- rio que uma das duas ceda o lugar para a outa”, Uma observacao andloga ouve 0 liberal francés na ilha subjugada ¢ colonizada pela Inglaterra: “Para dizer a verdade, nao ha justica na Irlanda. Quase todos os magistrados do pais esto em guerra aberta contra a populacio. Desta forma, a populagio nio chega a ter a idéia de uma justica publica”. Em um caso como no ou- tro, um pilar do Estado de direito, a magistratura, esté em guerra contra uma parte significativa da populacio. Nos dois lados do Atlantico para perpetuar a opressdo respectivamente dos negros ¢ dos irlandeses contribuem as normas que impcdem ou obs- taculizam © acesso a instrugio e proibem o matriménio com os membros da casta superior. Também na Irlanda a miscegenation € um crime punido com grande rigor: com base em uma lei de 1725, um sacerdote culpado de celebrar clandestinamente um matriménio misto pode até ser condenado 4 morte”. E também na Irlanda procura-se obstaculizar 0 acesso da populacio nativa a instrugdo. Sobre este ponto podemos concluir dando a palavra a um istoriador liberal ¢ anglo-irlandés do séc. XVIII: a legislacao inglesa visa a espoliar os irlandeses da sua “propriedade” ¢ “industria”, visa a “manté-los em condigées de pobreza, a quebrar neles qualquer germe de emprecndi- mento, a degradé-los ao status de uma casta servil que nunca poderia esperar clevar-se ao nivel dos scus opressores”™. © Davis, 1986, p. 180, 184. * Beaumont, 1990, val. II, p. 307. ™ Tocqueville, 1951, vol.V, t. 1, p. 247. % Tocqueville, 1951, vol. V, t. 2, p. 94-95: Tocqueville reproduz o coléquio entre dois ituados expoentes do mundo politico inglés, Nassau William Senior ¢ John Revans. * Lecky, 1883-88, vol. Il, p. 371-73; cf. também vol. 1, p. 289. Lecky, 1883-88, vol. 1, p. 288. con 130 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO Em 1798, trés anos antes da formacao do Reino Unido da Gra Bretanha ¢ Irlanda, os irlandeses sio “aproximadamente quatro milhdes e meio, um tergo da populacao das ilhas britinicas””. E, portanto, privada da liberda- de negativa € uma porcentagem maior que a dos Estados Unidos onde, no momento da independéncia, os negros constituem um quinto da populacao. Mas, precisa acrescentar que os dominadores ingleses, antes ¢ depois da Glo- tiosa Revolucao, tratam os irlandeses por um lado como os peles-vermelhas, expropriando a sua terra € diminuindo-a com medidas mais ou menos drés- ticas, por outro lado como os negros, utilizando-os no trabalho forcado. Donde a oscilagao entre praticas de escravizacao e praticas de genocidio. Além dos negros ¢ dos irlandeses, na propria Inglaterra, as classes popu- lares sentem a propria liberdade negativa gravemente ameacada, a tal ponto de serem comparadas na cultura e na imprensa do tempo a uma “casta” ou “raga” inferior. Mas agora nos convém centrar as atengdes sobre as relacdes que ocorrem no ambito da “casta” superior. Como se sabe, a rebeliao dos colonos americanos se desenvolve a partir dos protestos contra a discrimina- ¢30 negativa sofrida por eles, por causa da sua exclusio do corpo legislativo. Por outro lado, nao se deve esquecer que na Inglaterra do tempo o direito de representacao é um privilégio concedido pela Coroa, de modo tal que tam- bém cidades industriais de primeira grandeza resultam excluidas da Camara dos Comuns, onde ao contririo estdo bem presentes burgos j4 quase aban- donados, mas com o direito de se fazer “representar” em Londres pelo nobre local. Se depois se leva em consideracdo que a Camara dos Lordes é apandgio hereditério da aristocracia terreira, uma conclusio acaba se impondo: na pré- pria Inglaterra, nem sequer as relac6es internas das classes proprietarias estao marcadas pela igualdade. Esta fica ulteriormente comprometida por uma outra circunstincia: s6 com a segunda lei de reforma eleitoral, promulgada por Disracli em 1867, “os ndo-conformistas obtiveram a plena paridade politica”. Até aqucle mo- mento, vigoravam pesadas discriminagées de caréter religioso: “Quem, protestante ou catélico, nao quisesse participar da Comunhio confor- me os ritos da Igreja inglesa, era cortado fora também de qualquer cargo de diregio dependente da Coroa ou dos centros municipais cidadaos; as portas do Parlamento ficavam trancadas para os catélicos romanos, ¢ as da universidade para dissidentes de qualquer tipo”™. ™ Pakenham, 1969, p. 30. * Trevelyan, 1965, p. 545, 405. IV. Eram liberais a Inglaterra ¢ os Estados Unidos nos séculos XVII ¢ XIX? 131 Portanto, observando bem, os nao-conformistas (entre os quais precisa incluir obviamente os hebreus)” eram privados nao apenas da igualdade po- litica mas também da plena igualdade juridica: sé em 1871, todas as univer- sidades, incluindo Oxford e Cambridge, abriram “os cargos académicos em geral para homens de todas as diversas confissdes religiosas””. E significativo o argumento com o qual em 183] Macaulay critica a per- manente exclusio dos hebreus do gozo dos direitos politicos: “Seria sacrilégio consentir que um hebreu venha a sentar no Parlamento. Mas um hebrew ganha dinheiro ¢ o dinheiro elege os membros do Parlamento [...}. Se um hebreu viesse a ser um conselheiro privado de um rei cristao seria uma desgraga eterna para a nagio. Mas o hebreu pode governar o mercado financeiro ¢ 0 mercado financeiro pode governar o mundo” Em uma polémica paradoxal contra as discriminagdes de que sao vitimas os hebreus, Macaulay parece ecoar alguns esterestipos anti-semitas, mas na realidade o sentido do seu discurso é claro: é absurdo ¢ inadmissivel querer negar a igualdade politica até civil aqueles que, pelo menos no plano eco- némico, sao j4 membros da elite dominante. Enfim, deve ser levado em consideragao que, 4 semelhanga da classe existente no outro lado do Atlantico protagonista da revolugao americana e da instaura¢ao de um Estado racial, também a aristocracia inglesa nao se limita a desejar uma liberdade meramente negativa. Décadas antes de Ha- milton (e dos revolucionérios americanos), na Inglaterra, Sidney declara que. “nada denota um escravo senao a dependéncia da vontade de um ou- tro” ou de uma lei a qual cle no deu o seu consentimento*. Locke nao se expressa diversamente, quando a “escravidio” politica contrapde uma “liberdade” entendida no sentido de “nio estar sujeitos a nenhum poder legislativo salvo o fundado no consenso comum da civitas” (Common- wealth) (TT, II, 22). E 0 proprio Locke quem evidencia a equivaléncia entre o termo inglés ¢ o termo latim (TT, II, 133); ¢ este ultimo implica claramente a participacdo dos cives a vida pitblica. O fildsofo inglés argu- menta de maneira semelhante aos revoluciondrios americanos, que nio casualmente se inspiram nele: aquele que quiser decidir solitariamente, excluindo-me do processo de formacio da lei, pode legitimamente ser * Salbstein, 1982. ” Trevelyan, 1942, p. 375 € nota, 467. * Macaulay, 1850, vol. 1, p. 295. ™ Sidney, 1990, p. 402. 132 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO suspeito de querer “apropriar-se de qualquer coisa”, além da liberdade politica; aspira, afinal, a “tornar-se escravo” (TT, II, 17). Independentemente da posigio deste ou daquele tedrico, a aristocracia inglesa visava a desenvolver e desenvolvia realmente uma fungio politica de destaque. Além da Camara alta, a propria “Camara baixa do Parlamento foi es- sencialmente um clube de proprietérios terreiros” até quase o final do séc. XIX. A aristocracia exercia diretamente poder politico: “Era uma elite terreira, uma elite de servigo auténoma, ¢ detinha o controle dos negécios piiblicos””. Um controle que tomava conta da magistratura ¢ das administragdes locais € que, sobretudo nos campos, nio softia nenhuma esgargadura: praticamente até final do séc. XIX, “grandes e pequenos nobres ram ainda as autoridades indiscutiveis, que nao deviam satisfagdo a ninguém sendo a si mesmos”™. Como no Sul dos Estados Unidos, também na Inglaterra o poder incon- teste de uma classe social nao exclufa a imposigio de limites aos seus mem- bros. O proprietério nobre era levado a respeitar uma série de obrigagdes, em parte sancionadas pela lei em parte pelo costume: pense-se na primogenitura € na inalienabilidade dos bens, ¢ também na endogamia muito usuais no Ambito da aristocracia, uma pratica que mais uma vez nos leva a pensar na proibico da miscegenation nos Estados Unidos. Os membros da nobreza “se sentiam obrigados a prestar servico voluntario ao Estado, tanto cm ambito local como nacional, na qualidade de civis ¢ militares”. Enquanto desfruta- vam da propriedade ¢ da prépria riqueza, os oficiais patricios posavam de “heréis cavalheirescos”, chamados a dar prova, em caso de perigo da nacio, de “coragem espartana ¢ estéica””. Como definir a sociedade que estamos analisando? Novamente nos depa- ramos no problema que nos persegue desde 0 inicio desta pesquisa: podemos falar em liberalismo a propésito do pensamento de Calhoun e da realidade dos Estados Unidos na qual vive ¢ opera? E podemos assim falar em relagio ao Reino Unido de Gra Bretanha ¢ Irlanda? Partindo da representacio hoje dominante do liberalismo, que sentido faz definir liberal uma sociedade no Ambito da qual uma parte consideravel da populagio é submetida 4 ditadura militar, onde as classes populares da metrépole sdo parcialmente excluidas da liberdade negativa, onde esse tipo de liberdade nio é de modo algum o ideal das classes proprietarias ¢ no interior dessas ultimas o principio da igualdade civil ¢ politica sofre sérias limitagdes? * Cannadine, 1991, p. 16, 24. “™ Cannadine, 1991, p. 17, 163-65. * Cannadine, 1991, p. 15-16, 79-80. IV, Bram liberais a Inglaterra ¢ os Estados Unidos nos séculos XVII ¢ XIX? 133 Elemento constitutivo de um regime liberal deveria ser a competicio entre diferentes candidatos. Mas, 0 que acontecia na realidade? “Muitas cleigdes aconteciam sem oposigao. Em sete eleigdes gerais, de 1760 a 1800, menos de um décimo das cadeiras de contado foram contestadas. Alguns burgos eram totalmente indiferentes a0 fato de que os proprietérios vendessem as cadeiras ou designassem os membros sem discussio; algumas cadeiras eram proprie- dade privada como as dos parlamentos franceses””. 8, Liberalismo, “individualismo proprictario”, “sociedade aristocratica” Na tentativa de superar as dificuldades que se encontram ao definir a so- ciedade inglesa do séc. XVIII ¢ XIX, as vezes, no lugar de liberalismo, prefe- re-se falar de “individualismo”, c entio a histéria da tradi¢ao de pensamento aqui objeto de investigacao aparece perpassada em profundidade por um “individualismo proprictario” ou “possessivo” (possessive individualism)”. Esta definicdo tem uma sua parcial legitimidade. Em Locke 0 poder politico comega a se configurar como tirania e, portanto, como violéncia quando atenta a propriedade privada (da classe dominante), ¢ quando diante de tal violéncia é legitimo resistir: 0 cidadio, melhor o individuo, retoma o poder que ja possuia no estado de natureza ¢ que “consiste em usar todos os meios que considera adequados ¢ que a natureza Ihe oferece para a preservacao da propriedade” (TT, II, 171). O ambito da legalidade é 0 ambito do respeito da propriedade privada, enquanto a violéncia ¢ definida em primeiro lugar pela sua violacio. Contudo, examinada mais atentamente, a categoria de “individualismo proprietério” revela-se totalmente inadequada. Estamos na presenga de uma sociedade e de uma tradi¢cdo de pensamento que, longe de ser inspirada por um respeito supersticioso pela propriedade e pelo direito de propriedade, na realidade promove ¢ legitima colossais expropriacdes contras os irlandeses ¢ os peles-vermelhas. E verdade, um capitulo central do segundo dos dois Tratados sobre o governo de Locke leva 0 titulo de “A Propriedade”, mas tal- vez tivesse sido mais apropriado o titulo de “A expropriaio”, uma vez que ele visa a justificar a apropriagdo de terras por parte dos colonos brancos em ™ Palmer, 1971, p. 59. ™ Macpherson, 1982 134 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO prejuizo dos peles-vermelhas ociosos ¢ incapazes de fazer frutificar a terra. Sem considerar as colénias ¢ as populagées coloniais ou de origem colonial, a categoria de “individualismo proprietério” parece concentrar a sua atengio exclusivamente sobre a comunidade branca na metrépole capitalista ¢ sobre © conflito proprietérios /nao proprietérios. Por outro lado, mesmo limitando a nossa atencao 4 metrépole, pode- mos ver que, com o olhar voltado a Inglaterra, 0 Segundo Tratado justifica ¢ reivindica a cerca das terras comuns e, portanto, a expropriacio maciga dos camponeses. Tal como os territérios do outro lado do Atlantico ocupados pelos peles-vermelhas, assim as terras comuns nao so propriamente fecun- dadas pelo trabalho: e, portanto, em ambos os casos nao existe ainda um proprietario legitimo. Em autores classicos da tradi¢ao liberal encontramos a afirmagdo ¢ a demonstrag3o minuciosa de que a propriedade reivindicada pelos nativos e por grupos sociais internos a metrépole ¢ assimilaveis aos na- tivos é na realidade res nullins. Paradoxalmente, ndo obstante as suas intengdes criticas, a categoria de “individualismo proprietario” acaba por dar crédito a autoconsciéncia ideo- légica das classes que na Inglaterra e na América chegam ao poder agitando as palavras de ordem da liberdade e da propriedade. De maneira muito dife- rente argumenta Marx. O Capital denuncia “a estéica imperturbabilidade do economista politico” (e dos pensadores liberais) diante da despudoradissima profanacdo do “sagrado direito da propriedade” e da “violenta desapropria- G30 do povo” que se consomem na Inglaterra. Ainda nas primeiras décadas do séc. XIX, em alguns casos, para tornar mais rapido o processo da cerca nao se hesita a recorrer a métodos brutais: lugarejos intciros so destruidos ¢ arrasados, de maneira a obrigar a fuga os camponeses ¢ transformar as terras comuns em propriedade privada e em pastos a servico da indiistria téxtil!™. ‘Até agora, a0 examinar a categoria de “individualismo proprietério”, nos concentramos sobre 0 adjetivo. Se voltarmos a aten¢io para o substantivo, veremos que cle também resulta bastante problematico. Os excluidos sao assimilados pela classe dominante a instrumentos de trabalho, a mdquinas bipedes, sentem negada a sua qualidade de homens ¢ de individuos; natural- mente os privilegiados insistem vigorosamente nesta qualidade, que se atri- buem de modo exclusivo. Mas, é este o individualismo? Também neste caso, assistimos ao achatamento do historiador contemporaneo sobre a autocons- cincia ideolégica de uma classe social ¢ de um movimento politico que ele pretende criticar. '€ Marx, Engels, 1955-89, vol. XXIII, p. 756, 758. __IV.Eram liberais a Inglaterra cos Eades Unidos nos séculos XVIII ¢ XIX? 135 No lugar de “individualismo proprietario” parecem mais apropriadas as categorias que, em relacdo a Inglaterra do tempo, utilizam alguns autores liberais de grande destaque no séc. XIX. Aos olhos de Constant “a Inglater- ra, no fundo, no passa de uma grande, opulenta ¢ vigorosa aristocracia”"”. Nao é diferente a avaliac¢io formulada por Tocqueville nos anos 30: “Nao s6 a aristocracia aparece estabelecida mais solidamente do que nunca, mas a nagdo deixa o governo, sem aparentes sinais de desaprovaco, nas mos de um grupo restrito de familias”, de uma “aristocracia”, que € em primei- ro lugar aquela fundada sobre o “nascimento” ; claramente, estamos na presenca de uma “sociedade aristocrética”, caracterizada pelo dominio dos “grandes senhores”'”. De resto, € 0 proprio Disraeli quem acusa o partido whig, hd muito tempo no dominio do pafs emanado da Gloriosa Revolucio, por ter visado a instaurar uma aristocracia ¢ uma oligarquia no modelo de Veneza 9. A “democracia para o povo dos senhores” entre Estados Unidos e Inglaterra Uma questio permanece sem solugdo: embora intrinsecamente aristo- cratica, a Inglaterra € de qualquer forma uma sociedade liberal? Constant nao tem diividas: € o pais no qual “as diferenas sociais s4o mais respeitadas” (a favor da aristocracia), mas no qual, a0 mesmo tempo, “os direitos de cada um sao mais garantidos” . E esta é a opiniao também de Tocqueville, mas s6 depois do 1848, depois que a angiistia pela deriva socialista c bonapartista da Franga deixou na sombra qualquer outra preocupacdo: “a constituicdo aristocratica da sociedade inglesa” esta fora de discussio, contudo trata-se sempre do “pais mais rico ¢ mais livre” Antes da queda da monarquia em julho, ao contrario, nao faltam em Tocqueville duvidas ¢ reservas: € neccssério saber distinguir “duas diversas ' Constant, 1830, vol. I, p. 23. ' Tocqueville 1951, vol. XIII, t. 2, p. 327 (carta a L. de Kergorlay, 4 de agosto de 1857). 40 Tocqueville, 1981, vol. I, t. 2, p. 113-14 (La democrazia in America, livro Il, de agora em diante DA2-, cap. I1, 5). '% Disraeli, 1982, p. 323-24 (livro VII, cap. 4). '®5 Constant, 1957, p. 155, 150-51 (= Constant, 1969, p. 41, 36). ' Tocqueville 1951, vol. XIII, t. 2, p. 333 (carta a L. de Kergorlay, 27 de fevereiro de 1858). 136 CONTRA-HISTORIA_ DO LIBERALISMO formas de liberdade”; nao se deve confundir “a concepgio democritica ¢, ouso dizer, a concepsao justa de liberdade”, com a “concepgio aristocratica de liberdade”, entendida nio como “direito comum”, mas como “privilé- gio”. E esta dltima visio que prevalece na Inglaterra, tal como “nas socieda- des aristocréticas” em geral, com a conseqiiéncia de que nao hé lugar para a “liberdade em geral”"”. A democracia na América registra ¢ sustenta a observagdo de um cidadao estadunidense que tem viajado longamente pela Europa: “Os ingleses tratam os servos com uma superioridade ¢ um abso- lutismo que nao deixam de nos impressionar” Nao é que esteja ausente © pathos da liberdade naqueles que se comportam como patrdes absolutos. Ao contraric “Pode até acontecer que 0 amor pela liberdade seja tanto mais forte em alguns quanto menos existam garantias de liberdade para todos. A excegio neste caso é tanto mais preciosa, quanto mais € rara. Esta concepsio aristocratica da liberdade produz, naqueles que foram educados desta maneira, um sentimento exaltado do seu valor individual ¢ um gosto apaixo- nado pela independéncia””™. Independentemente do juiz de valor, que € diverso ¢ contraposto, so- mos levados a pensar na observacio j4 conhecida de Burke: para os patrocs de escravos a liberdade aparece ainda “mais nobre ¢ mais liberal”. Devemos associar a Inglaterra 4 Virginia escravista? Na realidade, nao faltam os pontos de contato, como emerge da leitura de Tocqueville. Este observa que nos Estados Unidos os brancos se recusam a reconhecer nos negros “os tra- os gerais da humanidadc”'". Mas também na Inglaterra as desigualdades s4o t4o nitidas ¢ intransponiveis que existem “tantas diferentes humanidades quantas sao as classes”; faltam “idéias gerais”, a partir justamente da idéia de humanidade". Nesse momento, Tocqueville preocupa-se em distinguir a democracia americana da aristocracia que domina na Inglaterra. Mas, em diversas oca- sides, a sua andlise acaba por chamar a atengao sobre as semelhangas entre as duas sociedades. As que em um lado do Atlantico se configuram como relagdes de classe no outro se apresentam como relagdes de raga. Podemos Tocqueville, 1951, vol. 11, t-1, p. 62 '% Tocqueville, 1951, vol. 1, 2, p. 185 (DA2, cap. III, 5). ' Tocqueville, 1951, vol. 11, t. 1, p. 62. "® Tocqueville, 1951, vol. I, t. 1, p. 387 (DAI, cap. IT, 10). "1 Tocqueville, 1951, vol. I, t. 2, p. 21-22 (DA2, cap. I, 3). IV. Eram liberais a Inglaterra ¢ os Estados Unidos nos séculos XVIII ¢ XIX? 137 falar de sociedade liberal para a Inglaterra da mesma forma que Burke fala de sociedade liberal para a Virginia c para a Polénia do seu tempo. Um ponto essencial resta firme: muitas vezes excluidas da frui¢ao dos dircitos civis e da liberdade negativa, na propria Inglaterra, por reconhecimento indireto mas tanto mais significativo de Tocqueville, as classes populares continuam a ser separadas da classe ou casta superior por um abismo que leva a pensar no abismo vigente em um Estado racial. Nesse sentido pode-se dizer que, por algum tempo, também a sociedade derivada na Inglaterra da Gloriosa Revolugio se configura como uma espécie de “democracia para o povo dos senhores”, 4 condicio, claro, de entender esta categoria em um sentido nao puramente étnico. Também neste lado do Atlantico uma barreira intransponivel separa a comunidade dos livres ¢ dos senhores da massa dos servos, ndo por acaso comparados por Locke aos “in- digenas”. E, longe de contentar-se com a liberdade negativa, a aristocracia dominante cultiva ideais de participacdo ativa na vida publica, cultiva ideais “republicanos”. Nisso se apéiam alguns respeitados analistas hodicrnos, que a tal fespeito falam de visio “neo-romana” ou de “momento maquiavelia- no”"?. E novamente nos deparamos no perigo da involuntaria transfigura- ao: as duas categorias apenas examinadas colocam em evidéncia o pathos da participagdo livre ¢ igualitéria na vida publica, mas acabam por silenciar as macroscépicas clausulas de excluso quc tal pathos pressupdc. O ideal de uma rica vida politica, de tipo “neo-romano” ou “maquiaveliano” esta bem presente em um autor como Fletcher, que por um lado se declara “republi- cano por principio”, por outro teoriza a escravidao contra os vagabundos. A esses ambientes pode ser associado também Locke. Ele se pronuncia a favor da escravidao negra nas coldnias ¢ da servido ou semi-servidao para os trabalhadores assalariados na metrépole; a0 mesmo tempo, com o olhar vol- tado para a aristocracia, ele desenvolve um pathos do Commonwealth e da civitas, que ecoa os modelos republicanos da antigiiidade: esta, pelo menos, € a opiniao de Josiah Tucker, que localiza ¢ denuncia em Locke um “whig republicano” ¢ escravista’ Mas, talvez, 0 autor que na Inglaterra expressa melhor o ideal da “de- mocracia para 0 povo dos senhores” é Sidney. Nele, é fortissima a insisténcia sobre a igualdade dos homens livres: “a igualdade na qual os homens nas- ceram é tio perfeita que ninguém suportaré uma sua limitacao a menos que também outros nao fagam a mesma coisa”. Sem apelacao a condenagio da ‘8 Skinner, 2001, p. 3 ss.; Pocock, 1980. "13 Tucker, cit. in Pocock, 1988, p. 119, 187. 138 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO escravidao politica, implicita nao apenas na monarquia absoluta mas também em qualquer regime que tenha a pretensio de submeter 0 homem livre a normas deliberadas sem o seu consenso. Mas, este pathos da liberdade im- plica a reivindicasao do direito para 0 senhor de ser “juiz” do proprio servo sem interferéncias externas''*, Nao se deve perder de vista que “em muitos lugares, e em virtude até de uma lei divina, o senhor tem um poder de vida € de morte sobre o seu servo” (servant)'" . Resta claro que “os covardes e efe- minados asidticos ¢ africanos”, incapazes de compreender o valor da “liber- dade”, sio justamente considerados por Aristételes “escravos por natureza” € “pouco diferentes dos animais”''*. Nao € um acaso que, juntamente com Locke, Fletcher ¢ Burgh, Sidney é indicado por Jefferson como um autor de referencia para a comprecnsio dos “principios gerais de liberdade” aos quais se inspiram os Estados Unidos'” Quem aproxima Locke ¢ Sidney, mas desta vez em sentido critico, & também Tucker, que evidencia que Sidney € um admirador da “liberdade polonesa”" e de um pais onde a servido da gleba na sua forma mais dura, 4 qual so submetidos os camponeses, se entrelaca com a rica vida politica da aristocracia que domina a Dieta ¢ homenageia a “liberdade republicana” (infra, cap. V, § 2). Por outro lado, quem se expressa em termos muito lison- jeiros também sobre a Polénia, assim como sobre as “colénias meridionais” da América é Burke, que nao casualmente se torna depois anjo tutelar do Sul escravista. A admiracio por um regime de liberdade republicana fundada so- bre a escravidao ou sobre a servidio de uma parte consideravel da populasio, por uma “democracia para 0 povo dos senhores”, esta bem presente no am- bito do liberalismo inglés; os autores que manifestam tal orientagio podem por sua vez contar com amplas simpatias no outro lado do Atlantic. idney, 1990, sidney, 1990, ‘Tucker, cit. in Pocock, 1988, p. 178. Vv A revolugao na Franga ¢ em Santo Domingo, a crise dos modelos inglés e americano e a formagao do radicalismo nos dois lados do Atlantico 1. O primeiro inicio liberal da revolugio francesa Até agora nos detivemos quase exclusivamente na Inglaterra ¢ nos Es- tados Unidos. O fato é que na Franga o partido liberal revela muito cedo a sua fraqueza. Na verdade, anos antes da publicacdo do Espirito das leis, o proprio Voltaire faz uma celebracao do pais que naquele momento simboliza a causa do liberalismo: “O comércio, que na Inglaterra enriqueceu os cida- dios, contribuiu para a sua liberdade, ¢ esta liberdade por sua vez expandiu © comércio; daqui deriva a grandeza do Estado”’; sim, “o povo inglés é o iinico no planeta que tenha chegado a moderar 0 poder dos reis” , € 0 tinico autenticamente livre. Em geral, com as dificuldades que vivem em suas rela- des com a censura vigilante, os philesophes desejam sair desta espécie de jaula ¢ portanto olham com simpatia para 0 outro lado da Mancha. Até Helvétius, que Diderot acusa de indulgéncia em relag3o ao despotismo iluminado, é obrigado a admitir: “Este século, afirma-se, 0 século da filosofia [...]. Hoje, todos parecem ocupar-se da busca da verdade: mas ha um 6 pais onde é possivel manifest4-la impunemente, ¢ € a Inglaterra”. A ilha que se livrou da monarquia absoluta exerce uma grande fora de atragio. Das colunas da Enciclopédia, Diderot aponta a Inglaterra como exemplo de “monarquia temperada”, onde “o soberano é depositario s6 do poder executivo”’; pouco ' Voltaire, 1964, p. 246 (X carta). 2 Voltaire, 1964, p. 239 (VIII carta). * Helvétius, 1967-69, vol. VIII, p. 86 (segdo IT, cap. 19); pela critica a Helvétius, cf. Di- derot, 1994, p. 862. * Diderot, 1963, p. 41, s.t. Représentants. 140 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO menos de dez anos depois, 20 propor reservar os organismos representativos para os “grandes proprictérios”, cle mostra que ainda olha com grande in- teresse para as instituicdes politicas existentes no outro lado da Mancha. Elas tém o mérito, também para Condorcet, de ter realizado, embora de forma nem sempre adequada, os principios da limitag’o do poder mondrquico, da liberdade de imprensa, do habeas corpus, da independéncia da magistratura’. De fato, dois anos antes da tomada da Bastitha ¢ da irrupgio das mas- sas populares na cena politica, o modelo inglés parece triunfar também na Franga: apoiados por um amplo consenso popular, os Parlamentos dos no- bres desafiam o absolutismo mondrquico: o “anti-absolutismo parlamentar” ou 0 “liberalismo aristocratico” torna-se o porta-voz de uma “reivindicagao liberal” muito difundida’. Apandgio de uma nobreza que, em virtude tam- bém da venalidade dos cargos, se abre a burguesia, os Parlamentos franceses por algum momento parecem destinados a inaugurar a instauracio de uma monarquia constitucional ¢ a desenvolver uma funcio andloga 4 da Camara dos Pares ¢ da Camara dos Comuns na Inglaterra. Nao € um acaso que eles se inspiram em Montesquieu, j4 presidente do Parlamento de Bordeaux ¢ grande admirador do pais derivado da Gloriosa Revolugio. Para essa ocasido clamorosamente perdida olha com pesar Burke, quan- do pronuncia o scu duro requisitério contra uma revolugio rapida e infe- lizmente degenerada. Se esta tivesse sido contida na fase em que a luta era dirigida pelos Parlamentos, “o despotismo iria se retirar envergonhado da face da terra” ¢ ~ acrescenta 0 whig inglés dirigindo-se aos franceses - “vocés teriam tornado a causa da liberdade venerével aos olhos de todo espirito digno em qualquer nacio (...}, teriam tido uma Constituigao livre (free constitution) [...], uma ordem liberal de representantes po- pulares (a liberal order of commons) em condigio de emular € revigorar a nobreza com suas fileiras”*. Infelizmente, esse momento feliz ¢ promissor teve breve duracio; pre- feriu-se buscar uma “democracia pura”, que no entanto alimenta em si a tendéncia para uma “tirania de partido” e para “uma ruinosa ¢ igndébil oli- garquia”’. $ Diderot, 1963, p. 369. * Cf. Bonno, 1931, p. 156. ? Furet, Richet, 1980, p. 47, 49, 55. * Burke, 1826, vol. V, p. 84 (= Burke, 1963, p. 196). * Burke, 1826, vol. V, p. 230-32 (= Burke, 1963, p. 301-302). V.A revolugio na Franga c em Santo Domingo... 141 As Reflexdes sobre a revolugéo na Franca aparecem em 1° de novembro de 1790, mas os argumentos de fundo do livro estdo j4 presentes no discur- so pronunciado por Burke aos Comuns em 9 de fevereiro daquele mesmo ano. O jacobinismo ainda nao chegou: antes de transformar o whig inglés no profeta de uma catastrofe que naquele momento ninguém podia prever, convém interrogar-se sobre os eventos que esto por tras dele no momento de pronunciar 0 seu duro ato de acusagio contra a revolugio francesa. E re- veladora a observacao pela qual, no lugar de preocupar-se cm criar do nada uma “Constituigdo ruim”, os franceses deveriam ter se comprometido em melhorar ulteriormente “a boa”, que “j4 possuiam no dia em que os Estados se reuniram em ordens separadas”. A virada ruinosa acontece quando, no de- correr da reuniao dos Estados gerais convocada pelo rei - a “boa” constitui- do que finalmente via a luz ou, melhor, voltava 4 luz — impée-se o abandono da tradigio na qual as ordens ocupavam cAmaras scparadas ¢ decide-se a pas- sagem ao voto por cabe¢a, com a conseqiiente transformacio, em 9 de julho, dos Estados gerais em Assembléia nacional constituinte, no Ambito da qual o ex-Terceiro estado goza jé da maioria. Irrompe, entao, a “ma Constituigio”, que dissolve “o inteiro em uma massa incocrente ¢ mal articulada”. Daqui deriva o resto: 0 ataque as “raizes de toda a propriedade” e 0 “confisco de todas as posses da Igreja” - a referéncia é a noite de 4 de agosto de 1789 ¢ a aboligio de todos os privilégios feudais (direito de caga, dizimo eclesidstico etc.) — ¢ a promulgagio em 26 de agosto da “louca declaragio” dos direitos do homem, esta “espécie de instituicao ¢ compéndio da anarquia”"”. Mas, tudo comega cm 9 de julho. A revolucao francesa resulta fatalmen- te degenerada ainda antes da tomada da Bastilha c da intervengao das massas populares, portanto, de alguma forma antes do seu inicio. E, de fato, Burke preocupa-se em sublinhar que a “denominada” Gloriosa Revolugio na rea- lidade “nao fez uma revolugio, mas a preveniu”: Guilherme III d’Orange “foi chamado pela nata da aristocracia inglesa a defender a sua antiga consti- tuisdo, nao a nivelar todas as distingdes”"', como infelizmente aconteccu na Franga. Esta tem jé deixado para trés a sua curtissima fase liberal, que vai da agitacio dos Parlamentos & convocacao dos Estados gerais. A sucessiva tradicio liberal € propensa a prolongar por pouco tempo o periodo feliz da revolugao francesa, ¢ a ver 0 momento de virada na inter- ven¢io tumultuada das massas populares antes rurais ¢ depois urbanas. E o que pensa Tocqueville. Mas, ¢ interessante observar que ele também, pelo *® Burke, 1826, vol. V, p. 13-14 " Burke, 1826, vol. V, p. 18-19. 142 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO menos depois de 1848 faz uma exaltacdo do perfodo em que o movimen- to € conduzido pelos Parlamentos, todos orientados a derrubar “o antigo poder absoluto” ¢ “o velho sistema arbitririo” ¢ a conquistar a “liberdade politica”, no ambito de uma luta promovida ¢ dirigida n3o pelas “classes baixas” mas pelas “mais altas” yy . Certamente, ao contrario de Burke, que tende a pensar a agitac3o parlamentar em base a0 modelo da “denomina- da” Gloriosa Revolugio, Tocqueville faz questo de evidenciar que j4 nessa fase, nao obstante as aparéncias, estamos na presenga de uma auténtica revolugao: “Nao se deve pensar que o Parlamento apresentasse estes principios como sen- do uma novidade; ao contrario, os extraia muito engenhosamente dos abismos da antigiiidade da monarquia [...]. E um espetéculo estranho ver idéias apenas nascidas enxovalhadas com panos antigos”. Era “uma revolugdo grandiosa, mas que em breve viria a se perder na imensidao da que iria se sobrepor ¢ assim desaparecer dos olhos da histéria”"*. E s6 em uma fase sucessiva que, no ambito do movimento revolucionério, “ndo apenas no se louva mais o Parlamento, mas se passa a desqualificd-lo, retorcendo-lhe contra o seu liberalismo”"*. Em sintese, a pardbola ruinosa da revolugio francesa pode ser sintetizada assim: “No inicio cita-se ¢ comenta-se sé Montesquieu; no final, fala-se s6 de Rousseau”. O momento da virada é descrito em termos semelhan- tes aos j4 vistos em Burke: a ruina comega com a corrida em diregao a “democracia pura” ¢ quando se pretende modificar a “prépria estrutura da sociedade”" Mais perto de Burke encontra-se Guizot, que indica no irromper da “luta do Terceiro estado contra a nobreza ¢ o clero” 0 momento em que a revolugao francesa deixa de ter por objetivo a “liberdade”, para visar exclusi- vamente o “poder” abrindo o caminho para as sucessivas, intermindveis lutas, “as dos pobres contra os ricos, da turba contra a burguesia, da canalha contra as pessoas respeitaveis” (honnétes gens)”. " Tocqueville, 1951, vol. I I, t. 2, p. 47-48. Tocqueville, 1981, vol IT, ¢.2,p. 55-56. Tocqueville, 1951, vol. II, t. 2, p. 76. Tocqueville, 1951, vol. If, 2, p. 100. Tocqueville, 1951, vol. II, t. 2, p. 107. ” Guizot, 1869, p. 2-3. V.A revolugio na Franga ¢ em Santo Domingo... 143, Parlamentos, Dietas, aristocracia liberal ¢ servidio da gleba Para Burke, em iiltima andlise, a revolugio na Franga deveria ter se li- mitado a liberalizar o Antigo Regime. Nao se trata de uma alusio isolada ¢ polémica. Ao evidenciar o apego particular & liberdade, que os proprietirios de escravos mostram, o discurso de conciliago com as colénias rebeldes faz uma consideragao de cardter geral: “Os habitantes das colénias do Sul sio mais fortemente agarrados & liberdade que os do Norte. Assim foram todos os antigos Estados, assim foram os nossos antepassados géticos, assim foram os poloneses da nossa era, € assim serio todos 0 patrdes de escravos que nio sejam escravos eles mesmos. Nestes povos a supe- rioridade do império combina com o espirito da liberdade, o fortifica ou o torna invencivel”™. Aqui, nao se faz distingao entre escravidao propriamente dita ¢ servidio da gleba em auge, nas suas formas mais duras, na Europa oriental: em todo o caso, a subjugacao servil dos negros ou dos camponeses, longe de desmenti- lo, torna mais forte e mais convincente o amor pela liberdade cultivado pelos proprictérios ¢ homens livres. Quem admira a Polénia € também Sidney. Ao lado de outras “nagdes nérdicas”, cla é animada pelo amor & liberdade: prova disso entre outras coi- sas € 0 fato de que 0 rei € o resultado de uma “cleigao popular”, quer dizer de uma designagio por parte da Dieta nobiliéria”. Naturalmente, os que afirmam orgulhosamente a sua condi¢’o de homens livres e iguais também diante do monarca sio magnatas que exercem um poder absoluto sobre os seus escravos. Mas Sidney argumenta da forma que ja conhecemos: tal como com a escravidio, 0 liberalismo € compativel também com a servidio da gleba; tanto uma instituicio como a outra tornam mais profundo e cioso 0 valor da liberdade. Em Burke hé perfeita coeréncia entre os reconhecimentos tributados & Polénia ¢ os tributados aos Parlamentos franceses. Por outro lado, a agitag30 destes diltimos nao é um fendmeno isolado: “Na Suécia, os anos entre 1719 1772 sio conhecidos como a Era da liberdade, porque nesse periodo a Dieta ou Riksdag governava sem interferéncias do rei. Estes liberais suecos, depois da revolugdo de 1719, fizeram traduzir na prOpria lingua as obras de John turke, 1826, vol. III, p. 54 (= Burke, 1963, p. 91) Sidney, 1990, p. 167, 101.

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