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A Natureza do Capitalismo Global As contradicées do capital no século XXI Giovanni Alves Este artigo pretende expor a natureza critica do capita- lismo global, isto é, a natureza do sistema mundial do capital no século XXI imerso em candentes contradi¢des sociometa- bolicas por conta da crise estrutural do capital. Buscaremos delinear em termos ensaisticos, elementos categoriais impor- tantes para compreendermos a nova temporalidade histérico no interior da qual estamos inseridos. E importante que o cientista social hoje tenha a capacidade critica de perceber a dita sociedade contemporanea como sendo produto histérico das contradig6es sociais do capital nao apenas como modo de produgao de valor imerso numa crise estrutural de valorizacao de capital, mas também como sistema de controle estranhado do metabolismo social. Este ¢ o verdadeiro ponto de partida metodoldégico capaz de apreendermos numa perspectiva dialética os objetos parti- culares de investigagao social. Dizemos que os delineamentos categoriais que exporemos neste ensaio critico é tio-somente © ponto de partida da investigacao social pois a tarefa fun- damental é apreendermos a particularidade concreta dos 17 objetos de investiga¢ao do real por meio da pesquisa cientifica e método dialético capaz de propiciar o conhecimento verda- deiro do ser social em proceso. Como diria 0 fildsofo Hegel, a verdade é concreta, mas © que é 0 concreto senao a unidade na diversidade e a sin- tese de multiplas determinagées, como observou Karl Marx? (Hegel, 1998; Marx, 2012). Portanto, o que exporemos neste pequeno ensaio sao elementos categoriais capazes de suscitar aapreensao da unidade do processo histérico real dos ultimos trinta anos de desenvolvimento da civiliza¢ao do capital e dis- criminar as miltiplas determinagées concretas do capitalismo global como unidade ou todo histérico categorial que explica a dinamica social do nosso tempo histérico (salientaremos em itdlico as novas categorias-chaves necessarias para apreender- mos a particularidade concreta do nosso tempo histérico). O significado do capitalismo global A partir da crise capitalista de meados da década de 1970, a primeira recessao generalizada da economia mundial apés 1945, o sistema mundial do capital acelerou seu processo de reestruturagao organica. Nos “trinta anos perversos” (1980- 2010), desenvolveu-se, de modo desigual e combinado, nas mais diversas instancias da vida social, uma intensa reestru- turaco capitalista com impactos dirsuptivos no mundo social do trabalho. Constitui-se uma nova etapa do capitalismo his- térico: 0 capitalismo global, 0 espaco-tempo de produgao do capital adequado a dinamica critica da acumulagao de valor no plano mundial (Alves, 2002). © que denominamos capitalismo global é 0 capitalismo histérico da fase da financeirizagao da riqueza capitalista. E 0 capitalismo das bolhas especulativas e da instabilidade 18 sistémica que tem caracterizado o sistema mundial produ- tor de mercadorias nas ultimas décadas (CHESNAIS, 1996, 1998). O capitalismo global é 0 capitalismo do neoliberalismo e da vigéncia hegeménica do mercado, cujas crises sistémicas recorrentes criaram condicées histéricas para o surgimento na década de 2000, nos elos mais fracos do imperialismo na Ameérica Latina, experiéncias pos-neoliberais contra-hegem6- nicas (Venezuela, Bolivia e Equador) (Harvey, 2008). O capitalismo global é 0 capitalismo da mundializagao do capital e o capitalismo do complexo da reestrutura¢do produtiva, com a nova divisao internacional do trabalho e 0 poder global das corporagées transnacionais. O capitalismo global é o novo capitalismo flexivel, onde se dissemina 0 espirito do toyotismo como nova ideologia organica da producao de mercadorias Difunde-se 0 novo e precario mundo do trabalho (SENNETT, 1995, 1998; Alves, 2011). Enfim, o capitalismo global é 0 capi- talismo do sociometabolismo da barbdrie e das novas formas de irracionalismo e estranhamento social (Alves, 2010). Os trinta anos de capitalismo global (1980-2010) foram marcados por crises financeiras de grande amplitude que abalaram o velho sistema produtor de mercadorias. Embora a crise financeira de 2008 tenha sido uma das maiores crises financeiras do capitalismo global, ela, com certeza, nao sera a ultima. Pelo contrario, a natureza do capitalismo global é caracterizada pela instabilidade crénica, estrutural e sistémica. Na verdade, as crises financeiras recorrentes do “capitalismo das bolhas” expressam um sistema mundial clivado de con- tradicées organicas derivadas dos impasses da formacao do valor, como iremos salientar adiante (Alves; CORSI, 2010). As crises financeiras recorrentes fazem com que 0 sistema mundial se reestruture e se expanda As custas da perda do las- tro civilizatério construido durante o capitalismo do “Welfare 19 State”. Imerso em candentes contradigées sociais, diante de uma dinamica de acumulagio de riqueza abstrata tao volatil, quanto incerta e insustentavel, o capitalismo global expli- cita cada vez mais que é incapaz de realizar as promessas de bem-estar social e emprego decente para bilhdes de homens e mulheres assalariados. Pelo contrdrio, diante da crise, o capital, em sua forma financeira e com sua personificacio tecnoburocratica global (o FMI), como o deus Moloch, exige hoje sacrificios perpétuos ¢ irresgataveis das geracées futuras. Os desdobramentos da crise expée com mais candéncia, no plano da objetividade social, a natureza intima da civiliza- cao do capital imersa em sua crise estrutural. Na verdade, as contingéncias sombrias do movimento real do sistema mun- dial produtor de valor, constatadas nas ultimas décadas de capitalismo global, expressam, de fato, a persisténcia de crise de fundo: a crise estrutural do capital (MESZAROS, 2005). Crise estrutural do Capital Ao invés de prenunciar a catdstrofe final do capitalismo mundial, a crise estrutural do capital prenuncia tao-somente uma nova dinamica sécio-reprodutiva do sistema produtor de mercadorias baseado na produgio critica de valor, isto é, sob as condigées histricas de uma crise estrutural de valorizacio. Foi a crise estrutural do capital que impulsionou o pro- cesso de mundializacéo produtiva e financeira do capital. Com a crise estrutural, o sistema produtor de mercadorias se expandiu de forma exacerbada e cresceu de modo irregu- lar, recorrente e instével (hoje, por exemplo, conduzido pelos polos mais ativos e dinamicos de acumulagao de valor: os ditos “paises emergentes”, como a China, India e Brasil). Enquanto 0 centro dinamico capitalista - Unido Européia, EUA e Japao 20 - “apodrecem” com sua tara financeirizada (como atesta a crise financeira de 2008 que atingiu de modo voraz os EUA, Japao e Unido Européia), a periferia industrializada emergente ali- menta a tiltima esperanca (ou ilusao) da acumulagao de riqueza abstrata sob as condicées de uma valorizacao problematica do capital em escala mundial (eis 0 segredo do milagre chinés). A crise estrutural do capital nao significa a estagnacao e colapso da economia capitalista mundial, mas sim, a inca- pacidade do sistema produtor de mercadorias realizar suas promessas civilizatérias. Tornou-se lugar comum identifi- car crise com estagna¢do, mas, sob a dtica do capital, “crise” significa tao-somente riscos e oportunidades histéricas para reestruturagGes sistémicas visando a expansao alucinada da forma-valor. De fato, o capitalismo expande-se e se renova, no plano fenoménico, através de suas crises. Em sua etapa de crise estrutural, ele tende a aparecer como um sistema mundial imerso em contradig6es sociais candentes. Marx observou que o capital é a propria “contradigao viva” (Marx, 2013). Apesar de estar em crise estrutural, ele, ao mesmo tempo, se expande como sistema mundial produtor de mercadorias. Embora esteja em fase de decadéncia histérica, a ordem burguesa é capaz de iludir com promessas de liberdade e igualdade. Entretanto, na época do capitalismo global, caracterizada pelas miultiplas crises financeiras — pois esta é a forma de crise capitalista predominante sob a mundializagao do capital - 0 sistema mundial do capital amplia e intensifica a produgao de fetichismos sociais, agudizando a alienagao e estranhamento de homens e mulheres que trabalham. Apesar da rentincia que importantes autores e pesquisadores sociais fizeram da utilizagao de conceitos como “classe social”, “proletariado” ou mesmo “capitalismo”, pois para muitos deles nada existe 21 para além deste modo de organizar a produgao social (0 capi- talismo), 0 que percebemos, pelo contrario, é a ampliagao, num patamar universal, do que denominamos de condigao de proletariedade e de vigéncia plena do modo de producao de mercadorias (Alves, 2009). Devido a intensificacao dos fetichismos sociais, ativados pela aguda manipulacao do capitalismo tardio, a condigao de proletariedade nao se traduz efetivamente em consciéncia de classe necessdria. O que significa que nao se constitui, ou se constitui de modo limitado, o sujeito histérico de classe capaz de dar resposta efetiva 4 miséria da ordem burguesa. Para além de uma 6tica economicista, a crise do capital em sua fase de decadéncia histérica, é, de fato, hoje, a crise de civilizagao que se expressa com vigor na degradagao do meta- bolismo social homem-natureza: seja a natureza humana, expressa no cataclismo social, com seus milhées de trabalha- dores precarios e a massa de desempregados sem perspectivas de futuro digno e vitimas do adoecimento fisico e mental; seja a natureza natural com o cataclismo climatico marcado pelo aquecimento global e deriva climatica. Istvan Mészaros e a crise estrutural do capital No livro “Para Além do Capital”, Istvan Mészaros obser- vou que a novidade que experimentamos hoje é que a crise do capital que atinge nosso tempo histérico é fundamentalmente uma crise estrutural. A longa citacao torna-se necessaria tendo em vista a importancia de salientar na ética de Meszaros, as caracteristicas candentes da crise estrutural do capital. Disse ele: “A novidade histérica da crise de hoje torna-se manifesta em quatro aspectos principais: (1) seu carter é universal, em lugar de restrito a uma esfera particular (por exemplo, 22 financeira ou comercial, ou afetando este ou aquele ramo particular de produsao, aplicando-se a este e nao Aquele tipo de trabalho com sua gama especifica de habilidades e graus de produtividade etc. (2) seu alcance é verdadeiramente glo- bal (no sentido mais literal e ameacador do termo), em lugar de limitado a um conjunto particular de paises (corno foram todas as principais crises no passado); (3) sua escala de tempo éextensa, continua, se preferir, permanente-, em lugar de limi- tada e ciclica, como foram rodas as crises anteriores do capital; (4) em contraste com as erupgées e os colapsos mais espeta- culares e dramaticos do passado, seu modo de se desdobrar poderia ser chamado de rastejante, desde que acrescentemos a ressalva de que nem sequer as convulsées mais veementes ou violentas poderiam ser excluidas no que se refere ao futuro: a saber, quando a complexa maquinaria agora ativamente empenhada na “administragao da crise” e no “deslocamento” mais ou menos temporario das crescentes contradi¢ées perder sua energia. Seria extremamente tolo negar que tal maquina- ria existe e é poderosa, nem se deveria excluir ou minimizar a capacidade do capital de somar novos instrumentos ao seu ja vasto arsenal de autodefesa continua. Nao obstante, o fato de que a maquinaria existente esteja sendo posta em jogo com freqiiéncia crescente e com eficdcia decrescente é uma medida apropriada da severidade da crise estrutural que se apro- funda”. (Mészaros, 2002) Eis, portanto, segundo Meszaros, as caracteristicas modais da crise estrutural do capital que se desdobra nas tiltimos décadas (c.1974-2010): carater universal, alcance global, tem- poralidade extensa e modo rastejante. O capitalismo global com seus tragos salientados acima (financeirizacao, acumula- ¢4o flexivel, neoliberalismo, sociometabolismo da barbdrie), constitui-se como forma histérica determinada da moderni- dade burguesa no bojo desta crise do capital. 23 Precariza¢ao existencial, condi¢éo de proletariedade e precariado A crise estrutural do capital que emergiu em meados da década de 1970, inaugurou uma nova temporalidade histé- rica do desenvolvimento civilizatério, caracterizada por um conjunto de fenémenos sociais qualitativamente novos que compéem a fenomenologia do capitalismo global nos seus “trinta anos perversos” (1980-2010) Primeiro, nos tltimos trinta anos tivemos uma época hist6- rica de reestrutura¢6es capitalistas nas mais diversas instancias da vida social. O sistema mundial do capital como sistema social global reestruturou-se efetivamente numa dimensao inédita. Por exemplo, a nova reestruturagdo produtiva do capital impulsionou um complexo de inovagées organizacio- nais, tecnologicas e sociometabdlicas nas grandes empresas e na sociedade em geral sob a direcao moral-intelectual do espirito do toyotismo. A manipulagao reflexiva ou a “captura” da subjetividade tornou-se efetivamente 0 modo de operar do controle sociometabolico do capital. A luta de classes e as derrotas das forgas politicas do trabalho na década de 1970 conduziram a reestruturacao politica do capital, constituindo o Estado neoliberal e as politicas de liberalizacao comercial e desregulamentagao financeira; e 0 pés-modernismo e o neo- positivismo permearam a reestrutura¢io cultural. Nos “trinta anos perversos”, o capitalismo financeirizado, toyotista, neoli- beral e pés-moderno levow a cabo uma das maiores revolugées culturais da histéria humana. Portanto, capitalismo global tornou-se a nova etapa de desenvolvimento do capitalismo histérico, um largo processo histérico que percorreu pouco mais de trinta anos e nos pro- jetou noutra dimensao espago-temporal hoje mais clara do 24 que nunca. Ele surgiu com a grande crise dos anos 1970 e nos implicou noutra dinamica social capitalista cuja natureza cri- tica se distingue radicalmente de outras épocas histéricas. A década de 1970 significou, no plano histérico-mundial, a inauguracao de um “corte histérico” no processo civiliza- tério do capital. Por isso, surgiram novos fendmenos sociais radicalmente novos que merecem ser investigados numa pers- pectiva rigorosamente dialética. Enfim, alterou-se o timing da luta de classes e da dinamica socio-reprodutiva do sistema do capitalismo mundial. Por exemplo, a precarizacao do trabalho que caracterizou o capitalismo histrico assumiu uma dimensao estrutural e fez emergir, como um dos seus elementos compositivos, a pre- carizagaéo do homem-que-trabalha como nucleo organico da precarizagao existencial. A precarizacao existencial tornou-se uma nova dimensao da precariza¢ao do trabalho que nao se reduz a precarizacao salarial (Alves, 2013). A precarizagao do homem-que-trabalha nao se trata da mera afirmacao do trabalho estranhado, mas sim a sua radi- calidade qualitativamente nova capaz de desefetivar o ser genérico do homem em largas camadas sociais do proleta- riado hoje, com impactos na satide dos homens e das mulheres que trabalham e na expansio do irracionalismo social intrin- seco 4 ordem burguesa tardia. A amplitude e intensidade do fendmeno do estranhamento social hoje alterou o significado politico da precarizacio do homem-que-trabalha. Por exem- plo, o tema da satide do trabalhador numa perspectiva radical tornou-se muito importante para se deixar a cargo apenas de médicos e profissionais de satide propriamente dita. A condigao de proletariedade que caracteriza a forma de ser da “classe-que-vive-do-trabalho” ampliou-se, tornando-se condicao universal que explicita, principalmente nos paises 25 capitalistas mais desenvolvidos, uma nova camada social do proletariado que contém, em si e para si, as contradicdes candentes da nova ordem social do capitalismo global: o pre- cariado. O precariado nao é uma nova classe social, mas sim uma nova camada da classe social do proletariado que expoem, em si, a insustentabilidade civilizatéria do capital. Tenho utilizado 0 conceito de precariado num sentido bastante preciso que se distingue, por exemplo, do signifi- cado dado por Guy Standing e Ruy Braga (STANDING, 2011; BRAGA, 2012). Para mim, precariado é a camada média do proletariado urbano constituida por jovens-adultos altamente escolarizados com insergao precaria nas relagées de trabalho e vida social. Enfim, pode-se dizer que, com a crise do capitalismo glo- bal que se explicita no século XXI existe um “espectro” que ronda a civilizagao do capital: o espectro do precariado. Os sociologos da ordem burguesa nao conseguiram identificar na massa de jovens proletarios altamente escolarizados, mas frustrados em suas pretensées salariais, um pertencimento de classe capaz de “negar” a ordem burguesa. Pode-se dizer que 0 precariado repée o sentido do proletariado como classe social negativa, na acep¢ao do jovem Karl Marx (Marx, 2010). E claro que o Marx de 1843 tinha em mente os proletarios industriais do factory system cujo movimento social radical insurgia-se contra a ordem industrial-burguesa emergente. Para 0 jovem Marx o proletariado era a “classe negativa” por exceléncia: os que nao tém propriedade, obrigados entao a trabalhar, os que ja sao uma classe em dissolucao e em transi¢éo constante (0 negativo em ato), aqueles que nao tém esperanga no progresso burgués e por isso mesmo os que radicalmente podem recusar o seu papel de suporte do sistema. Entretanto, em 1843, o jovem Marx nao tinha descoberto ainda a categoria de mais-valia relativa (Nicolau, 1986). A luta 26 de classes, a organizacio sindical e politica da classe trabalha- dora e a capacidade de acumulagao do capitalismo industrial em sua fase de ascensao histérica, que permitiram ao sistema produtor de mercadorias elevar saldrios reais da classe tra- balhadora organizada sem prejudicar o nivel de acumulagio do capital, contribuiram para a redistribuicéo das riquezas sociais produzidas entre parcelas da classe trabalhadora orga- nizada, permitindo a construgao da sociedade burguesa de direitos sociais. Naquelas condigées historicas, 0 proletariado organizado, constituido em sua maioria por trabalhadores assalariados “estaveis”, abdicou, nos pélos mais desenvolvidos da ordem burguesa, da perspectiva de “nega¢ao” do capita- lismo. De fato, a ilusdo social-democrata tinha um lastro na materialidade de classe. Entretanto, na etapa de crise estru- tural e descendencia histérica do capital, o sistema mundial produtor de mercadorias nao conseguiu manter as promessas civilizatorios de sua época de ascensao historica. A crise da social-democracia ocultou a crise estrutural do capital. Por isso, com o protagonismo social da camada social do precariado, ressurgiu com vigor, o conceito de proletariado como “classe negativa”. Entretanto, nao se trata mais do prole- tariado industrial de meados do século XIX, alienado do ideal de producio, mas sim do precariado como camada do vasto mundo social do proletariado, alienado do ideal de consumo. O precariado nao é a velha classe trabalhadora. Entretanto, isto néo quer dizer que seja uma nova classe social. Como poderiam ser uma nova classe social se no ocorreu nenhuma mudanca dos parametros estruturais do modo de produgao?. E claro que eles nao se identificam subjetivamente, no plano da contingencia, com outras camadas sociais da classe do proleta- roiado (0s “estaveis” ¢ os antigos precarios de baixa qualificacao). Mas nao podemos subestimar a dinamica da luta de classes e esquecer que as dificuldades de formacao da consciéncia de 27 classe na camada social do precariado decorre da fragmentacao social provocada pela dinamica do capitalismo manipulatério, principalmente no nticleo organico do capitalismo global. Nos “trinta anos perversos” de capitalismo global, o preca- riado tornou-se alvo do individualismo consumista de massa que caracterizou as sociedades burguesas mais desenvolvidas. Ao mesmo tempo, 0 precariado representa a nova camada social que expressa em si e para si, as contradi¢ées qualitativamente novas da ordem burguesa do capitalismo global. Sob determi- nadas condi¢ées histéricas, a identidade com a classe social do proletariado, em si e para si, é adquirida por eles, na medida em que se aproximam, no processo de luta de classe, das outras camadas de trabalhadores assalariados organizados ou nao, em sua luta anti-capitalista contra as misérias do mundo burgues (por exemplo, a manifestagao dos operarios mineiros espanhois - a Marcha de Madri em 11 de julho de 2012- que teve a solida- riedade e apoio do M15M, os indignados espanhdis, expressou a alianga politica possivel e necessaria entre camadas sociais do proletariado, permitindo vislumbrar, na atividade pratico-sen- sivel da luta de classe, o sentido de classe social do proletariado como classe consciente de sua negatividade). Na verdade, na medida em que os sociologos da ordem burguesa nao conseguem identificar a natureza radical das contradigées da ordem buguesa na nova temporalidade historica do capital, nao conseguem decifrar o enigma do precariado. Espectros da crise estrutural de valoriza¢ao do capital O movimento contraditério do capital desloca territo- rialmente as linhas de forca das contradigées ou as eleva temporalmente para um patamar superior, permitindo deste 28 modo realizar o telos obsessivo do valor: a sua auto-valoriza- 40. Por um lado, a crise do capitalismo global que se desenrola nos “trinta anos perversos”, o modo efetivamente histérico de desenvolvimento da crise estrutural do capital, é crise de valo- rizagao no sentido de crise de producao/realizagao do valor. E crise de produgao de valor sob pressao da lei tendencial da queda da taxa média de lucros por conta do crescimento da composi¢ao organica do capital. Nos ultimos trinta anos de capitalismo global, o modo de operagao das tendéncias e con- tra-tendéncias a lei geral da acumulagao capitalista no plano histérico-mundial se deu por meio da reorganizagao e recon- figuragdo produtiva e sécio-territorial do sistema global do capital. Por outro lado, a crise do capitalismo global é crise de rea- lizagao do valor sob a dinamica do subconsumo e a procura alucinada pela absorc4o de excedentes. A dificuldade de ven- der num cenario de superprodugao/sobreacumulagao expde a necessidade candente da destruicao criativa e produgao des- trutiva capazes de preservar o processo de valorizacao mesmo que em forma ficticia (MESZAROS, 2002). Um autor como Istvan Meszaros em sua obra classica “Para Além do Capital”, exp6s com maestria as performances criticas do valor diante das suas dificuldades de auto-valorizacao ao tratar, por exem- plo, da produgao destrutiva e da taxa de utilizagao decrescente do valor de uso, recurso cruciais de administragao da crise e auto-reproducao destrutiva do capital. Nos wltimos trinta anos de capitalismo global, tornaram-se mais do que eviden- tes as constatagdes meszarianas feitas nos primérdios dos anos 1970, primérdios do desenvolvimento do capitalismo global. E importante salientar que a vigéncia da financeirizagao da riqueza capitalista no capitalismo global tornou-se um modo de preservar o movimento de auto-valorizacao do valor numa 29 situagao de crise estrutural. A financeirizacio, que constitui hoje o em e o para si da dinamica capitalista global, tornou- se uma “saida” crucial para o sistema afirmar e reiterar 0 sacrosanto principio da valorizagao do valor numa dimensao ficticia. Portanto, 0 paradoxo do capitalismo global é que a “saida” ou via de resolucao (ficticia) da financeiriacao do capital, que imprime hoje sua marca na dinamica do sistema mundial, é tao incerta quanto precaria; dirjamos mais, literalmente ficticia, quanto a propria reprodugao hermafrodita da riqueza abstrata (BELUZZO, 1985). Coma financeirizacio, o capital encantou-se com seu proprio fetichismo. E 0 capital narcisico. O valor, como o “monstro animado que comega a ‘trabalhar‘como se tivesse amor no corpo”, como diria Marx no livro de “O Capital”, apai- xona-se por si mesmo, deleitando-se com 0 mundo do dinheiro criado 4 sua imagem e semelhanga (Marx, 2013). Por isso, nas condigées histéricas do capitalismo global, a saida da “crise” tem implicado numa “fuga para a frente”, elevando num patamar superior as contradigées insanas da ordem de produgao/realizagao do valor. “Fuga para a frente” significa a producao recorrente de pletoras de liquidez e novas bolhas especulativas capazes de criar a ilusio de que ocorre efetivamente o processo de valorizacao. Ao invés de inter- vengées muito mais radicais, os administradores das crises, imersos na temporalidade de curto prazo, adotam politicas de menor resisténcia e reiteram a légica da financeirizagio. Com a crise estrutural do capital, a produgao de valor descolou-se do proceso de valorizacao efetivo. Num cenario de superpro- dugao/sobreacumulacao/subconsumo, a dinamica capitalista nao consegue operar efetivamente a producao de valor (D-M- D’), mantendo, deste modo, o processo de valorizacao sob a forma ficticia (Harvey, 2013) 30 £ claro que, mais do que nunca, ocorrem investimen- tos produtivos e expande-se a produgio de mercadorias. Entretanto, mesmo com a reestrutura¢ao produtiva do capital e a precarizacao estrutural do trabalho, o retorno da massa de capital-dinheiro investido esta aquém das necessidades de valorizacao do capital acumulado. Como observou Marx nos “Grundrisse” - e voltamos a salientar esta passagem de seus rascunhos - “se o capital aumenta de 100 para 1000, entdo 1000 é agora o ponto de partida, do qual o aumento tem que comegar; sua decuplicacéo para 1000 nao conta para nada; 0 lucro e a renda eles préprios tornam-se capital por sua vez © que apareceu como mais-valia agora aparece como uma simples pressuposi¢ao etc., como incluida na sua simples pres- suposicao.” (Marx, 2013) Deste modo, 0 novo patamar de valorizacao efetiva - a sua pressuposi¢éo - por conta do acimulo inédito da massa de capital-dinheiro elevou-se num patamar insano. A crise de valorizacgéo do capital ocorre porque, como observam Karl Marx e Friedrich Engels no “Manifesto Comunista”, “as condigées da sociedade burguesa sao estreitas demais para abranger toda a riqueza criow” (Marx; Engels, 1998). Contraditoriamente, a massa de riqueza criada pela sociedade burguesa diz respeito nao apenas a riqueza concreta das forcas produtivas do trabalho social, mas também a riqueza abstrata da massa de capital-dinheiro que o capital nao consegue efe- tivamente valorizar. Assim, de modo visionario, Karl Marx e Friedrich Engels se interrogaram no “Manifesto Comunista” de 1848: “E como faz a burguesia para vencer esta crise?”. E eles respondem: “Por um lado, reforgando a destruigéo da massa de forcas produtivas; por outro lado, pela conquista de novos mercados e por uma exploracao mais completa dos antigos”. A percepgao genial de Marx e Engels é a sintese ontolégica 31 das vias de resolugao que o capital constréi para a sua crise estrutural — hoje, numa dimensao ampliada, isto é, num plano efetivamente histérico-mundial. Por exemplo, a destruicao da massa de for¢as produtivas é visivel com 0 crescimento do desemprego em massa e a pre- carizacio estrutural do trabalho. Assim, o capital, na medida em que faz crescer o desemprego de longa duracao, principal- mente nas sociedades capitalistas mais desenvolvidas, destréi a massa de riqueza humana acumulada tendo em vista as expectativas e sonhos e anseios de realizado pessoal impulsio- nadas pela alta escolaridade da forca de trabalho qualificada (o fenémeno social do precariado é um exemplo da destruigao de forcas produtivas, trabalho vivo e forga de trabalho altamente escolarizada sem futuro digno na sociedade burguesa). A conquista de novos mercados e a exploragéo mais com- pleta dos antigos é perceptivel com a dita “globalizagao”, a insergao da China no mercado mundial, a intensificagiéo da obsolescéncia planejada das mercadorias, etc. Ao promover a valorizagao ficticia, o capital “investe” na reprodugio estéril da massa de capital-dinheiro ou riqueza abstrata acumulada de modo insano por conta do desenvolvimento inédito da produtividade do trabalho no século XX. Portanto, o valor é “afetado de nega¢ao” no interior do préprio sistema da valo- rizagao do valor. Eis a contradicAo crucial do sistema mundial produtor de mercadorias (Fausto, 1988). Portanto, podemos dizer que a era do capitalismo global é 0 espaco-tempo de construgo politica (e ideolégica) das “saidas” ou vias de reso- lugées precarias das contradigées acumuladas pelo sistema produtor de mercadorias. Mas 0 modo de produsao capitalista & nao apenas modo de producao de mercadorias, mas tam- bém modo de acumulagio de contradigées sociais intrinseca 4 dinamica particular da auto-valorizacao do valor em escala histérico-mundial. 32 Temporalidades histéricas do capitalismo global Podemos discriminar nos trinta anos perversos (1980- 2010) da nova temporalidade histérica do capital, o desenvolvimento de subtemporalidades ou subconjuntu- ras historicas que aparecem como verdadeiras narrativas de deslocamentos no tempo-espaco de contradi¢ées do sistema mundial do capital afetado pela crise estrutural de valorizagao. O sistema mundial do capital sob a fenomenologia da sua crise estrutural é um sistema complexo cujo desenvolvimento desi- gual e combinado é composto por miltiplas territorialidades e subtemporalidades histéricas que merecem ser discriminadas. Como observou David Harvey no livro “O enigma do capi- tal”, o desenvolvimento geografico desigual e contraditério do capitalismo tornou-se fundamental para sua reproducio. Disse ele: “Nos tiltimos trinta anos viu-se uma reconfigurac4o dramatica da geografia da produgao e da localizagao do poder politico-econémico” (Harvey, 2013). Na verdade, a nova dina- mica da crise estrutural do capital implicou a constituicao de novas geografias de acumulagao do capital que caracterizam a destruigao criativa do velho, que é uma boa forma de lidar, segundo Harvey, com o problema permanente da absorcao excedente de capital (o maior exemplo é a inserco da China no mercado mundial, um dos fendmenos histéricos mais importantes da histéria da civilizagéo humana). A “destrui- 40 criativa do velho” salientada por Harvey é tao-somente o modo de operacao, no plano territorial, da légica da moderni- zacao do capital onde “tudo que ¢ sdlido se desmancha no ar” (como diria Marx e Engels no Manifesto Comunista de 1848). O capitalismo global é 0 movimento da heterogenei- dade desigual e combinada e nao a explicitagio da plena homogeneidade. A ideologia da globalizacao impés a visao impressionista de “um mundo s6”. Entretanto, ao invés de 33 constituir 0 globo como “um mundo sé”, a mundializagao do capital constituiu miultiplas territorialidades criticas. A dina- mica da economia global implicou efetivamente a constituigao da “totalidade concreta” do sistema mundial de produgao do capital, onde o concreto significa unidade na diversidade de territorialidades que operam deslocamentos de contradigées estruturais da ordem global do capital. Portanto, o movimento do capital é concretamente heterogéneo no plano territorial. E por isso que hoje, por exemplo, enquanto no nucleo organico do sistema mundial do capital (EUA, Unido Européia e Japao) temos a presenga da crise numa proporgao inédita, com o PIB nestas regides apresentando nas ultimas décadas, quedas ou crescimento mediocre, o centro dinamico da acumulagao de capital e o crescimento da economia capitalista mundial des- loca-se para a China e para os paises ditos “emergentes”, onde a percep¢So da crise tornou-se relativamente ténue (a pré- pria crise européia hoje, por exemplo, manifesta-se de modo diferenciado nos paises do Sul da Europa - Grécia, Italia, Espanha e Portugal- e nos paises do Norte, como Alemanha e Dinamarca). As multiplas territorialidades da crise contri- buem para operar contradigées geoeconomicas e geopoliticas do sistema que ocultam a percepcao clara da insustentabilidade da ordem planetaria do capital. A concretizacao da heteroge- neidade no plano geografico é um modo de manipulagao da percepcao ideoldgica da propria dinamica capitalista. Ao mesmo tempo, a temporalidade histérica da crise, que articula, como salientamos acima, multiplas territoria- lidades desiguais e combinadas, é composta também por determinadas subtemporalidades ou conjunturas da imedia- ticidade histérica no interior da quais opera a dinamica da crise estrutural do capital. Por isso, podemos distinguir na era do capitalismo global (1980-2013), uma nova temporalidade 34 histérica dividida em perfodos que iremos discriminar em linhas gerais do seguinte modo: 1. De 1973 a 1981, temos 0 perfodo da “crise e contra-revo- lucdo neoliberal”. Impulsionou-se naquela época, 0 processo de reestruturacao capitalista nas mais diversas instancias da vida social. A década de 1970 é uma década de luta de clas- ses no cenério de crise geral. f, claro que desde fins dos anos 1960, a luta social, sindical e politica visava dar resposta a crise geral do sistema (por exemplo, 0 maio de 1968 foi o sin- toma de apodrecimento do capitalismo fordista. The dream is over!). Na verdade, o periodo de 1946-1973 caracterizado pela singularidade histérica do fordismo, significou 0 actmulo de candentes contradigées da ordem burguesa mundial, princi- palmente no plano da economia e da politica. O sistema de contradigées oriundos do capitalismo fordista-keynesiano iriam ter a resolugao politica na década de 1970 com a derrota das forcas sociais do trabalho (sindicatos e partidos trabalhis- tas) e a vitéria das forgas politicas do neoconservadorismo neoliberal. O complexo de reestruturagées capitalistas salien- tado acima foi expressio da ofensiva do capital e portanto traco indelével da luta de classes nas mais diversas instancias da vida social. Deste modo, foi a derrota das forgas sociais, politicas e ideolégicas do trabalho que conduziu 4 nova tem- poralidade histérica do capital: 0 capitalismo global de cariz neoliberal sob dominancia financeira, 2. De 1981 a 1991, temos o periodo da “financeirizagao e barbérie social”. 0 perfodo histérico de expansao da nova ordem burguesa. O processo de reestruturac4o capitalista aprofundou-se com a derrota das forgas sociais do trabalho na década de 1970 no bojo da crise e ofensiva neoliberal. O capital recuperou nos anos de 1980 as margens de lucratividade. As corporagées transnacionais acumularam uma imensa massa 35 de capital-dinheiro que propiciou a liquidez que impulsionou a logica da financeirizacao da riqueza capitalista. Na década de 1980 se construiu os pilares do sistema politico-institucional da mundializacao financeira. O capitalismo global torna-se efetivamente capitalismo predominantemente financeirizado: a dominancia politica das fracées de classe da burguesa finan- ceira ocorreu na medida em que se desenvolveu a crise do modelo fordista-keynesiano de desenvolvimento capitalista. O excesso de liquidez e 0 boom financeiro acusaram efeti- vamente dificuldades no processo de valorizacao apesar da retomada da lucratividade das corporagées transnacionais. Na verdade, uma parcela da massa de capital-dinheiro acumulado encontrou retorno adequado no investimento especulativo que aproveitou o boom de inovagées financeiras que surgi- ram na década de 1980. A desregulamentagao das finangas nos nticleos mais dinamicos da economia mundial ofereceu para os investidores a oportunidade fabulosa de realizacao de lucros ficticios (CARCANHOLO; SABADINI, 2009). Foi na década de 1980, a “década das finangas”, que se aprofundou o desequilibrio de forcas entre as classes sociais. O desequilibrio entre as forgas de classe nos anos de 1980 se contrastou, por exemplo, com o periodo de 1946-1973, quando se instaurou um equilibrio entre capitalistas e traba- Ihadores assalariados que deu origem ao dito “compromisso fordista” (Estado keynesiano, Sindicatos Fordistas e Empresas Multinacionais). Nos anos do pés-guerra, foi importante a presenga da forca politica do trabalho organizado, o acordo de Bretton Woods e a “Guerra Fria” entre URSS e EUA, constituido a constelacao histérica singular do fordismo-ke- ynesianismo, desmontada pouco a pouco a partir da crise de 1973. Na década de 1980, instaurou-se o desequilibrio entre acclasse do capital e a classe do trabalho por conta da reestru- turacao produtiva sob o espirito do toyotismo, promovendo, 36 deste modo, uma ofensiva do capital na produgao que enfra- queceu as forgas sociais e politicas do trabalho. A ofensiva politica do capital caracterizou-se pela disseminacao do neo- liberalismo sob a vigéncia do poder do capital financeiro. O poder ideolégico neoliberal disseminou-se inclusive entre as forgas social-democratas e socialistas que se tornaram meros gestores politicos da ordem burguesa. Com a presenga candente da industria cultural na sociedade em rede, que afir- mou plenamente a dinamica do capitalismo manipulatério, incrementou-se com vigor inaudito a ofensiva ideolégica do capital, com a cultura do pés-modernismo, a légica do neo- positivismo e o sociometabolismo do irracionalismo social. Enfim, na década de 1980 0 capital reestruturado conseguiu quebrar as forcas do trabalho — material ¢ ideologicamente Portanto, os anos 1980, que comegaram com os governos de Margaret Thatcher e Ronald Reagan, no Reino Unido e EUA, respectivamente, inauguraram uma das décadas mais reacio- narias do século XX, abrindo a era da barbarie social (por conta de particularidades histéricas, o Brasil ainda esta na década de 1980 em dissintonia com a dinamica capitalista global). 3. Nos anos de 1990, temos 0 prosseguimento da légica da financeirizacao e a constituicao de novo patamar de barbarie social (a barbarie da espoliac4o que se dissemina com 0 “capi- talismo das bolhas financeiras”). O desequilibrio de forcas entre 0 capital e o trabalho aprofundou-se no plano geopoli- tico com a queda do Muro de Berlim e a débacle da URSS, a direitizacao irremediavel da social-democracia e 0 surgimento do novo imperialismo norte-americano. Enquanto a década de 1980 foi a década de expansio da globalizacao, a década de 1990 foi a década de integra- go hegeménica do capital concentrado. Na tiltima década do século XX ocorreram politicas de integragéo do mer- cado mundial conduzidas pelos interesses do grande capital 37 financeiro (por exemplo, temos o Nafta e a Unido Européia, a mais ousada experiéncia histérica de integracdo regional). Ao mesmo tempo, com a entrada da China no mercado mundial na década de 1990, acirrou-se a concorréncia intercapitalista num cendrio de capital concentrado. A presenca da China transfigurou a nova dinamica da acumulagio de valor, embora nao tenha alterado essencialmente a objetividade contradi- téria do capitalismo global, com a crise estrutural do capital aparecendo cada vez mais como crise de desmedida de poder eacumulo de massa de capital-dinheiro que nao consegue efe- tivamente se valorizar. A passagem do século XX para o século XXI foi marcado por um conjunto de crises financeiras globais (1987, 1996, 2001 2008). Elas explicitam a ldgica do “capitalismo das bolhas”, forma originaria do sistema institucional-politico da mundia- lizagéo financeira. As crises financeiras traduzem no plano da objetividade contraditéria do sistema, a fenomenologia da crise estrutural do capital. Na verdade, como salientamos acima, a financeirizagao da riqueza capitalista, trago estrutural incontrolavel da nova dinamica histérica do capital, expde as novas manifestacées da precarizacao estrutural do trabalho e da dinamica social da proletariedade. Vejamos 0 seguinte: o primeiro momento histérico da crise estrutural do capital, ocorrida em meados da década de 1970, impulsionou a “globalizac4o” como mundializacio do capital e a afirmacao da precarizacio estrutural do trabalho, via de escape que contribuiram para a reposicao da lucratividade do capital ocorrida no decorrer dos anos 1980. Entretanto, as vias de escape da 1°. fase da crise estrutural do capital ndo impe- diram que a crise da dinamica capitalista global voltasse a se manifestar depois, a partir da década de 1990, com as novas contradigées da mundializagao financeira desregulada. Pelo contrdrio, as vias de escape contribuiram, contraditoriamente 38 para o desenvolvimento ampliado da crise sistémica por conta da desmedida do capital e incontrolabilidade do capital finan- ceiro. Por isso, a 2*. fase da crise do capitalismo global ocorre a partir dos anos de 1990 com maior amplitude e intensidade das crises financeiras — a crise financeira de 2008 é parte do desen- yolvimento ampliado e intenso da crise do capitalismo global. Portanto, a crise estrutural do capital coloca como vias (ficticias) de escape, aquilo que David Harvey denominou de “acumulagao flexivel” e “acumulagao por espoliagio”, vias de resolucdo (ficticia) para a crise das bolhas financeiras (HARVEY, 1992). Na verdade, flexibilidade e espoliacao so os dois momentos do desenvolvimento da crise capitalista, onde a forma de ser da acumulagao diz respeito a vias de reso- lucdo - meramente contingente - da propria crise. A nova forma predominantemente financeirizada de acumulagao do capital implica novos patamares da barbarie social ampliada nos “trinta anos perversos” do capitalismo global. Eis, deste modo, a fenomenologia da crise estrutural do capital, caracterizada pelo movimento contraditério do valor em sua Ansia de auto-valorizagao. A crise de 2008 e sua vias de resolucao (ficticia) afirmam o movimento recorrente da espo- liacdo financeira, onde o fundo publico fica a mercé da légica da valorizagao ficticia. Nao se destrdi os pilares politico-ins- titucionais da mundializagao financeira, mas sim, refor¢a-se sua dominancia social e politica via politicas de austeridade (a crise européia, como sempre, é paradigmatica). A necessidade do pensamento radical A radicalidade das contradigées impée a radicalidade do pensamento critico capaz de ir além das sombras que se movem na superficie do sistema. O capitalismo manipulatorio é 0 capi- talismo ficticio onde o processo de valorizagdo encontra-se 39 afetado de negacao embora prossiga como processo de pro- ducao de produgao de mercadorias. Nos primérdios do século XXI, a destrui¢ao criativa do capital articula-se cada vez mais com a producao destrutiva das condigées da reprodugao social. A critica radical do capitalismo torna-se hoje, mais do que nunca, necessidade do pensamento A década de 2001-2011 foi a década do terceiro ciclo da financeirizagao e barbarie social, elementos compositivos do metabolismo social do capitalismo global. A condicao de pro- letariedade amplia-se como fenémeno universal eo precariado aparece como “persona viva” das contradigées viscerais da ordem burguesa hipertardia. Ao mesmo que se afirma, finan- ceirizacao e barbarie social sio contestadas, numa perspectiva contingente, cada vez mais, pelos sujeitos-agentes histéricos Como diria Lukacs, “o homem é um ser que da respostas”. Como contradi¢’o viva, o capital impulsiona o desenvolvi- mento da consciéncia social, quica, consciéncia contingente de classe. A historia aparece cada vez mais como historia da luta de classes que, como realidade efetiva, se impée aqueles que clamaram pelo fim das classes e a vigéncia da democra- cia e conciliacdo entre capitalismo e bem-estar. Na verdade, o desenrolar da cena do mundo burgués sob a barbarie social explicita cada vez a insustentabilidade civilizatéria da ordem burguesa. O que nao significa que hajam, de imediato, sujeitos histéricos de classe capazes de operar a “negacao da negacao”, tendo em vista que a crise de formacao de valor é, ao mesmo tempo, crise de deformacao do sujeito histérico de classe por conta da precarizacio do homem-que-trabalha como precari- zacao existencial. Hic Rhodus, hic salta! 40 Referéncias bibliograficas ALVES, Giovanni. Dimensées da globalizacao — 0 capital e suas contradigdes. Bauru, Editora Praxis, 2001. O novo (e precdrio) mundo do trabalho — Reestruturac4o produtiva e crise do sindicalismo no Brasil. Sao Paulo, Boitempo editorial, 2000. . Lukacs e o século XXI - Trabalho, estranha- mento e 0 capitalismo manipulatério. Bauru, Editora Praxis, 2010. . A condigao de proletariedade - A precarie- dade do trabalho no capitalismo global. Bauru, Editora praxis, 2009 . Dimensées da precarizacao do trabalho - Ensaios de sociologia do trabalho. Bauru, Editora Praxis, 2013. 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