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CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

ÍNDICE

LINHAS A ABRIR 9
1. O Bacalhau do Natal 11
3. Kianda dos nossos Sonhos 17
3. Choveu em Luanda 23
4. Cidade das Acácias Rubras 29
5. O Canto do Matrindinde 35
6. O Processo 41
7. Maria da Fonte 47
8. O Tri Africano 53
9. Os Bandos 58
10. O Homem-Cobra 64
11. Agarra que é Polícia! 70
12. As Kínguilas 76
13. O Kimbanda do Sida 83
14. Meninos da Rua 90
15- Língua e Sapateado 97

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PEPETELA

16. Os Malucos 104


17. As Reinaugurações 111
18. Crónica dos Bichos 118
19. Empresários de Rua 125
20. O Conquistador de Benguela 13?
21. As Teias da História 139
22. A Propósito de Caça 146
23. Pacaças e Ovnis 152
34. ASarinização do Mundo 159
25. O Vento Fresco 166
26. O Perito Americano 17?
27. Os Letreiros 179
28. Feiticeira ou Louca, Tanto Faz 185
29. Os Apelos 193
30. A Arte da Diplomacia 199
31. Herbívoros e Carnívoros 206

BIBLIOGRAFIA DE PEPETELA 2l3

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CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

Linhas a Abrir

AS CRÓNICAS que compõem este livro foram


publicadas no jornal Público de 1992 a 1995
e tinham por título genérico <<Da Terra dos
Mitos>>. Poderia ser até um bom título para
manter. Mas as crónicas tinham sido escri-
tas na altura em que, depois do processo de
pacificação e eleições do ano de 1992, altura
em que tudo de bom parecia possível de rea-
lizar em Angola, se seguiu a desilusão do
fracasso colectivo que significou a continua-
ção da guerra civil, até em muito mais larga
escala de sofrimento e destruição.
Como se destinavam a um público estran-
geiro, uma parte importante dele sem
referências sobre o país, pouco se falava
de guerra ou assuntos diretamente políti-
cos mas antes do dia-a-dia e do despontar
de pequenas notas de esperança, por vezes

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PEPETELA

mesmo alguma ficção. No entanto, a guerra


estava presente e o seu batuque ecoava por
toda a parte, abafando a esperança. Talvez
ainda se encontrem. ecos nestas crónicas.
Daí o título do actual livro.
Quase vinte anos passados depois de escri-
tas, apresentam ainda eventualmente situa-
ções semelhantes às do presente. Alguns
aspectos estão ultrapassados, para melhor ou
para pior, dependendo dos pontos de vista.
Preferimos não peneirar, mantendo mesmo
as que nitidamente se encontram demasiado
datadas . Essas valerão pelo testemunho de
um tempo que não queremos que volte.
Com esta publicação em livro se abre tam-
bém a oportunidade de as apresentar a um
público angolano, o qual, espero, perceberá
não ter sido o alvo inicial, embora nelas
esteja exclusivamente representado.

Pepetela

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CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

O Bacalhau do Natal

ENTRE AQUILO que Portugal deixou neste


país africano, podemos destacar o costume de
se comer bacalhau na noite de Natal. E não se
pense que é hábito de reduzida elite urbana,
nostálgica de tempos coloniais, que alguns
estudiosos gostam de impropriamente cha-
mar <<crioula>>. Para já, a população urbana
é metade da de Angola e vai servindo de matriz
cada vez mais avassaladora da cultura
angolana. E o costume está absolutamente
espalhado, pelo menos por todas as cidades.
Por isso, dois anos depois da Independên-
cia, quando tudo faltava nas lojas, o Governo
decidiu fazer uma importação especial para o
Natal (então oficialmente designado por

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PEPETELA

<<Dia da Família>>) onde constava o azeite de


oliveira, o vinho e, claro, o infalível bacalhau.
Por fortes pressões populares. No ano ante-
rior, usara-se peixe seco, à falta de melhor,
o que mostra a força do hábito, porque quem
não tem cão caça com gato, como costuma
dizer o meu amigo Ruy Duarte.
O problema que houve com essa impor-
tação não foi com o bacalhau nem com o
azeite, que esses eram de qualidade razoá-
vel. Mas foi decidido importar vinho do
Brasil e o que veio foi uma bebida fermen-
tada feita de frutas outras que a uva. Os gar-
rafões apresentavam a marca Mosteiro. Era
um carrascão químico da pior espécie, muito
fora do nosso gosto do <<palhete com capa-
cete>> (referência à camada de gesso que
protegia a rolha dos garrafões do tempo do
colono). Depois• de algumas experiências
aziagas, o humor caluanda, inspirado nas
guerras de então, logo mudou o nome da
bebida para <<Morteiro>>. Completamente
desmoralizado, tal produto passou a evitar
cá a banda. Encontrei-o um dia numa tasca
do Rio e contei a estória ao dono, por sinal

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CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

português. Ele riu com a mudança de nome


operada pelos meus compatriotas e em
compensação ofereceu-me um Dão
verdadeiro. E sem cobrar, talvez reconhecido
por lhe dar um argumento para as eternas lutas
de quem é melhor, entre brasileiros e
portugueses. Donde se poderá concluir que por
vezes as estórias pagam.
Vinho agora é o que aqui não falta, espe-
cialmente o português. E o bacalhau lá vai
aparecendo, mas os preços dispararam no
mercado, o que prova a sua muita procura,
especialmente nesta quadra. Ainda hoje
ouvi, num inquérito feito por uma estação
de rádio num mercado, que é o produto mais
requisitado. Tinha de ser. Já a preparação
não tem dogma, embora o cozido seja o mais
utilizado. E se a quantidade for pequena,
reforça-se com um prato da terra: um pirão,
um muzonguê, um calulú, tudo pratos de peixe,
ou uma moamba de galinha com funje.
Qualquer que seja o complemento, é rema-
tado no final com feijão de óleo de palma.
E muitos bolos e doces à mistura, sem esque-
ceras nozes, as passas e os pinhões. Dirão

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PEPETELA

que é comida pesada para jantar ou ceia. Pois


é. Mas o toque angolano vem depois: com ou
sem missa do galo (bicho este com conota-
ções actualmente quase pejorativas, a exigir
também a mudança de nome), a digestão vai
se fazendo pela noite fora, em bruta farra.
Porque a diferença entre a noite de Natal e a
de Fim de Ano só está no bacalhau, o fim é o
mesmo. E com muito mais razão nesta época
de crises e convulsões. Ninguém quer per-
der um bodó que pode ser o último. E as tris-
tezas só se esquecem bebendo e dançando,
mesmo que nos intervalos se façam as mais
lúcidas análises políticas e se aproveitem
alguns contactos para negócios futuros.
Como será o Natal deste ano? Certamente
como os outros, a avaliar pela procura de
produtos e pela tristeza de dona Zeza, minha
vizinha com a filha em Portugal, com bolsa
de estudo. A vizinha lamentava-se ontem:
nós aqui com farra e tanto panquê (comida),
mesmo apesar da guerra, e ela lá, coitadinha,
a comer <<pizza>> na noite de Natal. Porque
parece que em Lisboa já ninguém está para
cozinhar bacalhau, trocando a camisola para a

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CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

de fast-food e a ceia por um filme na televi-


são, costumes importados da Europa. Desejo
que ao menos não seja filme de guerra ou de
gangsters americanos, pouco próprios para a
quadra. Quanto ao bacalhau, se os portugue-
ses estão prontos a renegar a tradição, isso
não tem mambo, nós cá a conservamos para
que um dia se diga em qualquer enciclopé-
dia: ceia de Natal com bacalhau foi costume
alienígena, trazido de Angola, que perdurou
algum tempo, mas que não resistiu ao fim da
colonização, mantendo-se hoje apenas em
África .
No entanto, apesar de todas as farras e
brincadeiras, um qualquer véu aveludará os
olhos dos angolanos este ano, mesmo que
ninguém a isso se refira. E que muitos de
nós acreditámos que este Natal seria o primeiro
de toda a família unida. Afinal, alguns homens
não quiseram, sempre os mesmos. E
passaremos mais um Natal com as famí-
lias e o País partido em dois, mirando-se
desconfiados e com dedos nos gatilhos.
Comendo uns o bacalhau e os outros raízes.
Muitos ficarão engasgados com as espinhas

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PEPETELA

do bacalhau, pensando nisso. Estou certo, por-


que imprevisíveis somos, muitas vezes irres-
ponsáveis, mas não animais . Muito menos de
capoeira.

27-12-92

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CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

Kianda dos nossos sonhos

ESTA GUERRA que vai desfazendo o país,


perante a indiferença da comunidade
internacional, tem consequências insus-
peitáveis à primeira vista. Estava eu em
Benguela quando li no jornal que fortes
calemas (do kimbundo, <<kalemba>>) lam-
biam as praias da ilha de Luanda, amea-
çando mesmo a existência da sua parte sul,
a Chicala. Ao aterrar na capital, vi do avião
que fortes vagas de facto se abatiam sobre a
linha da costa. Fenómeno natural, sobre-
tudo nesta época do ano, em que há tem-
pestades no Atlântico e as suas ondas de
choque chegam ao continente. No entanto,
a dúvida ficou...

17
PEPETELA

Indo à ilha para ver os estragos (míni-


mos, na realidade), perguntei a um pescador
meu conhecido se por acaso não era efeito
do humor sombrio da Kianda. Não duvide,
respondeu-me ele. Não vê a linha escura lá
no horizonte, com pontos brilhantes no mar?
É Kianda. Também que esperavam, se em
Novembro a festa de Kianda esteve tão fraca?
Eu só assenti com a cabeça, meio incrédulo,
com as minhas ilusões científicas.
Para os pescadores da ilha de Luanda, pri-
meiros habitantes conhecidos desta zona,
Kianda é um ser mítico que habita as águas e
que uma má tradução para português asso-
ciou à sereia. E acabou também por ganhar
uma conotação feminina, quando deveria
ser neutra, como os grandes do Além. O pior
nem foi isso, mas sim o facto de essa associa-
ção fazer pensar num ser meio mulher meio
peixe. Kianda de facto manifesta-se de muitas
maneiras: pode serumalinha mais azul no mar,
um bando de gaivotas, um remoinho inespe-
rado, fitas de cores, ou pontos brilhantes.
Ser benfazejo se respeitado, porque regula o
bom tempo e a qualidade de peixe, pode ser

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CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

irascível se desprezado. Daí que seja necessá-


rio fazer cerimónias, o chamado <<Kakulu>>,
em que se pede desculpa por qualquer falta
de respeito cometida e se fazem oferendas,
constando as melhores comidas, a cola e o
gengibre, e bebidas que Kianda muito apre-
cia, em especial vinho do Porto. Hoje, sinal
da invasão cultural anglo-saxónica, Kianda
aceita bem <<whisky>>. O ritual é acampa-
nhado por danças, evidentemente. Então não
se trata de ritual kaluanda?
Com a colonização, a religião católica
foi penetrando o meio dos pescadores e
associou-se às celebrações de Kianda, com
missa e procissão dedicadas à Nossa Senhora
do Cabo, sua face católica. Nos primeiros
anos da independência deixou de haver a
festa. E logo vieram as cale mas fortíssi-
mas que lamberam a ilha e fizeram escas-
sear o peixe. Os pescadores insistiram com
o Governo e este passou a não só autorizar
como a facilitar os produtos para se realizar
o Kakulu, mas com uma componente turís-
tica. Para lá dos rituais tradicionais, há bar-
racas montadas com comes e bebes, onde se

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PEPETELA

dança, claro. É a festa da Ilha. Ultimamente


o carácter recreativo e comercial da festa
tem-se sobreposto ao tradicional e místico.
Por isso a população do fabuloso Mussulo,
essa língua de areia coroada de coqueiros
que corre no Sul de Luanda, dissociou-se
dos irmãos da cidade e mantém o seu Kakulu
tradicional com todo o secretismo.
Mesmo com rituais adulterados pela
modernidade comercial, o certo é que os
axiluanda (como se chamam as populações
da orla marítima) acreditam que se recon-
ciliaram com Kianda. Não sei se por isso, se
por causa dos trabalhos de reforço da ilha
feitos durante quatro anos, se por causas
naturais, a verdade é que nunca mais tinha
visto aquelas tremendas calemas dos anos
70, que quase iam partindo a ilha ao meio,
o que sucedeu em 1944, época também de
pouca crença. E apesar das frotas de todas
as nacionalidades sugarem o peixe mesmo à
frente dos nossos olhos, nunca mais faltaram
as espécies mais apetecidas, sem dúvida as
mais saborosas do mundo, deste e do outro.
Em Novembro do ano passado, tentou

20
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

fazer-se a festa na data habitual. Mas tinha


acabado de haver os combates de Luanda
e a guerra espalhava-se de novo pelo país.
Nem havia ânimo nem talvez os meios para
se cumprir a tradição. Lembro-me que
ainda por lá passei para ver se os kaluandas
seguram o seu espírito tão afamado de dan-
çarmos em todas as circunstâncias e quei-
mavam três dias nisso. Efectivamente, a dor
estava demasiado presente e ninguém feste-
jou. Daí a minha suspeita, confirmada pelo
meu amigo pescador: os homens ofenderam
Kianda? Tudo indica que sim.
Neste momento o maior perigo passou.
As águas apenas se aproximaram do asfalto
na parte Norte, mais protegida, e a Chicala
ainda resistiu. Mas a minha vizinha comen-
tou por cima do muro, para o meu quintal: eu
sou católica praticante, mas já vi muita coisa
nesta vida. Se não fizermos uma festa bem
bonita em Novembro, no próximo ano a ilha
pode ser engolida. Kianda não perdoa. Foi
por causa da guerra que não tivemos festa,
disse eu. Pois é, replicou ela, mais uma razão
para acabar com esta guerra. Já.

21
PEPETELA

E fiquei a pensar, se temos um ou uma


Kianda que nos defende no mar e do mar,
porque não temos um ser benigno que nos
defende das guerras? Deve ser mesmo a
única coisa que esta terra de todos os mitos
ainda não criou.

07-03-93

22
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

Choveu em Luanda

EM LUANDA, chuva é mercadoria rara, como


tantas outras. Mas em Março e Abril, quando
chove é para valer. Por isso, aquilo que em
outros lugares é visto como uma dádiva pre-
ciosa, aqui significa praga. A cidade nunca
esteve preparada para essas cargas de água
que se abatem sobre ela e agora ainda menos,
pois os bueiros e as valas de escoamento há
muito estão entupidos, as ruas esburaca-
das viram regatos cheios de armadilhas, os
largos e terrenos vagos transformam-se em
lagoas, e muitas casas se inundam, isto sem
falar de consequências mais graves, como
acontece nas barrocas em que choupanas são
arrastadas pelos espíritos em cólera.

23
PEPETELA

Pois bem, a primeira grande chuvada


do ano aconteceu no último domingo de
Março, pela manhã. Logo num domingo,
em que toda a gente se preparava para uma
praiada de arromba. Realmente, os espíritos
andam ofendidos, como então escolher logo
um domingo? Estragada a praia, dos pou-
cos consolos que nos restam, cartão ama-
relo para São Pedro. Só foram três horas de
chuva. E até que nem foi das mais fortes. Mas
bastou para inundar a cidade.
Não se falou de casos fatais, o que já faz
uma diferença, nos tristes tempos que cor-
rem. Mas paralisou completamente a vida.
Se fosse em dia de semana e se começasse
um pouco mais cedo, ninguém iria trabalhar.
Pois, esqueci-me de dizer que quando aqui
chove pela madrugada, mesmo que seja uma
chuvinha tímida, já é pretexto para tolerância
de ponto. Por isso em Londres ou Bruxelas eu
sempre ficava arrepiado a ver ingleses ou bel-
gas debaixo da chuva correndo para o trabalho.
Mania de branco loiro! Havia de ser aqui, eh!
Se a chuva de domingo pôs mal-humo-
rados os kaluandas, impedidos de ir à praia,

24
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

Impedidos de quase sair de casa pois as ruas


se tornaram autênticas picadas minadas e os
maximbombos desapareceram de circula-
ção, para algumas crianças, no entanto, ela
serviu para negócio ou brincadeira. Como
sempre. As lagoas provisórias nos bairros
logo se transformaram em piscinas, pouco
se importando com o facto de a água ser bar-
renta ou trazer cólera. E as mães estavam
ocupadas em tirar a água das casas com bal-
des e canecas, os pais a ajustar as chapas dos
telhados arrastadas pelo vento, por isso as
crianças festejavam a liberdade de mergu-
lhar nos charcos.
Outras, mais integradas na novel econo-
mia de mercado que se vai impondo, resol-
veram tirar benefícios materiais do <<dilú-
vio>>. Um grupo, num largo, improvisou
uma passadeira com tijolos. Cada adulto que
quisesse atravessar por cima dos tijolos, e
assim manter os sapatos secos e limpos,
tinha de pagar uma portagem. Mas as nossas
portagens são provavelmente diferentes das
da Europa. Paga antes de passar. Aconteceu
com um kota que disse <<não pago nada>> e

25
PEPETELA

logo se atreveu a atravessar. Passou cinco


tijolos, mas não encontrou o sexto. Os miú-
dos ultrapassaram-no, porque nus e molha-
dos já eles estavam, tiraram - lhe os tijolos da
frente . Quando se voltou para regressar, já
tinham retirado os de trás. Ficou com um pé
em cada tijolo, qual ilha no meio do charco.
E ali mesmo pagou a portagem, para que vol-
tassem a colocar os restantes tijolos. Refilou,
ameaçou, adiantou?
Outros miúdos, lá no Cazenga, mais inte-
grados ainda na economia de mercado,
resolveram pôr a render mercadorias que
estavam sem utilidade em casa. E postaram-
-se nos largos inundados, com enormes
botas de borracha, encontradas sabe-se lá
onde, para as alugar a quem quisesse atra-
vessar. Quinhentos kwanzas para lá, outros
quinhentos para o regresso. Os economistas
que me perdoem, mas chamo a isso renta-
bilizar um capital morto, pois nunca vi aqui
ninguém utilizar botas de borracha.
Também apareceram os mais desprovidos de
imaginação negocial, pois vendiam direc-
tamente a sua força de trabalho. É o caso dos

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CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

que, a dois e dois, improvisavam cadeiri-


nhas de braços, para carregar as donas que
se não queriam molhar. Estes não irão longe
nos novos tempos de capitalismo selvagem,
lamento dizer.
Finalmente, também surgiram os futu-
ros marginalizados, pois se limitaram a usar
a imaginação criadora para se divertirem.
Foi lá para as bandas do Marçal, por sinal
não muito longe do meu bairro. As crianças
improvisaram passadeiras com pedras, mas
algumas não o eram, embora parecessem.
Apenas pedaços de esponja habilmente dis-
postos entre as pedras. E depois escondiam-
-se entre as casas, a apostar se o kota caía
para a direita ou para a esquerda. Estes,
como artistas que são, só podem contar com
desgraça e cadeia.
Cenas de uma cidade que não foi feita para
a chuva. Mas acabaram aqui os casos? Claro
que não. Além de servir para todas as con-
versas, de ter faltado a luz em alguns bairros
porque as subestações eléctricas se inunda-
ram, provocando curto-circuitos, de uma
parte dos telefones ter deixado de funcionar e

27
PEPETELA

a televisão ter falhas constantes, a coisa con-


tinuou no dia seguinte. Porque os kaluan-
das, irritados com tanta injustiça caída do
céu logo num domingo, não foram trabalhar
na segunda de manhã, ou chegaram atrasa-
dos. Os autocarros, chefe, os autocarros não
passaram na minha rua, virou rio. A pé não
posso andar e o Governo nunca mais cons-
trói um metro. Então?

11-04-93

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CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

Cidade das Acácias Rubras

EM 17 DE MAIO, Benguela completará 376


anos de existência. Foi fundada por Cerveira
Pereira, anterior governador de Luanda
e daí expulso sob gravíssimas acusações,
que iam desde molestar todas as mulheres
casadas a roubos, desvios e arbitrarieda-
des contra os moradores. O objectivo de
Cerveira Pereira era fazer de Benguela a
capital de uma nova colónia, directamente
dependente de Portugal e que explorasse
as míticas minas de cobre da região. Como
o mito das minas de prata de Cambambe
tinha levado à criação de Luanda. Nos dois
casos, as lendas acabaram por não se con-
cretizar.

29
PEPETELA

Desde a fundação, os destinos de Benguela


e Luanda ligaram-se em interesses e emo-
ções contraditórias. As gentes de Luanda
não se conformaram com a nova colónia,
sem laços consigo e ainda por cima dirigida
pelo homem que mais detestavam. O apoio
que devia ser prestado a Cerveira Pereira
pela capital nunca foi efectivado. Pelo seu
lado, os primeiros colonos que se instalaram
em Benguela desenvolveram sentimentos
de incompreendidos e marginalizados por
Luanda, ao mesmo tempo que desejavam
fugir de Benguela para a capital, que aos seus
olhos aparecia como o paraíso da tranquili-
dade e da riqueza. A acrescentar a isto o facto
de Benguela, edificada sobre pântanos, pos-
suir um clima mortífero a que poucos euro-
peus resistiam. Por isso foi colonizada por
presidiários, os únicos que eram forçados a
lá se manter até à morte, a qual vinha breve.
Por estas razões e pela anexação posterior
de Benguela à colónia de Angola, ficaram
sempre incubadas atitudes de revolta contra
o poder central, umas vezes aparecendo ele
representado por Luanda, outras ·vezes por

30
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

Lisboa. Os levantamentos foram constantes,


houve mesmo uma conspiração para assas-
sinar o governador, feita por colonos, e ten-
tativas desesperadas de se mudar a cidade
para outro local mais aprazível. No entanto,
o feitiço do rio Cavaco amarrou sempre a
cidade a si, desenvolvendo cada vez mais na
pequena oligarquia dominante o sentimento
de abandono, que acabou por desembocar
no separatismo. Destacam-se os intentos
de independência para se ligar ao Brasil, no
século passado. Apenas para que o tráfico de
escravos se fizesse directamente e os lucros
não fossem repartidos com intermediários.
O curioso é que esse sentimento sepa-
ratista ultrapassou as fronteiras da classe
dominante e acabou por se generalizar a
sectores importantes da própria sociedade
colonizada. Sobretudo a nível dos quadros
intermediários da colonização, gente nas-
cida de cruzamentos raciais e étnicos de toda
a ordem. Aí se criou uma elite de fortes sen-
timentos republicanos, liderada pela maço-
naria (a Kuribeka), baseada socialmente nas
grandes famílias de ligações indissolúveis

31
PEPETELA

com Luanda. Com a República e o Estado


Novo, esta camada social foi arruinada
pela concorrência da imigração europeia
e caminhou para posições nacionalistas.
No entanto, ficou sempre latente o senti-
mento de contradição com Luanda.
Estive há pouco tempo em Benguela,
exactamente para falar destes mambos
(questões). E senti uma cidade em que algo
se tinha partido. Não eram os vestígios das
guerras recentes, que fizeram lojas perderem
vidros e fábricas ficarem reduzidas a cinzas.
Era algo mais profundo do que isso: a minha
cidade parece ter perdido a alma. E certo
que a maior parte da intelectualidade e quadros
vive já há anos em Luanda, sobretudo os ges-
tores económicos e funcionários bancários.
E certo que poucas acácias restam na que foi
sempre conhecida como a cidade das acácias
rubras. E certo que o marasmo económico
rompe o silêncio, grita. E certo que a guerra
está próxima e os refugiados se amontoam
nos bairros periféricos. Até se vêem muitas
pessoas a pedirem comida pelas ruas. Isto é
o que se sabe, se nota, se sente.

32
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

Mas o mais grave é que os benguelenses


já não reagem quando se provoca a discus-
são sobre o hegemonismo de Luanda; já não
sorriem de orgulho quando se recorda que
Benguela foi a única cidade do então impé-
rio português em que Salazar foi derrotado em
eleições, o que aconteceu em 1958 com
Humberto Delgado; pouco se importam se as
suas equipas de futebol são derrotadas pelas
de Lobito ou Luanda, os grandes rivais.
Olhando as ruas razoavelmente limpas e
com poucos buracos, as casas bem cuidadas
apesar de todas as vicissitudes, os jardins
sempre bonitos, perguntava-me qual a dife-
rença. São as pessoas, sem dúvida. Já não dão
aquelas gargalhadas impertinentes contra o
mundo inteiro, já não criam mujimbos de
gozo, já não arranjam o mais fútil pretexto
para estar juntas e festejar. As pessoas vivem
com o seu medo, isoladas. Benguela perdeu
a sua alma, o último ano deu cabo dela. E era
o ano da esperança, o de todas as promessas!
Pode ser que as coisas mudem, pode ser
que a cultura dos quintalões ensombra-
dos (e assombrados) volte a nascer, que as

33
PEPETELA

famílias se reúnam nas praias e nas som-


bras do Cavaco ou das Bimbas. Pode ser que
os poemas de Aires de Almeida Santos e as
crónicas de Ernesto Lara sejam recordados e
reavivem a alma volátil que se foi. Pode ser.
Se não acreditarmos nos nossos mortos, em
que vamos acreditar?

16-05-93

34
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

O canto do matrindinde

NA MINHA MENINICE, Benguela apresentava


vastas zonas despovoadas na periferia, onde
por vezes havia capim. E digo por vezes pois,
quando as chuvas não vinham, nem capim
crescia. Uma zona particularmente visi-
tada por mim eram os morros quase calvos
do Sul, onde se acabou por construir mais
tarde o aeroporto do Dokota, por iniciativa e
financiamento dos habitantes.
A importância da terra há muito justificava
a existência do dito, mas o Governo salaza-
rista tinha votado a cidade ao ostracismo,
por ter cometido o sacrilégio de votar na
oposição. A bofetada com luva foi a popula-
ção não esperar pela esmola governamental

35
PEPETELA

e fazer mesmo o aeroporto. Nesse sítio do


futuro aeroporto havia matrindindes. Ai e
noutros terrenos livres, pois parece que
matrindinde precisa de espaço para viver.
Estranhos insectos de pernas compridas, de
corpo maciço e das mais variadas cores, mas
sempre com forte brilho metálico. Pelo
aspecto, deve ser espécie anterior aos dinos-
sauros. O nome ate acabou por servir de alcu-
nha a um guarda-redes de futebol só por ser
alto e fino (dizem as más-línguas que desa-
jeitado também). O matrindinde gostava de
subir por uma haste de capim ate a dobrar
com o seu peso e dal passar para a base de
outra haste, voltar a subir por ela, dobrá-la,
ate... Era o principal meio de locomoção,
muito próximo do de Tarzan, o qual saltava
de liana em liana. Era pelo menos essa a
ligação que eu fazia, durante horas deitado no
chão a observar.
Apanhávamos alguns deles, o que não
oferecia dificuldade nenhuma, pois eram
muito lentos e absolutamente pacíficos. Se
chiavam muito não era por agressividade,
mas certamente serrando cânticos de amor.

36
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

Escolhíamos cada um de cor diferente, que


depois fechávamos em gaiolas de bimba, uma
espécie de bordão muito grosso e esponjoso,
quase mais leve que o ar.
Não me lembro do que acontecia com os
dos outros, mas os meus resistiam muito
pouco tempo ao cativeiro. Por muito capim
que pusesse na gaiola, deixavam imediata-
mente de chiar e poucos dias depois esta-
vam mortos. Até desisti, provavelmente por
algum vago pendor ecologista (conceito e
palavra absolutamente desconhecidos na
época pelo menos em Benguela, tão afastada
dos sítios onde se inventam essas coisas).
Nunca vi matrindindes em nenhum sítio
de Angola ou do mundo. Pode ser só igno-
rância minha e que alguém vá reagir e dizer
<<na minha terra também tem e na terra de
fulano também>>, etc. Tudo bem. Eu nunca
vi em nenhum outro lugar e por isso, cá bem
no íntimo, acho que matrindinde e para
Benguela o que a planta Welwitchia Mira-
bilis é para o Namibe: só há ali e assunto
encerrado. Se aparecer alguém com provas,
fotografias, relatórios de especialistas, tudo

37
PEPETELA

o necessário para mostrar que não é verdade


a minha ideia, direi <<esta bem, aceito>>,
mas lá bem no fundo vou sempre pensar que
os outros serão imitações baratas dos nos-
sos matrindindes.
Já me disseram que no Lobito também
existiam, mas nunca me mostraram os de lá.
Conhecida a rivalidade entre as duas cida-
des vizinhas, não e difícil imaginar que os
lobitangas, mais uma vez defraudados por
não terem o que Benguela tem, lançaram o
mujimbo só para enfraquecer a nossa lide-
rança regional. Os luandenses, por uma
vez aceitando com humildade a sua der-
rota, nunca tentaram provar que na zona de
Luanda há dez mil anos atras também exis-
tiam (e, caluanda é assim, se não tiver argu-
mentos ate os vai buscar a arqueologia).
O grande problema é que os matrindindes
desapareceram de Benguela. Pelo menos foi
o que me informaram das últimas vezes que
lá estive, pois pergunto sempre por eles aos
amigos. Alguém me disse que exactamente
nos morros do aeroporto, do lado de lá da
pista, ainda há. Os meus amigos já não têm

38
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

idade para andar pelos morros à procura


dos bichos e os filhos deles cresceram em
ambiente urbano e acham malaicas essas
preocupações. Por isso fico sem saber se é
espécie em extinção.
De qualquer modo, há que tomar medidas.
E se for necessário, criamos uma área prote-
gida só para defender os matrindindes. Esta
minha proposta pode parecer absurda nesta
onda de <<Vamos salvar Luanda>>, operação
lancada pelo governo provincial da capital
para tentar fazer que os buracos das ruas
tenham algum asfalto por cima. Mas como
acho que Luanda só se salva se primeiro se
salvar Benguela e as outras Benguelas todas;
e como sem matrindindes Benguela deixa de
ser a própria... A proposta passa a ter con-
sistência de cimento.
Benguela é a cidade do mar, da Caotinha ate
ao Lobito, é a cidade das acácias e do
Cavaco, é a cidade da civilização dos quin-
talões, dos sape-sape e das goiabas, sim, é isso
e muito mais. Mas para mim é a cidade
dos matrindindes. Para o poeta e cronista
Ernesto Lara também, pois até publicou um

39
PEPETELA

livro de poemas com o sugestivo nome de


<<0 Canto do Matrindinde>>. Temos de con-
fessar que o título exigiu muito boa vontade,
pois o canto do dito insecto é um desafinanço
constante, um chiado de chave de fendas a
escarafunchar numa chávena de alumínio.
Valeu a intenção amiga do Ernesto.
Voltando ao pensamento anterior, atro-
pelado pela lembrança saudosa do vate do
Cavaco: se for preciso, lançamos subscri-
ção universal e criamos a zona protegida
para os matrindindes. Como já perdemos
a vergonha e só sabemos pedinchar ajuda
internacional para resolver os problemas
que nos criamos, será mais um apelo às
boas alminhas. Para uma causa justa, a de
salvar uma espécie em extinção, herbívora
(que não sabe matar os semelhantes, por-
tanto), que nunca criou escudos de defesa
e... talvez por isso, está mesmo em extin-
ção. Oh, mundo cão!

19-06-93

40
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

O processo

MUITAS VEZES fico em conversa com o meu


quase-compadre Adão Domingos, bate-
-chapas no Bairro Sambizanga, em baixo da
mangueira do quintal, varrendo umas gela-
dinhas. Devo esclarecer que compadres toda a
gente tem. Mas eu e o Adão somos quase--
compadres. Isto porque ele um dia confes-
sou que eu teria de ser padrinho do seu pró-
ximo filho. Ficámos combinados. Ele já tem
seis filhos, dois de cada uma das três mulhe-
res que engravidou. Mas depois chegámos ao
trato, e não sei se por feitiço da combina ou
outra razão, a sua felicidade caiu a pique.
Os anos acumulam-se e nenhuma das
suas mulheres consegue dar-lhe o rebento

41
PEPETELA

que me faria padrinho. Por vezes refere- se


ao facto, como que a desculpar-se. Adian-
tando logo a sua frustração por não poder
povoar suficientemente o país. E quando
lhe digo que isto de sub ou sobrepopulação
é tudo muito relativo, pois cada país deve ter
a população que pode alimentar, ele retruca
que fazer mais um filho é um dever que con-
traiu perante mim. Por isso, passámos a
tratar-nos por quase - compadres.
A introdução vem a propósito de um dos
seus desabafos, pois como bate-chapas
muitos carros espatifados lhe caem na ofi-
cina. Talvez por isso ele repare em coisas
que nem nos passam pela cabeça. Um dia
disse: <<Sabe, quase-compadre, sem ter
sido anunciado, nós já fazemos parte da
Comunidade Europeia.>> Mostrei minha
estranheza, pois me prezo de ser pessoa
razoavelmente informada. Pedi explica-
ções. <<Pois então não vê a quantidade de
carros que andam por aí pintados com
vacas de fábricas de lacticínios da Holanda
ou com anúncios de reparadores de esquenta-
dores da Alemanha?>>

42
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

Passei a abrir mais os olhos pelas ruas e


não é que meu quase-compadre tem razão?
É incrível a quantidade de carros, mini—
autocarros ou furgões que Luanda com-
porta com anúncios nas línguas dos grin-
gos, mas muito especialmente holandês e
alemão. Provavelmente também da Bélgica,
só que não sei distinguir língua de <<boer>>
da Bélgica ou da Holanda, se é que existe
alguma diferença.
Alguns exemplos: furgão (nós aqui cha-
mamas kombi) grande anunciando em ale-
mão que se reparam estores, ou arcas frigo-
ríficas. Camião fechado com dizeres de uma
qualquer empresa de mudanças. Em alemão
ainda, carro duma lavandaria de Salzburgo,
Áustria.
O mais curioso foi um autocarro de ses-
senta lugares que ainda ostenta no frontis-
pício a direcção Pflingen Oost, o que será
provavelmente uma localidade ou bairro da
Holanda. Outro exemplo, este bonito, é o
autocarro que serviu algum jardim infantil na
Alemanha, todo ele pintado de flores e ani-
mais, num verdadeiro festival psicadélico.

43
PEPETELA

E ninguém se preocupa em pintar os carros.


O que importa é que eles andem e cubram
rapidamente o investimento.
Tudo se deve ao celebérrimo << Processo
500>>, que hoje já deveria ser chamado
de <<Processo 5000>>, devido à inflação.
Uns anos após a independência, devido ao
colapso dos transportes colectivos, começou
a assistir-se a um fenómeno nada original
em África, mas que os europeus provavel-
mente desconhecem. Particulares (alguns) e
funcionários conduzindo viaturas do Estado
(muitos) começaram a transportar pessoas
que pediam boleia, mas cobrando o trajecto
a 500 kwanzas . Daí o primeiro nome de
<<Processo - cabeça - quinhento>> .
A fase seguinte foi a compra na Holanda e
Bélgica de carros de segunda mão para este
<<processo>>. O mais prático era o mini-
-autocarro Hiace. E constituíram-se verda-
deiras frotas particulares e ilegais. Até que,
com a abertura do mercado livre, a prática
foi legalizada.
Ultimamente tem sido polémica a desig-
nação dos que se dedicam ao Processo, já

44
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

organizados numa associação que dita os


preços. A população chama -lhes candon-
gueiros, nome injusto, mas que deriva do
período em que não estavam legalizados.
Eles arrogam-se o dignificante nome de
taxistas, o que é rejeitado por todos, pois de
facto não são táxis. Funcionam em trajec-
tos fixos, com paragens instituídas pelo uso
popular e que todos conhecem. Geralmente
nos sítios mais prejudiciais ao trânsito.
E nos mercados de maior afluência, como
no Roque Santeiro, têm mesmo pregoei-
ros: <<Partida para Nzamba 2, Precol, Quinta
Avenida.>> Ou: <<Partida para Trapalhões,
Sagrada Família, Bairro Operário.>> São
geralmente crianças de voz forte que fazem
este papel. E que vão <<esquecendo>> de ir à
escola.
A bem ou a mal, os autocarreiros vão
tapando os furos causados pela quase ine-
xistência de maxibombos da empresa de
transportes públicos. E vão assustando os
motoristas com os verdadeiros atentados
às regras de trânsito que cometem. Mas não
é um dos factores que dá animação a este

45
PEPETELA

surrealismo todo? Por isso não é de admi-


rar que se comprem carros usados na Europa
que aí serviam para outros usos, com o fim de
ligar os bairros suburbanos ao centro desta
metrópole quase ingovernável.
Tem todo o sentido a reflexão malandra do
meu amigo Adão Domingos. Graças aos
candongueiros, que foram os primeiros a
instituir a economia de mercado entre nós,
também passámos de caxexe para o clube dos
ricos, vulgo CE, pelo menos se nos distrairmos
a ver os carros passar... O que temos feito .toda
a vida! Só que se torna cada vez mais difícil ser
aceite nas fronteiras da <<nossa>>
comunidade com os passaportes que
usamos. O que nos faz logo cair na rea-
lidade. Resta-nos sonhar ao ver os anúncios
psicadélicos passar ...

27-07-93

46
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

Maria da Fonte

JÁ SE TORNOU num hábito o facto de jornalista


português novo nestas andanças de Angola
começar as suas reportagens sobre Luanda
reproduzindo o que se tornou num mito
sobre a descolonização. Ainda há pouco li
num grande diário português mais uma vez
esse dislate. Talvez o caso não mereça muita
preocupação, mas acaba por me irritar por-
que provavelmente a li umas vinte vezes.
E não posso evitar fazer aqui um desabafo.
A última foi uma jornalista que, antes de
iniciar a sua série de reportagens sobre a
guerra e a paz, teve de situar as coisas como
se deve, começando pela capital. Depois
do lixo e da desorganização, constatações

47
PEPETELA

verdadeiras e que o nosso aceita de


bom grado ver retratadas em jornais
portugueses, lá vinha o mito: referindo-se à
célebre praça do Kinaxixe, não pôde evi-
tar a senhora de contar que nessa praça foi
substituída a estátua da Maria da Fonte por
um blindado, o que provaria não só o milita-
rismo das autoridades angolanas logo após a
independência, como sobretudo o seu ódio
visceral a tudo que significasse presença
portuguesa, a que nem escaparia a popular
figura do século passado. Afirmação esta
que demonstra o pouco cuidado com que
algumas pessoas se debruçam sobre a His-
tória recente deste país. Se a senhora reflec-
tisse um pouco sobre as coisas, certamente
acharia estranho que o Governo de Salazar
erguesse numa das praças mais importan-
tes de Angola uma enorme estátua a imor-
talizar um facto que não faria propriamente
parte da ideologia do Estado Novo, quando
tinha tantos governadores gerais ou chefes
militares da colonização a enaltecer. O que
prova talvez a ignorância da jornalista sobre
a ideologia do Estado Novo ...

48
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

A verdade é que o monumento que em


1975 foi substituído por um blindado se
referia aos Combatentes da Primeira Guerra
Mundial. Tratava-se dum grupo de solda-
dos com os fardamentos e capacetes típi-
cos desse conflito, tendo à sua frente uma
mulher de seios nus, provavelmente sim-
bolizando a vitória. Daí partia a Avenida dos
Combatentes, a qual, apesar de ter mudado
de nome na altura da independência, ainda
hoje assim é referida pela memória popular.
Algum brincalhão terá chamado na época a
essa senhora de seios nus Maria da Fonte e o
nome chegou aos ouvidos da descuidada jor-
nalista. Como já tinha chegado a vinte outros
antes dela. Assim se criam os mitos.
E afinal, por que raio se haveria de con-
servar um monumento sobre uma guerra
em que nenhum de nós participou? Não
seria mais lógico substituí - lo por um sím-
bolo duma guerra que ainda está presente?
É discutível, claro, e sobretudo estetica-
mente é uma opção estranha. Mas o monu-
mento foi retirado, como o foi o de Afonso
Henriques. De facto, não tinha nada que

49
PEPETELA

estar em Luanda, apesar da simpatia que


sempre tive por esse Rei façanhudo e que,
como qualquer líder, cumpria pouco a sua
palavra. Reconheço nele certos traços dum
verdadeiro troglodita, mas mantenho pelo
personagem uma simpatia particular. Como
a que um conhecido chefe português actual
tem por um político angolano tristemente
famoso, apesar de em privado lhe chamar
troglodita. Amores não se discutem ...
Essa praça do Kinaxixe, cantada e recan-
tada por meu amigo Arnaldo Santos, o mais
lídimo dos escritores kinaxixenses, mere-
ceria ser evocada por outras coisas que não a
estátua que afinal não era. Seria interes-
sante por exemplo dizer que durante séculos
aí imperou uma lagoa artificial, criada pelos
frades do Carmo para reter as águas da chuva
e que se tornou tão importante que até as
divindades da terra a adaptaram. Conta-se,
por exemplo (e quem me contou foi Luan-
dino Vieira, o qual assistiu), que quando se
quis urbanizar essa zona, nos anos cinquenta,
se cortou uma enorme árvore, sumaúma
ou mulemba, cujo tronco serrado sangrou

50
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

Durante sete dias. Sangrou sangue, perdoem


o pleonasmo, mas é para que não haja dúvi-
das. E que na lagoa sempre houve Kiandas e
outros seres míticos. Aliás, enclausurada por
cimento e alcatrão, a lagoa sempre reaparece e
hoje tem cacussos, peixes saborosíssimos,
que nadam entre as fundações dos prédios.
Quem duvide, vá só lá ver. Mesmo ao lado do
prédio de mais de dez andares, inacabado,
sem escadas, sem rebouco, mas cujos pro-
jectos de apartamentos estão todos ocupa-
dos, alguns até com luz eléctrica. Feitiços cá
da banda. E repito, é lagoa, não é fonte, e não
tem lá nenhuma Maria.
Quando leio um desses artigos, que come-
çam logo massacrando os conhecimentos
que temos da nossa terra, fico duvidoso:
porquê acreditar no resto da reportagem?
E porquê acreditar noutros artigos, sobre
países cujas descrições não posso conferir?
Será que o que se passa na Bósnia está bem
relatado? Existirá mesmo uma tal de Bós-
nia? Ou é outra Maria da Fonte em pedes-
tal? Dúvidas, só dúvidas. Claro que gente
dirá: este tipo apanhou um detalhe e já põe

51
PEPETELA

em causa toda a informação, o que é típico


de espírito pouco democrático. Concedo.
Mas também, se não houver algum exagero,
que piada tem esta coisa de escrever para
jornais?

27-08-93

52
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

O tri africano

FOI A PRIMEIRA notícia que me deram, ao


desembarcar em Luanda, deixando para trás os
desenvolvimentos políticos ou a situação
económica. Angola, pela terceira vez con-
secutiva, é campeã africana de basquetebol
masculino. A televisão deu em directo o jogo
da final , passado no Quénia, e a população de
Luanda festejou na rua o acontecimento.
Alguns dirão: que coisa banal, não se justi-
fica tanta euforia, nem que se escreva sobre
isso . Talvez.
Este povo anda tão desanimado que pre-
cisa de pretextos para mostrar alegria. E esta
é uma das poucas boas notícias que teve
durante este ano. Sempre dá para aquecer

53
PEPETELA

um pouco o resto do orgulho nacional, que


se vai esvaindo, arrastado pela guerra e pela
crise económica. Ao menos em basquete
somos bons, inegavelmente os melhores de
África. Basta de bater recordes negativos em
violência, instabilidade, mortalidade infan-
til, índice de sofrimento global. Nunca se
tinha conquistado por três vezes consecu-
tivas o campeonato africano, é um recorde.
E só um deles ganho em casa, o que é impor-
tantíssimo nestas coisas. E o povo festeja,
porque sabe quão difícil é vencer adversários
e árbitros corruptos fora de casa. Em que
outra área vamos lá a casa do adversário, ou a
uma terra mais ou menos neutra (nunca é
totalmente), e damos <<smash>> e baile e tra-
zemos o ouro, apesar do árbitro que nos quer
prejudicar? Em mais nenhuma, só no bas-
quete. Por isso viva Angola e viva o basquete.
Pois, no basquete, nem os Estados Unidos
ou Nações Unidas (vai tudo dar no mesmo),
sendo árbitros, nos conseguem roubar o
merecido ouro.
Muitos intelectuais já trataram a ligação
perigosa entre desporto e nacionalismo e

54
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

a manipulação sempre possível por parte


de certos poderes dos sentimentos criados
pelo desporto. Também desconfio disso.
Mas neste caso que eu não vivi, pois durante
o decorrer do campeonato estive fora e
nenhuma notícia sobre Angola me chegou,
acho não só lídimo como necessário exaltar
o feito, sem medo de incorrer em excessos
nacionalistas, pois se trata apenas de com-
pensar um pouco o sentimento de inferiori-
dade que se vai apossando de nós, por outras
razões.
E o curioso é que este sentimento de infe-
rioridade se manifesta particularmente no
desporto, excepção feita ao andebol femi-
nino, onde também somos dos melhores do
continente. Inúmeras vezes os angolanos
estão a ganhar e, quando se trata de segu-
rar o resultado, perdem a confiança, não se
defendem como deve ser e são derrotados.
É quase uma constante. Muitas vezes me
pergunto se esta constante no desporto não
reflecte algo de mais profundo e ligado a uma
falta de confiança em si próprio que provém
de outras estruturas e de outras actividades.

55
PEPETELA

Sem dúvida que, na economia e na polí-


tica, muitas vezes parece que vamos atingir
os objectivos, chegar à vitória, e de repente
entregamos tudo de mão beijada aos deuses
loucos que nos dominam. Assunto para os
antropólogos.
O basquetebol foi a primeira actividade
em que se juntaram dois ou três bons técni-
cos, mínima capacidade organizativa e muita
força de vontade. Os jovens habilidosos
foram surgindo, deles foram seleccionados
os que maiores aptidões físicas apresenta-
vam. Estes factores, mais o apoio governa-
mental, acabaram por superar as dificul-
dades iniciais e romper o feitiço disfarçado
de barreira psicológica. Afinal também
podemos ser os melhores, quando há tra-
balho constante e seriedade. E esta e só esta
é a lição que me interessa reter para a apli-
car ao futuro. Por isso era importante este
título, neste momento. Como é importante
para Moçambique ter uma Mutola a correr à
frente das zebras.
Só uma coisa é para lamentar e ela diz
respeito à organização, escapando comple-

56
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

tamente à nossa responsabilidade colectiva: a


final não ter sido programada para o fim-de-
-semana. O sabor seria outro e a população ia
cair na farra mesmo, não apenas andar pelas
ruas a festejar com bandeiras e tiros para o ar,
no que parece ser já um marcador de cultura
nacional. Marcador péssimo para a saúde, no
que diz respeito aos tiros, pois apesar de toda
a gente saber que são de festa, podem ferir
tanto como os outros.

12-10-93

57
PEPETELA

Os bandos

NOS MEUS TEMPOS de criança, em Benguela,


houve o período dos bandos de rapazes que
passavam na rua a maior parte do seu tempo e
nem sempre com as ocupações mais con-
fessáveis. Havia actividades perfeitamente
aceites, como os tremunos de futebol nal-
gum quintalão abandonado, o que era bas-
tante comum naqueles tempos de pouca
construção, as idas à Praia Morena ou os
menos confessáveis assaltos às goiabas,
mangas, sapesapes, das quintas do Cavaco
ou das Bimbas (onde imperava o feroz Tira-
-Chapéus).
Estes assaltos envolviam alguns riscos,
vindos particularmente dos cães de guarda,

58
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

ou dos cacos de garrafa com que se encima-


vam os muros das quintas. Geralmente, a
conjugação dos dois factores é que era peri-
gosa: os calções eram os primeiros a pagar, e
depois os donos, por não arranjarem expli-
cações plausíveis para as mães.
Outra actividade de certo risco era a espera
ao comboio do Lobito, de passageiros ou de
mercadorias, tanto fazia. O jogo consistia
em ficar o bando em cima da ponte sobre o
rio Cavaco, o qual quase sempre estava seco
e por isso tinha areia três ou quatro metros
abaixo do tabuleiro da ponte; quando o com-
boio se aproximava, todo o bando tinha de
se atirar para a areia, pois a ponte tinha ape-
nas o espaço para o comboio passar. Obvia-
mente, o último a saltar era o vencedor.
Perante as queixas dos maquinistas,
houve um tempo em que ia um pançudo
polícia de bicicleta para lá, impedir as aven-
turas. Só que o polícia tinha outras ocupa-
ções naquela cidade tão calma de crimes
mas tão prazeirosa para outros desfrutes e o
polícia aparecia pouco pela ponte ou então
ficava parcos momentos, pois logo alguma

59
PEPETELA

bonita cafeco o atraía para outras activida-


des mais interessantes.
Convenhamos também que o Cavaco ficava
fora da cidade e não era fácil a um polícia
gordo pedalar aquela distância só para evitar as
brincadeiras da malta. Mas um dos nossos
partiu um dia um braço ao mergulhar mal para
a areia e a brincadeira acabou mal. Ou
encontrámos outras coisas com que nos
entreter, sei lá.
No entanto, havia bandos e bandos. Este
era bastante inocente, como vimos pelos
exemplos. Havia o bando do Bito, lá para os
lados da Igreja, e o do Gonga, no Bairro da
Peça, que eram bem mais pesados. Cada um
deles queria pura e simplesmente (embora
só o reconhecessem em algumas ocasiões)
dominar todos os bandos da cidade.
O Bito e o Gonga tinham muitos pontos
em comum: ambos mulatos e mais fortes
que a norma, nutriam o mesmo ódio recí-
proco e a mesma ambição. Dizia-se que o
ódio começou quando o Gonga tinha 12 anos e
o Bito 13, por causa duma miúda que aca-
bou por não querer nenhum dos dois, mas
os manteve em <<suspense>> durante muito

60
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

tempo (como em qualquer estória original,


<<cherchez la femme>> ).
A diferença entre os dois é que o Gonga
ficou pela 4.ª classe, tirada com muito custo
graças às reguadas da velha Cló, e o Bito lá
continuou a estudar até ao 5. º ano do liceu,
o que. já era menos mau para a época. Pode
dizer-se que a diferença principal dos dois
chefes era a cultural, com um Bito quase
intelectual e o Gonga muito mais destinado
a trabalhos braçais.
Estes dois bandos nunca se encontravam
de forma pacífica. Bastava que um sou-
besse do avanço do outro nalgum território
fora do respectivo bairro para se preparar para
a pancadaria. Que sucedia invariavelmente.
Mas naquele tempo tinha regras morais: era
só a murro e pontapé, nenhuma arma era
permitida pela ética dos bandos de Benguela.
Enquanto eles se defrontavam nos sítios mais
isolados ou em largos vazios, isso pouco
afectava os outros jovens. O problema
é que o Bito, a um momento dado, inaugu-
rou a época imperialista: já não lhe bastava
dominar a zona da Igreja, quis estender a sua

61
PEPETELA

influência para os outros bairros. Os seus


emissários vinham contactar os outros ban-
dos, para que nos submetessem à sua auto ri-
dade e integrássemos o seu bando, pois isso
permitia protecção e a sensação agradável de
fazer parte dos donos da cidade.
O problema é que o Conga em breve sen-
tiu que estava em perigo, pois as alianças que
o Bito estabelecia aumentavam em muito os
seus combatentes. Ficará certamente na his-
tória das guerras da cidade a vitória memorá-
vel do bando do Bito na zona do Cassoco, em
que pela primeira vez o Gonga e seus
auxiliares mais próximos tiveram de ir receber
uns pontos no hospital, tal a surra que levaram.
Aí o Gonga passou a pressionar os outros
grupos.
Penso que nesta fase diplomática mais se
notou a diferença cultural entre os dois che-
fes. Os emissários do Bito tentavam conven-
cer, iludindo-nos com as vantagens mútuas
duma aliança (para nos dominarem, pois era
sempre o Bito que decidia quais as activida-
des de cada grupo, deixando as mais agra-
dáveis para o bando dele). Já os emissários
do Gonga vinham com ameaças de pancada

62
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

ou de feitiço. Começou a falar-se das capaci-


dades do Gonga em manipular uma velha da
Massangarala que era conhecedora de todos os
poderes do Além, os quais nos persegui - riam
se não nos aliássemos a ele.
E aí começou o nosso tormento: nós só que-
ríamos jogar futebol e ir roubar umas frutas
de vez em quando . Se nos aliássemos a um dos
bandos, teríamos de fazer o que o líder dese-
jasse. Um ameaçava-nos, o outro prometia
protecção. Num caso ou noutro, deixávamos
as nossas inocentes brincadeiras. Perante
este dilema, o nosso grupo encontrou uma
solução, talvez não muito romântica, mas efi-
caz: deixou de andar tanto pelas ruas e passou
a estudar mais. Pelo saber íamos demonstrar
a um e a outro que a ambição pelo poder ime-
diato só arruinaria os próprios promotores.
Vendo hoje a minha cidade e o país, não
sei se essa nossa táctica resultou. É certo que
já ninguém se lembra do Bito e do Ganga.
Mas será que aprendemos a lição?

04-11-93

63
PEPETELA

10

O homem-cobra

HÁ DIAS, a minha Benguela de todas as


magias foi agitada por uma notícia sensacio-
nal. Um homem, transformado metade em
cobra, errava pela ruas qual alma penada que
nós chamamos cazumbi. O mujimbo (notí-
cia) correu que nem fogo em chana seca.
E milhares de pessoas, que já estavam para-
das nas ruas sem saber o que fazer, aprovei-
taram para encontrar uma razão de existên-
cia: todas se puseram a correr dum lado para
o outro atrás do estranho ser. E logo alguém
gritava, foi por ali, eu vi-o, e todos muda-
vam de direcção. A super-estática Benguela
tomou-se de repente numa agitada urbe,
comparável à Nova Iorque dos bons tempos,

64
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

ou Paris à hora de ponta. Disseram-me que


as repartições públicas fecharam, o comér-
cio também praticamente, pois funcioná-
rios, vendedores, compradores, se junta-
ram aos desocupados que pairam pelas ruas
à espera de qualquer coisa que não se sabe o
quê ... Por exemplo dum homem-cobra.
A correria e a animação duraram horas. Ao
cair da noite as pessoas, frustradas e can-
sadas, recolheram a casa, sem nada terem
encontrado. Felizmente sem grandes danos
físicos, pois os polícias e militares e guardas
de todas as espécies desta vez não se lembra-
ram de disparar. Alguns dos participantes
explicaram o acontecido ao repórter duma
rádio. E passo a transmitir-vos o que ouvi.
Uma mulher descobriu que o marido a
enganava com outra. Ciumenta, resolveu
agir. Foi ter com um kimbanda famoso, pro-
curando algum remédio que curasse de vez
o homem dessa doença perigosa do adul-
tério. O kimbanda deu-lhe uma poção que ela
deveria misturar à noite à água do banho
do marido. Mas a mulher era impaciente.
Preparou a selha com a água para o banho

65
PEPETELA

logo ao fim da tarde e não à noite, quando


ele regressava a casa depois de visitar a rival.
Não cumpriu integralmente os conselhos
do especialista. E o marido dessa vez tam-
bém estava com pressa e só lavou metade do
corpo. Essa metade virou cobra. Não foi dito
que metade foi lavada, por isso não sabere-
mos se ficou com cabeça e busto de cobra ou
se com cauda serpentina. Desesperado, saiu
de casa, talvez para esconder a vergonha.
A mulher contou a estória, já arrependida, e
pediu aos vizinhos para o procurarem. Cer-
tamente porque o mesmo kimbanda poderia
arranjar as coisas. Compreenda-se o deses-
pero de não o encontrar e ficar sem marido
e com remorsos toda a vida.
Aguardam-se novos episódios para se
conhecerem detalhes e outras explicações
ainda não elucidadas. Quem sabe se em
romance ou televisão. Porque era preciso
situar os personagens: não sabemos em que
bairro moravam, apenas num periférico; não
sabemos classes sociais, graus de instrução, se
a senhora é devota de alguma religião , se
é responsável de partido e de qual (agora que

66
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

acabou o Mono), etc., etc. Aspectos funda-


mentais para podermos tirar alguma con-
clusão minimamente séria.
E não é a primeira vez que acontecem coi-
sas destas. Quinze dias atrás, eu tinha estado
em Benguela e disseram-me que no Cassoco
tinha aparecido uma cobra com duas cabeças
e com uma nota de Kz 100 000 (leia-se cem mil
kwanzas) na boca. Claro que, como está-
vamos em ambiente oficial, logo se mudou
de conversa, fica mal perder tempo com coi-
sas dessas perante visitas. Em todo o caso,
logo duas estórias de cobra em menos de um
mês. E que tem Benguela a ver com cobras?
Manda a tradição judaico-cristã que a ser-
pente esteja associada à traição e ao pecado.
Aquela lenda da serpente de Eva, em que não
se sabe bem onde acaba a cobra e começa a
nossa primeira mãe, ilustra bem os princí-
pios do machismo. Mas na tradição destas
bandas de África, pelo contrário, a cobra é
animal de sítios escuros e frescos, propícios
ao bom senso e reflexão. Com o cágado, é
animal-símbolo da inteligência e prudên-
cia. Mas as igrejas cristãs entraram por aqui

67
PEPETELA

como faca a escaldar em manteiga derretida


e deturparam a visão popular sobre a cobra.
Por isso, não me admiraria que a primeira
estória fosse invenção dum nostálgico do
antigo regime que quer significar: o capita-
lismo é trazido pelas cobras, com o dinheiro
que nos corrompe. Mas na boca de que
cabeça trazia ela o dinheiro? Certamente na da
direita.
Quanto à segunda estória, dizia o repórter
que a cena se tornou caso da cidade, porque
no actual momento psicológico da popula-
ção, a braços com uma guerra que a ultra-
passa, todas as crenças e superstições obs-
curantistas ganham terreno. Em parte tem
razão e isso é verdade que se aplica a toda
Angola: nesta altura da vida, só mesmo acre-
ditando em milagres. Dos que não acreditam
estão os hospícios cheios.
No entanto, um aspecto veio reforçar a
impressão que tive quinze dias atrás em Ben-
guela, no Lobito, na Baía Farta, na Catum-
bela, enfim em todos os lugares da costa:
a impressionante quantidade de pessoas
que pairam nas ruas, paradas. Em Luanda

68
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

também as ruas estão cheias de gente, mas


em movimento, passeando, indo ou vindo
do trabalho, comprando ou vendendo, rou-
bando ou a fugir dos ladrões. O problema é
que em Benguela as pessoas estão paradas,
à espera. Será do cessar-fogo? Será que eles
sabem o que esperam? Temo bem que não.
Mas há ainda uma esperança, nem tudo
está perdido. Ainda se entusiasmaram e
correram atrás dum homem-cobra. Que
homem-cobra será este país capaz de inven-
tar para pôr toda a gente em movimento, mas
numa só direcção? Como diria o meu colega
dos bancos de escola, Guilherme Chico-
-Esperto, eis a questão.

11-12-93

69
PEPETELA

11

Agarra que é polícia!

UMA DAS ÚLTIMAS instituições a serem der-


rubadas no meu pedestal de menino foi a
polícia. Lembro-me do choque que me pro-
vocou um qualquer filme americano em que
os polícias eram violentos e corruptos; creio
ter sido o primeiro factor a abalar a minha
confiança. Até então, nunca me tinha sequer
ocorrido que entre ladrões e polícias a dife-
rença pudesse ser pequena, apenas o lado
em que se estava na barricada. Geralmente,
os livros policiais e os filmes eram bastante
maniqueístas, dum lado o detective ou polí-
cia íntegro, e do outro os bandidos horroro-
sos. E essa ideologia era reforçada pelo que
eu ouvia em casa ou na rua.

70
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

Lembro-me de três polícias na Ben-


guela da minha meninice: o Silva, o Rosas e
um terceiro de que já falo. Não sei se havia
outros, penso que não. Eles eram auxiliados
pelos cipaios, que se ocupavam unicamente
dos bairros periféricos, forma polida para
dizer bairros de negros. O Silva e o Rosas eram
rosados e gordos e andavam sempre de
bicicleta. O terceiro, vindo mais tarde, andava
numa grande mota e tinha botas de montar. Por
isso lhe chamei sempre o polícia das botas e
assim ele era tratado na cidade. Este ocupava-
se dos assuntos de trânsito e os outros dois da
ordem pública.
Era do Silva ou do Rosas que nós tínha-
mos de fugir quando nos corria mal algum
assalto para roubar fruta numa quinta do
Cavaco, ou se por azar uma pedrada falhava
o alvo e partia o vidro de alguma janela. Era
com eles que fazíamos corridas de bicicleta,
cujo resultado era antecipadamente conhe-
cido: nós à frente, a saltarmos passeios e
até muros baixos, enquanto eles tinham de
parar, sair da bicicleta, ultrapassar o pas-
seio ou o muro, voltar a montar, tudo com a

71
PEPETELA

máxima dignidade. Quando o faziam, nós já


estávamos longe. Eram também eles que nos
vinham agarrar se entrávamos no cinema
ou no futebol saltando o muro e fôssemos des-
cobertos. Claro que os odiávamos mais do
que a qualquer coisa no mundo. Mas nem
me passava pela cabeça que o Rosas ou o
Silva pudessem subtrair o dinheiro de uma
multa ou exigir uma quantia qualquer para
não avançarem com um processo. E talvez o
fizessem, eu é que nem acreditaria.
Vi o tal filme americano e perguntei-me:
o Rosas ou o Silva seriam também capazes de
perseguir e maltratar um inocente só porque
era negro, ou para lhe extorquir dinheiro? Foi
pergunta que durante algum tempo me perse-
guiu, até me informar de mais coisas e acabar
por perder a inocência virginal. Nessa altura
respondi à pergunta pela afirmativa, claro
que eram capazes disso e de muito mais, eram
polícias do fascismo. Assim foi derrubado o
muro de credibilidade que eu compunha à
volta da última instituição. Depois disso eu
tinha o terreno adubado, só faltava a semente
para me tornar revolucionário.

72
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

Os tempos realmente mudaram e não sei


se por influência ainda dos filmes, da tele-
visão ou de sei lá o quê, o certo é que não
existe hoje criança de dez ou doze anos que
tenha essa fé na honestidade da polícia que
eu tinha na altura. E é pena, pois isso dava
segurança. Nós até tínhamos um comporta-
mento que por vezes poderia, com certo exa-
gero, ser rotulado de pré-delinquente. Mas
se enfrentássemos algum problema mais
sério, por exemplo um Bito a querer dar-nos
surra, ficávamos ao pé do Rosas ou do Silva
e nada nos acontecia. A polícia assegurava a
ordem, pelo menos para certa camada social.
Hoje é o que se vê: polícias a darem o
exemplo de assalto a armazéns, polícias a
extorquirem dinheiro a motoristas per-
feitamente em ordem, polícias a maltrata-
rem gente na rua por qualquer razão menor
ou mesmo sem razão nenhuma, polícias a
serem presos em massa por descumprirem
as ordens e festejarem com rajadas a noite
de Natal, provocando mortes e ferimentos.
É um festival de delitos, que eu antes julgava
serem apenas executados por bandidos.

73
PEPETELA

E continua a ser verdade: só bandidos os


executam, mas hoje não há como distin-
guir uns dos outros, nem as fardas ajudam.
E o problema é que, se fosse só aqui, uma
pessoa justificava-se com o atraso natural,
a guerra, falta de quadros ou de matéria-
-prima, e outras razões que levam o nosso
polícia a situações de excepção. Mas é um
caso generalizado, com comprovativos nos
jornais de todo o mundo. É uma instituição
que oferece cada vez menos credibilidade.
Não é por acaso que alguns admitem que o
chefe do FBI tenha mandado matar JFK.
E no entanto ainda não se inventou outra
melhor para o mesmo objectivo. As chama-
das milícias dos países que se dizem socia-
listas só eram diferentes no nome. E che-
gamos ao nó do problema: se não acabo por
ter saudades do Rosas e do Silva, figuras
protagonistas de um tempo que ninguém
quer que volte, tenho pelo menos sauda-
des da minha ingenuidade perdida que
me fazia acreditar na integridade policial,
que ao menos era uma referência. Para não
fazer como Nga Fefa, vizinha da frente aqui

74
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

no largo, que diz sair cada vez menos à rua,


porque já não sabe se tem mais medo dos
ladrões se dos polícias . Já faltou mais para
os povos do mundo irem para a rua gritar:
<<Agarra que é polícia!>>

14-01-94

75
PEPETELA

12

As kínguilas

CADA CIDADE tem os seus símbolos, sejam


monumentos, tradições ou mitos, que evo-
cam a cidade e a representam perante o
mundo. Assim será Lisboa com o seu cas-
telo, Paris com a Torre Eiffel ou Munique
com a sua cerveja. Luanda estava a ganhar
um novo ex-líbris, que era a kínguila.
E chamo antes de mais a atenção para um
pormenor, é palavra esdrúxula e não grave
como é comum na língua portuguesa e regra
geral nas nossas da banda.
Porquê, não me perguntem. Antes da kín-
guila era a Fortaleza de S. Miguel, que apare-
cia nos livros ou nas evocações, relembrando
tempos antigos em que Luanda foi criada,

76
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

conquistada, reconquistada, libertada, reto-


mada. Havia sempre alterações na constru-
ção, de pau- a- pique para alvenaria, de taipa
para pedra e cal, mas era sempre a fortaleza
lá no alto do morro a evocar as primeiras
construções e o sítio onde começou a cidade.
Ultimamente, apareceu essa figura insó-
lita que rapidamente se tornou típica, para
quase se transformar no símbolo máximo
da cidade: a kínguila. E para não abusar da
vossa paciência vou já explicar-vos o que é
(ou era) essa figura. Trata-se geralmente
duma mulher que agita(va) maços de notas
de kwanzas, sempre as notas de maior valor
facial na altura (o que aqui muda muito, pois
é preciso ir acompanhando a inflação com
notas com cada vez mais zeros mas valendo
sempre menos), propondo a troca de dólares
(sobretudo), mas também escudos.
E a cambista de rua, que não é exclusivi-
dade nossa, pois em muitos países somos
abordados à porta do hotel com a eterna per-
gunta: <<Quer trocar dólares?>> A originali-
dade de Luanda é que, apesar de ser por lei
proibido, esse negócio se· faz(ia) às claras na

77
PEPETELA

rua, com as kínguilas a agitar as notas para


que não haja dúvidas.
Muito se especulou sobre os lucros dessas
mulheres que, às centenas e talvez mesmo aos
milhares, se espalha(va)m pelos passeios e
por toda a cidade, a fazer o seu nobre negó-
cio de distribuir divisas e kwanzas a preços de
matança, isto é, do mercado real, o único ver-
dadeiro, que aqui se chama paralelo. No banco,
teoricamente podia trocar- se a câmbio oficial,
muito mais barato para o valor do dólar, por
vezes cem vezes menos. O único problema,
que estávamos com ele, é que no banco nunca
havia divisas para trocar, excepto para alguns
muito poucos e bem conotados. O que signi-
fica que de facto o câmbio no banco é que era
o paralelo, subsidiário, de kaxexe, <<só para
inglês ver>>, como diriam os portugueses.
Aqui até antes pelo contrário, pois os
camones e outros bifes do FMI não aprecia-
vam o câmbio dito oficial tão baixo, por isso
antes não vissem. Mas o fazer- se ao contrá-
rio tornou -se cultura nacional.
As kínguilas pouco acabam por ganhar
com o negócio, pois de facto são meras

78
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

intermediárias. Os patrões estavam escon-


didos e diz- se que parte deles eram os tais
libaneses , senegaleses , malianos e outros
muçulmanos, arribados há pouco com a
economia de mercado, e alguns dos quais já
expulsos por entrarem ilegalmente no país.
Entretanto, já deixaram. duas mesquitas
erguidas, para se abençoar o capitalismo
selvagem.
Os patrões é que estabeleciam o câmbio
para o dia e de repente todas as kínguilas
compravam e vendiam as notas ao mesmo
valor. O que fazia também estabelecer os
preços dos produtos no mercado, pois tudo
vive em função do valor do dólar. Ainda não
percebi se há angolanos implicados nesse
grupo de notáveis que se juntavam numa
esquina ( e que só não se chama a esquina da
Wall Street porque é uma esquina mutável)
para decidirem da chuva e do bom tempo nas
nossas bolsas. O certo é que o banco nacio-
nal, farto de perder na concorrência com as
kínguilas, muito mais lestas e desburocrati-
zadas, foi desenterrar a lei que toda a gente
conhecia mas que esquecia.

79
PEPETELA

A partir de agora volta a ser proibido ven-


der dinheiro fora dos sítios autorizados, isto
é, bancos e casas de câmbio. As kínguilas
ainda estão pelas ruas, que ninguém tem
coragem de as tirar de lá, só que deixaram
de se abanar com o dinheiro. Ficam senta-
das nos passeios, aos grupos, muito recata-
damente. Os negócios voltaram aos tempos
antigos, escondidos por um ligeiro manto de
clandestinidade. Mas está tudo bem, pois se
salvam as aparências.
E como os bancos agora também já tro-
cam divisas a preços do paralelo, fica tudo
mais divertido, pois, por ironia do destino,
o banco conseguiu dar um golpe forte nas
kínguilas, mas estas impuseram ao banco a
sua taxa de câmbio. <<Chassez le naturel... >>
É de prever que, se continuar assim, essas
mulheres terão de voltar para os mercados
vender frescos, pois esta profissão já era.
Que me perdoem os economistas - gente
sempre muito séria e a tentar desesperada
e infrutiferamente provar que segue uma
ciência - , mas acho que o sumiço das kíngui-
las, a verificar-se, é uma perda de identidade

80
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

da Luanda do fim de século. O que vale é que


aqui nunca nada é definitivo e uma decisão
pode ser alterada porque alguém berrou
mais alto.
Como disse o meu amigo Gabriel Leitão,
as kínguilas eram uma prova de que vivía-
mos bem. Aos que nos lamentavam por tanta
miséria, tanto analfabetismo, tantos pedin-
tes, tantos desempregados ou estropiados,
Gabi contava a estória do brasileiro que,
desembarcando em Luanda, se maravilhava
com esta cidade única no mundo onde as
senhoras para se refrescarem usavam leques
de maços de milhões. Miséria, é? Também
há outras opiniões, como a do comandante
da polícia de Benguela. Este oficial disse que
em Benguela nunca houve kínguilas. E que
muita sorte tinham as de Luanda por em
Angola não haver delinquência, pois se fosse
no Rio de Janeiro, senhora que se abanasse
com notas era logo assaltada e ainda ficava
com uma faca espetada na barriga. Argu-
mento original a provar que de facto a nossa
delinquência ainda é criança, o que me dei-
xou literalmente abuamado, pois já a situava

81
PEPETELA

aos míticos níveis de Chicago . Afinal ainda


estamos mesmo muito subdesenvolvidos.
Existe na ilha de Luanda um monumento
às varinas, vindo do tempo colonial. Existe
um às kitandeiras, à frente do Mercado de
S. Paulo. Existe também um monumento às
heroínas da luta anticolonial. Está mesmo a
faltar um monumento à kínguila, ali à frente
do Roque Santeiro, o coração financeiro de
Angola. Quem sabe um dia ...

18-02-94

82
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

13

O kimhanda do sida

A MINHA CIDADE das acácias lançou mais


uma novidade para o mercado das notícias.
Um kimbanda, nome que traduz o curan-
deiro tradicional, teria descoberto a cura
do sida.
Uma rádio meio sensacionalista não lar-
gou o assunto e a própria televisão foi cobrir
o acontecimento. E logo as opiniões se divi-
diram: uns que era possível haver alguma
verdade nisso e que mais uma vez Benguela
dava uma contribuição importante à ciência
universal; outros nem pensar, o kimbanda
primeiro tinha de apresentar as pessoas
curadas e com anterior diagnóstico confir-
mado de terem sido de facto portadoras do

83
PEPETELA

vírus. Como é fácil de imaginar, as discus-


sões e makas não param até hoje. Muito con-
dimentadas pela habitual má-língua, gozo e
zombaria à mistura.
Os que não acharam graça à estória foram
os médicos. Entrevistados pela rádio ou tele-
visão, são categóricos: nem depois de mor-
tos podem crer nas capacidades do senhor
Chitekulu, que é como se chama o kimbanda
benguelense. Ao que ele replica indirecta-
mente que isso é apenas uma reacção eli-
tista, pois os médicos nunca aceitaram os
kimbandas como colegas .
Lembro- me que nos primeiros anos da
independência houve umas tentativas de
reuniões conjuntas em que todos poderiam
aprender uns com os outros, mas o espí-
rito sectário impediu resultados positivos.
De qualquer modo, esta é uma maka uni-
versal e, mesmo nos <<países civilizados>>
(compreenda-se a Europa), <<bruxos>>, endi-
reitas e médicos não comem à mesma mesa.
São conhecidas as contribuições dos
kimbandas à cura duma série de doenças,
em especial pela introdução na medicina

84
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

moderna de grande quantidade de folhas e


raízes de inegável valor terapêutico. Tam-
bém no campo das doenças mentais tem
havido resultados que dificilmente se
podem negar, chamem-lhe sugestão ou
não. E há um famoso kimbanda do Dombe
Grande (localidade próxima de Benguela)
que se especializou em assuntos políticos:
governante que se queira manter no posto
faz- lhe uma visita, aceita sujeitar-se a umas
práticas complicadas e secretas (evidente-
mente, pois têm direitos de autor), paga uma
propina elevada e tem assegurado o lugar por
mais uns anos.
Muitos membros da oposição acusam
esse kimbanda de manter viva uma classe
política que já devia estar há muito tempo na
reforma, mas isso já são makas em que não
me meto. Ultimamente, surgiu uma nova
classe de kimbandas, nas empresas que se
chamam igrejas electrónicas, que realizam
curas milagrosas nos palcos dos cinemas,
fazendo séria concorrência aos médicos e
aos kimbandas tradicionais (e isto não só
em Angola).

85
PEPETELA

Quando eu era miúdo era conhecido que


qualquer equipa de futebol tinha de levar
uma bola ao kimbanda para ele a tratar con-
venientemente. Por isso as equipas dis-
putavam tanto o direito de jogar com a sua
própria bola. Penso que hoje é prática gene-
ralizada essa questão dos feitiços no futebol,
embora já não se faça através de tratamentos
de bola, mas de forma mais sofisticada.
Por todas essas razões, ouvi a notícia sem
preconceitos e tentei informar- me melhor
sobre as capacidades do senhor Chitekulu.
E foi com certa ansiedade que esperei a
entrevista que ele ia dar à televisão, depois
de uma série de opiniões de rua que eram
desfavoráveis. O grande problema das pes-
soas interrogadas, quer fossem médicos ou
não, é a falta de crença que hoje existe no
país. Assim, quase todos se referiam ao facto
de ser impossível descobrir- se a cura do sida
em Angola se os países mais avançados e os
grandes trutas da ciência até agora descon-
seguiram. Falta de confiança que me irrita.
Dizem os entendidos que essa descrença
vem de tantos desaires do país, o que faz à

86
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

partida as pessoas desdenharem das nos-


sas capacidades . Já passou o tempo em que
Angola era o máximo, terra de todos os
milagres e todas as riquezas, destinada a ser
uma grande potência e não só em África.
Agora estamos fracos e já nem na capaci-
dade dos nossos sábios acreditamos. Daí o
desmoralizar-se qualquer iniciativa, o
duvidar-se de qualquer ideia, o diminuir-se
qualquer plano de reforma antes mesmo de
ele ser tentado.
Penso que foi contra esse estado de espí-
rito que o senhor Chitekulu se quis opor,
para voltar a dar confiança às pessoas deste
país que se procura. Atitude nacionalista
no bom sentido da palavra, pois. O que me
fez logo simpatizar com o kimbanda e a sua
ousadia.
Razões mais que suficientes para espe-
rar com ansiedade as provas que ele poderia
certamente apresentar e que foram anuncia-
das para um programa especial. Liguei a TV,
saboreando já as imagens de pessoas felizes
a dizer que de facto tinham estado conde-
nadas pela terrível doença, mas que agora

87
PEPETELA

se encontravam de perfeita saúde, graças à


ciência do kimbanda, para o qual surgiria
logo uma organização não governamental a
propor o Prémio Nobel.
Imaginei qual seria a reacção da chamada
comunidade internacional ao ser informada
de que um kimbanda iria a Oslo ou Esto-
colmo, vestido de peles de cabrito, receber
do rei ou rainha (estou um bocado fora des-
sas coisas) o tão apetecido prémio que os
escritores de língua portuguesa perseguem
duma maneira tão impudica e sem resultado.
O kimbanda sempre apareceu na televisão.
O português que ele falava era tão estropiado
que não dava para perceber tudo (antes falasse
em umbundu). Mas disse que as provas só
seriam apresentadas mais tarde . E à sacra-
mental pergunta, quem fez o diagnóstico ante-
rior, não respondeu. O entrevistador tinha
preconceitos, disse cá para mim, já tinha sido
industriado pela classe médica conservadora
e céptica da nossa genialidade benguelense.
Mas o meu orgulho de conterrâneo ficou
um pouco abalado quando o ouvi dizer que
os sintomas que os doentes apresentavam

88
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

antes da cura era terem os olhos amarelos.


Não sou especialista, nem de longe, mas era
um sintoma que não conhecia como sendo
o dos portadores do vírus. Comecei a ver o
Prémio Nobel a afastar-se de Benguela.
Mas uma ideia ainda me consola: pode ser
que ele esteja um pouco confundido e tenha
descoberto a cura da hepatite. Pois não é a
hepatite (que eu ainda chamo icterícia) que
põe os olhos amarelos? Já havia o nosso bru-
tutu, uma raiz milagrosa, que limpa o fígado
de todos os vestígios de icterícia. Pode ser
que ele tenha descoberto outra raiz. Talvez
não seja caso para Nobel, mas seria uma des-
coberta importante, tudo para honra desta
terra, que bem anda a precisar de vitórias
destas. Se todos juntos fizermos um feitiço
bem forte para acreditar, torna-se verdade.

27-03-94

89
PEPETELA

14

Meninos da rua

JOANA DIZ TER dez anos de idade, embora


aparente menos no corpo e mais na cara.
Franzina, os bracitos angulosos e finos, com
marcas de muitos meses ou anos de fome.
A cara vincada, os cabelos amarelados e
aquele rictus que nunca larga os lábios, dão-
-lhe no entanto um ar precocemente enve-
lhecido. Joana já foi criança, quando nasceu
e viveu os seus primeiros anos na verde serra
da Gabela. Não sabia o que se passava para
além dos espaços que rodeavam a cidade
onde crescia, e o seu problema era brincar e
estudar. O pai trazia todos os meses para casa
o salário que permitia à família alimentar-se
e vestir decentemente . Joana nunca andou

90
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

descalça, como agora. Por isso ainda hoje se


queixa, os pés não estão habituados a esse
asfalto que queima.
Um dia a sua vida mudou. Os pais, assus-
tados com a guerra que ameaçava chegar à
cidade, decidiram fugir para Luanda, onde
tinham parentes. Arrumaram alguns bens
e vieram numa camioneta, trazendo os três
filhos. Joana nunca tinha saído da Gabela e
não parava de olhar para os novos horizon-
tes que desfilavam perante os seus olhos.
Em cima da carga, com mais vinte pes-
soas, podia ver tudo. De repente houve uma
explosão e depois muitas outras. Nem sabe
o que se passou, deu consigo escondida no
mato, no meio de corpos sangrentos. Tinha
sido uma emboscada. Puxaram-na dali e ela
nem tinha força para chorar. Não encontrava
os pais e nem lhe deram tempo, foge, foge.
Perdeu-se da família, não chegou a saber se
estavam vivos ou não.
De boleia em boleia, chegou a Luanda.
As pessoas que a ajudaram a fugir tam-
bém se perderam dela na efervescência da
capital. Sabe que tem família em Luanda,

91
PEPETELA

mas não conhece nomes nem endereços,


os pais é que sabiam. Andou aí pelas ruas,
comendo restos de comida nos conten-
tores do lixo, obtendo um naco de pão por
vezes numa porta mais amiga. Dormia com
os outros debaixo das arcadas da Marginal,
por vezes na Mutamba, que hoje às dez da
noite são autênticos dormitórios de crian-
ças. Até que conheceu o Kapuepue, miúdo
sem uma perna, perdida numa mina, e que
anda aos saltinhos agarrado a um pau que lhe
serve de muleta. Encontraram - se quando no
mesmo contentor do lixo procuravam algo
para acalmar a fome. O Kapuepue disse-lhe
que o melhor lugar para viver era na Ilha de
Luanda, onde já havia muitos meninos sem
lar como eles. Na Ilha tinham a praia onde se
banhar e muitos restaurantes e lanchonetes.
Sempre havia restos mais suculentos que os
da cidade miserável.
E Joana foi com Kapuepue para a Ilha.
Dormiam primeiro ao lado dos barcos, nas
noites em que eles não partiam para a pesca.
Mas a Ilha não era o paraíso descrito por
Kapuepue. Ou talvez fosse ela que entendeu

92
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

mal. Os restos de comida dos restaurantes


eram disputados por centenas de miúdos que
também lá viviam ao relento. E os mais for-
tes roubavam os outros. Havia grupos orga-
nizados que faziam pequenos assaltos aos
banhistas. Por vezes vinha a polícia e perse-
guia todos, usando esse pretexto para bater
a torto e a direito, e ficar com o dinheiro ou
bens que algum tivesse. Joana e Kapuepue
pediam esmola. Não havia muitas meninas
e por isso alguma gente se condoía. Mas raro
era o dia que não tinham de dar quase tudo o
que ganhavam aos mais fortes. E a fome não
era repartida.
Aconteceu a primeira vez e depois tornou-
-se um hábito. Dois miúdos de treze ou
catorze anos violaram-na, perante a impo-
tência do pequeno Kapuepue. Cada dia
aparecia um grupo de miúdos para repetir
a dose. E se ela refilava, partiam logo para a
pancada. As mulheres só têm que obede-
cer, diziam. Joana adquiriu a indiferença
dos adultos muito sábios. Eu deixo, mas
depois me dá comida. E eles acabavam por
lhe dar qualquer coisa do que tinham obtido.

93
PEPETELA

Chegaram pois a um entendimento com os


mais fortes, de que beneficiava também o
Kapuepue, pois ela repartia com ele. E pouco
a pouco, os maiores foram deixando que eles
ficassem com as esmolas, ganhando a pro-
tecção do grupo.
Que se lembre, teve só um problema de
consciência grave, nestes dois anos que vive
na Ilha. Alguém do grupo matou à punha-
lada um miúdo, para ficar com o rádio que a
vítima roubara a um turista que se bronzeava
na praia. Joana viu. Não achou bem que se
matasse uma pessoa só por causa dum rádio
a pilhas. Tinham talvez morto os pais dela e
também por alguma razão menor, certamente
por irem no carro errado. As conversas dos
meninos eram sempre de guerra e eu te mato
e mato mais aquele também. Ela achava isso
era só conversa. Afinal não. Quando apare-
cia a oportunidade, alguns podiam mesmo
matar. Achou mal, mas calou. Falou só ao
Kapuepue, que lhe aconselhou, não digas
nada, nem aos mais velhos que te vêm pro-
curar o corpo. Ela calou mesmo quando veio
a polícia e prendeu uma porção de miúdos,

94
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

deixando o assassino de fora. Ela sabia, esse


era mau e a polícia devia levá-lo. Mas já tinha
aprendido que nesta terra o melhor é ficar
calado, para sobreviver. Engoliu a verdade,
deixou levar os outros que ficaram presos
três dias e depois foram soltos. Mas volta-
ram ainda mais magros e com marcas de
muita porrada. Joana teve pena dos coitados
e ficou com mais raiva ainda do assassino,
que se ria nas costas deles, os <<buelos>> que
se deixaram apanhar. Verdade, verdade, ela
confessou, também sentiu alguma vergonha
por não ter denunciado o culpado . Mas ia
adiantar?
Joana fala destas coisas com toda a calma e
sem amargura. Com uma voz de quem sabe
muito e com a resignação dos velhos dos
Kimbos. Querem o corpo dela? Por que não
dar, se depois lhe retribuem com qualquer
pedaço de comida ou, o que é mais impor-
tante, com protecção? Também já tentou
roubar na praia. Era um par de sandálias.
Para descansar os pés das queimaduras do
asfalto. Mas Kapuepue percebeu e disse não.
Ele não poderia fugir, se ela fosse descoberta.

95
PEPETELA

E Joana desistiu, pela muita amizade que lhe


tem. Só por isso.
Estupidamente lhe perguntei, que pensas
fazer pelo País quando fores grande? Ela não
respondeu, só encolheu um ombro. E ou foi
imaginação minha, provocada por qualquer
má consciência, ou foi mesmo uma intuição,
o certo é que nos olhos dela li outra pergunta:
e que fez o País de mim?

01-05-94

96
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

15

Língua e sapateado

ESTÁVAMOS EM PARIS, atirados lá para um


hotel dos arrabaldes, quando o João Ubaldo
Ribeiro, escritor brasileiro que para além de
outras qualidades relevantes é meu amigo,
teve a ideia. Formarmos um duo de sapa-
teado, para ir recolher uns cobres no metro,
porque o dinheiro que tínhamos dificilmente
chegava para os <<whiskies>> que generosa-
mente consumíamos e que o bar cobrava por
somas astronómicas . Rapidamente arranjou
um nome para o duo: Pepé e Babal (leia -se em
brasileiro: Babau). Pensando melhor, sugeri
que o poeta moçambicano José Craveirinha,
já que andava todo vaidos? com um chapéu
que comprou com o dinheiro do Prémio

97
PEPETELA

Camões, fizesse também parte do grupo.


Cabia-lhe a respeitável função de estender
o chapéu aos espectadores para recolher os
francos. Para isso ajudava a sua idade e o ar
sério de quem não ia beber o dinheiro logo
ali na tasca da esquina (Craveirinha é um
dos raros casos em que coincide o aspecto de
abstémio com a total ausência de gosto pelo
álcool, mau grado algumas línguas viperinas
que aproveito para denunciar já aqui).
Movidos por natural e louvável genero-
sidade, quisemos integrar também o cabo-
-verdiano Germano de Almeida, para não
deixar ninguém de fora e porque ele se can-
didatava despudoradamente a fazer parte do
grupo. Reconhecemos que poderia ser muito
útil nestas coisas por vários motivos: pri-
meiro, tem um corpanzil que mete respeito
e umas mãos que dão a volta a qualquer pes-
coço; segundo, é possuidor dum passaporte
diplomático que por acaso (e só por acaso)
não lhe valeu de muito. Tinha pois lugar
na equipa como guarda-costas. Já não deu
tempo para debatermos com profundidade,
como estas difíceis negociações sempre

98
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

exigem, o estatuto do português Mário de


Carvalho, mas a sua formação apontaria cer-
tamente para ser o consultor jurídico, pois,
atendendo às perspectivas de sucesso inter-
nacional imediato que o grupo alcançaria,
precisávamos de outro advogado na equipa,
sabido que o Germano, também jurista, ia
estar assoberbado de trabalho em afastar os
fãs e tietes que sem a sua intimidatória pre-
sença nos sufocariam.
O pior foi quando tentámos o primeiro
ensaio, ali mesmo no <<hall>> do hotel.
Dados os primeiros passos, notámos o frio
no ambiente. Os franceses da recepção e os
hóspedes deitaram-nos tais olhares repro-
vadores, provavelmente lembrando-se dos
avisos de Giscard d'Estaing sobre a iminente
invasão da França pelos novos bárbaros,
que batemos envergonhadamente em reti-
rada para os copos do bar, onde afogámos as
nossas mágoas e tentámos ficar ainda mais
pequenos. O Germano desconseguia, por-
que se ficavam sempre a ver os pés enormes.
Depois de muitos debates, desistimos da
ideia de nos apresentarmos na estação do

99
PEPETELA

Chatelet, que é o local ideal para o Inverno.


Decidimos adiar a apresentação pública para
o Rossio de Lisboa, pois sabe-se que os portu-
gueses são muito mais cultos que os ignoran-
tes franceses e iriam apreciar o espectáculo.
A talho de foice, basta dizer que estive-
mos ostensivamente à frente duma livraria
famosa de Paris durante mais de dez minutos
e nenhum indígena se aproximou para nos
pedir um autógrafo, imaginem. Em Lisboa ou
no Rio de Janeiro isso é inconcebível... Mas
afazeres vários impediram - nos de realizar a
apresentação no Rossio, por sobrecarga de
programas, mau tempo e outros azares que
não vêm para o caso. Mas ainda não perde-
mos a esperança de fazer o maior sucesso.
Ao menos que seja no sapateado!
Não disse no princípio, mas pareceu-me
tão óbvio que nem ousei ofender os leitores.
Que faziam cinco pobres escritores, qua-
tro deles de países tropicais, a enfrentar o
Inverno da Europa? Claro, tinha de ser, a
falar de lusofonia, nome bárbaro e sem sen-
tido, que apenas pretende imitar os fran-
ceses mas que a nossa falta de. imaginação

100
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

ainda não conseguiu substituir. Exige-se


concurso público com avultado prémio para
quem invente um melhor termo que faça
esta ligação entre os sete países onde se fala
português. Como estávamos juntos e nos
damos bem, é evidente que tínhamos de
matar o tempo. Há quem pense certamente que
cinco escritores reunidos estão sempre
em secretíssimos e elevadíssimos conciliá-
bulos culturais, ou discutindo a influência
de Joyce na moderna literatura europeia ou
a de Camões na criação do imaginário por-
tuguês. Como se vê pelo presente exemplo,
as conversas são muito mais interessantes,
quando não descambam para a miséria dos
direitos de autor que nos pagam os forre-
tas dos editores, sempre a se queixarem que
estão com as calças na mão .
Estávamos pois numa de lusofonia em
Paris e deixem-me dizer, a propósito destas
coisas de língua, que estou um pouco farto
dos discursos sobre a dita, se me permitem
a confissão. E acho que todos os escritores.
Por isso nos entretemos com outros assun-
tos, como por exemplo sapateado. Porque

101
PEPETELA

quem tem a bufunfa, kumbu ou dinheiro (para


usar várias versões da mesma palavra,
todas portuguesíssimas) é que tem de tomar
a iniciativa de criar ou pôr a funcionar as
instituições que permitam o intercâmbio e
o fortalecimento da língua comum. Não são
os escritores, que esses até fazem o que lhes
compete. Os poderosos que façam também o
seu trabalho.
Esclarecido este ponto de princípio,
gostaria de dizer que Portugal nos invadiu
durante os séculos de todas as maneiras e
feitios. Sem ser maniqueísta, algumas inva-
sões até foram boas, outras nem tanto, algu-
mas mesmo bárbaras. A última invasão que
conheço, e que tem a ver com a língua é a
onda de << ...e prontos!>> que grassa por aqui,
vinda da ex-metrópole. Na rádio, na televi-
são, na rua ou em casa, só se ouvem frases do
género: <<Fui à ilha ... e prontos!. .. Estava lá
o Rui que ... e prontos!. .. me disse.>> Etc. ...
Como sou muito vingativo e acho que
é preciso dar a réplica, proponho que se
exporte para Portugal a nossa última inven-
ção e que também já virou onda. São as três

102
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

palavras que têm sempre de aparecer juntas


<<mas no entanto>>. Exemplo: <<Não tenho
dinheiro, mas no entanto vou comprar um
carro novo.>> Redundemos portanto em
conjunto, como bons irmãos .

05-06 -94

103
PEPETELA

16

Os Malucos

AS SOCIEDADES têm atitudes diferentes em


relação aos deficientes mentais e estas ati-
tudes também evoluem com o tempo. Basta
lembrar os manicómios monstruosos da
Europa há quatro séculos e a forma como
essa mesma Europa considera hoje os lou-
cos. (Palavra que aliás só é usada na língua-
gem popular, preferindo - se termos mais
científicos. Será?)
Os homens de letras e recentemente os das
telenovelas usam a personagem do maluco da
aldeia para dizer algumas verdades proibidas
ou proféticas, funcionando um pouco como o
coro da tragédia grega. Em Luanda, foi mon-
tada uma peça de teatro pelo Grupo Elinga,

104
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

chamada sugestivamente <<Restos de Lixo>>


e que trata dum maluco que se alimenta dos
restos dos contentores, até que acaba por
comer um pó branco que pensa ser farinha
ou açúcar, e afinal era um veneno qualquer.
Triste, mas perfeitamente plausível.
Aqui na banda os malucos passam quase
despercebidos, hoje em dia, tal é a profusão
deles nas cidades, ajuntarem-se à variedade de
fenómenos insólitos que chamam cons-
tantemente a nossa atenção. Realmente, só
o estrangeiro acabado de chegar é que repara
na quantidade de pessoas sujas, andrajosas,
com cabelos em farripas atiradas para todos
os lados, que pululam pelas ruas, em parti-
cular chafurdando nos contentores do lixo,
à procura de objectos que ainda possam ser
úteis ou restos de comida. Entre essas pes-
soas, algumas são loucas, ou estão descom-
pensadas, como diz um psiquiatra conhecido
cá do burgo. A maior parte são mulheres e
crianças fugidas da guerra e sem quaisquer
meios de subsistência.
Pouco depois da independência, o
termo carinhoso para o. maluco era aliás

105
PEPETELA

<<cacimbado>>. Dizia-se: fulano de tal vol-


tou do Cunene cacimbado, por tanto ver
passar os Mirages sul-africanos por cima
da cabeça; sicrano cacimbou de vez porque
a mulher foi com outro; etc. Mas a guerra era
a principal razão dos cacimbanços. Pudera!
Nem os heróis são de ferro, muito menos os
pobres mortais que se vêem há tantos anos
envolvidos na <<nobre arte da destruição>>,
ou sofrendo as suas consequências. Por isso
eu digo, se houver algum angolano em per-
feito estado de espírito, que se apresente
para receber a medalha da Insensibilidade e
Irresponsabilidade Total.
Dizia que os malucos pouco se distinguem
dos que ainda não estão tanto. Mas há uns
mais originais, como os que andam total-
mente nus pelas ruas, sem terem sequer
cabelos longos a tapar as partes como Lady
Godiva. Essa é que os estrangeiros não
engolem e ficam de olhos esbugalhados
por verem que nos nem quase reparamos
no que para eles é um escândalo. Sobre-
tudo se se põem a urinar em plena praça
pública, não pudicamente contra um muro,

106
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

mas descaradamente para a rua e os car-


ros que passem no momento. Se há polícia
na zona, finge que não vê. Claro, ia fazer
mais como então? Levá-lo para a cadeia?
Elas estão cheias de delinquentes perigo-
sos, não há espaço para inofensivos. Para o
manicómio? Depois de polémicas acadé-
micas sobre se se devia internar os cacim-
bados sem nenhumas condições nem de
atendimento nem de comida, ou deixá-los
à solta a desenrascarem - se como puderem,
com mudanças súbitas de política conforme
era nomeado um ou outro para director do
hospital psiquiátrico, acabou por. termi-
nar a pendência, da forma habitual de cá da
banda: sendo difícil chegar a uma conclusão
de consenso, esqueceu-se pura e simples-
mente a maka e cada um faz como quer. Não
é a isso que chamam liberalismo? Por isso o
polícia deixa o maluco urinar à vontade na
via pública e provavelmente até nem sabe
que isso é atentado aos costumes. No que
provavelmente tem razão: se há tantos aten-
tados tão mais graves que ficam impunes e se
já se tornou um hábito utilizar as esquinas e

107
PEPETELA

ruas em vez dos inexistentes urinóis, por-


que há-de ser o maluco a pagar? E há uns
cacimbados praticantes de nudismo que são
asseados. Não é raro ver-se algum aprovei-
tar a água que sai de um cano roto (e eles são
tantos) para se banhar ao ar livre. O único
problema é a poeira levantada pelos car-
ros, que imediatamente se lhe gruda à pele
molhada, mas é melhor do que nada.
Vem tudo isto a propósito dum maluco
do meu bairro, com que me cruzo todas as
manhãs ao fazer os meus exercícios físi-
cos e que se chama Sô Apolónio . Já de certa
idade, impecavelmente vestido, com farto
bigode já grisalho, e transportando inva-
riavelmente uma vasilha de plástico . Tam-
bém procura coisas nos contentores de lixo,
mas com cuidado para não se sujar. Tem
uma bengala com um prego na ponta, com o
que retira os objectos que lhe possam inte-
ressar. De tanto o ver com tal vasilha, um
dia parei mesmo para conversar. Durante
anos apenas nos cumprimentávamos, eu
com um bom dia e ele com o invariável há
cada maduro... Evidentemente que. para

108
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

ele o maluco sou eu, que há anos corro sem


nenhum objectivo visível.
Perguntei-lhe dessa vez à queima-roupa,
mas para que é esse recipiente que está
sempre vazio? Ele respondeu que era para
encher de vinho. Mas você não encontra
vinho aí nos contentores, disse eu, as pes-
soas só deitam as garrafas vazias. Ele não se
desconcertou. e respondeu. candidamente:
já vi tanta coisa esquisita nesses contento-
res, até corpos de crianças, porque não um dia
escorre um vinho. tinto? Vocês. tinham
réplica a isto? Eu preferi continuar a correr.
No outro dia, voltei a parar, mas para assis-
tir a uma discussão entre Sô Apolónio e dois
jovens que se tinham metido com ele. Ele
disparatou como habitualmente, subindo a
árvore genealógica dos rapazes com os adjec-
tivos que se imaginam. Mas de repente parou,
fixou o olhar num deles e disse:
- Eu te conheço. O teu pai não é ministro?
O rapaz deu uma gargalhada. O amigo
secundou-o.
-Você é mesmo boelo! Se o meu pai fosse
ministro, eu estava aqui, com essa. idade de

109
PEPETELA

quase ir para a tropa? Estava com bolsa de


estudo no estrangeiro há bué de tempo e nunca
podia ir para a guerra.
Sô Apolónio apoiou com a cabeça, só disse
suavemente, tem razão, estou errado , você
não pode ser filho de ministro , até por-
que está a andar a pé. Sô Apolónio é louco,
maluco, cacimbado, descompensado , defi-
ciente mental, paranóico ou esquizofrénico,
chamem o que quiserem, mas burro é que
ele não é.

08-07-94

110
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

17

As reinaugurações

OS PODERES POLÍTICOS têm uma particular


atracção pelas fitinhas que se cortam nas
inaugurações, sobretudo se há eleições por
perto. Mas alguns ultrapassam isso, para
chegar ao que se poderia chamar obsessão,
mesmo sem estarem em campanha elei-
toral. Como conta a estória de certo rei do
nosso tempo.
O rei talvez não tivesse direito a tão pom-
poso título, pois o tamanho e importân-
cia do seu reino não o justificavam. Prova-
velmente nem condado devia ser. Embora
haja príncipes que só governam meia
cidade. Para o caso não interessa, porque
a tradição o nomeou rei e todos o tratavam

111
PEPETELA

pela majestade correspondente. O reino


resumia -se a umas centenas de cubatas, uma
escola, um pequeno hospital, uma esquadra
de polícia com prisão contígua, um café-
-bar, um restaurante para os viajantes da
estrada principal a caminho de outros rei-
nos, os correios e, última jóia da coroa, um
posto de bombeiros. Esqueci os indispensá-
veis cemitério e padaria. Os habitantes deste
reino liliputiano eram camponeses, artesãos
e alguns comerciantes. Como a terra era fér-
til, até nem passavam mal e podiam pagar os
impostos sem grandes sacrifícios. Diga - se em
abono da verdade que o rei e a reduzida
corte não eram um sorvedouro da riqueza
pública, tudo gente bastante moderada nos
gastos e apetite, o que acaba por dar uma
patina antiquada à estória. Irrealista mesmo,
quem sabe.
O único facto digno de menção na modorra
de tal país é que, já no fim da vida, o rei des-
cobriu o <<marketing>> político. Até aí tinha
governado como lhe ensinara a tradição e
a família, sem grandes preocupações pelos
interesses ou sentimentos dos. cidadãos.

112
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

Mas desde que um livro (ou foi um vídeo,


para ser mais moderno?) lhe caiu nas mãos,
a sua concepção se transformou, aprendeu
que em política só existe aquilo que parece
ser ou que aparece; até gastou as suas econo-
mias para mandar vir um professor conhe-
cido dessa especialidade (brasileiro, para
que conste), o qual passou uns dias no reino,
dando - lhe umas aulas. E ao príncipe her-
deiro, evidentemente.
Num piscar de olhos, mudou a rotina.
Tendo apreendido as novas ideias, o rei pas-
sou a improvisar um festival de inaugura-
ções. A esquadra de polícia foi abastecida de
um novo banco, onde os detidos podiam
descansar antes de serem chamados para os
interrogatórios? Pois tem de haver reinau-
guração da esquadra da polícia, com banda
de música, tolerância de ponto durante uma
hora, fitinha para cortar. O mesmo se o qua-
dro preto da escola foi reparado, ou se come-
çou a cavar-se uma nova fileira de sepul-
turas no cemitério. E o rei fazia discurso,
breve, porque, coitado, já não tinha idade
para grandes fôlegos. Como ensina a teoria,

113
PEPETELA

no discurso devia repetir com ênfase os


importantes ganhos sociais adquiridos pelo
povo durante a sua governação, não fosse a
História mais tarde esquecê-los. Tinha no
entanto a delicadeza de nunca fazer compa-
rações entre o progresso actual e o marasmo
do reinado do finado seu pai, não só por res-
peito filial, mas também por necessidade de
defender o bom nome da dinastia.
A dado momento pôs-se um problema
bicudo, quando o dono do restaurante resol-
veu pintar o seu comércio com uma nova cor
e pediu ao rei para fazer a reinauguração.
Deveria ir o rei reinaugurar uma propriedade
privada? Até aí só o fizera às obras do Estado.
Ainda escreveu ao professor, pedindo con-
selho, mas o Brasil ficava longe, só uma vez
por semana passava o carro a apanhar as car-
tas para as expedir para a cidade mais pró-
xima, onde apanhavam boleia dos correios
do país vizinho. A resposta nunca mais vinha
e o comerciante estava apressado, o restau-
rante fechado à espera duma decisão. O rei
teve de se arriscar sozinho. E resolveu ace-
der ao pedido do restaurador, porque, se o

114
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

que interessava era dar publicidade a todas


as realizações do país, a iniciativa do comer-
ciante devia merecer apoio. E lá foi acompa-
nhado pela charanga de música e o príncipe
herdeiro a reinaugurar o restaurante.
Tão grande generosidade ou sentido do
sagrado dever de Estado estabeleceu um pre-
cedente . Uma nova vaga de reinaugurações
se abateu sobre o reino. Reinaugurava-se
uma quinta, porque o dono tinha comprado
uma enxada nova. Chegou a reinaugurar-
-se o bar, porque passou a encomendar uma
marca. de cerveja diferente. E, claro, nin-
guém bebeu antes que o rei desse o primeiro
gole. Nunca o soberano mostrou tanto a sua
majestade na rua, requisitado para todas as
casas e propriedades. Só não sei, porque a
moral da estória não o diz, se se tornou mais
popular. Como não havia eleições para novo
monarca, é difícil ajuizar.
Presumo que certos cérebros viperinos
estejam já a fazer-me processos de intenção,
ao contar esta estória. Em que reino estou a
pensar, que rei quero atingir: A esses espí-
ritos insanos, que só compreendem a ficção

115
PEPETELA

Colada ao real, devo dizer que podem tirar


o seu cavalinho da chuva. O país em que
vocês estão a pensar é muito diferente, é um
enorme reino, a terra até é fértil mas cada vez
menos gente vive dela e o seu trabalho não
dá para pagar impostos, que, aliás, ninguém
tem competência para exigir. E não existem
os hábitos frugais dos principais persona-
gens desta fábula, muito longe disso.
Quanto a semelhanças, até pode haver
algumas, que são as coincidências habituais
da ficção. Mas mesmo nas semelhanças há
diferenças. Por exemplo, nessa terra em que
vocês estão a pensar, as reinaugurações têm
motivos diferentes. Eu explico. Há um par-
que que tem duzentos anos. Sofre obras de
restauro, põe-se uns baloiços para as crian-
ças e é inaugurado. Há as fitinhas a cortar,
os discursos, a televisão a filmar. Ao fim
de seis meses de funcionamento, o parque
virou mato, porque nunca mais ninguém o
regou, as crianças e os passantes arranca-
ram as plantas, os moradores à volta deitam
para lá o lixo e a polícia deixa. O parque fica
inutilizável durante anos. Depois alguém se

116
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

lembra que ali já existiu um parque e seria


bom que voltasse a funcionar. Congrega-se
boas vontades, repara-se, pinta-se, planta-
-se e reinaugura-se. Novas fitas, novos dis-
cursos. Funciona até que o desleixo o volte a
fazer desaparecer.
Como vêem, o reino liliputiano que inven-
tei é completamente diferente e só mentes
deformadas por um espírito maligno podem
encontrar paralelismos.

11-08-94

117
PEPETELA

18

Crónica dos bichos

BEM DIZEM os mais velhos que quando numa


terra começam a acontecer coisas estranhas,
elas ocorrem em catadupas, como se umas
originassem as outras e deixasse de haver
um regulador universal (se é que alguma vez
houve). Lembro-me duma galinha que nas-
ceu com dentes, em Benguela, tinha eu uns
doze anos de idade. Depois notei que afinal
isso não era exclusivo da minha terra e havia
em Portugal o Entroncamento, onde quase
todos os dias era produzido um fenómeno,
embora mais tarde tivesse sido confirmado
que afinal essa fama era bastante ajudada
por um bem humorado jornalista local.
Com ajuda ou não de certas pessoas, o facto

118
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

é que quando começam a aparecer objectos


estranhos no espaço, é como se uma praga
de discos voadores se abatesse sobre deter-
minado território. Bem como os temporais
ou terramotos que nunca vêm isolados. Para
não falar dos aviões que, quando cai um, há
sempre outro que se lhe segue.
Pois aqui na nguimbi deu de acontecer
também coisas esquisitas. Já tive oportuni-
dade de escrever sobre a estranha aventura
dum pobre homem que viu metade do seu
corpo transformado em cobra. Os órgãos de
informação locais deram pouca publicidade
a esse caso, provavelmente porque na época
estavam mais interessados em outros não
menos estranhos, como a guerra, por exem-
plo, ou o novo pacote de medidas governa-
mentais para aniquilar de vez e definitiva-
mente (como foi doutamente dito) a inflação.
Sobre este último caso, aliás, há que referir
que estes programas económicos também
nunca aparecem isolados. Até parece que
políticos e economistas lhe tomam o gosto
e não podem passar um ano sem eles. Que o
diga o Brasil, como no futebol, campeão de

119
PEPETELA

planos económicos, só que neste caso muito


mais que tetra.
Mas eu ia contar dois fenómenos estra-
nhos que aconteceram aqui na terra. Para
ser exacto, um aconteceu e outro continua
acontecendo. Comecemos por este último.
Reportam jornalistas do Cuanza Sul que um
leão resolveu dar cabo de rebanhos inteiros
de cabritos. As estatísticas são um pouco
confusas, mas as diferentes reportagens
apontam para uma média de dez cabritos
por dia nos últimos três meses. O que nos
levanta logo um problema: ou o leão deixou
de matar apenas para comer ou os cabritos
estão tão magrinhos que são precisos dez
para alimentar um leão normal. Sinal dos
tempos? Passemos.
As autoridades locais fizeram recurso a
caçadores que desconseguiram de dar cabo
do bicho. O responsável da região aventou a
hipótese de se tratar de leão de velho, isto é,
um animal que era tratado e alimentado por
um velho, que se servia dele para práticas de
caça com magias pelo meio. Tendo morrido o
dono, a viúva deixou de cuidar do bicho e este

120
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

revoltou-se, passando a tratar ele próprio da


sua mesa. Os mais velhos dizem que este tipo
de leões, propriedade de humanos, se pode
tornar perigosa, pois vai acabar por enjoar a
carne de cabrito e virar- se para a muito mais
apetecível carne humana, para satisfazer o
despeito. Todos os dias apareciam apelos do
Cuanza Sul na rádio, o que assustou muita
gente. O Administrador resolveu utilizar os
grandes meios. Juntou os velhos, os homens
que conhecem muitos produtos e maneiras
secretas de resolver os mambos, e disse-lhes
que a tranquilidade da região estava nas
mãos deles, que procedessem como enten-
dessem, tinham toda a liberdade de acção,
mas que os livrassem do peçonhento bicha-
rouco. Nessa caçada memorável só podiam
participar os mais velhos que utilizam a
magia, como os leitores imediatamente
perceberam, camuflada por algumas armas
tradicionais. Os velhos repartiram-se pelo
terreno, montaram emboscadas, fizeram
armadilhas, deixaram iscas por todo o lado,
bungularam com rabos de palanca na mão,
beberam água só de maneira convencional,

121
PEPETELA

pisaram sementes de certas árvores para


besuntarem o peito com óleo, mas tudo em
vão. Em cada noite o leão varria dez cabritos
e não lhe acontecia nada de mal.
Desesperado, sentindo perder prestígio
junto da população, o Administrador desis-
tiu dos velhos, guardiões das tradições, e fez
novo apelo, desta vez aos caçadores profis-
sionais que utilizam armas modernas, pro-
vavelmente utilizando mesmo qualquer tipo
de armas, desde canhão a helicóptero.
O país, sem respirar, tem esperado os resul-
tados. Passou mais de uma semana e nenhum
órgão de informação se refere à caçada. Nem
se informa sobre a quantidade de cabritos
deglutida por dia pelo diabólico bicho. É a
escuridão completa. Ficamos sem saber se
é melhor confiar na secular magia dos mais
velhos se na tecnologia moderna que nos ven-
dem com prospectos aliciantes e a preços sal-
gados. Acabamos por não saber se de facto se
trata de leão ou de algum fantasma de outras
eras. O dramático é isto: sem informações,
deixamos de confiar no futuro, não sabemos o
que nos reserva a próxima encruzilhada.

122
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

Talvez para nos compensar desta falha, na


última semana fomos despertados por novo
fenómeno. Acho que começou pela rádio a
anunciar a existência de uma ave enorme e
de aspecto repelente que estava no Bairro
da Samba. Durante o dia foi-se sabendo
aos poucos, que é como melhor sabe, que
foram pescadores que a apanharam no alto
mar. Rigorosa e obediente, a rádio disse que
tinha sido avisada pela Secretaria de Estado
do Ambiente, que reconhecia o seu desco-
nhecimento perante fenómeno de tal mag-
nitude, mas que já tinham sido contactados
professores da Faculdade de Ciências para
deslindarem tão intrincado caso. No noti-
ciário da televisão, antes de transmitirem as
imagens do apocalíptico animal, houve uma
introdução às coisas estranhas que aconte-
ciam no país e a opinião de uma senhora que
dizia já ter visto a tal ave uma vez na vida e
ter ideia que é muito boa de se comer. Que
os pescadores tiveram que a amarrar, sobre-
tudo o medonho bico, arma terrível capaz de
decepar um braço. E lá apareceram na televi-
são as imagens do monstro aquático que voa,

123
PEPETELA

quando já tínhamos todos os nervos desfeitos


e se ouvia de alguns lares elevarem - se gemi-
dos de horror misturados a preces desespe-
radas. <<Mas é um pelicano!>>, exclamou a
minha filha que é supercompetente nessas
coisas de biologias e ecologias. Lembrei - me
logo duma caneta que me deram dessa marca
e confirmei, é sim um pelicano. E o único
comentário que me ocorreu fazer foi que a
senhora estava enganada, a carne não podia
ser boa, devia saber a peixe.
Será só uma terra de mitos?

18-09-94

124
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

19

Empresários de rua

POR ESTA TERRA têm passado muitos mitos e


heróis. Mudando conforme a moda. Já tive-
mos os heróis vindos da Luta de Libertação
(<<os homens novos>>, na terminologia da
época), os heróis do desporto, até mesmo
alguns artistas. Agora os novos heróis das
multidões são os empresários. Por todo o lado
se fala em bufunfa (dinheiro), em
investimentos ou na falta deles, em milhões
e biliões. E, naturalmente, o prestígio fica
ligado ao que passa no melhor carro, ao que
ostenta descaradamente a luzidia riqueza
acabada de ser desembrulhada por um passe
de mágica. Primeiro chamavam-se agen-
tes económicos, termo que foi caindo em

125
PEPETELA

desuso desde que as kínguilas (mulheres que


trocam os dólares nas ruas) protestaram
quando o negócio foi proibido. Argumen-
tavam elas que eram agentes económicos e
estavam a ser atiradas para a miséria com
essa proibição. As kínguilas continuam com
a sua actividade nas ruas, só que deixaram de
se abanar com os maços de notas. Mas deram
um golpe sério na honorabilidade do termo
agente económico. Foi sendo cada vez mais
utilizado o termo novo (aqui) de empresário.
Não que fosse desconhecido, é certo, mas
se tinha direito de cidadania, não o tinha a
grandes destaques mediáticos.
Mas da mesma maneira que o termo
<<camarada>> foi banalizado ao ponto de na
televisão ser entrevistado um <<camarada
ladrão>>, perante o camarada polícia que o
capturou e que era convidado a explicar às
massas populares porque tinha cometido um
roubo, da mesma maneira que o de <<agente
económico>> foi banalizado e desmoralizado
há bem pouco tempo, provavelmente este
recentíssimo de empresário não vai resistir
muito, sobretudo por causa da concorrência

126
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

Dos milhares de vendedores ambulantes que


já se atribuem a si próprios o nome presti-
gioso de empresários de rua.
Numa avenida movimentada de Luanda
apareceu há dias uma nova empresa. Três
garotos pregaram numa árvore um cartaz com
os dizeres <<Ango-Brilho S.A.>> E ficam à
sombra da árvore, no passeio público,
engraxando sapatos. Suponho que o S.A.
venha de Sociedade Anónima. Explicam que
a sua empresa nasceu da necessidade de
unirem esforços para se defenderem melhor
dos clientes que depois de terem os sapatos
a brilhar bazam sem pagar, muito parti-
cularmente militares e polícias. Cada um é
dono da sua caixa com a pomada e a escova e
recebe o dinheiro directamente do cliente.
<<Portanto não é uma empresa>>, disse um
mais velho que ouvia a conversa e com algu-
mas luzes de direito económico, <<o capital
não é comum>>. E apontava o dedo arrogante
para os três miúdos, com ar professoral.
<<Xê, kota, não estás a domar! (Mais velho,
não estás a perceber.) É mesmo uma empresa,
muadiê, ainda vamos um dia comer no Clube

127
PEPETELA

dos Empresários (selecto restaurante de


entrada reservadíssíma aos magnates cá do
burgo), para mostrar que não estamos pami-
zados>>. Sai dali devagarinho, agitado por
sentimentos contraditórios, a pensar nas voltas
que o Mundo dá.
A minha geração de escritores elegeu
como figura emblemática da exploração
colonial o miúdo engraxador. Não há um
só que não tenha escrito conto ou crónica
onde fustigava o colonialismo por obrigar
crianças a trabalharem nas ruas, debruçadas
sobre os pés dos outros, sem escola e mor-
rendo de fome, mas espertas e desenrasca-
das como só elas. E o mesmo se passava com
os músicos e outros artistas. Essa ideia era
de tal modo forte no seio da elite que houve
debates e discussões quando, há uns anos
atrás, os primeiros engraxadores reapare-
ceram nas ruas de Luanda. Sem qualquer
resultado prático, diga-se de passagem. Não
me recordo, mas provavelmente a polícia
terá recebido mesmo ordens para os per-
seguir, por darem uma má imagem do País.
Na época, tínhamos a mania, herdada dos

128
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

pensadores do colonialismo, de vir a ser num


futuro próximo uma grande potência eco-
nómica, dados os reais ou míticos recursos
de que a Natureza nos dotou. Portanto tais
actividades próprias de países de terceiro
mundo à vista de toda a gente embaciavam o
prestígio e inveja que pensávamos merecer.
Daí o protesto e a provável repressão, inútil
como se verificou mais tarde.
Hoje, as centenas de engraxadores que
surgiram com a economia miserável de mer-
cado têm orgulho nos seus dotes de empre-
sários. Legítimo orgulho, se pensarmos que
ao menos não estão a roubar nem a mendi-
gare que ganham a sua vida, mesmo que mal.
Compreende-se então melhor o sentido da
frase <<não estamos pamizados>>, isto é,
reduzidos à triste situação dos que só comem
se o PAM (Programa Alimentar Mundial das
Nações Unidas) lhes der algum arroz e fei-
jão. Não fica nada mal esse orgulho num país
totalmente pamizado, dependendo da cari-
dade internacional. Mostra que as crianças
ao menos ainda têm a noção de não ser esse
o caminho desejável para o futuro.

129
PEPETELA

Mas os empresários de rua correm agora


um perigo certo. Vão ser instituídas feiras
com localização rotativa onde eles poderão
vender os seus produtos. E serão persegui-
dos se exercerem as suas actividades fora
desses locais. Provavelmente também terão de
pagar qualquer taxa e ter um cartão que os
designa como empresários ambulantes ou
coisa que o valha. Mas essa legalização pode
acabar com eles. Se vendem qualquer coisa, é
porque andam pelas ruas e conseguem fazer
despertar o interesse dos clientes. Duvido que
as pessoas se interessem muito por ir às feiras
procurar os mesmos produtos que encontram
nas lojas, sem a confusão que os negócios de
ar livre geram. E estes nossos
<<empresários>> nem são capazes de mon-tar
uma banca numa feira. Andam com uma caixa
de pilhas ou com um ferro de engomar, ou com
uma caixa de comprimidos ou uma lata de
insecticida. E esse negócio já dá para ajudar a
família. Como montar uma banca?
Provavelmente a legalização, isto é o direito a
usarem com propriedade o nome de empre-
sários, vai matar estes activíssimos agentes

130
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

Económico. Matar não, o mercado infor-


mal resiste a tudo, mas que vão passar piores
momentos, lá isso vão. Depois a criatividade
ajudará a darem a volta, como sempre. Essa
criatividade que está na fala sempre reno-
vada das crianças.
Talvez nunca venhamos a ser grande
potência económica, mas que somos opti-
mistas quase irresponsáveis, não há como
negar. Como diriam os irmãos brasileiros, o
que nos segura mesmo é só esse optimismo.

22-10-94

131
PEPETELA

20

O conquistador de Benguela

A BAÍA EM QUE se situa a cidade de Benguela


já era conhecida pelos navegadores portu-
gueses que por ali passaram, procurando o
caminho da Índia. Alguns lhe chamaram
Baía da Torre, outros Baía das Vacas. Mas a
primeira ocupação efectiva da terra deu-se
em 1617, sendo os portugueses comandados
por Manuel Cerveira Pereira, possivelmente
natural de Ponte da Barca e que era um per-
sonagem digno de romance. A historiografia
colonial designou-o por Fundador de Ben-
guela. Para quem não o estudou na História
da escola primária, como eu tive de o fazer,
esse nome não diz nada. Não sabem o que
estão perdendo. Por isso vou resumir algu-

132
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

mas notas tiradas do livro de Ralph Delgado,


O Reino de Benguela, publicado em 1945.
Tenho o cuidado de indicar a data, para mos-
trar que não se trata de propaganda anticolo-
nialista, pecadilho de que o velho Ralph não
poderia ser acusado. E sei bem disso porque
ainda temos um parentesco pelos lados da
minha mãe.
Cerveira Pereira era Governador de Angola
em 1607, detestado e temido pelos
habitantes de Luanda, quando foi preso e
enviado para Lisboa, para responder por
uma série de crimes. Desde assassinatos e
torturas injustificadas até roubos do erário
público e dos colonos, de tudo foi acusado.
Algumas acusações podem não ser verídicas,
como parar guerras por receber presentes
em escravos por parte dos sobas rebeldes
que deveria <<pacificar>>. Mas há uma que
tem sabor especial: o Governador <<alcan-
çara>> 25 das 50 mulheres casadas que havia
na colónia (portuguesas, claro) por meio de
<<artifícios diabólicos, dando-lhes música de
noite>> ou <<usando feiticeiras e alcovi-
teiras>>. Houve sindicâncias e investigações,

133
PEPETELA

mas o Rei Filipe acabou por considerá-lo


inocente dos crimes imputados e nomeá-
-lo em 1615 Governador e Conquistador do
Reino de Benguela, principalmente famoso
na época por se pensar albergar fabulosas
minas de cobre. Suponho que aqui revela
Cerveira Pereira grandes dotes de conven-
cimento, ou então tinha família muito pode-
rosa, pois o Rei lhe <<ofertou um cavalo da
sua estrebaria com sua real marca, dizendo-
-lhe que desse nele a primeira batalha>>,
considerada pelo historiador uma <<honra
poucas vezes ouvida>>.
E lá foi o Hernan Cortez português, de
novo com tropas em caravelas, <<civilizar>>
os gentios a sul de Luanda. Das muitas cabe-
ças de africanos cortadas quer na colónia de
Angola, quer depois em Benguela, não
reza esta História da qual me socorro. Fala
sobretudo das contradições e dos ódios que
o Conquistador fez germinar nas tropas e
nos colonos. Chega para compor o perso-
nagem. Chegado em 1617 ao que haveria de
ser Benguela, enganou-se logo à partida,
descrevendo o clima como paradisíâco,

134
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

<<de salutíferos ares>>, quando afinal era


um inferno de mosquitos e paludismo, pois
havia pântanos a toda a volta. E o facto de ter
conseguido estatuto independente de Luanda
fez criar ciúmes e má vontade nos diferentes
Governadores de Angola, que nunca
respeitaram as ordens do Rei para o apoiarem.
Se a colonização em África era por norma
indigente, aqui a falta de recursos ainda era
mais notória.
Ergueu uma fortaleza, à volta da qual
se constituiu a cidade. Sempre em guer-
ras para alargar o território da colónia.
E sofrendo constantemente rebeliões inter-
nas. O homem não era para brincadeiras e
vingava -se duramente dos que se rebelavam.
Geralmente eram soldados que queriam fugir
para climas mais amenos e para chefes menos
cruéis. Todos os que eram apanhados eram
evidentemente arcabuzados. Três revoltas
foram mais sérias, mas conseguiu neutralizá-
-las. Os motivos que levavam às revoltas eram
sempre os mesmos: tentativas de mudar a
cidade para terras mais hospitaleiras e quei-
xas contra a crueldade do Governador. Para

135
PEPETELA

não criar hábitos menos sãos, os cabecilhas


seguiram a rotina: foram todos arcabuzados,
mesmo se eram sacerdotes.
Até que o clima de revolta atingiu o paro-
xismo, quando Cerveira Pereira, enfraque-
cido pelas febres, mal se tendo nas pernas,
condenou à morte um oficial, acusado de
<<entrar com uma filha, ainda donzela>> do
capitão-mor. A população europeia de Ben-
guela, <<cansada de mau passadio, de doen-
ças, de um comando alucinado e de uma jus-
tiça violenta>>, indignou - se definitivamente.
Cinco soldados resolveram passar à acção.
Curiosamente, os cinco soldados eram dois
<<hebreus>>, um mourisco, e dois degredados
por crime de morte. Pela amostra se vê qual
a composição do exército colonial. Os cinco
foram apoiados por <<um padre da ordem
de S. Francisco, Frei Simão, e um clérigo
preto, Manuel Rodrigues>>. Os padres ainda
tentaram demover o Conquistador da exe-
cução, mas como este era teimoso, os cinco
soldados, que escutavam a conversa ao lado,
entraram no quarto com as espadas e adagas
na mão e deram voz de prisão ao Governador.

136
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

Este, debilitado, procurou erguer-se e resis-


tir, mas o frade segurou - o por uma perna e os
comparsas vibraram- lhe algumas cutiladas,
com as quais ficou caído no chão. Os amoti-
nados tomaram conta da guarnição, meteram
Cerveira Pereira num batel com um mastro
quebrado e uma vela rota e só com a roupa
vestida. Deram -lhe um soldado para o acom-
panhar e vai com o Diabo.
Ao fim de cinco dias, só comendo peixe
com vinagre, ferido e doente, o homem che-
gou a Luanda. Temos de reconhecer que o
personagem tinha sete vidas. Foi tratado e
protegido pelos padres da Companhia de Jesus,
que o historiador insinua serem seus
associados em negócios. Tanto rogou ao Rei,
e tantas influências deve ter movido, que este
lá lhe mandou homens e navios com que, no
ano seguinte, já refeito da doença e ferimen-
tos, se foi a <<repor a autoridade do Estado>>
(como hoje se diz) em Benguela. Imagina--
se um final sangrento, do herói justiceiro
e vingativo. Nada. Os padres entretanto
fizeram negociações entre as partes, indo e
vindo de Benguela para Luanda, e quando

137
PEPETELA

Cerveira Pereira voltou à cidade, tudo estava


tranquilo, pronto a recebê-lo. O historia-
dor não entra em detalhes, no que evidencia
pouca sensibilidade para o teatro. Não sabe-
mos se os conjurados entretanto tinham ido
em busca de ares melhores, indo oferecer
os seus préstimos militares a algum soba do
Planalto. O certo é que o regresso foi pací-
fico, não a anunciada e sangrenta limpeza
(não étnica, no caso, ou só em parte).
Mas o Conquistador já não era o mesmo.
Envelhecido, alquebrado, contentava-se em
viver com duas sobrinhas da mulher, o
que constituía de qualquer modo um escân-
dalo, mas não temos notícias de serenatas a
mulheres casadas. Ia regularmente a Luanda,
arranjar apoios para a conquista das minas de
cobre, com que sonhou toda a vida. E numa
dessas idas morreu na capital de Angola.
Com a sua morte, terminou o Governo Geral
de Benguela, tendo sido anexado a Luanda.
Não é mesmo um personagem de ficção?
Ou apenas um homem actual?

24-11-94

138
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

21

As teias da História

NOS TEMPOS da nossa descuidada meninice,


como disse o poeta, na Benguela que ainda
apresentava vestígios do século passado, uma
das brincadeiras principais era ir às hortas do
rio Cavaco roubar fruta. Não sei porquê, o
Elavoko, que não era do nosso grupo de brin-
cadeiras, foi um dia connosco. Antes não fosse,
teria evitado trabalhos. Enquanto nós
atacávamos as goiabas e as mangas, o Álvaro
viu um sape- sape magnífico e preparou - se
para o apanhar. Também o Elavoko o tinha
visto. Os dois tentaram trepar à árvore . Des-
conseguiam os dois, porque o outro não dei-
xava. Apercebendo-se dos perigos da coisa, o
Miguel, cuja mania de medianeiro o levaria

139
PEPETELA

um dia a estudar Direito em Coimbra, pro-


pôs atiro moeda ao ar e quem, ganhar pode
comer o sape-sape. Ganhou o Álvaro. Subiu à
árvore e apanhou a enorme fruta.
Estávamos sentados à sombra refaste-
lando-nos com o que apanháramos, quando
o Elavoko, que se tinha enfiado pelas árvo-
res, voltou inconformado. Não há outro
sape-sape em toda esta área. Dissemos-lhe
para comer goiabas ou pitangas, fruta era o
que mais havia. Não, que queria sape-sape.
O Álvaro parecia absorto na fruta, mergu-
lhando a boca no sumo ácido-doce, não
ligou. O Elavoko ficou de pé à frente dele e o
Álvaro a comer. Era um sape - sape desco-
munal, mas ele era um glutão, comia tudo o
que via e queria sempre mais. O Miguel disse
para o Álvaro, eh pá, dá um bocado ao Ela-
voko que ele está a se babar todo. O Álvaro
encolheu os ombros, ele é que tinha ganho, não
dava nem um caroço.
O Elavoko não sabia perder. Quando jogá-
vamos futebol com a bola dele, se a equipa em
que alinhava estivesse irremediavelmente
perdida, ele apanhava a bola e ia ·embora

140
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

antes de o jogo acabar, só para não levar der-


rota para casa. Estava ali à frente do Álvaro a
ruminar ressentimentos e apetites não
satisfeitos. De repente saltou sobre o outro,
deu-lhe um murro e tentou apanhar o resto do
sape-sape. O que ele foi fazer. O Álvaro
comia muito, tinha um apetite devorador,
mas ainda não era gordo, era forte. Con-
seguiu ficar por cima dele e lhe encheu a
cara de tanta porrada que o nariz achatado
ainda ficou mais, o sangue começou a jor-
rar. Tivemos de parar a coisa, embora todos
compreendêssemos que o Elavoko tinha
merecido ficar tão estragado. Levámos o
desgraçado para o hospital. Já no caminho, o
Elavoko dizia, ele me roubou o sape-sape e me
atacou à traição. Não ligámos, devia ser delírio
de tanta pancada.
Não era delírio, não. Depois de sair do hos-
pital, começou a contar a estória à maneira
dele. Chegava-se a mim o Joaquim e dizia,
pôssas, pá, o Álvaro é mesmo ordinário,
roubou o sape-sape e ainda por cima quase
matou o Elavoko, apanhando-o pelas costas.
Eu lá explicava ao Joaquim que a história era

141
PEPETELA

outra. Deixa disso, pá, estás a defendê-lo


porque ele é do teu grupo. E notámos, nós
os amigos do Álvaro, que o mesmo se pas-
sara com outros. Em breve todos os miúdos da
cidade repetiam a estória do Elavoko,
cobardemente agredido por causa da ganân-
cia do Álvaro. E atacavam directamente o
Álvaro, na escola ou na praia. Como ele era um
pouco gago, sem o dom da oratória do
Elavoko, nunca conseguia explicar-se bem,
atrapalhava-se nas palavras, o que dava a
nítida impressão que estava arrependido do
cobarde gesto e não sabia como se desculpar.
O caso era mais grave com as miúdas.
Começámos a ter problemas com elas, pois
a fama de ganancioso, covarde e violento
do Álvaro transmitia-se a nós, seus ami-
gos. Se no cinema nos chegávamos mais a
uma miúda, lá vinha o remoque. Desafasta
lá, ainda me vais mandar para o hospi-
tal como o teu amigo fez ao Elavoko. Ainda
tentei explicar à Tininha, minha vizinha de
caracóis louros, para já ele foi só ao hospi-
tal levar uns pontos nos beiços, não ficou
moribundo. Inútil. A Tininha e todas as

142
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

outras não queriam mais nada connosco.


Durou tempos este ostracismo. E o Álvaro que
só comia e gaguejava. Para compensar as
carências do ostracismo, cada vez ficava mais
glutão e gago.
Felizmente para mim, fui estudar para
fora. Para trás deixei a injusta fama de vio-
lento e covarde, para trás deixei as piadas dos
rapazes da minha idade. Mas os outros por
lá ficaram, durante muito tempo sofrendo
calados a estória do Elavoko e do Álvaro.
Estória que por persistência do Elavoko, que
a contava sempre da mesma maneira, repe-
tida pelos amigos, se tornava aos poucos a
História.
Muitos anos depois, quando voltei à terra,
os amigos de infância que restavam qui-
seram organizar um encontro. Entretanto
soubera que o Álvaro e o Elavoko ainda lá
estavam, mas continuavam sem se falar. A
desavença continuava, apesar de terem filhos e
já com netos a caminho. Por isso pus como
condição que os dois também partici-
passem. Nunca fora amigo do Elavoko, um
grande mentiroso, mas em mim o tempo

143
PEPETELA

tinha lavado tudo. À falta do Miguel, que


mediava outros conflitos pela Europa, quis
experimentar os meus dotes, convencido
que o prestígio adquirido pelo facto de ser um
filho da terra que regressava depois de muitas
aventuras me assegurasse o êxito no
esclarecimento definitivo da maka.
O Álvaro foi dos primeiros a chegar. Não
só pela amizade mas também porque che-
gando primeiro comia e bebia mais, ele não
tinha mudado. O Elavoko chegou bem tarde, o
que provocou uma aumento da gaguez do
Álvaro, que se foi pôr num canto, vingando--
se nos rissóis de camarão, como só em
Benguela se sabe fazer. Aproveitei a deixa e
depois de nos cumprimentarmos, disse alto:
- Ó Elavoko, já é altura de esqueceres a
surra bem merecida que o Álvaro te deu.
O tipo não se desfez. Usando a sua conhe-
cida habilidade retórica, fazendo gestos e
esgares dignos dum refinado artista de
teatro, contou a estória à sua maneira, ele
mandou-me para o hospital, pá, apanhou-
-me pelas costas depois de ter roubado
o meu sape-sape. E explicava, explicava,

144
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

quase chorava. Eu gritei: - Pára com isso, pá,


eu estava lá, já te esqueceste? Por segundos
ficou desamparado, mas logo se recompôs.
Estavas mas já esqueceste, passaram tantos
anos, mano.
O mais engraçado é que não convenci
ninguém. Nem consegui fazer as pazes entre
os dois, nem os demais amigos acreditaram
em mim. Claro que não podiam dizer que
eu era um mentiroso, virara uma espécie de
herói que honrava a cidade. Mas diziam, já
não te lembras, pá, passou tanto tempo ... Até
hoje as gentes da minha geração acham que
o Elavoko, apesar de apanhado ao longo dos
tempos em muitas mentiras, nessa estória
falou verdade. E que o Álvaro, para além de
continuar a ser um tremendo ganancioso,
desde miúdo foi um tipo violento, um perigo
público. É isso, a estória do Elavoko hoje é
História, apenas por um dos seus protago-
nistas ser um tremendo farsante e o outro gago.

06-01-95

145
PEPETELA

22

A propósito de caça

- Não percebo porque se abre a época de


caça. Ela nunca esteve fechada. Até se usava o
helicóptero nalguns casos para ser mais
rentável. Que o digam os poucos animaizitos
que restam nos parques nacionais.
- Falando de caça, compadre, isso
me faz recordar uma cena que me contaram
há muitos anos em França. Foi um espanhol
e as cenas se passavam na guerra civil. Ele era
miúdo, a passar para a adolescência. O pai
de vez em quando acordava-o ainda de noite
e murmurava, vamos à caça. Se tratava de
uma caça muito especial. Levavam as duas
caçadeiras com cartuchos de chumbo muito
fino, tem um nome especial que já esqueci,

146
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

e iam para um mosteiro ou convento previa-


mente escolhido pelo pai. Entravam no pátio
e davam dois tiros para o ar. Os monges, fra-
des ou padres, vinham aos claustros saber
o que se passava e a caçada começava. Era
os frades a correrem pelos corredores e os
dois, pai e filho, a fazerem tiro aos pombos.
Não matavam ninguém, mas doía . Imagina
a humilhação posterior dos monges, todos
de rabo para o ar, a serem catados com pinça
das bolinhas de chumbo cravadas nas bun-
das gordinhas.
- É, essa coisa da caça é assunto sério.
Aqui houve várias fases. Primeiro foi a caça às
casas e aos carros. Os colonos bazaram,
deixaram tudo prontinho para ser apanhado,
foi um festival. Caçada perfeitamente justa,
pois não havia razão para deixar as coisas aí a
apodrecer à chuva. A discussão foi posterior:
a quem pertence uma coisa encontrada na
via pública, não é a quem a achou? Para os
carros foi mais ou menos esse o argumento
que triunfou. Já para as casas não, que fica-
ram para o Estado, mas alugadas aos parti-
culares a preços simbólicos:

147
PEPETELA

- Bem, essa foi a primeira fase? O compa-


dre disse que houve várias.
- Chamei fase para dar um nome. Diga-
mos que houve várias formas de caça. Uma
foi aos carros e às casas. Hoje essas caçadas
ainda existem, mas mudaram de forma. Já
faz parte dos negócios. Há quem tenha dez
carros em casa. Fazem caça para coleccio-
nar em seguida. Como aqueles milionários que
caçam antílopes e leões para depois os porem
em parques particulares.
- No meu país isso já não acontece, com-
padre. Uma pessoa tem dois ou três carros no
máximo, mesmo sendo milionário. Ostentar
dez carros é prática de novo rico.
- Acumulação primitiva. Colecciona-se
o que se caça. Há uns que só têm competên-
cia para caçar carros, aí vão acumulando.
Quando se civilizarem, provavelmente ven-
derão os que estão em excesso e investirão
em coisas rentáveis. Já o mesmo não se dirá
dos que só sabem acumular miséria.
- Mas conte-me outras formas de caça
aqui vigentes, compadre.
- Uma outra espécie muita caçada são

148
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

as mulheres, evidentemente. Só que aqui


se instituiu a partir duma certa altura que
os responsáveis tinham duas mulheres,
uma oficial, Luanda-um, e outra oficiosa,
Luanda-dois. Não era obrigatório, mas era
sintoma de falta de virilidade não seguir esta
norma. Até surgiu uma canção para definir
as coisas. <<Segunda mulher é que manda,
prepara a sopa, dá os carinhos, ué>>. Mas a
canção termina com o contrário, <<primeira
mulher é que manda ... >>
- E as mulheres responsáveis, compadre,
também têm duas Luandas?
- Ah, isso não sei. Se têm, usam de dis-
creta modéstia. Os homens é que gostam de
ostentar os fios de ouro mais grossos que
pulseiras, os carros tão grandes que dobram
esquinas, os cartões de crédito só válidos no
estrangeiro.
- Mas voltemos às caçadas, compadre.
- Uma forma que está sempre na
moda e até se pode dizer que virou um desporto
nacional é a caça às comissões. Qualquer
funcionário ou chefe que se preze, arrecada
sempre umas comissões ou em importações

149
PEPETELA

feitas pelo Estado ou em obras contratadas


por este. Fenómeno universal, dirá o compa-
dre. Certamente. O interessante aqui é haver
pessoas que são conhecidas por <<Senhor
6%>>, <<Monsieur 12%>> ou <<Mister
15°/o>>, conforme os apetites e as línguas de
contacto. As línguas minoritárias não
conseguem baptizar os nossos
comissionaristas. Ouvi falar dum <<Senhor
7°/o>>, mas é mais raro.
- Estou cá há pouco tempo mas também
lhe posso acrescentar uma forma quase uni -
versal: a caça aos jornalistas.
- Nem me fale, nem me fale. Começou
há uns tempos, um desaparecia aqui, dois lá.
Mas agora pode ser que se torne caça a sério,
se o exemplo pegar. Eterna mania de copiar-
mos os mais desenvolvidos.
- Acho que estão masé a copiar a Argélia
ou o Zaire, que não me parece um modelo
muito desenvolvido.
- Compadre, esta conversa está a me dar
uma sede ... Vamos a outra forma de caça e esta
nacional como não há outra. Caçar umas
cervejas estupidamente geladas aí na pri-
meira lanchonete da Ilha.

150
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

- Podíamos antes ir caçar uns caranguejos


para acompanhar.
- Não, compadre . Isso é planificação de
europeu, que tira todo o prazer à vida. A sede
existe neste preciso momento. Como vamos
ainda atrasar a bebida, só para fazer uma
caçada diferente no meio?

09-02-95

151
PEPETELA

23

Pacaças e ovnis

MEU AMIGO GABI é conhecido caçador de paca-


ças. Em tempos mais antigos seria chamado de
empacaceiro, como vem referido nos livros.
Mora no Bairro Operário e tem dois cuidados
na vida: tratar com todo o carinho o Land
Rover e a arma. Foi ele que me contou e
jurou a pés juntos ser tudo verdade. Pus cer-
tas reservas, não por duvidar da palavra do
Gabi, mas porque à noite muita coisa acon-
tece, para a qual se procuram explicações nem
sempre as melhores. Mas deixemos as
filosofias e vamos aos factos.
Os grandes caçadores de Luanda, daque-
les sérios, que vão de carro e todos os riscos,
não como alguns que surgiram mais tarde

152
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

que até helicópteros utilizam, não deixaram de


partir nos fins de semana para caçar uns
bichos, mesmo em tempos de guerra, de
emboscadas e minas nos caminhos. Gabi é
um deles. Pois um dia, há dois anos, chegou
com os companheiros a uma aldeia entre
o Kwanza e o Bengo, centro das pacaças da
região. Encontraram a população em pre-
parativos bélicos e pensaram se tratar de
algum ataque dos do outro campo. Não era
nada disso.
Os populares contaram que estavam
revoltados contra um velho, que habitava
junto de uma lagoa ali perto, de onde todas
as noites vinham luzes estranhas no céu, sem
ruído de relâmpagos nem nada, apenas luzes
que passavam mais ou menos à mesma hora. E
como consequência do fenómeno, as pacaças
tinham desaparecido da zona. Ora é
internacionalmente conhecido que a carne
de pacaça é a melhor para o funje de carne
seca. Especialmente se se comer o funje,
não à moda da cidade, com garfo ou colher,
mas com os dedos, fazendo bolinhas que
se molham no molho de carne seca. De se

153
PEPETELA

lamber os dedos e não só os beiços. Diziam os


populares que evidentemente o velho era
poderoso muloji, isto é feiticeiro, que com as
luzes estranhas andava a roubar as pacaças
para as suas práticas diabólicas . E esse crime
só tem um castigo, a morte.
Os caçadores tentaram acalmar a popu-
lação e prometeram ir investigar. O Land
Rover arrancou para a lagoa onde habi-
tava o velho, onde constataram se tratar de
um pobre pescador, mais assustado que os
camponeses do kimbo com as luzes que de
repente invadiram as tranquilas noites à
beira da lagoa. De pacaças não sabia ele nada,
apenas de coelhos e pukus, que apanhava em
armadilhas para variar a alimentação, pois
os cacussos são peixe fantástico mas todos
os dias também é demais. Depois desta con-
versa que os convenceu das honestas razões do
velho, os caçadores voltaram à aldeia para
tentar acalmar os ânimos.
A meio do caminho o motor do carro parou
de súbito. Só os faróis continuaram a
funcionar. Viram acima deles uma massa
enorme com luzinhas de todas as cores, que

154
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

se imobilizou a uns cem metros das suas


cabeças. É claro que todos saltaram do jipe e
procuraram se camuflar no capim alto. Caça-
dores experimentados e destemidos, houve
entre eles quem molhasse instantanea-
mente as calças. Não era vergonha nenhuma
confessar, tal a estranheza do fenómeno e
a surpresa repentina. Há muito constatei
que só as pessoas corajosas são capazes de
reconhecer os súbitos terrores, o que vem
abonar mais para a veracidade das afirma-
ções do Gabi e companheiros. Escondidos
no mato, com o coração em trote enfure-
cido, boca seca e calças molhadas, ficaram
minutos a olhar de soslaio para as luzes que
giravam em cima do Land Rover, em nítido
trabalho de inspecção à distância. E depois o
objecto enorme, do tamanho duma casa e de
forma arredondada, se pôs silenciosamente em
movimento, a caminho do kimbo para que se
dirigiam.
Aos poucos se juntaram no carro, con-
tando-se para ver se faltava alguém. Depois de
algumas hesitações, o motor lá pegou.
Chegados ao kimbo, o ambiente ainda estava

155
PEPETELA

mais efervescente. Foi muito difícil conven-


cer os camponeses que o pescador nada tinha a
ver com o que todos tinham presenciado.
Contaram a cena de se terem atirado para o
capim, exageraram nas molhadelas de calças
e os outros finalmente riram, fazendo dimi-
nuir a tensão. E o meu amigo Gabi explicou
que era um OVNI, um disco voador. Nunca
ouviram falar?
Claro que ninguém tinha ouvido. Nem
tão pouco de extraterrestres, de gente de
outros planetas, nem planeta sabiam o que
era, a Lua era um planeta?, disparates, a
Lua era um disco que estava lá pregado no
céu para nos iluminar as noites, filha do Sol
ou mulher dele, conforme as crenças, para
algumas pessoas o espírito das próprias
mães já falecidas. Discussão complicada, em
que os conhecimentos de astronomia dos
caçadores também não eram muito profun-
dos e por isso as explicações pouco convin-
centes. Sobretudo não saberiam responder à
insistente pergunta dos camponeses, então
porquê que essas pessoas que vêm lá de cima
depois da Lua, como vocês dizem, nós estão a

156
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

roubar as pacaças? Uma coisa conseguiram,


foi convencer os outros que o velho pescador
não era feiticeiro nenhum e até lhes seria muito
útil, pois podia trocar os seus cacussos com a
mandioca deles.
Os tempos foram passando e sempre que
encontrava o Gabi lhe perguntava: e as paca-
ças? Nada, o disco voador levou todas, nunca
mais se caçaram os apetecidos antílopes.
Os caçadores da região contentam-se agora
com carnes menos nobres. E não é que leio há
dias no jornal que uma cena em tudo seme-
lhante aconteceu com outro grupo de caça-
dores, mais a norte do Bengo? As mesmas
luzes, o motor do jipe que falha, os caçado-
res que se atiram para o capim. Só uma dife-
rença: estes que contaram para o jornalista
não tiveram a hombridade de dizer que mija-
ram as calças, mas tenho a certeza que estão a
esconder algo.
Encontrei o meu amigo Gabi todo exci-
tado, leste a notícia no jornal? É o mesmo
disco voador, é o nosso. E agora anda a apa-
nhar as pacaças a norte do Bengo. Qualquer
dia não há pacaças em Angola. Com todas as

157
PEPETELA

desgraças que nos acontecem, agora mais isto.


O Gabi anda mesmo desanimado com os
rumos do País, em riscos de perder as pacaças
todas.
- Mas, ó Gabi, acreditas mesmo que estão
a levar as pacaças?
- É claro, meu, ainda tens dúvidas?
Afama do nosso funje de carne de pacaça corre
longe, até os marcianos lambem os dedos.
O largo peito de Gabi cresceu mais de
orgulho patriótico. Tens dúvidas, meu? Onde
encontraram eles melhor pitéu? E eu fico a
pensar, será que o Gabi tem razão e não é só o
nosso petróleo que vai longe, como se diz
numa propaganda por aí?

15-04-95

158
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

24

A sarinização do Mundo

A IDEIA FOI da minha filha, por isso para ela


escrevo.
Imagine-se que se chegava a 1997 com a
seita <<Verdade Suprema>> intacta, por não
ter cometido operaçõezinhas àtoamente,
como a de meter uns tantos gramas de gás no
Metro de Tóquio e coisas menores assim, mas
com uma estratégia bem elaborada para
provocar mesmo o fim do Mundo. Até lá
acumulara toneladas e toneladas de sarin,
aperfeiçoara a forma de o expandir, não só
através de tudo o que fosse tubo, de esgoto,
de ventilação, de gás de cozinha, de água, de
pipeline, mas também de fio de telefone,
eléctrico e de cabo de televisão. Avanços

159
PEPETELA

tecnológicos factíveis para gente tão pren-


dada em boas ideias. Claro que tinham
aviões e pilotos preparados para lançar o gás,
quer por fumigação, quer por bombas.
Tudo como nos excelentes filmes de Rambo ,
Jacques Lang dixit ...
Pois bem, estamos em 1997. A seita passa à
acção, organizada e disciplinada como só
mesmo uma seita. No mesmo minuto, de
Los Angeles a Moscovo e até Tóquio, o gás é
lançado em tudo que seja condutor e os
aviões fumigam os campos. Resultado: aca-
bam os homens sobre a Terra e a profecia
bíblica cumpre-se com quase 2ooo anos
de atraso (estou relendo neste momento).
Só que ... Há sempre uma pedra na auto-
-estrada mais polida. Não é o Juízo Final e
Deus não se manifesta na intolerante fúria a
que nos habituou, porque a seita esqueceu um
pequeno pormenor.
Em vastas regiões de África e na floresta
amazónica, bem como no célebre triân-
gulo do ópio da Ásia do sudeste, nem toda a
vida humana se acabou. Por um lado, alguns
pilotos que. a seita tinha recrutado e

160
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

preparado para bombardearem e fumiga-


remas densas florestas ou foram na véspera
para a farra para se despedirem desta vida
de bódós constantes, ou se entulharam de
ópio e outras especiarias tais como a coca,
o que os fez não se apresentarem ao serviço
no minuto estipulado. Foram sarinados nas
cidades e portanto alguns aviões não levan-
taram voo. Por outro lado, os japoneses tam-
bém não são perfeitos em tudo, valha-nos
isso, e enganaram-se nos cálculos de quan-
tas fumigações e bombas seria necessário
reservar para essas regiões de forma a passa-
rem tudo a pente fino. A um dado momento,
faltou matéria-prima como em qualquer
fábrica do Terceiro Mundo.
Resumindo e concluindo, bué de negros e
ameríndios e amarelos escaparam ao
holocausto. Houve até partes de cidades que
sobreviveram. Como não podia deixar de ser,
Luanda só perdeu cerca de metade da
população, mas isso é porque uma velha
kimbanda na véspera adivinhou o que pode-
ria acontecer e se transformou numa bela
jovem que foi namorar o representante local

161
PEPETELA

da seita. Este, devoto chefe de duas famílias e


doze filhos, não resistiu aos encantos da
jovem, perdeu um tempo precioso no seu
regaço e improvisou depois sobre o joelho as
últimas fases da operação e cafuzou tudo,
como diria o Manuel Rui. Nos bairros perifé-
ricos, onde não há esgoto, nem cano de água,
nem fio de electricidade, nem telefone, só as
fumigações e as bombas resultariam. Pois é,
os aviões estavam sem gasolina, não levan-
taram voo a tempo, os pilotos foram entre-
tanto beber uma cerveja e se sarinaram.
Durante muito tempo os sobreviventes
não perceberam bem quanto isolados esta-
vam. Todos os técnicos de comunicações
tinham tido encontro com os anjos vinga-
dores e por isso não havia notícias sobre o
resto do Mundo. Enterraram os mortos,
choraram um bocado e os caluandas dos
musseques foram ocupar as casas da cidade
do asfalto agora livres, repetindo gestos de
1975. O mesmo se passou com os zairenses
sobrantes e os nigerianos e os descenden-
tes de incas e aztecas e partes dos birmane-
ses e tailandeses. Andaram nos carros até

162
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

acabar a gasolina, pois os que sabiam refi-


nar o petróleo tinham se passado e os que
sabiam importar essas coisas também já eram.
Foram esgotando os recursos, até que os mais
aventureiros resolveram ir explorar novos
Mundos.
Os africanos, claro, fizeram canoas de
tronco de mafumeira e foram se encon-
trando e saudando ruidosamente pelo Atlân-
tico, até descobrirem o caminho marítimo para
a Europa. Os asiáticos se meteram pelas
estradas e desembocaram nas ricas Singa-
pura, Tóquio e Hong Kong, vazias de gente
e cheias de riquezas à sua espera. Os ame-
ríndios também seguiram os caminhos do
norte e chegaram à capital do último Impé-
rio. Carros bué, boas reservas de gasolina
nas bombas, os ameríndios divertiram-se à
brava a chocar uns contra os outros, imi-
tando os antigos senhores agora desapare-
cidos de Indianápolis.
Mas fixemo-nos apenas nos africanos que
descobriram a Europa. Mal sabiam eles que
não era a primeira vez, embora na Histó-
ria oficial tivessem aprendido o contrário.

163
PEPETELA

Distribuiram-se por afinidades: os palo-


pianos em Portugal, os anglófonos nas ilhas
que foram de Sua Majestade e os francófo-
nos em Paname . Mas em breve os caluandas
acharam que lhes faltava espaço e agitação.
Saltaram para a Espanha. Aí sim, farraram
que nem loucos, pois havia reservas de tudo.
E de lá passaram pela França, já ocupada
pelos francófonos que nunca mais daí sai-
riam, fascinados como sempre pela terra dos
antigos patrões. Os angolanos descobriram
então a Alemanha. Depois de muito usa-
rem BMW e Mercedes último modelo, cada
um com dez carros no mínimo, lá chegaram à
antiga capital da União Europeia (falo de
Berlim em 1997, como é óbvio). Paixão à
primeira vista. Se instalaram nas ricas man-
sões do Grunewald e decidiram reconstituir,
a partir do Bundestag, a desfeita Comuni-
dade que depois virou União. Emissários
partiram para França, Inglaterra e Península
Ibérica.
Estavam nestes preparos quando chegou a
Berlim um branco. Alguns tinham sobre-
vivido. nos trópicos: um antropólogo. que

164
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

andava perdido pelas matas, um geólogo em


busca de diamantes, um sacerdote numa aldeia
de mucancalas. Mas na Europa era o
primeiro. Se tratava de um neonazi que na
altura da sarinização se encontrava em treino
terrorista na Floresta Negra para a consti-
tuição. do 4.º Reich. Por um incrível acaso
escapou. Andou perdido pela Alemanha até
decidir retornar à cidade natal. Horrorizado,
constatou que só havia negros e mulatos. Foi
tão duro pôr-se na pele duma minoria racial
que se suicidou ao fim dum mês. Morte muito
sentida pela generosa comunidade, até fizeram
uma estátua de madeira para lhe pôr em cima
da campa.
Moral da estória: que o Norte controle as
seitas e intolerância que tem criado, senão o
Sul acaba mesmo por se desforrar; e muita
paciência tem havido.

15-04-95

165
PEPETELA

25

O vento fresco

D. ALZIRA É uma senhora dos seus sessenta


anos que habita o meu largo e é conhecida por
andar quase sempre bêbeda, vestida de
qualquer maneira. No dia 15 de Maio apa-
receu diferente , sóbria, mesmo com certa
elegância. Os miúdos da rua, pouco habitua-
dos com tal apresentação, logo a rodearam,
mordazes .
- Tão bem vestida, D. Alzira. Fez anos?
Ela costuma logo disparatar os miúdos. Desta
vez não. Sorriu com bonomia.
- Então hoje não é o dia que começa o
cacimbo? Acabou esse calor chato, não sen-
tem esse vento fresco que entrou? Agora sou
outra pessoa.·

166
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

Suspeitei que não fosse essa a causa, mas


quem sou eu para desdizer D. Alzira, que faz
uns doces de jinguba de primeira? Espe-
rei uma ocasião para a abordar. E aconte-
ceu logo a seguir, quando ela se encostou ao
muro duma casa onde se vende cerveja e
gasosa geladas. Estas lojas familiares clan-
destinas têm marca à porta. Se põe uma gar-
rafa ou lata da bebida que está à venda em cima
do muro. Os clientes são assim atraídos pelo
produto exposto. E se por acaso algum fiscal
aparece, a desculpa são logo os miúdos que
têm a mania de deixar as coisas com que
brincam em cima do muro. Precaução quase
inútil, pois os fiscais são raros. Mas assim se
poupa duas cervejas ou gasosas que se teria de
pagar aos fiscais para eles esquecerem a cena.
Deixei que ela começasse a beber a sua Nocal
e depois falei:
- É só mesmo por causa do cacimbo que
está assim bem vestida?
- Claro, vizinho. Então não sente o vento
bom? Não o vento da chuva, que esse só traz
confusão nesta cidade. Mas o vento da fres-
cura. De facto já não estamos nos calores

167
PEPETELA

de Março. Mas a data oficial não quer dizer


nada, neste final de século em que até o tempo
está subvertido. Ainda não estamos no
cacimbo, ainda não apetece pôr casaco à noite.
Se adivinha que outros tempos virão, estão
próximos, mas é só uma promessa. Quem sabe
ainda há uma reviravolta e vem um calor dos
diabos? Não posso negar o meu cepticismo, a
idade tem destas coisas. Mas D. Alzira, mais
velha que eu, acordou nesse dia com um
irremediável optimismo. E tenho de
reconhecer que é contagiante.
- Vizinho, ponha a cara de lado. Não o
sente?
Eu bem que punha a cara de lado. Cheguei
mesmo a abrir a camisa e a expor o peito ao
tempo. Nenhum vento, nenhuma frescura.
Apenas ausência de calor. Ela bebeu uma
cerveja, encetou uma segunda. Geladinhas
para aumentarem o efeito. Dentro em pouco o
álcool iria aquecê-la e fazer desaparecer essa
sensação de frescura.
-Que nada, vizinho. Está mesmo fresco e não
são duas cervejas que me vão fazer suar. Mas
paro aqui, pois no dia do começo

168
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

do cacimbo quero estar bem lúcida para o


apreciar.
Era de facto uma mudança radical operada
em D. Alzira. Ela nunca sabia parar quando
começava. E prosseguia pelo uísque, até che-
gar ao caporroto, que é aguardente feita em
casa e, dizem os médicos, tremendo veneno.
Parou mesmo na segunda cerveja.
- Como está a sua filha, vizinha? Nunca
mais a vi.
A filha de D. Alzira era uma das belda-
des do largo. Casada com um funcionário
menor, fugiu com um tipo das Nações Uni-
das que lhe dava outras oportunidades nes-
tes tempos de poucos meios e ainda menos
perspectivas. Foi uma enorme buanja lá em
casa, com cenas e ameaças. Uma vergonha
para D. Alzira, dizia ela. Pelos vistos ache-
gada do cacimbo lavou tudo, pois ela disse
que a filha estava óptima, lhe saiu a sorte
grande, agora anda num carro da UNAVEM.
A senhora passou no teste, estava sem res-
saca de vergonha. Só podia ser devido ao
15 de Maio, tive de reconhecer.
- Mas não bebe nada, vizinho? Eu pago.

169
PEPETELA

Geralmente era o contrário. Ela nem se


acanhava a esperar por ofertas , ia logo
pedindo. Lhe fiz a vontade, aceitei uma cer-
veja. Ao menos uma vez fosse ela a pagar.
Até porque cobraria logo a duplicar no dia
seguinte. Pena ela não se ter lembrado de
trazer uns quitutes que sabe fazer e são a
melhor coisa para acompanhar cerveja. Ficá-
mos bebendo encostados ao muro, vendo os
miúdos tentarem encestar a bola numa tabela
feita no passeio. Uma equipa era dos Bulls e
outra dos Spurs. De tanto os ver e ouvir, até já
reconhecia o Jordan e o Pippen. Levantavam
uma poeira dos diabos no largo, que sujava
vidros de casas e carros, mas ao menos esta-
vam entretidos.
- Mas não pode ser só por causa do
cacimbo que está assim tão bem disposta,
insisti eu, sentindo que estava a ser chato mas
sem poder evitar a curiosidade, pura
kuribotice.
- Também há outra coisa. O vizinho não
ouviu dessa coluna que se prepara para sair
de Luanda para o Lobito? A coluna que vai
abrir as estradas à circulação? Então? No sul

170
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

já está mais fresco, essa coluna na volta vai


trazer mais frescura para aqui. E em breve as
pessoas do Planalto nos vão trazer as frutas e
os legumes mais baratos e também o fres-
quinho lá de cima. É tudo isso neste princí-
pio de cacimbo.
Começava a compreender. Uma maneira
como outra qualquer de comemorar.
Mudando de vida. Oferecendo cerveja em
vez de cravar. Bebendo moderadamente.
Vestindo melhor. Estava certo. Mas o meu
cepticismo natural levou a melhor:
-Ainda é cedo para cantar, vizinha. Pode ser
volta o calor de repente, tudo vira fogo. Já
tantas vezes pareceu vir o cacimbo e há sempre
algo que o faz recuar.
-Não percebo nada de meteorologia, mas
sei, desta vez é definitivo. É mesmo o vento
fresco do cacimbo. Vizinho, é preciso acre-
ditar que ele vem. É preciso acreditar.
Bebi a minha cerveja. E não é que, tam-
bém eu, senti uma suave viração profética?

25-05-95

171
PEPETELA

26

O perito americano

GEORGE COSTNER VOLTOU a Angola. Quando


daqui saiu em 1975, heroicamente correndo à
frente da Independência, se chamava Jorge
Costa. Do Brasil foi para os Estados Unidos,
onde se radicou, vivendo do facto de ter nas-
cido em Angola e ser mestiço claro, quase
branco. Nos States assumiu a sua negritude,
como aqui antes assumia a sua branquitude.
Virou perito em assuntos angolanos para
jornais e rádios da comunidade negra duma
das principais cidades da costa leste, era
um irmão de sangue. Mais tarde, esgotado o
filão no leste, passou para a Califórnia, onde
casou com gringa rica, mas com separação de
bens, como gosta de frisar.

172
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

Primo afastado, mereceu jantar e garrafa


de uísque esvaindo-se pela noite, contando as
suas aventuras e querendo aprender coisas
da terra, tão diferente agora da que tinha dei-
xado. Justificou a fuga, vocês eram uns comu-
nistas tramados, quem não tinha medo? Inú-
til o argumento de que muitos ficaram e até
nem se deram mal. Vinha agora investir, pois
era adepto do mercado livre. Claro que não
investia o dinheiro dele, não o tinha, nem o da
mulher, que essa tocava sozinha os seus
negócios. Era uma espécie de representante de
grupos financeiros da comunidade negra
americana. E ia investir no sul. Nascido em
Moçamedes, hoje Namibe, não podia deixar
de privilegiar a terra natal. Mas se fosse pos-
sível (sabia que era difícil e por isso contava
com a minha ajuda), chegaria até à Lunda.
Ah, fiz eu, vais garimpar ou só contraban-
dear os diamantes? Mostrou-se indignado,
nunca fora kamanguista, a sua vida era limpa
como um papel virgem. E queria montar
uma indústria de diamantes, sim, se fosse
possível. Mas tudo legal. Com o dinheiro dos
irmãos americanos, evidentemente.

173
PEPETELA

Mudei o rumo da conversa, os negó-


cios pouco me interessavam e é claro que
não o ia ajudar coisíssima nenhuma. Nem
tinha influência para tanto, mas mesmo se
tivesse ... Não teria uma fotografia da mulher e
dos filhos? Como suspeitava, saiu uma
<<negra>> americana, isto é mais branca que
uma portuguesa comum, com uns oito por
cento de sangue negro se tanto. Mas lá é. E ele
muito orgulhoso, pois como o disse sem a
mínima hesitação ou reserva, lá faz parte dos
irmãos quando convém e no resto do Mundo
passa por branca se der mais jeito. Como
ele, aliás. O meu primo não mudou mesmo
nada, desde os tempos em que se armou em
revolucionário porque era o que mais dava e
depois cavou na hora da verdade porque afi-
nal o pessoal era comunista.
O mais interessante da conversa foi a maneira
como ele sobreviveu na América.
- Conta lá - perguntei eu - como é que de
repente passaste a escrever artigos e análi-
ses, se sempre foste um zero em Português
na escola e ficavas com orelhas de burro
todo o ano?

174
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

Riu muito. Depois de emborcar mais uns


goles de uísque, lá se descoseu.
- Nós, os negros, somos uma irmandade
muito unida. Encontrei nos States um bra-
sileiro que já lá vivia há muitos anos. E ele
um dia viu um bilhete que eu lhe tinha
escrito e achou graça, dizia que aquilo é que
era escrever, porque eu destruía completa-
mente a língua dos colonizadores, neles me
vingava prostituindo-lhes a escrita . Porque
não experimentava escrever sobre Angola,
afinal eu era um perito, ninguém além de
uns universitários sabiam qualquer coisa
sobre o país . Tentei uma primeira coisa
sobre literatura angolana, ele adorou e tra-
duziu. Claro que no inglês ficou tudo cor-
recto, ele eliminava as minhas torturas
ao português do Camões, senão ninguém
entendia. Fez publicar o artigo e assim
fiquei conhecido. Depois ele sempre tra-
duzia o que eu escrevia e recebia uma boa
comissão.
- Mas que sabias tu de literatura angolana
para escrever sobre ela? Nunca leste nada além
da folha desportiva do jornal.

175
PEPETELA

- E é preciso saber? Dois ou três nomes de


escritores eu conhecia, o resto inventei. Eles
não percebiam nada, acreditavam em tudo o
que eu dizia, então não era perito? E sou
mesmo, estou sempre a aprender. Desco-
bri que eles adoravam quando se dizia que
inventámos língua nova a partir das falas de
musseques, pena era as traduções que eli-
minavam essa criatividade. Mas não fiquei
muito tempo pela literatura, isso não vende.
Passei sobretudo para a política, que era o mais
procurado.
- E foste inventando?
- Muitas vezes. Daqui as notícias nunca
saíam a tempo, aquele público não gosta
de comida requentada, ainda menos o que
devia ser novidade. Como estou mais na área
da análise, não é difícil inventar declaração
deste ou daquele, pensamentos íntimos,
confidências ... Quem pode verificar? O que
era preciso era passar a mensagem dum país
em guerra, em que ninguém se entende,
com o sangue a correr pelas ruas, que neces-
sita pois de muito dinheiro dos negros
para se erguer um dia democraticamente.

176
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

A técnica é bater em duas palavras, demo-


cracia, dinheiro . E é sempre artigo bem aceite.
O meu tradutor encarrega-se de o pôr em bom
inglês.
- E dá para viver?
- Não posso me queixar.
Fiquei realmente pasmado. Nunca tinha
pensado que Angola fosse produto que ven-
desse nos Estados Unidos. Na Europa há
muitos peritos como ele, só em Portugal
conheço uns tantos, mas na América não me
constava. Quem sabe, talvez ele tivesse des-
coberto o filão junto da comunidade negra,
pode ser. Mas a meio da noite e já muito
chuchado ele confessava que a mulher não era
nada rica, só remediada, e que mudara para a
Califórnia para escapar de algumas
perseguições que lhe moviam na costa leste.
Começava a enquadrar-se melhor com o
personagem conheci só na infância, mas
cujas estórias de vigarices atravessaram
sempre a memória familiar. O primo estava
masé a tentar vigarizar-me, provavelmente a
querer abancar lá em casa e depois era um
sarilho para dele me livrar , famille oblige .

177
PEPETELA

Pus o perito na rua sem cerimónias, apa-


rece para a semana, vamos fazer um almoço
com alguns amigos. De peritos sobre para-
gens exóticas estou eu cheio, mesmo se pri-
mos .

30-06-95

178
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

27

Os letreiros

AQUI HÁ UNS TEMPOS, um jornalista repor-


tou no diário local alguns anúncios que lhe
chamaram a atenção. Alguns são objecto de
letreiro com letras desenhadas cuidadosa-
mente, outros, mais toscos, são apenas uma
tabuleta escrita às três pancadas. Eis alguns
exemplos que se podem ver nas ruas dos
muceques, mas não só. <<Dasse espelicaçam,
desde da primaira caté na quarta>> é um que
acho curioso mas provavelmente necessita
de tradução: dá - se explicações desde a pri-
meira à quarta classe. Coitados dos explican-
dos, mas esse é outro problema que estamos
com ele. Outro exemplo: . <<Auto-mecânica.
Reparase ambriages, freins, discos, todas

179
PEPETELA

marcas>>. Neste nota-se a mão dum cha-


mado <<regressado>>, isto é alguém que
viveu largo tempo no Zaire ou Congo, o que
vale também para <<Ricochitage de peneus>>.
Outro que me chamou a atenção nesse artigo
foi o muito comum <<Poribido mijar aqui>>.
Um também muito habitual pelas ruas e que o
jornal não referiu é o <<Desfiliza-se kabelu>>
que quer dizer que se desfrisa o cabelo.
Para além dos erros de ortografia que não
me interessam em si analisar agora, o que
quero frisar é que esses anúncios mostram
o horror que o angolano tem por duas con-
soantes seguidas. Vem evidentemente das
línguas bantas em que cada consoante pede
uma vogal. Daí que espelicaçam ou espelica-
ção, peneus quando não pêneus, poribido,
desfilizar ... Eu uso sempre rítimo em vez de
ritmo, que me soa a tremenda pedrada e
que ninguém aqui diz. Alguns chamariam a
vogalização da língua.
Talvez para realçar a crescente consonan-
tização do português de Portugal, sobretudo a
avaliar pelos jovens actores, locutores, ou
entrevistados da televisão. No. Outro. dia,

180
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

um amigo entrou-me em casa quando pas-


sava uma telenovela portuguesa. Ficou um
momento a escutar, depois perguntou: mas
que língua é esta, tu entendes? Julgou que
eu tivesse parabólica e estivesse a capetar
(sic) algum canal de país exótico. Quando
lhe disse que estavam a falar português, não
quis acreditar. Depois lá foi adapetando
(sic) melhor o ouvido. Só comentou: porque
não põem legendas? Para mim esta não era
nova, já no Brasil se falou disso. À despe-
dida, muito tempo depois, ainda disse:
- Meu, estava a pensar propor um acordo
ortográfico para os portugueses só . Nós fica -
mos a escrever na mesma, mas eles deviam
escrever como os árabes. Só põem as con-
soantes , as vogais não são escritas. Para
acompanharem a maneira de falar. Mas da
esquerda para a direita, como sempre fize-
ram, enquanto os árabes escrevem da direita
para a esquerda.
Mas nestas coisas de anúncios de esta-
belecimentos há muito para dizer. Temos o
Roque Santeiro, considerado pela imprensa
angolana como o. maior. mercado aberto de

181
PEPETELA

África. Passe o superlativo, pois sabemos


como somos exagerados em tudo, sobretudo
em relação ao País e suas potencialidades.
A culpa não é bem nossa, os portugueses
ensinaram que Angola é um país porten-
toso, riquíssimo, o El Dourado. Não nos cul-
pem por termos aprendido a lição, mesmo
se ela não corresponde à verdade. A riqueza
não se vê, mas ficou a frase feita, os maio-
res em tudo somos nós. Pois bem, no Roque
Santeiro, onde há de tudo de facto, desde a
venda de legumes a bens industriais, inclu-
sive carros, compra de cartas de condução
com respectivas lições de código, barbearias,
consultas de kimbanda, restaurantes, etc.,
existe uma barraca que ostenta a seguinte
tabuleta: <<Não incomoda. Quengas em ser-
viço>>. Quenga é uma palavra brasileira que
significa prostituta. Aqui usamos tradicio-
nalmente a palavra quitata. Digam lá se esse
letreiro não merecia lugar de destaque num
saboroso romance de Jorge Amado.
E há aquele outro numa rua de Luanda
que se chamou primeiro Avenida do Brasil e
que ria altura da independência passou a ser

182
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

conhecida popularmente por Avenida dos


Massacres por causa dos muitos tiros que aí
houve em 75. Uma oficina de reparações de
automóveis ostenta orgulhosamente o
seguinte letreiro: <<Auto-massacres>>. Até
pode ser que os profissionais sejam com-
petentes, mas carro meu é que não ia para lá,
juro.
Também há avisos intimidativos, indi-
cando o clima de oeste americano reinante na
cidade. Como o vulgar <<Não estacionar aqui.
Com cano de arma não se brinca>>. Ou
então: <<Não pise no passeio . Ou não tens
amor à vida>>. Esperemos que em breve
estes desapareçam, levados por um vento
qualquer de bom senso.
Para finalizar, embora não se tratando de
anúncio, não resisto a contar a última que
apareceu aqui, pois de qualquer modo trata
de questões de linguagem. É a propósito da
nova moeda, chamada Kwanza Reajustado.
O Kwanza antigo perdeu três zeros. Assim,
5oo ooo Kwanzas passam a valer 5oo Kwan-
zas Reajustados. Quer dizer, para as novas
contas, é preciso tirar os três zeros. Por isso,

183
PEPETELA

o António contou que a filha da vizinha foi


reajustada pelo namorado e agora vão ser
obrigados a casar. Questão de nova semân-
tica apenas para um acontecimento já velho.

28-07-95

184
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

28

Feiticeira ou louca, tanto faz

NAQUEIA MADRUGADA fria de cacimbo, estava


uma mulher encostada ao tronco duma
árvore, num muceque perto do aeroporto de
Luanda. Dona Teresa reparou nela quando
abriu a porta da sua casa para varrer a rua à
frente, o que fazia logo que acordava. Foi
ocupar-se das outras lides caseiras. Horas
depois, a mulher continuava na mesma
posição. Dona Teresa estranhou e chamou o
filho, Simba, rapaz malandro de quinze anos,
para perguntar se a senhora queria alguma
coisa, sempre ali à frente da casa. O filho
falou com a mulher e voltou a rir, contando
que a senhora disse que veio do Huambo
para Malanje de avião, mas acabou a gasolina

185
PEPETELA

e ela ficou em cima da árvore. Dona Teresa e


Simba passaram o mujimbo pelo bairro,
através do muro de trás. Um vizinho, regres-
sado do Zaire onde viveu muitos anos, foi o
primeiro a lançar o alarme. <<Não é maluco,
não, eu conhecerr muito bem feiticeiro,
esse é feiticeiro, diz voou caté na árvore.
No Zaire haverr muitos que voa assim
mesmo, é feiticeiro>> .
Foi um rastilho que se propagou pelo
bairro. Em breve se juntaram dezenas de
pessoas à frente da casa de Dona Teresa.
Perguntaram à mulher donde vinha e esta
contou a mesma estória, vinha com outros
no avião do Huambo para Malanje, mas fal-
tou gasolina e o avião (ou ela só?) aterrou em
cima da árvore. Alguns malianos e sene-
galeses que moram no bairro onde lança-
ram com enorme sucesso o famoso cabrité,
género churrasco de cabrito, afastaram-
-se logo, adivinhando o pior. Com efeito,
os mais raivosos dos populares começa-
ram a gritar, veio enfeitiçar o nosso bairro.
Alguns atiraram pedras. Felizmente Simba
foi rápido a chamar a polícia, que chegou a

186
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

tempo. embora a senhora já sangrasse. Foi


levada para a esquadra, onde sofreu um atu-
rado interrogatório e lhe trataram dos feri-
mentos.
Entretanto, os ânimos continuavam exal-
tados no bairro . Os regressados e alguns zai-
renses propriamente ditos defendiam a tese do
feitiço . Os outros achavam que a senhora
era apenas louca, embora não estivesse suja
nem com roupas rasgadas e sebentas, o que
era próprio dos malucos de Luanda que
andam pelas ruas a procurar comida nos
contentores de lixo. Os defensores do feitiço
pareciam possessos, descreviam os horrores
que podiam acontecer no bairro se deixas-
sem lá a feiticeira à solta, seria o anunciado fim
do Mundo. Os malianos iam vendendo o
cabrité, sem se meterem na maka, cinco
vezes por dia virando o rabo para cima nas
suas orações a Allah. E os polícias não sabiam
o que fazer, pois estavam convictos de que
era maluca, mas se a soltassem ela ia para as
ruas e tudo podia acontecer. O problema é
que não a podiam guardar n a esquadra, não é
proibido ser maluco, e os hospitais não

187
PEPETELA

os aceitam, pois há inflação deles e falta de


acomodações. Guardaram-na nessa noite e
deram- lhe comida do refeitório da esquadra.
Soltaram a mulher no dia seguinte, com
muitas recomendações que fosse para outro
sítio, não rondasse aquele bairro. Só que
ela não ligou e voltou para a mesma árvore,
certamente à espera do avião que a levaria
para Malanje. Quando Dona Teresa ouviu
os gritos e veio saber o que passava, já era
tarde para fazer qualquer coisa. Os lincha-
dores se às dezenas e mataram-na à
pedrada e paulada. Depois cantaram vitó-
ria, parecia era fim duma grande batalha ou
dum importante desafio de futebol, o bairro
estava salvo, eles tinham cortado o cancro
pela raiz, os cidadãos honestos podiam dor-
mir tranquilos, o terrível perigo do feitiço
estava afastado. Dona Teresa escondeu a
revolta para as conversas tranquilas com os
vizinhos, coitada da maluca que não podia
fazer mal a ninguém. No entanto, lá bem no
fundo de si própria, também tinha alguma
dúvida. Porque com essas coisas de feitiço
nunca ninguém está seguro. E era estranha

188
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

essa insistência que a falecida tinha de dizer


que viera de avião do Huambo para Malanje e
aterrara em cima da árvore. Podia ser coisa de
maluco, lá isso podia, mas também essa mania
de voar ...
No dia seguinte, um vizinho veio mostrar
a Dona Teresa um anúncio no jornal. Era
a fotografia da finada, com o aviso de que
senhora sofrendo de doença mental tinha
desaparecido e se pedia a quem soubesse do
paradeiro que desse informações. Ai Dona
Teresa mostrou a indignação que contivera
na véspera. Veio para a rua a gritar e mostrar
o jornal a toda a gente, vejam o que vocês fize-
ram, foi um crime . As pessoas encolhiam os
ombros, como é que podíamos saber, quem
voa é feiticeiro e acabou. E se não era feiti-
ceira era maluca, tanto faz. Decididamente, os
linchadores não tinham remorsos, nem sequer
dúvidas.
Dona Teresa telefonou para o número que era
indicado no anúncio e falou com o filho da
falecida, de nome Samuel e habitando
Luanda. E este contou que a mãe fora a única
pessoa da família dele que sobrara da guerra.

189
PEPETELA

O pai e irmãos foram assassinados por altura


dum ataque feito à aldeia e a mãe escapou
porque ficou escondida no mato, onde estava
por ter ido à lavra. Mais tarde Samuel conse-
guiu localizá-la, mas a guerra impedia-o de
ir lá para apanhar a mãe. Até que abrandou a
guerra e ele foi ao Huambo. A mãe estava
louca, nem o reconhecia. Resolveu levá-
-la a Malanje a um kimbanda de fama, pois
os médicos já tinham desconseguido de lhe
tratar. Comprou roupas, mandou-a arranjar
o cabelo, fez que ela tivesse uma aparência
decente e embarcaram no voo para Luanda,
pois não há voo directo Huambo- Malanje.
No dia seguinte partiriam para Malanje,
depois de descansarem em casa dele, Samuel.
Só que, à chegada a Luanda, na confusão do
terminal dos voos domésticos, onde todas as
traficâncias e negócios se passam numa bal-
búrdia indescritível, a mãe se perdeu dele.
Fez tudo para a encontrar, mas nada. Por isso
pôs o anúncio no jornal. E andou a procurar
pelos hospitais sem resultado.
Mais tarde, Dona Teresa comentou com o
filho Simba:

190
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

-Vês como são as coisas? A senhora esca-


pou dum massacre em que morreu toda
a família. Ficou lá abandonada e maluca
naquela loucura toda que foi o Huambo estes
últimos tempos, e sobreviveu. Veio aqui
para se tratar e ficar com o único filho. E foi
morta.
- Já nem louco se pode ser nesta terra,
está- se mal - rematou Simba.

07-09-95

191
PEPETELA

29

Os apelos

QUANDO SE VIVE numa sociedade descrente d


e si própria, o máximo do nacionalismo
é fazer esforços hercúleos para se procurar
temas que aqueçam o orgulho colectivo.
E nós somos nacionalistas, não no sentido
hoje tão difundido da exclusão. do outro,
mas apenas no de nos sentirmos bem dentro
da nossa pele. Andava eu preocupado com
esses magnos assuntos, quando de repente
me estalou na cabeça uma ideia. Afinal, não
temos tanta razão para nos queixarmos .
De facto não podemos apresentar ao mundo
grandes feitos económicos, não podemos
considerar-nos uma grande potência, até
porque não dominamos a tecnologia nuclear

192
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

nem das armas químicas, não apresentamos


competitividade comercial nem inventámos
nenhum produto industrial que os outros
invejem. Dizem uns tantos paternalistas que
temos enormes potencialidades, mas isso é
lá para as calendas e temos de viver é o pre-
sente. No desporto, ainda não conseguimos
nenhuma medalha nos Jogos Olímpicos nem
em qualquer campeonato mundial; ficamo-
-nos por algum ouro numa ou outra modali-
dade à escala de África . Os nossos produtos
culturais seguem o resto, embora esteja-
mos convencidos que somos bons na arte de
mexer abunda nos palcos. Mas, calma aí,
temos um recorde, sim senhor.
Quando me lembrei disso, senti um calor-
zinho agradável, estava salva a Pátria. Mere-
cemos ir para o livro do Guiness nos apelos.
Nisso somos mesmo inigualáveis . De tal
modo fiquei excitado com a descoberta que
fui ao dicionário tentar saber qual a forma
mais correcta de nomear os que fazem um
apelo . Apelador ou apelante, me disseram.
Preferia que fosse apelista, mais de acordo com
a nossa mentalidade. E como vivemos

193
PEPETELA

na ficção, quer no dia a dia, quer nos sonhos,


arrisco dizer que, pronto, nós somos mesmo
grandes apelistas. Querem ver?
Se a avó tem dores de cabeça e não temos
dinheiro para a aspirina, fazemos um apelo.
De preferência à comunidade internacio-
nal, que é o que está na moda. Se notamos
gatos famélicos nas ruas, pois o que resta do
nosso lixo já nem alimenta gato vagabundo,
lançamos um patético apelo à ONU com suas
agências, FMI, Banco Mundial, Cruz Ver-
melha e outras ONGês, sempre dispostas a
mostrar serviço. Se precisamos de comprar
mais carros para se partirem nos buracos
das ruas, a primeira ideia é fazer um apelo
às <<autoridades competentes>> e se estas
não respondem, não temos pejo em recor-
rer mais uma vez à comunidade internacio-
nal. Bolas, essas autoridades e comunidades
todas estão aí para isso, vivem das nossas
necessidades, não há que ter vergonha. Por-
que uma das grandes descobertas do nosso
nacionalismo é esta: se não houvesse quem
apela, não teriam razão de existir os doado-
res, coitadinhos, tão faltas de identidade.

194
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

O exemplo mais interessante para mim


aconteceu no ano passado. No Sul, terra de
estiagens cíclicas que alguns contabilizam
de doze em doze anos (o que resta provar,
pois tudo está virado pelo avesso de tempos
para cá), alguém achou que as chuvas esta-
vam atrasadas. Imediatamente se lançou
um apelo para ajuda às populações esfai-
madas por causa da seca. Grandes paran-
gonas porque o capim já nem podia nascer
para alimentar os rebanhos. Menos de um
mês depois, as mesmas pessoas lançaram
um apelo à comunidade internacional para
apoiarem as vítimas das inundações. É evi-
dente o que se passou: o primeiro apelo foi
tão convincente perante o perigo de seca que
até as nuvens se comoveram e choveu desal-
madamente. O que justificou o. segundo
apelo. logo a seguir. Mas parece que dessa
vez só as nuvens se comoveram, a comuni-
dade internacional fingiu não ter ouvido, a
ingrata. Mas como somos grandes feiticei-
ros, fazedores e desfazedores de chuva, lá
conseguimos amarrar as nuvens e as inunda-
ções pararam, sem ajuda de mais ninguém.

195
PEPETELA

Apelistas militantes, organizamos work-


shops, visitas programadas, conferências
internacionais, colóquios, seminários,
entrevistas e até conversas na. Esquina da
rua, só para termos oportunidade de apelar-
mos. Passamos a cumprimentar-nos, per-
guntando, mas já fez o seu apelo hoje? Esta é
velha, eu sei, mas entra bem aqui.
Este grande movimento cultural tem,
como é óbvio, profissionais competentes na
gente dos órgãos de informação. São aliás
instrumentos indispensáveis para que todo
este esforço tenha algum êxito. E os jorna-
listas estão tão compenetrados na sua mis-
são redentora que não deixam escapar uma.
Se vão ao mercado fazer uma reportagem
sobre a subida dos preços dos produtos ( o que
se tornou em monotíssima rotina), lá têm de
dizer à quitandeira, sirva-se do microfone,
faça um apelo às autoridades competentes.
Se entrevistam um escritor (o que é cada vez
mais raro , no que têm inteira razão, pois é
produto que não vende), terminam com a
inevitável <<não quer fazer um apelo aos
jovens leitores? > Pergunto-me para·. quê,

196
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

mas enfim. Se interrogam um político sobre


uma maka no seio d o partido a que pertence
o entrevistado , lá vem a seguir <<faça então
um apelo aos militantes do seu partido >>.
Aposto que se os cães falassem e fossem
entrevistados, também lhes pediriam para
lançarem um apelo com vistas à criação da
Sociedade Protectora dos Animais.
Para dizer a verdade, não sei quem ganha
mais com os apelos . A resposta imediata é
que somos nós, que tanto berramos que lá
nos dão de mamar de vez em quando. Mas
será? Que seria dos doadores, se não exis-
tissem os mendigos? Como a mãe que fica
cheia de dores nos seios se o bebé não mama.
Assim toda a gente fica satisfeita. A ONU e
suas agências, as ONGês e outras filantro-
pias, derretem-se todas porque ajudam os
pobrezinhos e uma parte disso servirá para
pagar os salários dos expatriados que vão
ajudar o Terceiro Mundo, diminuindo assim
o desemprego no Primeiro. A propósito,
porque será que esses expatriados se vão do
Sul para países do Norte se chamam imi-
grantes clandestinos e indesejáveis? Deve

197
PEPETELA

ser apenas mudança semântica por causa das


latitudes diferentes ... Felizmente já não há
ideologias, mataram - nas no Norte com dois
livros e dez discursos, senão alguns deso-
cupados seriam tentados a dar rótulos feios a
isso. Não nós, que nem temos tempo para nos
coçar, com tantos apelos a fazer.

15-10-95

198
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

30

A arte da diplomacia

TIAGO DOS SANTOS existe realmente, não é


personagem de ficção, embora aqui pudi-
camente. se abrigue debaixo de outro nome.
Se lerem o que segue compreenderão a pru-
dência de arranjar um pseudónimo para uma
pessoa que vive eternamente na corda
bamba, cheio de segredos que poderiam, se
revelados publicamente, criar-lhe sérios
problemas. Cuanza-suíno de gema (como nós
aqui chamamos carinhosamente aos
originários da bela província situada logo a
sul do mítico Kwanza), tem tudo para ser
kaluanda. Ou será que os kalús foram buscar
lá mais abaixo a sua tão célebre idiossincra-
sia? Pouco importa, passemos aos factos.

199
PEPETELA

Um dia o Tiago festejou aniversário. Antes de


entrar na crise da meia idade de que falam os
psicólogos, resolveu convidar amigos para a
sua casa, mesmo em tempo de apertos
financeiros e outros em que vivemos eterna-
mente atascados. Não seriam mais que trinta
pessoas, sequíosas como nós somos, capazes
de esvaziar qualquer contentor cheio de uís-
que. (Aproveito a passagem para repudiar a
frase assassina dum ianque que disse publi-
camente que os angolanos são tão incompe-
tentes que nem seriam capazes de organi-
zar uma bebedeira numa fábrica de cerveja.
Vê-se que ele nunca esteve em nenhuma
farra de óbito cá na banda.)
Estávamos nós na animada festa, onde
também se encontrava a ex-esposa e a actual
do Tiago dos Santos, quando entrou a futura,
isto é, aquela que já está na mira para substi-
tuir a actual, com avançados preparativos de
que conhecemos os detalhes mas não vamos
revelar. Um grupo íntimo de amigos e fami-
liares ficou nervoso, adivinhando borrasca.
Concertámo-nos rapidamente, combinando
estratégias no caso de ... e de ... Chamado ao

200
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

grupo, o Tiago riu das nossas preocupações e


disse que estava tudo sob controlo, não havia
que estabelecer mediações ou preparar pon-
tos de recuo, ele sempre soubera se safar de
situações mais melindrosas. Francamente não
acreditei. E, prevendo o pior, antecipei logo
duas cervejas seguidas para no caso de a
coisa dar para o torto, ser diplomaticamente
expulso dali, mas já suficientemente aviado
para resistir ao assalto dos mosquitos noc-
turnos.
Oito pares de olhos não faziam mais que
seguir as movimentações da sala, em par-
ticular as do nosso amigo e das três donas em
causa. Nada acontecia de mal, ele des-
multiplicando-se em atenções relativa-
mente a cada uma, enchendo. copos, ser-
vindo pastelinhos, tirando uma ou outra
para dançar. Nós só bebíamos, nem nos
atrevíamos a qualquer distracção que pode-
ria ser fatal no caso de ser necessária a nossa
intervenção urgente para apaziguar ciúmes
mais exaltados. Até porque conhecemos as
fúrias repentinas que assaltam as nossas
donas quando se sentem espoliadas, onde

201
PEPETELA

se parte o verniz da contenção e tudo salta cá


para fora . Com inteira razão, teremos de
compungidamente reconhecer. Mas até ali
tudo corria bem, com o Tiago dos Santos a
controlar perfeitamente a situação, fazendo
de impecável anfitrião.
Eis senão quando toca o telefone e um de
nós foi atender . Ouviu o que disseram do
outro lado do fio, voltou para o grupo tre-
mendo. <<A Tina telefonou do aeroporto, vem
a caminho.>> Ficámos literalmente em
pânico . A Tina é uma namorada do Tiago,
mulata benguelense, com quem ele dá umas
escapadelas quando vai à terra das acácias
rubras, o que, diga-se de passagem, é muito
frequente . Particularmente eu, que conheço
as fúrias das mulatas da minha terra, pres-
senti desgraça . Agora é que ia acontecer o
inevitável. Aproveitei adiantar a cerveja em
dois tragos largos, para ir buscar mais uma .
Talvez desse tempo para a engolir antes de
estalar a bronca. Avisei a minha garina para
ficar já com o saco na mão, pois a retirada
teria de ser rápida, estilo filme americano,
pois com garrafas e pratos a voar, ia sobrar

202
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

uma lasca para algum de nós . Ela só me disse,


mas esse kota não se enxerga mesmo, com os
filhos todos a assistir, vai levar uma surra de
quatro mulheres. Avisámos o Tiago que a Tina
vinha também festejar o aniversário. Por
defeito de profissão fiquei atento à reacção do
meu amigo. Pestanejou, mas foi tudo. Logo
disse, fixe, é uma miúda parreira mesmo, a
festa ainda vai ficar melhor. E se postou mais
perto da porta, já cheio de saudades.
A Tina veio com um bolo que tinha feito
em Benguela, com quarenta velas e tudo.
Tiago beijou - a nas faces, antes que a outra
se antecipasse, gritou minha grande amiga,
vem, quero te apresentar, e lá correu a sala
inteira com ela pela mão dizendo veio de
Benguela de propósito para o meu aniver-
sário e com bolo e tudo, digam lá se não
tenho amigos de verdade. O Tiago dos San-
tos, radiante da vida, um senhor, um prín-
cipe, e nós transidos, bebendo o mais rápido
que podíamos, também não íamos deixar as
grades e grades ainda cheias, em riscos de
se esvaziarem pelas paredes quando reben-
tasse a tempestade.

203
PEPETELA

Pois a festa continuou, as quatro sem


perceber a ligação tão íntima que tinham,
todas bebendo e comendo e dançando,
pois achámos que devíamos ajudar o Tiago
a distraí-las e tirávamos agora as donas para
a kizomba e o semba constantemente,
enquanto outros ficavam de prevenção
combativa. As grades foram se esvaziando, a
mesa foi ficando limpa de rissóis, quitaba,
doces de coco, jinguba e outras iguarias, foi
servido o calulú e a feijoada, as conversas
e as gargalhadas soltas pelo ar. E fui acal-
mando e começando a acreditar em mila-
gres . Só que tinha bebido depressa demais
e tudo ia ficando naquela quietude anuncia-
dora das grandes bebedeiras.
A festa terminou da melhor maneira, as
quatro senhoras bem bebidas, agarradas ao
Tiago que só ria, nunca fora tão acarinhado
em aniversários anteriores . Quando. saí,
disse para ele: :<<Meu, tu merecias ser embai-
xador num pais importante. Ou mediador na
guerra da Bósnia. Mas deixa de brincar
com o fogo, pois hoje tiveste sorte.>> O meu
amigo Tiago dos Santos, feliz como só um

204
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

cuanza - suíno pode ficar em tais circunstân-


cias, respondeu: <<Mano, se a vida não tiver
algum risco também não tem piada. >>
Como terminou a noite não sei, nem vocês
têm nada com isso. Mas dois dias depois
encontrei o Tiago dos Santos e ele não tinha
nenhuma cicatriz, antes apresentava ar tran-
quilo de felicidade revisitada.

12-11-95

205
PEPETELA

31

Herbívoros e carnívoros

QUANDO ERA MENINO, influenciado por leitu-


ras diversas e talvez pelas <<pessoas de bom
coração>>, pensava que o Mundo estava divi-
dido em carnívoros e herbívoros, uns mau-
zões e os outros umas cândidas e inocentes
criaturas. Está-se mesmo a ver quem eram os
herbívoros.
Aos fins de semana, os caçadores motori-
zados partiam para o seu passatempo favorito.
E era muito comum acontecer que um jipe
descarregasse os corpos dos animais abati-
dos perto da minha casa. E eu ficava cheio de
pena a contemplar as zebras ou guelengues ou
onjiris (grossos antílopes). E ficava de cora-
ção cheio quando calhava descarregarem um

206
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

feroz leão ou uma traiçoeira onça, a justiça


tinha sido feita. Olhava com raiva os caçado-
res de herbívoros e com indisfarçada admira-
ção o que conseguisse trazer como troféu um
enorme leão, o que penso ser atitude gene-
ralizada. Porque quem matava um leão era
uma espécie de Robin dos Bosques ou cow-
boy justiceiro, personagens que imperavam
na minha imaginação de menino identificado
com herbívoros. No entanto, acontecia que
na semana seguinte, o herói justiceiro des-
carregasse com o mesmo orgulho três cabras
de rabo de leque ou um inocente golungo. E aí
as coisas complicavam-se na minha cabeça,
porque tinha de passar da admiração ao ódio
em relação à mesma personagem.
É claro que estas sensações contraditórias
acabariam por me marcar e sobretudo fazer
reflectir sobre o mundo estranho em que
vivia e em que continuamos todos a viver.
Às tantas acabei por descobrir que as contra-
dições estavam em mim, pois não me punha
grandes problemas de consciência quando
ia caçar pássaros com fisgas, que nós cha-
mávamos chifuta. E o meu herói era o meu

207
PEPETELA

irmão, excelente atirador de espingarda de


pressão, que em meia hora liquidava deze-
nas de bicos de lacre ou viuvinhas, os pás-
saros mais bonitos que existiam na zona de
Benguela. Há quem prefira os sacanjuele
ou os caxinjonjos de um azul metálico, mas
gostos não se discutem. Nunca me ocorreu
chamar o meu irmão de grande assassino, o
que eu queria era ter o direito de o imitar,
quando ainda não me deixavam pegar em
espingardas, de pressão de ar que fossem.
De facto, os pássaros não eram herbívoros,
nem os lacraus venenosos que matávamos.
E os insectos não existiam na minha clas-
sificação para dar uma ordem racional ao
mundo. O que contava era os bichos gran-
des. E o facto de o meu cão preferido ser
grande comedor de carne de vaca também
não me afectava em nada, ele para mim não
era carnívoro, era o meu amigo.
Não sei quando deixei de ser maniqueísta
nestas questões, mas certamente foi por
muito ter ficado perturbado por um pás-
saro que não morreu logo com a certeira
pedra que lhe lancei e ficou muitos minutos

208
CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

a debater - se com as vísceras de fora. Senti o


sofrimento do bicho e de. repente percebi
que ele valia tanto como um grande her-
bívoro, pois sofria tanto como ele. Queria
acabar com o seu sofrimento mas faltava a
coragem de lhe amassar a cabeça com uma
pedra como devia. E fiquei vendo-o se
despedir da vida, enquanto as lágrimas do arre-
pendimento me corriam pelos olhos. Para
me redimir, fiz-lhe um bonito funeral e
durante muito tempo lhe pus flores todos os
dias. E tomei a decisão de estudar para vete-
rinário. Sempre era uma forma de saldar as
dívidas. Não me lembro exactamente se na
minha perspectiva de então isso também
implicaria salvar uma onça ou leão mori-
bundo, provavelmente ainda não seria sufi-
cientemente ecuménico para tanto.
Outras crianças convivendo com o mato e a
natureza terão tido problemas transcen-
dentais semelhantes. E numa geração mais
recente, com a divulgação das concepções
ecológicas, os caminhos terão sido mais sim-
pies. O meu foi sinuoso, porque naquela altura
isso de ter de haver um equilíbrio demográfico

209
PEPETELA

entre todos os seres, em que se comem todos


uns aos outros por necessidade, com excepção
do homem que o faz por prazer, ainda não era
muito conhecido. E se deixei de ver o mundo
dividido entre carnívoros e herbívoros, foi
antes por me ter posto a pensar, numa época
em que a fome apertava, que tinha sido injusto
durante toda a vida. Pensamentos que só ocor-
rem quando se passa mesmo fome a sério.
Por exemplo: o coitadinho do onjiri, o ino-
cente de olhos redondos e puros, que só come
capim, não tem nenhuma angústia ao alvore-
cer. Ele sabe que dormiu sobre a comida que
vai utilizar no dia seguinte. Está ali na chana e
levanta-se, sacode-se para afastar o sono e põe-
se a comer. Nunca lhe passou pela cabeça que
o capim pode faltar. Já o mauzão do leão não
acorda com tanta certeza. Tem de andar e
andar, com as costelas de fora, à procura do
onjiri. E sempre a terrível dúvida a martelar-
-lhe a cabeça: será que o encontro, será que
terei forças para lhe saltar para a garupa? E os
meus filhos que vão comer? Dúvida que pode
corroê-lo de inquietações durante dias e dias,
vendo tudo negro no seu futuro. No fundo,

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CRÓNICAS COM FUNDO DE GUERRA

um é um nababo, vive refastelado em cima da


comida, enquanto o outro é o vagabundo des-
graçado que tem de lutar constantemente por
ela. Diga - se de passagem que outro aspecto
os separa. O onjiri come até fartar, bebe água e
depois dorme, não precisando de fazer planos
de poupança para o futuro. Já o leão, quando
caça, tem de comer por três dias e só volta a
caçar quando a fome aperta, revelando pois um
espírito imprevidente. Quem é a cigarra e
quem é a formiga nesta fábula?
Foi com estes elevados pensamentos alta-
mente contraditórios que me fui educando e
deixando de ver os carnívoros como os maus
da fita e os herbívoros como os bonzinhos.
Entretanto, tinha esquecido há muito a ideia de
estudar veterinária. Quis ser toureiro.
Estas lembranças ocorreram - me ao ver uma
osga a tentar caçar um mosquito. E eu a torcer
pelo caçador. Pudera, era menos um mosquito
a picar-me. Acho que completei a minha
educação.

16-12-95

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