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RO ‘5 a. Lary poone ee >} ) Res pobre cl Beau nile eects ee le Suge ts =) REFLEXOES SOBRE 0 ROMANCE MODERNO. Estas consideragdes sobre 0 romance moderno néo visam a uma apresentacio sistemética ou histori- a, por mais rudimentar que seja, de‘ um vasto setor da literatura atval. © que propomos, nestas péginas, € um jogo de reflexdes, espécie de didlogo lidico com © leitor, baseado numa série de hipéteses.possivelmen- te fecundas. : ‘A hipétese bésica em que nos apoiamos € a supo- igo de que em cada fase historica exista certo tum ‘¢spirito unifcador| que se comunica a “todas as manifestaces de culturas em contato, natu- ralmente com’ variagées nacionais. Falimos nestas 15 péginas da “cultura ocidental”, no tomando em con- ta a8 diversificagées nacionais, Supomos, pois, que ‘mesmo numa cultura muito complexa como a nossa, com alta especializacdo e autonomia das virias esferas — tis como citncas, artes, flosofia — nfo 46 haja interdependéncia e métua influéncia entre esses cam- pos, mas, slém disso, certa unidade de espirito € sen- timento de vida, que impregna, em certa medida, todas estas atvidades ‘A segunda hipOtese sugere que se deva. conside- rar, no campo das artes, como de excepeional inipor- tancia o fenémeno da “desrealizacko” que se observa na pintura e que, hé mais de meio século, vem sus- citando reagSes pouco améveis no grande pablice. O termo “dearealizagio” se refere uo fato de que a pintu- +a deixou de ser mimética, Yecusando a fungio-de_re- produzir ou eopiar a realidade empirica, sensivel. [s0, Sendo evidente no tocante a pintura abstrata ou nio- ~figurativa, inclui também correntes figurativas como © cubismo, expressionismo ou surrealismo. Mesmo estas correntes deiraram de visar a reprodugfo mai ‘ou menos fel da fealidade empirica. Esta, no expres- sionismo, € apenas “usada” para faclitar a expressio de emogtes © visbes subjetivas que the deformam a aparéacia; no surrealismo, forece apenas elementos isolados, em contexto insite, para apresentar a i gem onirica de um mundo dissociado ¢ absurdo;_n cubismo, apenas ponto de partida de uma redugio 4 Suas configurages geométrcas subjacentes. Em todos esses casos podemos falar de uma negacio do relis- ‘mo, se usarmos este termo no sentido mais lato, de- signando a tendéncia de reproduzr, de uma forma es- tilizada ou no, idealizada ou néo, a realidade apreen- ida pelos nossos sentidos. HA intespretagoes diame- tralmente opostas deste fendmeno. Marcel Brion, por exemplo, baseado nas teorias de Worringer, considera a abstrasio (¢ 0 anti-ealismo) como manifestasio cor- 76 riqueira, freqUente_na_histria, de um sentimento de Vida religioso ou pelo menos espiritualizado. “S6 a pintura abstrata pode dar expressio ao que pela sua Drépria esséncia € ndo-figurativo: a um estado psiqui- £0." Jé 0 catélico Hans Sedimayr considera @ arte abstrata (e moderns em geral) um fendmeno tiico na histéria, uma revolugio “‘comé antes nunca _existu”, E além disso julge esta arte profondamente irreligio- sa por nela no se vislumbrarem outros valores. que 0 _puramente estéticos ¢ por tomar-se assim a prépria arte em idoto, ‘Abstendo-nos de tais interpretagdes extremas, ve~ tificamos apenas 0 fato da abstracéo} atribuindo-lhe grande importincia, Desse fato. seguem, ou a cle se ligam, vérios momentos de igual importincia: 0 ser hhumano, na pintura moderna, é dissociado ou “redu- zido” (no cubismo)._deformado (no expressionismo) ‘ou liminado (no néo-figurativismo). 0 retrato de- supareceu, Ademais, a perspectiva foi sbolida ov so- freu, no surrealismo, distorgSes e “falsificagdes”. Sobre este fato hi muitas especulagées fascinantes. A pers- pectiva central, eliminada pela pintura moderna, surgiu no Renascimento; a perspectiva grega, diversa da re- nascentisa, foi introduzida ne época dos sofistas, no século Y 2,C. Como se sabe, a pintura egipcia ov a Pintura européia medieval — para dar s6 estes exem- los — nko conheciam ou néo empregavam a pers- pectiva, As hipéteses sobre esse curioso fenémeno ten- dem a considerar provével que a perspectiva seja um recurso para a conquista artista do mundo terreno, isto & da realidade sensivel. E caracterfstica tipica de Epocas em que se acentua a emancipacio do in- dividuo, fenémeno fundamental da época sofista e re- nascentista : ia_a ilusto do espaco tridimen- jonal, projetando o mundo a partir de uma conscién- cia individual. © mundo é relativizado, visto em rela- 7 fo a esta conscitncia, ¢ constituido a partir dela; mas sa relatividade reveste-se da ilusto do_absoluto, Um ‘mundo relative é apresentado como se_fosse_absoluto, £ uma visio antropoctntrica do mundo, referida & conscitrcia humapa que The imple leis e Optica subje- tivas. Na filosofia ocidental, esta constituigéo do mundo a partir da consciéacia humana surge pela pri- meira vez com os sofistas: “O homem ¢ a medida de todas as coisas” (Protigoras). A visto perspectivica ressurge depois na filosofia pos-renascentista com Des- cartes que pelo menos parte do cogito, supondo ‘como ‘nica certeza inabalével a do\eu existente (é partir dele que Descartes reconstr6i o mundo deste to pela divida). E encontrou sua expresso maxima em Kant que projeta 0 mundo dos “fendmenos” — {sto 6, © mundo como nos aparece, tinico a que ter mos acesso — a partir da consciéncia (no imports, neste contexto, que nio se trata de uma consciéacia individual). E evidente que a visio perspectivca seria impos- sivel na Idade Média. Como a Terra & imével, fixa no centro do mundo, assim o homem tem uma posi slo fixa no mundo e nfo uma posiglo em face dele. A ordem depende da mente divina ¢ no da humana. Nilo cabe ao homem projetar a partir de si um mundo 4e cuja ordem divina ele faz parte integral, que ele spe- nas apreende (em parte) € cuja constityicho nfo de- pende das formas subjetivas da sua conscitncia. No momento em que a Terra comesa a moverse, essa fordem parece fadada & dissolucio. A reviravolta co- pemiciana 6 seguida de outra, no dizer de Kant: jé no é 0 mundo que prescreve as leis & nossa cons- Jéncia, € esta que prescreve as leis ao mundo. Antes de tudo, prescreve-the as perspectivas de esparo e tem po, formas subjetivas da nossa consciéncia, mercé das quais projeta a reclidade senstvel dos Jendmenos. 78 Nossa segunda hipétese resulta, portanto, na afirmagio de que a pintura modema)— eliminando ou deformando o ser humano, a perspectiva “ilusionista” ea realidade dos fendmenos projetados por ela — é expresso de um sentimento de vida ou de uma atitu- ie renegam_ou pelo menos pSem_em dé vida a “visio” do mundo que se desenvolveu a partir do Renascimento. Merece, alids, ser salientado que @ negacdo do ilusionismo ¢ particularmente bem caracte- rizada no teatro. Este, a0 abandonar a partir dos ini- clos do nosso século as convengées tradicionais, 0 pal- “co A italiana, a imitasdo minuciosa da vids empiric, tal como visada pelos naturalists, comega a s¢-con~ fessar teatro, méscara, disfarce, jogo cénico, da mes- ‘ma forma como @ pintura moderna se confessa plano 4e tela coberta de cores, em vex de simular 0 espago tridimensional, volumes ¢ figuras. © crtico teatral 8. Melchinger ressalta com precisio que, da mesma for- ma como o desenvolvimento da pintura Jevou do fe- némeno individual “érvore” & linha ou cor paras ou a organizagio abstrata da superficie, assim o desen- volvimento do teatro conduz a reconstituigio dos seus fenémenos especificos: do ludus (jogo) que precisamente ndo é a realidade, da pega, que nio & a vida, da cena, que nfo é 0 mundo, © paleo & italiana era tipicamente um palco pers- pectivico. A cena moderna, “espacial”, sem caixa de palco, cena que faz parte da sala de tspetéculos, sem separar-se dela pela moldura que a “enquadra” ¢ cons- titui como mundo distinto, € nitidamente aperspect- vica. Hi uma interpenctragio entre 0 espago cénico ¢ © espago empirico da sala que borra a perspectva Resultado semelhante decorre dos teatros de arena Recorrendo & nossa primeira hipétese da. uni de espiritual das fases histéricas, chegamos & nossa ter- ceira hipétese: tais alteragées.profundas, verifcadas nna pintura (e também nas outras artes), devem, de 9

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