You are on page 1of 4
TRIBOS URBANAS: METAFORA OU CATEGORIA? José Guilherme Cantor Magnani RESUMO: este artigo tem como objetivo discutir a expressio “tribos urbanas", de amplo uso nos ‘meios de comunicagao e em estudos académicos, procurando distinguir suas diferentes conotagBes € os limites de seu emprego como categoria, UNITERMOS: Sociabilidade - Jovens - Dindmica Urbana, SELVAGENS, DESAJUSTADOS Quando a imprensa noticia certo tipo de ocorréncia, geralmente envolvendo grupos de’ jovens ou adolescentes = enfrentamentos entre bandos rivais, comportamento em shows ¢ festivais, pichagdes, etc. - inevitavelmente aparece o termo "tribos urbanas” no box explicativo que acompanha a matéria, Com essa referéncia 0 que se pretende é introduzir algum principio de ordenamento num universo que se caracteriza exatamente por sua fragmentagio e ~—_singularidade. Analisando mais de perto essa tentativa de explicagao, percebe-se que o carter das transgressdes identificadas em tais manifestagdes no extrapola um limiar até certo. ponto previsto e tolerado como caracteristico de determinada faixa etdria. Quando os efeitos de tais praticas vao além desse limiar, muda o enfoque: esta-se no ambito da delingiiéncia, do banditismo, da violéncia urbana. Algumas dessas ocorréncias, contudo, oscilam perigosamente entre as fronteiras do tolerado e do francamente reprovado: ¢ 0 caso das pichagdes, que introduzem uma contradigzo entre a natureza de seus protagonistas (“adolescentes em fase de auto-afirmagao") e os danos que suas intervengdes produzem no patriménio piblico ou privado. Fica-se na divi entre acionar os policiais da Secretaria de Seguranga, os psicdlogos da Satide ou 0s tedricos da Secretaria da Cultura, Um pouco "selvagens" demais, os integrantes dessa tribo. Esta situacdo mostra, entre outras coisas, a ambigtidade do uso do termo "“tribos urbanas" em seu uso corriqueiro, do senso comum, tal como aparece na imprensa. Que dizer, ento, de seu emprego em pesquisas ¢ trabalhos ditos cientificos? METAFORA OU CATEGORIA A Primera _observagto | ¢ quando se fala em "tribos urbanas” é preciso ndo esquecer que na realidade esti-se usando uma metafora, no uma categoria. E a diferenga é que enquanto aquela é tomada de outro dominio, € empregada em sua _totalidade, categoria é construida para recortar, Cadernoe de Campo descrever e explicar algum fenémeno a partir de um esquema conceitual previamente escolhido. Pode até vir emprestada de outra area, mas neste caso deverd passar por um processo de Teconstrugao. A metifora, no: traz consigo a denotagéo e todas as conotagées distintivas de seu uso inicial. Por algum desses tragos é que foi escolhida, tomnando-se metafora exatamente nessa transposigio: o significado original é aplicado a um novo campo. A vantagem que oferece ¢ poder delimitar um problema para o qual ainda no se tem um enquadramento, E usada no lugar de algo, substitui-o, di-lhe um nome, Evoca 0 contexto original, em vez de estabelecer distingdes claras € precisas no contexto presente, E 0 problema que acarreta ¢ que dd a impressio de descrever, de forma total e acabada, o fendmeno que se quer estudar, accitando-se como dado exatamente aquilo que ¢ preciso explicar. Para apreciar devidamente os limites e alcances de seu emprego, é preciso antes de mais. nada ter presente qual_é 0 dominio, o sistema de significagdes de onde foi tirad: E qual é 0 dominio original de “tribo"? A etnologia e, nela, uma forma de organizagao de 'sociedades que constituiram 0 primeiro e mais significative objeto de estudo da antropologia. Nao deixa de ser sintomatico 0 fato de se tomar emprestado um termo usual no estudo das sociedades de Pequena escala para _—_descrever fenémenos que ocorrem em sociedades contemporaneas altamente urbanizadas € densamente povoadas. O recurso parece deslocado mas é exatamente isso que se quer com o uso de metéforas: um de seus efeitos é projetar Juz de forma contrastante sobre aquilo que se pretende explicar. Para poder avaliar até que onto esse termo ajuda a entender tais 49 trbor urbanos fendmenos, nas sociedades complexas, € preciso’ inicialmente descobrir_ os significados que ele tem no campo em que & manejado como termo técnico, nas sociedades "simples". O segundo asso é identificar que relagdo existe entre o recorte original e aquele que se produz com a utilizagio no novo contexto, Sem entrar em detalhes e controvérsias que nfo cabem nos limites e propésito desta comunicagao, podle'se dizer que ribo constitu uma forma de organiza¢ao mais ampla que vai além das divisdes de cla ou Jinhagem (parentesco) de um lado e da aldeia, de outro. Trata-se de um pacto que aciona lealdades para além dos partcusrsmos de grupos doméstics ¢ locais. E 0 que é que vem & mente quando se fala em "tribos urbanas"? Exatamente 0 contrério dessa acepcao: pensa-se logo em pequenos grupos bem delimitados, com regras e costumes particulares em contraste com o cardter homogéneo e — massificado que ‘comumente se atribui ao estilo de vida das grandes cidades. Nao deixa de ser paradoxal 0 uso de um termo para conotar exatamente o contrario daquilo que seu emprego técnico denota: no contexto das sociedades primitivas 1 Cf. Evans-Pritchard, E.E., Os Nuer, Sio Paulo, Perepectiva, 1978; Sahlins, Marshall, Sociedades Tribais, Rio, Zahar, 1970. ‘Atualmente hd quem discuta a legitimidade desse uso do termo tribo: argumenta-se que a categoria apropriada, em qualquer caso, & sociedade. Tribo nio passaria, entio, de uma designasao inedequada porque empregada para designar sociedades indgenas sem reconhecer seu direito e estatuto de verdadeira sociedade frente’ sociedade nacional, inclusiva. Levando-se em conta, porém, 0 sentido ¢ contexto do uso do termo tribo por imimeros autores -além dos citados - rmantémse, neste texto, a referéncia ao seu uso mais tradicional. Cadernor de Campo “tribo" aponta para aliangas mais amplas; nas sociedades complexas evoca ' particularismos, _estabelece Pequenos recortes, exibe simbolos e marcas de uso e significado restritos. Por isso € que néo se pode tomar um termo de um contexto e usé- lo em outro, sem mais - ou a0 menos sem ter presente as redugSes que tal transposigao acarreta, Como categoria, tribo quer dizer uma coisa; enquanto metafora, ¢ forgada a dizer outras, até mesmo contra aquele sentido original Sendo metafora, "tribo" evoca, mais do que recorta. E evoca 0 qué? Primitivo, selvagem, natural, comunitério caracteristicas que se supde estarem associadas, acertadamente ou no, a0 modo de vida de povos ‘que apresentam, rum certo nivel, a organizagao tribal. © fato de substituir a precisio do significado original por imagens associadas de forma livre € algumas delas incorretamente) é que dé a0 termo “tribo" seu poder evocativo, permitindo-lhe designar realidades ¢ situages bastante heterogéneas. USOS E ABUSOS Esta liberdade que a metafora possibilita ndo a desqualifica em contextos de pesquisa ¢ anélise; exige, contudo, que se tenha presente que seu emprego néo é univoco e que se tomem 68 cuidados correspondentes, sob pena de, ai sim, tomé-la equivoca, Sem esse exercicio ‘prévio corre-se 0 risco de iniciar 0 trabatho na base de uma convengao do tipo: rodos sabem do que se esté falando, quando na realidade cada qual 1é 0 termo em questo (no caso fribo) com um significado diferente. E, na maioria das vezes, segundo 0 senso comum mais rastaqiiera. ‘A. seguir, rapidamente, alguns significados de seu emprego em textos a respeito da cidade e seus personagens. sribosurbonas Um primeiro significado, mais geral, de mibo urbana, tem como referente determinada escala que serve para designar uma tendéncia oposta 20 gigantismo das instituigdes e do Estado nas sociedades modernas: diante da impessoalidade e anonimato destas ‘kimas, trio permitiria agrupar os iguais, possibilitando-thes intensas vivéncias comuns, 0 estabelecimento de lagos pessoais ¢ lealdades, a criagio de codigos de —comunicagio. ee ‘comportamento particulares Em_ outros contexto, ribo evoca 0 "primitivo" e designa pequenos grupos concretos com énfase no jé em seu tamanho, mas nos elementos que seus integrantes usam para estabelecer diferengas com 0 comportamento “normal": os cortes de cabelo ¢ tatuagens de punks, carecas, a cor da roupa dos darks e assim por diante, Quando evoca o "selvagem", 0 termo “‘designa principalmente ” 0 comportamento agressivo, contestatério ¢ "antisocial" desses grupos e as praticas de vandalismo e violéncia atribuidas a outros como as gangues de pichadores, as torcidas organizadas. Grandes concentragdes_- concertos de rock em estadios, shows, © outras manifestagdes (envolvendo consumo de drogas_ ou comportamentos coletivos tidos como irracionais) ensejam também 0 emprego de “tribos urbanas". Neste caso o que se evoca é algo _ confusamente imaginado como "ceriménias primitivas totémicas". E assim por diante. Por ultimo, & preciso ainda levar em conta que até mesmo a Particular idéia que vé na tribo indigena_ uma comunidade homogénea de trabalho, consumo, reprodugio e vivencias, através de mitos e ritos coletivos?, nao se aplicaria as 2 Homogeneidade que esté Longe de caracterizar a cultura, o modo de vida, os Cadarnce de Carpe chamadas “tribos urbanas": sob esta denominagio costuma-se designar grupos ‘cujos _integrantes _vivem simultinea ou alternadamente muitas realidades e papéis, assumindo. sua tribo apenas em determinados periodos ou lugares. E 0 caso, por exemplo, do _fungéo que oito horas por dia ¢ office- boy; do vestibulando que nos fins de semana é rockabilly, do bancério que © expediente & dark, do io que a noite € gotico; do secundarista que nas madrugadas é pichador, e assim por diante. CONCLUINDO Uma anilise das utilizagdes mais freqdentes da expresso ‘tribos urbanas" mostra que na maioria dos casos nfio se vai além do nivel da metéfora. Assim, esse termo - a menos que empregado apés um_ trabalho prévio com 0 propésito de definir seu sentido e alcance - nao é adequado para designar, de forma univoca’ e consistente, nenhum grupo ou comportamento no contexto das praticas urbanas. Pode constituir um ponto de partida, mas no um instrumento capaz de _ descrever, classificar ¢ explicar as realidades que comumente abrange. Ao invés de tentar reduzir os miltiplos grupos ¢ priticas a um suposto denominador comum, mais proveitoso seria explorar’ sua diversidade na paisagem urbana, procurando determinar as relagdes que estabelecem entre si € com outras instancias da vida social Uma possivel estratégia de pesquisa poderia, por _exemplo, comegar por um primeiro recorte, 0 da faixa etéria, para ficar no universo de jovens e adolescentes. O passo seguinte sistemas simbélicos desse tipo de sociedade. st ribo urbanar seria escolher como eixo da anilise uma (ou varias) das _facetas normalmente presentes na constituigao e dindmica’ desses grupos: 0 estabelecimento de lagos de sociabilidade, a énfase nos ritos de passagem, a presenga de cédigos de Giferencngio, ee formas do uso © apropriagao “do espago._urbano, as modalidades —preferidas—' de entretenimento e lazer, etc. Um levantamento etnografico encarregar- sein de mostrar a forms concreta © distintiva que cai ‘ou aquele escolhido como She 0 da pesquisa = dé a alguma dessas praticas. Ai, sim, até que se poderia fazer referéncia’ as ‘sociedades tribais pois nelas, assim como em outras formas de organizagio social, existe um cuidado especial com aqueles momentos em que membros de conjuntos etérios em tempos de iniciagdo exercitam-se aprendendo, contestando ou pondo prova a consisténcia das _relagdes sociais que logo terfo que assumi passado 0 periodo da liminaridade - jé ento revestidos de um novo status.

You might also like