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R. Fac. Educ., Sao Paulo 14(1):43-52, jan./jun. 1988 A CRECHE NO BRASIL: MAPEAMENTO DE UMA TRAJETORIA* Zilma de Moraes Ramos de OLIVEIRA ** RESUMO: Conhecer um pouco da histéria da creche no Brasil pode escla- recer os debates que se realizam hoje sobre como ela pode promover o desenvol- vimento da crianca e quals propostas educacionais para a creche devem ser clabo- radas, Mapear a trajetoria da creche na zealidade brasileira inclui detectar a dina mica subjacente ao discurso de diferentes setores da sociedade quanto a questéo eas iniiativas empreendidas, inserindovos no contexto Iistorico da soviedade bra- sileira, , PALAVRAS-CHAVE: Atendimento a criancas de zero a seis anos. Educagio pré-escolar. Em diferentes paises no decorrer deste século, quando se dé a intensificagéo da atividade industrial e aumento da migragéo campo-ci- dade na crescente urbanizagaio, pode ser pensado o uso politico que tem sido feito da questio de qual seria o atendimento ideal para cri- angas de pouca idade. Seria aquele propiciado pela propria mae, que dai nao poderia exercer trabalho remunerado fora de casa, ndo po- dendo, portanto, competir com os homens em periodos de poucas opor- tunidades de emprego? Seria possivel, por outro lado, pensar na cria- g&o coletiva de criangas em instituigdes especializadas como alterna- tiva valida & educacdo estritamente familiar, tal como tem sido pro- posto e implementado em Israel, na China e, em alguns momentos, na Italia, na Franca? Para se entender as dificuldades e os conflitos que esta situagao acarreta, ha que ser lembrado que, na ideologia sobre a divisio de traba- Tho no interior da familia que prevalece em nossa sociedade, cabe & mulher nao apenas a responsabilidade pela guarda e cuidado dos fi- Thos, mas também pela efetivag&o de tedo um conjunto de tarefas do- ‘+ Protessora Agsistente do Departamento de Metodologia do Enaino e Educagio Compa- rade da Faculdade de Zducayio da Universidade de SHo Paulo. * Apresentado no II Somindrio Regional da SRWC/Sudeste, Sko Paulo, USP, abril de 1987, este trabalho inclut-se no coletive de pesquisas accrea de Condigdes de Desenvol- vimento das Criangas em Creches, coordenado pela Profa. Dra. Maria Clotilde Rossetti Ferreira, da FFCLRPUSP, com o auxilio do CNPq ¢ FAPHSP. 44 ZILMA DE MORAES RAMOS DE OLIVEIRA mésticas ligadas 4 alimentag4o, cuidados relativos ao vestir, limpar a casa, e outras. Conforme a camada social a que pertenca, a muther pode, ela propria, assumir estas tarefas ou cuidar para que alguém, em geral outra mulher, o faca sob forma de servicos de uma empre- gada doméstica. Todos estes pontos foram levantados porque torna-se instigante pensar a creche como contexto de desenvolvimento para a crianca pe- quena, desde que, cada vez mais mulheres de diferentes camadas so- ciais est&éo assumindo trabalho e outras atividades fora de casa, como o estudo e a participagio na comunidade necessitando, portanto, de ajuda no cuidado e educacdo de seus filhos. Como ocorre em todas as outras formas pelas quais uma dada socie- dade cria uma instituigio para responder as suas necessidades, a cre- che insere-se a cada momento, em um contexto mais abrangente, onde concepgées sobre crianga, mulher, familia, educacdo infantil, traba- Iho em geral, trabalho feminino, direitos sociais, obrigacdes do Esta- do vao sendo modificados. A histéria_ da creche liga-se a_modificagées no em nossa_so as repercussdes no dmbito « ilia, em ‘¢ pecial no ducacdo dos filhos, As mudancas daque- Je papel inserem-se no conjunto complexo e contraditério de fatores presentes em nossa organizacio social com suas caracteristicas eco- némicas, politicas e culturais. Conhecer um pouco da histéria da creche no Brasil pode escla- recer os debates que se realizam hoje em diferentes instituigdes sobre como promover o desenvolvimerito da crianga e sobre que propostas educacionais para a creche devem ser elaboradas. Na realidade br: ileira,.a_creche deve ser pensada no 4mbito da _ evolugéo da economi capitalista_no pais, que incluiu"a& @xpansao da » atividade industrial e do setor de servicos, dentro de uma perspectiva de urbanizacéo cada vez maior. Ha que se considerar que, em sua trajetéria, o desenvolvimento urbano nao se fez em ritmo constante, nem sem problemas. Antes tem refletido as multiplas contradicées da organizacéo econémica, politica e social do pais. Nele coexistem cres- cimento com miséria e desemprego, havendo desigual uso dos bens -sociais pelas diferentes camadas sociais. Até 9 inicio do século, o atendimento de criangas em creches ine- xistia basicamente no Brasil. © que havia no sentido de cuidado da__ crianca pequena Jonge da mae no meio rural a absorcao natural das intimeras criangas érfas ou_aband , filhos bastardos originados 2 § nulher negra e india pelo _senhor branco, adotados por familias de fazendeiros, ou o recolhimento das mesmas nas “rodas de expostos” existentes em algumas cidades, cria- R. Fac. Educ., 14(1):43-52, 1988 A CRECHE NO BRASIL: MAPEAMENTO DE UMA TRAJETORIA 45 das desde o inicio do século XVIII por entidades religiosas que procu- ravain fazer com que elas fossem conduzidas a um oficio quando gran- des. preparando-as, pois, como méo-de- Obra barata _(Mesgravis-1975). eee assemelhadas As idéias de abandono, nham as formas précafias « pel e, por muito tempo,.talvez mesmo até hoje, fais idéias vio permear concepgées acerca do_que_é creche. Esta situagéo em relacao ao cuidado de criangas pequenas longe da mae, que vinha desde os séculos XVII, XVII e XIX, vai modificar um pouco quando se iniciou a implantacéo de inddstrias no pais, a par- tir da segunda metade do século passado, Intensifica-se ai a transforma- c&éo de uma estrutura econémica agraéria, onde o trabalho podia ser realizado pela familia, para uma estrutura industrial que passa a in- cluir a separagdo fisica entre local de moradia e local de trabalho e onde cada individuo era considerado como assalariado independente. -destinadas ‘a clidar ‘dos problemas dos pobres: 0b Como a maioria da mao de obra masculina estava na lavoura, as fabricas criadas na época tiveram de incorporar grande numero de mulheres no trabalho, © problema do cuidado de seus filhos enquanto trabalhayam nfo foi, todavia, considerado pelas indUstrias que se esta- beleciam, o que levou a solugdes emergenciais criadas pelas préprias maes em seus ntcleos familiares ou as oferecidas por outras_mulhe- res que se propunham a cuidar dos filnos.das operarias em troca de__ dinhelro,| A urbanizacéo e a industrializacio trouxeram, pois, em seu bojo um conjunto amplo de fatores que modificaram a estrutura familiar tradicional no que se refere ao cuidado aos filhos pequenos. Tal mo- dificacéio foi logo sentida entre as mulheres das camadas sociais mais pobres, que tiveram que assumir trabalho remunerado para garantir a propria sobrevivéncia da familia, muitas vezes na situagéio de che- fe da casa. Todavia, embora a necessidade de ajuda ao cuidado dos filhos pe- quenos estivesse ligada a uma situagéo criada pelo préprio sistema econémico, tal ajuda ndo foi reeonhecida como um dever social, sendo apresentada como um favor prestado, um ato de caridade, de certas pessoas ou grupos. J& no inicio deste século, passaram as fabricas também a absor- ver imigrantes europeus que chegavam, em geral jovens e do sexo masculino ¢, portanto, imediatamente produtivos (Dean, 1978). En- tre estes havia trabalhadores mais qualificados e politizados pelo con- tato com movimentos operdrios que ocorriam na Europa e nos Esta- dos Unidos. R. Fac. Educ, 14(1):43-52, 1988 46 ZILMA DE MORAES RAMOS DE OLIVEIRA Decresce nesta época a participacéo da mulher no setor operario com a incorporagéo dos imigrantes e com a maior tendéncia dos ho- mens aqui nascidos para se incorporarem ao trabalho fabril. Perma- nece grande, todavia, a proporcéo de mulheres no trabalho agricola. Apesar do decréscimo daquela participacdo, o problema da mulher-ope- ) raria em relacdo a seus filhos pequenos teve de alguma forma peque- no atendimento a partir dos movimentos operérios atuantes na dé-{ cada de 20 nos centros urbanos mais industrializados do pais. Aqueles °,” movimentos procuravam organizar os operérios para lutarem por seus [ direitos e protestarem contra as condicdes precarias de trabalho e de | vida a que se achavam submetidos: baixos salarios, longas jornadas .. de traballio, ambiente insalubre, emprego de mao de obra infantil. Havia no Brasil, ao estourar a Primeira Guerra Mundial na Euro- pa, varias centenas de sindicatos, em sua maioria de orientac&o anar- co-sindicalista e, principalmente, compostos de imigrantes, (Dean, 1978). Tais sindicatos eram combatidos fortemente pelas associagées comerciais e industriais, ou seja, pelas associagées patronais também entéo criadas. Os empresarios, procurando enfraquecer os movimentos operérios, foram por sua vez modificando sua politica de repressao direta aos mesmos e concedendo certos beneficios sociais como forma de disci- plinar, de arrefecer suas oposicdes, controlando as formas de vida dos operarios, dentro e fora da fabrica. Segundo Rago (1985) o desejo patronal era de impedir a auto construcaéo espontanea do proletariado enquanto classe e era realizado de modo cada vez mais sofisticado e ramificado & medida em que a maior organizagio do movimento operario ameacava fazé-lo escapar do controle do poder. A pratica patronal oscila entdo entre o exerci- cio da repressao direta e o “paternalismo” defendido por alguns patrées. Sob o manto do paternalismo e para atrair e reter a forga de trabalho, Vio sendo_criadas vilas operdrias, clubes esportivos e- ta¥i< bém algumas creches e escolas maternais para os filhos de operarios, em cidades como Rio de Janeiro, Sao Paulo e varias cidades no in- terior de Minas Gerais e do Norte. Sendo de propriedade das empresas, estes equipamentos sociais eram usados por estas no ajuste das rela- cdes de trabalho (Blay, 1975). O fato de o filho da operaria estar sendo atendido em creches ou escolas maternais montadas pelas fabricas passou, inclusive, a ser reconhecido por alguns empresdrios como trazendo vantagens para a produgao da mae (Pinheiro e Hall, 1981, p. 212). Nos centros urbanos que se industrializavam rapidamente e que nao dispunham de infra-estrutura urbana em termos de saneamento basico, moradias, etc., sofrendo assim o perigo de constantes epidemias R. Fac. Educ. 14(1):43-52, 1988 A CRECHE NO BRASIL: MAPEAMENTO DE UMA TRAJETORIA 47 a creche era defendida, na década de 30, por sanitaristas preocupados com as condigdes de vida da populacdo operdria, ou seja, com a pre- servacio e reproducaéo da mao de obra importada, que dispunha, em geral, apenas de moradias insalubres (Blay, — 1975). Estas poucas conquistas ocorridas em algumas regides operdrias _ nao se fizeram contudo sem_conflitos, Tanto o discurso dos patrées come o prdéprio movimento operaério consideravam um ideal de mulher voltada para o lar, o que contribuia para que as poucas creches cria~_ das continuassem a serem vistas como paliativos, como situacgao and-— mala (Pena, 1981). Nao era colocado que a inserg&o contraditéria da mulher no mercado de trabalho era prépria da forma de implantagao capitalista, aprovada pelo patriarcalismo da cultura brasileira. As poucas creches fora das industrias, nas décadas de 20, 30, 40 e 50, eram dé responsab lade de entidades filantrépicas laicas e, prin- sua maioria, estas entidades foram, com 0 tempo, passando a receber ajuda governamental para desenvolver seu trabalho, além de donativos das familias mais ricas. Em geral, o trabalho junto as _criancas nas.creches era_de_cunho -—paseistencial-custodal, A preocupacdo era com alimentar, cuidar da hi- giene e-da_seguranca fisica. e era Vi icacéo, para_o desenvolvimento intelectual e afetivo das Enguanto isso, Os _primeitos jandins de infamcla,eriados desde a Ultima_déca lo para _os fi rivile a8, desenvolviam toda uma programacho pedagégica, como rela’ te fo (1986) analisando as origens da pré-escola em Séo Paulo. Na década de 30, no quadro das tensées sociais existentes e pro- curando regulamentar as relagdes entre patrdes e empregados, 0 Go- verno Vargas, ao mesmo tempo que resguarda interesses patrimoniais, reconhece alguns direitos politicos dos trabalhadores, criando para isso algumas legislagGes especificas, A manutengdéo da ordem social pelo Estado adotava desta forma uma estratégia combinada de represséo e de concessées as reivindicagdes dos trabalhadores, no terreno da le- gislacdo social (Gomes, 1982). A _Consolidagio das Leis do Trabalho de 1943 ja dispde_alguns © pontos sobre o atendimento dos filhos loras, Toudan- gés_na CLT ocorridas em 1967 colocam o TndTments a0 filho das trabalhadoras apenas como a organizagéo dé bercarios pelas eripre- sa ¢ abrindo espace para_que Guiras entidades, que ié nao a propria em- presa empregadora da mae, realizassem aquéla tarefa através de con- vénios. © poder _pablico -nso-se-ropunha a assumir a criagao de creches e tampouco cumpriu, desde ent&o, o papel iscalizador da oferta de R. Fac, Educ. 14(1):48-52, 1988 48 ZILMA DE MORAES RAMOS DE OLIVEIRA bercérios pelas empresas. Em geral, esta bequena conquista nao foi efetivada. Poucas creches e bergarios junto 4s empresas _sfio entéio organizados. Novo aumento da participagéo da mulher no mercado de trabalho foi observado na segunda metade deste século, explicado pelo incre- mento da industrializagao e da urbanizag&o no pais. Creches e par- ques infantis que atendessem criancas em periodo integral passam a ser cada vez mais procurados por operérias, empregadas domésticas, trabalhadoras no comércio e funciondrias pUblicas (Oliveira, 1985). No perigdo de 1940-60, quando se intensificam as politicas popu- listas que respondiam ao agravamento dos conflitos sociais no ambi- to do projeto nacional-desenvolvimentista que se buscava implan- tar, continuou_o atendimento_em creches a ser feito de forma - assistencialista. © destaque ao tema é dado pelo discurso médico, que volta a pro- por medidas de promocao dé satde junto 4 populacéo mais pobre, e por certos grupos sociais preocupados com a organizacéo de instituicdes para evitar a marginalidade e a criminalidade de vastos conjuntos de criangas e jovens daquela populagéo. Estas perspectivas defendiam vantagens da creche como agéncia promotora da seguranca é da sade, sem contudo aprofundar uma ahdlise critica dos fatores econémicos, Politicos e sociais presentes nas condigdes de vida da populac&éo mais pobre. Novos elementos 4 questéo do atendimento em creches sao trazi- dos a partir da década_ de 60, especialmente. O crescimento do opera- riado, 0 comeco de organizagao dos trabalhadores do campo para rein- vindicar melhores condigées de trabalho, a incorporagdo crescente também de mulheres da classe média no mercado de trabalho e a redu- Gao dos espagos urbanos de brinquedo para as criangas, como os quin- tais e as ruas, fruto da especulagaéo imobiliaria, do agravamento do transito e da preocupacéo com a seguranca, contribuiram para que a questo da creche fosse novamente defendida como instituig&io neces- séria a alguns segmentos sociais,, As caracteristicas do sistema econémico adotado no Brasil, de capi- talismo dependente e concentrador de riquezas, continuou impedindo que a maioria da populacdo tivesse satisfatorias condigées de vida. O baixo salério e a falta de extensio de servicos de infra-estrutura urba- na para atender as necessidades sociais agravam a quest4o da creche, que nessa altura nao é mais aceita apenas como uma ajuda filantrépica . cu empresarial, mas comeca a ser reivindicada pela populacéo mais pobre como necessidade de maes, que precisam trabalhar pela subsis- téncia da familia. No periodo dos governos milita: a-nivel federal, através de Orgaos s_pés-1964, as politicas adotadas - 0 o Departamento Nacional da R. Fae. Educ, 14(1):43-52, 1988 A CRECHE NO BRASIL: MAPEAMENTO DE UMA TRAJETORIA 49 Crianga, LBA, a FUNABEM, continuam a acentuar a idéia de creche como equipamento social de assisténcia a crianca carente, intensifican- do-se ainda mais a politica de ajuda governamental as entidades filan- trépicas. Muitas destas, influenciadas pelo tecnicismo que vai se infil- trando na rea de Servico Social, | passam a esbocar uma orientagao mais técnica a seu trabalho junto as criancas, incluindo preocupagées com aspectos da la educacéo formal. (Vieira, 1986) Nesse contexto, teorias de_privacdo cultural foram _invocadas nas décadas de 60-70 para éxplicar 4 idéia de marginalidade das camadas- socidis mais pobres na escola. O atendimento a crianga destas camadas, em instituigGes como pré-escolas, parques infantis e creches, possibili- taria a superacéo das condigdes sociais a que ela estava sujeita, mesmo sem a alteracio das estruturas sociais que geraram aqueles proble- mas (Scheibe, 1984, Kramer, 1982). Assim, sob o nome de

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