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Industrializago e Regime Salarial na Economia Brasileira: Os Anos 60 e 70 Carlos Aguiar de Medeiros Da “Dissensus Politics” ao “Milagre Econdmico” Os anos 60 talvez possam ser descritos como anos “tempestuosos” onde os aspectos politicos, idcolégicos ¢ institucionais tiveram primazia sobre os demais. Entretanto, entre a “multiplicidade de objetivos antag6nicos”, a dissensus politics ou 0 “desencontro antagénico entre as fungdes de reforma ¢ de acumulagao” associados a0 inicio da década ¢ 0 “milagre cconémico” do seu final, hd um cixo unificador: a consolidagao de um regime de acumulagio baseado na grande indfstria cujo pélo dinmico fora implantado na segunda metade dos anos 50). Entre continuidades — do projeto de industrializagdo, dos interesscs politicos preservados do campo, do c6digo corporativo do trabalho — ¢ rupturas — da formagao dos rendimentos e dos mercados, da capacidade fiscal do Estado ¢ dos controles macrocconémicos — os anos 60 foram extremamente conflitivos ¢ dindmicos™. ‘Ao contrano da decada de 50, em que em face da explosdo na urbanizaydu uv emprego urbano moderno se expandiu a taxas exiguas, ao longo dos anos 60 houve um. menor ritmo de crescimento da populagdo urbana ¢ uma maior taxa de crescimento do emprego urbano, cmbora a primeira taxa tivesse excedido largamente a segunda. Mas mais importante num confronto entre décadas foram as mudangas na composi¢ao do emprego. Assim, cnquanto nos anos 50 a taxa geométrica anual de crescimento do emprego no setor secundario foi de 1,93%, nos anos 60 a taxa alcangou 6,06%. No sctor de servigos, ao contrério dos anos 50, os servigos pessoais cresceram muito abaixo dos servigos associados a0 governo. Se em 60 existiam 4,18 pessoas empregadas no campo para cada cmpregadu su setor secundério, em 70 esta relag&o cra de 2,479). () Este artigo 6 uma versio resumida do capftulo 4, parte I de minha tese de doutoramento Padrées de industriali- ‘zagio a ajuste estrutural: um estudo comparativo dos regimes salariais em capitalismos tardios, Instiwwo de Economia da Unicamp, 1. semestre de 1992. (1) As expresses sio, respectivamente de Lourdes sota, The political and ideological constraints 10 economic ‘management in Brasil, 1945-63. Disseracio de doutoramento, Cambridge; P. Exiks0N. Sindicalismo no processo politico no Brasil. S40 Paulo: Brasiliense, 1979; A. wisciax. “The political economy of import substitution industealization in Latin America”. The Quariely Journal of Economics, vol. 72, feverciro de 1968. @) Ver MC. ravanes. Acumulagéo de capital e industrializagdo no Brasil. Tese de livre docéncia, urn), 1974 @) Dados em V. Fania. "Mudangas na composigao do emprego ¢ na estrutura da ocupagao'”. In: E,BACHA © H. KLEIN, ‘orgs. transicdo incompleta, vol. 1. Kio de Janciro: Paz¢ Tera, 1986. ECONOMIA € SOCIEDADE - 125 Carlos Aguiar de Medeiros Amplas mudangas ocorreram na composigao do emprego, destacando-se 0 cleva- do ritmo de absorgdo de white-collars. No interior da inddstria de transformagdo, as indistrias mecAnicas ¢ de material de transporte lideraram a absorgaio de emprego industrial. A inddstria téxtil, que em 1959 respondia por cerca de 21,4% dos trabalhado- res industriais dirctamente ligados & produgo, ocupava em 1970 14,5%. Se de um lado a estrutura de emprego se modificou amplamente, de outro, as mudangas nos padres de consumo foram profundas. Assim, se em 60 35,4% dos domicilios possufam rédio, em 70 este percentual passou para 58,9%; em relago A posse de geladeiras as proporgdes foram 11,6% ¢ 26,1% respectivamente. Os anos 60 foram anos de grande dinamismo c mudanga esc caracterizaram, como antes sc disse, pela primazia dos conflitos politicos, ideolégicos ¢ por mudangas institucionais. Com o término do capitalismo mezzo popular a partir da radicalizagio politica c ideolégica cm 62¢ 63 ¢ a inauguragdo, a partir de 64, de um Estado autoritério ¢ desenvolvimentista, mudaram profundamente as instituigdes de regulagiio macrocco- nomica ¢ os mecanismos de distribuicao ¢ administragao dos contlitos. A supressao da vida politica democritica ¢ a constituigdo de poderosos mecanismos de promogiio da acumulagdo privada de capitais potencializaram as caracteristicas concentradoras jé presentes no final dos anos 50. Assalariamento em massa, baixos saldrios, repressio sindical, flexibilidade do emprego descrevem uma via ou estilo de industrializagao que, ainda que comum nas experiéncias de industrializagao dos late-late-comers, resultaram, no Brasil, de um conjunto de instituig&es ¢ opgdcs. Para alguns autores, os anos 59 ¢ 60 constituiram um turning point para o movimento trabalhista: perda de eficdcia dos mecanismos populistas de controle ¢ maior politizagaio do movimento sindical (nacionalismo, reforma agrairia ctc.). Por outro lado, 6s primeiros anos da década testemunharam um movimento grevista sem paralclo na histéria do movimento trabalhista do pés-guerra. As principais evidéncias sobre estes anos demonstram que a grande maioria das greves exitosas relacionava-se com a corrosio do salério real decorrente da aceleragdo inflaciondria. Por outro lado, a abrangéncia do movimento grevista csteve fortemente associada com a participagiio nas greves dos trabalhadores dos transportes, estes sim, mais mobilizados pelas reivindica- ‘Ges politicas. Com estas caracteristicas, os primeiros anos da década presenciaram um aumento do poder sindical que contou ademais com a Lei da Previdéncia de 60 que concedia aos sindicatos oficiais 0 controle sobre um tergo dos postos nos consclhos dirigentes das agéncias de previdéncia. Este poder afirmou-se através de reivindicagées redistributivas dentro do Estado ¢ por sua capacidade de articular-se com as lutas mais gerais do pats. A accleragio inflaciondria, 0 declinio dos salérios reais, a erescente ingovernabi- lidade macroeconémica ao lado do descenso ciclico da industria compuscram um ambiente econdmico e social que, no quadro de radicalizagio politico-ideolégica da época, cra recorrentemente pereebido como pré-revolucionaio. (4) Dados segundo os Censos Industriais do rcs. 126- ECONOMIA E SOCIEDADE 0s Anos 60¢70 IndustrializagZo e Regime Salarial na Economia Brasil A despeito de sua maior frequéncia ¢ da crescente militancia sindical, os reajustes do salério-minimo ocorridos em 1960, 61, 63 c 64 estiveram abaixo do aumento do custo de vida. Mesmo com a incluso do 13° salério em 1962, a média mensall do salirio- mfnimo neste ano ¢ no seguinte situou-se abaixo da de 1961 ou 1959. mesmo ocorreu com 0 salério mediano real pago no comércio atacadista ¢ na industria de transforma- gG0), Em face dessa queda dos salérios, afotando especialmente as categorias menos organizadas, ocorreram dois movimentos: diferenciagao crescente dos salérios a partir do desigual poder de barganha ¢ ativismo dos sindicatos ¢ tentativas (frustradas) de centralizagdo das negociagSes salariais. A natureza descentralizada ¢ corporativa da negociagao salarial prevista na cLt viabilizava que as categorias trabalhistas mais fortes obtivessem melhores saldrios; exclufa, entretanto, uma maior difusio destas conquistas. Por outro lado, onde a presenga dos sindicatos cra mais forte a diferenga salarial entre niveis de qualificago da forga de trabalho cra menor. A dispersao dos salarios estava forremente condicionada pely valur vstipulado para o salério-mfnimo. Em condigdes de ampla heterogencidade produtiva ¢ descentra- lizagfio das negociagdes, a queda do salério-mfnimo real, especialmente accntuada a partir de 62, promoveu ampla diferenciagio dos salrios. Esta ocorrcu tanto na fase recessiva do ciclo quanto, ¢ principalmente, na fasc ascendentc. ‘A questiio dos salirios piblicos era altamente diruptiva no infcio dos anos 60.Com efeito, a greve pela “paridade” cm 1960 possufa nfo apenas conotagdes politicas fortemente simbélicas por envolver diretamente os militares, mas marcava a ascensio de uma central sindical, a Pua, com grande forga entre os ferrovidrios, maritimos ¢ portudrios, sctores estratégicos a0 movimento grevista. A crescente indexagiio dos saldrios do sctor piblico aos salirios do setor privado cm condigdcs de crescente deterioracdio das financas piblicas aparecia nesse contexto como um fator adicional de desordem inflaciondria ¢ tensao politica. Nessas condigSes, os esforgos de moderagao ¢ ““pactagio social”, como proposto por Almino Afonso em 1963, foram atropclados por amplas pressdes politicas ¢ econdmicas decorrentes da radicalizagao da conjuntura®. Colocando-se numa perspectiva mais estrutural c tendo cm vista a contengiio dos salérios praticada a partir de 64, é necessério arguir a natureza do conflito cm torno da formagio dos sal4rias, Neste sentida vale a pena resgatar o diagnéstico ¢ as propostas contidas no Plano Tricnal. © Tricnal partia do diagnéstico de que a accleragio da inflagdo possuia dois componentes essenciais: 0 déficit pablico c o estrangulamento do setor externo. A queda observada dos saliirios reais s6 podcria ser revertida no médio prazo, quando a economia retomasse uma trajetéria de crescimento com estabilidade dos pregos. Entretanto, ambos 0s objetivos requeriam mudangas estruturais ¢ institucionais. ‘Segundo 0 diagnéstico do Plano Trienal, com o fim dos Ieildes cambiais em 61, com a politica de compra do café e com os amplos subsidios das tarifas paiblicas, do trigo (5) Dados em M.H. sioxsex. A experiéncia inflaciondria no Brasil. wes, 1964. (6) Ver ExiKsON, op. cit. © T. skioMoRe. Brasil de Geuilio a Castelo. Edit. Saga, 1969. ECONOMIA E SOCIEDADE - 127 Carlos Aguiar de Medeiros ¢ do petréleo ¢ a expansao dos investimentos decorrentes do Plano de Metas, o setor publico encontrava-s¢ no infcio dos 60 inteiramente limitado em sua capacidade de promogo nao inflacionéria dos investimentos. Por outro lado, a menos que houvesse ‘mudangas significativas no comércio exterior, incluindo uma politica de estabilizagio do cambio real e captagio de investimento externo, a estabilizagdo imporia pesados sacniticios ao crescimento € av ciupiegy. Além disso argumentava se que a relagio de trocas entre a agricultura ¢ a indiistria, favordvel & primeira ao longo dos anos 50 (exclusive café), teria beneficiado exclusivamente os grandes proprietérios ¢ os inter- medidrios mercantis. O aumento do custo de vida urbano devido ao custo dos alimentos afctava essencialmente os salérios baixos; 0s altos saldrios deslocavam-se progressiva- mente para os novos bens de consumo durdvel, abrindo diferenciagdes reais de renda no compensadas por mecanismos fiscais. Ressalta desse diagnéstico que a sustentagdo de salérios reais de acordo com a produtividade média da economia, um compromisso politico ¢, ao mesmo tempo, consistente com a proposigao Keynestana de expansiiv dus mcrcados internos, requere ria transformages na alocagéo de recursos, na estrutura tributdria c nas instituigdes, em particular na agricultura. Dada esta proposigo de médio prazo, 0 desafio essencial colocava-se no curto prazo. Com efeito, a despeito da proposigao geral de combater a inflagao sem penalizar excessivamente os assalariados ¢ aos investimentos produtivos, as medidas propostas a curto prazo cram fortemente ortodoxas. Cortes significativos nos gastos piblicos, contengio dos salérios publicos, corte nos subsidios, clevagao na tarifas, contragdo do crédito, desvalorizago do cambio. Estas medidas revelavam-se, como em todos os planos anteriores de estabilizacio, particularmente 0 de 58, altamente conflitivas. A resisténcia centelar do Congresso ao corte dus gastos correntes © a mudangas tributérias, a resistencia dos trabalhadores, cujo poder de compra vinha declinando, ¢ especialmente do funcionalismo puiblico, colocavam-se como: obstéculos politicos imediatos. ‘A passagem entre 0 curto ¢ © médio prazo, isto 6, entre a estabilizagio ¢ 0 crescimento, requereria no Brasil dos anos 60 uma ampla capacidade discricionéria do Executivo. No que diz. respeito aos salrios, 0 célculo politico implicito parecia ser seguinte: assumia-se que com o retorno do presidencialismo ecomo Frs no poder seria possfvel alcangar relativa “

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