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© ensino de histéria no Brasil: trajetéria e perspectiva Elza Nadai “Nossos adolescentes também detestam a Histéria. Votam- lhe 6dio entranhado ¢ dela se vingam sempre que podem, ou decorando o mfinimo de conhecimentos que o ‘ponto’ exige ou se valendo lestamente da ‘cola’ para passar nos exames. Demos ampla absolvigfo a juventude. A Histéria como Ihes é ensinada é, realmente, odiosa...” Murilo Mendes. A Histéria no Curso Secunddrio. Séo Paulo, Grafica Paulista, 1935, p. 41. A epfgrafe pée a descoberto algumas das mazelas sentidas até hoje no ensino de Histéria, bem como evidencia o esgotamento do modelo educativo adotado. No primeiro caso, encontram-se a relagSo negativa, de “6dio”, da juventude para com a disciplina; a decoragio como atividade precfpua de aprendizagem; o conhecimento pronto ¢ acabado e, no segundo caso, 0 reconhecimento pelo autor de que é necessdrio buscar a superagéo da teoria e¢ de praticas que tradicionalmente informaram o exercicio da disciplina hist6rica. Mais de meio século nos separam do texto citado. Em que medida as questdes apontadas sao validadas para a juventude e a escola secun- daria contemporineas? Terao os estudantes superado a idéia “de que a histéria como é ensinada € realmente odiosa” e os professores partido para a organizaco de outras prdticas pedagégicas mais significativas? Em que medida discurso e praticas se unificam? Para que diregfo elas apontam? As interrogagées indicam as perspectivas pelas quais o tema — ensino de histéria no Brasil — ser& analisado. De um lado, focalizar-se- 4 as condig6es de insergdo da disciplina no currfculo das escolas de primeiro ¢ segundo graus, realcando seus pressupostos tedérico- metodolégicos, bem como as principais mudangas ocorridas ao longo da trajetéria escolar e, de outro, destarcar-se-4 a situag&o contempordnea, assinalando as principais propostas que vém sendo sugeridas e as suas perspectivas. Neste estudo, trés marcos foram privilegiados: a criagio do primeiro estabelecimento seriado oficial de estudos secundérios que marcou a introdugfo de Histéria no currfculo, na terceira década do século XIX; a instalagao de cursos especificos dedicados & formagao de docentes para o ensino secundério, superando o auto-didatismo, um século depois e, por iiltimo, as mudangas operadas tanto no aparelho escolar como na sociedade civil brasileira no pés-guerra, mas sobretudo nas décadas de sessenta/setenta do século XX, que criaram novas demandas e impuseram novas interrogagdes nfo s6 em relagio as finalidades da escola, aos conteddos do ensino ¢ 4s formas de ensinar como também a propria sociedade nacional. OQ LUGAR SOCIAL DA HISTORIA COMO DISCIPLINA ESCOLAR O ensino de Histéria vive atualmente uma conjuntura de crise, que €, seguramente, uma “crise da histéria historicista", resultante de descompassos existentes entre as miltiplas e diferenciadas demandas sociais e¢ a incapacidade da instituigéo escolar em atendé-las ou em responder afirmativamente, de maneira coerente, a elas. Crise que espelha as modificagdes da propria produgio cientifica, que, de certa forma, ampliaram o leque de possibilidades do pensar, do fazer @ do escrever a histéria. Crise, perfodo criativo, pois obrigou os profissionais a questionar criticamente os alicerces, os pressupostos te6rico-metodol6gicos da ciéncia e do ensino, obrigando-os a propor experiéncias miltiplas, procurando superar o tradicional modelo que, introduzido no século XIX, foi ganhando consisténcia ¢ relevancia, espraiando-se pelas instancias da sociedade — escola, familia ¢ produgio cultural —, tornando-se hegemOnico, De certa forma, subsiste ainda, nfo estando de todo superado. Usando a linguagem de Fernand Braudel, trata-se de um fendmeno de longa duragao. Quando se constituiu ¢ como surgiu esse modelo hegem6nico de ensino de Histéria? Quais suas caracteristicas fundamentais? A Hist6ria como disciplina escolar auténoma surgiu no século ‘XIX, na Franga, imbricada nos movimentos de laicizagio da sociedade e de constituiggo das nagdes modernas, sendo marcada por “duas imagens gémeas”, no dizer de Frangois Furet: a genealogia da nagdo ¢ ‘0 “estado da mudanga, daquilo que é subvertido, transformado, campo privilegiado em relag&o Aquilo que permanece estdvel”. Genealogia e Mudanga foram, assim, os suportes do discurso histérico recém-insti- tufdo: “a investigaco das origens da civilizagio contemporanea s6 tem sentido através das sucessivas etapas de sua formacio” (Furet, 132). 144 Esta atomizagio do objeto histérico unificou duas tradigdes do século XVII — uma do discurso enciclopédico (da hist6ria filoséfica), que vinhe claborando uma doutrina do progresso, e outra, a da clabo- ragdo metodolégica —, conjunto de saberes especificos e de instrumentos téenicos — que 0 século XTX remodelou, de maneira mais orgénica, pela adogio do método cientifico, dado pela concepeao positivista que, adotando a linguagem das ciéncias naturais, estabeleceu um novo sentido da histéria: “Esse sentido constitui ao mesmo tempo uma imagem privilegiada (mas nfo inica) do progresso da humanidade e uma matéria que deve ser estudada, um patriménio de textos, de fontes, de monu- mentos que permitem a reconstitui¢o exata do passado. E na confluén- cia dessas duas idéias que sc instala a ‘revolugao’ positivista: dé-lhes, as duas, a béncdo da ciénciz, A hisidria dali em diante jé tem o seu campo € 0 seu método. Torna-se, sob os dois aspectos, a pedagogia central do cidadio.” (Furet, 135). Portanto, a grande mutagéo do século XIX foi esta: “a histéria € a &rvore geneal6gica das nagdes européias e da civilizagdo de que séo portadoras” (Furet, 135). No Brasil, a constituigo da Hist6ria como matéria de pleno direito ocorreu no interior dos mesmos movimentos de organizagio do discurso laicizado sobre a historia universal, discurso no qual a organizago escolar foi um espaco importante das disputas entéo travadas, entre 0 poder religioso e 0 avango do poder laico, civil. De fato, a Histéria, no campo pedagégico, evoluiu das dificuldades iniciais em se conceber certo consenso do alcance, programa, objeto & método da histéria da civilizago ao alinhamento total, ainda no século XX, com as duas vertentes assinaladas, anteriormente, para a Europa: “a hist6ria € a nagGo, a histéria é a civilizagdo”. Nesse sentido, a cultura cléssica j4 havia indicado, desde o século anterior, o caminho: “come- gando por colocer fora da historia certos setores do imenso espetéiculo dado pelas sociedades humanas. As viagens representam um inventério do espago, antes de se tornarem geografia e antropologia. As civilizagées io européias, do passado e do presente, que exigem investimentos lin- glifsticos especiais, tendem a constituir campos especfficos (...). Em sen- do inverso, em razio da decadéncia do latim como Ifngua escolar, a hist6ria erudita tende a recuperar progressivamente a Antigilidade grego- romana como matéria que deve ser ensinada sob um Angulo que nfo seja © de um modelo literério. Aquilo que constitui a identidade cultural da Europa das letras tomou-se agora a sua genealogia” (Furet, 135). No Brasil, sob influércia do pensamento liberal érangés ¢ no bojo do movimento regeneial, apds a Independéncia de 1822, estruturou-se no Municipio do Rio de Janeiro, 0 Colégio Pedro Il (que durante o Império funcionaria como estabelecimento-padrao de ensino secundario, 0 mesmo: 145 ocorrendo na Repiiblica, sob denominagfo de Gindsio Nacional) e seu primeiro Regulamento, de 1838, determinou a insercdo dos estudos histéricos no currfculo, a partir da sexta série. A influéncia francesa foi assumida pelos seus préprios ideali- zadores. Bernardo Pereira Vasconcelos, ministro e secretéria de Estado da Justica do Império, discursando na sua inaugurac3o, em 25 de marco de 1838, afirmou: “Foi preciso buscar no estrangeiro a experiéncia que nos faltava, a atuago irresistivel que entio exerciam sobre nds as idéias, as instituig6es e os costumes franceses, impés-se 0 modelo francés” (Haidar, 99). Coerentemente ao modelo proposto, desde o infcio, a base do ensino centrou-se nas tradugdes de compéndios franceses — para o ensino de Histéria Universal, o compéndio de Derozoir; para Histéria Antiga, o de Caiz; e para Histéria Romana, o de Durozoir e Dumont. Reformas posteriores cuidaram de adequar o programa de estudos do Colégio as ultimas modificagGes realizadas nos Liceus Nacionais da Franga. Na falta de tradug6es, apelava-se diretamente para os préprios manuais franceses. Pelo Regulamento de 1856, utilizava-se para o estudo de Histéria Moderna o “Manuel du Baccalaureat’ e o “Atlas” de Delamarche, adotados nos Hiceus de Paris. Nas décadas seguintes e até os anos trinta deste século, quando ganhou relevo o emprego de manuais escolares produzidos no pats, ocorreu o predomfnio dos compéndios — “Histoire de la Civilisation”, de Charles Seignobos, em dois volumes, ¢ o “Cours d'Histoire”, de Albert Malet (Hollanda, 104). Assim, a hist6ria inicialmente estudada no pais foi a Hist6ria da Europa Ocidental, apresentada como a verdadeira Hist6ria da Civili- zagio. A Hist6ria pétria surgia como seu apéndice, sem um corpo auténomo ¢ ocupando papel extremamente secundério, Relegada aos anos finais dos gindsios, com nimero infimo de aulas, sem uma estrutura propria, consistia em um repositério de biografias de homens ilustres, de datas ¢ de batalhas.? " Para ilustrar o grau de identificapio A Histéria da Europa bem como a selerto da polftica ea énfase explicativa centrada no personagem, arrolaremos 0 vigésimo onto entre os vinte e quatro que constituiam o programa de Histéria Moderna, desenvolvido ‘BO quarto ano do Colégio Pedro Il, do Rio de Janeiro: “Turquia, Grécia ¢ ROssia — Mahmoud 2 e Alexandre; as ilhas Jonias em 1819; a revolugdo na Grécia — Missolonghi (1826); a intervengdo das trés poténcias, combate a Navarino (1827); a independéncia da Grécia; sua monarquia proclamada em 1830; 0 rei Othon I, Nicolau I; as guerras com @ ‘Turquia em 1828 1829; tratado de Unkiar Kelessi abrindo o Bésforo aos russos ¢ fechando 08 Dardanelos as outras poténcias; morte de Mahmoud, vitérias de Melhemet Ali; a intervengio das poténcias européias; Gltima absorgdo da Poldnia; projetos da Rilssia contra Constantinopla; guerra de 1854; alianga da Inglaterra e da Franga”. Cf. Maria de Lourdes Mariotto Haidar. O ensino secundério no Império Brasileiro. Sio Paulo, Grijalbo, 1972, pag. 17. 146 Na Repiiblica os processos de identificagao com a histéria da Europa foram aprofundados. Em Sao Paulo, quando da discussao pela Camara dos Deputados do primeiro projeto que se propunha reformar a instrugdo piblica, em 1892, j6 se previa como parte dos planos de estu- dos as “noticias histéricas ricas sobre a Europa considerada no regime de conquistas, das guerras defensivas e da indéstria; biografia dos ocidentais notéveis”, A preocupagao com a constituig&o da nacionalidade € a formagao da nagdo esteve sempre presente. No plano de estudos teferido, sob a denominacSo “educagao cfvica e moral da Pétria’”, dever- se-ia estudar a “biografia de brasileiros célebres, de noticias hist6ricas do Brasil Colénia ¢ Império ¢ a hist6ria da proclamacdo da Repiblica” (Moacyr, 109-110). Entretanto, a aceita¢do da Histéria como disciplina curricular nos gindsios oficiais em Sio Paulo nio foi pacffica. Adeptos do “cardter positive e cientificista dos fendmenos” impuseram grande resisténcia a sua introdugdo. Entre eles, destacou-se o senador Paulo Egfdio de Oli- veira Camargo, que, em um de seus discursos, afirmou: “A Histéria nfo € uma ciéncia, senfo, eu pergunto: qual a sua fenomenologia? A Histéria ndo tem fenémenos, ou, por outra, todos os fendmenos pertencem & Historia, que € a trama que serve para prova de todos os conhecimentos humanos de todas as ciéncias. Como havemos de ensinar a histéria da civilizagio? Como a entende Buckle? Havemos de comegar por estabele- cer como certa a lei especial que desenvolve a civilizagho ocidental? De- via-se, ao contrério, ensinar a histéria da civilizagao, tomando Por biisso- la a orientagao de Buckle, que dé o predomfnio 4 NagSo Inglesa? Have- mos de ensinar a hist6ria da civilizagio fazendo pairar acima de toda a nagio o elemento greco-romano e dando-Ihe assim o predominio de presidir os destinos do mundo?” Frente a tantos e varidveis caminhos que se lhe apresentavam, ndo conseguindo identificar um caminho a seguir ou oferecer uma sugestdo alternativa, e o que era para ele de extrema importincia — “um métedo positive” —, preferiu optar pela “nfo introdugio da Histéria da Civilizagfo no Estado de Sao Paulo, como parte do programa do ensino piiblico” (Annaes do Senado Estadual, 378), Esta, todavia, foi uma posigo vencida, pois pelo artigo quinto do Primeiro Regulamento dos Gindsios do Estado (decreto 293 de 22/05/1895) a Hist6ria do Brasil bem como a Histéria Universal constavam do plano de estudos proposto, sendo a primeira com diminuta carga horéria.? * Até 1930, 08 programas do. ensino secundério eram formulados pelos professores catedréticos © aprovados pelas congregagées do Colégio Pedro II e dos estabelecimentos de ‘ensino secundério oficialmente mantidos pelos Estados, quando esses haviam obtido a 147 Histéria Universal, no currfculo dos gindsios do estado, em Sao Paulo, comegava no terceiro ano e era tratada como capitulo relacionado aos conhecimentos gerais. Iniciava com a “Arqueologia pré-hist6rica”, continuava com as Antiguidades Oriental e Ocidental, focalizando, principalmente, os fatos politicos, com ligeiras incursées sobre a religiao © a arte de alguns povos, como dos assirios, egfpcios, babilénicos. Ao fim desse ano pregava a “recapitulagéo das fases mais importantes da historia da civilizagdo nos acontecimentos referentes as monarquias orientais, & Grécia a0 povo romano”. © ano seguinte era destinado ao estudo da Idade Média nos mesmos padrées do da Antiguidade. Iniciava-se com o estudo dos “barbaros” germanicos, o Império Bizantino no reinado de Justiniano, continuava com os drabes, Carlos Magno, feudalismo até a estruturagiio da Igreja Cat6lica. No quinto ano, focalizava-se a Histéria Moderna, iniciando-se, sempre, com um perfodo de revisio, depois entrava na “revolugao” econémica, nas descobertas e na “revolugao” literdria, 0 renascimento das letras e das artes. O término era 0 estudo do “filosofismo” do século XVUHI. No sexto ano, o programa estabelecia o estudo de Histéria Con- temporfnea, desde a Revolucio Francesa até o século XIX, ¢ neste destacava-se 0 estudo dos principios da “civilizag3o moderna”. © estudo da Histéria do Brasil iniciava-se no primeiro ano ¢ perdurava até o sexto e no era diferente do da Historia Universal. Seguia a cronologia polftica, partindo das “descobertas maritimas e geograficas dos portugueses e espanhdis nos séculos XV e XVI” e atingia o estudo da “idéia republicana no Brasil. Seu triunfo em 15 de novembro de 1889”. Em cada infcio de novos estudos era pedida uma “reca- Pitulagfo suméria dos fatos mais importantes de Hist6ria do Brasil desde 1500 até 1580” (terceiro ano) ou “recapitulagéo dos factos mais impor- tantes da Hist6ria do Brasil desde 1707 até 1750” (quarto ano) etc. No sexto ano previa-se um aprofundamento da histéria regional. Era “destinado ao estudo detalhado da Capitania de Sio Vicente desde sua fundagaio por Martim Afonso de Souza até a sua ulterior reversio A ). As reformas dectetadas pelo Govemo Provisdério nascido da Revolug&o de 1930, estendeu a equiparagio aos colégios mantidos pelas municipalidades, associagdes ou Particulares. Por sua vez, 0s programas, bem como as instrugSes metodol6gicas deveriam ser expedidas pelo recém criado Ministério da Educago e Satide Publica, Com a ditadura de Gettlio. Vargas (1937-45), © projeto de centralizagfo do ensino e de uniformizagaio nacional ganhou relevancia, para no mais ser superado. Cf. Hollanda, Guy de. Um quarto de século de programas e compéndios de Histéria para o ensino secundario brasileiro — 1931-56. RJ., MEC/INEP, 1957, pp. 11-12. 148 Coroa de Portugal. Assim também se faria neste ano a revisio geral da Hist6ria do Brasil ¢ a explanago do seu desenvolvimento sob o regime republican” (Nadai, 194). CURRICULO DE HISTORIA E IDEOLOGIA Assim, se atentarmos para as questées postas pelos programas, curriculos, materiais de ensino e pelas produgées diddticas, a Histéria, enquanto iplina educativa, ocupou, nas suas origens, nfo sé no Estado de Sao Paulo mas em todas as escolas secundarias ¢ primérias (oficiais e particulares) que foram sendo implantadas pelo territ6rio nacional um lugar especifico, que pode ser sintetizado nas representaces que procuravam expressar as idéias de nag&o e de cidadio embasadas na identidade comum de seus variados grupos étnicos e classes sociais constitutivos da nacionalidade brasileira. fio condutor do processo histérico centralizou-se, assim, no colonizador portugués ¢, depois, no imigrante europeu e nas contri- buigdes paritérias de africanos e indfgenas. Daf a énfase no estudo dos aportes civilizatérios —- os legados pela tradi¢éo liberal européia. Desta. forma, procurava-se negar a condigao de pats colonizado bem como as diferengas nas condigées de trabalho de posi¢ao face a colonizacao das diversas etnias. Procurou-se criar uma idéia de nagdo resultante da colaboragao de curopeus, africanos ¢ nativos, identificada as similares européias. A dominagao social (interna) do branco colonizador sobre africanos ¢ indigenas bem como a sujeigo (externa) do pafs-colénia a metrépole nao foram explicitadas. Este foi o sentido do curriculo escolar e a linha definidora de sua elaborago. Em outros termos, a selegdo do que entrava ou safa dos diversos programas escolares, “o explicitado e os siléncios” (Ferro, 34), em seu contetido foram determinados pelas idéias de nagdo, de cidadéo € de patria que se pretendiam legitimar pela escola. Veiculou-se, assim, um discurso hist6rico que enfatizava de um lado, a busca do equilibrio social, ¢, de outro, a contribuicao harmoniosa, sem violéncia ou conflito, de seus variados e diferenciados habitantes (e grupos sociais) para a construgdo de uma sociedade democrtica e sem preconceitos de qualquer tipo. Assim, 0 passado foi valorizado na medida em que pode legitimar este discurso. E nesta perspectiva que devem ser compreendidos o tratamento dado & escravidao do africano, realgando sua sujeigao (pacffica) ao regime de trabalho compulsério ¢ os siléncios sobre a escravizagéo da etnia indigena, sua resistncia & conquista colonial bem como a abordagem reducionista das sociedades tribais e de sua 149 distribuigdo pelo territério, Além disso, as préprias representagdes enfatizando a ocupaciio portuguesa de um espago natural, vazio, nao como conquista, garantiram o grau de legitimidade da expanso colonial européia € da colonizagao portuguesa.> © resultante dessa abordagem reproduzida hd décadas nos programas de Hist6ria foi a construgfo de algumas abstragGes, cujo objetivo tem sido realgar, mais uma vez, um pais irreal, mascarando as desigualdades sociais, a dominagio oligérquica ¢ a auséncia da demo- cracia social. Essas abstragdes podem ser encontradas em algumas méximas que retratam, em linguagem corrente, 0 Brasil — “Nagio marcada pela unidade (do territério, do Estado etc.) ao contrério da fragmentago (da América Espanhola), constitufda por um povo soliddrio © amante da paz e, por isso, abengoada pelo Senhor”; “Deus € bra- sileiro”; “povo pacifico e ordeiro, amante do samba e de mulatas” — e tém servido, também, para demarcar algumas das diferengas em relagdo A populagso, ao Estado e A Historia de outros pafses latino-americanos. Isto pode ser explicado sobretudo pelo desconhecimento no Brasil das trajetérias de vida dos pafses de lingua espanhola‘, pois no contetido da disciplina nao foram privilegiados os espagos e tempos sociais estra- nhos & Europa Ocidental ¢ o continuum dado pela sua evolugdo politica linear, da origem greco-romana, passando pelo quadripartismo histérico, seja na versio dos perfodos — antigitidade, medieval, moderna e con- temporanea —, seja na versio dos modos de produgio — comunidade primitiva, escravismo, feudalismo, capitalismo e socialismo (Chesneaux, 2 A anélise do manuel escolar de Histéria e de disciplinas correlatas & hoje uma das linhas de pesquisas que tem muitos seguidores no pats. Do texto de Estudos Sociais evoluiu-se para © de Historia, identificando suas mazelas, os interesses explfcitos out aparentes, as auséncias € presengas constantes, analisando-se, assim, a qualidade de seu texto © desvendando sobretudo 0s compromissos ¢ as vinculagdes do discurso histérico na escola, destronando, de ‘uma vez por todas, a concepsa da neutralidade da escola ¢ da imparcislidade/objetividade do historiador. A produgio no campo € expressiva e a bibliografia extensa. A guisa de ‘exemplificagio, citaremos alguns trabalhos: Hofling, Eloisa de Mattos. O livro didético de estudos sociais. Campinas, UNICAMP, 1986; Orlandi, Eni Pulcinelli. O discurso da Historia para a escolas, In; A linguagem ¢ seu funcionamento; as formas do discurso. S.P., Brasiliense, 1983; Franco, Maria Laura P. B. O livro didético de Histéria do Brasil: a versio, elles, Norma Abreu. Cartografia Brasilis ou esta hist6ria est Pahim. O livro didético » democratizaggo da rasil. Encontro com a Civilizaglo Brasileira. R. J., (2), 1978. ANPUH. Repensando a histéria. R. J., Marco Zero, 1984, 4 A ideologia do progresso que sustentou a modemizagso do Estado Brasileiro desde a segunda metade do século XIX propugnava uma identificagSo com a Europa industrializada capitalista, negando qualquer semelhanca com a América Latina, salvo se fosse para desempenhar uma posigso hegemdnica. © estudo dos aportes ideoldgicos que a expressaram est em obra de nossa autorin — Ideologia do Progresso e Ensino Superior: Sto Paulo 1891—1934. S. P.. Loyola, 1987. 150 100). Assim, a América bem como a Africa foram praticamente esquecidas do curriculo, na maior parte do perfodo, apesar de criticas relevantes feitas por historiadores desde as primeiras décadas deste século, como a de Oliveira Lima, reportando-se aos manuais: “... apresentam, um sério defeito de composi¢4o: atribuem demasiado espago a certos aspectos da histéria antiga, cuja influéncia sobre a civilizagdo nao € sé muito remota como comparativamente diminuta (...) a América no recebe quase atengdo, quando muito pelo contrério, deve ela ser melhor conhecida dos que estudam, do que qualquer outro dos continentes, excegiio feita do europeu. Nossa solidariedade de interesses Politicos, econédmicos, ¢ sobretudo morais com os Estados Unidos e com a América Espanhola, crescente de dia para dia, requer que, pelo menos nas suas linhas gerais, conhegamos as condigdes ¢ lances da sua evolugdo de pouco mais de quatro séculos” (Lima, XI-XII). No infcio da década de cinquenta, depois de intensos debates, o estudo da América foi intoduzido, de forma auténoma, no curriculo dos gindsios, sem todavia resolver os problemas de abordagem ou de arti- culagéo com o estudo de outros espagos sociais (0 pafs ou a Europa, que continuaram dominantes). Qualquer dos espagos sociais era representado no curriculo escolar pelo principio dos ciclos concéntricos, denominado por J6nathas Serrano “método concéntrico-ampliatério”, a partir do qual o grau de ensino posterior € um ciclo de revisdo ¢ desenvolvimento do anterior: “assim, a mesma disciplina é apresentada em circulos de raio crescente e cada vez com com maior profundidade, Admitida a hipétese de um ciclo anterior deficiente ou malfeito, por culpa do aluno — e nem sempre é s6 do aluno —, o mal nao é irremediavel, pois na recapitulagio e desen- volvimento da matéria se preenchem as lacunas verificadas” (Serrano, XIV). A periodizago empregada obedeceu a uma cronologia eminen- temente politica ¢ marcada por tempos uniformes, sucessivos ¢ regulares. Identifica-se, assim, tempo hist6rico & cronologia. Rupturas, descon- tinuidades inexistem. Somente regularidades e sucessdes. A mudanga é determinada em uma tnica instncia, 0 politico, ¢ hi um encadeamento de ages que se explicam sucessivamente. Passa-se também a idéia de que © movimento histérico € realizado por obra ¢ graga de um wnico agente — 0 individuo (Nadai, 261). A Repiiblica, desde o infcio, tratou de cuidar da constituigao da galeria dos herdis nacionais, pela instituigfio tanto dos feriadas ¢ festas civicas quanto pela selec&o dos personagens a serem cultuados, 151 determinando uma segunda vertente do alcance da histéria que extrapola os préprios muros da escola. A periodizagio usada e a abordagem do contetido conduzem & uma concepgao de histéria da qual sobressai a grande influéncia do positivismo. O conceito de fato histérico, a neutralidade ¢ objetividade do historiador/professor ao tratar do social, o papel do heréi na construgo da Patria, a utilizagio do método positive permearam tanto © ensino quanto a produgio histérica. © conceito de Histéria que flui dos programas e dos curriculos é, assim, basicamente aquele que a identifica ao passado e, portanto, a realidade vivida, negando sua qualidade de representag&o do real, produzida, reelaborada, na maioria das vezes, anos, décadas ou séculos depois do acontecido. Essa forma de ensino, determinada desde sua origem como disciplina escolar, foi o espago da hist6ria oficial na qual 08 tinicos agentes visiveis do movimento social eram o Estado e as elites. A TRAJETORIA: PERSISTENCIA E MUDANCA Vozes, ao longo desses dois séculos, procuraram, de inicio isoladas e depois consistentes, fazer emergir outras possibilidades de se ensinar Histéria, Particularmlente nos anos vinte deste século, com a introdugdo do idedrio da escola nova e, particularmente, do pragmatismo de John Dewey, no bojo das criticas que se Jangavam a estrutura ¢ aos contetidos da escola secundaria, avaliou-se também a pratica pedagégica daquela disciplina. Um dos aspectos visados foi a énfase que os professores colocavam no estudo do passado. Defendeu-se, sem sucesso, que a Histéria deveria se ocupar prioritariamente com as sociedades contemporaneas; “...¢ a hist6ria contempordnea que realmente interessa figurar no programma escolar pela sua relagio de causalidade mais proéxima com os problemas sociaes do momento, a que o educando tem de fazer face", afirmou Murilo Mendes, em 1935. (pag. 51). Em relagio ao contetido, a critica incidiu principalmente em dois pontos; de um lado, na selegio da histéria politica ¢ de sua corres- pondente cronologia para subsidiar os programas de ensino, e de outro, na relagdo entre nacionalismo e militarismo. Em um didlogo explicitado * Cf. Bittencourt, Circe M. Femandes. Patria, Civilizagio e Trabalho; 0 ensine de Histéria nas escolas paulistas (1917-1939). S.P., Loyola, 1991. Também Hobsbawa, Eric e Ranger, ‘Terence (org.), A invenc&o das tradigdes. R. J., Paz e Terra, 1984. 152

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