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cadernos democraticos MARIO SOARES Boaventura de Sousa Santos Reinventar a Democracia FUNDACAO MARIO SOARES din one Pra ds Cons Dominga tt eine Cate eso Ma ne Mies Til Gace Ve ae 21964079 Ea tmp Gre obteg, L 19904 Lien ast 397 10678 Eau patie ‘ation a Se {Chr rman 200 ‘Gop 80 Sop FE re fame Pmt Bar escido en Com #15 de Novem de 190, Dow oe Seino do Dito pla Universiti de Yale (0973), ofescor xteaitio ds Facade de Economia ds Universiade Se Coimbra ¢ poser visite da Ue voeidate de Wasnt Magn, da Lorton School Exoromis, da Univesiade de So Pune Univer Loe Andes Director do Cento de sts Soc do Faeldae de zoom h ives de Cota, ier Cero ke Docenei50 25 de Abid Unive de Coa, Director da eit Cra de inca Soc. ‘Pram de Ensaio Pen Ch Porte, 194; Pio Gu bukian de Citas, 1966; Pro Borde da pens isa, 1987, ras mais inpartantes Un Disco sore as Circa, Pot, Aeon, HS (ego neo wma ca Ps‘, ot, lente, 1989 (ee). Tabi: pblnde por ral, SS ao ("eo tno e Sic Porc ga! (974186. Porta, Afton, 1980 (2 eto npnander de Prngel ~ Ue Reto Singular, Ps, ‘icatament, 1895 (2 ego Pao Mbo de Aloe: OS cl e¢ Polio ne Pir Moderate Tt, Afoaanen, 194 ego). Tame pleads Bras pla arn Cones (1995) Codi, Econs Unindes 19905, Toward a New Connon Some: La, Since and Plies the Pordigmanc Tonio, Nova are, Ral, 1995 (cam Mare Ma to Mazue, Joo Pease Poko Lopes Fea) Os Pas ne Scie Con tenporinca: O Cato Portes, Pt, Alone, 1996; (en Maria Masts Csiro « Mavis tia Coimte} © Puede Revue: Cole da Reo 0 de 25 de Ay (197-1996, Ceto de Docmenagn 2d Ab la Unies de Cont Pvo, After 15, 199%; com Mi Bo, Mao Goin Ado Brat dCs Un Sli de Reformed See 1c So, Uni dae Matis Petts Cet Setar Sci, 1998 (01 Conssgh Gane Mac 0 Paquesisno Drag, Pat, Arrament, 1998: La Gloire: Neves Cains deo Re nlc» bs Emencpatn, Clembi, HSA, Eons risers Narn! de Clan, 198 Boavyentura de Sousa Santos Reinventar a Democracia OM 0 Contrato Social da Modernidade 0 contrato social 6 a grande narrativa em que se funda a obrigagio politica moderna, uma obrigagao complexa e contraditéria porque foi estabelecida entre homens livres e, pelo menos em Rousseau, para maximizar € no para minimizar essa liberda de, O contrato social 6 assim a expressao de uma ten- so dialéctica entre regulacao social e emancipa social que se reproduz, pela polarizagao constante en- tte vontade individual e vontade geral, entre 0 inte- esse particular e o bem comum. O Estado nacional, o direito ¢ a educagio civica so os garantes do de- senrolar pacifico e democritico dessa polarizagio ‘num campo social que se designou por sociedade ci vil. O procedimento Igico que estabelece 0 card inovador da sociedade civil reside, como é sabido, na contraposigao entre esta eo estado de natureza ou es tado natural, Nao surpreende, pois, que as diferengas bem conhecidas na concep do contrato social en tre Hobbes, Locke e Rousseau se espellem em dife- rentes concepedes do estado de natureza'. Quanto a =F F< ais violento © andrquico € estado de natureza, rmaiores so os paderes investides no Estado saido do contrato social, As diferengas a este respeito entre Hobbes, por um lado, ¢ Locke ¢ Rousseau, por outro, so enormes. Comum a todos eles, no entanto, 6 a ideia de que a opgio de abandonar 0 estado natural para consitur a sociedade civil e 0 Estado modernos & uma opgiio radical ¢ inreversivel. Segundo eles, a rmodernidade é problemtica e plena de antinomias, entre coergio ¢ consentimento, entre igualdade ¢ li- bperdade, entre soberano e cidadio, entre diteito natu- ral e dreito civil — mas deve resolvé-las pelos seus proprios meios sem se munir de recursos pré-moder- ‘nos ou contra-modernos. Como qualquer outro contrato, 0 contrato social as- senta em critéri0s de incluso que, portanto, sto m critérios de exclusio, Sio trés os crtérios principais. O primeiro & que o conttato socal inelui apenas os individuos e suas associagbes. A naturcza & assim excluida do contrato,e€ sigificaivo a este res- peilo que o que est. antes ou fora dele se designe por estado de natureza. A tinica natureza que conta é 2 hu ‘mana ¢ mesmo esta apenas para ser domesticada pelas leis do Estado e pelas regras de convivéncia da so- ciedade civil. Toda a outta natureza ou € ameaga ou € recurso, O segundo critério € 0 da cidadania teri- torialmente fundada, $6 0s cidadsos sao parte no con- ‘rato social. Todos os outros — sejam cles mulheres, cestrangeiros,imigrantes, minorias (cs vezes, maio- ras) 6tnicas — sto dele excluidos. Vivem no estado 4e natureza mesmo quando vivem na casa dos cida- ‘dios. Por ilkimo, o terceitoeritério o (do) comércio ablico dos interesses. $6 0s interesses exprimiv. sociedade civil sio objecto do contrato. Esto, portan- (0, fora dele a vida privada, os interesses pessoais de ‘qu €feita ainimidade © 0 espago doméstco. O contrato social 6 metéfora fundadora da raciona- lidade sociale politica da modemidade ocidental, Os itétios de inclustovexclasio que ele estabelece vio ser o fundamento da legitimidade da contratualiza- ‘0 das iteracgGes econdmicas,politcas, sociais © calturais. A abrangéncia das possibilidades de con- tratualizagdo tem como contrapartida uma separa radical entre incluidos ¢ excludes. Embora a contra- tuafizagao assente numa légica de inclusiovexclusto, cla 56 se legitima pela nfo existéncia de excluidos. Para isso estes tiltimos so declarados vivos em re- gime de morte civil. A I6gica operativa do contrato social est, assim, em permanente tenso com a tia l6gica de legitimacao. As possibilidades imensas do conttato coexistem com a sua inerente fragilidade Em cada momento ou corte sincr6nico, a contratua- lizagdo ésimultaneanente abrangentee rgida. Dia- ctonicamente, é um campo de lutas sobre os critérios 0s termos da exclusio e da incluso que pelos seus resultados vo refazendo os termos do contrato. Os exclufdos de um momento emergem no momento se- gzinte como candidatos a incluso e, quigé, podem Ser inclufdos mum momento posterior. Mas, em obedincia 8 Logica operativa do contrato, os novos uidos 56 0 sto & custa de novos ou velhos ex- cluidos. O progresso da contratuaizagio tem asim, © seu qué de sisifico. A flecha do tempo € quando muito uma espial ‘As tenses e antinomias que subjazem a contratuali- 7agao social ni sio, em dtima instancia, resolveis © contato pore) metaora fundodor da tecionatiade sociale potion da modemidade cient, por via contratual. A sua gestio controlada assenta fem tr€s pressupostos metacontratuais: um regime geral de valores, um sistema comum de medidas, ‘um espaco-tempo privilegiado. O regime geval de valores assenta na ideia do bem comum e da vontade geral. Sio princfpios agregadores de sociabilidade {que tornam possivel designar por sociedade as in- teracgSes autGnomas e contratuais entre sujeitos Ii ‘res ¢ iguais, sistema comum de medidas baseia'se numa con- cpio de espago e de tempo homogéneos, neutros, lineares, que setvem de menor denominador comum partir do qual se definem as diferengas relevantes. A técnica da perspectiva introduzida pela pincura re- nascentista € 2 primeira formulago moderna desta concepeZo. Importante também é © aperfeicoamento da técnica das escalas e das projecgdes na cartografia ‘moderna a partir de Mercator. Com base nesta con- cepeio é possivel, por um lado, separar a natureza da sociedad e, por outro, estabelecer un termo de com paracdo quantitativo entre interacgées sociais massi- vas e muito diferenciadas. As diferencas qualitativas ‘entre clas ou sHo ignoradas ou slo reduzidas a6s ind ccadores quantitatives que delas podem dar conta aproximativamente. O dinheiro e a mercadoria so as ‘concretizagdes mais puras do. sistema comum de me- didas. Por via deles, o trabalho, o salério, 0s riscos & ‘08 danos sio facilmente mensuriiveis e compardveis. ‘Mas o sistema comum de medidas vai muito para além do dinheiro ¢ das mercadorias. A perspectiva e @ escala, combinadas com o sistema geral de valo- res, tornam possfvel a mensuragio da gravidade dos crimes e da pena: a uma graduacio das escalas de ‘ravidade do erime corresponde uma graduagio das escalas de privacio da liberdade. A perspectiva © a scala aplicadas a0 principio de soberania popular tomam posstvel a democracia representativa: @ um niimero X de habitantes corresponde um nimero Y de representantes. Por via das homogeneidades que tia, 0 sistema comum de medidas permite ainda estabelecer correspondéncias entre valores antin6- ‘micos. Por exemplo, entre liberdade e igualdade € possfvel definir critérios de justiga social, de redis- Usibuigdo e de solidariedade. O pressuposto € que as ‘medidas sejam comuns ¢ procedam por correspon- déncia e homogeneidade. E por isso que a tnica so- lidatiedade possivel ¢ uma solidariedade entre iguais, sendo a sua coneretizagio mais acabada a solidariedade operéria. © espaco-tempo privilegiado & o espago-tempo esta- tal, nacional. E neste espago-tempo que se consegue. a méxima agregagdo de interesses e é ele que define as escalas e as perspectivas em que podem ser obser- vvadas e mensuradas as interaegGes nio estatais © no nacionais. E por isso, por exemplo, que © govern dos municipios se designa por governo local. Eno espago-tempo nacional estatal que a economia con- segue a sua méxima agregaco,integragao ¢ gestio e € também nele que as familias organizam a sua vida e estabelecem o horizonte de expectativas ou de au- séncia delas. E por referéneia ao espago-tempo na- cional estatal que se define a obrigacio politica dos cidadios perante 0 Estado e deste perante os cida- dios, sendo essa também a escala das organizagdes € das lutas polfticas, da violencia legiima e da promo- Go do bem estar social. O espaco-tempo nacional estatal nfo é apenas uma perspectiva e uma escala; também um ritmo, uma duragdo, uma temporalida- de. O espago-tempo nacional é assim também o s- pago-tempo da deliberacdo politica, do processo ju- dicial e, em geral, da acgto burocrética do Estado, a ‘qual tem no espago-tempo da produgio em massa a correspondéncia mais isomérfica. Finalmente, o espago-tempo nacional estatal & 0 es- aco-tempo privilegiado da cultura enquanto con- Junto de dispositivos identitérios que estabelecem ‘um regime de pertenca e legitimam a normatividae de que serve de referéncia 3s relagdes sociais confi- nadas no territério nacional: do sistema educativo & hist6ria nacional, das ceriménias oficiais aos feria- «dos nacionais. Estes prineipios reguladores sto congruentes entre si, Se, por um lado, o regime geral de valores & 0 ga- ‘ante \iltimo dos horizontes de expectativas dos cida- dios, por outro, o campo de percepgao do horizonte das expectativas e das suas convulses & possfvel por via do sistema comum de medidas. Perspectiva e es- cala silo, entre outras coisas, dispositives visuais que criam um campo de viszo e, portanto, também uma firea de ocultacao. A visibilidade de certos riscos, da- hos, desvios, vulnerabifidades tem correspondéncia ha identificagio de certas causas,inimigos ¢ agresso- res. Uns e outros so geriveis privilegiadamente pe- 4o espago-tempo nacional e estatal, pelas formas de conflitualidade, negociaga0 ¢ administragao que the do préprias. A ideia do contrato social e os seus prinefpios regu- ladores sio o Fundamento ideolégico e politico da ccontratualidade real que organiza a sociabilidade e a = lfafe| politica nas sociedades modemas. Saliento as se- aguintes caracteristicas dessa organizagio contratua- lizada. O contrato social visa criar um paradigma sécio-politico que produz de maneira normal, cons- tante e consistente quatro bens piblicos: legitimidade dda governacao, bem-estar econémico e social, segu- ranga e identidade colectiva. Estes bens publicos s6 sio realizaveis em conjunto: so, no fundo, modos diferentes mas convergentes de realizar o bem co- mum € a vontade geral. A prossecucio destes bens publicos desdobrou-se numa vasta constelagio de Tutas sociais, desde logo as lutas de classes que ex- iam a divergéncia fundamental de interesses sgerados pelas relagdes sociais de producio capitalis- (a. Por via desta divergéncia e das antinomias inc- rentes ao contrato social entre autonomia individual e justiga social, entre liberdade e igualdade, as Iutas pela prossecucdo do bem comum foram sempre hi- tas por definigées alternativas do bem comum. Essas lutas foram-se cristalizanda em contratualizagies parcelares, incidindo sobre menores denominadores ccomus entretanto acordados. Essas contratuali (bes foram-se, por sua vez, traduzindo numa mate- rialidade de instituigdes que asseguraram o respeito ea continuidade do acordado. Da prossecugio contraditéria dos bens piiblicos as- sim referida ¢ das contratualizagbes ¢ compromissos ‘a que foi dando azo resultaram és grandes constela- ges institucionais, todas elas vazadas no espago- tempo nacional estatal: a sociatizagio da economia, ‘ politizagao do Estado, a nacionalizagio da identi dade cultural. A socializagdo da economia dew: por via do reconhecimento progressive da luta de classes enquanto instrumento, no de superagéo do capitalimo, mas de tansformagio do captalismo. ‘Aregulagao do tempo de trabalho, das condigbes de trabalho © do salto, a criagao de seguros soci obrigatriose de seguranga social, o econhecimen- to da greve, dos sndicatos da negociagio conta- tagio. colectiva sio momentos decisivos do longo petcurso histrio da socilizagio da economia, Por tie se foi reconhecendo que a economia eapitalisia flo era apenas conslitutda por capital, facores de produgaoe mercado, mas também por trabalhadoes, pessoas e classes com necessidades bésias, interes: fes propriose legtimos e, em sua, direitos de cida- dhania, Neste percurso, os sindicatos tiveram um pe pel decisvo, ode redurir a concorréca entetaba- Thadores, fnte primacial da sbre-exploragao a que estavan inicialmente sjetos. ‘A mateilidae normativae institucional em que traduziu a socializagio da economia esteve a cargo ti Estado regulando a economia, mediando os con- Fitos, reprimindo os trabalhadores até ao ponto de Ines extonuirconsensosrepressivos. A contralidade do Estado na socializago da economia fo um factor decisivo na outraconstelago institucional: a polit- agit do Fedo, Festa ocorren pea propria expansio da capacidade reguladora do Estado. ‘Acexpansto da capacidade reguladora do Estado nas Sovedades capitalists assumiv dua formas princi- pais: 0 Fstado-Providencia no centro do sistema ‘mundial e o Estado desenvolvimentista na petiferiae Semiperiferia do sistema mundial. A medida que es- tatizou a repolagdo, o Estado fez dela um campo de lta politica e nessa medida ele proprio se poitizo. Tal como a cidadania se constituiu a partic do taba~ Iho, a democracia esteve desde o inicio vineulada & socializagio da economia, Ou seja, a tensio entre capitalismo e democracia € constitutiva do Estado moderno, e a legitimidade deste, maior ow menor, steve sempre vinculada so modo mais ou menos equilibrado como resolveu essa tens, O grau zero da logitimidade do Estado modemo € 0 fascismo, a rendigdo total da democracia perante as necessidades ‘de acumulagao do capitalismo. O grau maximo da le- gitimidade do Estado modemno reside na conversa, sempre problemdtica, da tensdo entre democracia © capitalismo num cfrculo virtuoso em que cada um deles prospera aparentemente na medida em que os dois prosperam conjuntamente. Nas sociedades capi- talistas este grau mximo foi obtide nos Estados- -Providéncia desenvolvidos da Europa do Norte e n Canadé. Por Gitimo, 2 nacionalizagao da identidade cultural & 0 processo pelo qual as identidades méveis ‘e parcelares dos diferentes grupos sociais so territo- Fializadas e temporalizadas no espago-tempo nacio- nal. A nacionalizagio da identidade cultural reforga 08 critérios de incluso/exclusdo que subjazem i so- cializagio da economia € & politizacao do Estado, conferindo-Ihes uma duragao histérica mais longa © uma maior estabilidade. Este vasto processo de contratualizacdo social politi- cae cultural € 0s critérios de inclusfofexclusio em {que assenta tem dois limites que passo a assinalar (0 primeiro ¢ inerente aos prprios critérios. A inclu- so fem sempre por limite aquilo que exclui. A socia- lizagio da economia foi obtida & custa de uma dupla dessocializacio, a da natureza e a dos grupos sociais ‘a0s quais o trabalho nio deu acesso a cidadania, Sen- do uma solidariedade entre iguais, a solidariedade centre trabalhadores nio teve de se aplicar ao que ex- travasava do ciculo da igualdade. Por isso, as orga- nizagiies operdrias nunca se deram conta, nalguns ca- Sos até hoje, que o local de trabalho ¢ de produgao & frequentemente 0 cenério de crimes ecol6gicos, de ‘graves discriminages sexuais e raciais. Por outro la do, a poitizagio e publicizagao do Estado teve como, ccontrapartida a despolitizaglo e a privatizagiio de to dda aesfera nfo estatal. A democracia pode expandit- se na medida em que 0 sett espago se restringiu ao Estado e a politica que ele passou 2 sintetizar. Final- ‘mente, a nacionalizagio da identidade cultural assen- {ou no etnocfdio e no epistemicfdio. Conhecimentos, ‘memérias, universos simbélicos ¢ tradigoes diferen- tes daqueles que foram eleitos para ser incluidos ¢ cconvertidos em nacionais foram suprimidos, margi- nalizados ou desearacterizados, ¢ com cles os grupos sociais que os sustentavar. © outro limite tem a ver com as desigualdades arti- culadas pelo sistema mundial moderno constituido por paises centrais periféricos ¢ semiperiféricos. ‘A contratualizagio das formas de sociabilidade teve diferentes Ambitos ¢ diferentes formas consoante a posigdo do pafs no sistema mundial: foi mais ou me- nos inclusiva, mais ou menos estvel, mais ov menos ‘democritica, mais ou menos detalhada, Na periferia © na semiperiferia, a contratualizagio tendeu a ser mais limitada e mais precfia que no centro. O con- trato conviven sempre com 0 status; os compromis- sos foram sempre momentos evanescentes entre os pré-compromissos ¢ os pts-compromissos: a econo- ‘mia foi socializada em pequenas ilhas de inclustio {que passaram a existir em vastos arquipélage lus a politizagao do Estado cedeu frequentemen- te a privatizagao do Estado e & patrimonializagio da dominacao politica; a identidade cultural nacionali- zou muitas vezes apenas a caricauura de si mesma, E mesmo nos paises centrais a contratualizagio va- riou imensamente entre, por exemplo, pafses de for- te tradigdo contratualista, como a Alemanha ou a Suécia, ¢ paises subcontratualistas, como o Reino Unido e os Estados Unidos da Amética, A Crise do Contrato Social ‘Com todas estas varingées, 0 contrato social, os seus critétios de inclusio e de exelusio ¢ os seus princi pios metacontratuais tém presidido & organizagao da sociabilidade econémica, politica e cultural das so cledades modemas. Este paradigma social, politico € cultural atravessa desde hé mais de uma década tum periodo de grande turbuléneia que incide nao apenas nos seus dispositivos operatives mas tam bém nos seus pressupostos, una turbuléneia tio pro- funda que aponta para uma convulséo epocal e uma Ao nivel dos pressupostos, o regime geral de valores arece no resistir & crescente fragmentago da so: ciedade, dividida em mattiplos apartheids, polariza- da 20 longo dos eixos econémicas, sociais, politicos e-culturais. Nao 86 perde sentido a luta pelo bem co- mum como também parece perder sentido a luta por definigdes alternativas de bem comum. A vontade geral parece ter-se transformado numa proposigao absurda. Nestas condigées, alguns autores falam Q © peraigma se = pe ‘mesmo do fim da sociedade. A verdade € que nos en- contramos num mundo pés-foucaultiano, © que, lids, nos faz pensar retrospectivamente quiio organi zado era 0 mundo anarquista de Foucault. Segundo ele, coexistiriam de modo complexo dois grandes ‘modos de exercicio de poder, 0 poder diseiplinar do- ‘minante, centrado nas ciéncias, e o poder juridico, em dectinio, centrado no Estado e no diteito, Hoje, estes poderes coexistem com muitos outros e eles pr6prios esti fragmentados e desorganizados, (0 poder disciplinar & hoje um poder crescentemen- te indisciplinar, & medida que as cineias perdem a confianga epistemoligica e se véem forgadas a par- tilhar 0 campo do saber com conhecimentos rivais, eles proprios capazes de gerar formas diferentes de poder. Por outro lado, o Estado perde centralidade © direito oficial desorganiza-se passando a coexistir ‘com © diteito no oficial de miltiplos legisladores Ficticos, os quais, pelo poder econdmico que coman dam, tansformam a facticidade em noma, disputan- do ao Estado o monopétio da violencia e do direito, A proliferagdo cadtica dos poderes torna dificil a identificagao dos inimigos e, por vezes, a propria identificagao das vitimas, s valores da modetnidade — a liberdade, a igual- dade, a autonomia, a subjectividade, a justiga, a soli dariedade —e as antinomias entre eles permanecem, ‘mas esto sujeitos a uma crescente sobrecarga sim bélica, ou seja, significam coisas cada vez mais dis- pares para pessoas ou grupos sociais diferentes, ¢ de tal modo que 0 exeesso de sentido se transforma em paralisia da eficacia e, portanto, em neutralizacao. ‘Aturbuléncia do tempo presente nota-se sobretudo no sistema comum de medidas. O tempo ¢ o espago new- ‘ros, lineares e homogéneos, hi muito que desaparece- ram das cincias mas 6 agora o seu desaparecimento se faz sentit a0 nivel do quotidiano e das relagies so- ciais, ‘Tenho-me referido a turbuléncia por que pas- sam actualmente as escalas em que nos habituanos a ver € a identificar os fendmenos, os conflitos e as te- lagdes. Como cada um destes 60 produto da escala em que 08 observamos, a turbuléncia nas escalas eria estranhamento, desfamiliarizagao, suepresa, perple- xidade e invisibilizagao. Tenho dado o exemplo da violéncia urbana como paradigmético da turbalén- cia de escalas (Santos, 19982). Quando um menino ‘de mua procura abrigo para passar a noite e 6, por essa raza, assassinado por um policia, ou quando uma pessoa é abordada na rua por um mendigo, recusa dar cesmola e é, por essa razo, assassinada pelo mendigo, ‘oque ocorre é uma explosiio imprevisfvel da escala do cconflito: um fenémeno aparentemente trivial e sem ‘consequéncias € posto em equago com outro, drams- fico © com consequéncias fatais. Esta mudanga abrupta © imprevisfvel da escala dos fenémenos ‘corre hoje nos mais diversos dominios da pritica social, Na esteira de Prigogine (1979; 1980), penso que as nossas sociedades atravessam umn perfodo de bifureagio, ou seja, uma situago de instabilidade si ‘émica em que uma mudanga minima pode produzit, de modo imprevisivel e castico,transformagies qua- litativas. A turbuléncia das escalas desteéi sequéncias « termos de comparacao e, 20 faz8-1o, reduz alternati- vas, ¢eria impoténcia ou promove passividade, ‘A cstabilidade das escalas parece estar reduzida a0 ‘mercado e ao consumo, ¢, mesmo af, com mutagdes : { radicais de ritmo e explosdes de dmbito que obrigam, 1 transformagdes constantes da perspectiva sobre os actos de comércio, as mercadotias © os objectos, a ponto de a imtersubje mente em interobjectualidade. A mesma transfor~ mago constante de perspectiva esté a ocorrer nas (ecnologias de informagao c de comunicagao onde lids turbuléncia das escalas € 0 acto originétio & condigdo de funcionalidade. Af a erescente interacti- vvidade das tecnologias dispensa cada vez. mais a dos utilizadores © por essa via a interactividade destiza subrepticiamente para a interpassividade. Finalmente 0 espaco-tempo nacional estatal esté a perder a primazia, convulsionado pela importin crescente dos espagos-tempos global e local que com, cele competem, A desestruturago do espago-tempo nacional estatal ocorre também a0 nivel dos ritmos, das duragdes e das temporalidades. O espaco-tempo nacional estatal 6 feito de ritmos e de temporalidades. diferentes mas compativeis e articuléveis: a tempora- lidade eleitoral, a temporalidade da contratagio co- lectiva, a temporalidade judicial, a temporalidade da seguranga social, 2 temporalidade da memria hist6ri- cca nacional, efe. A coeréncia entre estas temporalida- des 6 0 que dé configurago prépria ao espago-tempo nacional estatal. Ora esta coeréncia & hoje cada vez. mais problemética porque € diferente 0 impacto pro- duzido em cada uma das temporalidades pelo espa ‘go-tempo global ¢ local Acresce que vio crescendo de importincia tempora- Tidades ou ritmos totalmente incompativeis com a temporalidade estatal nacional no seu conjunto, Duas delas merecem referencia especial. O tempo instantaneo do eiber-espago, por um lado, ¢ 0 tempo Blacial da degradagtio ecol6gica, da questi indfgena ou da biodiversidade, por outro. Qualquer destas temporalidades colide frontalmente com a tempora lidade politica € burvcratica do Estado. O tempo instantineo dos mercados financeiros inviabiliza qualquer deliberag20 ou regulagdo por parte do Esta- do, A desaceleracio desta temporalidade s6 pode ser ‘btida ao nivel da escala em que ocorte, a escala glo- bal, e, portanto, através da actuagio intemacional Por outro lado, © tempo glacial é um tempo demasia- do lento para se poder compatibilizar adequadamente com qualquer das temporalidades estatais nacionais, Alls, as aproximagbes recentes entre o tempo esta- tale o tempo glacial t€m-se traduzido em pouco tais do que tentativas por parte do tempo estaal de canibalizar ¢ descaracterizar o tempo glacial. Basta ver como tem sido tratada em muitos pafses a ques to indigena ou a recentissima onda global de k nacionais de patentes e de propriedade intelectual com impacto na questo da biodiversidade. Como o espago-tempo nacional estatal tem sido até ‘agora 0 espago-tempo hegeménico, ele conforma rio apenas a acgo do Estado mas as priticas sociais em geral e € também nestas que se repercute a con- corréncia do tempo instantineo e do tempo glacial ‘Tal como sucede com a turbuléneia das escalas, estes dois tempos convergem, por vias diversas, na redu- fo das alternativas, na criagdo de impoténcia e na promocio da passividade, O tempo instantaneo colap- ‘tas sequéncias num presente infinito que trvializa as altemativas pela sua multiplicagdo tecno-hidica, fan- dindo-as em vatiagdes do mesmo. Ao contratio, 0 empo glacial cria uma distancia to grande entre as alternativas que elas deixam de ser comensuraveis ¢ contraponiveis, vagueando em sistemas de referén- cia incomunicéyeis. Por esta razdo & cada vez mais 4iffcil visualizar e optar entre modelos alternativos de desenvolvimento, E, todavia, a0 nfvel dos dispositivos operacio ccontratuatizagio social que siio mais visiveis os nis de crise deste paradigma. No entanto, & primei- ra vista, a situago actual, longe de configurar uma crise do contratuatismo social, caracteriza-se pela sua consagragio sem precedentes. Nunca se falou tanto de contratualizagio das relagées sociais, das re- ages de trabatho, das relagées politicas do Fstado ‘com organizagdes sociais, Mas esta nova contratua- lizagdo tem pouco a ver com a que foi fundada na ideia moderna do contrato social. Em primeiro lugar, {rata-se de uma contratualizaglo liberal individuals ‘a, moldada na ideia do contrato de direito civil, en- Ite individuos, e nao na ideia do contrato social entre agregagdes colectivas de interesses sociais diver- gentes. O Estado, a0 contririo do que se passa no ‘contrato social, tem uma intervenciia minima, de as- Segurar o cumprimento do contrato enguanto ele nao. for denunciado, sem, no entanto, poder interferit nas condigdes e nos termos do acordado, Em segundo lugar, ao contritio do contrato social, a nova cont twalizagao nido tem qualquer estabilidade, podendo ser denuneiada a qualquer momento por qualquer das partes. Néo se trata de uma opgio radical ¢ antes de uma opgio trivial. Em terceiro lugar, a contratua- lizagio liberal ndo reconhece © conflito e a luta co- ‘mo elementos estruturais do combate. Pelo contratio, da substitui-os pelo assentimento passivo a condigées supostamente universais consideradas incontornd- veis. Assim, 0 chamade consenso de Washington, se configura uin contrato social, ele ocorre a nivel inter- nacional entre os paises capitalistas centrais. Para to- das as outras sociedades nacionais, ele apresenta-se como tim conjunto de condigaes inexoriveis de acei- tagio acritica sob pena de implacdvel exclusao, Sdo cessas condigdes inelutiveis globais que depois sus- {entam os contratos individuais de direito civil, Por todas estas razdes a nova contratualizagiio & en- quanto contratualizagao social, um falso contrato, uma meta aparéncia de compromisso constituide Por condigées impostas sem discussio a0 parceiro mais fraco no contrato, condigdes to onerosas {quanto inescapaveis. Sob a aparéncia do contrato, a nova contratualizago configura a reemergéncia do status, ou seja, dos principios de ordenagiio hierér- quica pré-modera onde as condigGes das relagées sociais estavam directamente ligadas as posigées «das partes na hierarquia social. De facto, nfo se trata sde-um regresso ao passado, O status € agora apenas 0 feito da enorme desigualdade de poder econdmico entre as partes no contrato individual e na capacida- de que tal desigualdade d& 2 parte mais forte para impor sem discussdo as condigées que Ihe sio mais favoriveis. O status pés-moderno manifesta-se co- mo contrato leonino, A crise da contratualizactio moderna consiste na predominincia estrutural dos processos de exclu- io sobre os processos de inclusio, Estes thtimos ainda vigoram e até em formas avangadas que per- ‘mitem a compatibilizago virtuosa dos valores da | | | | | { I ‘modernidade, mas confinam-se a grupos cada ver, nas restritos que impSem a grupos mito mais am- plos formas de exclusio abissais. A predomingncia dos processos de exclusio apresenta-se sob duas for- ‘mas, na aparéncia contradit6rias: 0 pés-contratualis- no € 0 pré-contratualismo. O pos-contratualismo & 0 processo pelo qual grupos ¢ interesses sociais até agora ineludos no contrato social so dele excluidos, ‘sem qualquer perspectiva de regresso. Os direitos de cidadania, antes considerados inaliensveis, sio-lhes confiscados e, sem estes, os exclutcos passam da condigao de cidadaos a condigio de servas. O pré- -contratualismo consiste no bloqueamento do acesso {i cidadania por parte de grupos sociais que anterior- mente se consideravam candidatos a cidadania © ti- nhann a expectativa fundada de a ela aceder. A diferenga estrutural entre pés-contratualismo © pré-contratualismo é clara e os processos politicos ‘que promovem um e outto sao distintos. No entan- to, surgem frequentemente confundidos, tanto no. iscurso politico dominante como nas vivéncias e teligibilidades pessoais dos grupos atingidos por eles. Ao nivel do discurso politico, € frequente- ‘mente apresentado como pos-contratualismo 0 que. € estruturalmente pré-contratualismo, Fala-se de actos sociais e de compromissos anteriormente assumidos que agora se torna impossivel continuar a honrar quando, de facto, a situago anterior nun- cca passou de contratas-promessas € de pré-com- promissos que em verdade nunca se realizaram. Passa-se assim do pré-contratualismo ao pés-con. tratualismo sem nunca se ter passado pelo contra tualismo. Assim tem sucedido sobretudo nos qua- se-Estados-Providéncia que tém vigorado em mui- tos paises semiperiférios ou de desenvolvimento intermédio. Do mesmo modo, ao nivel das viven- clas © percepgdes das pessoas © grupos sociais atingidos, é frequente que ante a perda sabita da estabilizagao minima das expectativas, as pessoas se déem conta de que anteriormente eram afinal cidadaos sem o saberem nem terem exercido os di reitos de que eram titulares. Neste caso, © pré- -contratualismo & vivido subjectivamente como pés-contratualismo. ‘AS exelusdes produzidas, tanto pelo pés-contratua- fismo como pelo pré-contratualismo so radicais & inelutaveis, e a tal ponto que os que as sofrem, ape- sar de formalmente cidadios, so de facto exclufdos da sociedade civil e langados num estado de nature- za, Na sociedade pés-moderna do fim do século, © estado de natureza é a ansiedade permanente em re- lagao ao presente ¢ a0 futuro, o desgoverno iminen- te das expectativas, © caos permanente nos actos ‘mais simples de sobrevivéncia ou de convivéncia. © pos-contratualismo © o pré-contratualismo sio 0 produto de transformagdes profundas por que estio a passar os ttés dispositivos operacionais do contrato social anteriormente analisados: a sociabilizagao da economia, a politizagao do Estado, a nacionalizagao da identidade culural. As transformagoes s20 diferentes em cada um deles mas, directa ou indirectamente, de- ‘correm do que podemos designar por consenso liberal, ‘0 qual se desdobra em quatro consensos principais. Em primeiro lugar, 0 consenso econdmico neolibe- ral, também conhecido por consenso de Washington (Santos, 1995: 276, 313, 356). O consenso de a excuses produces elo poe: contatstrne polo po- contatstome so adleala © Ineletave Washington diz respeito & organizagio da economia global, incluindo a producio, os mercados de produ- 10s € servigos, os mercados financeiros, ¢ assenta na. liberalizagiio dos mercados, destegulamentagao, pri- vatizagio, minimalisino estatal, controle dla inflagao, primazia das exportagdes, cortes nas despesas s0- cits, redugio do défice piiblico, concentragio do po- der mercantil nas grandes empresas multinacionais © do poder financeiro nos grandes bancos transnacio- nais. As grandes inovacGes institucionais do con- Senso econémico neoliberal so as novas resttigdes regulamentagdo estatal, os novos direitos interna- cionais de propriedade para investidores estrangeitos criadores intelectuais ¢ a subordinagio dos Estados nacionais a agéncias multilaterais, como 0 Banco ‘Mundial, o Fundo Monetirio Internacional e Organi- zagio Mundial do Comércio, © segundo consenso € 0 consenso do Estado fraco. Relacionado com 0 consenso anterior tem, contudo, ‘outras implicagées, pois ultrapassa o dominio econ6- imico e mesmo social. Nele o Estado deixa de ser 0 espelho da sociedade civil para passar a ser 0 seu ‘oposto, ¢ a forca do Hstado passa a ser a causa da fra ‘queza e da desorganizagao da sociedade civil. O BS- lado, mesmo o Estado formalmente democtitico, 6 considerado inerentemente opressivo, ineficiente & predador, pelo que o seu enfraquecimento é pré-con- digo para o fortalecimento da sociedade civil. Este consenso &, todavia, atravessado pelo seguinte dile- ‘ma: jé que apenas o Estado pode produzir a sua pré- ria fraqueza, & necessério um Estado forte para produzir essa fraqueza eficientemente e sustenti-la, Coerentemente. Assim, o enfraquecimento do Esta- do produz efeitos perversos que colocam em causa as proprias tarefas alsibuidas ao Estado fraco: 0 Bs- {ado fraco nfo pode controlar a sua fraqueza. O terceiro consenso & o consenso democritico liberal © consiste na promogio internacional de concepgdes ‘minimalistas de democracia como condigdo de aces- 80 dos Estados nacionais aos recursos financeiros in- temacionais. A convergéncia entre este consenso e os anteriores tem sido reconhecida como estando anco- ada na propria origem da modemidade politica, ‘A verdade & que, enquanto a teoria democritica do séc. XIX estava tio preocupada em justificar a sobe- rania do poder estatal, enquanto capacidade regula- dora e coercitiva, quanto ei justificar os limites do poder do Estado, o consenso democrético liberal nio esté minimamente preocupado com a soberania do poder estatal, sobretudo na periferia © semiperiferia, do sistema mundial, e as fungdes reguladoras do Es- lado sao vistas mais como incapacidades do que co: ‘mo capacidades do Estado. Por tiltimo, consenso liberal integra ainda 0 con- senso do primado do direito e dos tribunais, que deriva do modelo de desenvolvimento promovido pelos trés consensos anteriores. Este modelo di to- tal prioridade propriedade privada, as relagdes mercantis e ao sector privado, cuja operacionalida- de assenta em transacgdes seguras e previsiveis, garantidas contra os riscos de violagées unilaterais, Tudo isto exige um novo quadro juridico e atribui 0s tribunais um novo papel, bastante mais central, enquanto garantes do comércio jurfdico e instin- ias de resolugio de litfgios. O marco politico da contratualizagio social deve, pois, ceder 0 lugar a0 mateo jutdico ¢ judicial da contratualizago ind vidual. Esta € uma das dimensesprincipais da ju- ‘alizagao da politica, © consenso liberal em suas miipas vetentes tem tum impacto profundo nos tés dispositivas opera ionais do contrato socal, O impacto mais decsivo reside no processo de dessocilizagdo da economia, reducio desa 8 nstromenalidade do mercado © das uansacgoes. E este 0 campo privilegiado do p0s-contratualismo edo pré-contatuaismo. Como mos, no modelo da contatualizagao socal da 1moderaidade capitalistao trabalho foi a via de aces- so A cidadani, quer pela extensdo aos trabalhaores dos ditetos efvicose politicos, quer pela conquista de direitos novos especticos ou tendencialmente es pecificos do colectvo de trabalhadores, como o di reito do trabalho e of dieitos econsmicos e socais A eroso crescent destes direitos, combinada com 0 aumento do desemprego esirutral, conduz 8 passa- sem dos tabathadores de um estatuto de idan para. um estatuto de lampencidadania. Para a grande maioria deses abalhadores, rata-se de uma passa gem sem regresso, do contratalismo para 0 pos- “contratuaism, Aids, como disse acima, oestaluto de cidadania de que estes trabalhadores param era jd de sito pre= cri e rarefeito que, em muitos casos, a passagem parece ser mais verdadeiramente uma passagem di reola do précontratvalismo a0 pos-contratualismo 6 0 manuseio retrospective das expectativas faz com que a passagem pirega ocorrer do contatais- mo para o pés-contratualist Por outro lado, natn contexto de mercados globaisIberalizados, de con- trole generalizado da inflagdo e contengao do cres ‘mento econémico‘, combinados com novas tecnolo- gias que permitem criar riqueza sem criar emprego, © aumento do nivel de emprego num pats é sempre obtido a custa da redugdo do nfvel de emprego nou- to pafs. Aqui reside o aumento da concorréncia in- temacional entre trabalhadores. A redugdo a nivel nacional da concorréncia entre trabalhadores foi 0 grande feito hist6rico do movimento sindical e quigé ‘constitui hoje em dia um obstéculo & maior eficdcia dos sindicatos no controle da concorréneia interna- cional entre trabalhadores.Tal controle exigiria, por ‘unt lado, a internacionalizaca0 do movimento oper- rio €, por outro, a criagio de autoridades politicas supranacionais com poderes para impor 0 cumpri- ‘mento dos novos contratos sociais globais, Na ausén- cia de uma e de outras, a concorréncia internacional centre trabalhadores aumenta e, com ela, a Igica da exclusdo que Ihe é caracteristica. Em muitos paises, ‘a maioria dos trabalhadores que entram de novo no uma légica de exclusio, ¢ a falta de expectativas de ‘melhioria Futura impede que se considerem sequer candidatos 2 cidadania, Muitos outros nem sequer conseguem entrar no mercado de trabalho e essa impossibilidade, se para alguns & conjuntural provisoria, € para outros estrutural e permanente De uma ou de outra forma, em todas estas situa- ‘gdes predomina a légica de exclusio. Estamos pe- ante uma situaeao de pré-contratualismo sem qualquer possibilidade de transitar para uma situa- fo de contratualismo, sos © aprotunea. login do exchisto ila novoe cestados de =B- Quer pela via do pés-contratualismo, quer pela do Pré-contratualismo, 9 aprofundamento da légica de exclusdo cria novos estados de natureza: a precatida- de de vida e a servidao engendradas pela ansiedade permanente do trabalhador assalariado quanto ao ‘montante € continuidade do trabalho, pela ansiedade do desempregado em busca de trabalho, ou daqueles ue no tém sequer condigdes para procurar traba- tho, pela ansiedade dos trabalhadores auténotos quanto & continuidade do mercado que eles préprios ‘€m de eriar todos os dias para assegurar a cor dade dos seus rendimentos ¢, ainda, pela dos trabar Ihadores clandestinos sem quaisquer direitos sociais, A estabitidade de que fala 0 consenso neoliberal & sempre a das expectativas dos mercados ¢ dos inves- timentos, nunca € a das expectativas das pessous Aligs, a estabilidade dos primeiros 56 € obtivel 3 cus ta da instabitidade das segundas. Por todas estas razées, 0 trabalho deixa cada vex ‘mais de sustentar a cidadania e, vice-versa, esta dei- xa cada vez mais de sustentar 0 trabalho, Ao perder © seu estatuito politico de produto e produtor de ci- dadania, 0 trabalho reduz-se & penosidade da exis- ‘Gncia, quer quando existe, quer quando falta. E por isso que o trabalho, apesar de dominar cada yez mais as vidas das pessoas, esté a desaparecer das re- feréncias éticas que sustentam a autonomia ¢ auto- estima dos sujeitos, Em termos sociais, o efeito cumulative do pré-con- Uwatualismo e do pés-contratuatismo & a emergéncia de uma sub-classe de excluidos, maior ou menor consounte a posiglo perifética ou central da socieda- de no sistema mundial, constitufda, quet por grupos sociais em mobilidade descendente estrutural (traba- Ihadores mito qualificados, desempregados, trabalha- ddores imigrantes, minorias étnicas), quer por grupos sociais para quem o trabalho deixou de ser uma ex- pectativa realista ou nunca o foi (desempregados de longa duragio, jovens incapazes de entrar no merca- do de trabalho, deficientes, largas massas de campo neses pobres na América Latina, na Africa e na Asia). Esta classe de excluidos assume nos pafses centrais a forma de terceiro mundo interior, 0 chama- do tergo inferior na sociedade de dois tergos. Na E- ropa hé 18 mithdes de desempregados, mais de 52 milhdes de pessoas abaixo do limiar da pobreza, mais de 10% da populago com deficigncias fisicas ‘ou mentais que tornam dificil a sua integrago social [Nos Estados Unidos a tese da underclass tem sido formulada por William Julius Wilson para caracteri- zar os negros dos ghettos urbanos atingidos pelo de- clinio da inddstria e pela desentficagaio econémica das innercities (Wilson, 1987). Wilson define a un- derclass segundo seis caracteristicas principais: resi- | déncia em espagos socialmente isolados das outras, lasses; auséncia de emprego de longa duragio; fa- milias monoparentais chefiadas por mulheres; au- séncia de qualificacdo ou de formagto profissional; longos perfodos de pobreza e de dependéncia da as- sisténcia social; tendéncia para entrar em actividades criminosas, do tipo streer crime. Esta classe aumen- ‘ou significativamente dos anos setenta para os anos oitenta e juvenilizou-se tragicamente. A percentagem de pobres com menos de 18 anos era de 15% em 1970 e de 20% em 1987, sendo particularmente dra- | inético © aumento da pobreza infantil. © caréeter estrutural da exclusio e, portanto, dos obsticulos 2 in- cluso a que esta classe esta sujeita, esta bem patente no facto de, apesar de os negros americanos demons: trarem uma melhoria educacional intergeracional noté- vel, tal esforgo no feve qualquer tradugao na obtenigao cde emprego regular ea tempo inteiro, Segundo Lash ¢ Urry, trés factores principais contribuiram para tal: @ declinio do emprego industrial no conjunto da econo- mia a fuga do emprego remanescente dos centros da cidade para 0s subsirbios; a redistribuigdo do emprego segundo diferentes tipos de reas metropoltanas (Lash cc Urry, 1996: 151). Se passarmos do centro do sistema mundial para a petiferia ea semiperiferia, a classe dos excluitos au- ‘menta para metade ou mais da populaco dos pafses os Factores de exclusio so ainda mais tenazes na sta eficdcia dessocializadora, ( crescimento estrutural da exclusio social, quer por via do pré-contratualismo, quer por via do pés- “contratualismo, e a consequente ampliagtio de esta- dos de natureza donde niio se tem a opto individual ‘ou colectiva de sair, configura uma crise de tipo pa- radigmitico, epocal, que alguns designam por des modemizagio ou contra-modernizagao. E, portanto, ‘uma situagao de muitos riseos. A questo € saber se ‘contém algumas oportunidades para a substituigéo Virtuosa do velho contrato social da modemnidade por um outro, menos vulneravel & profiferagio da légica de exclusio, A Emergéncia do Fascismo Societal ‘Analisemos antes de mais 0s riscos. Julgo que todos cles se podem resumir num s6: a emergéncia do fas ‘cismo societal. Nao se trata do regresso a0 fascismo ddos anos trinta e quarenta. Ao contrério deste titimo, tio se trata de um regime politico mas antes de um regime social ecivilizacional. Em vez de saerificar a democracia as exigéncias do capitalismo, promove a democracia até ao ponto de ndo ser necessério, nem sequer conveniente, sactificat a democracia para promover o capitalismo. Trata-se, pois, de um fascis- ‘mo plualista e, por isso, de uma forma de fascismo que munca existiu. As formas fundamentais do tipo fascista de sociabilidade so as seguinte ‘A primeira forma 6 0 fascismo do apartheid social. ‘Trata-se da segregagiio social dos exclutdos através de uma cartografia urbana dividida em zonas selva~ gens e zonas civilizadas. As zonas selvagens slo as ‘zonas do estado de natureza hiobbesiano. As zonas ci vilizadas so as zonas do contrato social e vivem sob 4 constante ameaga das zonas selvagens. Para se om regime osetia a as enw Denwcrde defenderem, transformam-se em castelos neofeu- dais, os enclaves fortificados que caractetizam as no- vas formas de segregagao urbana (cidades privadas, condomfnios fechados, gated communities). A divi- sio entre zonas selvagens e zonas civilizadas esta a transformar-se num critério geral de sociabilidade, lum novo espago-tempo hegeménico que aravessa todas as relagdes sociais, econsmicas, politicas e cul- turais © que por isso é comum & accAo estatal € ac- ‘¢Ho nao estatal, A segunda forma 6 0 faseismo do Estado paralelo. Em ‘rabalhos anteriores, tenho falado do Estado paralelo para caracterizar formas de acg20 estatal caracteriza- das pela grande discrepancia entre o diteito escrito e a acco estatal pritica’. Julzo que em tempo de fascis- ‘mo societal o Estado paralelo assume uma nova for- ‘ma. Consiste num duplo paditio da acco estatal nas Zonas selvagens e nas zonas eivilizadas. Nas 7onas ci zadas, o Estado age democraticamente, como Esta- do protector, ainda que muitas vezes ineficaz on no cconfiavel. Nas zonas selvagens, o Estado age fasci ccamente, como Estado predador, sem qualquer velei- dade de observincia, mesmo aparente, do dircit A terceira forma do fascismo societal & 0 fascismo para-estatal, Trata-se da usurpacio de prertogativas estatais (de coergio e de regulagio social) por parte de actores sociais muito poderosos, muitas vezes com a conivéncia do préprio Estado, que ora neutralizam, ‘ra suplementam o controle social produzido pelo Es. tado. O fascismo para-estatal em duas vertentes prin-

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