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ae ‘Uma acurada andlise e exaustiva desorigao do trAfico de escravos africanos para o Brasil, pega~ chave do sistema escravocrata que aqui vingou por quase quatro séculos. Legal ou nao, esse tréfico determinava atitudes em ralacdo aos negros que permitiam um completo descaso por seus direitos & Sentimentos como seres humanos. Ao descrever 08 métodos empregados pelos mercadores de escravos na Africa, no mar e nos mercados brasileiros, Robert ‘Conrad faz um estudo original e desmistificador da escravidao no Brasil. brasiliense ROBERT EDGAR CONRAD TUMBEIROS _ ROBERT EDGAR CONRAD a De O.TRAFICO DE ESCRAVOS PARA O BRASIL Colegdo Primeiros Passos ‘+ O que é Caposira — Amir das Areas 2 O que é Racismo — Joe! Rufino das Santos 0 que é Umbanda — Patricia Birman Colegio Tudo & Historia + A Abolictio da Escravido — Suely RFs de Queiroz 3A Afto-América — A Escravidio no Novo Mundo — Giro ‘Famarion Cardoso « RCha do Agia — Vera. A. Feet ‘V/A Giise do Escrevismo e a Grande imigrario — P. Beiguelmen 3.0 Escravo Getcho — Ressténcia o Trabalho — Mirio J. Maestri iho += Os Qulombos ¢ @ Rebello Negra — Clévis Moura Colegéo Qualé: ‘+ A Questo da Negritude i Bernd Robert Edgar Conrad Tumbeiros O trAfico escravista para o Brasil ‘Tradugao: Elvira Serapicos 1985 Copyright @ Robert Edgar Conrad Copyright © da traducao: Editora Brasiliense S.A. Capa: Ettore Bottini Revista téenica José M, Pereira de Araiiio Revisao. Maria Esther Nejm brosttiense editora brasiliense s.a. 01223 — r. general jardim, 160 so paulo — brasil Indice. Prefacio - 7 Escraviddo na América Portuguesa: por que 0 trafico escravista durou trezentos anos .... seceree 15 trafico: volumes, métodos, mercados a Trafico ilegal: 1810-1830 ......... 66, O trafico ilegal renovado: 1831-1838 . . . 90 técnicas e organizagies 118 Colaboradores estrangeiros: 0s britanicos e os americanos 139 Os contrabandistas de escravos: Os emancipados: nem escravos nem libertos . . 171 0 trafico interno de escravos - 187 ComelUs80.. eee eee eeeeeeeeee 208 Tabelas . . eee +213 Bibliografia selecionada ........ 218 ABREVIATURAS AN ArguivoNacional, Riode Janeiro BPSP British and Foreign State Papers BNSM Biblioteca Nacional, Seeao de Manuscritos, Rio deJaneiro IHGB Instituto Histéricoe Geogrifico Brasileiro, Rio deJanciro Prefacio En 1808, quando o governo real portugués foi transfe- rido de Lisboa para o Rio de Janeiro como conseqiléncia do cerco de Napoleio a Portugal, poucos brasileiros poderiam acreditar que a escravidao seria abolida em seu pais dali a 80 anos. A escravidao existia havia séculos no mundo portugués, era um complemento do sistema social ¢ parte essencial do sistema econdmico. Segundo as estatisticas oficiais, em 1817- 1818 a populagde escrava era de 1930000, aproximadamente metade da populagao total de 3818000, e milhares de novos escravos entravam no pafs acada ano.' De uma ponta a outra da imensa col6nia, nas cidades, minas ¢ plantagens, os escra- Yos executavam quase todo o trabalho produtivo; nas casas dos ricos, abastados e mesmo de homens livres pobres, eles faziam as tarefas domésticas e cuidavam das necessidades fisicas e pessoais de seus senhores, Os estrangeiros que che- gavam ao Rio de Janeiro ou outras cidades costeiras fica- vam espantados com os milhares de negros que viam car- regando dgua, mercadorias e produtos, transportando seus senhores e senhoras em liteiras ou redes pelas ruas da ci- dade, ou vendendo uma grande variedade de produtos. Os proprietarios dos escravos exigiam seu trabalho, servico e obe- (1) Para essas e outras estatsticas, ver Agostinho Marques Perdigiio Mamneito, A escraviddo no Bresi, 2 vols. {S30 Paulo, 1944), I, 28, 197-200. 8 ROBERT EDGARD CONRAD. digncia totalmente amparados por uma complexa estrutura legal, pelo costume oficializado e pela doutrina da Igreja Ca- tlica. Com a maioria da populagio escravizada, dependente de uma elite fundiaria poderosa, ou vivendo precariamente fora do controle dessa elite, com uma enorme quantia de capital investido na propriedade escrava, com uma economia aparen- temente dependente nao apenas da escravidio mas também do trafico internacional de escravos que fornecia regularmente ‘uma forea de trabatho quase que literalmente dizimada a.cada ano pela doengit€ por maus tratos, o Brasil nao poderia ter- yoltado rapida e facilmente para um sistema de trabalho livre em principios do século XIX. Em relagio 4 Gra-Bretanha ¢ Estados Unidos, onde a oposicdo & escravidao era poderosa, crescente, e geralmente conduzida pelo clero protestante, ou & Franga e boa parte da Europa Ocidental, sacudida por revo- lugdes e mudangas ideolégicas, 0 Brasil havia herdado uma perspectiva filosGfica e religiosa que permitira uma quase total acomodaciio & servidao humana. Distante das foreas incisivas da Reforma e do lluminismo; sem a tradigao democratica que Provocava em muitos franceses, anglo-americanos e outros 0 dio ante a idéia da posse de seres humanos por seres huma- nos; sem imprensa piblica até 1808; com um sistema educa- cional planejado para atingir apenas uma pequena parcela da populacio, ¢ que reforgava a tradigto e o privilégio mais do que lhe cra exigido — em resumo, com poucas oportunidades para desenvolver aquelas crengas filoséficas que colocaram os estados escravocratas da Unitio Americana na defensiva por mais de 60 anos —, o Brasil estava comparativamente_aco- modado & escravidao no inicio do século XIX. ‘Como no caso do Sul americano ou das Indias Ocidentais britanicas, o impulso para por fim a escravidao teve de vir de fora. Sem essa pressio externa — ideoldgica, diplomtica, econémica e até mesmo militar — o Brasil nao teria enfren- tado, na época, o problema da escravidio da forma como en- frentou, De fato, como sugerem as informagoes contidas neste livro, durante a primeira metade do século XTX poucos brasi- leiros influentes tinham qualquer desejo de acabar com a es- craviddo, ou mesmo com 0 trifico, A maioria estava muito mais inclinada a aceitar o sistema como um direito concedido por Deus, a defendé-lo quando fosse atacado, ¢ a aproveitar TOMBEIROS. 9 a0 maximo todos os privilégios econdmicos e sociais, legais e outros, que ele Ihes oferecia. ‘A luta contra a escravidio brasileira no é, entretanto, 0 tema deste livro. O conflito entre Gra-Bretanha e Brasil so- bre o trdfico de escravos ¢ a posterior Iuta pela abolicao tém sido abundantemente tratados por historiadores, pouco pode- ria ser aqui acrescentado a esses t6picos.” Meu propésito analisar e deserever um importante aspecto particular do tema escravocrata brasileiro: 0 trafico de escravos da Africa para o Brasil, sem o qual o tipo de opressio humana que so- breviveu no Brasil por quase quatro séculos dificilmente teria sido possivel. Contudo, nao tentei incluir anélises exaustivas de cada fase ou aspecto deste prolongado ¢ complexo comér- cio de escravos, Certa atengao é dada aqui ao trafico nos sécu- los anteriores a 1808, mas a €nfase recai sobre o perfodo pos- terior a essa data, especialmente nos anos de 1810 a 1830, quando 0 tréfico de escravos era parcialmente ilegal, e nas duas décadas que vio de 1831 a 1850, quando, segundo as leis brasileiras os acordos internacionais, no possuia qualquer legalidade, Como resultado dessa concentracio nas tiltimas quatro décadas do comércio brasileiro de escravos, o que é tratado na maior parte deste livro é a atividade humana que era tanto moral quanto legalmente criminosa. As implicagdes desse fato tornam-se mais claras quando se reconhece que essa atividade ilegal ocorren em praticamente todas as regides do Brasil, en- ‘volveu quase todos os elementos da sociedade desse pafs (com a excecdio Sbvia dos escravos), ¢ atraiu uma grande participa- ‘cdo estrangeira, Na realidade, em seus anos finais 0 tréfico de escravos africanos para o Brasil foi, para essa época ¢ local especificos, um esforgo de grandes proporyies que, para al- cangar sucesso, requeria a existéncia de algumas condigies particulares ¢ a cooperagio de uma ampla variedade de parti- cipantes especializados. Acima de tudo, dependia de cireuns- (2) Para a luta pola abolicdo, ver especialmente Joaquim Nabuco, O Abolcioniemo (Londres, 1883); Emlia Voki da Costa, Da senzale 8 covbnia {Sto Paulo, 1988); Robert Brent Toplin, The Abolition of Slavery In Broz {Nove lorque, 1972); Robert Conred, Os ultimas anos da escravatura no Bras, 1860-1888 (Rio de Jansi, 1875}; Warren Dean, Rio Claro: 2 Brazilian Pan: tation System, 1820-1820 (Stanford, California, 1975) 10 ROBERT EDGARD CONRAD tncias econdmicas, éticas e sociais favoraveis no Brasil. Isso significava um mercado para escravos t4o prementee tfo cons- tante que os altos custos e perigos inerentes & ilegalidade eram superados pela demanda; significava uma classe dirigente composta pelos mesmos elementos sociais dos compradores de escravos contrabandeados, pessoas convencidas, como as pes- Soas que teoricamente representavam, de que os embarques de africanos em tumbeiros, como eram chamados os navios negreiros, e seu transporte em massa através do Atlantico eram essenciais nao apenas para sua classe mas também para a integridade econémica e politica de seu pafs.? Essencial para 0 sucesso do comeércio de escravos foi uma populacdio que, na pritica, se nao na teoria, entendia a lei ¢ até mesmo os princi- ios religiosos mais como armas de classe do que como pa- drBes de conduta que o cidadio ou devoto devessem respeitar. Para muitos brasileiros, os privilégios de classe e cor e os di- reitos do senhor estavam acima da lei e acima dos preceitos morais ¢ religiosos. Além disso, fosse legal ou nfo, o tréfico de escravos determinava atitudes em relagdo aos negros que per- mitiam um quase completo descaso por seus direitos ¢ senti- mentos como seres humanos, Exatamente como nos Estados Unidos, essa “instituiggo peculiar” do Brasil engendrou uma “sociedade peculiar", e uma vez que essa sociedade sustentou © tréfico de escravos africanos — e foi por ele sustentada — ela é também um dos temas deste livro, Ao estudar a escravidio brasileira durante os wltimos vinte anos, pareceu-me cada vez mais dbvio que essa institui- ‘gio foi provavelmente tio brutal quanto a escravidao em qual- quer lugar na hist6ria humana, apesar de muitas afirmagdes de especialistas — e nao-especialistas — em sentido contririo. Muitos historiadores, inclusive eu mesmo, levantaram nume- rosas evidéncias para apoiar esta posigdo, e eu ja nao sinto necessidade de jogar mais lenha na fogueira.* Todavia, o con- tetido deste livro deve fazer exatamente isso. (3) 0 temo “tumbsres” rfoda-e nfo apenas 208 novos negrekos, mat ambi Sor cares cy compat oars An ut Constr ath costa. Gu navi nogreos tember erm Chamodos de Mt mulos flutuantes”. Haid (@) Para um estud protrinar eat da oscravidb bras, vr Stan ley J. Stn, Vassouras:« Brasion Coffee County, 1850 100 (Comrbrisg, TEES SE SS SSS SSS SE SSeS ree eee eee Pee eee ee eee eee eee eee eee ee eeereeetee eee eeeee eee earn ‘TUMBEIROS u capitulo “Escravidio na América Portuguesa: por que 0 trafico escravista durou trezentos anos” foi escrito para ex- plicar por que o trafico resistiu por mais de trés séculos; por que essa grande migracdo transatlantica foi necesséria para a existéncia da escravidio brasileira, e por que mais escravos foram importados para o Brasil durante aqueles séculos do que os que ali viveram em qualquer época da histéria desse pais. Como serd visto, um grande e permamente trafico de es- cravos era necessério porque 0s africanos no Brasil. € seus descendentes, encontraram condigdes tao prejudiciais a sua saiide e bem-estar que nao se reproduziam: nao eram capazes de por si mesmos procriar ¢ formar até a maturidade as ge~ ragdes de que seus “senhores” necessitavam para plantar os campos e trabalhar nas colheitas. E preciso assinalar que esse “erescimento populacional negativo”, para usar um termo empregado pelos sociélogos, nao foi uma caracteristica rara na escravidio das Américas. Na verdade, deveria ser mais ‘exatamente descrita como uma das caracteristicas “norma da escravidio no Novo Mundo. Além disso, uma sociedade escravocrata que apresentou permanentemente essa feicao, ‘mesmo durante seus dltimos anos, jamais deveria ser cha- mada de instituicao “benigna”, ou “branda. como freqiien- temente 0 foi a escravidao brasileira. A crueldade da escravidio brasileira é revelada mais adiante no capftulo “O trifico: volumes, métodos, mercados". onde analisei o volume do trafico ¢ tentei descrever os métodos empregados pelos mercadores de escravos na Africa, no mar. € nos mercados do Brasil. Os capitulos “Trifico ilegal: 1810- 1830”, “O trafico ilegal renovado: 1831-1838” “Os contra- bandistas de escravos: téenicas ¢ organizagdes", que desere- vem o comércio escravo tanto legal quanto ilegal entre 1810 e © fim do trafico em meados do século, ¢ 0 capitulo “Colabo- radotes estrangeiros: 0s britdnicos e os americanos”, que ana- lisa a colaboracao de cidadaos dos Estados Unidos € Gri-Bre- tanha nese trafico, ndo tratam diretamente da natureza da “Massachusetts, 1957). Um dos melhores estudos recentes 6 0 escravismo co: Joniel, de Jacob Gorender, 3° ed. (S80 Paulo, 1980). Para numerasos docu- 'mentos em inglés, elucidativos de muitos aspectos da escrevidto brasileira, ver Rober Edgar Conrad em Children of God's Fire: « Documentary of Black Si ver in Brazil Princeton, 1983). 2 ROBERT EDGARD CONRAD escravidiio no Brasil, mas do descaso generalizado pelos direi- tose bem-estar das centenas de milhares de pessoas que cons titujam as cargas dos navios negreiros durante aqueles anos. E isso dificilmente, sustenta 0 argumento de que os africanos que chegavam ao Brasil eram introduzidos em um ambiente que Favorecia grandemente seus interesses. O capitulo “Os emancipados: nem escravos nem libertos” afasta-se do topico do trifico de eseravos para fazer um relato de algumas de suas vitimas: os chamados emaneipados ou africanos livres, que cram salvos dos navios negreiros e legalmente libertados mas que, em sua grande maioria, eram mantidos como escravos de fato. Por quase quarenta anos esses “‘escravos livres" viveram ¢ sofreram as contradigBes de uma escravidao brasileira mais, branda, como era freqtientemente caracterizada j4 naquela época. O capitulo final deste livro fornece uma breve anilise do comércio escravo interno que substituiu o trifico africano quando este foi finalmente suprimido em meados do século XIX. Apesar de poder nao parecer inteiramente apropriado incluir uma diseussao do comércio interno de escravos em um estudo do trdfico internacional, procedi assim por acreditar que em muitos aspectos o comércio interno foi uma continua- Gio do trifico africano, e nao sitmplesmente seu substitute. Os efeitos de ambos sobre suas vitimas, por exemplo, foram ex tremamente parecidos, seus métodos e motivagiies foram simi- lares, € mesmo as dimensdes estatisticas dessas duas migra- eves forgadas admitem comparagies importantes, se forem le- vados em consideragiio todos os fatores relevantes. Talvez 0 importante seja que tanto 0 comércio interno quanto 0 trilico africano que o precedeu foram manifestagdes dos mes- mos desvios sociais e morais, qué no enfraqueceram quando terminou o trafic africano, ou mesmo quando a propria es- cravictio foi abolida em 1888. Portanto, uma breve andlise do comércio interno, com incursdes adicionais na natureza da sociedade brasileira estabelecida por ele, € no minimo, acre- dito eu, apendice logico para 0 estudo do triifico de eseravos africanos para o Brasil. ‘As pessoas ¢ instituigdes que ajudaram a tornar possivel este livro incluem todas aquelas mencionadas em meu pri- meiro livro, Os iilrimos anos da escravatura no Brasil. Sua “TUMBEIROS B ajuda, especialmente a de Lewis Hanke e de minha amiga critica, Ursula, € novamente reconhecida com gratidao. Também sou grato ao The Hispanic American Historical Re- view por me permitir a publicagao de partes de dois artigos publicados originalmente nesse jornal, Gostaria de lembrar mais uma vez a ajuda financeira que recebi do Institute of Latin America Studies da Columbia Uni- versity, da University of Illinois de Chicago, da American Phi- losophical Society, ¢ dos Estados Unidos na forma de uma bolsa da NDFL-Fulbright-Hays. Uma ajuda mais recente, in- cluindo um Senior Fellowship do National Endowment for the Humanities do ano académico de 1973-1974 ¢ uma bolsa de vero do American Council of Learned Societies em 1975, aju- dou-me a realizar novas pesquisas sobre as condigdes de vida trabalho dos escravos no Brasil. A bolsa de tradugdo que re~ cebi em 1978 do National Endowment for the Humanities também ajudou a aprofundar meu entendimento da escravi- dio brasileira e do trafico de escravos. Essa ajuda é também, reconhecida com gratidao. Finalmente, quero agradecer aqueles arnigos e colegas que dispensaram tempo para ler e comentar as primeiras ver- sides de partes deste livro, incluindo Michael Perman, Peter d‘A. Jones, Emilia Viotti da Costa, Joseph L. Love, ¢ 0 recen- temente falecido Gilbert Osofsky. E a Gil que este livro é afe- tuusamente dedicado. Robert Edgar Conrad ee | Escravidao na América Portuguesa: por que o trafico escravista durou trezentos anos A America devora os pretos: se a continua importagio os ndo recrutasse, em breve a raga desappareceria entre nds. C. A. Taunay, Manual do agricultor (Rio de Janeiro, 1839) ' 1 Dois fatores relacionados motivaram 0 comércio de es- cravos africanos para o Brasil e mantiveram essa motivagio por trés séculos: a oportunidade econémica combinada com um devastador sistema de administragio humana que nfo permitia 0 crescimento natural da populacdo escrava no Bra- sil. As oportunidades que seriam encontradas na produgio de agiicar, ouro, diamantes, algodio, café, tabaco ¢ outros pro- dutos para venda no exterior criaram uma constante demanda de escravos. Por outro lado, a grande facilidade eo baixo custo para a obtengdo de trabalhadores na Africa por meio de ata- ques, guerra, ou pela troca de produtos baratos como tabaco, rum, armas de fogo, pélvora, téxtels, e até mesmo conchas do mar, encorajaram um tragico descaso para com a saiidee con- forto dos escravos.' Isso combinado com os efeitos da doenga, (1) Report of the Lords of the Committee of Council Appointed for the Consideration of AY Matters Relating to Trade and Foreign Plantations (Lon- 16 ROBERT EDGARD CONRAD punigio, trabalho excessivo, desergfo, rebeliao, alforria, pe- quena proporgio de mulheres para homens, e pouca conside- racdo pelas vidas das criangas improdutivas, resultou num pe- rene déficit populacional que, praticamente desde o infcio da hist6ria brasileira, foi compensado pela importagdo de novos africanos, Escravos baratos e abundantes resultaram em des- perdicio ¢ descaso; e ambientes desgastantes, negligentes € duros trouxeram a morte e uma constante necessidade de no- vos africanos. Deve-se salientar, naturalmente, que o Brasil nao foi a Gnica colénia americana em que isso aconteceu. Idéntico consumo de vidas humanas ocorreu nas colénias es. panholas, holandesas, irancesas e inglesas do Caribe? Cir- cunstancias idénticas produziram resultados idénticos, prati camente sem relagao com as peculiaridades nacionais, tradi- ‘gbes legais, posturas raciais ou religides, Na verdade, em areas onde a escravidao era altamente desenvolvida e economica- mente importante, esses aspectos da civilizagio européia ten- diam a adaptar-se ao ambiente como camaledes, os coloni: dores ou cidadiios de cada area do Novo Mundo se igualavam. a0$ seus predecessores na experiéneia da colonizagao, colo cando de lado ou alterando tradigdes ou valores morais que atrapalhavam. Até alguns anos atrés, este aspecto fundamental da es- cravidao brasileira — a intermindvel necessidade de mais es- cravos para substituir os mortos — era freqiientemente subes- timado ou ignorado em favor da tese de uma escravidao brasi- leira relativamente benevolente. E dbvio, entretanto, que se os escravos fossem geralmente bem tratados ¢ os negros mais res: peitados ¢ melhor ajustados, como tém dito geragdes de co- nhecidos historiadores como Gilberto Freyre, Joao Ribeiro outros, se o casamento e a familia tivessem realmente sido en- des, 1789), parte Vi; Marion Johnson, “The Cowrle Currencies of West Aft 2", Journal of Aircan History, Vo. Xi 1870), pp. 17-48, 331-358 (2) Ver Phiip 0. Curtin, "Epidemiology and the Slave Trade”, Pofitical ‘Science Quarterly, Vol. 83 (junto de 1868), pp. 213-716; Sir Reginald Cou land, The British Ant: Slavery Movement (2% ed., Londres, 1968), pp. 27-34; Oriando Patterson, The Sociology of Slavery (Cranbury, Nova Jersey, 1965), pp. 98-112; Richard 8. Sheridan, “"Mortaly and Medical Trestment of Slaves in the British West indies”, in Stanley L. Engeeman e Eugene D. Genovesa, fds, Race and Slavery in the Wastern Hemisphere: Quantitative Studies (Prin: elon, Nova Jersey, 1975), op, 285-287, TUMBEIROS ” corajados, se a escravidao brasileira tivesse realmente resul- tado na “reabilitagao" dos escravos e em uma melhora de sua situacdo, dificilmente teria sido necessdria sua importaco macica e constante para o Brasil por mais de trés séculos.? Contudo, como concordaria agora a maioria dos especia- listas nessa area, o trifico era realmente necessArio caso 0 tipo de sistema escravista que existia fosse continuar por muito mais que uma geragdo, e este fato, bem como suas causas, foram compreendidos enquanto existia a escravidao, até mes- mo por visitantes casuais ao Brasil. O maior historiador no século XIX da escravidao brasileira, Perdigio Malheiro, for- neceu quatro razées para explicar por que a populacdo es crava brasileira nao se auto-reproduzia na mesma proporgio que a populagao livre: “1. porque, em geral, a importagio era de homens, ¢ mui poucas mulheres; 0 que se queria principalmente eram bragos para o trabalho, e no familias; 2. porque nfo se promoviam castimentos; 2 familia nao existia para os escravos; 3. porque pouco ou nada se cuidava dos filhos; 4. porque as enfermida: des, 0 mau trato, o servigo e trabalho excessivo inutilizavam, esgolavam, e matavam dentro em pouco grande némero.”” As estatisticas populacionais confirmam claramente a falta comparativa de mulheres entre a populagdo escrava bra- sileira, uma causa dbvia e importante da incapacidade da po- pulagdo para crescer ou permanecer estvel. Alguns exemplos tipicos ilustrarao um ponto jé bastante conhecido pelos histo- riadores do Brasil. Um censo de 1786 de uma grande regio mineira de Minas Gerais mostrava a existéncia, por exemplo, de 116 291 escravos do sexo masculino, mas apenas $7844 do {G1 Para esta visio tradicional bastante conhecida @ seus roflexoe nos Estados Unidos, ver especialmanto Gilberto Freyre, Case Grande e Soncala ormagi da fama brasileira seb 0 regime te economia patriarca (Nova lor ‘Quo, 1986); Jo80 Ribeiro, Mistéria do Brasi (22 ed., Rio de Janeiro, 1955), pp. 208-210; Frank Tannenbaum, Slave and Citzen. the Negra in the Amorcas (Nova torque, 1963), 2 Staniey M. Elkins, Slavery: A Problem in American Insotutional and intelectual Life (Chicago, 1858), Para uma assercso mais To. ‘conte sobre uma eseravido brasileira mats branda, vor Waldemar de Aimoica Barbosa, Negros e quilombes em Minas Gerais (Beta Horizonte, 1972), pp. 2128, (@) Percigho Mathoiro, A aseravidio, I, p. 6. 8 ROBERT EDGARD CONRAD sexo feminino.’ De maneira semelhante, em 1782, na cidade de Macapé, no extremo norte do Brasil, havia 432 escravos, 213 eseravas e apenas 102 criancas pequenas (essa pequena proporydo entre mulheres e criangas também era “normal” ¢, em 1840, calculava-se a existéncia de 137873 escravos na provincia do Rio de Janeiro ¢ de 86 139 escravas, enquanto a populace livre da provincia — 183720 — era praticamente equivalente na divistio por sexos.* Além disso, 0 excesso de homens sobre mulheres era ainda maior nas plantagens* que cidades, onde a demanda por mulheres era mais fre- giiente. Um observador britanico, comentando a despropor- Ho entre escravos dos dois sexos, registrou que em muitas plantagens do interior 0 néimero de mulheres era “regulado pelas simples necessidades domésticas do estabelecimento”, acrescentando que em algumas propriedades nao havia mu- Iheres, Tal era a “aversio dos proprietérios da terra pelo 6nus de maos que nao podem executar a maior quantidade de tra- balho...”” O viajante britinico, George Gardner, descobriu que em algumas plantagens do interior “a proporcao de fé- meas para machos freqilentemente 6 to baixa quanto a de um para dez”, e as mulheres eram “particularmente escassas no distrito diamantino”." Até mesmo nas cinco bem adminis- tradas plantagens de um proprietirio visto como invulgar- mente humano, os 925 escravos incluiam 461 homens, 293 mulheres, € apenas 171 criangas com menos de 12 anos.’ Um (5) Mauricio Goulert, Escraviddo africana no Bresil (des rigens & extin- ‘pfo} (9° ed, S40 Paulo, 1875), p. 144; A. J. B. Ruseell: Wood, “Technology {and Society: The Impact of Gold Mining on the institution of Slavery in Port _guese Ameria", in The Journal of Economie History 37 (1977), pp. 67-68. (*) Grande exstoraedo agricola com utiizarso de trabalho eseravo, eur ‘ida no continente americano 2 époea do mercantlismo. Alguns autores man ‘hm o voeébulo ingles plantation IN. da T). 16) Rolacdo da oscravatura do Macapé até o anno de 1782, Doc. 14, Lote 107, IHGB; Reletério do presidente de provincia do Rio de Janeiro pare 0 anno de 1840 1841 (2* od., Ntaréi, 1851) 17) Thomas Neison, Remarks on the Slavery and Slave Trade of the Brazils\Londres, 188), 38, {8} George Gardner, Travels the Interior of Brazil (Lont 16.6 (8) Reinhold Touscher, Algumas observaeses sobre @ estatstica sani tiria dos escravos om fazendas de café (Rio de Janioio, 1853), p. 7. Para uma ‘adueao inglosa dessa documento, vor Conrad, Childran of God's Bre, Doc. 28, 1846), pp. ‘TUMBEIROS 19 artigo sobre a escravidio brasileira, publicado em 1860 no jor- nal De Bow’s Review de Nova Orleans, resumiu 0 problema: “O casamento, pode-se presumir, dificilmente é uma institu’ Ao onde hi apenas uma mulher para cada trés homens”. Essa escasse de mulheres, que em algumas regiées do Brasil perdurou até o final da escravidao, era claramente o re- sultado da preponderancia masculina nas cargas dos navios ne- greiros, e foi causada sucessivamente por uma maior deman- da por homens nas plantagens."' Tipica, talvez, foi a carga do brigue Asseiceira que, quando detido em 1840 por trafico ile- gal de escravos, carregava 253 escravos ¢ apenas 79 escra- vas.” Listas de escravos tirados dos navios negreiros e eman- cipados no final da década de 30 mostram desproporgées si- milares. Cento e oifenta ¢ seis homens ¢ 39 mulheres foram retirados do navio chamado Brilkante; 130 homens ¢ 87 mu- Iheres da escuna Feliz; 157 homens e apenas 45 mulheres do brigue Carolina; ¢ 152 homens ¢ apenas 38 mulheres do bri gue Leal." Segundo um relato de 1843 sobre o Rio de Janeiro, cerca de trés quartos dos afrieanos entéo desembarcados ile- galmente na regiao era de homens, cerca de dois tercos tinha entre 10 ¢ 20 anos." Naturalmente os plantadores brasileiros Procuravam trabalhadores jovens e adaptiveis, no paridei- as, ¢ cabe o paréntese de que essa preferéncia por homens ‘no comércio de escravos provocava um efeito reverso na demo- grafia de exportadores de seres humanos como Angola — nes- Ses lugares, durante a era do trafico, 0 mimero de mulheres superava o de homens da mesma forma que o de homens su- perava o de mulheres no Brasil." (10) “Slavery in Brazil — The Past and Future”, in De Bow's Review 28, (18601, 480. (11) Ver Conrad, The Destruction, pp. 284, 296, 288; Mary Katherine Karasch, "Slave Life in Rio de Janeiro, 1808-1850", dissertacio de doutorado, University of Wisconsin, 1972, p. 108-110. (72) Lata2, Mago2, Asseiceira (Brigue), AHI. 113) Registro da provizdo a0 cuvidor da comarca do Rio de Janeito s0- bre os escravos emencipedos da escuna Emilia, 18-18-21, AN, (14) GrB-Bretanha, Papsis Parlamentares, Class A, Correspondence withthe British Commissioners... Releting to the Slave Trade (Londres, 1847), bp. 2 agora Class A, Class 8. © Class D.,.com datas). (8) John Thomton, "The Slave Trade in Eighteenth Century Angola Effects on Demographic Structure”, in Revue Canadienne des Etudes Africa ‘nes Conedien Journal af African Studies 14(3) (1980), pp. 417-427, » ROBERT EDGARD CONRAD Perdigdio Malheiro nao associou diretamente a preponde- rancie masculina nos navios negreitos & generalizada relutan- cia dos senhores de escravos brasileiros em promover casa mentos e familias estéveis entre seus escravos, mas os dois fatos estao claramente relacionados. Teoricamente, os senho- res eram obrigados a promover casamentos entre eseravos, mas as estatisticas ¢ observacdes contemporaneas sugerem ‘que muitos nao estavam dispostos a isso, nem mesmo a enco- rajar o erescimento de familias naturais."® A escassez de mu- theres era um obsticulo Sbvio para o casamento de muitos ho- mens, mas, apesar da abundancia de homens de sua propria raca € condigtio, a maioria das mulheres escravas jamais go- zou da protegdo e vantagens do matriménio legal ou religioso, Apesar de alguns escravos serem casados pela Igreja,"” em regra geral as relagbes sexuais entre homens e mulheres escra- vyos nao eram sancionadas pelo casamento, Alguns senhores iam a extremos em relagto a isso. Dos 104 escravos, a maioria de homens adultos, registrados pelo Conde de Subaé em 1872, por exemplo, nenhum era relacionado como casado."* Singularmente, 0 casamento talvez tenha sido, enquanto regra, ainda menos comum nas cidades que nas plantagens. Dos $831 escravos registrados no distrito da cidade de Ouro Preto em 1823, para citar um exemplo, somente 293 (cerca de 5,0%) eram casados ou viivos. Da mesma forma, em 1888, mais de 99% da populagao escrava do Municipio Neutro, uni dade politica que inclufa a cidade do Rio de Janeiro, jamais havia sido casada.” Entre 1835 e 1869 foram registrados ape- nas 264 casamentos de escravos na cidade do Rio, a0 passo 116) Pera mais informacdes sabre este tépico ver Robert Conrad, “Ni ‘oteanth-Cantury BrazilanSlavory”n Robert Brent Topi, Savery and Race Felations in Latin Americ (Westpor., Connecticut, 1974, pp. 162-165. 12) Perdigio Meineke, A escravdo, |, 9p. 55-57 18) Relagao do esoravos a anfmaisperioncantes ao Dr. Franco Mo: rea de Cervalhe, Conde de Subse, Doc. 29, Lata 851, IHGB. Pare uma i. ‘Gugao inglesa dose registro de escravos ver Doc. 2.12 in Conrad, Chien of God's Fre. (18) Mappa estatistico do termo da imperial Cidade do Ouro Preto, a8, Vl. 18 ANS Reno aprauinc a Asse Ca Leo ‘atta ra tercorasessio do vigesna legisatura pelo Mnisizo © Secretare {Estado dos Negocios da Agricutura, Commercio.e Obras Pubicas Rodrigo Au- ‘gusto da Siva (Rio de Jeneiro, 1888), p. 24. (Daqui por lant os thulos dos Frlstorios gaveramenta’s serao abreviados ao minimo necessrio pars ent HieaeB0.) TUMBELROS a que entre os homens fivres houve mais de 20000 casamentos ‘no mesmo perfodo.” Houve, por outro lado, lugares e perio- dos em que um niimero relativamente grande de escravos era casado. Segundo as estatisticas de 1798 e 1822, mais de 30% da populacio escrava da capitania ou provincia setentrional do Maranhio era casada, e, igualmente incomum era o nti- mero comparativamente elevade de escravos casados ou vitivos da provincia de Sao Paulo no iiltimo ano da escravidio — um total de 26% — embora nessa época no Maranhiio apenas cerea de quatro em cada cem escravos fossem easados ou viti- vos." Mais representativo do Brasil como um todo é um con- junto de estatisticas da provincia do Espirito Santo de 1856 mostrando que menos de 11% dos 12302 escravos da provin- cia eram casados ou vitivos. As estatisticas populacionais de todo o Brasil publicadas em 1888 revelam que, de um total de 723.419 escravos, 91 209, com 16 anos ou mais, eram casados 0u vitivos, aproximadamente um em cada oito.” Natural- mente, o mais significative € que sete de cada oito desses es- cravos adolescentes ou adultos jamais conheceram 0 casa- mento. Evidentemente, a béngdo da Igreja nao era essencial para a procriagio, ¢ obviamente muitas criangas nasceram de mu- Iheres escravas apesar das condigdes fisicas que freaiiente- mente causavam abortos ou natimortos. Contudo, mesmo nas- cendo viva, as chances de uma crianga escrava atingir a matu- ridade eram reduzidas por essas mesmas condigées adversas: trabalho feminino forgade nos campos, priticas médicas pré- cientificas, alimentagao, vestudrio ¢ habitagdo inadequados ‘ou impréprios, e falta de interesse pela satide e bem-estar das eriancas por parte dos senhores — resultado do baixo valor (20) Dr, José Maria Teixcira, “Causas da mortaldade das etiangas no io de Joneito”, in Annaes da Academia de Medicina (Rio de Janel, 1888), 286. 21) Vee Mappa dos habitantes que exiatem na capitanis do Meranho no ano de 1788, Caixa 761, Pc, 2, AN: Antonio Bematdino Peroira de Lago, Estatistica historica geografca da provincia de Maranh&e \Usboa, 1822), (22) Reletoro.. da provincia do Espirito Santo no dia 23 de raio de 1857, Espinto Santo, 1867, p. 10; Conrad, Os ultimos anos da escravatura, p. ‘388, Para estatisticas adicionals sobre o status marta, ver Herbert S. Klcin, “Ninoteenth Century Brazil’, in David W. Cohen e Jack P. Greene, eds., Nel ‘they Slave Nor Free: the Freedman of Airican Descent in the Stave Socities of ‘he Now Werld eltimore, 19721, 223. 2 ROBERT EDGARD CONRAD. econ’imico das criangas muito pequenas.” De acordo com um manual para colonos ¢ agricultores brasileiros publicado em 1839, a maioria dos escravos crioulos (aqueles nascidos no Brasil) morria na infaincia e o restante crescia “'com excessiva afetuosidade e indulgéncia no seio da familia", ou ‘com desu- manidade e negligéncia, definhando como plantas em solo de- serto”.™ Poucas chances de sobrevivéncia até a idade adulta ¢ in- capacidade para produzir lucto imediato para seus senhores freqitentemente significavam baixo valor de mercado, aban- dono, ¢ vida curta e miserivel para as criancas escravas nas- ccidas no Brasil. Conseqentemente, 0s escravos crioulos cons- tituiram uma parcela bem menor do total da populacio es- cerava do que poderia ter sido esperado apés séculos de escra- vidao. Entre aproximadamente 58 000 escravos contabilizados ‘em nove comareas da provincia de Pernambuco em 1838, por ‘exemplo, mais de 20000, ou cerca de 35%, eram africanos de nascimento,”* Mais revelador ainda € 0 fato de que em 1836 a provincia de Sao Paulo compreendia aproximadamente 38 000 africanos entre uma populagao escrava total de 87000, cerca de 44%. A parcela africana da populacdo escrava era ainda mais elevada na provincia do Rio de Janeiro nas diltimas dé- ‘cadas do comércio eseravo porque uma grande porcentagem de afticanos novos estava entrando nessa regido do pais para suprir as necessidades da crescente atividade cafeeira, A si- tuagio af é inferida pelo vizinho Municipio Neutro, onde em 1849 aproximadamente 60% da populacdo escravaera de afri anos: cerca de 66000 africanos entre uma populagio escrava (23) Para as causas de alta mortalidede infantil no Rio de Jansiro oe- ‘undo os membros 6a Academia Imperial de Medicina, ver Annaes de Medi- {ina Brasilenze, Rio de Janeiro, Vol. 22 (1846-1847), pp. 183-197, 217-220; Dr, Jost Pereira Rago, “Algumae considecaeSes sobre as causas da mortan sdadp des criangas do Rio do Janeiro", ibid, Vol. 3 (1847-184, pp. 35-38, 80-91, 11-114, (24) €.'A, Teunay, Manual do agricultor brasileiro (Rio de Janeiro, 1609), pp. 17-18, 125) Relovorio que 2 Assembla Legislative de Pemambuco apresontou ‘na sesso ordinara de 1829 0 Exmo, Presidente... Francisco do Rego Barros (Pemambuco, 1839). (25) Tabella n®& in Ensaio d'um quadro estatistico da provincia de S80 ‘Paulo ordenado pela: lois do 11 de abr! de 1836 2 10 de marco de 1837 (S80 Paul, 128). ‘TUMBEIROS 2 total de 111000.” Jé tarde, em 1872, uma geragio apés o tér- mino do trfico, cerca de 9% dos escravos no Brasil e 19% na provincia do Rio de Janeiro era de africanos.” Observadores das condicdes brasileiras salientaram com freqGincia as causas e efeitos desse sistema de renovacao par- cial mas constantes dos tabalhadores através do AtlAntico. © aumento natural de negros, escreveu um visitante estran- geiro por volta de 1820, “é desencorajado pela avaliagao de ue é mais barato importar escravos adultos do que criar os jovens. Assim, qualquer estimulo para suavizar sua condigio ou torné-la mais confortavel & substituido pelo abominavel trafico”.” “O Brasil”, declarou uma peticéo do Conselho Provincial da Bahia em 1839, “acostumado a empregar escra- vos hé quase trés séculos e a ser abastecido por eles, como uma provisio anual da Africa, deu pouca atencao ao encoraja- ‘mento de seu aumento progressivo pela reprodugao”.”” Com a grande preferéncia dos brasileiros pelo trabalho escravo, es- reveu outro estrangeiro por volta do mesmo periodo, “e seu irresponsavel descaso para com aquelas medidas que assegu- rariam um auto-abastecimetno interno, estamos preparados para entender por que tanto tréfico ultramarino de criaturas humanas continua a existir”.”" 2 Se os escravos africanos que chegavam ao Brasil tivessem tido um tempo de vida normal, obviamente a necessidade de rapida substituicao teria sido menor, assim como o volume do tréfico, Entretanto, um considerdvel corpo de evidéncias indica {271 Joaquim Norberto de Souzee Siva, Investigapbes sobre os recen- seamentos da populaedo era do imperlo ede coda provinea de per so tanta dos desde os tompas coloniaes ato hoje (2 00, Ris da veneio, 1951), B. 8. (28) ‘Conrad, Os tinossros dn escrevata, p28 (23) HM. Brackenridge, Voyage to South America Performed by Or- ter ofthe American Government inthe Year 1817 and 1818 (20s. Lends, "82, p19 ateos noon ond Annu Report ofthe Bish and Foregn Ant Sin Society (Londres, 1841), p. 113. a on Hae (31) Nelson, Remarks, p. 36. Pare idtias sobre a motvaglo do planta- dor sob esta “noglgincl impruderte”, ver Gorender, 0 escravismo colonial, bp. 518328, 4 ROBERT EDGARD CONRAD, que, apesar de extraordindrias excegdes, suas vidas eram anor- malimente curtas, ¢ € também notério que a mortalidade foi particularmente elevada durante 05 primeiros meses ap6s sua chegada ao Brasil, resultado das condigdes nos navios negrei- ros bem como de sua nova situac&o. De acordo com uma fonte do inicio do séeulo XVIII, a média dos africanos jovens dificilmente ultrapassava os doze anos, e um século depois uum observador calculou em 10% a mortalidade anual dos es- cravos nascidos na Africa, estimativa reiterada pelo moderno historiador brasileiro José Hondrio Rodrigues." Um relatério britanico sobre o tréfico escravista redigido em 1843 susten- tava que sob as melhores circunstincias a mortalidade média entre os africanos novos enviados ao interior do Brasil era ‘nao... inferior a 8% durante o primeiro ano, € a 6% durante © segundo...", € sob condigdes menos favoraveis a taxa de mortalidade era estimada em “mais do que o dobro daquela média”.™ Aproximadamente na mesma época, um médico francés com longa experiéncia pessoal no Brasil na area mé- dica afirmou que a opiniao pablica brasileira, baseada em nu- merosos fatos observados durante muitos anos, estabeleceu a mortalidade escrava em aproximadamente 10% a0 ano.* Ainda nos anos 60 0 senador Thomas Pompeu, competente gedgrafo, brasileiro, avaliou que a populagio livre do Brasil crescia numa taxa anual de 3%, mas populagio escrava no tinha crescimento algum, mesmo naquelas provincias do sul que haviam recebido muitos escravos da Africa. A razio, es- creveu ele, era que “quasi todos 0s africanos importados ero vardes, ¢ tem se calculado que 0 termo médio da vida de um escravo de roga € de 10 a 15 anos”. * As condigdes fisicas dos escravos na chegada ao Brasil, que serio discutidas no capitulo “O tréfico: volumes, méto- dos, mercados”, asseguravam por si sés uma grande perda de (32) Stein, Vassoures, 2.70. (33) Almoida Barbosa, Negros e Quiiombos, pp. 26-27; Francisco Nu nes de Souza, “Geographia historiea, physica @ politica”, in Guanabara, Ric do Janeiro, 1856, 9,69; Joss Henério Rodrigues, Aspiragéos necionais (S80 Pau- ‘io, 1963), p. 28 (38) Class A., 1843, p21. (G5) José Francisco Sigaud, Do cima @ enfermidede do Brasi (Paris, 1844}, p. 14. (G8) Ctado por Sours Sive, Investigagdes,p. 155. TUMBEIROS Fa idas durante as primeiras semanas € meses.” Nas palavras de um observador préximo, os escravos reeém-importados apés sua longa jornada eram “magros, sombras cambalean- tes... as feigdes contraidas, seus grandes olhos parecendo que iriam saltar das Grbitas a qualquer momento, e, pior que ‘tudo, suas barrigas franzidas, formando um perfeito buraco, como se elas tivessem se desenvolvido no sentido das cos- tas". Tais pessoas, definhando em resultado de uma penosa experiéneia que comecara meses antes na Africa, sofriam de intimeras doengas, algumas das quais transmitiam as popula- bes das cidades costeiras e do interior: variola, sarampo, fe- bres, disenteria, hepatite, anemia, oftalmia (infecgao dos olhos que frequentemente Jevava a cegueira) ¢ escorbuto, para citar algumas das mais comuns.” Além disso, sua situagio tornava-se ainda mais precdria pela exposigdo a novas doen- ¢as para as quais no haviam desenvolvido imunidade ade- quada, doensas tanto do Brasil quanto de outras regides da Africa transmitidas por seus pares escravos.” Muitos recém- chegados sucumbiam rapidamente, e mesmo aqueles que se recuperavam dos primeiros ataques & sua saiide e energias continuavam a encontrar condigdes nocivas & sua sobreviven- cia. Apés um periodo de convalescenga em um mercado es- cravo costeiro, os africanos recém-comprados por intermedia rios, plantadores, ou seus agentes, cram conduzidos aos esta- dos do interior onde comegavam uma vida de trabalho penoso e de privacio: Em muitas plantagens a higiene, alimentagao, habitagdo e assisténcia médica eram inadequadas, ¢ as puni- ‘goes e trabalho freqtientemente eram superiores a0 que po- diam suportar os escravos, tudo isso, juntamente com 0 uso excessivo de rum grosseiro, contribuindo para a redugo de suas vidas. Observador das condigdes dos escravos, abordando 0 t6- (97) José Rodrigues de Lima Duarte, Ensaio sobre a hygione da escro vatura no Biasi! Rio ce Janeiro, 1249), p. 14 (38) Nelson, Remarks, 0.51 (39) Annaes de Medicina Brasiiense, Rio de Jancko, navembro de 1850. p. 28; Lima Duarte, Ensaio, pp. 24-25; Nelson, Romarks, ap. 40-57; Lulz Antonio ‘de Oveira Mondes, Discurso acedemico ao programs: determninor ‘20m todos os seus symptomas as doencas agudas, @ chronicas, quo male fe |quentemente accometem os pretos recom trados do Africa \Lisboa, 1812), pp. 38-48; Taunay, Monual de agricutor, pp. 257-284, (40) Curtin, “Epidemiology”. pp. 194-200. % ROBERT EDGARD CONRAD pico do ponto de vista médico, o dr. José Rodrigues de Lima Duarte escreveu em 1849 que entre os escravos nao eram ob- servadas as regras de higiene mais simples, nao havendo qual- quer consideraco pelos locais em que eram construidas suas habitagdes, por seu vestuério, alimentaco, horas de trabalho, descanso, dormitarios, € outras questdes essenciais a satide, Condigdes higiénicas insatisfatérias, sustentou ele, haviam provocado um ‘“definhamento” da raga negra e “uma grande mortalidade”. A alimentaco diria dos escravos, escreveu ‘outro médico brasileiro interessado pelo assunto, dr. David Gomes Jardim, era composta de feij4o, milho e farinha de mandioca. “Uma refeigao ndo variada, como esta", pensava ele, “muitas vezes em quantidade insuficiente ¢ mal prepa- rada, deve influir de maneira notavel no desenvolvimento das moléstias que t8m por costume augredir esta classe de indi duo”. “Senhores ha”, escreveu Lima Duarte, “que fazem consistir 0 sustento dos seus escravos unicamente no feijao co- zido sem nenhusn outro condiment, ¢ isto mesmo uma vez 20 dia; outros o substituem por certas hervas, a que dio o nome de caruru, ou abdbora, ¢ se alguma vez por acaso lhes dio carne é de animaes mortos pela peste, ou ja corrompida pelo tempo". A alimentagio pobre, acreditava ele, era causa im- Portante “da anemia e oppilagdes communs entre os escravos, as hepatites, diartheas chrdnicas, e a grande porcao de affe- goes veriminosas, sobretudo na tenra idade”. Da mesma forma, um residente alemao da provincia do Rio de Janeiro afirmava uma geragio antes que alguns de seus vizinhos da- Yam a seus escravos “apenas uma escassa porgdo de farinha ou feijdo, e nunca carne animal; apesar disso, obrigavam-nos a trabalhar 14 horas por dia expondo-os as alteragdes do ca- lor, frio e chuva sem a minima consideragio por sua satide, conforto ou vida". Como resultado disso, “as mortes excedem 95 nascimentos em proporgiio tal que se no fosse o abasteci- mento constante... os negros do distrito logo se tornariam uma raga extinta’”.* (41) Lima Duarte, Ensaio, pp. 1-4. {42} David Gomes Jardim, Aguas consideragées sobre # hygiene dos ‘escraves (Rio de Janeiro, 1847), pp. 1-8. 43) Lima Duarte, Ensaio, p. 29. (4a) Rober Walsh, Notices of Brazil in 1828 and 1829 {2 vo's., Londres, 1830), 1. pp. 52. FUMBEIROS 7 Em 1839, C. A. Taunay, em seu Manual do agricultor, afirmou que nas plantagens em que eram cultivados géneros alimenticios geraimente a alimentacdo dos escravos era ade- quada, mas nas propriedades agueareiras do litoral, nos esta- belecimentos mineiros, scrrarias, olarias, e em locais simila res, os padroes legais deviam ser impostos. Isto acontecia, afirmou ele, nao porque os senhores fossem desumanos e ne- ‘gassem deliberadamente o que era essencial, “mas sim porque © desleixo, a incommodidade do desemboigo quotidiano, ¢ ou- tras razdes identicas, dao causa a escassez, ¢ irregularidade das distribuigdes, com immenso prejuigo dos senhores, que perdem, pela diminuig&io das forcas dos escravos e mortan- dade, o decuplo do que poupao com tao mal entendida parci- O vestuario nao era melhor. Aos escravos, dizem-nos via- jantes estrangeiros, era negado o direito ao uso de calgados ou ‘qualquer proteco para os pés porque pés descalcos simboli- zavam a condigao de escravo, fato que parece ser confirmado pelos desenhos e gravuras do periodo, que retratam também criados e earregadores de eadeirinhas bem vestidos porém sem ‘algados. Até mesmo aos escravos empregados como sapatei- 10s 0s calgados parecem ter sido negados, se é que a ilustracdo de uma sapataria feita por J. B. Debret scja alguma indica- cio. Obviamente, isto tornava os escravos vulneriveis ao bi- cho-de-pé, um inseto que penetra no pé de sua vitima po- dendo causar doenga grave, aleijamento ¢ até mesmo a morte se nio removido prontamente.”” Os eseravos andavam nao apenas descalgos como também insuficientemente vestidos ou quase nus, como mostram ilustragdes contemporaneas, pa- recendo confirmar a afirmacdo de um observador de que os escravos rurais recebiam apenas uma camisa e um par de caleas por ano, e freqiientemente andavam “rotos e quase nus”. Alojados em chogas sujas ¢ ventosas ou em barracos, (45) Taunay, Manual do agrieuitor, p. 8. (46) Ver Cari Schichthoret, O Rio de Janeiro como é, 1824-1826 Huma vez ¢nunca mais} Pio de Janeiro, 1943}, p. 132; Danial P. Kidder, Sketches of Residence and Travels n BrazH (2 vos, Fladefa, 184), i, p. 22; J. B. Debret, Voyage pttoresque et historique au Brési (3 vols, Pars, 1234-1659). (471 Teunay, Manual do agricuitor, p. 257; Olveira Mendes, Discurso académico, pp. 45-46. (48) Jardim, Algumas consideragbee, p10. PS ett late eee EEE EEE 2B ROBERT EDGARD CONRAD 0s escravos dormiam em esteiras ou peles sobre 0 chao des- coberto.” Igualmente nociva a vida era a rigorosa escala de traba- tho exigida dos escravos, freqtientemente sem consideragao Por seu sexo, idade, forga e satide, ou totalmente despropor- ional ao sustento que recebiam.® Os escravos trabalhavam 15 ou 16 horas por dia, escrevew o senador Cristiano Ottoni nos anos de 1880), sem alimentagao adequada e em estado de seminudez.* Em um ensaio manuscrito que talvez tenha che- zado as mos do préprio imperador D. Pedro II, um peticio- nario afirmaya que os escravos trabalhavam até 18 horas por dia, comiam muito mal — alimentagao deticiente e insalubre —, andavam quase nus, ¢ dormiam sem 0 conforto necessério para manté-los vivos.” Até mesmo C. A. Taunay, partidario da escravidao e da disciplina rigorosa nas plantagens, alertou os plantadores para que nfo deixassem sua ignorancia ¢ co- bica lev4-los a exigir tanto trabalho que seus escravos ficassem exaustos ou totalmente inutilizaveis. Nao ¢ preciso dizer que uma populagdo escrava to mal- tratada resistiu & eseravidio, e quase to evidente € 0 fato de que a resisténcia, reduzindo o ntimero de escravos disponiveis para o trabalho, representou impulso adicional para o trafico. suicidio, resposta comum dos africanos & sua miséria pes- soal, produzia evidente necessidade de substituigao, mas tal- vez ainda mais importante que 0 suicidio fosse a tendéncia dos escravos para a fuga, alguns eseapando ao fardo da escravidao or apenas alguns dias ou semanas, mas outros alcangando uma liberdade permanente ou semipermanente nos aldea- mentos de escravos fugicos que constitufram um aspecto da sociedade brasileira enquanto durou a escravidao. S20 abun- dantes as provas de que esses tipos de resistencia eram muito comuns. Em relagao aos negros fugidos, basta uma olhada nas paginas de praticamente qualquer jornal brasileiro do sé- culo XIX de qualquer regio do pais para se ter uma idéia de (49) (., pp. 14-15 {501 Lime Duarte, Ensio, pp. 415; Jardim, Aguas considractes, pe. 1-4 (51) The Ao News, Rio de Janeiro, 24 de juno de 1884, (82) Francisco Gomes Veioso de Albuquerque Line, Ensaio sobre a ‘emancipacdo do elemento servi, 148-7179, ANP. (53) Taunay, Manual do agrcultor,p. 7, PEE teehee ate tae SEES EES SE EE TT EB eR EEE EEE EERE TUMBEIROS. » ‘quantos escravos fugiam ¢ de quanto sua relutancia para coo- perar deve ter estimulado a importaco de mais escravos.* Em relagao aos quilombos, as melhores indicagdes de como ram numerosos e de quantos escravos af buscavam reftigio sero encontradas nos incontaveis relatorios oficiais que os descrevem detalhadamente, assim como sua localizacao, ot falam sobre expedigées armadas enviadas para aniquilar ou secapturar seus habitantes. Tais documentos cobrem pratica- mente todas as fases da escravidao brasileira, mas 0 mimero de escravos envolvidos parece ter sido especialmente elevado durante 0 perfodo colonial, principalmente no Nordeste brasi- Ieiro no século XVII e nas regides mineiras da capitania de Minas Gerais no século XVIII. Em relacdo ao Nordeste, basta mencionar 0 famoso Quilombe dos Palmares, localizado no que hoje é 0 estado de Alagoas, que abrigou dezenas de milha- res de fugitivos e seus descendentes no século XVII; no que diz, respeito a Minas Gerais, a combinacao de uma grande popu- Jago escrava, maus tratos, e condigdes de trabalho extraordi- nariamente ruins nas minas da capitania, aliada a uma paisa- gem montanhosa que propiciava os esconderijos, originow uma proliferagio de quilombos talvez sem paralelo em qual- ‘quer outra parte do Brasil. Formas mais violentas de resisténcia como insurreigdes repentinas, revoltas premeditadas, ou assaltos aos senhores de escravos ou outros membros da classe senhorial, também esti- mularam indiretamente o tréfico escravista africano, uma vez que para os escravos tais incidentes normalmente terminavam ‘em mortes, aprisionamento ou fuga precipitada para 0 abrigo em alguma floresta proxima ou montanha, e para os senhores inui¢o na disponibilidade de escravos, que precisavam ser repostos. Como assinalou José Hondrio Rodrigues, em contraposigao a “‘historiografia oficial”, tais atos violentos de resistencia no eram eventos esporadicos ou excepeionais in- terrompendo relacées. normalmente pacificas ¢ harmoniosas (54) Vor, por exemplo, Gilberto Freyre, 0 escrava nas antincios de jor nas brasviros do século XIX (Recite, 1963). Para tradueBes inglesas dos ti ‘208 andncios de eseravos fugitives ver Contad, Children of God's Fire, Docs. 34,94 (65) Décio Freitas, Palmares: A guerra dos escravos (Porto Alegre, 19731; José Alipio Goulart, Os fuga ao suicidio: aspectos da rebelda dos esera. vos do Bras, pp. 223 228, 239-247, x0 ROWERT EDGARD CONRAD entre senhores ¢ escravos, mas acontecimentos bastante eo- muns, que exigiam vigilfncia constante por parte da classe dos senhores e dos encarregados de manter a ordem.** A mul- tiplicidade de leis e decretos reais redigidos tanto em Portugal quanto no Brasil para controlar e punir escravos rebelados so Provas adicionais da natureza generalizada da resisténcia.” Nao nos cabe fornecer um relato detalhado das punicdes impostas aos escravos uma vez que esse tipico jé fei muito bem estudado em outras obras. Entretanto, & pertinente res- saltar aqui que os castigos extraordinariamente brutais infli- gidos aos escravos no Brasil desde o inicio até os tiltimos dias da escraviddo eram freqiientemente aplicados rido com a it tengdo de “melhorar” as pessoas castigadas, uma vez que em. muitos casos o resultado era a morte, o aleijamento ou redu- gio, da capacidade de trabalho. Certamente o propésito claro de tais punigdes era a coercAo sobre os outros escravos paraa obtengio de mais trabalho e maior disciplina, freqiientemente com 0 entendimento de que aqueles envolvidos diretamente poderiam ser eliminados no processo. Os escravos eram for- gados a testemunhar tais atos de punicfio, nos quais normal- mente cram infligidas de 200 a 300 chicotadas com um chicote de couro de miiltiplas correias. Apesar das punigoes terem sido especialmente brutais no periodo colonial, durante o s&- culo XIX tais castigos destrutivos também foram comuns, em. bora Cédigo Criminal limitasse as chicotadas 2 50 por dia independente do total a que hayvia sido condenado o indivi- duo. Tais chicotadas tiveram lugar nas prisées e Plantagens até os tiltimos dias da escrayidao brasileira. (5) Joo enti Rehigus “A ee nes ‘vo strigate a 9 8 rs exon dei vr Conrad, Chithn of Goes cal ws ar be eta cea ose Clare Moun, beds de oss ulonbes neonsee reais tits into 82 GoulySa ag ae Lue Liner ees faa con 2 gezrevido (Pio de Janeiro, 1968), Para um recanteestudo com aor es op Patton Rovian pe Cat Roo tng ete Now Wnt So oes 0 pal egg ata. tema des punibes, vor especialmente Jasé Alipio Goulart, neal so pac \atoas de ects ho Boh fee See aboligso", in Histé- pos ‘TUMBEIROS Nas circunstancias delineadas acima, nao é dificil com- preender 0 prolongamento do trifico por trés séculos, e sua sobrevivéncia durante a primeira metade do século XIX, ape- sar de parcial ou totalmente ilegal durante boa parte desse periodo. Condigdes de vida desumanas mataram muitos es- cravos e os forcaram a fugir ou Tutar. Evasdo e luta, que tam- bém resultaram na perda de inumerdveis escravos, fizeram ‘com que os senhores impusessem castigos brutais a escravos selecionados, freqiientemente para servirem de exemplo, as vezes como forma de vinganea, e outras vezes certamente para assegurar a sobrevivéneia de um pequeno grupo de brancos rodeados por dezenas ou mesmo centenas de vitimas hostis. Tal sociedade, baseada como era na injustica, opressio e for- 8 fisica, e 0 direito do senhor de fazer virtualmente tudo 0 que quisesse com seus escravos, cram perigosos nio apenas para os escravos mas também para os senhores, e portanto a brutalidade era parte inerente dessa sociedade como um todo. Resta assinalar que um rapido declinio da populagao es- crava do Brasil aps a supresso do trfico em meados do sécu- Io XIX foi o resultado de condigées similares. O tratamen- to methorou nitidamente quando ndo mais havia disponibili dade de novos afrieanos para substituir os que morriam e com © aumento dos precos dos escravos. Todavia, nas décadas se- ‘guintes a populacdo escrava declinou firmemente de 2500000 ‘em 1850 para 1715000 em 1864, 1510806 em 1872, e apenas 723419 em 1887, as vésperas da abolicao." O historiador americano Herbert S. Klein recentemente contestou essa teo- ria do declinio da populagdo escrava apés 1850 wtilizando 20 méximo materiais estatisticos fragmentarios ¢ ignorando a grande massa de evidéncias escritas contempordneas. De acor- do com ele, “as crescentes zonas cafeciras do centro-oeste esti- veram aptas a suprir suas proprias necessidades de escravos com o crescimento populacional natural ¢ redistribuicZo local, e dessa forma teriam dependido apenas moderadamente do tréfico interno maritimo ou interprovincial de longa distancia (59) Calo Prado Junior, Histdria econdmica do Brasil (8* ed, Sbo Pau: lo, 1963), p. £31; Conrad, Os titimos anos da ascravature, pp, 244-346. 2 ROBERT EDGARD CONRAD. para satisfazer suas necessidades". O declinio da populagio escrava em outras regides do Brasil, presumiu ele, “deveu-se a elevadas taxas de manumissio local e 4 mudanga progressiva para formas mais econOmicas de trabatho livre barato e com- petitivo”.® Entretanto, segundo outro historiador americano, Robert Slenes, cujo estudo da populacao escrava do Brasil entre 1850 ¢ 1888 € muito mais completo que o trabalho de Klein sobre o Brasil, as taxas de fertilidade entre os eseravos foram “moderadamente clevadas” durante aquele periodo, mas “nossas conclusdes sobre a mortalidade confirmam a vi siio tradicional; as taxas de mortalidade dos eseravos brasi- leiros eram realmente muito clevadas”. A populagio escrava brasileira, segundo 0 mesmo autor, declinou apés 1850, “mes mo que se ignore os efeitos da manumissio e fuga”. As taxas relativamente elevadas de fertilidade “nao eram alias 0 bas- tante para compensar a predominancia de uma situagao de mortalidade extrema”."" ‘Testemunhas contemporineas estavam a par dessa alta mortalidade continua. De fato, com o fim do trafico africano, foi amplamente aceito que a eseraviddo em si estava fadada & (ingdo porque as mortes excederiam os nascimentos. Em 1867, um proeminente politico do Império, © Visconde de Taunay, resumiu a situagio mostrando que proprio tréfico interprovincial, que havia sucedido irafico internacional (veja 0 capitulo “O trafico interno de escravos”), era uma das causas do declinio da populagio escrava. Calculando essa po- pulagio em um minimo de 2200000 em 1851, ele escreveu:® Mas a partir dat muitas causas de destruigo surgiram para dizim-los. Muitos morreram de doengas adquitidas nos po- Ties dos navios, onde eram amontoados sem discernimento ou cuidado. A célera matava-os as centenas em aigumas provin- ccias, aos milhares naquelas do norte; e a transferéncia dos es- (60) Herbert $. Klein, “The Internal Slave Trade in 19th-Century Bre- i", in The Middle Passage: Comparative Studies in the Adantic Slave Trade (Princeton, 1978), pp. 95:86. (G1) Robart Sienes, “The Demography and Economies of Brazion Sla- very: 1850-1888", cissertsed0 de doutorado, Stanford University, 1376, pp. 237-265, (62) “Aboligio da escravidto no Brasil”, Diario Official, Rio de Jar 20de outubro de 1857. | ‘TUMBEIROS 3 crayos... do norte para o sul... também provocou a morte de ‘muitos... pela divisio ¢ subdivisdo de familias, mudanga de clima ¢ alimentaclo, as vezes pela falta de comida durante a Viagem, e doengas contagiosas como a variola, que assolavam 0s navios costeitos abarrotados de pessoas. Alguns plantadores avaliam as perdas em 25%. No mesmo ano (1867), Richard F. Burton, explorador britanico e cénsul no porto de Santos, previu que, devido ao fato de a taxa de mortalidade entre os escravos no Brasil exce- der grandemente a taxa de natalidade e porque a importagio de escravos da Africa estava definitivamente acabada, em 1887 — dentro de vinte anos — 0 processo de “‘extingao natu- ral” da escravidio estaria praticamente completo em todo 0 pais.® Este prognéstico foi notavelmente preciso em relacio 20 tempo, ¢ baseou-se em uma andlise correta da situagl0, A eseravidio morria lentamente no Brasil porque as escravos es- tavam morrendo, e porque 0 trafico internacional, principal fonte de escravos, havia sido suprimido. Na verdade, o fim desse tritfico foi uma das principais causas da aboligdo da es- cravidao apenas trinta e oito anos depois, uma vez que, como 4 vimos, o sistema escravista nao poderia existir muito tempo sem ele, (63) “The Extinction of Slavery in Braz from s Practical Point of View, The Anthropological Review, Londres, Vo. 1(1868), p56 O trafico: volumes, métodos, mercados ‘Sem negros niio hi Pernambuco, e sem:An- gola ndo hd negros. Padre Antonio Vieira, numa carta escrita em 1648, 1 © mimero exato de escravos introduzidos no Brasil du- rante um perfodo de mais de trés séculos jamais seré conhe- cido, mas certamente o tréfico foi grande € constante durante todo esse tempo. Se nao por outra razdo, algumas estimativas sero ‘iteis para indicar a importéncia deste trafico na histéria da humanidade e para dar uma idéia, em termos estatisticos, do tanto de sofrimento que causou. Um grande historiador brasileiro, Afonso d'Escragnolle Taunay, fixou em 3 600000 0 nimero provavel de escravos im portados: 100000 teriam entrado no Brasil no século XVI, 600.000 no século XVII, 1000 000 no século XVIII, € 1 600000 nos anos entre 1800 ¢ 1852.’ Através de complexas estimativas de produgio, reprodugio e expectativa de vida, 0 economista brasileiro Roberto Simonsen fixou a importacao méxima pos- (1) Afonso d’Escragnolle Taunay, Subsialos para a historia do tréfico africano no Brasil (S80 Paulo, 1941), p. 306. TUMBEIROS 35 sivel de escravos em 3300000.? Da mesma forma, Philip D. Curtin sugeriu que um total de 3646 800 escravos entraram no Brasil entre os séculos XVI e XIX, e um recente estudo con- junto sobre hist6ria brasileira conduzido por Sérgio Buarque de Holanda fixou 0 némero maximo de africanos importados ‘em 3580000. Outros historiadores, contudo, caleularam um total mui- to mais elevado, ¢ suas posigdes devem ser levadas em consi- deragao. O respeitado historiador econdmico brasileiro Caio Prado Jinior, por exemplo, esereveu que mesmo antes da ma- ciga importagdo do século XIX pelo menos cinco ou seis mi- Ihdes de eseravos haviam entrado no Brasil.‘ Renato Men- donca, baseando suas estimativas nas estatisticas alfandeg’- rias, calculou uma importacdo total de 4830000 somente no ano de 1830, mas sugeriu que um adicional de 2000000 deve ter entrado ilegalmente ap6s essa data, num total de 6 830.000. Afonso Bandeira de Melo estimou 0 trafico em 2716 159 so- mente no periodo de 93 anos entre 1759 ¢ 1852, eéleulo que pode estar muito proximo da verdade, e 0 veterano historiador Pedro Calmén fixou 0 total de 8000000 para todo o periodo do trifieo.* ‘Conquanto as titimas estimativas sejam geralmente mui- 10 elevadas, estatisticas de arquivo e testemunhos de contem- pordineos sugerem que 0s cdlculos de Taunay, Simonsen, Cur- tin e Buarque de Holanda séo provavelmente muito baixos. De fato, o verdadeiro mimero deve situar-se em algum ponto entre as estimativas mais elevadas € mais baixas. Contudo, deve-se levantar outra questo. Se vamos compreender em ter- ‘mos estatisticos 0 verdadeiro significado deste trafico, deve- (2) Roberto C, Simonsen, Historia econdmies do Brasil: 1600-1820 \S#0 Paulo, 1957), |, 201-206. {8 Philip D. Curtin, The Adantic Save Trade: A Coneus (Madison, Wie consin, 1969), pp. 47-49; Sérgio Buarque de Holanda, Histéria Geral da Cv 2a¢do Brasileira. A époce colonial. O Bras monarquico, O Brasil republicano {Sie Paulo, 1963-19761, Vol. 1, Tomo 2, p. 191 (4) Caio Prado Janior, Formaeao do Brasil Contemporineo: colénia (7? ed., $40 Paulo, 1963), p. 101 (5) Renato Mendonea, 4 infuéncia africana no porugués do Brssi {82 ed., Rio de Janeiro, 1973), pp. 32-34; Alfredo Gomes, “Achages pate his- {oti do taco africana no Bras: aspectos numéricos”, 1V Congreso de His- {ria Nacional (Rio de Janeiro, 1960), V, pp. 29:30; Affonso da Toledo Ban- eira de Melo, O wabaiho servo Brasil Rio de Janoiro, 1936), p. 54, % ROBERT EDGARD CONRAD mos entender que 0 mimero total de africanos envolvidos — incluindo aqueles que morreram em viagem — foi certamente muito maior do que os mimeros propostos pelos iltimos histo- riadores. Uma breve revisao século por século de algumas pro- vas estatisticas adicionais e algumas informagies e considera- ies sobre o mimero de escravos que devem ter morrido na jornada ou logo depois de sua chegada ao Brasil podem forne- cer um melhor entendimento do verdadeiro nimero de envol- vidos e dos efeitos desse tréfico sobre suas vitimas. Baseando-se principalmente no trabalho de Frédéric Mauro, Philip D. Curtin estimou a importagao total de afti- ‘anos para o Brasil no século XVI em 50000: 10000 nos anos de 1551 a 1575 e outros 40000 no restante do século J4 na primeira metade desse século, contudo, perfodo em que os trabalhadores indios realizaram a maior parte do trabalho em plantagens brasileiras recém-estabelecidas, a demanda por es- ctavos no Brasil era supostamente to elevada que os portu- gueses ndlo conseguiam atender suas necessidades somente com © Congo, voltando-se igualmente para Angola, onde rapida- mente se desenvolveu um amplo trifico escravista depois de 1520.’ Em 1576, segundo um observador contempordneo, os traficantes de todas as partes de Angola compraram 14000 escravos, dos quais devem ter morrido 4000. Poucos anos de- pois, o autor de um relatorio dirigido ao rei Felipe Il da Espa- nha “‘confessou” que entre os anos de 1575 e 1591, 52053 negros haviam sido embarcados para o Brasil somente de An- gola, uma média de mais de 3000 por:ano.* No methor dos casos esta é uma prova fragmentéria, mas parece negar a baixa estimativa de Curtin e a estimativa ainda mais baixa de 30000 proposta por Sérgio Buarque de Holanda como 0 ma- ximum parao século XVI.” Uma cifra mais razoavel, de fato, parece ser a de 100000 fornecida por Taunay. Conquanto grande ov pequeno fosse esse tréfico inicial —e independente do niimero que morreu em viagem — seus {8} Curtin, The Atlantic Stave Trado, pp. 116-116. (7) David Birmingham, Trade and Conflict in Angola: the Mbunda and Their Noighbors under the Influance of the Portugues, 1843-1890 (Oxtord, 1966), pp. 26, 32 (8) /bid.,p. 50; Evaristo de Moraes, “A historia da abotigio", in O Ob- -sorvador Econémico@ Financeiro (Rio de Janeiro, 1998), IN, pp. 74-76. (9) Buarque de Holanda, Historia Goral, Vol. 1, Tome 2, p. 19% SUELO Tee eg gee ee eg eg eed ee TUMBEIROS: a efeitos logo se tornaram aparentes no Brasil. Ja em 1585 havia presumivelmente cerca de 10000 escravos africanos nas plan- tagens de Pernambuco ¢ outros 3000 nas plantagens da Ba- hia, e em 1610 escravos negros ocupavam as ruas e pracas da cidade de Salvador nos domingos e dias de festas.” Em 1618 © autor do conhecido Didlogo das grandezas do Brasil refe- ria-se a colénia como uma “nova Guiné", termo utilizado novamente um século depois para descrever a Bahia.” Sérgio Buarque de Holanda fixou 0 total do tréfico do século XVII entre 500 000 550000, e Philip Curtin, adotando as suposi¢des de Frédéric Mauro ¢ Mauricio Goulart, fixou-0 ‘em 560 000: cerca de 4000 tendo entrado anualmente na pri meira metade do século, 7000 a cada ano no terceiro quartel e ‘um niimero pouco menor nos tiltimos 25 anos do século.”” Contudo, segundo Anténio de Oliveira Cadornega, historia- dor do século XVII e residente em Angola, nos cem anos entre 1580 e 1680 somente Angola exportou entre oito e dez. mil es- crayos por ano, estimativa que o moderno historiador portu- gués Edmundo Correia Lopes considerou nao ser muito ele- vada." Alguns desses africanos provavelmente eram destina- dos a Portugal e outras colénias do Novo Mundo que nao o Brasil, € muitos certamente morreram no mar. Entretanto, esta estimativa restringia-se unicamente a colénia de Angol onde, na época em que escreveu, Cadornega residia havia 40 anos." De fato, segundo uma estimativa moderna baseada em taxas cobradas sobre os escravos embarcados de Angola, jé na década de 1620 cerea de 13000 escravos podem ter estado en- volvidos no tréfico angolano anualmente cifra mais ou menos confirmada pelos holandeses quando capturaram Luanda em 1641." No periodo de um século, naturalmente, isso equiva- (10) Taunay, Subsictos, p. SEB (11) Reymond S. Sayers, The Negro in Braziion Literature (Nova lor- ‘que, 1966), pp. 35:37; Amedée Francois Fréxier, 4 Voyage fo the South Sea (Londres, 17171, p. 30% (12) Buarque de Holanda, Historia Geral, Vol. 1, Tome 2, p. 191; Cur- ‘in, The Aitantie Stave Trade, pp. 117-119, (13) Edmundo Corre Lopes, escravido: subsiaios para a sua his- teria (Lisboa, 1944), p. 87 (14) CR, Boxer, Four Centuries of Portuguese Expansion, 1416-1826: A Suecinet Survey (Berkeley, 1969), pp. 31-22. (18) Birmingham, Trade and Confit, 9.80. 38 ROBERT EDGARD CONRAD leria a nfo menos de 1300000 escravos deixando somente a col6nia de Angola, cifra mais proxima daquela que os histo- riadores associam a todo o tréfico brasileiro apés 1700. O grande volume do tréfico para a Bahia foi na verdade sugerido pelo padre AntOnio Vieira quando em um sermio referiu-se & descarga em um tinico dia de “quinhentos, seiscentos ou tal- vez mil escravos” de um navio de Angola, ou ao falar de “uma transmigracao imensa de gentes ¢ nagdes etiopes que da Afri- ca continuamente esto passando para esta América”! Con- siderando 0 grande volume de exportagdes de escravos, so- mente de Angola, 0 volume de todo 0 trifico do século XVII para o Brasil certamente deve ter alcangado os 2000000. Com relagdo ac século XVIII, 0s historiadores concor- dam que o tréfico escravista para o Brasil foi ainda maior que nos periodos precedenites, mas mais uma vez o volume foi pro- vavelmente subestimado, Talvez 0s céleulos mais aceitos para o tréfico do século XVIII sejam aqueles de Mauricio Goulart, citados por Curtin, As estimativas Goulart-Curtin colocam as importagdes de escravos para 0 Brasil no século XVIII em 1.685 200, 550.600 destes tendo vindo da Costa da Mina (no Golfo da Guiné) e 1134600 de Angola.” Em relacio a Angola © mimero pode estar aproximadamente correto. Joseph C. Miller ealeulou que durante o periodo de 40 anos entre 1761 1800 cerca de 584200 escravos foram embarcados de Ben- guela e Luanda, os dois maiores portos angolanos, numa mé- dia anual de 14605 eseravos.* Embora caracterizando 0 ir4- fico desse século como um todo, sugeriria que talvez. 1 460000 escravos foram embareados somente nesses portos durante os cem anos anteriores a 1801, 0 que nao parece improvavel con- siderando o grande surto mineiro da primeira metade do sé- culo, Assim, considerando uma taxa de mortalidade de apro- ximadamente 10% na viagem atlantica, cerca de 1314000 es- (181 Antonio Sergio ¢ Heméni Cidade, Pacre Anténio Viera (12 vols, Lisbos, 1951-1954), XI, pp. 47, 48. (17) Curtin, Tho Atantic Slave Trade, p. 207. (18) Joseph C. Miler, "Legal Portuguese Saving from Angola: Some Praliminary indications of Volume and Direction, 1760-1830" Revue Francaise A histore d'outre-mar 62, n?s 226-227 (1975), pp. 160-163. Ver também Hor bert’. Kisin, “The Portuguese Slave Trado from Angola in tho Eightoorth Century", Journal of Ezonomie History 321972), 87, para estatisicas sii TUMBEIROS 3° cravos devem ter chegado ao Brasil provenientes de Angola durante o século, cifra nao muito mais elevada que a de Gou- lart. Um valioso documento da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro tende a confirmar ou talvez aumentar ligeiramente as ‘estimativas de Goulart-Curtin para Angola. Segundo este do- cumento, durante o periodo de 38 anos entre 1762 ¢ 1799, 232572 escravos foram exportados para o Brasil unicamente do porto angolaito de Benguela em um total de 561 navios, uuma média anual de 6 120 escravos."* E possivel, contudo, que a estimativa de 550600 escravos provenientes da Costa da Mina para o Brasil no século XVIII levantada por Goulart-Curtin seja subestimada. Outros docu- mentos da Biblioteca Nacional revelam que somente na dé- cada de 1785 a 1795 niio mends que 271 992 escravos entraram apenas no porto da Bahia, 191051 destes vindos diretamente da Costa da Mina ¢ outros 80941 procedentes das ilhas vi thas de Principe e Sio Tomé.” E possivel, naturalmente, que 0 trafico escravista fosse invulgarmente elevado durante esses dez. anos ¢ que essas cifras nao sejam representativas do século como um todo. Entretanto, os 191051 escravos registrados ‘como tendo chegado 4 Bahia procedentes da Costa da Mina durante aquele breve periodo representam praticamente a me- tade da estimativa de Goulart-Curtin para a Costa da Mina durante todo o século. Se, por outro tado, essas cifras foram reaimente tipicas do século XVIII, 0 nfimero de escravos que chegou somente ao porto da Bahia pode ter montado em apro- ximadamente 2700000 mais do que os 1900000 destes que vieram diretamente da Costa da Mina! Obviamente, as es! mativas para o século XVIII terao de ser aumentadas em mui- to se estes documentos forem auténticos, mesmo se levarmos em conta grandes flutuagdes e anos com pequeno volume. Além disso, durante a segunda metade desse século as regides setentrionais do Maranhao e do Para encontravam-se em um novo estigio de desenvolvimento, ¢ também se torna~ ram beneficidrias de grande mimero de negros. De 1756 a 1778, a Companhia Geral do Grao-Paré e Maranhao, compa- nhia comercial patrocinada pelo governo, embarcou 28177 es (19) Mappa dos escravos exportados desta capitania de Benguea para ‘Brasil desde o anno do 1762 até 1789, Doc. 31, 30, 96, BNSM, 120) Doc. 7,3, 15,n°s2e3, BNSM. © ROBERT EDGARD CONRAD cravos para essa regio, e, da mesma forma, entre 1761 e 1785 outra companhia comercial, a Companhia de Pernambuco Paraiba, embarcou 49344 escravos, provavelmente para a onal capitania agucareira de Pernambuco e reas vizi- nhas.?' Isso representava um total de 77521 escravos embar- cados para partes bastante limitadas do pafs durante periodos de tempo bastante limitados. Em 1789 uma fonte oficial britdnica caleulou a provavel exportacio anual de todas as colénias portuguesas na Africa entre 18 ¢ 20 mil escravos. [sso inclufa 8000 destinados a0 Rio de Janeiro e as minas interioranas de Minas Gerais, S a 6 mil destinados Bahia, 5000 a Pernambuco € 1500 a0 Pard Maranhio.® Se durante a primeira parte do século XVIII o volume fosse to elevado quanto os ingleses afirmavam ser perto do final, 0 que certamente é possivel considerando a corrida do ouro, 0 total nesse século estaria entre 1800000 2.000000 de escravos. Essas cifras so um pouco mais eleva- das do gue a de 1685200 calculada por Goulart e aceita por Curtin, Apesar das estatisticas acima sobre as exportagies de eseravos da Costa da Mina, a cifta de 2000000 pode ser ra- zoavelmente aceita como 0 total que chegou ao Brasil no sé- culo XVI. Curtin estimou uma importagdo total de 1351 600 escra- vos para o Brasil no século XIX, e Taunay estabeleceu a cifra desse século em 1600000. Uma vez que 0 trifico parou vir- ‘tualmente em 1851, uma média dessas duas cifras (1475 800) resultaria em uma importacio média anual de aproxima: mente 29.000 eseravos, eifra que excede em muito os calculos da maioria dos autores para os séculos anteriores. De fato, a maior migracao forgada de africanos para o Brasil (ou para qualquer outra parte do mundo} ocorreu durante os tltimos cingtienta anos do trafico. Em seu meticuloso estudo sobre a [211 Antonio Carrara, As companhias pombalinas de navegacti, co- ‘mércio @ watico de escravos entre a costa afncana e 0 nordeste brasfere (PO'- 0, 1969), pp. 89-91, 0.268. 122) Report af the Lords, p.8. (23) A cifta de 1 600000 apresentaca por Taunay pode ser a mis ace tavel. De qualquer maneira, Robert W. Slenes recentements escreveu que ‘mais de 1,6 milho do africans entrou no Brasil entre 1801 e 1860". Vor “Comments on Slavery ina Nonexport Economy”, in Hispanic American His: ‘oroal Review 63 (1983), p.575, ‘TUMBEIROS a vida dos escravos no Rio de Janeiro, Mary Karasch estimou ue mais de um mithao de eseravos entraram no Brasil nas cercanias do Rio de Janeiro somente nesse perfodo,* ¢ du- ante esses mesmos anos muitas centenas de milhares mais foram desembarcados, legal ilegalmente, nos portos maiores e menores ao longo de quase toda a costa do Brasil, do Paré ao Grande do Sul. Algumas estatisticas publicadas ¢ de arquivo sobre os vé- rios perfodos e reaides do pais ajudardo a ilustrar o volume ¢ direcio do trafico do século XIX. No periodo de dez anos entre 1800 ¢ 1809, segundo estatisticas alfandegérias estudadas por Herbert S. Klein, 98838 escravos chegaram ao porto do Rio de Janeiro procedentes da Africa, uma média de aproximada- mente 10000 por ano. A medida que o Brasil caminhava para a independéncia o volume desse trifico para o Rio au- mentou nitidatnente. Nos primeiros cinco meses de 1823, por exemplo, 0 jornal oficial do governo brasileiro, O Diario do Governo, noticiou rotineiramente a chegada de 26 navios ne- greiros ao porto do Rio com um total de 11397 escravos, tendo 1089 morrido na viagem.”” Se durante os outros sete meses de 1823 0 trafico foi t20 grande quanto nos cinco pri- meiros, o niimero total de escravos que deixaram a Africa des- tinados somente a0 porto do Rio de Janeiro foi de mais de 27000. De fato, tal cifra nao teria sido anormal para esse pe- riodo. Para os anos de 1821 e 1822, observadores diplomaticos britinicos estimaram o niimero de escravos que entrou no Bra- sil pelo Rio de Janeiro em 24363 e 31240 respectivamente.* Além disso, 8 medida que se aproximava a data para a abo- li¢io do trafico, no final da década de 1820 0 niimero de escravos que entrou no pais pelo Rio cresceu enormemente. Novamente segundo observadores britanicos, nos trés anos ¢ meio entre julho de 1827 até o final de 1830, ano em que 0 trifico foi proscrito, 150000 eseravos entraram no Brasil so- 24) Karasch, “Stave Life”, p. 106, 125) Ver capituos seguintes [26) Herbert S, Klein, “The Trade in African Slaves to Rio de Janelro, 1795-1811: Estimates of Morality and Patterns of Voyages”, In Journal of Afr: ‘can History 10 (1969), pp. 533-548. (27) 0 Diario do Governa, nimeros de janeieo a malo de 1823, (28) BFSP (1822-1825), X, po. 220, 444. 2 ROBERT EDGARD CONRAD. mente por esse porto, uma média anual de 43000 escravos.”” O Rio, naturalmente, nao foi o nico ponto pelo qual os es- cravos entraram no Brasil nas décadas finais do trafico legal. Durante esse mesmo periodo muitos milhares mais chegaram ao Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Parana, Sao Paulo, Espirito Santo, Bahia, Pernambuco, Maranhao, Paré e em todas as outras provincias setentrionais. No periodo de nove anos entre 1812 e 1820, por exemplo, foi registrada a entrada de 36 356 escravos no porto setentrional de Sio Luis do Mara- nhao, uma média anual de mais de 4000, que nao incluia os milhares mais enviados por terra, da Bahia para a cidade inte- rirana de Caxias.” Como serd visto nos capftulos seguintes, depois que o tra fico foi abolido em 1830, grandes quantidades de escravos continuaram a ser desembarcados ilegalmente no Rio de Ja neiro, freqiientemente sem grandes esforgos no sentido de en- cobrir 0 que estava acontecendo, Além disso, muitos milhares mais eam trazidos para terra firme em dezenas de pequenos portos, ancoradouros, enseadas, e mesmo em praias abertas, particularmente nas provincias de $20 Paulo, Bahia e Rio de Janeiro, onde havia a maior demanda por escravos. Estatist ‘cas oficiais britinicas fixam o mimero total de escravos impor. tados ilegalmente para o Brasil entre 1831 e 1852 em 486526, cifra que o historiador briténico Lestic Bethell considera muito baixa devido A dbvia impossibilidade de coletar informagdes completas sobre o contrabando de escravos ¢ a falta de quais- quer estatisticas de varias regides do Brasil em determinados anos. O mesmo autor acredita que pelo menos 500000 escra- vos entraram no Brasil durante os anos da ilegalidade. Con- tudo, mesmo esse miimero parece algo subestimado. Segundo asestimativas britinicas finais, o trafic extinguiu-se por sete anos depois que se tornow ilegal, niio sendo reavivado nova- mente em larga escala até 1837. Entretanto, abundantes in- formagées no capitulo 4 do livro do autor acima mencionado revelam que 0 trafico foi rapidamente reavivado apés a aboli- clo legal ¢ j4 era amplo novamente no inicio da déeada de (29) bia, (1890-1891), XVI, p. 565; ibid, (1881-1832), XIX, 66. (30) César Augusto Marques, Diccionario hist6rico-geographico da pro- vineia do Maranhao (MarertiS0, 1870), p. 200; Dunshee de Abranches, O Cap ivoire (memérlas) (Rio da Janeiro, 1941), p. 37. TUMBELROS 4 1830, certamente muito mais amplo do que a estimativa ofi- cial britanica de 2981 escravos nos anos de 1831 a 1835. Be- thell também apresenta provas irrefutiveis de que o tréfico jé era substancial nos anos imediatamente posteriores & aboligdo legal, € conclui “que as estatisticas oficiais briténicas subesti- maram consideravelmente o trafico durante os anos de 1831-6, € especialmente 1835-6”.21 Como ser4 visto, os relatérios mi- nisteriais dos governos liberais que estiveram no poder du- rante esses anos lamentaram de maneira contundente o cresci- mento do trafico ilegal, e observadores britanicos e membros liberais da Assembléia Geral brasileira confirmaram esta im- pressio. Como ja dissemos, 0 mimero exato de escravos impor- tados para o Brasil em um periodo de mais de trezentos anos jamais seré conhecido, mas, considerando a informacio ci tada acima, as baixas estimativas fornecidas por Goulart, Curtin, Buarque de Holanda ¢ outros devem pelo menos ser reavaliadas, Segundo o proprio professor Curtin, a cifra de 3646 800 foi aceita “principalmente porque é a soma das esti- mativas por periodo de tempo de (Frédéric) Mauro ¢ Gou- lart”, A cifra exata, ele admitiu, pode ser mais elevada. Ba- seado no que foi dito acima, sou de opiniao que a cifra exata {foi consideravelmente mais elevada, que € concebivel a en- trada de mais de 5000000 de escravos no Brasil durante todo 0 periodo do trifico. Este total incluiria talvez. 100000 afri canos no séeulo XVI, 2000000 no século XVIL, 2000000 no século XVIII e mais de 1500000 nos tiltimos cingitenta anos do trafico. Estes némeros, naturalmente, basciam-se em pro- vas totalmente inadequadas, e dessa forma sio apresentados com 0 mesmo espirito de diivida com o qual o professor Curtin apresenitou os seus.®? (31) Bethel, The Aboftion, op. 388-395; Nelson, Remarks, op, 36-4 (32) Curtin, The Atantic Slave Trade, pp. 47-49, "Um dos pevigos de se {ixar ndmeros”, escreveu Curtin em seu pretacio {p. vil, “6 encontélos c+ tados depois com um grau de certeza que jamais se pretendeu”. Sues prépries eslatstcas sobre o tréfico escravistaafricand, ele acrescentou, pretendiam ser aproximagbes em que um resultado dentro de 20% de realidade & uma res- posta ‘correta’ ~ isto €, um bor resultado, admitindo-se a qualidade dos da- {dos em que se baseia, Deve-se também compreender que algumas estimativas james alcangardo um padréo de exatidio". Tendo a adverténcia de Curtin em mente, pode-se ver gue suas estimativas sobre o trafic brasileiro no $80 Se Flemente contestadas agui “4 ROBERT EDGARD CONRAD. As estimativas sobre o tréfico escravista eitadas acima in- cluem apenas os africanos que chezaram as praias brasileiras. Contudo, -houve muitos que chegaram ao Brasil bastante doentes ¢ morreram logo depois, e houve muitos mais que se- ‘quer chegaram ao Brasil. Assim, as cifras sobre as importa- Ges de escravos contam apenas parte de histéria bastante cruel. Alguns escravos morreram em conseqiiéncia da violén- cia essencial & sua captura na Africa, muitos outros nas jorna~ das entre os lugares que habitavam no interior e os portos dos oceanos Atlantico ¢ Indico, ou enquanto aguardavam o em- barque, muitos mais ainda no mar, outros nos mercados de escravos brasileiros, e mais ainda durante 0 processo de ajus- tamento fisico ¢ mental ao sistema escravista no Brasil, a “aclimatagao”, como era chamado esse proceso nas colénias britdnicas. De fato, é possivel acreditar que 0 niimero dos que chegaram a seu destino final em bom estado nio tenha sido muito maior que aquele dos que pereceram durante a longa Jornada a partir de sua terra natal africana, Segundo Curtin, de fato, “0 custo do trifico escravista em termos humanos foi muitas vezes 0 ntimero desembarcado na América” ® E sabido que as perdas no mar foram elevadas, especial- mente durante os primeiros séculos do tréfico, No século XVI a taxa média de perda pode ter chegado a 15, 20 ou mesmo 25%, mas alega-se que tendeu a declinar nos diltimos séculos, atingindo uma média aproximada de 9 ou 10% nos primeiros anos do século XIX." Alguns autores afirmaram que apis 0 tratico ter sido declarado ilegal em 1830, a taxa de mortal dade elevou-se novamente uma vez que no tréfico de contra~ bando os abusos de excesso de carga e subalimentagiio no podiam ser controlados pela legislacdo governamental.®> Ain- da assim, estimativas britinicas sobre a mortalidade no pe- riodo de 1817 a 1843 parecem indicar que nao houve tal au- (33) Wid, p. 275, (BA) Ioid,p. 277; Gotender, O escravismo colonial, p, 129. {G5} Duaite, Ensaio, p. 5: Henrique Jorge Rebello, “Memoria e consi- dderactes sobre a ponulacdo do Brasil", Revista das Instituto Historica e Gao- aréfico Brasileiro 30 (1), p. 33: J, P. Olvera Martins, O Brazil e as colonies ortuguezas (2! ., Lisboa, 1881, p. 5. TUMBEIROS: 4s mento no periodo do trafico ilegal.** Isto talvez possa ser ex- plicado pela probabilidade de que o némero de mortes du- rante a viagem fosse menos influenciado pela politica oficial do que pelas atitudes e procedimentos rotineiros do traficante em relagdo comida, Agua, espago, pregos dos escravos, & outros fatores que afetavam diretamente 0s lucros, fatores que no sofreram grandes mudancas quando 0 trifico se tornou ilegal. No trafico escravista francés, segundo estudo recente, uma taxa de mortalidade de 5 2 15% era “aceitével”, e 0s tra- ficantes levavam em consideragio esta alta mortalidade em seus céleulos.” Os governos portugués ¢ brasileiro tinham pleno conhe- jento dos abusos comuns no tréfico africano e tentaram criar controles, Contudo, a mortalidade elevada era a norma, € as leis e decretos redigidos em Lisboa e no Rio refletiam essa tealidade, Em um decteto de 1813, por exemplo, o principe regente D. Jodo, entio reinando no Rio de Janeiro, oferece recompensas de 240 ¢ 120 mil-réis respectivamente ao capitao € ao cirurgito de qualquer navio que mantivesse a mortali- dade de sua carga em 2% ou menos, e metade dessas quantias sea taxa de mortalidade entre os excravos permanecesse abai- xo de 3%, provavelmente uma taxa de perda muito baixa. No caso em que a mortalidade fosse elevada a ponto de gerar a suspeila de negligéneia na execugio das leis sobre satide ou cura dos doentes, 0 capitao do navio estaria suieito a proceso € punigio.” E preciso assinalar que as chances de um africano sobre- .er ao trdifico estavam diretamente relacionadas com a ex- tensio ¢ duracio de sua viagem. Isto geralmente dava aos es- cravos destinados ao Brasil uma yantagem sobre aqueles que nayegavam para outras dreas do Novo Mundo, tais como Ca- ribe, América do Norte ou para 0 oeste da América do Sul, regides muito mais distantes dos principais depésitos de escra- vos da Africa ocidental. A viagem de Mocambique portugues para o Brasil. por outro lado, durava praticamente 0 dobro do tempo em relagio a viagem dos portos africanos ociden (36) Curtin, The Atlantic Slave Trade, pp. 260-281 (317) Rotert Stein, The French Slave Trade in the Elghteonth Century: An Old Regine Business (Madison, Wiscansin, 1973), p86. (98) Colleceao das ts do Brasi de 1813, 51

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