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LiBERALISMO eorToRa IDEIAS& [LETRAS Dae NCR yon A Lo CS Reg ect iee Mri e Renu muytollir e uma investigacao histérica e filoséfica inédita Ciedr ye eae bei Oke CO ot) PU Wer Muem tear lionmeonreueC lel Cree See OSE CTH COSTCO semua Rian mA aOR oem ty PoP ee os ne Ue Como 0 proprio autor explicita, “é s6 para chamar a atengao sobre aspectos até agora ampla e injustamente ocultados que o autor Came ILM re TO t er Mam gC) PSOE Po UD Mem CS oere OR aE eee ON a aOR OTe nar tee 2 FUER Doel tOme ome cen Ceuta Piecua ee Mor Mun een acctrZ ele Tal como para qualquer outro grande DTU Om NS OLY eC ET Peo ar ORME Moma ec REE SS PN aura em OP CBC Pate Ute Cer TOR: RET TU) OPM CeO RPT e meee te lary que se instaura entre essas duas dimensdes Cee CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO DOMENICO LOSURDO CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO Tradugao de Giovanni Semeraro IDEIAS & LETRAS Duron Eoronas: Tuauclo: Carlos da Silva Giovanni Semeraro Marcelo C. Aragjo Rowse: ‘Ana Lica de Casto Leite Enron: Avelino Grassi Duarwucto: Roberto Girola ‘Alex Luis Siqueica Santos Coon: a Alfredo Castillo Elizabeth dos Santos Rels Titulo original: Consroseria det liberalismo © 2005, Gius. Larerza and Figli S.p.a., Roma-Bari Edigdo brasileira publicada por prévio acordo com Eulama Literary Agency, Roma ISBN 88-420-7717-8 Todos os direitos em lingua portuguesa, para o Brasil, reservados & Editora Idéias & Letras, 2006 Cans Editora Iddias & Letras Rua Pe. Claro Monteiro, 342 ~ Centro 1270-000 Aparecida-SP Tel, (12) 3104-2000 - Fax (12) 3104-2036. Televendas: 0800 16 00 04 vendes@ideiaseletras.com.br hnttp//wwwideiaseletras.com.br Dados Intemactonals de Catalogecko na Publicaclo (CiP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasi) r ‘tradugo 1para a lingua portuguesa Giovanni Sermeraro. ~ Aparecida, SP: idéies & Letras, 2008. Tio Controstoria del lberalismo ISBN 85-96299-75.5, 1. Calhoun, John C., 1782-1850 2. Liberalismo - Hiatéria 3. Pesquisa hisiérica 4, Sociedade I. Titulo. 06-5703 c00-320.5109 Indiows para catdiogo sletemético: 1. Uberlsme: Hiri: Cmca palica 320.5109 A Jean-Michel Goux, com amizade ¢ gratidio. Sumario Uma breve premissa metodolégica - 11 I. O que é 0 liberalismo? - 13 1. Um conjunto de perguntas constrangedoras, p. 13 - 2. A revolugio americana e a revelagao de uma verdade constrangedora, p. 19 ~ 3. O papel da escravidao entre os dois lados do Atlantico, p. 24-4. Holanda, Inglaterra, América, p. 27 5. Irlandeses, indios ¢ habitantes de Java, p. 29 - 6. Grotius, Locke ¢ os Pais Fundadores: uma leitura comparada, p. 33 — 7. Historicismo vulgar ¢ a remogio do paradoxo do liberalismo, p. 39 — 8. Expansio colonial ¢ renascimento da escravidio: as posisdes de Bodin, Grotius ¢ Locke, p. 42 II. Liberalismo ¢ escravidao racial: um singular parto gémeo ~ 47 1, Limitagao do poder ¢ emergir de um poder absoluto sem precedentes, p. 47 - 2. Autogoverno da sociedade civil ¢ triunfo da grande propriedade, p. 49 - 3. O escravo negro ¢ 0 servo branco: de Grotius a Locke, p. 52 - 4. Pathos da liberdadc ¢ mal-estar pelo instituto da escravidio: 0 caso Montes- quieu, p. 56 — 5. O caso Somerset ¢ 0 dilenear-se da identidade liberal, p. 59 = 6. “Nao queremos ser tratados como negros”: a rebelido dos colonos, p. 61 - 7. Escravidao racial c ulterior degradacao da condicao do negro “livre”, p. 62 - 8. Delimitagao espacial ¢ delimitagao racial da comunidade dos livres, p. 64-9. A guerra de Secessio ¢ a retomada da polémica desenvolvida com a revolugao americana, p. 68 - 10. “Sistema politico liberal”, “modo liberal de sentir” ¢ instituto da escravidao, p. 71 - 11. Da afirmacao do principio da “inutilidade da escravidio entre nés” & condenagio da escravidio enquanto tal, p. 73 IIL. Os servos brancos entre metrépole ¢ colénias: a sociedade pro- to-liberal - 79 1, Franklin, Smith € os “residuos de escravidao” na metrépole, p. 79 ~ 2. Desempregados, mendigos ¢ casas de trabalho, p. 81 - 3. Liberais, va- gabundos ¢ casas de trabalho, p. 83 - 4. O servo como soldado, p. 86 ~ 5. Cédigo penal, formagao de uma forca de trabalho coercitiva ¢ processo de 8 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO __ colonizagio, p. 89 - 6. Os servos a contrato, p. 92 - 7. O “grande rapto he- rodiano das criangas” pobres, p. 95 - 8. Centenas ou milhares de miserdveis “quotidianamente enforcados por alguma inépcia, p. 97 - 9. Um Inteiro de caracteristicas singulares, p. 101 - 10. Trabalho assalariado ¢ categorias da escravidio, p. 102 IV. Eram liberais a Inglaterra ¢ os Estados Unidos nos séculos XVIII ¢ XIX? - 107 1. O liberalismo nao localizavel da América de Tocqueville, p. 107 - 2. Dominio absoluto ¢ obrigacdes comunitérias dos proprictarios de escravos, p. 109 - 3. Trés legislagdes, trés castas, uma “democracia para © povo dos senhores”, p. 115 - 4. Os livres, os servos € 0s escravos, p. 120 - 5. A Inglaterra ¢ as trés “castas”, p. 123 - 6. A reprodusao da casta servil ¢ 0 inicio da eugenética, p. 126 - 7. O liberalsimo nao loca- lizavel do Reino Unido na Gra Bretanha c Irlanda, p. 128 - 8. Libera- lismo, “individualismo proprietario”, “sociedade aristocrdtica”, p. 133 9. A “democracia para 0 povo dos senhores” entre Estados Unidos e Inglaterra, p. 135 V. A revolugio na Fran¢a ¢ em Santo Domingo, a crise dos mode- los inglés ¢ americano e¢ a formagao do radicalismo nos dois lados do Atlantico - 139 1, O primeiro inicio liberal da revolugao francesa, p. 139 - 2. Parlamen- tos, Dictas, aristocracia liberal ¢ servidao da gleba, p. 143 - 3. A revolucio americana ¢ a crise do modelo inglés, p. 145 - 4. A transfigurag3o em chave universalista da democracia americana para o povo dos senhores, p. 149 — 5. Qs colonos de S. Domingo, o modelo americano e o segundo io liberal da revolugao francesa, p. 150 - 6. Crise dos modelos inglés ¢ americano ¢ formagio do radicalismo francés, p. 155 - 7. O inicio liberal da revoluco na América Latina ¢ seu éxito radical, p. 159 - 8. Estados Unidos ¢ Santo Domingo-Haiti: dois pélos antagonistas, p. 163 - 9. Liberalismo e critica do radicalismo abolicionista, p. 166 - 10. A eficécia de longa duragio da revo- lugao negra de baixo, p. 170 - 11. O papel do fundamentalismo cristio, p. 172-12. O que € 0 radicalismo? O contraste com o liberalismo, p. 177 - 13. Liberalismo, autocelebragio da comunidade dos livres ¢ remogao da sorte infligida aos povos coloniais, p. 182 - 14. A questao colonial e o diferente desenvolvimento do radicalismo na Franga, Inglaterra e Estados Unidos, p. 187 — 15. O refluxo liberal do radicalismo cristao, p. 191 - 16. Liberal-socia- lismo ¢ radicalismo, p. 192 ___Introdugio __ 9 VI. A luta pelo reconhecimento dos intrumentos de trabalho na metrépole ¢ as reagdes da comunidade dos livres — 195 1. Os excluidos ¢ a luta pelo reconhecimento, p. 195 - 2. O instrumen- to de trabalho torna-se cidadao passivo, p. 198 - 3. Invengio da cidadania passiva ¢ da liberdade negativa ¢ restrigio da esfera politica, p. 201 - 4. “Leis civis” ¢ “leis politicas”, p. 205 — 5. Despolitizacao ¢ naturalizagio das relagdes econémicas ¢ sociais, p. 207 - 6. Liberalismo ¢ radicalismo: duas diferentes fenomenologias do poder, p. 209 - 7. A nova auto-representacio da comunidade dos livres como comunidade dos individuos, p. 212 - 8. Direitos econémicos ¢ sociais, “formigueiro” socialista ¢ “individualismo” liberal, p. 216 ~ 9. As criticas ao liberalismo como reacio anti-moderna?, p. 220 - 10. “Individualismo” ¢ repressio das coalizdes operérias, p. 224 - 11. Reivindicagao dos direitos econdmicos ¢ sociais e passagem do liberalismo paternalista ao liberalismo social darwinista, p. 227 VIL. O Ocidente ¢ os barbaros: uma democracia para 0 povo dos senhores de dimensées planetarias - 233 1. Autogoverno das comunidades brancas ¢ agravamento das condig6es dos povos coloniais, p. 233 - 2. Abolicao da escravidio ¢ desenvolvimento do trabalho servil, p. 236 - 3. Expansio da Europa nas colénias ¢ difuso na Europa da “democracia para o povo dos senhores”, p. 239 - 4. Tocqueville, a supremacia ocidental ¢ 0 perigo da “miscegenation”, p. 241 - 5. O “bergo vazio” ¢ 0 “destino” dos indios, p. 243 - 6. Tocqueville, a Argélia e a “de- mocracia para 0 povo dos senhores, p. 247 VIII. Autoconsciéncia, falsa consciéncia, conflitos da comunidade dos livres - 255 1. De volta & pergunta: 0 que € 0 liberalismo? Os bem-nascidos, os livres, os liberais, p. 255 - 2. A piramide dos povos, p. 260 - 3. A comu- nidade dos livres ¢ sua ditadura sobre os povos indignos da liberdade, p. 262 - 4. Como enfrentar rapidamente a ameaga dos barbaros da metrépo- lc, p. 265 - 5. A tradi¢io liberal ¢ as suas trés teorias da ditadura, p. 269 - 6. As doengas da comunidade dos livres: psicopatologia do radicalismo francés, p. 271 - 7. A leitura do interminavel ciclo revolucionério francés: da “doenga” a “rasa”, p. 274 — 8. A “doenga” como sintoma de degene- racio racial, p. 279 - 9. Gobineau, o liberalismo ¢ os mitos genealégicos da comunidade dos livres, p. 282 - 10. Disraeli, Gobincau e a “raga” como “chave da histéria”, p. 283 - 11. Remogao do conflito, busca do agente pa- togtnico ¢ teoria do compld, p. 287 - 12. O conflito dos dois liberalismos 10 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO _ € as acusacées reciprocas de traicdo, p. 292 - 13. A comunidade dos livres como comunidade da paz? Operagdes de policia ¢ guerras coloniais, p. 299 — 14. A autoconsciéncia orgulhosa da comunidade dos livres € o emergir do “patriotismo irritével”, p. 302 - 15. O “patriotismo irritavel” de Tocque- ville, p. 305 ~ 16. O conflito das idéias de misséo da revolugo americana primeira guerra mundial, p. 308 IX. Espago sagrado e espaso profano na histéria do liberalismo — 31 1. Historiografia ¢ hagiografia, p. 311 - 2. A revolusio liberal como entrelacamento de emancipacio ¢ de des-emancipacio, p. 315 - 3. A pers- pectiva da longa duragio ¢ da histéria comparada, p. 319 - 4. Realizacao do governo da lei no ambito do espago sagrado ¢ aprofundamento do abismo em relagio 20 espago profano, p. 323 — 5. Delimitagio do espaco sagrado teorizacio de uma ditadura planetéria, p. 325 - 6. O triunfo do expansioni- smo colonial: o liberalismo como idcologia da guerra, p. 329 - 7. Oscilagécs ¢ limites do modelo marxiano, p. 333 X. Liberalismo ¢ catastrofe do século XX - 339 1, Luta pelo reconhecimento ¢ golpes de Estado: 0 conflito na metrépo- le, p. 339 - 2. Luta pelo reconhecimento dos povos coloniais ¢ ameacas de secessio, p. 344 — 3. DesumanizagZo dos povos coloniais ¢ “canibalismo social”, p. 345 — 4. A “solucao final e completa” da questo india e negra, p. 350-5. Do século XIX ao século XX, p. 352 - 6. Depois da catdstrofe ¢ além da hagiografia: a heranca permanente do liberalismo, p. 357 Referéncias bibliograficas e siglas - 363 Indice de nomes - 391 Uma breve premissa metodoldégica Em que consiste a diferenga deste livro das histérias do liberalismo jé publicadas ¢ das que continuam a sair em niimero crescente? Consegue pro- duzir realmente a novidade que promete no titulo? No final de seu percurso, © leitor vai dar sua resposta. Por enquanto, o autor apenas pode limitar-se a uma declaracao de intengdes, para cuja formulagio encontra ajuda em um grande exemplo. Aprestando-se a escrever a histéria da queda do Antigo Re- gime na Franga, a propésito dos estudos sobre o século XVIII, Tocqueville observa: “Acreditamos conhecer muito bem a sociedade francesa daquele tempo porque percebemos claramente o que brilhava em sua superficie, porque possuimos até nos detalhes a histéria de seus personagens mais célebres ¢ porque criticos geniais ¢ clogiientes nos familiarizaram com as obras dos grandes escritores que a ilustraram. ‘Mas, em relago 4 conducao dos negécios, a verdadeira pritica das instituigdes, 20 posicionamento exato das virias classes em conflito, condigao aos sentimentos daqueles que ainda nao conseguiam ter voz nem visibilidade, em relagdo ao proprio fundo das opinides ¢ dos costumes, temos apenas idéias confusas ¢ muitas vezes repletas de erros”.! Nao ha porque deixar de aplicar a metodologia tao brilhantemente escla- recida por Tocqueville ao movimento ¢ a sociedade da qual € parte integrante ¢ intérprete reconhecido. £ s6 para chamar a atengio sobre aspectos até ago- ra ampla € injustamente ocultados, que o autor deste livro fala de “contra- histéria” no titulo. Pelo resto, trata-se de uma histéria, da qual é necessario Tocqueville (1951-), vol. Il, t. 1, p. 69-70 (O Antigo regime ¢ a revolugdo, de agora em diante AR, Preficio). 12 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO apenas focalizar 0 objeto: no o pensamento liberal em sua abstrata pureza, mas 0 liberalismo, quer dizer, o movimento ¢ as sociedades liberais em sua concretizacao. Tal como para qualquer outro grande movimento histérico, trata-se de indagar certamente as elaboracdes conceituais, mas também e acima de tudo as rela¢des politicas ¢ sociais nas quais ele se manifesta, assim como a ligacao mais ou menos contraditéria que se instaura entre essas duas dimensdes da realidade social. Portanto, ao dar inicio & pesquisa, somos levados a nos colocar uma pergunta preliminar sobre 0 objeto cuja hist6ria temos a intengdo de recons- truir: o que é 0 liberalismo? D.L. I O que é 0 liberalismo? 1. Um conjunto de perguntas constrangedoras As respostas usuais 4 pergunta que nos colocamos nao deixam dividas: o liberalismo é a tradigao de pensamento que situa no centro de suas preocu- pacdes a liberdade do individuo, desconsiderada ou pisoteada pelas filosofias organicistas de diferente orientacao. Sendo assim, como situar John C. Ca- lhoun? Este eminente estadista, vice-presidente dos Estados Unidos, na me- tade do século XIX, entoa um hino apaixonado a liberdade do individuo ¢, inspirando-se também em Locke, o defende energicamente contra qualquer imposigao ¢ contra toda a indevida interferéncia do poder do Estado. Mas, isso nao é tudo. Juntamente com os “governos absolutos” ¢ a “concentragao do poder”, ele n3o cansa de criticar ¢ condenar o fanatismo' ¢ o espirito de “cruzada”, aos quais contrapde 0 “compromisso” como principio inspirador dos auténticos “governos constitucionais”. Com igual clogiiéncia, Calhoun defende o direito das minorias: nao se trata apenas de garantir pelo sufragio a alternancia ao governo de diversos partidos: um poder excessivamente amplo € sempre inaceitavel, mesmo limitado no tempo ¢ amenizado pela promessa ou pela perspectiva da periddica inversio das fungdes na relacdo entre gover- Nantes € governados". Nao hi divida, teriamos aqui todas as caracteristicas do pensamento liberal mais maduro e sedutor; no entanto, por outro lado, desdenhando os meios-termos ¢ a timidez ou o temor dos que sc limitavam a accité-la como um “mal” necessario, Calhoun proclama que a escravidao, ao contrério, é um “bem positivo” ao qual a civilizagéo nunca pode renun- ciar. Certamente, ele denuncia repetidamente a intolerancia € 0 espirito de ‘Calhoun, 1992, p. 529. 2 Calhoun, 1992, p. 528-31, 469. Calhoun, 1992, p. 30-31. * Calhoun, 1992, p. 30-33. 14 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO__ cruzada, nio para colocar em discussio a subjugacao dos negros ou a caca impiedosa aos escravos fugitivos, mas sempre ¢ somente para estigmatizar os abolicionistas, estes “cegos fanaticos”®, que consideram ser “sua mais sagrada obrigacio lancar mao de todos os recursos para destruir” a escraviddo, uma forma de propriedade legitima ¢ garantida pela Constituigio®. Observe-se que das minorias defendidas com tanto vigor ¢ tanta sabedoria juridica nao fazem parte os negros. Ao contrario, neste caso, a tolerancia c 0 espirito de compromisso parecem se reverter: se o fanatismo conseguir realmente levar adiante o ensandecido projeto de aboligio da escravidio, haveria “a extirpa- 30 de uma ou outra raga”. E, considerando as concretas relagdes de fora existentes nos Estados Unidos, nao seria dificil imaginar qual das duas iria sucumbir: portanto, os negros poderiam sobreviver s6 continuando na con- digao de escravos. Entdo, Calhoun é ou nao é liberal? Nenhuma diivida tem a respeito lor- de Acton, figura procminente do liberalismo da segunda metade do século XIX, conselheiro ¢ amigo de William E. Gladstone, um dos grandes prota- gonistas da Inglaterra do século XIX. Entdo, aos olhos de Acton, Calhoun é um campeio da causa da luta contra o absolutismo em todas as suas formas, inclusive o “absolutismo democratico”: os argumentos utilizados por ele sio “a verdadeira perfeigdo da verdade politica”; em sintese, estamos diante de um dos grandes autores e dos grandes espiritos da tradigao e do pantedo liberais", Embora com uma linguagem menos enfatica, de maneira afirmativa pa- recem responder & pergunta que nos colocamos os que nos nossos dias ce- lebram Calhoun como “um distinto individualista”’, como um campeao da “defesa dos direitos da minoria contra os abusos de uma maioria inclinada a prevaricacao” , isto é, como um tedrico do senso do equilibrio e da autoli- mitagdo que devem ser proprios da maioria"". Livre de diividas apresenta-se uma editora dos Estados Unidos, dedicada a reeditar em chave neoliberalista 0s “Clissicos da Liberdade”, entre os quais aparece 0 eminente estadista ¢ idedlogo do Sul escravista”. * Calhoun, 1992, p. 474. “Calhoun, 1992, p. 582. ” Calhoun, 1992, p. 529, 473. * Acton, 1985-88, vol. 1, p. 240, 250; vol. III, p. 593. * Post, 1953, p. VII. '® Lence, 1991, p. XXIII. 1 Sartori, 1976, p. 151; 1978, p. 239, 252. " Calhoun, 1992. _ 1. O gue é 0 liberalismo? 15 A pergunta que nos colocamos nao emerge a partir apenas da recons- trugao da historia dos Estados Unidos. Estudiosos muito conceituados da revolugio francesa, ¢ de orientacao liberal garantida, nao hesitam em definir como “liberais” aquelas personalidades ¢ aqueles circulos que teriam o mé- Tito de ter feito oposigao a deriva jacobina mas que, por outro lado, estdo firmemente envolvidos na defesa da escravidao colonial. Trata-se de Pierre- Victor Malouet ¢ dos membros do Club Massiac: si “todos proprietérios de plantagdes ¢ de escravos”"’. E possivel, portanto, ser liberais ¢ escravistas a0 mesmo tempo? Nao é esta a opiniao de John S. Mill, a julgar pelo menos em relagdo a polémica desenvolvida por cle contra os “autodenominados” liberais ingleses (entre os quais provavelmente Acton ¢ Gladstone) que, no decorrer da guerra de Secessao, se alinhavam em massa ¢ “furiosamente a favor dos Estados do Sul” ou que pelo menos mantinham uma postura fria € 4cida em relagao 4 Unido ¢ a Lincoln’* Estamos diante de um dilema. Se a pergunta aqui formulada (Calhoun é ou nao é liberal?) respondemos afirmativamente, nao podemos mais susten- tar a tradicional (¢ edificante) configurac¢ao do liberalismo como pensamen- to ¢ vontade da liberdade. Se, ao contrario, respondemos negativamente, esbarramos diante de uma nova dificuldade ¢ de uma nova pergunta, nio menos problematica que a primeira: por que deveriamos continuar a atri- buir a dignidade de pai do liberalismo a John Locke? Sim, Calhoun fala da escravidio dos negros como de um “bem positivo”, mas embora utilize uma linguagem to altissonante, também o fildsofo inglés, ao qual o autor esta- dunidense remete explicitamente, considera ébvia c natural a escravidao nas colénias ¢ contribui pessoalmente para a formalizacao juridica desse instituto na Carolina. Participa na redacdo da norma constitucional pela qual “todo homem livre da Carolina deve ter absoluto poder e autoridade sobre os seus escravos negros seja qual for sua opiniio ¢ religiio””. Locke € “o sltimo grande filésofo que procura justificar a escravidio absoluta e perpétua”" © que nao Ihe impede de atacar com palavras de fogo a “escravidio” po- Iitica que a monarquia absoluta queria impor (Dois tratados sobre governo, de agora em diante TT, I, 1); de maneira andloga cm Calhoun a teorizacio da escravidao negra como “bem positivo” anda de maos dadas com o alerta contra uma concentragao dos poderes que corre o risco de transformar “os "3 Furet, Richet, 1980, p. 120-121 ¢ 160-161. ** Mill, 1963-91, vol. XXI, p. 157; Mill, 1963-91, vol. 1, p. 267 ( Mill, 1976, p. 209). 'S Locke, 1993c, p. 196 (art. CX). "Davis, 1975, p. 45. 16 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO governados” em “escravos dos governantes””. Afinal, o estadista americano é proprietério de escravos, mas também o fildsofo inglés tem sdlidos inves- timentos no trafico dos negros . A posicio do segundo, até, resulta ainda mais comprometedora: bem ou mal, no Sul escravista, do qual o primeiro é intérprete, ndo havia mais lugar para a deportacdo dos negros da Africa que no decorrer de uma horrivel viagem condenava muitos deles 2 morte bem antes da chegada a América. Para distinguir a posi¢io dos dois autores aqui comparados, queremos utilizar a distincia temporal ¢ excluir da tradigao liberal s6 Calhoun, que continua a justificar ou a celebrar o instituto da escravidao ainda cm pleno século XIX? Contra esse tratamento diferente iria reagir com indignagio o estadista do Sul, que, em relagio ao filésofo liberal inglés, talvez reafirmasse, com uma linguagem apenas diferente, a tese por ele formulada a propésito de George Washington: “Ele era um dos nossos, um proprietario de escravos cum fazendeiro””. Contemporanco de Calhoun é Francis Lieber, um dos mais eminen- tes intelectuais do seu tempo. Celebrado as vezes como uma espécie de Montesquieu redivivus, em relacdes epistolares ¢ de estima com Toque- ville, ele € sem divida um critico embora cauteloso do instituto da ¢s- cravidao: espera que se dissolva mediante uma transformagio gradual em uma espécie de servidaio ou semi-servidio, ¢ a partir da iniciativa auté- noma dos estados escravistas, cujo direito ao autogoverno nao pode ser colocado em discussio. Por isso, Lieber € admirado também no Sul, ainda mais porque ele mesmo, embora em proporgdes bem modestas, possui ¢, as vezes, aluga escravos ¢ escravas. Quando uma delas vem a falecer, por causa de uma misteriosa gravidez ¢ de sucessivos abortos, ele anota no seu diario a dolorosa perda pecuniéria assim softida: “Bem mil délares - 0 duro trabalho de um ano”””. Novas penosas economias impunham-se, en- to, para compensar a escrava falecida: sim, porque Licber, diversamente de Calhoun, nao é um fazendeiro ¢ nem vive de renda; € um professor universitério que langa mao dos escravos fundamentalmente para servigos domésticos. Com isso, estariamos autorizados a incluir o primeiro ¢ nao © segundo no Ambito da tradigio liberal? Em todo caso, a distancia tem- poral aqui nao tem peso algum. * Calhoun, 1992, p. 374. “Cranston, 1959, p. 114-15; Thomas, 1977, p. 199, 201. Calhoun, 1992, p. 590. % Freidel, 1968, p. 278, 235-59. _ Oogueéoliberalismo? ——_ 7 Observe- Se, agora, um contemporaneo de Locke. Andrew Fletcher é um “campeao da liberdade” e, a0 mesmo tempo, um “campeio da escravi- dio””, No plano politico ele declara ser “um republicano por principio”; € no plano cultural é “um profeta escocés do iluminismo””; ele também foge para a Holanda na onda da conspira¢ao antijacobita e antiabsolutista, exata- mente como Locke, com o qual mantém correspondéncia epistolar’. A fama de Fletcher atravessa o Atlantico: Jefferson o define um “patriota”, ao qual cabe 0 mérito de ter expressado os préprios “principios politicos” dos “pe- riodos mais puros da Constituigao Britanica”, os que depois se cnraizaram ¢ prosperaram na América® livre. Quem manifesta posigdes muito parecidas com as de Fletcher é um scu contemporanco e conterranco, James Burgh, que também goza da estima dos ambientes republicanos a /a Jefferson” ¢ € mencionado com simpatia por Thomas Paine, no opisculo mais célebre da revolugdo americana (Common Sense)”. No entanto, a diferenga dos outros autores, caracterizados como cles pelo singular entrelacamento de amor pela liberdade ¢ legitimagao ou reivin- dicacao da escravidao, Fletcher ¢ Burgh hoje estao praticamente esquecidos e ninguém parece inclui-los entre os expoentes da tradicao liberal. O fato é que, ao ressaltar a necessidade da escravidio, cles pensam em primeiro lugar nao nos negros das colnias, mas nos “vagabundos”, nos mendigos, na plebe ociosa ¢ incorrigivel da metrépole. Devemos consideré-los iliberais por esse motivo? Se assim fosse, 0 que distingue os liberais dos que nao sio seria a condenagio do instituto da escravidio nao apenas a discriminagao negativa contra os povos de origem colonial. A Inglaterra liberal nos coloca diante de um caso ainda diferente. Fran- cis Hutcheson, um filésofo oral com alguma visibilidade (é 0 “inesqueci- vel” mestre de Adam Smith”), por um lado manifesta criticas ¢ reservas em relagdo 4 escravidio 4 qual esto submetidos de maneira indiferenciada os negros; por outro lado sublinha que, principalmente quando se lida com os “niveis mais humildes” da sociedade, a escravidio pode scr uma “punigdo itil”: ela deve ser 0 “castigo normal para aqueles vagabundos preguicosos ® Morgan, 1972, p. 11; of. Marx, Engels, 1955-89, vol. XXII, p. 750, nora 197. 2 Marx, Engels, 1955-89, vol. XXIII, p. 750, nota 197. 2 Morgan, 1995, p. 325. % Bourne, 1969, vol. I, p. 481; Locke, 1976-89, vols. V-VIL, passim. 2 Jefferson, 1984, p. 1134 (carta a conde de Buchan, 10 de julho de 1803). * Morgan, 1995, p. 382; Pocock, 1980, p. 888. ine, 1995, p. 45 nora. 3 Smith, 1987, p. 309 (carta a A. Davidson, 16 de novembro de 1787). 18 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO que, mesmo depois de ter sido justamente advertidos ¢ submetidos a servi- dao temporéria, nao conseguem sustentar a si proprios ¢ as suas familias com um trabalho itil””, Estamos na presenga de um autor que, mesmo sentindo o mal-estar pela escravidao hereditéria ¢ racial, reivindica por outro lado uma espécie de escravidio penal para aqueles que, independentemente da cor da pele, seriam culpados de vadiagem: é liberal Hutcheson? Situado temporalmente entre Locke ¢ Calhoun, e olhando para a rea- lidade aceita por ambos como Obvia € pacifica ou até celebrada como um “bem positivo”, Adam Smith formula um raciocinio e expressa uma prefe- réncia que merecem ser relatados por extenso. A escravidio pode ser mais facilmente suprimida em um “governo despético” do que em um “governo livre”, cujos organismos representativos ficam exclusivamente reservados aos proprietarios brancos. Nesse caso, é desesperadora a condi¢ao dos escravos negros: “toda lei é feita pelos seus donos, os quais nunca vo deixar passar uma medida desfavoravel a eles”. E, portanto: “A liberdade do homem livre é a causa da grande opressdo dos escravos [...]. E uma vez que eles constituem a parte mais numerosa da popula¢ao, pessoa alguma imbuida de humanidade vai desejar a liberdade em um pais no qual foi estabelecida esta instituigio”” Pode ser considerado liberal um autor que, pelo menos em um caso concre- to, exprime a sua preferéncia por um “governo despético”? Ou, com uma di- versa formulagao: € mais liberal Smith ou Locke ¢ Calhoun que, juntamente com a escravidao, defendem os organismos representativos condenados pelo primeiro enquanto sustenticulo, no 4mbito de uma sociedade escravista, de uma institui¢ao infame ¢ contraria a todo o sentido de humanidade? Na verdade, como havia previsto o grande economista, a escravidio € abolida nos Estados Unidos nao gracas ao governo local, mas pelo punho de ferro do exército da Unido ¢ pela ditadura militar imposta por algum tempo. Nessa ocasido, Lincoln € acusado pelos seus adversdrios de despotismo ¢ de jacobinismo: recorre a “governos militares” ¢ “tribunais militares” ¢ interpreta “a palavra ‘lei’ “como a “vontade do presidente” ¢ o habeas corpus como 0 “poder do presidente de aprisionar qualquer um e pelo periodo de tempo que Ihe agradar”", Na formulacao desse ato de acusagZo, além dos expoentes da Confederacao secessionista, estao aqueles que aspiram a uma paz acordada, até para voltar 4 normalidade constitucional. E aqui novamente somos obrigados a nos colocar a pergunta: € mais liberal Lincoln ou os seus antagonistas do Sul, ou os seus adversérios que no Norte se pronunciam a favor do compromisso? » Davis, 1971, p. 423-27; p. 425. * Smith, 1982, p. 452-53, 182. » Schlesinger Jr., (org.) 1973, p. 915-21. 1. O que é 0 liberalismo? 19 Vimos Mill tomar posicao a favor da Unido ¢ condenar os “autodeno- minados” liberais que gritam escandalizados diante da firmeza com que ela conduzia a guerra contra o Sul ¢ controlava aqueles que, no proprio Nor- te, se inclinavam a aceitar a secessio escravista. Mas, veremos que, com o olhar voltado para as colénias, o liberal inglés justifica 0 “despotismo” do Ocidente sobre as “racas” ainda em “menoridade”, obrigadas a observar uma “obediéncia absoluta”, de modo que possam ser postas no caminho do progresso. E uma formulacao que nio iria desagradar Calhoun, que também legitima ¢ celebra a escravidio quando ele também se refere ao atraso € 3 menoridade da populagao de origem africana: sé na América, € gracas aos cuidados paternais dos patrdes brancos, a “raca negra” consegue avangar € passar da anterior “condigio infima, degradada ¢ selvagem” para a nova “condigio relativamente civilizada””, Para Mill, “qualquer meio” € Kicito para quem assume a tarefa de educar as “tribos selvagens”; a “escravidio” as vezes € uma passagem obrigatéria para conduzi-las ao trabalho e tornd-las iteis & civilizag3o ¢ ao progresso (infra, cap. VII, § 3). Mas esta € também a opiniao de Calhoun, para o qual a escraviddo é um meio inevitavel para che- gar a civilizar os negros. Claro, diferentemente da eterna escravidao a qual, conforme o teérico € politico estadunidense, devem ser submetidos os ne- gros, a ditadura pedagégica de que fala Mill esta destinada a se dissolver em um futuro, embora remoto € problemitico; 0 outro lado da medalha é que a esta condigao de falta de liberdade esta explicitamente subjugado nio apenas um grupo étnico particular (0 pequeno pedaco de Africa situado no cora¢io dos Estados Unidos), mas também o conjunto dos povos progressivamente tomados pela expansio colonial ¢ obrigados a sofrer o “despotismo” politico ¢ formas de trabalho servil ou semi-servil. Exigir a “obediéncia absoluta”, por um periodo de tempo indeterminado, de grande parte da humanidade € compativel com a profissdo de fé liberal ou é sinénimo de “autodenomina- do” liberalismo? 2. A revolugio americana ¢ a revelagao de uma verdade constrangedora Nao hé divida: em primciro lugar € o problema da escravidio que divide 08 autores até aqui citados. De uma forma ou de outra, todos eles remetem a Inglaterra derivada da Revolucio Gloriosa ou aos Estados Unidos. Trata- se de dois paises que ao longo de um século e meio foram a tinica realidade * Calhoun, 1992, p. 473. 20 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO estatal e constituiram, por assim dizer, um s6 partido politico. Antes da cri- se que leva a revolugio americana, nos dois lados do Atlantico, os ingleses se sentem siiditos ou cidadaos orgulhosos de “um pais, talvez 0 tnico, no universo em que a liberdade civil ou politica € 0 verdadeiro fim € 0 objetivo da Constituicao”. Quem assim se expressa € Blackstone. Para confirmar a sua tese ele remete a Montesquicu que fala da Inglaterra como sendo “uma nagio que tem como objetivo preciso da sua Constituigio a liberdade polt- tica” (De Pesprit des lois, de agora em diante EL, XI, 5)”. Sim, nem o liberal francés tem davidas quanto ao fato de que “a Inglaterra € atualmente o pais mais livre do mundo, sem excluir republica alguma””, a “nagio livre” por exceléncia, o “povo livre” por exceléncia (EL, XIV, 13; XIX, 27). Neste momento, nenhuma sombra parece pairar sobre as relacdes entre 0 dois lados do Atlantico. Nao hé conflitos ¢ nem poderia haver, pelo menos para Montesquieu, pelo fato de que também na sua rela¢ao com as colénias € 0 amor pela liberdade que caracteriza a Inglaterra: “Se esta nagio estabelecesse coldnias longinquas, o faria para ampliar ainda mais, © proprio comércio do que o préprio dominio. Uma vez que se deseja estabelecer em outros lugares o que esté j4 consolidado entre nés, ela daria aos povos das coldnias a sua mesma forma de governo, ¢ jé que esse governo carrega consigo a prosperidade, veramos a formacio de grandes povos até nas florestas destinadas para a sua habitagdo” (EL, XIX, 27). No decorrer desses anos, também os colonos ingleses na América se re- conhecem orgulhosamente na tese de Blackstone, conforme a qual “a nossa livre Constituicao”, “de pouco distante da perfcigao”, se diferencia nitida- mente “das constituigdes modernas de outros Estados”, do ordenamento politico do “continente curopeu” no seu conjunto™. com base nessa ideologia que o Império Britanico conduz a guerra dos Sete Anos: os colonos ingleses na América sio os mais propensos a interpre- ta-la como o enfrentamento entre os “promotores da liberdade no mundo”, os britanicos “filhos da nobre liberdade” ou os defensores do protestantis- mo, e a Franga “cruel e opressora”, despética no plano politico e seguidora do despotismo, da “beatice romana” ¢ do papismo no plano religioso. Neste momento, também os sitditos da Coroa inglesa, situados além do Atlantico, amam repetir com Locke que “a escravidio” ¢ “diretamente oposta 4 nature- “Blackstone, 1979, vol.1, p. 6 (Introdugio, seg. 1). ™ Montesquieu, 1949-51, vol. I, p. 884. * Blackstone, 1979, vol. I, p. 121-23 (livro 1, cap. 1). _ __ 1. O que é 0 liberalismo? 21 za generosa ¢ corajosa da nossa nag3o”: ela ¢ absolutamente impensével para um “inglés” (TT, I, 1). Os franceses teriam gostado de reduzir os colonos americanos a uma “subjugacio escrava”; felizmente, esta tentativa foi des- mantelada pela Gri-Bretanha, “a Senhora das nacées, o grande sustentaculo da liberdade, o flagelo da opressio ¢ da tirania”™. Trata-se de uma idcologia que Burke, ainda cm 1775, procura ressusci- tar na desesperada tentativa de evitar a ruptura que se desenha no horizonte. Ao apresentar a sua Mocio de conciliago, ele convida a nao perder de vista € a nao cortar os elos que vinculam os colonos americanos & patria-mie: es- tamos sempre na presenga de uma tinica “nacio”, unificada por um “templo sagrado dedicado a uma f€ comum”, a fé na “liberdade”. Substancialmente intocada em paises como a Espanha ou a Prissia, a escravidio “medra em todos os terrenos”, menos no inglés. Entio, é absurdo querer dobrar com a forga os colonos rebeldes: “um inglés € a pessoa menos apta no munde para induzir com argumentos um outro inglés a se submeter a escravidio””. Obviamente, a escravidao da qual aqui se fala é a escravidao cuja respon- sabilidade € do monarca absoluto. A outra, a que algema os negros, nao tem peso algum no discurso politico daqueles anos. Quando torna-se irreversivel a revolucdo ou a “guerra civil”, com todos os seus “horrores”™, como prefe- rem dizer os fiéis leais Coroa e os préprios homens politicos ingleses favo- rveis a9 entendimento ¢ 4 manutengio da unidade da “nacio” ¢ da “raga” inglesa”, +0 quadro muda sensivelmente. Fica claro o elemento de continui- dade. Cada uma das partes em luta acusa a outra de querer reintroduzir 0 despotismo, a “escravidao” politica. O requisitério dos colonos rebeldes é amplamente conhecido: cles nao cansam de denunciar a tirania da Coroa ¢ do Parlamento ingleses, o seu insano projeto de submeter osr residentes na América a uma condi¢ao de “servidao perpétua c escravidao”” . Mas, a res- posta nao tarda a chegar. Ja em 1773, um legalista de Nova York langa uma adverténcia: até hoje “estivemos em alerta contra os ataques externos a nossa liberdade” (a referéncia é 4 guerra dos Scte Anos), mas agora aparcccu um perigo mais insidioso, o de “sermos escravizados por tiranos internos”. Sem- pre em Nova York, um outro legalista reafirma dois anos depois: os rebeldes aspiram a “nos reduzir a condigdes piores do que os escravos”"’. Os dois % Potter, 1983, p. 115-16. * Burke, 1826, vol IIT, p. 123-24, 66 (= Burke, 1963, p. 142-43, 100). * Boucher, cit. in Zimmer, 1978, p. 153. ™ Burke, 1826, vol. IIT, pp 135. # Shain, 1994, p. 290. “ Porter, 1983, p. 16. 22 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO troncos nos quais o partido liberal se dividiu retomam, um contra o outro, a ideologia c a retérica que haviam caracterizado a auto-exaltago da nagio inglesa no seu conjunto como inimiga jurada da escravidio politica. ‘A novidade consiste no fato de que, na onda da troca de acusagoes, jun- tamente com a politica, irrompe pesadamente na polémica também a outra escravidio, aquela que ambas as partes haviam removido como elemento incémodo da sua orgulhosa autoconsciéncia de membros do povo ¢ do par- tido da liberdade. Para os colonos rebeldes 0 governo de Londres, que im- pdc soberanamente a taxacao a cidadaos ou stditos que inclusive nao estao representados na Camara dos Comuns, comporta-se como um patréo em telagao aos escravos. Mas — objetam os outros — se for mesmo necessario falar de escravidio, por que nao comecar a colocar em discussio aquela que sc manifesta de forma brutal e evidente exatamente onde com maior grandilo- qiiéncia se aclama a liberdade? Jé em 1764, Franklin, na época em Londres para defender a causa dos colonos, deve enfrentar os comentarios sarcasticos dos scus interlocutores: “Vés americanos fazeis um grande alarido frente a menor violagio imagindria das vossas liberdades consideradas tais; contudo, neste mundo ndo hé um povo tio tirinico, to inimigo da liberdade como € 0 vosso quando isto Ihe convém”™”. Os pretensos campedes da liberdade retratam como sendo sinénimo de despotismo ¢ de escravidio uma imposigio fiscal promulgada sem 0 seu ex- plicito consenso, mas nao tém escriipulo para exercer o poder mais absoluto € mais arbitrario em detrimento dos seus escravos. E um paradoxo: “Como se explica que os gritos mais elevados de dor pela liberdade se clevam dos cacadores de negros?” ~ pergunta-se Samuel Johnson. De forma andloga, no outro lado do Auintico ironizam os que procuram contrastar a secessao. Thomas Hutchinson, governador régio do Massachusetts, acusa os rebeldes de incocréncia ou hipocrisia: negam radicalmente aos afficanos aqueles dirci- tos que proclamam como sendo “absolutamente inalicnaveis”?, Em sintonia com este, um legalista americano (Jonathan Boucher) refugiado na Inglater- ra, rememorando os acontecimentos que o haviam levado ao exilio, observa: “Os mais barulhentos advogados da liberdade cram os mais duros ¢ mais selvagens patrées de escravos”™. “ Franklin, 1987, p. 646-47. * Foner, 2000, p. 54. “ Boucher, cit. in Zimmer, 1978, p. 297. 1, O gue é 0 liberalismo? ae ‘Com tanta dureza nao falam apenas as personalidades mais diretamente envolvidas na polémica ¢ na luta politica. £, particularmente, mordaz a inter- vengio de John Millar, expoente de primeira linha do iluminismo escocés: “£ singular que os mesmos individuos que falam com estilo refinado de liber- dade politica e que consideram como um dos direitos inaliendveis da humanidade o direito de impor as taxas néo tenham escripulo em reduzir uma grande quantidade dos scus semelhantes a condigbes de serem privados ndo apenas da propriedade, mas também de quase todos os direitos. Provavelmente, a sorte nunca produziu uma situago maior do que esta para ridicularizar uma hipétese liberal ou mostrar quanto a conduta dos homens, no fundo, seja pouco dirigida por algum principio filoséfico”” Millar € um discipulo de Adam Smith. O mestre, também, parece pensar da mesma forma. Quando declara que ao “governo livre”, controlado pelos proprictarios de escravos, prefere o “governo despético” capaz. de cancelar a infimia da escravidao, faz explicita referencia 4 América. Posto em termos imediatamente politicos, o discurso do grande economista significa: 0 despo- tismo acusado na Coroa preferivel a liberdade reivindicada pelos propric- térios de escravos ¢ que beneficia apenas uma restrita classe de fazendeiros patrdes absolutos”. Os abolicionistas ingleses pressionam mais. Conclamam na defesa das instituigdes britanicas, ameacadas pelos “modos arbitrarios e desumanos que prevalecem cm um longinquo pais”. Arbitririos ¢ desumanos a tal ponto que, como mostra um classificado do “New York Journal”, uma mulher ne- gra ¢ seu filho de trés anos sio vendidos separadamente no mercado, como se fossem uma vaca € um bezerro. E, portanto, ~ conclui em 1769 Granville Sharp - nao podemos ser levados ao engano pela “grandilogiiéncia teatral ¢ pelas declamagées em honra da liberdade”, as quais recorrem os rebeldes escravistas; contra eles € preciso defender com firmeza as livres instituigdes inglesas“. Os acusados, por sua vez, reagem desmascarando a hipocrisia da Ingla- terra: ela enaltece a sua “virtude” e o seu “amor pela liberdade”, mas quem promoveu ¢ continua a promover o comércio dos negros? E desta forma que Benjamin Franklin” argumenta, levantando uma motivacio que depois se 1986, p. 294 (= Millar, 1989, p. 239). in Davis, 1975, p. 272-73, 386-87. 987, p. 648-49. 24 _CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO torna central no projeto inicial de Declaragio de independéncia elaborado por Jefferson. Eis como, na versio original desse documento solene, sio acu- sados a Inglaterra liberal derivada da Revolugao Gloriosa ¢ George III. Este promoveu uma guerra cruel contra o proprio género humano, violando os mais sagrados dircitos a vida ¢ a liberdade das pessoas de um povo longinquo que nunca Ihe causou ofensa, tornando-as prisioneiras ¢ transportando-as como escravas para um outro hemisfério, ou condenando-as a uma esquilida morte durante o translado. Essa guerra de piratas, vergonha das poténcias infidis, é a guerra do rei CRISTAO de Gra-Bretanha. Determinado a manter aberto um mercado onde se vendem e compram HOMENS, ele prostituiu 0 seu direito de veto ao reprimir qualquer tentativa legislativa que impedisse ou limitasse esse execravel comércio” 3. O papel da escravidao entre os dois lados do Atlantico Que dizer dessa polémica incandescente ¢ inesperada? Nao ha diivida de que as acusacdes dirigidas aos rebeldes deixam exposto um nervo fraco, Na revolugdo americana a Virginia desempenha um papel de destaque: aqui ha 40% dos escravos do pais; mas, daqui surge o maior niimero de protagonistas da revolta que explode em nome da liberdade. Em trinta ¢ dois anos dos primeiros trinta e seis de vida dos Estados Unidos, quem ocupa o cargo de Presidente sio os proprietarios de escravos provenientes da Virginia. E essa colénia ou esse Estado, fundado sobre a escravidao, que fornece ao pafs os seus estadistas mais ilustres; sé para lembrar: George Washington (grande protagonista militar ¢ politico da revolta anti-inglés), James Madison e Tho- mas Jefferson (autores respectivamente da Declaracao de independéncia ¢ da Constituigio federal em 1787), os trés proprictdrios de escravos”. Inde- pendentemente deste ou daquele Estado, resta claro o peso que a escravidio exerce sobre o pafs no seu conjunto: sessenta anos depois da sua fundagio observa-se que “nas primeiras dezesseis eleigdes presidenciais, entre 1788 € 1848, todas, salvo quatro, colocaram um proprietirio de escravos do Sul na Casa Branca”®’. Compreende-se entao a persisténcia da polémica anti-ame- ricana nesse ponto. “Cf. Davis, 1975, p. 273; Jennings, 2003, p. 174-75. * Morgan, 1995, p. 5-6. % Foner, 2000, p. 61. I. O que ¢ 0 liberalismo? 25 “No lado oposto, conhecemos a ironia de Franklin e Jefferson em relagio ao moralismo antiescravista manifestado por um pais profundamente envol- vido no comércio dos negros. Trata-se de um ponto sobre o qual insiste também Burke, tedrico da “conciliag3o com as colénias”. Ao repelir a pro- posta dos que reivindicavam “uma geral libertac3o dos escravos” de modo a contrastar a revolta dos seus donos e colonos em geral, ele observa: “Por quanto sejam escravos esses negros desafortunados, ¢ tornados obtusos pela escravidao, seré que nao suspeitardo desta oferta de liberdade provenicnte daquela nago que os vendeu aos seus atuais patrdes?” Isto é tanto mais ver- dade, se depois aquela na¢io insiste em querer praticar 0 comércio dos ne- gros, chocando-se com as colénias que queriam limité-lo ou suprimi-lo. Para ‘os escravos desembarcados ou deportados para a América se apresentaria um espetéculo singular: “Uma oferta de liberdade da Inglaterra chegaria para eles de forma um tanto estranha, enviada em um navio africano, para o qual os portos da Virginia ¢ da Caro- lina recusam o ingresso, com uma carga de trezentos negros de Angola. Seria curioso ver a cara de um capitio proveniente da Guiné tentar a0 mesmo tempo manifestar a sua proclamagio de liberdade ¢ fazer propaganda da sua venda de escravos” Aronia de Burke acerta no alvo. Além de considerar o papel da Inglater- ra no comércio dos negros, deve-se acrescentar que os escravos continuaram presentes por muito tempo no préprio territério metropolitano: calcula-se que, em meados do século XVIII, havia 10 mil escravos” . Os abolicionistas ingleses se horrorizavam frente ao mercado de carne humana nas colénias americanas e em Nova York? Em Liverpool, em 1766 eram colocados a ven- da onze escravos negros, e 0 mercado de “gado negro” em Dublin manti- nha-se ainda aberto doze anos depois, regularmente divulgado pela imprensa local”, O peso que o comércio ¢ a exploragao dos escravos desempenhavam na economia do pais era também consideravel. “O Liverpool Courier de 22 de agosto de 1832 calculava que 3/4 do café britanico, 15/16 do seu al- godio, 22/23 do seu agiicar ¢ 34/35 do seu tabaco cram produzidos por escravos”™. No conjunto convém levar em consideracao a avaliagdo aberta de duas testemunhas inglesas do século XVIII. O primeiro, Joshua Gee, re- * Burke, 1826, vol. II], p. 67-68 (= Burke, 1963, p. 101-102) 5 Blackburn, 1990, p. 80. Drescher, 1987, p. 174, nota 34. * Drescher, 1987, p. 170, nota 19.

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