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Religio D"Agua Eaitores Ras Syvio Rebelo, n2 15 1000-282 Lisbon Titulo: «Sem Titulo» — Es ais Revisio nica: Raq Editores sobre deseno de Angelo de Sousa © Reldgio D’Agua Eaitres, Jno de 20 Gil «Sem Titulo» rtistas Escritos sobre Arte e / Fora de Col 1. A Arte do Retrato ORETRATO Por duas vezes, a Historia Natural de Plinio, 0 Velho, se refete & origem da pintura. Nos dois casos e, em particular, no mito que des reve, idemifica-a com a origem do retrato, mito fala da invengo da modelagem em argila: «Ao utilizar também a terra, o ceramista Butades de Sycione foi primeiro a descobrit a arte de modelar os retratos em argila; passavase i ci deveu a sua invenco a sua filha que se tinha enamo rado por um rapaz; como este ia partir para o estrangeiro, ela con tormou com uma linha a somb pela luz de uma lanterna: 0 seu fez um televo que pds a endurecer ao fogo com o reste cerlimicas, depois de 0 ter secado.» Em versdes diferentes e reduzidas, 0 mito é retomado por Quint lino, Alberti, Leonardo da Vinci, Vasari: a pint a do seu rosto projes | aplicou a argila sobre 0 esbogo. eo retrato apare ‘cem ao mesmo tempo, do acto de contomar a sombra de um rosto projectada pela luz de um candeeiro ou do sol sobre uma superficie (€ a doutrina da circumduetio unbrae). Apar cae do desenho, Que a tradigo tenha retido da descrigdo de Plinio que 0 «principio da pintura» nasce do desenhio, ¢ que era mesmo ntemente, a narrativa ndo conta sendo a origem da cerdimi: quela ¢ nio este sitimo que surgia no contorno da sombra, néo le- vanta problemas de maior 1 plinio, 0 Velho, Histria Notral, XXXV. 15 8 r José Gil Podemos supor que a cerdmica constitui o suporte para tragos ¢ cores que vio completar o perfil desenhado. Por outro lado, 0 dese ho quase sempre foi encarado como uma arte de esboc0s, para pre~ paracdo da pintura. O proprio Plinio define © bom contorno como aaquele que eria a ilusdo do volume: «Porque a extremidade {do de- senho do corpo ou de uma pintura em geral] deve rodear e terminar de maneira a dar a impressao que hi outra coisa por detris dela, ¢ mesmo a dar a ver 0 que ela esconde.n? Mais ineremante € 0 to suger uma rela iki entre 3 sombra, 0 perfil e a hist6ria de amor por um lado, e a pintura por outro. See Porqué uma sombra? Desde o inicio a pintura aparece marcada pela dupla representagio: a partir da sombra, como primeira ima- ‘gem do original, ragam-se os contomos que determinam a imagem final. Pintura e retrato como representagées de tepresentagdes. Co- mo se no fosse possivel, para obter uma imagem fidedigna (s6 is- 50 interessa a filha de Butades), representar directamente 0 modelo natural. Porqué? Porque & que a semelhanga s6 se consegue «c Piando» uma cépia, ¢ no apenas observando as formas, sem re 808 a analogias, esbogos e outras mediagdes? Take omit mses preiamente com avin do eto, ‘copia em question € sewer una imagem sprosinad Dua, plo menos Ge propia aprendizagem do desea, aue prepa ptr equ, pr alguns come Fran a Ho Janda, a contém ja toda em si*); ¢ a de ligar ime Paul Valry nova gue quando se ola um roto peor czpase observa eae tea tieldade comeys com a en fiatamente 0 a 2 ders, XXX. 67 3 Fanisco de Holanda. De Pinna Amiga, Lio ICap XVI tp Casa da Moeda, Lisboa. 1981 an 4 Cale aly, Begos Dense Des, Galimard Pasis «Sem Titulo» — Escritos sobre Aste e Artistas 19 porgdes, as distincias, as formas tragadas em nada se assemelham 2s mesmas que se ofereciam a visio transparente e certira Desenhar supe a aprendizagem de uma articulagao subtil entre mao e 0 olho: a mio tem de ver e 0 olho tragar, para que a mao trace o que 0 olho vé. O mito de Plinio indica também essa apren: dizagem. A sombra constitu o meio que induz a troca de fung centre Grgios do corpo: ao contorar a sombra do rosto do amante «ecom um bocado de carvion, escreve Vasari. a filha do ceramista segue de modo seguro o caminho tragado pelo olhar. Caminho pro positadamente mal tragado, esfumado: ao dar-lhe precisio com 0 mao ensina ao olhar a tragar e, ao mesmo tempo. & 0 de- senho exacto do tragado visual que a mao vai descobrindo. Porque € que, como parece insinuar Plinio, a aprendizagem do de- senho (e da pintura em geral) comega com o tragado do rosto? Por que, como veremos, 0 rosto tem em si todas as formas do mundo. Enfim, a sombra aproxima o retrato da morte No mito, a invengio da pintura deve-se ao desejo de conservar a preseniga de um ser amado que vai partir. Pode-se associar (com Freud e uma longa tradigio antes dele) a partida & ideia de morte. Que seja uma sombra a primeira imagem detineada do retrato, mos- tra quanto este aponta jé para o reino dos mortos. Ao fazer 0 elogio do retrato de Laura por Simone Martini, Petrarca escreve que o pin tor foi ao Paraiso — onde estava Laura —.¢ ld a viu e retratou: por isso foi capaz de resttuir a sua beleza, mais pura e sublime do que num corpo incamado. (Petrarea constrdi assim a teoria do retrato idea, retrato ia alma como esséncia da criatura de Deus que 0 cor po dissimula.) De uma mancira geral, os textos sobre a fungdo do retrato insis- tem sobre a virtude que ele possui de prolongar a imagem dos vivos para além da auséncia e da morte. Mas qualquer coisa mais do que ‘uma simples representagao (uma imagem sem vida) se di no retra- to conseguido, Quando Justus Pannonius, em meados do sée. Xv ‘agradece a Mantegna pelo duplo retrato que este reatizou de sie do seu amigo Galeotto da Nami, ¢ escreve: «Fizeste 08 nossos rostos para que eles vivam durante séculos. Fizeste que cada um de néis possa repousar no seio do outro, mesmo se todo um mundo nos separa [..] A estas imagens s6 Ihes falta a voz» — ele refere-se subtilmente ao poder do retrato de conservar afectos para além do contorno, cy José Gil tempo, afectos que o préprio acto de retratar seta e era, num tem po imane a morte Um lago misterioso une a imagem do rosto& mone, © adjective talvez mais usado, na literatura sobre o retrato, para elogia a obra feit,¢ «vivo». O retrato suspende o tempo, tora presente a ausén- cia, eressuscitay 0 modelo mort, porque ofixa rma imagem «vi va». af to semethante que parece vivo. Sé Ihe fala falaros A vida do retrato€, no fundo, a ra7a0 ultima da semelhanga com © origina: © como a semethanga est li gem, tece-se uma rede subtil entre Vidvagéo conseguida no retrato, Por outro lado, nfo & por acaso que © mito de Pliio (mas tam bem a carta de Justus Pannonius) associa o por de sobrevivencia 4a imagem retrtada & sua carga afectiva, Por razdes semelhantes se construfam nos séculos xvi e Xvi! galerias de retratos de ante. passados, E hoje, nas fotografia dos entes queridos que se colocam bem & vista, ndo € apenas o desejo de uma lembranga que se pro cura, mas qualquer coisa como um suporte fino de afecto que so- breviva a passagem do tempo. Como se com o inespotivelafecto que se acumula no retrato se conseguisse uma formule magica de Sobrevivencia. Um modo singular de urdir um tempo para al tempo. ida & singularidade da ima- morte, a semelhi nga e a indi- O retrato e a morte Como vimos, uma estranha obsessdo se manifesta na admiragio ue, em multiplos textos, se exprime pela fidelidade do retrato 30 modelo: «Parece vivo. S6 the falta falar.» E as anedotas correm. has Vidas de Vasari. como aquela, sobre certo retrato de um flo. rentino, pintado por Masaccio «com um tal poder de verdade que s6 the parece faltar a fala»; como o elogio do retrato de Francesco del Pugliese por Filippino Lippi, «tio fiel que s6 Ihe falta falar» Ou no livro de Federico Zuccari®, em que se conta que am cardeal $V. Edouard Pommier.Théories du porrai, De ta Renaissance aux Lares, Gli rir 198, SF Zaccari.Widea deseuton, porte architect, Torino, 60 «Sem Titulo» — Eseritos sobre Ante ¢ Artistas ie uoetnow dian do eto de edo X, por Rael eine passa a ls i prisge horde eps 2 set Some read Cares por iene tomans pe pop pent " ‘go em que 0 elogio se arrisca a incorrer: se falasse, 0 retrato de sxaria de ser uma representagio para se transformar numa pessoa ‘va e, como tal, corruptivel e mortal. Perderia assim 0 seu poder Sobrevivencia, Nao ¢ pois da fala que earece: pelo contrrio, de no falar the advém a virtude de ser «vivo», quer dizer, semelhante fie} a0 original. No entanto, € preciso que & nente da fala para se legitimar totalmente. Entre an a gem e 0 seu falar iminente situa-se 0 poder de tornar «viva» a ¢6 pia do modelo ausente. Como se a imortalidade de que ela goza ‘ocupasse um tertitério estreito bordejado. por um lado, pela ima ‘gem «morta», sem vida do retrato falhado: e, pelo outro. pela ima~ a € portanto mortal, A primeira & mareada smelhanga chegue aquele limite imi ude da im: ela mez. a segunda pela pay nt as dis, a do, «ap Fencia, a iminéneia da fala surgem como critérios do retrato vivo. "A vontae derepresentar 9 movto nia imagem ie di pressio devia revela mais do que uma preocupagao com a eros fo temp que eva a more. preocuagao &deordem met ius mas dc. a po seu proprio sci endentemente ‘Um tempo svivonO que esconde a admmiragho pero Tous WOT estético-metafisica em sobreviver realmente & mor a obsess: ne & mote. Nao numa representacd0, no na imaginagao ou na meméria, ma ‘num plano metafisico de uma realidade outra. Num plano real — pe Jo menos tio real como aquele em que as pessoas estio vivas porque falam. O grande medo é o de nao conseguir construir esse tempo no 2 José Gil fazer do retrato — é que este falhe porque se ndo chegou aquele pon: to iminente do «quase falar». Porque o retrato niio é mais do que um dispositivo particular de fabricagio de um tempo real eterno dentro do tempo. A obsessio & metafisica porque esté trato implica uma meta Porque a estética do re- a, Mais uma vez: 0 medo €0 de que o re- {rato ndo agarre essa vida eterna que s6 ele tem vocacio para captar, S6 ele? A pintura, toda ela, ndo cria também esse mesmo tipo de intemporalidade temporal? O rosto constitui uma zona corporal privilegiada de comunicagio € de expresso. Ora, 0 que af se exprime mostra-se dissimulando- -se: porque nao é directamente visivel, o interior traduz-se no exte- rior da cara em gestos. tragos, movimentos, olhares. Que também. traem 0 que se quis «dizer»: 0 interior esgueira-se, o que faz com ue 0 exterior o exprima necessariamente em equivoso — mesmo quando a expressio é parcialmente fie! a0 expresso, C sortiso terno que vemos naqueles labios & sempre mais ou menos, outra coisa ainda, diferente da emogao interior que o fez nascer. Entdo 0 rosto manifesta, de modo eminente, o esgveire, a esqui- va do interior & expresso directa. Ora, em certo sentido, a morte como acontecimento inicia © movimento contrétio a essa esquiva do interior. esgueire mostra a impossibilidade da presenga — ou que a pre~ senga s6 pode ser expresso. A morte inverte o processo do esgueire -equivoco, levando-o as suas siltimas consequéncias: retirando a0 corpo a presenga, nao deixa mais nenhuma possibilidade de esguei- re € de expresso. No entanto, liberta-se assim a eventualidade de ma percepgio directa do interior: da alma, do espi verdadeira presen to. Essa seria a — tal como surge nas intuigdes intelectuais dos filésofos, nas visdes do poeta (Petrarca e o retrato de Laura) e dos misticos, ¢ em miltiplas experigneias esotéricas, Ter-se-ia aqui uma primeira expl a morte. Tal como esta, aquele expo 0 do lago que une o retrato vista o imterior sem equivo- cos; diferentemente da morte, 0 retrato apresenta 0 interior como cle 6, mas através dessas mesmas mediagdes (tragos, expresses) que no rosto natural o dissimulam, Compreende-se a fascinaga que exercem aqueles retratos egip- clos da época helenistica e romana conhecidos como «retratos do. «Sem Titulo» — Escritos sobre Arte e Artistas 3 Fayum» (do nome do local privilegiado. EI Fayum, onde foram en contrados, no Egipto). Pintados nos sareéfagos (ou Ii encaixados) representam os rostos dos mortos, ou melhor, dos vivos que passa~ Presenga «muda», absolutamente enigmitica: como se, retirando-se Resistem, resistem infinitamente.»? 5 ¥. o belo listo de Jean-Christophe Baily, Laporte traits de Fayoun, Hazan, 198, 9 dem, p. 2. José Gil Eis e © que une 0 retrato Fayum & morte: 0 retrato do vivo, ‘agora mumificado, transporta para o espaco da impresenga e do ine~ esquiva. Se os ros. ta dizem é porque nada hai jé a dissimular: e se neles se pode ver tudo é porque a verdade se anuncia (para um outro mundo) sem palavras. Contrariamente aos fantasmas que niio tm rosto (a cultura egip- cia nao comporta fantasmas ou mortos-vivos), oferece-se aos mor tos uma superficie de inscrigao nao de uma expressao isempre equi- voca), mas do seu verdadeiro rosto, aquele que permite ao vivo perdurar depois da morte. Assim o retrato Fayum cria a eternidade, enquanto dispositive da construgdo de uma presenca eterna, quet dizer que nao mais se desfaz, que nio desaparece, que nao se gueita mais. (Porque a morte também o esgueire definitivo — 0 cadhiver deixa de ter expressio, o rosto desvanece-se da face, 0 terior escapa para sempre 2 expressio exterior.) O retrato Fayum transforma a alma do morto, ou melhor, propicia a sobrevivéncia de vivo num duplo que viva eternamente: se a alma ‘eterna obtém um rosto, nao é para se exprimir através dele como um. ente vivo, mas para possuir uma presenga sem esquiva. No mundo dos mortos nao hd esgueite nem equivoco: esté af a verdade toda alma eterna (ba) oferece a verdade (sem pre nga); @ rosto ofere- ‘ce a presenga (sem equivoco nem esgueire). O retrato ayum opera ®@ passagem de uma presenga sempre equivoca, sempre episé ida, esquiva, para uma presenga permanente, continua, eterna A morte como passagem para um outro mundo consiste numa transformagio do rosto: de um rosto que exprime equivoca e radicamente a alma, para um rosto da alma que espo- alma individua da no além, que nio a exprime mas Ihe dé a consisténcia de uma bresenga singular. Por isso aqueles retratos se calam e s¢ envolvem ‘hum siléncio para dentro, Agora 0 rosto é 0 tecido, compoe a tessi- tura propria da alma silenciosa — a morte realiza a nossa verdade. Mais do que a fixagdo da representagio de um vivo na etemnida- de, como se afirma comummente, 0 retrato (mostram-n0 os rostos do Fayum) realiza o poder extraordinirio de construir a eternidade como tempo sem fim de uma presenga una e singular. Por outro lado, compreende-se © que faz da percepcio do ‘uma visdo total, tinica rato -Sem lacunas. Como se, mais do cue em qual- «Sem Titulo» — Escrito sobre Arte € Artistas quer outro tipo de pintura, ele manifestasse uma eypécie de comple: tude absoluta, auto-suficiente. Ai jé ndo se exprime um fundo que nilo pode apresentar-se nu, sem miscaras, como acontece na percep: ‘Gio de um rosto real. Dali desapareceram os sinais substitutivos. 0% tragos de uma expressividade que esconde. Isto acontece ~ quando eles so conseguidos — mesmo nos retratos destinados a sobrevalo- Fizar as virludes, 0 poder, 0 estatuto da personagem. Agora, 0 que es- conde revela e desvela o escondido, Aquele rosto,em superficie, ¢ 0 fundo, a expressio confunde-se com o expresso, a aparéncia com a realidade. Esta surge com a verdade do retrato. Porque & o rosto da alma — quer dizer, de um morto, mesmo quando o retrato é de um vivo — que irrompe assim para a surpresa do olhar. «$6 Ihe falta falar»: como compreendé-lo entio se, como © mos- tram os retratos do Fayum, a forga de presenga do retrato the advém do siléncio em que se recolhe? Silencio que se situa num lugar de passagem, como vimos: entre a mudez ¢ a fala (c, segundo os egipcios, entre a mudez da morte © ‘anova fala no outro mundo: um dos ritos de passagem consistia em abrir a boca e os olhos ao morto), numa zona de iminéneia da irrup- 0 da palavra, Ora, esta zona marca a pregnancia da imagem niio designada ainda pela linguagem, da imagem sem nome, a imagem- -nua, Se 0 proprio da expresso nao-verbal é um dizer que escapa por definigao & palavra, nem por isso a imagem-nua deixa de querer absolutamente falar. Como se a visdo de uma imagem de que se ig- nora o sentido apelasse inexoravelmente para a significagio verbal; como se aspirasse naturalmente & linguagem, 4 maneira de um re- cipiente em que se fe7 antes 0 vazio, e que, ao abrit-se, aspira 0 ar {que o vai encher. Ha um momento, na evolugio da crianga (por volta dos dois anos), mesmo antes da aquisigdo da fala, em que os minimos ges- 105, as mais infimas entonagdes da vor. as declinagdes microscépi- cas do olhar tomam tum sentido tho forte que dessa erianga, sim, se pode com verdade dizer: «s6 Ihe falta falar». As unidades m io discretas, que se estendem num continuo expressive nio-verbal so, segundo o termo leibniziano, «pequenas percepede ‘Ges imperceptiveis, «insensiveis», que escapam & vista, So uni dades intensivas, E, porque se dao num continuo, trazem com elas lum mundo («o passado, 0 presente € o futuro», diz. Leibniz). cd Iosé Gil Ora, se bem que toda a imagem-nua seja um foco emissor de Pequenas-percepydesexistem focos mit ou menos reo, imagen -fonte mais ou menos poderosas. No caso da erianga, é no periodo, mesmo antes de adquitir a fala que ela manifesta uma maior ex- pressividade niio-verbal (por razdes complexas, que tém a ver com © trabalho de retroacgao prévia da linguagem sobre 0 material nao -verbal). Nesse momento ela atinge um maximo de candura © es- Pontaneidade: como se a pulsdo da fala, ainda entravada, transbor- dasse por todos os gestos (em principio, a crianga acaba de ganhar © controlo da marcha). De ver uma tal espontaneidade se diz, ma ravilhado: «Como ele & vivo!» Oretrato, quando é «vivo», reactiva na imagem do rosto esse mo- mento de mudez.intensa da inféncia, em que 0 rosto vive por si pintor consegue levar a mudez até & fronteira iminente da fala produzindo o maximo de pequenas percepgdes invisiveis que ba ham o rosto numa atmosfera intensa, que vem de «dentro» e nos envolve no mesmo pulsar. Assim se fabrica a eternidade de um rosto, com a prépria ma ia da morte. Porque a morte espreita no extremo limite da mudez, beira da fala. De tanta vida que o pintor dé a um rosto, este arrisca-se a tornar-se mortal, porque pertencente a ura mortal. Ou. pelo contririo, se, diante de nés uma cara se fecha, se de repente a expressividade dela desaparece, se 0 rosto fica branco ¢ liso, é co- mo se toda a vida dele se esvaisse. F a mudez que recusa a fala, & beira da morte. Entre uma e outra mude7, entre a vida pujante € a morte sem rosto, estende-se um fio invisivel, fugidio e sem espes- sura que o pintor tem de agarrar. Porque de um rosto se pode sem- pre retirar a vida; porque 0 movimento de esquiva pode a cada tante tornar-se radical: a morte, como titima esquiva, espreita num Possfvel sempre aberto (€ 0 que nos mostra um dos tiltimos auto -relratos de Picasso, dos anos 70, com 0 contorno vago de uma ca- veira e que 0 pintor comentou, dizendo: «Parece-me que hoje con- Ha uma outra razio para que o retrato constitua uma miquina de fabricar um tempo eterno que {uta contra a morte: & a facto de ser lum acumulador de um certo tipo de forgas que tendem a inserir 0 espectador numa rede colectiva de presengas. Por isso 0 mito de Pli- «Sem Titulo» — Escritos sobre Arte e Artistas 7 nio da origem do retrato liga o desejo de fixar a imagem do rosto 20 amor. Porque é que as pessous proximas da morte querem tanto ser anmia~ das? O ser amadas, naquele momento, torna-thes a separacdo menos dura; mais: convence-as, talvez, de que qualquer coisa da sua vida se salva da morte, como se 0 estabelecimento de um lago indestru tivel de amor com um ser vivo as mantivesse presas a0 lado de ci da vida, aos que ficam; e com eles, na vida, elas Fiquem também Morre-se menos, quando se & acompanhado de amor, ‘A proximidade da morte, na velhice e na doenga, traz consigo @ solidao, 0 desapego pelas coisas da vida: é um abandono do mun- do, do espago e do tempo que passam a existir e a correr fora de nds. No Retrato de Velho, da Colecgao Gulbenkian, Rembrandt concentra no olhar € nas maos a solidao ¢ o afastamento do mun do. Olhar ainda atento mas retrafdo numa espécie de impoténcia do corpo que quase desaparece sob as capas ¢ mantas que o cobrem, As mios seguram um pau que The serve de bengala; seguram-no com 0 gesto de quem ainda nele se apoia ao andar, se bem que es- teja agora sentado — ¢ a vulnerabilidade toda da velhice aparece nesse pormenor. No olhar expectante passa 0 afastamento de um corpo ji incapacitado para a acedo. O retrato inteiro vive da tensio entre esse olhar que resiste, ¢ o tempo que separa uma alma do mundo: entre a serenidade «espiritual» do rosto, e 0 cansaco fisico da velhice. Retrato de um velho que ndo se quer deixar abandonar pela vida. E, porque € um retrato — e de Rembrandt — cria um la ¢0 afectivo poderoso entre o que o olla e aqua frga de vida da b siste e subsiste Ha no retrato uma forga magica que equivale @ um Contacto Teal ‘com 0 outro representado, uma espécie de acco que é, primeiro, um encontro, depois. um acontecimento, enfim, um atar de elos (que le va.a didlogos interiores com a imagem). «Forga magica» nao ¢ uma Tmelafora, mas tndtca um eTeto Teat du imagen! do rosto. a Torga que desencadeia age realmente, vivifica, circula. E uma forga de afecto, retrato nfo nos fala apenas, no seu «quase falar»: insere-nos nu- rma vasta rede colectiva de outras forgas de afecto. Porque 0 retrato ‘az no olhar, na boca, nas rugas, nas infinitas pequenas percepgies que dele emanam, um, dois, virios mundos. Um retrato é sempre uma multidao. ae 8 José Gil Dai, sem diivida, a razio da existéncia daquelas galerias de re- tratos que jé evocémos: para além de motivages ide toda a espé- ci: Luis I de Franga tinha uma galeria de retratos das stuas aman tes) relacionadas com 0 poder, também se quer controlar poder {que circula entre os mortos € os vivos através do afecto que une uns 208 outros. Um caso, que vale como contraprova: D. Juan. A sua galeria é uma lista eserita de nomes, e no uma série de retratos. Aqui, con- trariamente & imagem, © nome no meio de uma série perde a sui singularidade e a posigdio que desfruta na rede social, ganhando um valor trivial. anénimo, igual a todos os outros, como se fosse de nin guém. Longe de ser uma fonte de afecto, cada nome é uma recor: dagdo seca num inventirio de sinais. Ao invés do retrato, o nome puro sinal de um ser ¢ de um acontecimento (que se negam como ser e acontecimento). D. Juan joga directamente com o esgueire € 0 equivoco, levando-os a um extremo limite, retirando deles um be- neficio, mentindo, ludibriando (EI Burlador) — fazendo como se a verdade estivesse sempre presente, com a consciéncia efnica de que cla constitui o grande equivoco, D. Juan comporta-ss nesta vida co- ‘mo um retrato Fayum. como um ser cuja acgio visa a construgao da etemidade (na repetigao indefinida do mesmo acentecimento, do ‘mesmo tempo). O que esconde 0 avesso do sentido dessa acgao, marcada pela radicalizagio da esquiva — na morte, Por isso é um retrato (a estatua do Comendador) que o precipita no castigo infer: nal ¢ na morte, A questo da semelhanga, ¢ 0 rosto Um problema essencial dominou, desde sempre, as doutrinas ¢ 0s debates sobre o retrato: a relagdo de semelha © modelo, centre a imagem ¢ Em todos 0s casos, 0 que estd em jogo & a natureza do referente’ © retrato deve ser fiel a qué? Conforme a resposta, definiam-se sa- beres e téenicas diferentes para atingir a méxima semelhanga. Por exemplo, se o referente era 0 rosto do sujeito empitico, podia-se exigir 0 estudo da anatomia ou da «physiognomomay; mas se era uma Ideia (de beleza, de virtude, de majestade, ete.), requeriam-se «Sem Titulo» — Escritos sobre Arte e Artistas 2 ‘outros conhecimentos (de tipo moral e metafisico) ¢ outras manei ras de representar (alegorias, simbolos) 0 retratado. A grande dificuldade, qualquer que seja a concepgio adoptada, vem da dupla natureza do referente: uma representagao de uma re presentag2o, Porque, se se tratava do modelo natural e, por mais que se «copiasse literalmente, trago a trago» (definigao de risrarre do sée, XVI), ou que se caracterizasse 0 retrato como uma «figura tirada do natural» Filippo Baldinucei, sé. xvi), 0 pintor esbarra: va sempre com o facto de que o rosto esconde (esgueite), reen viando para uma dltima instancia «interior» Se se considerava um modelo ideal, como nas teorias platénicas ‘ou neoplaténicas, a dificuldade era ainda maior: através de que sig. nos, indicios, marcas, se reconhecia a semelhanga com esse mode- lo invisivel? Quando se comparava o trabatho do artista & obra da Natureza ou de Deus (como nas teorias cristis da origem do retra (o: Cristo, primeiro pintor imprimindo a sua efigie na santa Veroni: cca; ou S, Lucas evangelista fazendo o retrato da Virgem depois de uma visdo: ou como Francisco de Holanda que descreve a criagio ‘do mundo segundo a Biblia como pinturas sucessivas de Deus. pri: meiro e «perfectissimo pintor»!), indicava-se ndo s6 um referente origindrio (e, mais uma vez, o pintor era confrontado com a repre: sntagao de uma represent: ‘methanga que valia como modelo do pintor: era preciso fazer como Deus ou a Natureza tinham feito. Mas como se assemelhar & seme- Ihanga absoluta que guiava a mio do Primeiro Pintor? Em ambos os casos, as concepgdes do retrato «auténtico» deixa- vam por definir a maneira, propriamente técnica, de se aproximar do modelo invisivel. Porque a invisibilidade do modelo, obscure cendo os principios das regras prescritas, implicava, para o pintor, um circulo vieioso: para ser fiel era necessério copiar 0 modelo in- visivel, e portanto. conhecé-lo previamente; mas $6 0 resultado do acto de retratar deixava manifestar a sua presenga (que ndo se mos. {rava no rosto empirico). $6 no fim do processo se podia le autenticar, verificar 0 que devia ser dado (visivel) no comego, co: ‘mo garantia da verdade do processo, Como saber enti que aquele retrato é realmente fiel? indria de se WF de Holanda, op it, Cap. 1, «Como Dens fo pintors 30 José Gil Paradoxalmente, o quadro final ostenta uma evidéncia, imediata- ‘mente constativel sem justificagdo, que permite ao espectador afir- mar a fidelidade ou infidelidade ao modelo invisivel, sem cair nas aporias do que se poderia chamar 0 «jujzo de gosto da semelhanga» do retrato, Examinemos mais de perto o que subjaz a esse tipo de evidéncia Num Salo de 1767, Diderot dirige-se ao seu préprio retrato, pin: {ado pelo seu amigo Michel Van Loo que ele critica por nio ter sa- bido restituir 0 seu caricter mutante e contradit6rio, se bem que te- nha feito uma imagem «semelhante»: «Meu bonito filésofo [...], que dirfio os meus netos, quando compararem as minhas tristes obras com este sorridente, lindinho, efeminado velho amaneirado? Meus filhos, previno-vos que nao sou eu. Eu, num s6 dia, era sere- no, triste, sonhador, temo, violento, apaixonado, entusiasmado: mas nunca fui como vooés me véem ali. [...] Tenho uma mascara que cengana o artista; ou porque ha nela demasiadas coisas misturadas; ‘ou porque as impressdes da minha alma se sucedern muito rapi O retrato fixa uma percepeao necessariamente iatuante. E ver- dade que um rosto possui infinitas expressdes, Mas também & verdade que 0 retrato nao oferece apenas uma expressao entre ov tras, mas parece revelar 0 «ponto de vista de todos 08 pontos de vista», uma espécie de objectividade absoluta da subjectividade (0 que consttui, sem duivida, um dos factores de airacgio do pin- tor pelo auto-retrato). Ao mesmo tempo, essa perspectiva absolu- ta coniém em poténcia as maltiplas expressdes en que se pode manifestar ROMANO OTTO I PE TT TNE oe TENET «io mimética. Como vimos, é sempre, jd, arepresentago de uma re- resentagio. A prépria percepgo do modelo supde essa reduplica- «0, O modelo natural nfo é uma pedra, uma érvore ou um animal 611 mesmo um corpo (humano). Est para além disso: € representa: «fo, imagem que se dé no equvoco de tm mimetismo que falha sempre necessariamente (e necessariamente qualquer coisa dele se salva sempre). Qual o modelo desta imagem? Qual « original destes sina express OOTOTNOT OUST OMATSTO TSE RTT DTS 11 der, Salons, Il, ed Sean Seznec, Pasi, 1984, pp. BI-83. «Sem Titulo» — Escritos sobre Ante e Artistas 31 no modelo. O trabatho do artista con: sistird em restituir numa imagem visivel « modelo invisivel. Mas nao ¢ isso 0 que acontece com toda a pintura? Certamente, mas com ‘uma diferenga: enquanto o invisivel da paisagem ndo esté na per- cepcio trivial, ndlo existe percepgao de um rosto que no indique o nao desvelado. Nao hi percepsao trivial de um rosto. E porqué? Porque o atravessa uma instabilidade permanente, uma flutuagao de formas que ndo assentam num molde rigido. Dois ‘elementos vém contrariar a imobilidade do rosto: um vazio que per- corre as suas superficies lisas, ¢ se abre nos orificios para um sem fundo sem nome; e um investimento afectivo que no para de mo- dificar a percepgao, Nunca se olha para um rosto com indiferenga Se surge indiferenga ¢ porque esta se construiu, como recalcamen. to, autismo ou ruptura voluntéria da relagdo, Mesmo nestes casos a percepcio do rosto é afectada — agora por uma falta de afecto que lio traz por isso uma objectividade maior a visao, vazio do rosto — que faz dele um buraco negro — assim co, ‘mo a relagio de afecto imprimem as formas da cara um movimen- to incessante. Movimento com um duplo vector: virado para fora e atraido para dentro. A instabilidade microse6pica que afecta um ros- to mesmo impassivel emite sinais para o olhar do espectador que o puxam na direcgdo do interior, buscando a sua causa. Este facto desloca definitivamente 0 olhar do espaco objective para o mergu- Ihar num outro espago para além da pele ¢ dos érgdos (quando se olha 0 nariz, a boca, os olhos simplesmente, no se olha 0 rosto € thar), preciso, pois, uma arte para olhar um rosto. Para olhd-lo olhan: do a sua superficie, O artista consegue-o captando o invisivel ao ni- vel da face. O olhar comum n 2.0 rosto, mas desliza sobre as suas formas tentando decifrar-thes 0 sentido recorrendo as pal aos gestos, ele prprio tantas vezes enredado na forga de indaga. ‘¢20 do outro othar. Nao hd. pois, percepcio objectiva de um rosto porque. de certo mo- do, 0 rosto nao existe, ndo é uma coisa, nem sequer uma imagem es- titica e plena, apenas um lugar, um territério onde tudo se insereve e de onde tudo foge, dentro ¢ fora do espago objectivo. Um mapa mabil José Gil (uma paisa sem em que se desenham tragos de todo © tipo, psicolégi cos, sociais, histirioos; e um territério de onde esté pronto a escapar todo o sentido — 0 rasto como assignificdncia, face sem Srgiios como (05 rostos das camponesas do Mal&viteh ps-suprematista). 0 rosto ins- taura assim um outro espago, ropoldgico, onde o sitio de cada reo, ruga, sinal, poro. pélo, mucosa, néo se define por cocrdenadas objec- tivas, mas pela intensidade e dindmica das suas forgas. Em Mille Plateau, Deleuze ¢ Guattari tem uma ela ideia sobre 0 sistema corpo-rosto: «A cabega ests compreendica no corpo, mas nio 0 rosto. O rosto & uma superficie: tragos. Hinhas, ragas do r0s- to, rasto comprido, quadrado, triangular, 6 rosto € am mapa, mes: mo se se aplica € se enrola num volume, mesmo se envolve ¢ bor deja cavidades que 56 existem enquanto buracos. Mesmo humana, 12 cabega no € necessariamente um rosto. O rosto nio se produz seni quando a cabeca deixa de fazer parte do corpo, quando ela deixa de ser codificada pelo corpo. ..»!2 E isso mesmo 0 que nos diz.0 quadro, horrivel de estranheza, de Magritte, A Violagdo. Violagdo porque o rosto se toma corpo (¢ es- te se «rosteifica», se pettfica em rosto): violacao porque se contra- csmaga 0 movimento ineessante de esquiva da superficie do rosto. fixando-0 como puro prolongamento do corpo. Violagio pic- tural: € 0 avesso do retrato que af € figurado, Porque o rosto passa 4 pertencer ao corpo — quando ele s6 devém rosto escapando a0 corpo. (Mas, 20 mesmo tempo é todo 0 corpo que se transforma nu- ima espécie de rosto monstruoso, crivado de drgios,como o viu pe- netrantemente Magritte.) Em toda a violagdo real, é 0 sexo-rosto que & violado, apagado, bhumilhado, jd que 0 sexo defxa de ser rosto,¢ 0 rosto passa a ser um sexo (um corpo). Todos os devires reciprocos do sexo e do rosto se encontram paralisados, corporalizados, paradoxalmente desumani zados no seu movimento propriamente humano de fuga a0, ¢ rete racao do sentido, Nenhum animal tem rosto, s6 0 homem adquite lum mapa-rosto que the permite escapar sempre tanto 8 pura corpo: ralizagio como & pura significagdo (devir-humano, devir-animal do rosto como o figuraram as estampas dos fisiognomistas, de Della Porta a Lavater) 126. Deleuze, F. Gusta Mile Plateaus, Minuit, Pais, 1980, p 208, «Sem Titulo» — Eseritos sobre Arte © Artistas 3 trator de Francis Bacon) ara fora sihificago deforma rape até o dinar imeconectvel ora para dentro des, fxando-o doresoaesquiva) o movimento que ofr esapar a nica assim € poplar de semelhang 0 Teta que ox repnsas rlagio que liga © modelo orsiro a cpiasesivel no sca semanya ota aloga deforma. ms oar opcgico da neve da semelhanga Ou sea: aint dades fora primes ie se topoligica ds fora de dierencagio ede unico do 0 to de dessubjecivagaoe de subjetvagan, de desumanizagaoe de ste lugar d itreconhecivel quando perco 0 rosto. Mas como atingir esse lugar topol6; disrupglo e de integragao das formas do rosto? ‘Abordemos a questio por uma outra perspectiva. O paradoxo maior da expressdo (num rosto que a esquiva) & que o que Se ex- prime pertence também ao proprio expresso. Nao se pode afirmar {que a ternura que aquele olhar denota existe isolada ¢ previa mente, enquanto instincia jé dada, completa, formada antes da forma que a manifestard. E que aquela ternura é qualificada pela forma do olhar, ndo & qualquer ternura, mas precisamente a sin~ gular ternura que se abre naquele rosto, com aquelas formas ¢ ex- pressio E no proceso de manifestagdo que se constr6i aquela termura (que, no entanto, preexiste sob um modo pré-semidtico, bloco par= cialmente indiferenciado de emogées). O processo de manifestagio ou expressio singulariza, individua. A manifestacao ico, de nese das forgas de Er José Gil Que se poderia dizer de uma emogio no express, nfo traduzi- dda num trago do rosto, em nenhum gesto do corpo? Nada. E, no en- tanto, uma vez expressa, a expresso marca um equivoco essencial Porque aquele traco, olhar ou sorriso, reenvia para outra coisa «pa- ra aquém da pele, ue se esgucira no fundo do rosto — por isso es- tc tende para a superficie lisa da assignificago, pera a imagem-nua. Deste duplo regime da expresso, semidtico e pré-semidtico, nas- ‘cem as pequenas percepgdes. Melhor: € da sua tensio, do seu in- cessante confronto que se constitui um novo regime transsemictico de percepgdes minimas. Porque estas surgem quando ma des zgom se desenha entre o trago macrosc6pico significante, ¢ a atitude corporal, o contexto gestul que niio corresponde a significagio vi- sivel, Quando ao sortiso de termura escapa um fluxo que ensom- bra €o puxa para a auséncia de sentido. Uma ouita pereepgo bro entre os dois niveis perceptivos. Ora, toda a captagio dos sinais de um rosto arrasta consigo uma desfasagem desse tipo (por ausa do processo esgueire-equivoco), compondo-se sempre de pe- quenas percepedes. E porque hid tensio e diferenca, as pequenas pereepgdes agem como forgas, melhor, como se um fluxo intensivo as impusesse ao olhar. Mais do que tragos macroseépicos, um natiz de alcodtico, uma boca larga, uma longa barba; mais mesmo do que (no) se dé na impresenga para a qual esses tragos remetem (o fun~ do pré-semistico da alma, o informe, 0 inominév, o irepresenté- vel) — 60 intervalo, a inadequago entre os dois planos que forma a singularidade da expressio daquele rosto. Inadeyuagio transmit dda através do movimento de pequenas percepedes (de vibrags ritmos de cor, de luz, de espago) Movimento que vem das forcas diferentes que puxam, umas, 0 rosto para o vazio, a superficie lisa, 0 «deserto» (wa deserto que se estende entre dois olhos», dizia Giacomett),a auséncia de humani- dade e de si: eas outras, para a codificaglo ou sobrecosificagio do Rosto com toda a carga de sinais,simbolos,alegorias, formas que 0 possam fixar definitivamente (como os retratos de Arcimboldo,uti- lizando cédigos convencionais, vegetais ou animais, entre 0 virtuo- sismo, a ironia e 0 grotesco — 0 que os leva também, paradoxal ‘mente, para o lado do inumano ¢ da auséncia de rosto), O primeiro movimento e a desfasagem entre os dois s4o produto- res de imagens-nuas — e, portanto, de pequenas-rercepedes. Estas «Sem Titulo» — Escritos sobre Arte ¢ Artistas 35 so pois elementos intersticiais em dois sentidos: no sentido leibni- ziano — intercalam-se entre duas ou varias macropercepedes: € no sentido de que nos» do intervalo, do vazio, da diferenga dio-se num continuo infinito que constitui um bloco de Forgas, (© que se vé quando se julga captar 0 sentido de um rosto? Nao 0 Conjunto de sinais expressivos visivels, ndo o fundo informe invis yel ou 0 «deserto> & superficie, mas a curva que desenha o con rnuo das pequenas percepgées. Percorre-se a curva das pequenas percepcdes invisiveis, a sua tens2o propria, os trajectos que as for- 628 abrem e inserevem nas formas. Se a obra é conseguida, o olhar do espectador v8 a aura desse percurso nos tragos e cores visiveis ‘como se agora cada elemento do rosto Se encontrasse investido de uma vida interior. © que di a ver oretrato € a forma de uma forga. A forma invisi vel, mas extraordinariamente pregnante, da intensidade com que uum rosto nos olha e que o nosso olharacoihe. Ela incama e dime: diatamente 0 sentido da figura (assim como 0 seu nao-sentido). Pode-se entio falar de «retrato fiel». Se o pintor busca afinal a curva das forcas duplas que puxam os sinais do rosto ora para 0 branco da auséncia de rosto, ora para o Rosto codifieado, & ela que marca o lugar topoldgico da génese dessas for ‘que no consttui um sitio, mas um espago onde nasce a «semeihanga>, ou seja o tragar da curva-forma-de-forgas especifica da singularidade captada. ‘Nao se trata ji, para o pintor, de assemelhar, mas de devir. O de vir impitea a incorporagao de intensidades alheias: para obter a «se melhanga> do retrato, 0 artista entra num devir-outro estético. in- duzido pelas téenicas e matérias que vai empregar. E 0 devir-outro €0 desposar das forcas ¢ intensidades do retratado que ele captou. metabolizou, em que ele se transformou e as quais deu uma forma {As aporias da semelhanga desfazem-se: ndo & mais questao de re lagdes entre formas, mas de osmose de forgas: as intensidades do artista ¢ as que ele apreende na superficie de um rosto. Que nao se confunda osmose com sintese. A primeira manté nivel microscépico as diferengas internas da percepeao, €as infimas rmoduilagies das forgas que a agitam. Contrariamente a0 que pare- ‘ce, ndo é a impressao de unidade que fascina no Rezrato de Ratton. de Lawrence (da Colecgio Gulbenkian): € que sob esse unidade u José Gil Que se poderia dizer de uma emogio no express, nio traduzi- dda num trago do rosto, em nenhum gesto do corpo? Nada. E, no en- tanto, uma vez expressa, a expresso marca um equivoco essencial Porque aquele traco, olhar ou sorriso, reenvia para outra coisa «pa- ra aquém da pele, ue se esgucira no fundo do rosto — por isso es- te tende para a superficie lisa da assign para a imagem-nua. Deste duplo regime da expresso, semidtico e pré-semidtico, nas- ‘cem as pequenas percepgdes. Melhor: € da sua tensio, do seu in- cessante confronto que Se constitui um novo regime transsemitico de percepsdes minimas. Porque estas surgem quando ma desf gem se desenha entre o trago macrosc6pico significance, ea atitude corporal, 0 contexto gestul que niio correspond a significagio vi- sivel, Quando ao sortiso de termura escapa um fluxo que o ensom- bra e 0 puxa para a auséncia de sentido. Uma outra percepgio bro entdo entre os dois niveis perceptivos. Ora, toda a captagao dos sinais de um rosto arrasta consigo uma desfasagem desse tipo (por ausa do processo esgueire-equivoco), compondo-se sempre de pe- quenas percepedes. E porque hd tensio e diferenca, as pequenas pereepgdes agem como forgas, melhor, como se um fluxo intensivo as impusesse ao olhar. Mais do que tragos macroseépicos, um natiz de alcostico, uma boca larga, uma longa barba: mais mesmo do que (no) se dé na impresenga para a qual esses tragos remetem (o fun~ do pré-semistico da alma, o informe, 0 inominév, o irepresenté- vel) — 60 intervalo, a inadequago entre os dois planos que forma a singularidade da expressdo daquele rosto. Inadeyuagio transmit dda através do movimento de pequenas percepedes (de vibragdes de ritmos de cor, de luz, de espago) Movimento que vem das forcas diferentes que puxam, umas, 0 rosto para 0 vazio, a superficie lisa, 0 «deserto> (wo deserto que se estende entre dois olhos», dizia Giacometti), a auséncia de humani- dade e de si: eas outras, para a codificaglo ou sobrecodificagio do Rosto com toda a carga de sinais, simbolos,alegorias, formas que 0 possam fixar definitivamente (como os retratos de Arcimboldo,uti- lizando cédigos convencionais, vegetais ou animais, entre 0 virtuo- sismo, a ionia e 0 grotesco — 0 que os leva também, paradoxal ‘mente, para o lado do inumano ¢ da auséncia de rosto), O primeiro movimento e a desfasagem entre os dois s40 produto- res de imagens-nuas — e, portanto, de pequenas-nercepedes. Estas «Sem Titulo» — Escrtos sobre Arte ¢ Artistas 35 so pois elementos intersticiais em dois sentidos: no sentido leibni- ziano — intercalam-se entre duas ou varias macropercepedes: € no sentido de que nos» do intervalo, do vazio, da diferenga dio-se num continuo infinito que constitui um bloco de Forgas. (© que se vé quando se julga captar 0 sentido de um rosto? Nao 0 Conjunto de sinais expressivos visiveis, nao 0 fundo informe invist vel ou o «deserto> & superficie, mas a curva que desenha o conti- rnuo das pequenas percepgées. Percorre-se a curva das pequenas percepcdes invisiveis, a sua tensdo prépria, os trajectos qu 68 abrem e inserevem nas formas. Se a obra 6 conseguida, 0 olhar do espectador v8 a aura desse percurso nos tragos e cores visiveis ‘como se agora cada elemento do rosto se encontrasse investido de uma vida interior. © que di a ver oretrato € a forma de uma forga. A forma invist vel, mas extraordinariamente pregnante, da intensidade com que uum rosto nos olha e que o nosso olharacolhe. Ela incamna e di ime: diatamente o sentido da figura (assim como 0 seu nao-sentido). Pode-se entio falar de «retrato fiel». Se o pintor busca afinal a curva das forcas duplas que puxam os sinais do rosto ora para 0 branco da auséneia de rosto, ora para o Rosto codifieado, & ela que marca o lugar topol6gico da génese dessas forgas. Lugar que no consttui um sitio, mas um espago onde nasce a «semethanga, ou seja o tragar da curva-forma-de-Forgas especifica da singularidade captada. ‘Nao se trata ji, para o pintor, de assemelhar, mas de devir. O de vir implica a incorporagio de intensidades alheias: para obter a «so melhanga» do retrato, 0 artista entra num devir-outro eststico. in- duzido pelas técnicas e matérias que vai empregar. E 0 devir-outro €0 desposar das forcas ¢ intensidades do retratado que ele captou. metabolizou, cm que ele se transformou e as quais dew uma forms AAs aporias da semelhanga desfazem-se: ndo & mais questao de re lagdes entre formas, mas de osmose de forgas: as intensidades do artista € as que ele apreende na superficie de um rosto. Que nao se confunda osmose com sintese. A primeira nivel microscépico as diferengas internas da percepgao, €as infimas rmoduilagies das forgas que @ agitam. Contrariamente a0 que pare- ‘ce, néo é a impressao de unidade que fascina no Retrato de Ratton de Lawrence (da Colecgio Gulbenkian): € que sob esse unidade as for= 36 José Gil maciga, coerente, em que tudo surge articulado (a identidale psico- 6gica, © estatuto social, a idade, a maturidade, ¢ os tragos disso tudo no rosto € na postura), irrompe ainda um no sei qué que es- capa, uma fundura no othar, uma diferenga minima entre a comple mentaridade plastica entre a luz do rosto ¢ o negro do fato (que faz ‘com que ela seja mais que plistica, tornando-se quase ameagadora), ‘uma desfasagem tiltima que dé toda a forga ao retrato e nos faz per- guntar: mas afinal, quem & este homem? Numa palavra: a questio clissica da semelhange no retrato de set entendida a partir de uma diferenca primeira, irredutivel: a disse ‘melhanga interna do modelo revelada na inumanidade-humanidade do rosto, diferenga de si a si — que o pintor experimenta primeiro como diferenga com 0 outro (modelo), depois coma diferenga pro- pria que the permitir partir para o seu devir-outro osmético de re tratista Atmosfera, clim: subjectivagao ‘Uma das fungdes mais importantes do retrato esti ligada ao exer cio do poder. Se a semelhanga com um sujeito irdividual s6 apa: receu como exigéncia pictural tardiamente, é porque 0 poder incar- nado num individuo singular constitui uma formacio relativamente recente, na histéria do Ocidente. E mesmo no Antigo Regime, tei com 0s seus dois corpos, humano ¢ divino!, era sinda representa- do mais como a imagem de um certo poder que como a figuragio dda sua personalidade propria (melhor: a semelhanga, a fidelidade © ‘outras virtudes do retrato provinham da forca de influéncia da ma: jestade do rei sobre o pintor) No antigo to e na Roma antiga, a mascara srepresentava» 0 ‘modelo porque este se confundia com o seu estatulo politico ¢ rel i080. O faras era o deus, € no o ser em came e o3s0 com um ras to puramente humano e singular. Este tiltimo s6 se forma com a im= pregnacao da cultura egipeia pela civilizagio grega (com 0 seu «sujeito»-cidado). 3 Doutina que vin da Made Média. EH. Kantorowier. The Kings Two Bois, Pringoton Unis Pres, 1987 «Sem Titulo» — Escritos sobre Arte e Artistas 9 retrato do rei, no Antigo Regime, reproduzia, sob um outro te gime de representacao, a fungio da imagem como dispositive de subjectivagio. Como © mostrou Louis Marin, 6 através de uma rede complexa de discursos (religiosos, juridicos, politicos, filos6- cos), ¢ de imagens que se (@ lhes) respondem, que o retrato de Luis XIV por Lebrun cumpre a fangdo de ajudar a criar @ propria subjectividade do Rei-Sol, como monarca absoluto (lembre-se que ‘o quadro de Lebrun estava no gabinete do rei, inico espectador «de dircito» da sua propria imagem). O retrato do rei era o proprio rei, ‘cuja majestade infinita ndo se podia encarnar sendo numa imagem incomuptivel Conforme o tipo de poder — da nobreza, da burguesia — assim variam os procedimentos que fazem do retrato dispositivos de sub- jectivago. Na pintura do séc. xvi, por exemplo, a alegoria é um dos mais utilizados, ou a representagiio do nobre a cavalo (v. na Co lecgio Gulbenkian 0 «3.° Duque de Cadaval». atribuido a G. D. Du- pra, cerea 1728). Nos retratos de mulheres, estas eram representadas no papel de Dianas, Vénus, etc. tratava-se de afirmar um certo tipo dde mulher virginal, através de certas condigdes de subjectivagio!® Allegorias, simbolos, mitologias, mas também a maneira como se representava 0 corpo, como se dispunham as coisas que 0 rodea- ‘vam, como se escolhiam os signos para que reenviava a imagem do retratado, a organizagio do espago pictural, 0 tratamento mais ou menos naturalista ou idealizado do rosto, ete. tudo era composto para induzir um certo tipo de subjectividade. (Por contraste, 0 gran de poder de fascinagio do retrato Fayum, vem do seu despojamer to: subjectividade nua, simplesmente humana.) Pode-se considerar a historia do retrato como uma permanente tensio entre a tendéncia a dessubjectivar, singularizando 0 rosto numa «atmosfera» tinica ¢ inimitivel, e uma Forga que tende a re presentar o retrato numa «curva» ou contexto de subjectivagio (co Jificagio ou sobrecodificagao do Rosto). Hi tensdo, porque a curva 4 Louis Marin, Le Portuit du Ro, Minuit. Paris, 1981, Eo caso exemplar de eat-Mate Nate, f. Kathicen Nicholson, «The ideology of| feminine “vite the vet virgin in French eightsnth century llega porrait res, in Portraiture, Facing the subject, Joanna Wool (ed, Manehester Univ. Pres, 19857. Vind outros ensaios do mesmo lerem parca J Woodall. Si be is: he reality of status in severtenth-century Dutch potas, ulm, pp. 78-100 8 José Gil nasce da atmosfera, fonte inesgotivel de pequenas percepgdes, que no desaparecem, mesmo quando o quadro apresenta formas impe- caves, «limpas», nitidas, sem matizes. Como surge a curva? Ela surge da poeira (Leibniz) caética das pequenas percepgses que constituem uma atmosfera instivel («a Natureza & um ca0s irisado de pequenas sensacdes», dizia Cézanne). Nela esbegam-se tragos, anunciam-se pregndncias de cores, pressentem-se formas larvares. Esta indeterminagdo ténue precipita-ce de repente numa curva pre- cisa (como se diz de uma curva geométrica que exprime uma equa- <0): surgem as primeiras formas. A atmosfera ov «pocira» das Pequenas percepedes tende agora a fixar-se, definindo um clima de- terminado (ou «curvay). Ora, esta tensfio vai jogar com dois elementos do retrato: 0 rosto © a paisagem. Ora € 0 rosto que € atmosférico e a paisagem clima, ofa 0 contrério, ora 0s dois se equilibram em varios tipos de tensio. Por exemplo,na Virgem de Autun, Van Eyck faz representar uma personagem diante da Virgem que segura o Menino Jesus que © abengoa. Por detris das arcadas do palicio, vé-se una cidade, pro- vavelmente Ligge. E a personagem & Joao de Baviera, senhor de Litge. Toda a organizagao do quadro, segundo Gaiienne ¢ Pierre Francastel, teria por fim exprimir a ideia seguinte: «eu [Joao de Baviera], mandei fazer um quadro que me represeniava a mim ¢ 2 cidade, ¢ tenho sobre esta cidade um poder gue iguala 0 da Rainha dos Céus»!8. A atmosfera sagrada impregna o clima profa- no, como este (as formas do poder politico) se iguala ao clima sa srado (poder divino) através da atmosfera que vem do palicio. da cidade, e de disposigd0, no mesmo plano, das personagens profa nas e div (© mesmo se pode dizer do interior do célebre retrato de Giovanni Amnolfini ¢ a Sua muther (1434), em que Van Eyck zinta o interior para situar as personagens na sua estrita intimidade: a atmosfera do quarto corresponde 4 atmosfera do rosto de Amolfini, fixando ao mesmo tempo 0 seu estatuto social (¢ 0 retrato do retrato, em ana- _morfose no espelho oval do fundo, aparecendo como o rosto de uma paisagem, funce os dois planos num ponto de fuga, a dar para o infi- nto). 6. Galienne e Pieme Francastl, ET Reraro, Ed, Catedra, Madrid, 1988. pp. 76:80, «Sem Titulo» — Escrtos sobre Arte ¢ Artistas 39 a mesma maneira, os retébulos de Roger Van der Weyden (Co- Jec¢o Gulbenkian) introduzem elementos pagtios no retrato, modi ficando as condigdes de subjectivacio das personagens represents- das (Santa Catarina e Sao José) De maneira algo misteriosa, a paisagem prolonga 0 rosto ou pode mesmo tomnar-se oslo; € eciprocamente, 0 rosto é uma paisagem ou pode sero elemento ltimo que Ihe falta. Os dois segregam atmoste- 1s, 0s dois sio marcados por climas. So ambos mapas. [Em artistas da escola de Arcimboldo, surgem paisagens-corpos, ou paisagens- -rostos. como em Hans Meyer, e Max Emst, em Le Jardin de la France, pintando uma paisagem-mapa, com um corpo de mulher sem cabega. visto de cima, entre 0 tio Loire e o rio Indre, compreendew perfeitamente a assimilagio da paisagem a um corpo (prestes.@ {omar-se rosto) ausente, 0 rosto surge numa sugestio de mascara que baliza um territério fluente como os meandros dos rios — 0 corpo e 2 paisagem em devir-r0sto} ‘Aarticulagio rosto/paisagem no s6 tem efeitos nas condigdes de Ibjectivagao do retratado (e dos que 0 olham no retrato). Curiosa- mente, a propria historia da pintura vai-lhe reservar um papel deci- sivo nos séculos XIX € XX S6 poderemos evocar aqui breves momentos desse provesso to complexo e tio varidvel de artista para antista. Evocagao. infeliz~ mente, em tragos largo. No Renascimento, notemos apenas como a tensio atmosferalch ma se modula: a atmosfera emanava das formas do rosto, formava um clima na paisagem que se perdia no horizonte perspectivado ou no fundo sombrio, para voltar novamente em atmosfera, Em Rem- bandit, estabelece-se um equilibrio extraondinsrio entre os dois pla- nos, com a pregndncia paradoxal de ambos Mas & no séc. XIX que, com a invengao da fotografia, comega u histéria tumultuosa que desequilibra defintivamente a telacio rosto- -paisagem, com a desarticulagio da partilha harmoniosa entre paisa- gem e clima, Com o impressionismo a atmosfera tomna-se clima, ‘ganhando a pregniincia visual no quadro: as pequenas percepgbes ressaltam, as {nfimas modulagdes da luz e cor condicionam as for- mas. Nao € por acaso que Monet é também © grande pintor das sé ries: € que mas sériesa forma tende a desvanever-se, tomando-se a fi ura virtual que 0 de infinitas diferengas minimas, 40 José Gil farendo desaparecer a unidae macrosedpica da coisa visivel (si em espanol, dz-se diferencia), Como & a verdadeira catedral de Rouen, onde esté a verdade do referente? Na dissolugSo progressiva da pintura mimética ou «naturaista» que acabari na invengio da forma abstracta, a hisGria do retrato tem uma fungdo central, Depois da fotografia, 0 mmetismo do re teat pitural passa para segundo plano, rosé apanhado inter mente pola paisagem que, por sia ver, se destoseifica gradual mente. Atente-se no Retrato de Madame Claude Monet, de Renoir E tudo paisagem e cor, o rosto participa no movimento geral da at- mmosfera [compare-e com A Leitura, de Fantn-Letour (Colecgao Gulbenkian): agui a atmosfera, se bem que extraordinariamente pregnante,contémse nos limites do clima, equlfrio entte forma ¢ fora. 0 rosto toma-se um elemento da atmosfera, sem perder a individualidade. Noutros (como em Cézanne), ele tender a de- saparecer totalmente © paisagem sem rosto transfeitse-8 para a nudez da tela, Ente orost ea paisagem cessaram as trocas ¢ aS transferénciasentte atmosferas e climas, Ea individualidade de um e da outra tendem a desaparecer, em beneficio de um outro ti- po de mapa: a prépria bidimensionalidade do suparte, que surgi mais tarde. E sem diivida este o sentido profundo do Déjeuner sur Vherbe de Manet 0 bosque sombrio,contrasando com a nude branca da mi- ler, nao the responde jé como uma atmosfea ou como um mapa pelo contri é pura recusa de dislogo,atmosfera espessa sem ins crigo possivel paisagem vestia eujo fato opde uma barrera 20 rosto e nudez. do corpo feminino, como bem compreendeu Picas- s0 que a desnudou. descascando as drvores. O Déjeuner sur I'her ‘be marca a ruptura da articulagdo rosto-paisagem: doravante a os. ose, a contaminagio total do corpo ¢ do rosto pela paisager como nas Baigneuses de Cézanne, depois em Seurat, Bonnard ¢ tantos outros —.¢ da paisagem pelo rosto — como em certos auto- retratos de Van Gogh, ou no retrato de Daniel-Henry Kahnweiler, de Picasso —, vio contribuir para que um gesto apenas, num ‘our noutro elemento (rosto e paisagem). chegue para que a pintura no remeta mais para um referente exterior (miméti¢o), mas apenas para si mesma. «Sem Titulo» — Escritos sobre Arte e Artistas 4t De certo modo, o gosto de Malévitch,criando 0 Quarado Preto sobre Fundo Branco, «icone do nosso tempo, puxou definitive. mente o rosto para o seu vector de assignficdncia, para asa total descodificagio, para fora de si, para a auséncia de rosto: puxou mesmo a atmosfera para a eestatotera» (como Maléviteh desie~ nou o expago do suprematismo). Do desaparecimiento do rosto (edo retrato),nasceu a pintura abstracts. (E 9 mesmo vale para Kan dinsky © Mondrian, ¢ a paisagem ) CE de notar que o surgimento da forma abstacta foi possivel pela sbolgio do referee exterior, marcad pela dupla dimensio dave ticalidade e da horizontalidade, Assim, Malévitch quer destruir ds nitivamente o horizonte, Ora certos estudos recentes de psicologia cognitiva mostram que a percepga0 do ros fem na percepeio da verticalidade do espagol7. Nao & pois de admicar Aue a aboligio do rsto por Malviteh provocasse automatic a aboligio de todo o referent do espago objetivo) m papel decisive A questio da singularidade, e 0 rosto Tomou-se comum afirmar que a arte moderna matou © retrato (depois de ele ter sido substitufdo pela foto; que tenha sido assim: um certo fio, que atravessou toda a primeira metade do séc. xx, com nomes como Picasso, Giscometti, Fra Bacon. os surrealistas € m undo Malévitch, manteve tradig0, modificando-a profunda icago nao suficier temente estudada, e que retoma agora, nos anos 80 e 90, com out cnicas e outras imagens do corpo — 0 que nos faz crer que @ do retrato teré ainda um belo futuro. Porque, paradoxalm imo alids © mostram estas experimentagées da arte moderna), @ arte do retrato esti por (re)inventar Existe uma ideia subjacente & do «fim do retrato» (cor traccionismo, deixou de haver lugar para mo a da semelhanga ¢ da singularidade do tet rafia). Nao € to certo (co. jeferente, © questés 17 Cr Vieki Brace e Andy Young. in she Eye ofthe B Perception, Can. 5: Wh Univ. Press, 1909, sentido) que vé no rosto uma instancia unitéria e unific que se vém expressar, convergindo, todas as dimensdes de uma apersonalidade». Vimos que assim ndo &. Pelo contrétio, ao tomar «em considerago a expressio das multiplicidades diferenciais (psi- coldgicas, sociais, etc.) de sentido que um rosto -evela, o pintor aproxima-se mais da semelhanga com © modelo. Uma questdo ficou em suspenso: como restituir a singularidade do original? Também aqui, uma anélise répida pode mostrar que a especificidade de um rosto nao assenta na sua unidade e totalidade corganicas ( que é um rosto singular? Um pastor dos Alpes, 20m a cara mar ‘cada pelo sol, pelas intempsries, pela liberdade elementar do corpo, tem muito mais «rosto» do que um executivo de Wall Street com 0 smo at dindmico e eficiente de todos os executivos de Wall Diz-se de um edificio com cardeter que tem um rosto. Até de tico se pode afirmar, no momento em que a sua Sire uum projecto inforn concepedo resultou, que «adquiriu um roston. A metifora do rosto estende-se a miiltiplos campos. ramifica- alastra para verbos como «encarar», ou expresses como «descara: do» ou «dar a cara».O que indica 6 rosto? Certamente uma unicidade auto-suficiente. Um resto completa-se ‘ele mesmo. Mas de uma maneira muito particular: completude niio significa totalidade, pelo contrério, o rosto mio forma nunca um to- do, se olharmos bem. Estudos cognitivos recentes mostram que 0 re~ conhecimento do rasto se faz, nomeadamente por configuragdes © relagdes entre tragos determinados — por exemplo, entre 0s ollios o nariz e a boca; ou, mais raramente, por tragos isolados; ou por uma meméria holistica © abstracta, que df uma forma geral esbatida (0 Todo é mais um contexto do que um conjunto de partes!®, Significa isto que a unicidade do rosto deriva essencialmente da sua auto-suvicisncia, Esta, porém, ndo deriva de um Todo ou de uma Ideia (a Ideia de Pessoa, por exemplo); mas sim do ser tinico na sua propria, erenca interna, ou melhor, do facto de que, para ¢ rosto ser tnico, reciso ter tudo (partes organicamente unidas),pode mesmo ser necessério que Ihe falte qualquer coisa. Qualquer coisa que pode ser © proprio Rosto (sobrecodificado como tal). A unicicade de um rosto em «perfil», «face» -m Titulo» — Eseritos sobre Arte e Artistas 48 ‘manifesta-se também na surpresa especifica de ser tal rosto, como se (0 meu rosto estivesse sempre pronto a fugir-me. Hé também, nas pre- {gas do rosto do pastor dos Alpes, uma inumanidade s6 dele, como um acontecimento alheio, corporal, eésmico: aconteceu Por isso ‘mesmo, porque ele é também o que ndo é, 0 rosto & a instaneia tinica por exceléncia De modo gral. pereepgio do rosto resulta de milltiplos factores, como a luz ¢ a sombra, as configuragdes de tragos, a separagdo si- rmultdnea de escalas (ver a0 mesmo tempo um pélo no nariz e a for- ma global do erinio), ete.!9. O reconhecimento da singularidade de rosto, ou da idade, do sexo, da raga, dependem desses factores. Interessa-nos particularmente a maneira como esses resultados silo obtidos: comparativamente, por decomposic2o, deslocaglo ¢ re- composi¢do, de elementos do rosto, tratamentos variados da ima- gem no computador (nomeadamente por «morphing») — sempre com o fim de constituir séries em que as sucessdes de diferengas mi nimas fazem surgir 0 sentido. (Era ji o método utilizado a partir do desenho e de forma rudimentar, de Della Porta, Lavater e Darwin.) A constituigdo de séries de diferengas (e de séries de rostos dife- rentes correspondentes) mostra que, em todos os casos, a percepe de um elemento macroscépico pregnante, como a identidade ou © sexo, resulta de miltiplas comparagSes virtuais que 0 olhar opera es de rostos também virtuais: para que 0 trago indivi dual adquira sentido € preciso que seja extraido de uma série em que ela se insere com infimas deformagdes num mesmo contexto. Ressalta assim de miltiplos contrastes diferenciais (ndo s6 de tra- gos, mas de contextos, de movimentos, de configuragdes, etc.). de tal modo que a sua existéncia perceptiva implica todos esses infini tos intervalos das diferengas, E a diferenga que faz a identidade, ¢ nido as diferengas que se medem por um padrio imével: se 0 senti- do se engendra na diferenga (enquanto a homogeneidade o destréi), cada trago (a forma do natiz, por exemplo) s6 toma significado por contraste com outras formas diferentes do mesmo trago. Insisto: por contraste e diferenga, nio por negago. O nariz.em questio nao ob: leve um certo sentido no rosto por se opor a um nariz direito, mas 19 Tdem, V. também, do pont de vista das nearoiéncas ¢ da psicologia cogitiv 1 Grepoy, J amis, Heard, D, Rose (eds) The Artal Eve, OnTord Univ ress, 1995 44 José Gil Por se distinguir microscopicamente, numa série continua de dife- rengas, de todos os narizes curvos similares (estendendo-se even tualmente até um natiz dieito) A.especificidade dos elementos das séries infinitas que contribuemn para tal trago do rosto nfo existe na massa visivel dé sua substancia Mas como esta $6 se singulariza gragas a rede virtual de intervalos diferencias o que ali se vé ndo é mais do que a diferencialidade vir tual que habita a forma percebida A percepeao da curva do nariz de Federico da Montefeliro, no te trato de Piero della Francesca, supée infinitas comparagdes virtais om curvas similares de narizes diferentes. que se aproximam infi- ritamente da curva representada. Esta contém pois, virtualmente todas as que nio estdo Id ~ as que se aproximam, mas igualmente as que se afastam deixando uma superficie branea virtual por onde 6 rosto, como vimos, sai para fora de si. Numa palavra, a singulari- dade daquele trago de rasto compde-se das infinitas diferengas vir- Luis que Ihe dio o seu sentido especificn Por isso um rosto é uma multiplicidade de rostos Por isso nao se captam nele apenas os tracos visiveis. Tmediatamente, a percepgdo artstca do retrato apanha uma. aura um nimbo, uma atmosfera, a forma de uma forga — porque ela nio consiste numa forma unificada, mas numa multiplicidade de formas Virtuais, Por isso 0 retrato de um rosto é movimento e forga: aquela configuragio esttica, aquele busto imével retém em si o que para eles fazem convergir as séres diferencias. De tal moo que o cont uo de pequenas percepgdes se alarga sem limites, dando a impressio dle uma visdo total que s6 uma imagem em movimerto ofereceria, O retrato clissico produz,.no melhor dos casos, ess ilusdo. Mes mo de perfil, o olhar acolhe © meio-rosto com se fosse um rosto inteiro, Merleau-Ponty referia-se ao desejo dos pintores de se auto- -retratarem como para provar que toda a visio & visio total, € que ‘cada parte do campo visual & uma parte totaP, [denticamente se Poxleria afirmar que 0 retrato, pelo poder de o rosto conter em si uma multiplicidade infinita de rostos virtais, ¢ portanto de induzit uma visio virtual do rosto em movimento, suscita uma es visio total por auto-suficiéneia da imagem: 20.C£. M. Mesteau-Ponty, 0 Olho ee Espirito, Gallimard «Sem Titulo» — Escritos sobre Arte e Artistas 45 Sabemos agora em que consiste a unicidade de um rosto: ndo nu- ma esséncia, nao numa substincia, no numa qualidade, nio numa coisa. Mas no poder de receber em si uma infinidade de diferencas Virtuais — umas do «interior». das «paixdes da alma». outras do ex terior, do mundo e do cosmos. O que significa que a singularidade € esse poder como existéncia da coisa singular: esta dei sua infnita clivagem interna (virtual) ‘© que sou eu? Nao um homem, ou um ser social, com um deter rminado psiquismo, Mas se o meu ser sexuado ou social € singular € porque eu tenho o poder de acolher em mim uma multiplicid de diferencas com outros seres sociais ou sexuados. Assim. de cer to modo, eu nio sou nada. Nada mais do que esse poder de acc ‘mento que me singulariza: sou por diferenca apenas, sou um puro Poder infinito de diferenciagao. Quanto aos sinais e expresses de subjectivagio de que me revisto, sio eles os elementos necessi para que ev me defina multiplamente por diferenca Se a superficie ou mapa onde se insereve preferencialmente esse poder de um miltiplo devir & 0 rosto, a sua representago no retra {o constitui um dispositivo privilegiado de criagao de multiplicid- des. Por isso 0 retrato € a verdade do rosto Mas 0 retrato nio € 0 rosto, Como diz Jean-Cristophe Bailly2!, <0 retrato é o nome do rosio>. Extraordindria intuigao da maneira ‘como a pintura, ao retraar,eria ao mesmo tempo a singularidade ‘Como 0 nome proprio, o retrato constedi uma singularidade pa: radoxal: dé ao rosto uma identidade que o tira da inumanidade ané- nima do corpo, que o humaniza (até porque o insere numa rede fa muliar e geneal6gica), Mas, simultaneamente. puxa o rosto para a descodificacao absoluta, abrindo-o a territérios inominsveis. intra duziveis, fora do seu proprio caracter de rosto, ‘Ao representar uma representagao, ao reduplicar a imagem que © modelo & j4, 0 retratista encontra logo as condigdes propicias Jo de multiplicidades virtuais. Eu. em mim, sou outro: ¢ 0 ‘outro que represento (imagem pintada) & também ji um outro outro de mim (o original, referente que & repres diante, indefinidamente, representando e analisando as rep ne-se pela igo). E assim por 214.6 Bally, op. 46 José Gil ‘Bes que vou criando e que se vao juntar & imagem-modelo (por is So nao existe wna primeira imagem original, mas a primeira é ja uma multidio). O outro sto outros. Nao se trata apenas de pontos de vista diferentes que existem em mim sobre mir, s40 realmente ‘estranhezas que compdem os intervalos diferenciais de mim a mim. ‘0 querer reconhecer-se num auto-retrato implica um fundo de es- tranheza, de irreconhecivel — de que sé a existéncia permite as sé- ries diferenciais que tendem para a singularidade. Reside af, sem diivida, uma das razdes do fascinio dos pintores pe. Jo auto-retrato, Como Diirer, como Rembrandt scbretudo (e Van Gogh, ¢ Mir6,¢ tantos outros), eles procuram a singvlaridade através, de séries, reduplicando as méscaras, multiplicando as imagens a0 longo da vida, Neste sentido, todo o retrato € um auto-retrato (por- que 0 retratista entra num processo de devir-outro, devir-retratado cenquanto auto-retratado). Porque a singularidade se busca, ndo se encontrando ji dada, como uma coisa, pode haver mais ou menos individuagio num individuo. E miiltiplas maneiras de expressar essa curva do vacio que dé toda a forga & singularidade. Ha individuos que quase ndo so singularid des, mas estatutos sociais ou tipos psicoldgicos — ¢ os retratos, se conseguidos, mostram sempre aquele duplo vector que atravessa 0 rosto, entre 0s sinais e a singularidade nua. E a unicidade do retrato, ‘a sua maneira plastica de ser Singular resultam da maneira como se re- solve essa tensio: assim, € aquela maneira de ser jovem do Retrato de ‘Uma Jovem.de Ghirlandaio, numa presenga nua tao intensa da sua fe rminilidade juvenil, mas também através dos sinais que a omam, que deixa transparecer uma individuacdo ontol6gica mais forte do que to- das as especificidades (de cada parte do rosto, ou psicol6gicas, ou de estatuto social) que a representagao deixa adivinhar. Paradoxal, a singularidade do retrato & mais singular que a do rosto natural, Nao porque «resolva» as tensdes internas deste, mas porque as retoma, integrando os sinais e a nudez, a plenitude hu- mana e 0 vazio, a intimidade e a forga de estranheza numa cur aberta, nica, de uma nova e outra tensZo singular. Disponivel, ago- +a, para o infinito, AAUTO-REPRESENTAGAO Ver € ser visto. Olhar é ser olhado. A reflexividade especular da visio prolonga no mundo a reversibilidade sensivel do corpo ~ que a0 ver-se e tocar-se é visto ¢ tocado —, como se o olhar que abre & nossa pele ao olhar dos outros a transportasse assim para as coisas as recobrisse com uma pele-espelho que nos reflectisse, Tlusserl © Merleau-Ponty chamaram Carne a este corpo Teven vel sentiente-sentido. F ela que inaugura 0 circuito da visao: ¢ de tal maneira este rasga 0 espaco ao olhar de todos. que os pintores se auto-representam «como para atestar que hi uma visdo total ou ab- soluta, fora da qual nada fica, e que vem fechar-se neles préprios» (0 Otho e 0 Espirito) por isso. Talvez possa ser também pelo contrario: os pin tores seriam entdo levados a auto-representar-se por fascinio pelas somt Poder-se-4 imaginar uma visio nfo especular, um ver que nao se ja visto? A auto-representagio estaré mesmo potencialmente impli cita em toda a visto? Imaginemos um mundo feito apenas de voyeurs. Em vez de ver uma cena secreta — um desvelamento jntimo, um desnudar-se — 0 voyeur descobriria através do buraco da fechadura um outro voyeur com o olho numa outra fechadura: o qual estaria a ver umn tere também a espreita, colado a uma porta, ¢ assim de seguida, indefini damente, Um estrangeiro que pet ver, que esconder-se, e que s6 visse voyeurs a verem outros voyeurs etrasse neste mundo e ti 48 José Gil seria rapidamente assaltado por uma ideia: que ele préprio estaria a set visto. alvo de qualquer olhar escondiclo que o visse e se nao mos- trasse. O que prova, paradoxalmente a reversibilidade da visio: a ce. na que vé o voyeur refTui sobre 0 seu proprio espaco, abrindo-0, Se a impossibilidade de conceber um mundo de voyeurs revela como no seio do olhar habita o olhar do outro, a pulse voyeurista = ver sem ser visto — manifesta, no entanto, um desejo inreprimi- vel: 0 de mudar de corpo, abandonando © seu na sombra para se apropriar do outro, exposto & luz. Porque o voyeur, xo quebrar a re. flexividade da visdo, oblitera para outrem e para si, 0 seu préprio. corpo. O que ele vé as escondidas, um outro corpo que. visto, que suspendeu também o circuito do olhar, vem ocupar o Iu do seu corpo apagado. A intensa excitagdo erdtica que Ihe pro- vYoca esta transgressdo da norma que regula a troca pliblica de otha res vem dat: subterraneamente, apropriando-se do corpo ilurninado do outro, enxertando-o em si mesmo, ele reata o circuito da reflexi- vidade do olhar. Circuito, agora, sob seu controlo: aquele corpo, que 0 seu tornado outro, em contacto (visual) ¢ a distancia, entrega-se inteiramente & manipulagdo téctil e magica do seu olhar univoco Assim o voyeurista transforma-se em exibicionista (como disse Freud, fazendo do segundo o resultado de uma deslocagao pulsional ddo primeiro: de um objecto exterior — ver —. para o corpo proprio — set visto; e. curiosamente, Freud funda esta conivéncia entre 0 voyeurismo ¢ 0 exibicionismo no auto-erotismo ref ‘¢2.que tem praze* em ver os seus drgios genitais, estes retiram pra- zer em serem vistos...). O que © voyeur esté a ver 2 a mostrar sua nudez exibida agora a um othar gue cle desejaria totalmente de- sinibido, desconstrangido, escapado a lei do olhar do outro. Othar ‘maximamente subjectivado, e contudo transferido para 0 corpo do outro, na fronteira iltima da subjectivagao, prestes a anonimizar-se 4 partir do reflexo da pele do outro. Ali, na cena que espreito, 0 cor po sob a luz irradia um espaco paiblico puro, utdpico, liberto de perspectiva limitada, completamente aberto, exposto d multiplicider de infinita dos olhares possiveis. E ests multiplicidede que 0 olhat do voyeur percorre vertiginosamente: ser todos os olhares, ser 0 tin co olhar total de todos os othares, & possuir magicamente aquele corpo s6 para mim. O maximo da subjectivagio contunde-se com a dessubjectivagdo méxima de um devir-outro do olhar «Sem Titulo» — Escritos sobre Arte e Amtstas Da mesma forma. a intensidade da luz que enfoca a cena em con. traste com a sombra que envolve o vayeur tolda-se com a ruptura 4o cirevito da visio, Eu olho um corpo que ndo me vé, ele & para mim, ele «¥@-me» (porque me vejo nele) indirectamente, clandesti namente: a claridade que o ilumina deixa de ser publica. 6 apenas piblica-para-mim, eu sou todos os olhares, mas no os todos-o -olhares da luz, nem os da sombra (em que SoU $6 um). mas todos -os-olhares da sombra no seio da luz. Porque 0 espaco paiblico da visio normal se fechou, 6 1ago do olhar rompeu-se quando me es- ndi. 0 espago-sombra do meu corpo t sluz da cena vista. Uma nova lu nasceu, uma claridade exe Jar, uma massa negra embaciando do interior a transpare espago. Massa flutuante que nao € 0 avesso i 6 seu duplo, ou 0 seu outro. O devie-miltiplo do uum médium clandestino, & margem das grandes ofuseagées sola € das obscuridades cegas da noite. De certo modi, pois. toda a pintura & um exereicio de voyeurismd -exibicionismo, como toda a representacio um exemplo alaryado de auto-representacio. Porque 0 corpo inscreve 0 muindo ¢ este, repre sentado, 6 a projecedo dos podieres daquele. Reflexao do mund corpo que. por sua vez. se acentua e se sintetiza no olhar que és la sem ser visto © que. da tela, o olha sem saber. Ora. no auto-rerato 6 olhar vé-se vendo-se (em abismo): como se ai culmin déncia implicita em toda a pintura para ver e se expor, em permanente num olhar-corpo voyeurista-exibicionista. (FE isto 6 que nos diz Duchamp em La maride mise a nu par ses célibaruire mame.) Aparentemente, na auto-represen outro € 0 pintor mesmo. Quand ollar fecha-se sobre si. Cessa aquela imposs‘velcoincidén dente e do visto a que Merleau-Ponty chamava «iminéneia: o pin- tor é totalmente o pintado, ¢ o pintado intciramente o pin escapava ao eircuito reflexo. ou porque sivel do visive Jo 0 outro deixa de existir: se repr rolta de um centro. No i reflecte © ficava descentrado, 0 auto-retrato nada mais fa lar que a olha: e porque tudo no olhar do pintor se con f P nira t sua propria imagem, esta absorve tudo 0 que @ rodeia, ¢ reenvia-c ccentrando mais ainda (pela compasigao que aprisiona) os elementos so José Gil da representagio. E assim infinitamente, em abismo, de tal maneira ue 0 centro salta para fora do espago da tela (por iss0 08 auto- -reratos de Alvaro Lapa se inttulam Anto Auto-Retrato,e se stam na fronteira da pintura, (0 caso da fotografia €talvez diferente: porque ah sempre um fora descentrado, qualquer coisa que vem da percepgio natural, uma dispersdo iredutivel cos elementos que impede a infinita cen tragem do olhar. Seré com a tensio centragem-descentragem que jogs a fotografia, Talvez 0 fotdgrafo, que se pode auto-representar, se no possa auto-retratar) Poder-se-ia jugar que o «fora» para onde salta 0 centro do auto- -reirato constitui um ponto «interior», como se a representagdo se Virasse absolutamente para um «dentro» mitico, sem presenga do olhar do outro. Fundar-se-iam aqui as interpretagdes psicoldaicas 6 idealistas do auto-retratoe mesmo do retrato: um corpo, um ros- to,um olhar como «expresso» da alma. Mas serd mesmo assim, se gue na auto-ep sta visa uma imagem de side que outro estéausente? Esse «fora» representa talvez 0 maximo da exteriridade. no 0 interior invisivel da alma. Para além desta — como da «personali- dade» ou do estatuto social representados —,€ através deles, 0 pin- tor visa, ao auto-tetratar-se, a sua relagao com a pinta. Ele pinta uma interragaeao a que pretende ao mesmo tempo responder: 0 que € um pintor (ou: © que sou eu-pintor)? A resposta é aquela auto- representagio em que a pintura tende para o seu limite: a imagers ntagio 0 no pode ser apenas pictdrica porque a resposta — 2 pergunta que equivale a estoutra: 0 que € a pintura? —, a ser dada apenas peia pintura, formaria uma tautologia. Por isso o auto-retrato aponta pa- ra um espago para além da pintura, onde, precisamente, ela nasce. ‘A resposta pela pintura é um desafio — todo 0 auto-re:rato é um de safio —, pois € grande a tentagdo de escamotear o sentido da ques tiio fechando a imagens com gestos unicamente pict6ricos (que Feenviam s6 a outros gestos pictéricos). Como, portanto, auto- e para além da imagem pict6rica? De certo modo, to- respondeu jé @ esta pergunta: em cada obra espécie de sombra que se arrasta, uma ndo-representagdo, uma nio- imagem que nao € 0 invisivel por detris da imagem real, na imanéncia da vida, que aguele quadro mas a forca «Sem Titulo» — Escritos sobre Arte & Artistas st Mas a auto-representagio, e 0 auto-retrato em particular, ndo s6 possuem esse poder, mas tomaram-no como tema. E nisto também ‘que a auto-representaco concentra em si as propriedades da repre- sentagtio (dizer 0 que nao 6). A relagdo pintura/campo transpict6rico atinge aqui um auge: € na torgdo que faz do pintor um visto'vidente, no «fora para além do pintado e para além do pintor,e através da pintura, que se sustenta 0 trago pict6rico da auto-representagio. Pa- radoxo que projecta a imagem fora de si, para um acto, para o tem po real. Quando Picasso, no fim da vida, acaba aquele auto-retrato que se assemelha vagamente a uma caveira e diz, saindo do atelier: «Hoje, apanhei ali qualquer coisa» ndo se referia a um achado for- mal, mas a esse qualquer coisa de mais real que a vida e que toda a pintura procura pintor que se auto-representa dit um passo pata la da represet tagiio e da pintura: dir-se-ia que ele quer captar imediatamente a sua relagio com a pintura, como se pudesse, ou fingisse poder, dela fa zer a economia, Por isso 0 auto-retrato & sempre o inverso de um buraco negro (como 0 pode ser um rosto real) que absorve a vida, sempre mais do que a simples reprodugao mimética de um rosto ou- tro (retrato). A tensio € mais forte entre o pintado e que esti para além. Para o espectador, aquele ser ali representado, Rembrandt out Malévitch, nao um qualquer desconhecido, mas € 0 autor, aquele que em cada quadro ¢ neste em particular, o espectador reconhece zo estilo, nas formas, na composigio, nas cores. Que este reconhe- ccimento se venha agora encarnar num rosto, como se de um sujeito real se tratasse, eis 0 que. em certo sentido, pulveriza e faz explodir ‘a representagio: porque esta aparece de repente como um excesso, ‘como um acréscimo enigmitico & pintura, para além das formas. ‘Assim, no auge da coincidéncia volta a surgir, a abrit néncia (da coincidéncia) que & diferenga, estranheza maxima na maxima semelhanga, alteridade. Nela, € 0 outro, © espectador que olha, que se introduz. Ele esta ja no olhar do pintor que se olha ‘O salto para fora € uma acgdo. A acgio da pintura é imanente a0 tempo real. O auto-retrato, como caso singular da auto-representacio cia uma iteragio cadtica que projecta a imagem no tempo real. Un descentramento inesgotivel, uma inguietago vaga, uma impossibili- dade de estabilizar o olhar na superficie da tela ganham o espectador das imagens an/mieas dos auto-retratos. Porque ele j no sabe ber 52 , 2 José Gil real, que entra no eircuito da im Jo elas que se animam com dur € vida, ou se ele, no tempo agem, Entretanto, a massa sombria crepuscular que se destacou do re- trato, o outro da imagem, paira agora entre o quadro e o espectador, como um resto areaico da aura sagrada do icone, que nio era sé 1m mas participava na acgdo presente do divino. A.CONSTRUGAO DA PRESENCA Retrato de Uma Jovem fascina, E porque a fascinagio indica uma presenga forte, ela obriga a interrogar-nos sobre esse excesso de presenga: nasce de signos particulares ou do simples dado per ceptivo itrevogavel da coisa que «esti ali», «em came € asso» co- ‘mo diria Husserl? Como se trata, neste quadro, de uma presenga mais intensa de uma imagem, a interrogagdo sobre 0 excesso nao incide ja sobre a presenga simples da representago, mas antes so- bre a representagiio dessa presenga, Melhor ainda: sobre a presenga da presenga, como se através da figura representada se tivesse que: rido obter outra coisa — mesmo q 6 claro, essa coisa re flua sobre o retrato intensificando a sua presenga propria Supondo entio que a fascinagzio que exerce o quadra de Ghi daio se liga ao excesso de presenga que d trés momentos na sua percep ao reconhecimento da f visiveis determinadas: cabelos ruivos ondulados. rosto oval, ve ura de uma jovem com caracterist ido vermeiho com mangas verdes, et b. 0 quase concomitante impacto sobre o ol presenca: no € apenas a percepeo de uma jovem que esta ali, mas a extraordindria pregnancia da presenga dessa fi senga que se impée excede o conjunto da ‘¢. que esse excesso que vai para além da imagem da jovem a ha bita por inteiro do interior. Agora é toda a presenga daqueles cle- a José Gil ‘mentos trivias, que deserevemos acima (rosto oval, colar, ete.) que se encontra como que acrescida de substincia perceptiva e singular. Caracterizemos melhor este jogo complexo de impregnagées en t1e.08 dois tipos de presenga: 0 do exeesso, para além das formas: e 6 das formas triviais visiveis. Primeiro, que significa um exeesso de presenga para li do visivel? Que o visivel,o dado, se protonga além dos seus préprios contomos, sob um regime particular do invisivel. Se considerarmos o segundo momento, em que o olhar softe o impacto do excesso de presenga, sentimos, por um infimo instante, a fractura entre a figura visivel e ‘que a excede. Qualquer coisa a mais emana do quadro inteito, ¢ no apenas da figura ou de parte da figura da jovem, ao centro Esse «qualquer coisa a mais» perturba, porque do: em vo 0 procuramos no rosto, no busto, ou mesmo no fundo escuro. Esti fora das formas, impie-se como um vento mais forte «que agitasse 0 nosso olhar impedindo-o de se fixar. «Qualquer coi- sa» que descola o olhar das formas ¢ 0 move sem direegao precisa quase caoticamente. Mas logo depois, ¢ sem que se saiba como nem porque, 0 exe so de presenga, percepcionado autonomamente, reinveste as formas visiveis. © que foi que assim reinvestiu, penetrou, se molcou & e intensi- ficou a figura da jovern? Como caracterizar a presenga invisivel que apareceu como um excesso relativamente ds linhas, is Cores, 20 Vi- sivel ali, «em carne e osso» (se bem que numia imagem)? Trata-se, sem divida, de uma forga, ou de um feixe de Forgas. Na medida em que as forgas so captadas sem ligagdes precisas a formas, podemos consideré-las como emanando de pequenas percepcdes insensiveis. Mas na tltima fase perceptiva, as forcas organizaram-se em feixes, apresentando uma forma propria, uma certa maneira singular de se manifestar, sem difvida ligada & figu- ra representada, CChamemos a este excesso de presenca determinado forma de wna forca: porque & uma forga, mas sin ‘rivel de maneira vistvel. lar; tem forma, mas nio figu- como quando queremos cescrever tipo de influéncia produzida pela presenga de alguém e dizemos que ele << uma forte personalidade», ou que tem «um cardoter agr ‘ou pelo contrério «doce» ov fugidio», ete, Utilizase nesses casos «Sem Titulo» — Escritos sobre Arte e Artistas 55 se as formas com as forgas vel, no estd figurada, no uma linguagem de forgas, adjctivan expressas. A forma da forga no & v € uma pura qualizas nem um puro quantum: & uma grandee inten- siva que surge com uma forga determinada em movimento, De toda a obra de arte emanam formas de forgas: mas relagde Inumanas, nas relagbes de inluéncia, de autoridade, de carisma. amor, o que se joga antes de mas so relagdes de Forgas através de formas: porque a relagao de forgas ganha «contomnos» ¢ «figura» Entre o comportamento moldado por formas e cédigos verbais € & violéneia nua que visa a ruptura da relagio, existe uma camada vel de lagos em constante movimento que se constroem feragas a formas de forgas. E mais do que uma relagdo de forgas Numa relagio hierérquica qualquer entre o médico ¢ a enfermeira por exemplo, a relagdo estivel nfo € ade foreas», mas de dupla cap- 10 de formas de forgas respectivas. «Por int instinto», sabe-se imediatamente como reagir face ao outro ponder as suas exigéncias, negar-thas ou substitf-as, ete. fo isto porque duas formas de forgas se ajustam, se conjigam. se fadequam sempre em equilforio instvel ou metastavel, quer dizer sempre em movimento (© que é particular na obra de arte, e muito particularment quadro de Ghirlandaio, €a inexaurbilidade das forgas ¢, assim. @ Gonstant intensidade da forma das forgas. Constincia que nao im- plica imobilidade, mas dinamismo incessante: a forca da presenica renova-se a cada instante, talvez com modulagdes infimas de inten- sidade (0 que depende também da subjectividade lor). De onde vem a forca que subjaz. 3 forma (dessa forga)? Sempre das pequenas percepgdes, essas unidades perceptivas infimas, «im perceptiveis» ou «insensiveis» como dizia Leibniz, em movimento infinito, e cujos conjuntos ou associag sm As macro percepdes. Mas antes de as formarem, organizam-se precisamen te num meio agitado com a propriedade de ampliarem a escal percepgio. A forma de uma forga ndo € mais do que o resulta desse aumento de escala: «vé-se» agora uma globalidade invisivel ‘como se os nossos drgios sensoriais recebessemn como proteses 1 croscépins electrdnicos, ‘Ora, o que ¢ estranho, no quadro de Ghirlandaio, temente, cle nao cria os meios propicios habituais a que, surgiment 36 José Gil figura da jovem parece nitido. bem delineado, os elementos do vestido como os do rasto bem autono- mizados e delimitados. Nao hé sobreposigdes de territérios, nem claro-escuros, nem dobras, nem sombras profundas em modelado todas estas técnicas produzindo sempre aqueles meios intersti- ciais de entre-dois ambiguos onde nascem de preferéncia as pe- quenas percepgdes. Se este retrato ndo tem a transparéncia das figuras de Botticel possui quase a nitidez grifica de certos retratos de Mantegna. De onde brotam nele, pois, as pequenas percepcdes, ja que é através de- las que se forma 0 excesso de presenga? So «aparentementen, porém, o Retraio de Uma Jovem nao con- tém os tais «ambientes propicios» ao aparecimento das sensagdes microse6picas, Na realidade, todo o quadto se orgaaiza segundo s ries de modelados: 1° Dos cabelos as sombras do pescogo: modeledo de castanho. ruivo, quase rosado na maga do rosto. loiro na orla dos cabelos. Mas também do cabelo ao rosado-ruivo dos labios, saitendo por sobre a luz da cara: ¢ nesta, em que todas as cores coabitam, hé como que uma claridade 2 sair do ruivo das sombras 2° Em correspondéncia, do pescogo para baixo: modelado de en: camados. do colar de coral intenso 2 ultima faixa de vestido por ci ma dos ombros. E, saltando por sobre a pele e 0 branco da gola, 0 botdo de coral Ghitlandaio estabelece assim uma espécie de simetria entre ima e a de baixo da figura da Jovem, Mes as duas séries so atravessadas por dois eixos que as unem, e de onde irradiam respectivamente sombra © luz: as mbras da parte de cima prolongam-se (saltando por sobre uma praia de luz) na sombra do nto inferior direito do vestido e da manga; ¢ a Iuz que eomega na touca ¢ banha o rosto e © pescogo, continua no peito e acaba (sal- indo por sobre a tltima faixa vermelha do vestico) na claridade do principio da manga, no canto inferior esquerdo, (Os modielados organizam-se em blocos de cores (do ruivo castanho dos cabelos em cima da cabeca as sombras ruivas do pescoco. & ao Ioiro da orla dos cabelos), © de formas (do quase-tiso mias ja es ttiado dos cabelos de cima ao informe das sombras, em baixo, pas- «Sem Titulo» — Escrtos sobre Arte ¢ Artistas sando pelo ondulado do cabelo que desce ao fongo da cara e do pes coco). Em baixo (e de baixo para cima): do vermelho mai vestido, no canto inferior direito,e das tltimas faixas de onde saem os Dragos, até a0 colar de coral, de um encamado vivissimo. A intenctio de criar um modelado de cor comprova-se aqui pela introduc, entre ‘aorla branca e a orla verde do vestido, & esquerda, de de encamado (que nao tinha que estar ki, s6 se explicaria por w feito na feitura do vestido), Modelado de formas: do rectang vestido, em baixo, ao seu encurvamento sobre os ombros: ¢ conti= rnuando, da orla rectangular aberta do vestido encamada ao Angulo meio aberto do decote e & circunferéncia fechada do colar E, sobrancelhas, ofhos, narinas, labios, contornos da cara). 0 vestido tende, de cima para baixo, da curva para a linia quase recta A gradago procede por blocos ¢ descontinuidades, 0 que confe- re nitidez a cada um dos seus elementos — € uma continuidade im- perceptivel entre formas macrosespicas, como na série das curvas {que se vio fechando até ao colar e que se prolonga no oval do ros to, no semicirculo dos eabelos, na linha perfeita de separagio entre a touca e 0s cabelos que vai dar continuidade, por baixo dos cabe- los. A linha do queixo fechando a oval da cabega (que engloba a da cara), Alids,a linha da cabega ilustra bem essa comtinuidade por sal tos ou descontinuidades que Ghirlandaio eria como processo formal aplicado a todo o quadro, Mas uma outra continuidade mais din ruivo da ponta dos cabelos. a direita, toma uma cor esverdeada © aproxima do fundo negro: € & esquerda, a reverberago do ruivo dos cabelos sobre a magi do rosto atenua, por um estranho efeito de luz, © trago de separagdo entre as duas formas. Outros exemplos abundam (sobretudo nas passagens da luz.fis sombras): trata-se aqui de uma continuidade sem rupturas, mas loc pica. © retrato se divide em duas partes que se organizam segundo séries, estas convergem num elemento: o colar de coral. Ele separa une 0 alto ¢ o baixo, aparecendo como limite auténomo das duas séries: porque, de certo modo, surge também como limite da série superior — cabelos, Kibios, colar. A ligeita acentuagdo da carnagio dos labios relativamente a série dos ruivos, remete-os para o colat de- enquanto toda a cabega sio curvas © ondulagdes (¢ no rosto: ta 6 utilizada também: 0 58 José Gil por outro lado, 0 botdo que fecha o decote e que na outra série se ‘opée ao colar, estabelece um contraponto com a maltiplicidade das érolas. garantindo ao coral uma fungdo nica: a de dividir © qua- Pe dro em duas estruturas ou de fazer convergir dois movimentos: e de se oferecer assim como elemento isolado de méxima visibilidade Nele vém concentrar-se todos os estidios das cores das séries de modelados. Estamos ao nivel do visivel. B, jd aqui, se revelaram existir condi- des para o surgimento das pequenas percepgdes: curiosamente, no seio do visivel, © porque as gradagées de cores se acompanham de gradagSes de formas; e porque, sobretudo, em cada Uma das séries os vérios graus constituem blocos nitides de forma e cer, formam-se Iu gares privilegiados de aparecimento de percepgdes minimas, Sao cles as linhas de descontinuidade ou de contraste que agem como um. centre-dois atmosférico, abrindo na superficie da representagdo uma dimenséo outra de profundidade. ‘Uma linha clara de contraste, na parte superior, separa os cabelos penteados e alinhados em massa homogénea, dos fios e ondas que descaem, Uma outta linha de contraste destaca estas ondas da pele dda cara: af também se entrevé um espago-entre, suscitador de pe- {quenas percepedes. O mesmo se verifica com a linha do queixo que atravessa 0 pescago. Se atentarmos & série de baixo, as linhas de contraste funcionam ‘como puros separadores geométricos que, a mais das vezes, no Pertencem a forma a que se associam (como as linas de contraste de cima, dos cabelos, do pescoco): tal como o colar, que aparece co- mo 0 expoente miximo da linha (como que dilatada, prenhe), esses separadores autonomizam-se, existem por si, ndo so apenas con- tomos: a prova disso € que tém cor propria, separardo um verde de ‘um encarnado, ou duas superficies vermelhas, Enquanto na parte de cima a forma e a cor criam a linha como li- mite de uma gradacZo interna ao préprio bloco de cor ou forma (as sim dos cabelos ondulados), na estrutura de baixo as linhas marcam por si proprias as fronteiras e os contornos das superficies coloridas. A geometrizagio da estrutura inferior opde-se a carnagio, o natural da estrutura superior do pescogo ¢ da cabee: Notemos um efeito subtil, fonte extraordinas ccepgdes. A autonomizagao das linhas (nas de pequenas per res de baixo) confere- «Sem Titulo» — Eseritos sobre Atte ¢ Antstas 59 hes um estranho poder semidtico. O colar (como linha tornada vo Tume, como que enchida por dentro), 0 Angulo agudo das linhas brancas do decote. as virias tras, orlas horizontais ¢ verticais so co- ‘mo percursos graficos que valem por si, ¢ nada dizem. Por isso, © porque se integram num conjunto perfeito de figuras siméticas e de séries de cores e formas altamente elaboradas, essas linhas suscitam uma infinidade de pequenas percepgdes: sem sentido, mostram-se cenigméticas (porque organizadoras de sentido); estudadas para com- porem estruturas geométricas sem falhas. niio desvelam mais do que essa fungdo de suporte de uma figura geométrica harmoniosa (po: exemplo, 0 botdo de coral como ponto de onde partem linhas verti- cais e onde convergem linhas obliquas: estas intersectam, uma e ou tra, o colar segundo 0 mesmo Sngulo secante) Mas hd mais: a geometrizacio visivel das linhas de baixo conta mina, por assim dizer, subliminarmente, a ordenacio das formas de cima, Nesse aspecto 0 angulo do decote tem um papel decisivo: v- rias formas do rosto sio invisivelmente ritmadas por esse Angulo ou por um Angulo agudo muito préximo. Se tragarmos uma recta qu prolongue para cima a linha direita do nariz, e fizermos o mesmo para os cabelos ondulados, obtemos um Angulo agudo quase cor ‘mesma abertura do decote. em contraposigio com este, Sob um ‘gime ainda menos perceptivel. 0 ngulo que faz a horizontal do olhar da jovem com a direcgao da luz que incide sobre 9 rosto 168 alhos (e que assinalam o seu brilho na retina e nas pérolas de ral) numa diagonal quase paralela ao lado esquerdo do idéntico a0 que este forn ‘Assim, a parte superior do quadro & também geometrizada, ma com uma geometria de tal maneira «natural». que ndo se sabe ja se 0 gulo do decote condiciona as estruturas vagas da parte super se estas encontram a sua expressdo ideal no tracado perfeito daquele Certamente que com uma atengdo redobrads se descobririamn 0 tras relagdes do mesmo tipo. Tudo isto faz. do Retrato de Uma Jo vem uma composigio cheia de imagens-nuas. de imagens que nada dizem mas apelam para, ¢ organizam um sentido. Imagens em des- fasagem permanente imperceptivel: 0 continuo no descontinuo, © geomeétrico no natural, 0 invisivel no visivel. E sempre de uma desfasagem deste tipo que brotam as pequenas percepcdes. Aqui, neste quadro, trabalho de Ghirlandaio & tao sub- 58 José Gil por outro lado, 0 botdo que fecha o decote e que na outra série se ‘opée ao colar, estabelece um contraponto com a maltiplicidade das érolas. garantindo ao coral uma fungdo nica: a de dividir o qua- Pi ro em duas estruturas ou de fazer convergir dois movimentos: e de se oferecer assim como elemento isolado de maxima visibilidade Nele vém concentrar-se todos as estidios das cores das séries de modelados. Estamos ao nivel do visfve. , ja aqui, se revelaram exist condi- 58es para o surgimento das pequenas percepgdes: curiosamente, no seio do visivel, e porque as gradagées de cores se acompanham de gradagSes de formas; e porque, sobretudo, em cada ima das séries os \érios graus constituem blocos nitides de forma e cer, formam-se lu- gares privilegiados de aparecimento de percepgdes minimas, Sio cles as linhas de descontinuidade ou de contraste que agem como um entre-dois atmosféric, abrindo na superficie da representagdo una

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