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Francots Hartoc Organizador A HISTORIA DE HOMER A SANTO AGOSTINHO PREFACIOS DE HISTORADORES € TEXTOS SOBRE HSTORIA REUNIDOS € COMENTADOS POR FrANGOIS HAKTOG, ‘TRADUZIDOS PARA © PORTUGUES POR JACYNTHO LING BRANDAO Belo Horizonte Editora-UEMG 2001 Nao sem reformulagio (comegando pela cristl), © t6pos da bistoria magistra permanecerd ativo até o fim do século XVII, mesmo quando se pensava, como o velho Frederico da Prlissia, que, no fundo, a Gnica licdo era que nio havia ligio — isso tanto € verdade, que “as besteiras dos pais sto logo esquecidas pelos filhos*." Isso nao impede que a histéria permanega sobretudo como ocupagio dos que fazem a his- tOria, Se a primeira cétedra de hist6ria foi criada em 1504, em Mayence, pard um tradutor de Tito Livio, seu ntimero n3o aumentou de maneira significativa seniio durante 0 século XVII. Entra-se entao num outro regime de historicidade, formulado na Alemanhe ao Gltimo terco do século XVIII € realizado pela Revolucto Francesa: 0 da hist6ria concebida como processo e incarnada no progresso, Qs conceitos antigo ¢ moderno de hist6ria entdo se separam — uma distancia entre eles se instala, a qual faz com que saia de nosso campo de experiéncia 0 conceito (tornado de sepente) antigo. Diferente do francés ou do inglés, 0 alemao exprimiu-o lingdisticamente. Os historiadores alemaes dispunham de duas palavras para nomear a hist6ria: Historie e Geschichte. Historie era simplesmente a bisforia latina e significava (quase sempre) a narrativa dos acontecimentos (2 historia rerum gestarum), enquanto Geschichte, vinda do alto alemao, designava antes (© que se passou, acontecimento. Do ponto de vista de _uma hist6ria conceitual, dois fendmenos produziram-se entio: ‘duma parte, 0 emprego de Geschichte no singular (como singular coletivo: “a hist6ria"), € nao mais no plural Cas, historias de.."); de outra parte, 2 absorgaio de Historie por Geschichte — de tal modo que © substantive die Geschichte acaba por sobrecarregar-se, sozinho, com todas as significagdes: designa, dai em diante, 0 que acontece, a narrativa que se faz € a propria ciéncia hist6rica” Até esta definicio, que completa o circulo, formulada em meados do século XIX por J. G. Droysen: “A Histbria € saber de si mesma.” F 0 historiador é seu profeta ANTES DA HISTORIA O-SABER DA-NUSA-E-A MEMORIA DO AEDO Por que comecar pela epopéia, que positivamente ndo é uma forma de historia? Porque na Grécia tudo comega com a epopéia, que marcou a cultura grega de modo profundo duradouro, sem dtivida — mas também porque a bistéria, enrtortes 0s sentidos do termo, procede da epopéia: vem dela e dela se separou. O dispositivo da palavra épica, a meméria do aedo, uma certa descoberta da bistoricidade sao as con- digdes que possibilitam o que, alguns séculos mats tarde, serd nomeado, por Herddoto, hist6ria (historie). Embrenbar na questo da bist6ria na Grécia pela epopéia (séculos VIT-VID é esbocar uma pré-histéria do conceito de bistoria. “ Avbpa pot évvere, Modoc, moddtponov, &¢ paAa TODAE mAdyxOn, éxei Tpoing iepdv tronieOpov Excpac * TOY B dvopuinwv tev datea coi véov Eve, TOAAK 86 yév névtw maBev dAyea bv Kard Bvudv, épviuevos ify te woxiiy Kah véotov Eraipwy.! “Bonere vBv yor, Modoai ‘OASuma Bidar Exove0, «83 Susic yap Beat ore, népsoré te, tore te névTeL, Hutis BE xAéos olov dxovoucy o85é-n Bucy, Gi mivec Hrendves Aavaay Kat xofpavor faa * TANOdY Dodx Sv 2yd pworfooBat O88 Svourives, 088 ef ror Béxer ubv yAGooar, BEKxc BE oTSucrt elev, 90 havi 8 &ppnktoc, xdaxeov BE 01 Frop Evein, ek pit ‘Odvumddes Modan, Atds ainidxot0, @vyatépes, vacated Soo dnd “Tato AABov * doxods ad vndv tpéw vids te mpondaas. I. TEXTOS 1. A PRESENGA DAS MUSAS No momento de iniciar seu canto, € a elas que 0 aedo se dirige: para poder cantar Ulisses que muito vagueou, para poder nomear cs chefes aqueus da expedicao contra Tria. Homero, Odisséia, 1, 1-5 © homem diz-me, Musa, multiforme, que muidssimo Vagueou, desde que, de Tr6ia, a sagrada cidadela pilhou, E de muitos homens viu as cidades e o espitito conheceu — E muttas dores ele, no mar, em seu nime sofrev, Lutando por sua vida e pelo retorno dos companheiros.! Homero, Mada, 2, 484-493 Dizei-me agora, Musas que a olimpica morada tendes, Pois vés sois deusas, presentes estais a tudo e tudo sabeis — Enquanto n6s a fama apenas ouvimos, nada sibemos — ‘Quem os chefes dos danaos e seus condutores eram, A multidao eu préprio nao diria nem nomearia Nem se dez linguas e dez bocas eu tivesse, Vor infrangivel e bronzeo peito em mim houvesse, Se as Climpfades Musas, de Zeus que tem a égide Fithas, nfo Iembrassem quantos a Tr6ta foram. Os chefes assim das naus divei e as naus todas. Ai v6 no8 ‘Holodov Koriy sibatav dorbriv, pvac romatvovd "ExtkGvog tnd CaBEo10" rovbe Bé ue mpusriara Bedi pds pHOOv Eerrov, 25 Modoon ‘Odvnmdbes, odpar Ards ainidxoro" « Tloméves &ypawnor, xdx’ tr€yxea, yaotépes dtov, yew yesbeo TOAAK Aéyerv érsporow duoia” ‘Guev B , cbr L6EAonev, dane ynpsoao8an. » “Ac Hhacav KOOHa peydAov Ards dpriémeion, 30 Kai por aKintpov EBov Sddvng EpiBnréos Sov Bpéyao8on Onnr6v- évenvevaay bE p' dorbAy Ogomy, iver KAsiount Ta Peooduever mpd T Evra Kali peKédov Suveiv paxdpwy yévos atv Eévrwv, abaic 8 adtag mparév te Koi Botarov alév detbery. Toin Movoday epi ddo1g dvOpuirorotvy. 95 "Ex yap To Movoéwy Kai ExnSddov ‘Amé\AwvoS Gvbpe¢ dowoi Eaor Eni xBdva Kai KiBaprorai, bk BE Atdc Baorrsiec 8 8 BAB10c, Sv TVA Modoan GiAwvror yAvKEpr of dd oTSpatos peer addr" el ydo Tic Kol névBoc Eywy veoxndéi Ovud ‘Snrar Kpabiny dxeaxruevos, adTep dordog vw Movadusy Sepdnav xAéea mporépuv dvOpimwy Suvifon udKapde re Osobg di ’Orvuxoy Exovory, aly’S ye Svobpoovvéwy EmArfOcrar OOdE T KNBEWY néuvatan’ raxxéis bt mapérpame Bipa Beduv. m No prélogo da Teogonia, Hesiodo também comoga dirt- gindo-se as Musas, filbas de Zeus que sabem proporctonar aos homens 0 esquecimento das afli¢des. Esta evocacao poe em cena o proprio Hesfodo chamando-se por seu nome. Hesiodo, Teogonia, 22-34 Elas (as Musas) certa vez, a Hesfodo, ensinaram belo canto, Quando ovethas ele apascentava sob o Hlicon divino. Ea mim, antes de tudo, as deusas estas palavras dirigiram, Musas Olimpiades, filhas de Zeus que tem a égide: Pastores agrestes, maus opréblos, ventres $6, Sabemos muitas mentiras dizer a fatos semelhantes E sabemos, quando queremos, verdades proclamar. Isso disseram as filhas do grande Zeus que falarw claro Ea mim, como cetro, deram um ramo de floride louretro Que cortaram, admiravel. Insuflaram-me um carto Divino, para que celebrasse o que serie 0 que foi antes E mandaram-me hinear a raga dos ditosos que sempre so Ea elas primeiro e por Gltimo sempre cantar. Hesfodo, Teogonia, 93-103 ‘Tal € das Musas 0 sagrado dom para os homens Pois € pelas Musas e por Apolo, que atira longe Que nobres aedos hé sobre a terra ¢ citaristas — ‘Como por Zeus hé reis. Prospero é quem as Musas Amam: doce Ihe corre, da boca, voz. Pois se alguém, triste no &nimo recém-ferido, ‘Teme com aflito coragio, to logo o aedo, Servo das Musas, a fama dos primeiros homens. Cante —€ 08 ditosos deuses que tém 0 Olimpo, ‘SUbito esquece ele as afligoes e de nenhuma preocupacao Se lembra: rpido o revolvem os dons das deusas. 2 i 2. VER E SABER: ULISSES E DEMODOCO. No banquete dos feacios, eis o espantoso encontro de Ulisses Galvo uma tltima vex do naufrdgio, nao tendo retomado | ainda seu nome de Ulisses) e de Demédoco, o aedo cego: | Homero, Odisséia, 8, 62-66 Kijov€ 8 éyysbev FAGev dywv tpinpov dowdy, | ame arora contigo ofl Peer ula sealed os olhos privou-o, deu-the o agracével canto, Ra een henelie cero Paa ele entao Pontonondispde um trono achado de pata TBS dpa Tovtdvoos Biike BpSvov dpyopsnhov p85 um tron 7 é No meio dos comensais.. nécoy Scatopdvev... Jos comens Entre 03 altos feitos dos homens, 0 aedo € entdo incitado a cantar a querela entre Ulisses e Aguiles (que naose conbece por outras fontes). O que provoca, uma primeira vez, as lagrimas de Ulisses. Homero, Odisséia, 8, 72-92 10 logo 0 desejo de beber e comer saciaram, Sot acaand nanan laacne é a ‘A Musa zo zedo impeliu a cantar a fama dos guerreiros, Motd dp! doxbbv dviiesy dexBéuevar xéa dvdpav, Do entrecho cuja fama entio ao amplo céu chegava, oiung Tig ToT Spa KAgos obpavov edpdv ikave, A disputa de Ulisses e do Pelida Aquiles, 18 vEiKog ‘OBvaariog Kai InrsiBew "AxtAMI0G, Quando se afrontaramnerbanquete festive dos deuses ic mote Bnptoavro Gedy év Saati Oaretn Abrap Enel néat0g Koh Bn TUos EE Epov Evro, ” 6 bxmdynotd! éxéeoot, divat 8 dvbpiv “Ayapéuvev Xelipe voy, 8 PGprator ‘AxanBv Bypswvto" &c yep of xpsiwv pvO8rjaato boibog “AnddhOv TloO0t év Hyaden, 80 daépbn Adwvov o8B8v xpnoduevos: t6te yap ba xvAivBero mpwatos &pxih Tpwot te Koh Aavacior Aids peydrov 51 Bovddc, Tait tip dorddg derbe nepixdvtds. Abtap“OBvacei¢ mopdspeov neva dap0s Edw xepdh orapHor Kai Keparhiic elpvoae, KéAvYE BE KOAG mpdowme: aidero yap Painas bx Sposa: Béxpve. AciBuv. THro1 Ure AriEetev deiDwv Betog do1d4c, Baxpv' SuopEduevos xedaA i Saxo dapos Ercoxe rol Bénag duguedmeddov EAdv oxcioaaxe Beciow™ adrap &t dy &pxorto Kai orpsveray deiBerv Darrxwy of Sproror, exci téprove éxéeoowv, &y ‘OBvoedc karé Kpara Kadvyduevos yodaoKey. Com viotentas palavras, ¢ 0 senhor dos homens, Agamemnon, Alegrava-se no espirto porque os melhores dos aqueus contend Assim, pois, em oraculo Ihe falara Febo Apolo, Na saeratissima Pito, quando ultrapassara o pétreo portal, Para consulti-lo. Entio f girava o prinefpfo da desventura Para os troianos ¢ os danaos, pela vontade do grande Zeus. Isso sim cantava 0 aedo ilusire. Entto Ulisses, Grande véu de purpura tomando com as maos fortes, Da cabeca fazia-o descer ¢ escondia as belas faces: ‘Tinha vergonha dos fedcios, os cilios banhados de igrimas. Mas cada vez que parava de cantar o divino aedo, Enxugando as ligrimas, da cabeca o véu ele tirava e, ‘Uma taga de duas asas tomando, ofereca libagzo acs deuses. Entio, quando de novo comerava o aedo € 0 impeliama cantar ‘Os melhores dos feécios, apés alegrar-se com as palavras, De novo Ulisses, escondendo a cabegay gemia— Mais tarde, aps ter prestado bonras a Demédoco, Ulisses pede-Ibe que cante 0 episédio do cavalo de madeira. De ime- diato atende 0 aedo e seu canto €, de fato, a primeirissima narrativa da tomada de Tréia (a Uiada terminara antes da queda da cidade e a Odisséia abre-se de chofre apés 0 acon- tecimento). Qual serd a reacao de Ulises? De novo ele pde-se a chorar. 0 Adrap énei novos Kal EBntios é€ Epov Evr0, BA Tére AnuSBoKoV xpoaspn moASuANG ‘OBvavedc * « Anp6b0x , Eoxa Br oe PporSv aivitow! dmévrwv + #1 0€ ye Mota’ EBtBage, Aids anc, H o€ ¥ARAAWV * Ainy yep Kae xdopov ‘Axaudy dlrov éeiberc, 10 500 Eptav 1 EnaQdv te xoi Sa0 Eudynoay ‘Axatot, 5 té nov #] adrds mapedy Fi GARD éxoBoac. “AAX dye Bi uetabnOt koi row Kdopov éetoov Bovparéov, tov "Eneids énoinoev ody “AOHva, By mor kc dxpdmody Bédov Haye Siog “OBvavess 455 dvbpiiv tumArfoas, di Tov ordnakay. Ai key By wor radta: karc woipav karargtac, adtixa Kai méow pverfcoucn évOpdrotow, 5g &pa tor mpéppwov Beds Grace BEomv ordi. » Homero, Odisséia, 8, 485-498 Tio logo o desejo de beber ¢ comer saciaram, Ento a Demsdoco dirigiu-se o astucioso Ulises: Demédoco, acima sim de todos os mortais te louvo: (Qu a Musa te ensinou, filha de Zeus, ou Apolo, Pois muito em ordem 0 facio dos aqueus cantas, ‘Quanto fizeram e sofreram e quanto suportaram, Como se, em parte, estivesses presente ou 0 ouvisses de outro. ‘Mas cial agora muda € canta a construcio do cavalo De madeira — 0 que Epeio fez com Atena, Aquele que, na acrépole, introduziu com dolo 0 divino Ulisses, Tendo-o enchido de homens, os quais flio desteulram. Pois se sobre isso, parte por parte, para mim discortes, Logo também direi a todos os homens Que um benevolente deus te deu o divine canta. 3. 0 HISTOR A epopéia conbece a personagem do histor, ou melhor: personagens que desempenbam 0 papel de histor, de arbi- tro? Em duas ocasiées, na liada, apela-se a ura histos para soluctonar uma situagdo de confltio (netkos). Primeiro exemplo: por ocasido dos funerais de Patroclo, Ajax e Ido- meneu entram em desacordo no momento de saber quem, apés ter dado a volta ao marco, estava a frente na corrida de carros organizada por Aquiles. Ajax, entdo, propée tomar Agamémnon como histor. a ‘Toy 8¢ xorwadpevos Kpqray éyds dvriov n8Ba- «Alay, véixos diptote, kaxoppadts, GAG re mdévea Beseat "Apyeiwy, bn tor vbog éorw éanviis. ‘Aedp6 vov A tpinoBos mepiBdueOov HE ALEATOG, Yoropa 8’ "ArpeiBny "Ayapénvova Belper dud, “Smndtepar mp400" ‘inno, iva wisng émoTiveav. » ach 8 etv dyopi toa d8pdor - EvBai BE vEiKOS apsiper, 860 8 dvbpes bveixeoy divexa. nowFig dvbpbq dmopOruEvoo «6 uv ebxero ndve darobobvan Brine mhatoxwy, 6 8 dvaivero undkv EAgoBen * dug 8 i€oOny ex Toropt neipap EAEGBOL. Aaci 8! éudoréporav Emixvov duds épovot™ kripvxec 8 Spa Aadv éprirvov - ol BE yépovtes da’ ém Eeordion Bors tong Evi KUKAL, oxfirrpa Be xnptxav ev xépd Exov Hepodsveny * toiow Exert Hiacov, dyovEnsic dt Bixatov - xeiro 8 dp’ Ev péao0I0t Bw xpvacio téAavta, 16 B6pev 8¢ were toi Bixny Wivrata etxo1. Homero, Iliad, 23, 482-487 Ea cle, furioso, o chefe dos eretenses, em face, diz Ajax, excelente nas disputas, malicioso, em tudo mais Xs inferior aos argivos, porque teu espicito é duro. Agora vamos! apostemos um tipode ou um caldetido , como drbitro,o Atrida Agamemnon tomemos, n¢s ambos, Para dizer quais os primeiros cavalos, a fim de que saibas e Ipaguest Segundo exemplo: no extraordindrio escudo, forjado por Hefesto para Aquiles, representa-se, entre outras, uma cena ‘em que dots bomens, que um grave desacordo separa, dect- dem apelar para um histor. Homero, Iliada, 18, 497-508 Ea multidao, na praca, estava em massa, Li uma disputa Levantara-se: dois homens discutiam por causa ds sangio Por um homem morto. Um jurava tudo ter pago, Ao povo falando; 0 outro negava ter recebido algo. Os dois foram a um drbitro para receber a senterga. A multidao, em volta, aplaudia, favorivel a um ou outro, E arautos entio a multidao continham, A seu lado, velhos Sentavam-se em pedras polidas, num circulo sagrido, Tendo nas maos os bastdes dos arautosde voz possante: Com ele levantam a voz e, um apés outro, julgam. E eis que jazem, no centro, dois talentos de ouro, Para dar a quem dentze eles a sentenca mais reta ditar, 33 Il. GLOSSARIO MUSA Demédoco recebeu o ensinamento — diz Ulisses — da Musa, filha de Zeus, ou de Apolo. Para Hesiodo, zeloso dos detalhes genealdgicos, as Musas sao filhas de Zeus € da Meméria (Mnemosyne). Mnemosyneé antes de tudo uma poténcia de evocacio, nio de recolhimento. Sempre pre- sentes, as Musas sabem tudo e cantam 0 que é, 0 que sera, 0 que foi. Sob sua inspiracio, o aedo — como 0 cego Demédoco — vé 0 que todavia jamais viu e se “lembra" do que, para ser exato, jamais conheceu. Como fundamento do saber, hd essa evidéncia de uma presenga no mundo. Em particular, o poeta da Guerra de Tr6ia, semelhante a Zeus do alto do Olimpo, vé paralelamente 0s dois lados: 0 dos aqueus tanto quanto o dos troianos. No século If d.C., Luciano ainda fara referénc a esse olhar de Zeus, mas entio para falar do historiador. Oniscientes, as Musas podem dizer tudo: nao apenas 0 que , mas também, se 0 querem, 0 que nao é — tanto contar “mentiras (psetidea) semelhantes a fatos (etymoisin)", quanto “verdades (alethéa) proclamar”. Abre-se ja af a possibilidade de partilha entre 0 real ¢ a ficcio, que se apresenta sob a forma do como e da imitacao. HISTOR Ninguém é bistor, mas assume a fungao de — sempre num contexto de desacordo. Agamémnon é escolhido pelos dois protagonistas certamente porque € o chefe dos aqueus. Na cena do escudo as coisas sto menos claras: 0 bisior € esco- Ihido dentre os ancidos? Se sim, 0 que o qualifica como tal? E quem decide? Para Emile Benveniste, histor, conforme a etimologia (re- corde-se a formula de juramento: fsi0 Zeus, que Zeus seja testemunha!), € a testemunha (mdrty), “enquanto zquele que sabe, mas, antes de tudo, enquanto aquele que viu". Entre~ tanto, em nenhuma das duas cenas da Ilfada trata-se de uma testemunha que viu: Agamémnon nao viu seguramente nada €, na outra cena, o bistornio é evidentemente testemunha do Meo assassinato. Infelizmente para nés, as duas cenas interrom- pem-se antes do fim. Aquiles pe termo a disputa antes mes- mo que Agamémnon entre em ago. E 0 escudo nao pode descrever 0 proceso em si. © bfstortem um papel ative? Agamémnon ird promover uma investigagac para saber quem estava 3 frente no momento do desacordo, ov é ele tio somente (e muito provavelmente) o fiador — e, nesse sentido, a “testemunha” — dos compromissos assumidos (da aposta) por Ajax ¢ Idomeneu? Do mesmo modo, no caso do assas: ato, & 0 bistor que propde uma solugao pars o conlflito, ou ele somente o fiador, a “testemunha”, para agora e para © Futuro, de um compromisso aceito pelas duas partes, de acordo com a “reta sentenca” proferida por um dos ancitios? Seu papel se aproximaria entao do que era stribuido a0 mnémon, homem-meméria ou “recordacio viva’ (L. Gernet) — como acontecia, particularmente, na cidade cretense de Gortina. O mnémon é uma sorte de testemunha piblica “que guarda a lembranga do passado em vista de uma decisio judicial". Sua presenga indica o aparecimento, no direito, de uma “fungao social da meméria”> A historfede Herédoto, com seu zelo de guardar a memé- ria do que aconteceu dos dois lados (gregos ¢ barbaros), conservari algo da posigao do histor como arbitro, mesmo se 0 historiador nao € nem pode ser um histor. Poder-se- sustentar que é justamente porque ele no o € que tem neces- sidade de bistorein Cinvestigar). AEDO Inspirado pela Musa, 0 aedo celebra os deuses ou 08 altos feitos dos herdis, E trazido para os banquetes ¢ dele se espera que proporcione, aos convivas, prazer (térpsis) ¢ esquecimento das afligdes presentes. Quem vive gloriosamente até morrer receberd, em troca, uma gléria imortal que nao se consome (kléos apbthiton), cujo dispensador € © poeta: Aquiles € 0 prototipo dese herdi. Pelo canto do aedo os keréis trans- formam-se em "homens de antigamente” assim se tece, se tepete e se transmite um passado glorioso: 0 passado. “O homem, diz-me, Musa, multiforme...": © prélogo épico € partilhado entre a primeira pessoa e a segunda. O eu do aedo (moi, no dativo) acolhe e transmite a palavra divina. 33

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