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Copyright © 2003 by Maria Bliza Linhares Borges Projeto grafico da capa Jairo Alvarenga Fonseca (A Fotografia nas viagens de exploragio”, Reproduzido de Tissandier. Gaston. Le Merveilles de la photoyruphie, Paris: Hachette, 1874. In:. KOSSOY, Boris. Origem ¢ expansée du fotugrafia no Brasil: séculu XIX, Rio de Janeico: FUNARTE, 1980, p, 38) Coordenadores da colecao Carla Anastasia Eduardo Paiva Editoragdo eletranica Waldénia Alvarenga Santos Ataide Revisdo Ana Elisa Ribeiro Borges, Maria Eliza Linhares BS83t Historia & Fotogratia / Maria Eliza Linhares Borges — Belo Horizonte: Auténtica, 2003. 136p. (Colegao Histdria &.,. Reflexdes, 4) ISBN 85-7526-075-8 1, Fotografia-histéria. I. Thulo. H. Série. CDU 77(091) 791.43 SS 2003 Todos os direitos reservados pela Auténtica Editora. Nenhuma parte desta publicacio poderd ser reproduzida, Seja por meins mecdnicos, eletrénico, seja via copia xerogréfica sem a autorizacao prévia da editora, Auténtica Editora Rua Fanudtia, 437 — Floresta 3111-060 - Belo Horizonte - MG PABX: (55 31) 3423 3022 — TELEVENDAS: 0800 2831322 www autenticaeditora.com.br e-mail: autentica@ autenticaeditora.com.br A imagem fotografica é mais que a retencdo de um fragmento do real sobre um suporte. Sao trechos de wma realidade suspensa no tempo roubados da vida e devolvidos a cla com revelagées inesperadas. Luis Humberto SUMARIO InTRODUGAO...... Capituto 1 A Ciéncia Histérica na época da invengio da Fotografia... A ilusio de inovagao. A historiografia metédica ca rejeigao do documento fotogritico... ‘As fontes de pesquisa hist6rica ea educagao do ollie Capiruco If Tradigdo ¢ modemidade na mira O retrato fotogrifico: didlogos com a pintura Acera dos esttidios fotogriticos.. ‘A cra dos cartdes-postai A fotografia c as representagoes da morte Fotografia, imprensa ¢ politicas publics Cariruco TT A Histéria-conhecimento e o documento fotagrafico.. Pesquisa histérica e documentos visuais. Viagens fotograticas.. 'A Missdo Heliogritica Francesa e outras viagens... © Brasil eo imaginério dos fotdgrafos viajantes. CONSIDERAGOES FINAIS.. ForoGRaria: CRONOLOGIA... REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS.. INTRODUCAO Muito tem sido dito e escrito acerca das relagdes entre Imagens ¢ Ciencias Sociais. Basta correr os olhos pelossumérios das revistas académicas, pelos catélogos de editoras voltadas para 0 piblico universitério ou mesmo observar a disposigio dos livros nas estantes e vitrines das livearias para perceber a proliferagao de temas ligados a esse campo de estudo. Entretan- to, em que pese a inequivoca importincia das imagens visuais no trabalho de pesquisadores, estudantes ¢ no cotidiano dos di- ferentes setores da sociedade contempordnea, ainda € possivel constatar a caréncia de publicagées que preencham a demanda especifica por critérios teérico-metodoldgicos acerca da utiliza- cao de imagens fotograficas no campo daanilise hist6rica. Muito freqiientemente professores de Histéria de diferentes niveis educacionais nos relatam suas dificuldades para explorar, em sala de aula, a rica relagfio existente entre Histéria e imagens, particularmente entre Histéria e Fotografia. Este fivro, sobre a relag¢do entre a histéria-conhecimen- to ea fotografia, vem responder a algumas dessas demandas. Mais que teorizar sobre a natureza da imagem fotografica ou mesmo criar novas categorias analiticas voltadas especifica- mente para oestudo da iconografia safda da camera escura, nossa intengdo primeira € contribuir para um didlogo fértil entre a fotografia, aqui entendida como matéria do conheci- mento histérico, e a histéria-conhecimento. Para tal, busca- mos sistematizar conhecimentos disseminados em diferentes i Coiecho "Histor &... RELXCES” estudos, muitas vezes inacessiveis aqueles que, embora mo- vidos por inquietagdes metodolégicas, nao sabem por onde comecar essa busca. No primeiro capitulo, levantamos uma questao pouco explorada pelos historiadores que hoje vém se dedicando a refletir acerca do lugar e do papel das imagens visuais, da fo- tografia em especial, na pesquisa historica. Analisamos as ra- zées tedrico-metodolégicas que levaram uma parcela signifi- cativa da comunidade de historiadores do século XTX a estabelecer uma hierarquia de importancia entre as fontes de pesquisa histérica, a classificar ay fontes visuais como docu- mentos de pesquisa de segunda categoria e, finalmente, a nao incluir a fotografia no rol dos documentos de pesquisa em His- toria. Esse retorno a historiografia do século XIX ndo é gra- tuito. Nao podemos nos esquecer de que os pardmetros que nortearam o ensino e a pesquisa histérica nesse periodo trans- cenderam seu préprio tempo. Mais que isso, deram o tom, por décadas e décadas, & grande maioria dos manuais de histéria utilizados nas salas de aula das instituigdes universitérias edo ensino fundamental e médio no decorrer do século XX. Em grande medida, pode-se dizer que a forga dessa heranga muito contribuiu para dificultar o desenvolvimento de metodologias capazes de fazer falar as fontes visuais. No segundo capitulo, buscamos mostrar que, embora re- jeitada como fonte de pesquisa historica, a fotografia introdu- ziu um novo tipo de ver e dar a ver a diversidade do mundo modemo, rapidamente incorporado por homens e mulheres do século XIX e das primeiras décadas do século XX. Sem pre- tender desenvolver uma histéria da fotografia, elegemos algu- mas representagdes fotograficas de maior expressao nesse pe- riodo para, a partir delas, buscarmos compreender os usos € as fungées sociais a elas atribufdas pelos fotdgrafos, profissionais e amadores, dos anos oitocentos. Simultaneamente a esse des- cortinar do ofhar fotogrdfico introduzimos alguns dos critérios 12 Historia & Fotografia que hoje orientam a andlise dessa importante fonte de pesqui- sa histérica. No terceiro e tltimo capitulo, tratamos da relagdo hoje existente entre a histéria-conhecimento 2 o documento foto- grafico, Apés uma reflexdo sobre a natureza da linguagem fo- tografica e de suas similitudes com outras imagens, fizemos uma breve incursio sobre as viagens fotograficas, de estran- geiros e nacionais, através do Brasil imperial e republicano. Certamente que ac transitarmos por esse longo periodo, mais que secular, que marca de um lado o surgimento da foto- grafia e de outro a sua incorporagio & pesquisa histérica, niio abordaremos todas as questOes relativas a convivéncia entre essa imagem € a histéria-conhecimento. Temos, no entanto, a convicgfo de que a natureza € a abrangéncia da abordagem aqui proposta hao de contribuir para o estimulo a utilizagao, cada vez maior, das imagens fotograficas na pesquisa € no en- sino da Historia. A tealizag&o deste livro contou com a contribuigdo de diversas pessoas. Dentre elas gostaria de expressar minha gra- tiddio A Amélia Aurora de Magalhies, a Amelinha, pelo incen- tivoe pela leitura criteriosa de partes da primeira versdo. Tam- bém nio posso deixar de agradecer ao jovem fotégrafo Felipe de Freitas Dutra, pelo empréstimo de bibliografia; aos organi- zadores desta coleciio, Carla Maria Junho Anastasia ¢ Eduar- do Franca Paiva, pela confianga; a0 Otdvio e 4 Luiza, meus amores e companheiros de cada dia; e 2 Marlucia pelas xica- tas de café. Como de praxe, gostaria de dizer que as falhas, porventura contidas neste livro, so de minha inteira responsabilidade. CAPITULO}. A Ciéncia Histérica na €poca da invengao da Fotografia A ilusGo de inovagao Antiga héspede da literatura, da politica e da filosofia, a Histéria busca, ao longo do século XIX, construir sua propria morada. No decorrer desse perfado, historiadores de diferen- tes correntes tedrico-metodolégicas empenharam-se na defi- ni¢do da fisionomia e da identidade cognitiva da Histéria com © objetivo de distingui-la das demais ciéncias do homem. E também esse 0 momento do surgimento de um novo tipo de imagem visual: a fotografia. Desde entio, sua trajetériae suas relagdes com a histéria-conhecimento tém passado por per- cursos variados ¢ até mesmo inimaginaveis por seus criadores e pelos historiadores de oficio do século XIX. Hoje, a andlise da relacao entre a histéria-conhecimento e a fotografia, objeto central deste livro, comporta multiplos caminhos ¢ diferentes abordagens. No entanto, esse didlogo, cada vez mais fértil, nem sempre foi celebrado de maneira positiva. No decorrer do século XIX e das primeiras décadas do século XX, um grupo significative de historiadores se re- cusou a langar mao da fotografia como fonte de pesquisa his- térica, muito embora os diferentes setores da sociedade ¢ de outras dreas cientificas tenham valorizado ¢ utilizado esse tipo de imagem desde o seu surgimento. Neste capitulo, analisaremos as razGes da rejeigao da fo- tografia pelos historiadores ligados A historiografia metédica 15 Couecio “HistOm &... REREXOrs” do século XIX. Mas por que iniciar 0 estudo da relagiio entre a histéria-conhecimento e a fotografia a partir de sua negagao? Nio sera esta op¢do um contra-senso? Por mais de uma vez temos presenciado 0 uso da foto- grafia, como um recurso pedagdgico destinado a despertar 0 interesse de alunos do ensino fundamental pelo estudo da histéria de sociedades passadas. O problema ¢ que iniciati- vas como essas, por certo louvaveis, tém, muitas vezes, se reduzido a mera reuniiio ¢ exposig&o das imagens coletadas. Os cuidados necessarios para a compreensio das particulari- dades da linguagem fotografica sao, freqiientemente, descon- siderados. Tal procedimento acaba por reforgar nos alunos a idéia de que os homens e mulheres de ontem viviam exata- mente como se apresentam nas respectivas fotografias. Quando utilizada sob essa perspectiva, a imagem foto- grafica estd sendo concebida como um dado natural, quet dizer, como testemunho puro e/ou bruto dos fatos sociais. Os que assim procedem, encaram a fotografia como duplicagao do real. Transformada em espetho do real, a fotografia dis- pensa o emprego de metodologias capazes de fazé-la falar. Assim concebida, 0 tratamento dado & fotografia € o mesmo que os historiadores do século XIX davam aos documentos por eles considerados como fonte de pesquisa histérica Nessa época, ao historiador de officio cabia coletar os do- cumentos oficiais, aplicar-lhes as regras do métode eritico, respons4veis pela verificagio da autenticidade, da procedén- cia e da veracidade de seus contetidos e, finalmente, enca- ded-los em uma seqiiéncia temporal e espacial. A narrativa detivada desse procedimento acabava por naturalizar os acon- tecimentos histéricos. Em outras palavras, ao partir do pressu- posto de que “as coisas sio como so”, a seqiiéncia dos fatos narrados era apresentada como sendo a expressao natural da verdade sobre o passado. “ Nao Por outra raz4o, acredita-se, naquele momento, que ‘a hist6ria — res gestae — existe em si, objetivamente, e se 16 Historia & Fotogratia oferece através dos documentos”.! Por isso mesmo, 0 trabalho do historiador era dar visibilidade ao passado até entdo escon- dido nos documentos guardados nos arquives. Nao por acaso os criticos desse modo de abordar a Histéria dizem que a his- toriografia metédica instituiu a mistica de um conhecimento essencialmente objetivo e mecanico, ou seja, natural. Ora, quando o conceito de conhecimento hist6rico deixa de ser percebido como dado natural ¢ passa a ser entendido como conteido cultural sujeito a interpretagoes, estamos di- ante de um outro paradigma. A essa altura, j4 ndo se pode mais aplicar as evidéncias hist6ricas e aos documentos 0s mesmos conceitos de fonte e de pesquisa histérica propostos pelo para- digma que dava suporte a historiografia metédica. Como nos lembra Thomas Khun, um paradigma éum modo cientifico de produzir conhecimentos. Seu funcionamen- to pressupde um arranjo entre perguntas e tentativas de res- postas, mediado por hipsteses, que. durante um certo tempo, orienta os rumos da pesquisa da comunidade de praticantes de uma ciéncia. Toda e qualquer questo que nao se encaixe nes- se arranjo — ao qual Khun chama de anomalia ou de violagiéo de expectativas — é tida como elemento perturbador e, por isso mesmo, deve ser desconsiderada por aqueles que se guiam pela légica do respectivo paradigma.* Eis aonde queremos chegar! Pelas razGes que veremos um pouco mais adiante, acomunidade de praticantes da his- toriografia metédica entendia que a imagem fotografica nao preenchia os requisitos necessdrios para ser considerada fon- te de pesquisa histérica. Percebida como uma anomalia, foi deixada de lado. | RESIS, José Carlos . A Histéria entre u filosofia ¢ a ciépera. Sao Paulo: Atica, 1996, p. 13. 2 KUHN, Thomas. A estrumura das revolucdes cienifficas. 2.¢d., S50 Paulo: Perspec tiva, 1978, p. 13. Conecao “Hist Bi... Rereexcts” Hoje, entretanto, a cogni¢o em Histéria percorre cami- nhos bem distintos. Se a fotografia vem sendo cada vez mais utilizada como fonte, como objeto de andlise e como recurso pedagdgico, é porque a comunidade de praticantes da ciéncia hist6rica nado mais se orienta pelos fundamentos do paradigma metédico. Entretanto, hd quem acredite que 0 uso de imagens fotograficas na pesquisa hist6rica signifique inovar, mesmo quando se Ihe aplica o mesmo conceito de documento histérico utilizado pela historiografia met6dica, Nao se percebe, por exem- plo, que no novo paradigma nem a Histéria é um conhecimento mec4nico destinado a traduzir a verdade dos fatos, nemo docu- mento fala por si mesmo ¢ nem o historiador é um mero trans- missor das informagées nele contidas. Portanto, reunir imagens fotograficas de um determinado periodo e apresenta-las como fiel retrato do passado é um procedimento em tudo e por tudo igual a pratica dos pesquisadores do século XIX. Lembremo-nos de que eles negaram 0 estatuto de docu- mento histérico as imagens fotogrdficas, muito embora tenham langado mao das iconografias contidas tanto na emblematica quanto nas pinturas de histéria, j4 que “ilustravam” exatamen- te o que estava posto nos documentos escritos. Ora, se usamos as imagens fotograficas sob essa mesma perspectiva, estamos, na realidade, criando uma flusdo de inovagdo. Quando utiliza- da com fins compreensivos, a fotografia, ou qualquer outro tipo de iconografia, demanda o emprego de metodologias con- soantes com a légica e os fundamentos tedricos que a defi- nem como fonte de pesquisa hist6rica. Inseri-ia na pesquisa, a titulo de inovagao, e aplicar-lhe o conceito de documento de um paradigma que nao a inclui no rol de suas fontes, é 0 ™mesmo que produzir um coquetel tedrico-metodolégico, por certo nada esclarecedor. Quando as imagens visuais, dentre elas a fotografia, sao uti- lizadas como fontes de pesquisa hist6rica, € porque funcionam come mediadoras e ndo como reflexo de um dado universo 18 Historia & Fotografia sociocultural. Integram um sistema de significagio que nio pode ser reduzido ao nivel das crengas formais e conscientes. Pertencem a ordem do simbélico, da linguagem metaférica. So portadoras de estilos cognitivos préprios. Um retorno, breve que seja, ao paradigma metédico pode nos ajudar a evitar a falécia do que estamos chamando de ilu- sfio de inovagao. A historiografia metédica e a rejeigdo do documento fotografico O sucesso da publicagdio, em 1898, de Introdugao aos Estudos Histricos nao foi gratuito. Ao lado da edigio dos mimeros de A Revista Histérica, surgida em 1876 na Franga, a obra de Charles-Victor Langlois e Charles Seignobos, dois pro- fessores de Hist6ria da Sorbonne, teve o mérito de condensar ¢ divulgar os fundamentos epistemolégicos da Hist6ria, entendi- da como “um conhecimento cientificamente conduzido”. Se, por um lado, esse “ensaio sobre o método das cién- cias histéricas” se encarregou “de subtrair A ciéncia histérica as causas sobrenaturais, de colocar em xeque o finalismo mar- xista ¢ 0 progressismo racionalista”, por outro, resgata uma antiga tradicdo da pesquisa histérica. Embora tivessem um en- tendimento proprio do processo de cognigao histérica, Lan- glois e Seignobos sustentaram a tese de Tucidides de que a pesquisa histérica se inicia com a suspeita. Segundo ele, acei- tar os documentos em seu conjunto, sem um exame prévio de sua autenticidade e procedéncia, equivaleria a reproduzir o senso comum, fortemente comprometido com os interesses desse ou daquele ator social. Na era moderna, o legado tucidiano de critica docu- mental foi fortalecido pelas contendas entre Lutero e a Igre- ja. Ao colocar em divida a interpretacao que a Igreja dava 19 Ir eee Corea "Histon &... Retexors” ao texto bfblico, Lutero e seus seguidores contribufram para disseminar o princfpio da divida e, indiretamente, favorecer a critica dos textos oficiais. No decorrer do século XVM, Des- cartes estabelece uma relagdo direta entre a divida metédi- ca, a aplicagdo dos métodos de pesquisa ¢ o conhecimento cientifico. Grosso modo, pode-se dizer que esse clima de desconfianga diante do texto acabou por favorecer a ndo-acei- tagio passiva das informagées contidas nos documentos uti- lizados pelos historiadores. Em 1681, 0 beneditino Dom Mabillon (1632-1701) pu- blica uma espécie de manual, De Re Diplomdtica, destinado a distinguir documentos falsos de documentos que, com 0 tem- po ¢ as cépias, iam sendo adulterados, conscientemente ou nao. Nao é incorreto dizer que essa obra de critica textual fun- ciona como um marco para a construgéo de um método de anilise histérica do documento escrito. No século XIX, 0 his- toriador alemao Leopoldo von Ranke reafirma a necessidade de o historiador buscar a autenticidade e a legitimidade dos documentos histéricos. $6 assim eles nos mostrariam 0 acon- tecido “tal como efetivamente tinha sucedido” 3 Como nos lembra o historiador Sérgio Buarque de Ho- landa, essa afirmativa, proferida em 1824, foi fargamente di- fundida entre a comunidade de historiadores europeus, des- de o inicio da segunda metade do século XIX. Embora ela tenha sido proferida por um historiador que, na pratica, in- terpretava os documentos e neles buscava um exo de senti- do para explicar os fatos narrados, suas palavras foram des- contextualizadas e utilizadas de forma pragmitica, restrita e simplista. Dentre os responsaveis pela vulgarizagao da tese de Ranke, encontram-se os autores de Introdugdo aos Estu- dos Histéricos. Sio eles, também, os defensores de um outro "HOLANDA, Sérgio Buarque de (org.) Leopold ven Ranke: histiria. Si Paulo: Atica, 1979, p. 14 Histéria & Fotogratia fundamento da histéria metédica: o da fuso entre realidade e conhecimento histérico, entre Aistéria-maréria do conhe- cimento (hist6ria-fazer) e histdéria-conhecimento dessa ma- téria (hist6ria~-conhecimento). Esse conjunto de preceitos, jé incorporado por muitos pesquisadores desde meados do século XIX, transcendeu, ra- pidamente, a prépria comunidade de historiadores dedicados exclusivamente A pesquisa hist6rica. Foi partilhado por orga- nizadores de bibliotecas e de acervos documentais financia- dos pelos cofres piiblicos, além de ser reafirmado, dentro € fora da Europa, por professores de histériae autores de manuais diddticos dessa disciplina. Os contetidos expressos nesses ve- fculos de transmissio dos fundamentos do paradigma met6- dico entravam pelas portas e janelas das salas de aula e se alojavam no inconsciente dos alunos.‘ Contribufam abertamen- te para a formagfio de uma consciéncia histérica ancorada, de um lado, na aplicagio do método de andlise dos documentos escritos e, de outro, na valorizaciio das ages sociais daqueles que eram considerados os verdadeiros sujeitos da Hist6ria: os dirigentes politicos, civis e militares. Nio é demais lembrar que, além de pesquisadores, os autores de Introdugdo aos Es- tudos Histdricos, juntamente com outros praticantes da Esco- la Metdédica, também formularam os programas ¢ claboraram as obras de histéria destinadas aos alunos dos colégios e da escola primicia, (fundaram} simultaneamente uma disciplina cientifica e segregaram um discurso ideoldgico que continuou a dominar o ensino e a investigacio em his- t6ria nas universidades [francescs| até os anos de 1940; +O livro do espanhol Santiago Calleja Fernindez, Nociones de Histéria de Espahe, escrito em 1886 e utilizado nas escolas espanholas durante as trés primeiras déca- das do século XX, contém uma série de fundamentos presentes na obra de Langlois e Seignobos. CALLEJA FERNANDEZ, Santiago. Nociones de historia de Espa. Madrid: Casa Editorial Saturnnino C. Fernandez, 1886. 2 CouechtaHistoras &... REeruxées” e inscreveram uma cvolugde mitica da coletividade francesa - sob a forma de uma galeria de herdis ¢ de combates exemplares — na meméria de gerages de estudantes até os anos de 1960.* No caso especifico do Brasil, € possfvel encontrar ecos des- sa concep¢ao de Hist6ria tanto nos dois volumes do manual didatico de histdéria de Joaquim Manoel de Macedo (1820- 1883), Ligdes de Histdria do Brasil para uso dos alunos do imperial Colégio de Pedra II, assim como nas teses defen- didas por Jodo Ribeiro (1860-1934), autor de Historia do Bra- sil.’ Alguns estudiosos da atualidade mostram que tanto as idéias de Macedo quanto as de Jodo Ribeiro influenciaram, * Sobre os pressupostos dessa obra, ver: BOURDE, Guy « MARTIN, Hervé. As Excolds Histéricas. Lisboa: Europa-América, s/d. (Forum da Histéria), especifi- camente p. 94. *Q liveo de Joaquim Manoel de Macedo, escrito o primeiro volume em 1862 ¢ 0 segundo ¢ 1863, foi fortemente influencindo pelas idéias contidas em Histdria Gerat do Brasil, de Adolfo Varnhagen, historiador de confianga da Casa de Braganga ¢ um dos principais membros do Instituto Histérico Geogrifico Brasi- Jeico (THGB). Para além do iimportante papel desempechado por Varnbagem, jun- to a0 IHGB, sobretudo no que se refere a coleta e organizagao do acerve docu mental brasileiro relative aos séculos XVI, XVI ¢ XVI, os analistas da produgao historiografica do século X1X tém sido undnimes em atribuir a Varnhagem a di- fusdio de uma visio de uma histéria do Brasil calcada nas idéias da conciliagdo, da reforma e da cordialidade do brasileiro, Sobre essas questdes. ver: RODRIGUES. José Hondrio. Histiria Combatente, Rio de Saneiro: Nova Fron- teira, 1982, p. 191-296, BANDEIRA DE MELO, Ciro F. Seahures da Hisiéria: a construgdo do Brasil em dois manuais diddticos de Histéria nu segunda metade do sécute XIX, Sio Paulo; USP, 1997. (Fese de Deutoramento); MATTOS, Selma Rinaldi. Ligdes de Macedo, Uina pedagogia do stidito-vidadio no Império do Brasil, In: MATTOS, Hmar Rohloff de. (org.). Histériu do ensinn da historia no Brasil. Rio de Janeiro: Access, 1998, p. 31-44. 7 Alguns cstades charmam a atengdo para a clara influgacia, na obra de Jodo Ribei- ro, das idgias do alemao Karl Friedrich Philipp von Martiu que, em (840, foi vencedor de um concurso realizado pelo IHGB. com a obra Como se deve excre- ver a historia do Brasil. HA quem sustente que muitas das idgias contidas co livo de Jodo Ribeiro estiveram presentes na maioria dos manuais didaticos de Historia até 0 inicio de 1960. Sobre essa questic especificamente. ver: BANDEI- RA DE MELO. Ciro F. Senhares da Histiria: a consiruyo do Brasil em dois manudis diddticos de Historia na segunda metade do séculy XIX. Sio Paulo: USP, 1997. (Tese de Doutoramento). 22 —— ON OE OO Historia & Fotografia simultaneamente, a produgio didatica de historia e a pesqui- sa de historiadores e cientistas sociais como Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre.* Para o que nos interessa no momento, € importante lem- brar que muito embora os historiadores afinados com o pensa- mento da Escola Metédica nao tenham dispensado o uso de imagens visuais em suas pesquisas e em seus livros didaticos, sempre supervalorizaram o documento escrito na produgdo de suas narrativas. O uso da emblemitica, safda da filatelia e da numismitica, bem como o emprego das pinturas de histéria ajudaram-lhes a sustentar uma nogio de Histéria calcada na idéia de verdade sem macula. Além de confirmarem o que diziam os documentos escri- tos, as imagens visuais tormavam mais palatavel o entendimento do que estava posto nas fontes textuais. Sob essa perspectiva, os espécimes iconogrdficos acima referidos funcionavam tan- to como recurso didatico, quanto como documento histérico. Como fonte de pesquisa histérica ela apenas confirmava o que * Bimportante cessaltar que os livros de Juaquin Manoel de Macedo cncarnam uma visio da formagao ¢ da identidade nacional brasileira muito proxima dos ideais da Casa de Braganga. Jd 0 historiador Jodo Ribeiro tinha um forte cemnpromisso com 0s ideais republicanos. Entretanto, um outro foram defensores dos pressupostos gnoseoldgicos que alicergaram © paradigma metédic. Alguns estudos sobre a obra de Jofo Ribeiro sustentam que muitos dos fundamentos contidus em seus escritos estiveram presenes na mioria dos manuais diddlicas de Historia até o inicio de [960. Sobre esta questio especificamente, ver: RBANDEIRA DE MELO. Ciro F, Sentiores da Historia: a censtrugda do Brasil em dois manuais didéticos de Histiria na segunda metade di sécute XIX, S80 Paulo: USP. 1997. (Tese de doutoramento). E importante ressaltar que os livros de Joaquim Manoel de Macedo encarnam uma visio da formagao e da identidade nacional brasileira muito proxi- ma dos ideais da Casa de Braganga, Id 0 historiador Jode Ribeiro tinha um forte compromisso com as ideais republicanos. Entretanto, une outro foram defensores dos pressupostos gnoseolégicos que alicersaran @ paradigma metéico. Alguns estados sobre a obra de fodo Ribeiro sustentam que muitos dos fundamentos conti- dos em seus escritos estiveram presentes na maioria des mamuais diddticos de His- téria até 0 inicio de 1960, Sobre esta questo especificamente, ver: BANDEIRA DE MELO, Ciro F. Sevhores da Histirie: a consiragdo de Brasil emt dois maniis didéticos de Historia na segunda metade do séeuls XIX, S40 Paulo: USP, 1997. (Tese de doutoramentoy, HANSEN, Patricia Santos, A Histévia dv Brasil de Joo Ribeiro, Rio de Janeiro: Acces, 2000. (Feigdes & Fisionomia) 23 Cotecso “Histeoais &... REMoxdes” ja estava dito nos documentos escritos. Dada essa posigiio su- balterna na hierarquia de importancia dos documentos utiliza- dos na pesquisa histérica, as imagens visuais nao passavam de documentos de segunda categoria. Ora, constatar que as imagens visuais, aceitas pela histo- riografia metédica, desempenharam as fungées de ilustrar 0 texto escrito e de despertar sentimentos patridticos nos leito- res, ajuda-nos a entender apenas parte do que estamos buscan- do responder. Em outras palavras, compreender o lugar da em- blemitica e da pintura de histéria no paradigma metédico nao explica, por si 86, porque as imagens fotograficas levaram mais de um século para serem aceitas como fonte de pesquisa nas Ci€ncias Sociais ¢ na Historia em particular. Quando a fotografia surge, em 1826," suas imagens con- taram com 0 apoio de diversos homens de ciéncia, além de industriais, comerciantes e politicos. Ja em 1839, Francois Arago (1786-1853), membro do Parlamento francés, promove uma reuniao conjunta da Academia de Ciéncias e de Belas Artes da Franga com 0 objetivo de exaltar sua natureza precisa € exata. Seu sucesso e sua credibilidade imediatos estavam Jigados ao fato deta ser uma imagem produzida a partir de processos fisico-quimicos. Seu forte potencial analdgico, ain- da que passivel de adulteragdo, estimulava a crenga de que suas imagens eram uma reprodugao fiel do real, da “coisa tal como ela &”. Apesar da convicgéo generalizada de que o que sai da cdmera escura era cépia perfeita do real, a pratica da pesquisa histérica desenvolvida nas universidades e demais centros aca- démicos permaneceu inalterada. As imagens fotograficas nao *E importante assinalar que enire os estudiosos da histéria da fotografia permanece uma larga discordincia sobre a data da peodugiio da primeira fotografia, De acorda com Giséle Freud, Nicéphore Niépce teria criado a fotogeafia em 1824; ji para Gabriel Bauret, a primeira fow de Niépce data de 1826. Ein Era wna ver o cinenta, a primeira fotografia € datada em 1823. Os marcos cronolégicos referentes & hist6- ‘ia da fotografia ¢ dos fotdgrafos serio, neste livro, extraidos do DICTIONAIRE de Photo, Paris: Larousse, 1996. 24 Historia & Fotografia foram consideradas documento histérico. O que estaria, efeti- vamente, por detrés de tal rejeigao? As fontes de pesquisa historica e a educacao do olhar Nos livros VI ¢ VII da Repiiblica, Plato nos fala por met4foras. Sua Alegoria da Caverna nos remete a discussio do papel formador e transformador da educagio (paidéia ) que visa ao conhecimento do mundo inteligivel (diandia). Para Platdo, a educago é um processo complexo ¢ tortuoso que ao invés de atribuir ciéncia 4 alma, como se fosse pos- sivel introduzir a visio em olhos cegas, [a educagéo] éamancira mais facil de fazer dara voltaa esse drgdo fe othe}, uma vez que cle nao esta em posigiio correta ¢ nao olha para onde deve,"° Tanto ele quanto Aristételes concordam que a visio é ° mais completo e o mais nobre de todos os sentidos. Porém, para Plato ela apenas equivaleria ao Bem quando ese ijumina- da pela luz do sol. Com essa metéfora, quer dizer que 0 ato de ver no é um procedimento meramente técnico, nao brota natu- ralmente do movimento mecanico do otha. E, a0 contrario, um processo racional que depende da educagio da alma, isto é.da razio. Eela que coloca, segundo Platao, o olho na posigao cor- reta e permite ao fildsofo distinguir a cépia de seu original, ° certo do errado, 0 verdadeiro do falso. Sempre que uma ima- gem é lida sem a mediagio da razao, cla se transforma emum simudacro do real, ou seja, cria uma ilusdo de realidade. Ja para Epicuro e Lucrécio, 0 olhar € um ato sensitive & meramente receptivo. Para ambos, o homem que vé recebe, e propicia a evidal a % Metaforicamente o sol é 0 astro que representa a lur & propicia a evidencia & clarividéncia no lhar do filéyofo ¢ The permite conhecer as conexdes entre weal dee aparéncia, Sobre isso, ver: DIXSAUT, Monique. “Le trois images”. In: Phaton: Republique (livres VI et VH). Paris: Ed. Bordas, 1996, p. 114-15. 25 Conecno “Histon &.. RELEXOES* passivamente, as imagens do mundo mediante a contempla- go de suas formas e cores. Diferentemente desses dois filéso- fos, Platdo caracteriza esse tipo de olhar quase como uma mio- pia, j4 que a visdo receptiva, meramente sensitiva, apenas dava aconhecer a superficie das coisas. E, conhecer pela aparéncia é 0 mesmo que se iludir, diria Platio. Essas duas vertentes da filosofia do olhar sempre estive- ram presentes nos diferentes momentos da histéria do pensa- mento ocidental. No entanto, os que acolheram uma, rejeita- ram a outra. Por isso Bosi nos dir que 0 racionalismo moderno sempre se viu diante do dilema de “ou conhecer pelos sentidos ou conhecer pela mente”.!! Para o que nos interessa no momento, é importante frisar que a ciéncia modema atribui um peso excessive ao método € as técnicas de pesquisa no processo de explicagiio dos fend- menos fisicos e sociais. Aliados ao uso da razio critica, 0 cor- reto emprego dos métodos e das técnicas de pesquisa garanti- riam a neutralidade e a objetividade do conhecimento cientifico. Esta combinagio, prépria do pensamento empirico-raciona- lista, contribui para que a raziio filoséfica de Platao fosse aos poucos cedendo lugar a razdo pratica do mundo modemo, preocupada com a prova documental. Por isso se diz que “o olho do racionalismo modemo examina, compara, esquadri- nha, mede, analisa mas nunca exprime”.'? Por detrds da excessiva valorizagdo das técnicas e dos métodos de pesquisa se encontra uma légica de organizagdo da relagdo entre conhecimento e realidade. Ao primeiro cabe- tia transmitir a verdade contida nos atos dos atores sociais, expressas nos documentos escritos devidamente examinados. “Sobre ahistéria do olhar no Ocidemte, ver: BOSI, Alfredo. Fenomenologia do olhar, In: NOVAIS, Adauto (org.). 0 athar, Sdo Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 71 8 stor) ae ahistéria do olhar no ocidente, ver: BOSI, Alfredo. Fenomenologia do olhar. : NOVAIS, Adauto (org.). 0 Olfur. Sio Paulo: Companhia das Leteas, 1988, p. 71. 26 Historia & Fotografia Isso significa que caberia ao conhecimento cientifico discer- nir entre o falso e 0 verdadeiro, entre 0 certo ¢ 0 errado. Ora, ao criar 0 conceito de imagem como simulacro do real, Plato também entendia que 0 processo de percepgao do real se fazia mediante o didlogo entre os pélos do par verdade/ falsidade. Para atingir a verdade seria necessdrio educar o olhar do filésofo. $6 assim ele estaria em condigdes de eliminar o falso c ensinar a verdade. Na era moderna, parcelas descon- textualizadas do pensamento de Platao seriam adotadas pela historiografia metédica. De Platéo os racionalistas modernos herdaram tanto a tese que identificava saber e compromisso com a verdade, quanto a que sustentava a relagdo direta entre olhar no educado pela razdo e percepgao iluséria do real me- diante a produgio e/ou visualizagéo de imagens. Com o desenvolvimento da técnica da perspectiva, desde o Renascimento, ganha forga a antiga tese da relagdo entre educagio do olhar ¢ produgao de imagem realista. Acredita- se que toda e qualquer imagem visual que estabelega uma combinagao, exata, infalivel ¢ mateméatica, entre largura, es- pessura e profundidade é uma reprodugao fiel do real, inde- pendentemente das convengées sociais de seu desenhista, pintor, escultor ou arquiteto. Etimotogicamente o termo perspectiva significa o mes- mo que olhar racionalizado ou ver claro. Nao por acaso, 0 ar- quiteto, matemitico, critico de arte e cartégrafo italiano Leone Battista Alberti (1405-1472) intitulou de Construzione leggi- tima seu tratado sobre a perspectiva. Assim como Alberti, ou- tros tratadistas do Renascimento também entendiam que “o. artista [é] um emissor do mundo”, ja que seu otho nao faz mais do que “atrair a imagem do objeto para seu intelecto, assim como 0 ima atrai a linha de ferro”. 1 Sobre o papel da perspectiva no Renascimento, ver: BRUZZI, Hygina M. “Bastées cruzados”. In: Do visivel ao tangével - em busca de um lugar pés-utépico. Belo Horizonte: C/Arte, 2001, p. 98 e segs. 27 Corea “Histonia &., RSLEsOEs” Ao adotar essa teoria e aplicd-la ao uso das imagens visuais na pesquisa € no ensino da Histéria, a historiografia metédica, herdeira do racionalismo moderno, conjuga, de uma maneira singular, tradigiio ¢ modernidade. Mais que isso, chancela o antigo ditado popular — que ainda hoje conta com grande aceita- do no conhecimento ordindrio ~ que diz: é verdade porque vi com os préprios olhos. Assim, sempre que o visto, traduzido em imagens, emanasse de olhos que tivessem sido postos na posi- géo correta, porque educado pelas téenicas da perspectiva, ha- veria uma perfeita correspondéncia entre realidade e imagem. Mas, nem tudo que € matematico € exato e preciso € muito menos verdadeiro, advertiam, j4 no Renascimento, al- guns estudiosos da perspectiva. Embora dominante, acerteza da correspondéncia entre imagem e realidade, entre imagem e verdade, nao era tio undnime como possa parecer. Nessa me- dida, sua utilizag&o acabava por criar um certo desconforto entre aqueles que se preocupavam em demonstrar a perfeita sintonia entre iconografia e realidade. Para solucionar essa am- bigiiidade, a comunidade de historiadores, afinada com os pro- positos da escola metédica, apoiou-se na antiga tese da infali- bilidade da educagiio do olhar. Concebe como documento hist6rico visual apenas aqueles cujas imagens fossern fruto do aprendizado das academias de pintura. Kimportante lembrar que, a partir do sécufo XTV, princi- paimente, disseminaram-se por quase toda a Europa os espa- gos destinados a educar o olhar de desenhistas e pintores se- gundo a técnica da perspectiva: as Academias de Pintura & Escultura. Af se ensinava a produzir imagens que nao apenas espelhariam 0 real como também traduziriam os atos dos legi- timos sujcitos da Hist6ria: os reis ¢ seus circulos civil e mili- tar. A esse aprendizado, que nasce com a cultura de corte, cresce sob 0 patrocinio da Igreja, alarga-se com o poder da nobreza, sobretudo em Venezae em Florenga, importava mais a educa- ¢&o do olhar segundo objetivos previamente definidos do que 28 Historia & Fotografia propriamente a criatividade da obra. Dos artistas, esperava-se aprodugiio de pinturas que pudessem produzir, exprimir e trans- mitira seu ptiblico-alvo — os stiditos reais — a gléria dos feitos de seus dirigentes. Cria-se, assim, 0 oficio do pintor de hist6- via, responsdvel pela produgao de uma arte essencialmente pragmatica e funcional que exalta, celebra e comemora os fei- tos dos “herdis”, apesar de ser tida como essencialmente rea- lista e verdadeira. Ao longo do tempo, trés grandes requisitos foram orien- tando a confecgiio das pintusas de histéria. O primeiro era a exigéncia de que esses funciondrios, pages pelo erario real, passassem pelo treinamento das Academias; 0 segundo pres- supunha que suas obras contassem com o reconhecimento dos reis; ¢ 0 terceiro exigia que tais obras fossem publicamente re- conhecidas mediante a aprovacéio em concursos, requisito para suas exposigées nos saldes.'* Realismo, perfeigdo € veracidade eram os principais atributos das imagens produzidas pelos pin- tores de histéria, figuras obrigatérias nas campanhas civis ¢ militares de reis; principes ¢ generais du Antigo Regime e dos governos liberais do século XIX. Fruto da observagio in loco e elaboradas segundo os canones do paradigma perspectivo, acre- dibilidadc dessas imagens advinha, muitas vezes, do fato de se- rem encomendadas. Nessa medida, pode-se dizer que elas eram uma ilustragéio do contetido inscrito nos textos escritos. Sentimentos de ordem, respeito, patriatismo, heroismo € consciéncia nacional e cidada foram, nos diferentes momentos da Histéria, objeto dessa pedagogia pragmiética do olhar. Nao resta a menor divida de que o discusso da educagado do olhar do pintor de historia serviu para transformar suas imagens em um recurso de auioridade. As imagens por eles produzidas podiam ser consideradas um documento para a pesquisa histérica nao apenas porque ilustravam 0 texto escrito. + WILLIAMS, R. Cudtu, Rio de Junvieo: Pay ¢ Terra, 1992, p. 189-190. 29 COUGAD "HISTOR &.- REFLEXOES” mas sobretudo porque traziam a assinatura de uma autoridade reconhecida nos circulos do poder. Como veremos a seguir, a produgdo fotogrdfica ndo se encaiaava nesse critério de vali- dacao cientifica da imagem. Nao podemos nos esquecer de que nos primeiros anos do aparecimento da fotografia, os fotégrafos cram, na sua maio- tia, homens comuns ~ desenhistas e gravuristas autodidatas, caricaturistas, pintores tidos como sem expressio artistica. Nao possufam vinculos diretos com as Academias e suas imagens abordavam temas e motivos quase sempre distantes da ago dos homens considerados produtores da Histéria.'* Isso sem dizer que, j4 por volta do ano de 1880, o aperfeigoamento das cAmeras fotograficas colocaria a fotografia ao alcance do homem comum. Essa dilatagdo do uso da fotografia faz com que os novos fotégrafos estabelegam novos e distintos critérios de olhar para fazer suas tomadas dos acontecimentos sociais. Cada individuo define nao apenas o que merece ser registrado, mas também sob que Angulo as agSes sociais de seus cotidianes devem ser imor- talizadas. Os critérios da educacéo do olhar, normatizados nas Academias de Pintura, ndo eram conhecidos pelos fotégrafos amadores. A eles interessava tio somente aprisionar cenas € momentos significativos para suas vidas fntimas. A essa pratica, intitulada pelos setores de elite de banali- zacio do universo imagético, agrega-se o fato de a fotografia ser um testemunho do presente. Em principio, seas imagens registram o aqui é o agora. Mas para a comunidade de prati- cantes da historiografia metédica, 0 conceito de fato histérico estava estritamente atrelado ao estudo dos acontecimentos Passados. Ainda que se aceitasse a natureza precisa, exata € fiel da imagem fotogrfica, sua vinculagéo com o momento ** No caso da caricatura, por exemplo, a diferenga é gritante. Suas imagens tinham como objetivo a critica das agdes do poder. Nessa medida, elas funcionavam como uma espécie de contra-histéria ¢ nfo de ilustragio dos textos oficiais. 30 Historia & Fotogratia presente impedia-Ihe de figurar na galeria, naquele periodo restrita, de documentos hist6ricos. Na realidade, as imagens produzidas pela camera licida —como muitos chamavam a maquina fotografica — foram far- tamente utilizadas por pintores, como Degas, por exemplo, interessados em captar do real as minticias que o olho humano nao era capaz de registrar. Nao raro encontramos livros didati- cos, nacionais e estrangeiros, produzidos em meados da déca- da de 1860, que também lancgaram mio das imagens fotografi- cas para reproduzir as pinturas de histéria alocadas nos museus e cortedores dos palacios. Como ainda nesse periodo nao se conhecia a técnica de reprodugao da fotografia através da im- prensa, as imagens fotogrdficas chegavam até os livros media- das pela (écnica da litografia. Nao por acaso, nesse mesmo periodo, o poeta Baudelaire, antes de se convencer da dimen- sao artistica da fotografia, identificou sua natureza e seu po- tencial com os da imprensa. Quer dizer, conceituou-me como uma espécie de protese, de artefato mecnico preciso, que nada criava, muito embora fosse dotada dos atributos necessdrios para auxiliar no avango tecnoldgico e industrial, Por ser portadora de caracteristicas tao distantes do con- ceito de documento préprio da historiografia metédica, a foto- grafia foi alijada da pesquisa histérica. Sua inclusao nesse uni verso dependia, pois, de uma mudanca do paradigma hist6rico. No final do século XIX, uma série de transformagGes nas relagdes sociais € nos parametros do pensamento filosdfico e cientifico comega a colocar em causa os fundamentos da his- toriografia metédica. Conseqiientemente inicia-se um proces- so que, em médio prazo, contribuiria para criar as condigdes teGricas que levariam a uma mudanga do conceito de docu- mento hist6rico que, por sua vez, acabaria incorporando a fo- tografia no rol de fontes de pesquisa histérica. De um lado, ganhava forga a critica & infalibilidade da ética perspectiva. Crescia o ntimero de pintores ¢ estudiosos da 31 CeaecAo “Ha renia 8... RERLEO8S” arte a sustentar a tese de que “nao ha perspectiva exata ou projecao absoluta do mundo, [pois], hd sempre algo no espago que escapa ao olho, matematizado que seja”.'° De outro, uma corrente de fildsofos e tedricos das Ciéncias Sociai gava a colocar em divida tanto a tdo propalada existéncia de uma verdade Unica dos fendmenos sociais, quanto a corres- pondéncia direta entre conhecimento e verdade. Esses sinto- mas de mudanga das bases tedricas do conhecimento cientifi- co eram fortemente influenciados pelos desdobramentos do processo de globalizacdo, em curso desde a era das grandes navegagées. Além disso, o final do século XIX assiste a um prodigioso processo de transformagao trazido pelas guerras; movimentos nacionalistas; investidas imperialistas, desenvol- vimento acelerado da tecnologia e da ciéncia; migragdes em massa dos campos para as reas urbanas, de paises para pai- ses; surgimento de novas Classes sociais, novos oficios ¢ no- vas profissdes, Tudo que o mundo sempre conhecera em pro- porgées localizadas adquiria, a partir de entdo, uma dimensio planetdria. Essa reviravolta nas ¢ das relagdes humanas gera novas incertezas, pde em xeque os valores que até entiio calga- ram as tradigdes e os modos de ver das diferentes sociedades dentro e fora da Europa. Os desafios do que mais tarde viria a ser denominado de sociedade de massa, j4 detectados por Tocqueville, Marx, Nietzsche, dentre outros, redirecionavam o olhar dos tedricos das ciéncias sociais. As tensées, os conflitos e os antagonismos emcurso con- tribufam para dilapidar os cdnones politicos, cientificos ¢ socioculturais que a Revolugio Inglesa arranhara, a Revolu- cio Francesa golpeara e os diferentes desdobramentos sociais ¢ politicos da Revolugao Industrial iam minando mais e mais No bojo dessas transformagées alguns se apegavam uo passa- " BRUZZI, Hygina M. “Bastées cruzados”. tn: Du vistvel ao tangivel — em busca de unt fugar pés-utdpico, Belo Horizonte: C/Arte, 2001, p.1 08. 32 Historia & Fotografia do, & tradigao, na v4 esperanca de poder preservar o que ja se desfazia. Outros alimentavam a crenga iluminista num futuro promissor. Outros, ainda, apostavam na grande crise do capi- talismo como condig&o para a revolugao socialista € o inicio de uma nova era. No campo da reflexdo histérica, o historiador francés Jules Michelet inclui, no rol de suas buscas intelectuais, au- tores até entdo relegados ao esquecimento, como Herédoto ¢ Giambattista Vico, por exemplo. Das leituras dos textos do primeiro, Michelet inicia um proceso de reabilitagao do de- poimento oral, além de subverter 0 principio de que a ciéncia histérica se dedicava exclusivamente & andlise do passado. Das teses de Giambattista Vico, autor de Scienza Nuova, Michelet extrai outros ensinamentos que iriam marcar sua distancia em relagiio aos historiadores da Escola Metédica, dita positivista. Chama a atengdo para a especificidade das ciéncias do homem em relagao as da natureza; propde a com- binagio de diferentes metodologias para a andlise de evidén- cias histéricas também diferentes, e defende a tese de que o conhecimento hist6rico se faz com a andlise de dados anéni- mos € nao, como queria a historiografia metédica, apenas com a anélise dos dados sados exclusivamente das agdes de atores socialmente privilegiados. Nos anos que se seguiram, os escritos de Vico também inspiraram autores come Dil- they, Weber, Benedetto Croce e Collingwood," os quais, di- reta on indiretamente, teriam um papel preponderante na der- rubada do paradigma metédico. Em meio a esse processo de mudangas, ganha forga a tese weberiana da natureza compreensiva é interpretativa das cléncias da cultura. Weber 7 Sobre o pensamento de Vico e suas influéncias na filosofia ¢ nas ciéncias socials, Yer: WILSON, Eiinund. Rumo d Estagao Finldndia, 2d, Si Paulo: Companhia das Letras, 1986 {parte 1); BURKE, Peter. View, So Paulo. UNESP. 1997. THOMPSON, E. P. A miséria da teoria ou uni planetiria de erros — eritica de pensamentn de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar. 1981 33 CLEA “HISTORIA &... REFLEXES” combate resolutamente a idéia de que a Ciéncia possa engendrar “concepgées do mundo” de validade uni- versal, fundadas no sentido objetivo do decurso histé- rico, [Para ele], esse sentido objetivo nao exisie ¢ por isso mesmo ndo existe uma cigncia social livre de pres- supostos valorativos.'* Segundo ele, do passado s6 se pode conhecer as inten- ges que motivaram as agdes sociais dos diferentes atores histéricos. Sob essa perspectiva, a finalidade do processo cog- nitivo deixa de ser a expresso da verdade dos fatos “tal como teriam acontécido” para se transformar em um processo de compreensao e interpretaciio das significados que os homens atribufram as suas condutas sociais, sempre motivadas e/ou orientadas por expectativas em relagdo A aciio dos outros. De acordo com essa ldgica de raciocinio, a dimensiio objetiva e racional do processo de conhecimento também implicaré a aceitagdo de uma certa dose de subjetividade. O mundo a ser dessacralizado pelo homem de ciéncia nio é feito de coisas, mas de relagées sociais plenas de significados porque per- passadas pela forca de valores, crengas, mitos, rituais e sim- bolismos. Mcdiante o uso de uma metodologia capaz de de- tectar as estratégias racionais das acdes sociais, motivadas por interesses nem sempre racionais, tais como a fé, o dogma e os desejos, o homem calcula, racionaliza e cria meios para atingir seus fins. Cabe ao cientista compreender e interpretar €SSES processos. Sob essa Gtica, nega-se a antiga tese da coincidéncia en- tre a histéria-fazer e a histéria-conhecimento. E assim que a ciéncia histérica, como qualquer outra ciéncia da cultura, se desnaturaliza. Torna-se uma construgiio que sé funciona se operada a partir de um conjunto de hipéteses. “* COHN, Gabriel (org.). Weber. 2.¢d., So Paulo: Atica, 1982, p. 21 (Colecao Gran- des Cientistas). Histiria & Fotografia Com essas alteragGes no e do pensamento, estavam aber- tas algumas portas para o estabelecimento de um novo concei- to de realidade, de ciéncia histérica, de método de pesquisa e, sobretudo, de documento histérico. As imagens visuais deixa- riam de ser consideradas um retrato fiel dos fatos para se trans- formarem em linguagens dotadas de sintaxe prépria. Parafra- seando Italo Calvino, as imagens fotograficas deixariam de ser as coisas para se tornarem “figuras de coisas que signifi- cam outra coisa”. Sem embargo, esse clima de mudangas e inovagées nfo traria, de imediato, a derrubada do paradigma que norteata a historiografia metédica. O apego A tradigdo, a auséncia de clareza sobre os rumos das transformagées em curso e a pré- pria vinculagao do ensino de Histéria, e até mesmo da pesquisa, aos interesses do poder funcionariam como enlraves para a in- corporago e a difusdo de uma outra pratica de pesquisa e de ensino da ciéncia histérica. Enquanto isso, a fotografia ia sendo utilizada, cada vez mais, por todos os segmentos das sociedades modernas. Inde- pendentemente da resist€ncia dos membros da comunidade de praticantes da historiografia metédica, suas imagens divulga- vam os feitos dos homens ptblicos e 0 cotidiano dos homens & mulheres de diferentes classes sociais E para essa diregdo que deslocaremos nosso olhar no ca- pitulo seguinte. '° CALVINO. ftalo. “As cidades ¢ 0s simbolos”. In: As cidades invisiveis. 3.ed. $0 Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 17. 35 eee eee CAPITULO IT Tradigo e modernidade na mira dos fotografos A Ansia de apreender 0 mundo a partir de suas manifes- tagdes essencialmente objetivas e precisas, caracteristica da heranga do pensamento cartesiano, nao foi suficiente para eliminar a magia e a comogio que as imagens visuais desper- taram e despertam no homem. Ao longo dos séculos, as dife- rentes sociedades t8m criado distintas formas de produzir, olhar, conceber, dialogar e utilizar suas produgdes imagéti- cas. Ao possibilitar 0 constante desejo de eternizar a condi- ¢o humana, por certo transitéria, a imagem fotografica se aproxima de outras iconografias produzidas no passado, Como essas, a fotografia também desperta sentimentos de medo, an- giistia, paixio e encanto. Retine e separa homens e mulheres, informa e celebra, reedita e produz comportamentos ¢ valo- res. Comunica e simboliza. Representa. Sua génese fisico-quimica e sua capacidade reprodutiva criam um novo profissional da imagem ¢ inauguram ndo ape- nas uma estética propria, como também um novo tipo de olhar. Toda essa novidade diz respeito a uma sociedade cada vez mais laica, globalizada, veloz¢ tecnolégica, em que as pessoas con- vivern a um sé tempo com o medo do anonimato, a necessida- de de preservar o presente, a incerteza sobre o futuro e a espe- ranga de construgao de um mundo bem sucedido. Foto é um termo que vem do grego, phds. Significa luz. Fotografia quer dizer “aarte de fixar a luz de objetos mediante 37 cE Courcao “Histor &... REFLEXOES” a agdo de certas substincias”.’ Em 1826, o francés Joseph Nicéphore Niépce (1765-1833) desenvolveu a heliografia? um processo quimico para fixar, em uma cdmera escura, a luz emanada de objetos. Pouco tempo depois, Niépce se as- sociou a Louis Jacques Mande Daguerre (1787-1851) que, apés 1839, veio a ser conhecido como o inventor da daguer- reotipia. Desse processo que consistia em usar uma fina ca- mada de prata polida, aplicada sobre uma placa de cobre e sensibilizada em vapor de iodo, resulta uma imagem de alta ptecisio, embora em apenas uma cépia. Poucos anos antes, em 1835, 0 eclético Willam Henry Fox Tathot (1800-1877) produzia 0 primeiro calétipe ou talbdtipo, uma técnica que permitia a reproducio da imagem em papel albuminado. En- quanto isso, em 1832, na recém-criada nagao brasileira, um francés radicado na Vila de Sdo Carlos (atual Campinas), Antoine Hercule Romuald Florence (1804-1879), desenvol- via suas pesquisas sobre a reprodugao de imagens mediante processos quimicos que ele préprio chamou de photographie, termo que 86 se tornaria usual apdés 1839.? Na realidade, entre fins da década de 1820 e meados dos anos de 1860, individuos de diferentes lugares da Europa e das Américas debrugaram-se, isoladamente ou nao, na pesquisa de diversos processos fisico-quimicos com o objetivo de captar e fixar imagens na camera escura. A identificagao dos nomes de Niépce e de Daguerre como inventores da fotografia deveu-se em grande medida a publicidade dada 4 reuniao, promovida ' BELLONE, Roger. La phetographie. 2.ed., Paris: PUF, 1997, p. 5 (Colegio Que sais-je?). = No final do livre o leitor encoatraré uma segio intitulada Cronvlogia, onde poderé sor identificada a seqiiGncia histérica dos principais experimentos que deram ori- gem a fotografia, dos faios mais relevantes sobre sua his\éria © dos termos tecnicos aqui empregados. * Recentemente Boris Kossoy trouxe a luz documentos que comprovam a descoberta isolada da fotografia por Hercule Florence. Sobre esta questio, ver: KOSSOY, Boris. Origem ¢ expunsdo da fotografia — séeula XIX. 38 Historia & Fotografia em 1839, por Frangois Arago, membro do Parlamento Fran- cés, na Academia de Ciéncias e de Belas Artes da Franca para divulgar as experiéncias desses dois franceses. Como toda novidade, os primeiros anos da fotografia foram marcados por uma intensa polémica acerca de sua natureza. En- quanto uns concebiam-na como uma técnica precisa e exata que permitiria ao homem modemo realizar seu sonho de conquista e domesticacao da natureza; outros encaravam-na como uma esté- tica inteiramente nova que viria revolucionar o mundo das artes. Houve, também, aqueles que, movidos por um misto de encanta- mento e pragmatismo, nio se preocuparam com os debates teéri- cos que a circundavam. Langaram mio da camera escura, profis- sional ou amadoristicamente, para celebrar as conquistas da modernidade e embalsamar fragdes de tempos que rapidamente iam se perdendo no turbilhaio das mudangas em curso. Embora a andlise da questo conceitual da fotografia es- cape aos objetivos deste livro, é importante lembrar que, entre os anos 20e 40 do século XX, momento da chamada Revolu- go Surrealista, muitos j4 conceituavam a fotografia como imagem hibrida. Juntamente com as obras de pintores como Miré, Picasso, Salvador Dali, Max Ernest, as colagens do fo- tégrafo Man Ray (1890-1976) subverteram as tentativas ante- riores de reduzi-la ora a um mecanismo técnico altamente so- fisticado, ora ao campo do realismo estético. Desde entao a fotografia “encarna a forma hibrida de uma ‘arte inexata’ ¢, a0 mesmo tempo, de uma ‘ciéncia artistica’, o que nao tem equi- valentes na historia do pensamento ocidental”.* Nomes como 0 de Roland Barthes (1915-1980) ¢ deCartier- Bresson (1908) esto associados a um conjunto de questées acer- ca da especificidade da linguagem fotografica ¢ de sua possivel similitude com outros tipos iconograficos. A partir dos anos 80 de Bello * COSTA, Rodrigues. Apud. ARRUDA, Rogério Pereira. (org.) Album autenti. Horizonte, Edigio Fac-similar com Estudos Criticos. Belo Horizonte ca, 2003 CougAD "HistOntn de... REF ERDES” do século XX, as teorias de Barthes, sobretudo, tém funciona- do como ponto de partida para o debate e a reflexdo sobre questées e problemas relativos & natureza da linguagem foto- grafica.* Grosso modo, pode-se dizer que entre os teéricos das imagens visuais, em geral, hd uma tendéncia a destacar mais as similitudes existentes entre a fotografia e as demais inte- grantes da “comunidade de imagens”, para usarmos uma ex- pressdo cara a Barthes. Jé entre os analistas da imagem foto- grafica strito sensu, € possivel localizar pelo menos duas tendéncias analiticas. Alguns colocam a génese automitica da fotografia como um divisor de dguas entre ela ¢ as demais formas iconograficas; outros reconhecem sua génese automd- tica mas a definem como uma imagem hibrida, ou seja, como um amdlgama de natureza, técnica e cultura, cuja andlise nado sereduz a um Unico centro, Pressupée a conjugacdo, nem sem- pre simétrica, de suas diferentes dimensdes. Como dito anteriormente, néo constitni objetivo nosso desenvolver uma histéria da fotografia neste capitulo, Interes- sa-hos (do somerite compreender os sentidos que os fotégrafos, profissionais e amadores, deram & fotografia entre os anos de 1839 e as primeiras décadas do século XX. Os usos e funcdes a ela atribuidos permitem-nos estabelecer alguns nexos entre os significados das imagens fotograficas no passado e sua utiliza- gio nos diferentes campos da andlise histérica na atualidade. O retrato fotogréfico: didlogos com a pintura Dentre as modalidades da linguagem fotografica, o retrato pode ser visto como uma porta de acesso privilegiada — embora existam outras igualmente importantes — para percebermos a * Uma amostra interessante dessus diferentes ahordagens pode ser encontraéa em SAMAIN, Etienne (org.). O fologrdfico. Sie Paulo; HUCITEC/CNPa, 1998, bem como em MOREIRA LEITE, Miriam. Retratas de jumilia, 2d. r¢., Sdo Paulo: EDUSP/FAPESP, 2000 FEE CC Ea Historia & Fetografia natureza polissémica e hibrida da imagem fotogrdfica, Parte sig- nificativa da fotografia, profissional e/ou amadora, passou pela confecgio de retrato de individuos cujo desejo era transcender os muros do anonimato erigidos pelo ritmo aceleradoe voraz da modernidade, Desde cedo o retrato fotografico se coloca como uma prova material da existéncia humana, além de alimentar a meméria individual e coletiva de homens piblicos e de grupos sociais. Nao por acaso, antes de deixar o pais rumo ao exilio, a farnflia imperial doou A Biblioteca Nacional sua imensa colegio de fotografias, Delas fazem parte mais de 400 retratos de D. Pedro II que hoje t@m motivado a pesquisa de muitos estudiosos brasileiros.* Dada a importancia do retrato fotografico na hist6- ria dos usos e fungées da fotografia, iniciamos com ele nossa abordagem sobre algumas das principais modalidades fotogra- ficas nas primeiras décadas de sua existéncia. Em 1854, portanto quinze anos depois do reconhecimen- to oficial do daguerrestipo, o caricaturista, desenhista e escri- tor Gaspard-Felix Tournachon, conhecido como Nadar (1820- 1910), inaugura, no mimero 113 darua Saint-Lazare em Paris, um atelier de retratos fotograficos. Imediatamente, 0 estidio desse membro da burguesia da capital francesa torna-se um lugar privilegiado de reuniao da elite artistica, intelectual e cientifica parisiense ¢ estrangeira. Dentre seus clientes encontra-se o poeta Charles Baude- laire (1821-1867), que anos antes havia resistido bravamente a dimensao artistica da fotografia. Segundo Giséle Freund,’ Bau- delaire era um burgués de hdbito e gosto nobres, com uma con- cepgio de arte fortemente influenciada pelos cinones da estética pict6rica tradicional, criada a partir dos mestres da Perspectiva. Seu conceito de arte moderna pressupunha um estreito didlogo © Sobre este acervo, ver: VAZQUEZ, Pedro Karp. A fitografice no Inperio. Rio de Janeiro: Zahar, 2002 (Colegio Descobrindo 0 Brasil), KOSSOY, Boris. Origens ¢ expansio da fotografia no Brasil: século XIX, Rio de Janeiro: FUNARTE, 1940. 7 BREUND, Giséle. La fotografia com documento social. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 1993, p. 41 4l COuGAO “HisTORA &... REFLUKOS” entre modemidade ¢ tradig&o. Para Baudelaire, era exatamente essa articulagio entre tempos culturais diferentes que possibili- tava ao artista transcender a mesmice do universo cotidiano, atado a fins tipicamente imediatos, e dessa forma criar algo pe- rene. Comoa fotografia era por ele concebida apenas come uma técnica exata e precisa, sem nenhum lastro com o passado, Bau- delaire nao a inclufa no universo artfstico* Rejeigées como essa explicam, pelo menos parcialmen- te, porque tantos fotégrafos daquela época passaram a produ- zir imagens fotograficas a partir de critérios que norteavam o universo da pintura. Dialogar com a tradicao era, talvez, 0 ca- minho mais seguro para validar a nova forma de olhar ¢ dara ver o mundo. Figural * Sobre 0 debate de Baudelaire com a fotografia, ver: TEIXEIRA COELHO (org). modernidade de Baudeluire — textos inéditos. Rio de Janeiro: Paz ¢ Terra, 1988. 42 Histéria & Fotografia Ao posar para Nadar, Baudelaire parece ter admitido que a génese automitica da fotografia nao se constitufa em um impedimento para a realizacao de um ideal artistico. No en- tanto, é importante lembrar que quando o poeta entra no estt- dio da rua Saint-Lazare, jd eram clientes de Nadar figuras de renome da intelectualidade francesa, tais como, Vigny, Balzac e Sarah Bernhardt, para ficarmos apenas nesses nomes. Isso nos faz pensar que o conccito de arte nao se restringia aos esti- los estéticos propriamente ditos. Assim como na pintura moder- na, a consagragaio da estética fotogrifica também dependia do reconhecimento publico da autoria da obra.” A fotografia reproduzida na pagina anterior (Figura |) nos mostra que 0 reconhecimento da autoridade de certas fo- tdgrafos, como ocorreu com Nadar, por exemplo, transcendia os muros de seus estidios. Em Um brasileiro cosmopolita no atelié de Nadar, titulo dado a essa fotografia pela autora de O espirito das roupas, apenas conhecemos a nacionalidade do retratado e a autoria da imagem. Todavia, 0 exercicio da infe- réncia associativa — marca indelével do trabalho do historia- dor, em grande medida artifice da decifragdo de pistas e sin i ~ permite-nos afirmar, como faz a autora do livro de onde foi extraida essa foto, tratar-se de um retrato de um membro da aristocracia brasileira, provavelmente tigado ao setor cafeeiro. Afinal, na segunda metade dos anos oitocentos apenas pessoas desse segmento social podiam se dar ao fuxo de viajar para a Europa e sobretudo pagar o valor de uma fotografia assinada por Nadar. Se comparada com a produgo de outros fotégrafos- artistas — que até meados dos anos de 1850 monopolizaram o nascente mercado fotografico na Franga, Inglaterra, Alemanha * Se a polémica sobre a natureza arfistica ou nao da fotografia é aqui mencionada, € porque foi encabegada por homens que exercem grande influéncia sobre os setores sociais que mais consumiam as imagens fotogréficas naquele perfodo: a aristocra- cia e a nascente burguesia, O que cles diziam determinava tanto 0 que deveria ser fotografado e como o for6grafo devia proceder. Mais tarde, com o barateamento da fotografia, esse debate continuou, com algumas alteragBes, a nertear o gosto © © olhar dos segmentos sociais que passaram a consumir a imagem fotografica. B Ceargicy “Histenta &... REFLXO! e nos Estados Unidos da América —, veremos que a fotografia desse “brasileiro cosmopotita em Paris” guarda muitos pontos de convergéncia com o padrao do retrato artistico dos anos oitocentos. As linhas de fuga dos retratos, quase sempre a meio-corpo, atraem o olhar do expectador para os detalhes da roupa, das m&os e da expresso de seu olhar. O fotégrafo-artista quer, fundamen- talmente, exprimir uma tese corrente no mundo da pintura, na qual 0 retrato artistico mais que informa, deveria representar. Ou seja, “condensar em uma imagem simbdlica 0 essencial das qualidades e das fungdes de um individuo importante”.'° ‘Um outro retrato, também feito por Nadar, indica-nos como a relagdo fotografia/pintura acaba por propor uma estética dis ta daquela produzida pelos cénones pictéricos em fungao da tex- tura da imagem, da auséncia de cores ¢ do jogo de luz ¢ sombra. A foto abaixo, a sensualidade da atriz Sarah Bernhardt contrasta com a sobriedade da imagem masculina, reproduzi- du anteriormente. Interessado em captar os tragos fisionémicos Figura 2 " BAURET, Gabriel. Apaches de ta photographie. Paris: Nathan, 2002, p. 44 Histéria & Fotografia de seus clientes, condig’o necessdria para exprimir-lhes a in- terioridade ¢ a alma dos mesmos, Nadar langa mao do daguer- reétipo para realgar certos tragos da individualidade feminina cultuados pelo imagindrio do século XIX. Nesse perfodo, os atributos da mulher, sobretudo dos segmentos mais abastados, eram identificados com as idéias de delicadeza, de sensvalida- de e de uma certa dose de mistério. Para exprimi-los, Nadar se apropria de alguns c6digos ja assentados no campo da pintura. A combinacio do nu e/ou seminu com as dobras irregulares dos tecidos, somada ao jogo de claro/escuro, ressalta a expres- siio vaga e melancélica do olhar ao mesmo tempo em quc mostra, esconde e sugere a sensualidade do corpo € o mistério da alma feminina. E assim que a fotografia ressalta os atribu- tos femininos j4 consagrados pela literatura e pela pintura ¢ devidamente assentados no imagindrio da época. A foto abaixo, feita pelo fotégrafo francés Gilmer, 1870, € outro exemplo do didlogo da fotografia com a pintura. aa /}. Figura3 Nessa imagem, produzida a partir da técnica do colédio timido e reproduzida em papel albuminado, a busca da sensua- lidade femininase faz presente a partir da combinagdo dos mes- mos elementos que, na pintura, constroem @ estética da nudez. Ao corpo nu, naquele momento restrito ao corpo feminino, 45 Cearcho Herenin &... REFLEX” agrega-sc o movimento dos cabelose a identidade misteriosa da mulher que, num movimento semi-aberto, deixa ver frag- mentos de sua face, aumentando, assim, a dose de mistério sugerida pela fotografia. Sobre a extensdo do tecido que for- ra o diva, desloca-se o olhar do expectador provavelmente curioso e encantado com a suavidade das linhas do corpo nu, fiso e sensual de alguém que quase revela sua identidade. Trabalhando com esses parametros, autorizados pela pintura e pela literatura, o fotégrafo acaba por produzir uma outra sinta- xe, prépria da fotografia. Entretanto, 0 processo de individualizagaio da fotografia nao foi simples. Nao por acaso, muitos fotégrafos langaram mao de “uma série de técnicas como a goma bicromatada € 0 broms- leo”, com o objetivo de aproximar a imagem fotografica dos pardmetras estéticos préprios da pintura em pastel e Agua-forte, por exemplo,”! O emprego de recursos como esse sinaliza ape- nas uma das dificuldades enfrentadas pela linguagem fotografi- ca para se legitimar ¢ autonomizar no universo artistic. Nao podemos nos esquecer, no entanto, que as articula- Ges entre tradigao e modernidade nao se reduzem a um pro- cesso de mae vinica. Da mesma forma que a linguagem pictd- rica cria limites para o desabrochar da sintaxe fotogrifica, o seu desenvolvimento também repercute na primeira. Em 1865, pintores como Monet, Pissarro e Cézane realizaram o Salon de Refusés,* evento universalmente reconhecido como um \ FABRIS, Annateresa, “A invengio da fotografia: repercussdes sociais”. In: FA- BRIS, Annateresa (org). Fotograffa: usos e fungdes nu sévulo XIX, Sao Paulo: EDUSP, 1998, p. 17. (Colegio Texto & Arte, 3). 8 Quase que simultanesmente 2 realizagio do Sulon de Refusés, umn grupo de piniores, encabegado por Colbert, Delacroix e Delaroche, cria a Revista Le Realisme. Seus tex- tos defendem a tese da “identidade entre realidade da natureza & realidade dtica da imagem’. Para criar uma imagem “precisa”, “exata” ¢, portanto “realists”, os pintores Tangam mio da Lupa e de outros arificios para “reproduzir os trayos da realidade, imperceptiveis a olho nu”. Esse movimento nega a fotografia o estatuto de arte; cla apenas aceita como técnica, Sobre essas questées, ver: FREUND, Gistle, La fotygra- fia coma documento social. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 1993, p. 68-69. 46 Histéria & Fotografia importante marco da luta por uma arte livre dos canones tradicio- nais e da ingeréncia dos mecenas que inibiam a criatividade dos artistas. Menos de trés décadas depois, a rebeldia contra a sub- missdo da pintura a estética greco-romana e renascentista culmi- na no movimento conhecido como Cubismo. Ai, seriam criadas outras formas de representagdo da figura humana, da vida em sociedade e da natureza. Na nova estética, a fotografia funciona como uma aliada da pintura. A partir de imagens fotogréficas, pintores como Pablo Picasso, por exemplo, produzem, em 4gua- forte e em dleo, uma nova estética pictérica. Outros pintores, nio vinculados ao cubismo, também langam mio da fotografia visan- do, com isso, agugar o olhare captar detalhes do real niio percebi- dos a olho nu. Nesses casos, a inten¢do era produzir uma maior sensagio de realismo. Mas, voltemos, por ora, 4s representacdes femininas veiculadas pela fotografia de fins do século XIX. Figura4 Nessa imagem atribuida ao major Henry Arthur Herbert (1840-1901) — fotégrafo amador e membro do Parlamento In- glés pelo distrito Kerry da Irlanda -, parece que o fotégrafo 47 Courgae: “Histonis &.. Rertexoes” pretendia conjugar condi¢ao social e género, enquanto dialo- ga com a estética pictérica. Entretanto, a conjugagao entre o lugar da mulher no enquadramento da imagem, a moldura da foto, os apetrechos que a compdem criam uma fisionomia de mulher com uma estética diferente das fotografias produzidas por Nadar e/ou por Julia Cameron, por exemplo. ‘Vé-se que o fotografo em questo cria um cendtio no qual a figura feminina vem embalada por diversos fcones da vida aristocrético-burguesa da Belle Epoque. Debmugada sobre um livro, apoiado em uma mesa decorada com outros livros € ob- jetos requintados, e alocada em um aposento tipicamente fe- minino, a musa da imagem, provavelmente uma filha do foté- grafo, aparenta concentrar-se sobre 0 texto a sua frente. Mais que mistério ¢ sensualidade, a imagem dessa jovem sugere idéias de fragilidade e delicadeza. Remete 0 observador a um ambiente privado e pudico. Ora, na literatura ficcionista da época, a representago de uma jovem da aristocracia ou da alta burguesia pressupunha um cotidiano recatado, onde se Figura 5 48 Historia & Fotografio euma pitada de tustro intelec- conjugava uma vida com estilo . agem reproduzida, tual, tal qual podemos ver 1a imi Mas as representagdes da mulher que vimos trabalhando até agora nfo esgotam © repertorio do imaginario feminino oitocentista. Em Retrato de uma serva, de 1851 (Figura 5), 0 fotégrafo francés Henri-Victor Regnault (18010- 1878) - membro fundador da Sociedade Francesa de Fotografia € incentivador das; pesqui sas para a conservacdo da imagem fotografica ~ langou mio da esté- tica artistica, prépria dos fotografos-artistas, para Nos apresen- tar uma outra imagem de mulher. Retratada a meiO-corpo e€ so- bre um fundo liso, os pontos de fugada imagem centram ° foco na fisionomia da mulher. Ao s¢ utilizar desses recursos, 0 foto- grafo parece dialogar com 0S critérios esiéticos dominantes en- tre os fotégrafos-artistas. Entretanto, o titulo da fotografia, com- binado com o pano na cabega. 0 engomado ea alvura do avental e da gola de sua roupa ressaltam a insergao social da retratada, Revelam uma das faces do mundo feminino que mais crescem no século XIX: oda empregada doméstica, cuja vida é devotada aservir 0s caprichos € necessidades dos que pertencem aos seg- mentos dominantes da sociedade. — Conforme o imagindtio do sécuto XIX, a identidade de uma serva/doméstica estava ligada ao mundo do trabalho ma- nual, considerado improdutivo. Por isso mesmo, sua imagem deveria remeter o Jeitor au mundo sem hybris, ou seja, sem excesso, 0 qual se contrapunha ao universe das mulheres ‘es segmentos burgués e aristocratico. representadas a Part de metiforas da sensualidade, da fragilidade,da individualidade, do mistério e do prazer. 7 A excegiio do primeiro retrato aqui trabalhado, privile- giamos os retratos femininos. Nossa escolha nao é aleatéria. A mulher é um dos temas de interesse da intelectualidade do século XIX. Ao mesmo tempo em que cresce sua participacdo nas fabricas e em outros espagos da vida publica, verifica-se um esforgo para identificé-la com © mundo privado, com a 49 CoueyAe “Histon &... Rerioxcirs” esfera da casa. Mulher-mae, muther-esposa, mulher-pilar da conservagio da familia, mulher-educadora, muther-enfermei- ra foram algumas das principais representagées da figura fe- minina presentes na literatura ficcional, médica, nos relatos de viajantes e na historiografia do século XIX. Em A Mulher, 0 historiador Jules Michelet nao apenas vinculou mulher/fa- milia/estabilidade social, como também construiu uma liga- ¢4o histérica entre a figura feminina e os oficios de fiar e costurar."* A maioria das imagens pictéricas e fotograficas das mulheres oitocentistas também relacionava mulher e ati- vidades domésticas. Mesmo quando se encontrava na fabri- ca, sua representagdo simbolizava a extensdo da casa. Nao seria, pois, incorreto dizer que a linguagem fotogrdfica tam- bém funcionava camo um dos principais suportes a corrobo- Tar com esse esforco de naturalizagio da condigio feminina. A era dos estidios fotogrdficos Ja em meados do século XIX, uma inovagio técnica nio apenas popularizaria o retrato fotogrdfico, retirando seu mono- PGlio dos membros da aristocracia e da alta burguesia, como também criaria as condigGes para a implementagio da fotogra- fia comercial e industrial. Em 1854, o fotégrafo francés André Adolphe Eugéne Disdéri (1819-1889) cria um aparelho que per- mitiria a tomada de até oito clichés simultaneos, iguais ou dife- fentes, em uma tinica chapa. Estava inventado o chamado car- tao de visita, um retrato de cerca de 9,5 x 6,0. cm, montado sobre um cartao rigido de 10 x 6,5 cm, aproximadamente, Essa inova- ¢40 técnica baratearia sensivelmente o custo da fotografia. *MICHELET, Jules. A ntather, Sio Paulo: Martins Pontes, 1995, p. 14. EB importante Jembrar que taf construgao nio resiste a una andlise empirica. Muitos estudos so- brea mulher em sociedades do século XIX ou de periodos anteriores tém mostrado que a divisdo sexual do trabaiho nao necessariamente lega A figura feminina papéis sou atividades proprias do mundo doméstico. 50 Historia & Fotografia Imediatamente inicia-se uma democratizagao dos valo- res e dos signos fotograficos. Os antincios em jornais divulga- vam o enderego do novo profissional da fotografia, bem como o rato de extensao de sua produgao. Como pequenas fabricas de ilusdo, seus estiidios atraiam homens e mulheres que, indivi- dualmente ou em grupos, davam vazio as suas fantasias. Para tal, os esttidios ofereciam uma variedade de apetrechos utili- zados na montagem de cendrios de acordo com desejo de auto-representacdo de seu ptblico. Réplicas de tapetes per- sas, cortinas de veludo ¢ brocado, almofadas decoradas, pa- nos de fundo pintados com cenas rurais e/ou urbanas, roupas de gala, instrumentos musicais, bengalas, sombrinhas de seda etc., eram disponibilizados aos clientes interessados em atri- buir realidade a seus sonhos e desejos. Figura6 Travestidos de nobres e burgueses, esses homens € mu- Iheres néo conseguiam, como nos lembra Fabris, escamotear sua origem socioeconémica. A pele mal tratada e o semblante 51 Concho "Histon &... REREXOES” cansado, combinados com a rigidez do corpo, nao desapare- ciam sob as disfarces sociais e acabavam por denunciar sua posigdo subaltema na estratura social, A citagdo na pagina seguinte — extrafda, entre tantas Ou- tras, de um jornal da cidade mineira de Juiz de Fora em 1883 — evidencia pelo menos trés dos novos atributos da fotografia da era dos estidios. O primeiro se refere 2 democratizagao do consumo de sua imagem, o segundo ao potencial de mobilida- de espacial dos fotégrafos ¢ de suas criagoes. J4 0 terceiro diz respeito ao aparecimento de novos negécios e oficios ligados a0 mundo da fotografia, tais como as empresas produtoras de equipamentos fotograficos, as casas especializadas na venda de filmes, maquinas e papéis destinados a reprodugdo da ima- gem, de porta-retratos € sobretudo & formagio dos profissio- nais da fotografia. Em fins do século XIX alguns fotégrafos mantinham estudios fotograficos com filiais em diversas cida- des, Para tal, empregavam outros fotégrafos que ndo apenas respondiam pela produgao fotogrdfica dos estidios, como tam- bém exerciam a fungi de fot6grafos ambulantes. Esse foi o caso, por exemplo, do proprietario da Photo- grafia Alemé, Alberto Henschel (1827-1882), que se associa com outros fotégrafos e em 1867 inaugura um esttidio foto- grafico em Recife ¢ outroem Salvador. Trés anos depois. abre uma filial no Rio de Janeiro e, em 1882, outra em Sao Paulo. ‘Anos mais tarde, a recém-criada Belo Horizonte abrigaria mais um estiidio da Photografia Alema, Henschel e intimeros fotd- grafos brasileiros se deslocavam pelo interior do pais levando as novidades que iam surgindo nos grandes centros da Europa edos Estados Unides, o que certamente contribuia para a disse- minagio de certos signos fotogrificos."* + Aas que se interessarem por uma pesquisa sobre 0s esttidios ftogrificos no Brasil o século XIX, ver: KOSSY, Boris, Origens ¢ expansi da fowgrafia no Brasil Século XIX, Rio de Janeiro: Fundag3o Nacional de Arte, 1981: KARP VAZQUEZ, Pedro. A foiografia ne Impéria. Rio de Janeiro: Zahar, 2002 (Cole¢ao Descobrin- do 0 Brasil). 52 eee Histéria & Fotografia Photografia Alena Rua do Espirito Santo Perto do Teatro Os abaixo assinados tém a honra de participar ao respeitavel pa- blico desta cidade que acabam de moniar o seu atelié na rua aci- ma, Trabalham todos os dias e com qualquer tempo. Tiram retratos de todos os sistemas, garantindo completa perfei- ga nos trabalhas; ¢ assim esperam os anunciantes merecerem @ valiosa protegio do ilustrado pubtico desta cidade. Pregos: Retratos cartées de visita, diizia Retratos cartées de visita, abrilhantados, duzia . 10$000 Retratos cartées imperiais abrilhantados, duzia ......, 183000 ‘Tendo de seguir em pouco tempo pata Barbacena e S. Joao d'El Rei prevenimos ao respeitavel piiblico que a demora nesta cida- de sera pequena. Os fotégrafos, Passig & Irmdo.' A propésito da disseminagdofincorporagao dos padres fotogréficos socialmente definidos, o relato de uma senhora italiana parece-nos emblematico. Conta-nos ela que crescera vendo uma fotografia de trés tias, ja falecidas, irmas de sua mae. Na imagem, as tias se encontravam assentadas em um banco do jardim da casa materna ¢ no colo de cada uma delas havia um instrumento musical. Anos mais tarde, quando adulta, "S De acordo com Christo, prego de um ingeesso para um camarote no Teatro Novelti, em Juiz de Fora, era, na época, de 255000, Isso nos dé uma ida do public que estavaem condigées de adquitit cartées de visita, De acordo com Karp Vazquez, na ‘Jécada de 1870, Cheistiano Mnior e Joaquim Insley Pacheco, dois Fotdgrafos do Rie de Janeiro, ofereciam a diia de retratos em format carte de visite por 5$000 ¢ 0 fotdgeafo B. Lopes chegava a prestar 0 mesmo scrvigo por até S000. Na época umn daguerrestipo custava entre 59000 88000. Sobre esas quesides, CHRISTO, Maraliz Ge C. V_ A fotografia através dos aniincios de jornais. Juiz. de Fora. 1877-1910. Liscux: Revista de Histéria, Wiz de Fora: UPIF, v. 6. n. 1, 2009, p. 130. ¢ KARP VAZQUEZ, Pedro. A fotografia no Império. Rio de Janeiro: Zakar. 2002, p 29. 53 Conechy “Histon 8 REREXOES essa senhora perguntou 4 mae por que ela nao se interessara, como as tias mais velhas, pela musica. Para sua surpresa, a mae Ihe revelou que suas irmas, as tias, jamais tinham apren- dido a tocar qualquer instrumento musical. Decepcionada, a senhora the indagou sobre a raziio daquela fotografia. Com muita naturalidade sua mie disse-lhe que “era costume da época que mogas de famflia de classe média se apresentassem com os modos das jovens de classe alta”."* Além do retrato individual, os fotégrafos ambulantes e os estidios de fotografia também se dedicavam & produgio dos dlbuns de familia, de grupos de profissionais, de amigos € dos dlbuns de cidades. Em todos esses trabalhos o fotdégrafo, independente ou vinculado a alguma empresa, desempenhava papel de mediador da cultura do olhar fotogi ‘ico, mais tar- de seguido de perto por amadores. No por acaso, Miriam Mo- reira Leite chama a atencio para a uniformidade entre os retratos antigos de familias judias russas, bra- silciras, arabes, italianas ¢ suecas que imigraram para So Paulo, a ponto de os retratos de uma familia ju- dia russa (inadvertidamenic) terem sido escolhidos para ilustragdo de um artigo sobre a familia patriar- cal brasileira." O padrio a que a autora se refere diz respeito & maneira de representar o grupo familiar. Nas fotografias de familia — fos- sem elas produzidas em esttidios ou nao - 0 que interessava era a representagdo dos papéis sociais. E com eles que se cria a identidade do grupo e se institui a mem6ria de seus membros. Segundo Bourdieu, “o album de familia exprime a verdade da recordago social”, Funciona como uma espécie de “rito de Entrevista Relato de Maria Grazia Scaglia Linhares. Astolfo Dutra, dez/1978. Acervo de entrevistas da autora, “ MOREIRA LEITE, Miriam, Retratos de familie. 20d ver. Si Paulo: EDUSP/ FAPESP, 2000, p. 76. 54 Historia & Fotografia integragao a que a familia sujeita os seus novos membros”;!* cria elos, institui e preserva a mem6ria familiar. Quando feita emestidio, A auto-imagem da familia somava-se a interferéncia de um outro olhar: o do préprio fotégrafo, que também possuia seus critérios estéticos e seus condicionamentos técnicos. Em 0 espirito das roupas, Gilda de Mello ¢ Souza lan- cou mio da fotografia para, a partir do tema da moda no sécu- lo XIX, refletir sobre questdes ligadas ao conceito de classe social e de sexo. Figura8 ® BOURDIEU. apud, LE GOFF, Jacques. Meméria. In: Enciclopédia Einaudi. Port- to: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1884, p. 39, wl 55 Couyho "Hira &... REREXOES” Ambas as imagens (Figuras 7 e 8) parecem ter sido pro- duzidas em estiidios. Na primeira, salta-nos a vista a impesso- alidade dos fundos fotograficos diante dos quais se colocaram as familias retratadas. Em ambas pode-se ver uma espécie de cerca feita de madeira. Conscientemente ou nao, o fotégrafo usou este signo para ressaltar 0 papel desse simbolo da proprie- dade privada da terra, quer dizer, da hereditariedade da proprie- dade fundidria. Observe-se que em ambas sao os jovens das familias que, alocados atrds das cercas, representam a conti- nuidade da propriedade privada da terra e, conseqtientemen- te, os valores a ela atribufdos. A combinag&o da representagaio tosca, quase caricata, da origem rural da familia se completa com a disposi¢ao espacial dos demais membros na imagem. A presenca da empregada doméstica, devidamente uniformiza- da, reforga, no expectador, um ideal da familia de classe alta. Na primeira imagem, a metdfora de familia integrada & reafirmada pela figura do patriarca que, de pé ao fundo, sugere protegiio e seguranga aos demais. Resguardada pelo brago mas- culino, a mulherde expressao sdbria parece ser a esposae a mae da familia patriarcal. Ao seu lado, mais 4 direita, uma outra mulher com vestes escuras e expressdo atenta tanto pode ser uma preceptora das criangas quanto uma tia solteira. O bambolé diante do fiiho(a) cagula, o wnico signo anos reportar 2 infancia como um espago do hidico e da distragiio, era um dos brinque- dos mais utilizados nas fotografias de familia daquele periodo. Jronicamente ou nao, esse simbolo da vida infantil é colocado exatamente diante da crianga que nao tem nem idade nem con- trole motor suficientes para fazé-lo funcionar. A rigidez das pos- turas é outro sinal da artificialidade da situagao gerada pela pre- senga de estranhos: a maquina e 0 fotégrafo. Com algumas diferencas, a segunda imagem também nos remete ao padrio da primeira, A reuniaio de wés geragées em um tinico espaco sugere a idéia de permanéncia de valores, de continuidade da instituigao familia, sinnimo de estabilidade social. Essa foto tem, ao fundo, outra marca da produgao de 56 Hisiéria & Fotografia estiidio: o chamado pano de boca, uma tela pintada cuja fun- co era criar um cendrio para a atuagao das personagens, um recurso alids, muito utilizado nas éperas. Além da cerca de madeira, as ligagdes familiares (casais, filhos, tios, av6) tam- bém sao representadas por pequenas e sutis diferengas na for- ma de vestir, pentear e pela disposi¢do espacial de cada um deles no cendrio montado pelo fotégrafo. Em ambas as foto- grafias, os fot6grafos parecem querer ressaltar 0 pertencimen- to dos membros das familias a estratos sociais que indepen- dem do trabalho 4rduo e pesado." Antes de passarmos & andlise de mais uma modalidade fotografica do periodo, cabe chamar a atengdo para um dos modos de conceber e olhar a imagem fotografica muito co- mum na época. Trata-se de um recurso conhecido como picto- rialismo, criado com o duplo objetivo de retocar as imagens para diminuir as ambigiiidades que a técnica fotografica no escondia e de aproximar mais a fotografia da pintura.”* Os fo- tografos, muitas vezes ¢x-pintores, retocavam as fotografias com “lapis, carmim. grafite e esfuminho, de coloragéo com dleo. aquarela e anilina"?! Também se contratava 0 trabalho de minia- turistas para 0 retoque das fotos, Essa invengiio, contemporanea ” & novidade da fotografia assusta mesmo aqueles que buscam nela uma forma de perenizar sua passagem pela vida. Em geral, antes das tomaias das pases, os chen- les passavamn alguns minutos 1a ante-sala dos estidies disiraindo-se com as gons de élbuns fotogrdficas. Esperava-se que enquanto se delivessem na escollya dos apetrechos que iriam adormar 0 cendrio para eles montado. tambéra padessem ir se descontraindo. Ainda assim, » expresso por vezes assustada do alhar dos fotografados sinaliza a anificialidade do ato de se deixar fotografar. Sobre a ambientagéo na ante-sala dos esttigios € no interior des. mesmos, ver: LEMOS, Carlos A.C. Ambientagio ilussria. In: MOURA, Carlos B. ML de (org.) Retratos qiuase inorentes, So Paulo: Nobel, 1983, p. 49-65. » FABRIS, Annateresa. A invengiio da fotografia: repercussdes sociais, In: FABRIS, ‘Annateresa (org). Fotografia: usas e funcées no sécule XIX. S50 Paulo: EDUSP, 1998, p. 21. (Coleco Texto & Arte, 3) » Dado que as reproducdes das imagens deste livro serdo em preto € branco, no apresemtaremos exemplos imagétices dos retratos pintados. Certamente muitos dos leitores devem ter tido a oportunidade de ver alguns desses espécimes to comuns no Brasil até cerca de meados do século XX. 57 Conegio “Historia &.. REFLXOES do barateamento da imagem fotografica, acabou por inflacio- nar seu prego, cujos cdlculos computavam os gastos com OS suportes destinados a colorizar a imagem © com o pagamento do trabalho dos miniaturistas encarregados de pintar a fotogra- fia, além dos custos da prépria fotografia. Em virtude disso, a foto-pintura funcionou com uma barreira socioecondmicas no interior do universo fotogrfico. Entretanto, o rompimento des- sa fronteira nao tardaria a se coneretizar, Hoje em dia, a foto- pintura ainda é utilizada por um piblico de menor poder aqui- sitivo, geralmente Jocalizado em areas econdmicas também mais pobres.”” A era dos cartées-postais O aumento do consumo da fotografia iria se tornar ainda mais acentuado quando, em 1888, 0 fotégrafo George Eastman (1854-1934) passou a comercializar seu mais novo invento: a Kodak. Esse primeiro aparelho fotografico portatil, por ele cha- mado de instansdneo, continha um rolo de filme que permitia fazer até 100 imagens. Desde entio, as imagens fotograficas tornaram-se objeto de comercial zagiio em larga escala. ‘Um ano depois da invengiio do instanténeo, desenhistas € pintores franceses encontraram uma utilizagdo rentével para as imagens saidas da Kodak: criam ocartiio-postal ilustrado, feilo a partir da fotografia. Mais uma vez, a fotografia dialogava com a pintura. Punha suas lentes para fixar e divulgar partes de vilas ¢ cidades j4 consagradas por sua importancia comercial, Erhora ado seja objeto de nossa andlise, ndo podemos deixar de repisiray & polt- vite saceida com a prética pictorialista que no se reslringil aos cartes de visita mas esteve presente também nos cartées postais ¢ na reprodugao de imagens na tnidia impeessa, Alguns analistas sstentam que o pictorialisme tena representade tuma negagio da linguagern fotogrsfica que, por sua satureza tecnica e or 5 grande capacidade reprodutiva, tem, desde Ses sungimento, unn compromisso COM a demmocratizagao da imagern, Sobre esse debate, ver: BAURET. Gabriel. Appraces de ta photographie. Paris: Nathan, 2002, p. 82. 58 | | | Historia & Fotografia histérica, etc. Por mais realistas que fossem os cartées pinta- dos, suas imagens no logravam ultrapassar a sensagao de reali- dade, produzida pelas imagens fotograficas, ilustradas ov nao. De mais a mais, os cartées-postais fotogréficos eram infinita- mente mais econdmicos e, portanto, mais comercializaveis O sucesso de tal empreendimento levou, em pouco tempo, fotégrafos e pequenos empresirios a investir na produgio e co- mercializacéio de vistas de paisagens, de cenas da vida rural © urbana, de monumentos histéricos ¢ de lugares que, por razdes diversas, iam se tomando cada vez mais objeto do desejo ¢ das viagens de lazer da burguesia da Belle Epoque. Em pouco tempo, as paisagens, os monumentos histéricos, o folclore regional, os tipos pitorescos e a m&o-de-obra das dreas rurais e urbanas tor- naram-se os principais alvos da produgio dos cartées-postais. Para se ter uma idéia do sucesso desse empreendimento. Kossoy nos diz que, em 1899, quando do inicio da “idade de ouro” dos car- tdes-postais [/900-7925}, a Alemanha produziu 88 milhdes de unidades, seguida pela Inglaterra com 14 milhdes. Bélgica: 12 milhdes e Franca: 8 milhoes. Ja em 1910, a Franga liderava essa inddistria produzindo nada menos que 123 milhdes de postais.* Assim como ontem, também hoje, 0s cartées-postais ja- mais oferecem imagens-sintomas do feioe do desagradavel. A expressao parece um cartGo-postal sempre se refere aum ideal de belo consagrado pelas artes plasticas greco-romana € re- nascentista. Encantar o olhar do observador, celebrar um ima- ginario que remeta a um mundo guiado pelas nogoes positivas de progresso ¢ civilidade sempre foram as principais fungoes sociais dos cartdes-postais. Nao por acaso, 4 medida que sua moda ia se alastrando, as cidades, locus por exceléncia do 2 KOSSOY, Boris. Reulidades ¢ ficgiies na irama fotogréfica. 2.ed., Sio Paulo: Atelié Editorial, 2000, p. 64. 59 Cough “Histon &... RErLextrs” exercicio e das prdticas civilizadoras, iam construindo suas vers6es higienizadas, oficiais e modernas do espaco ptblico. Nao por acaso, os prédios puiblicos e as construgSes arquiteté- nicas esteticamente mais arrojadas foram os principais alvos dos produtores dos cart6es-postais. Consumindo os icones que as representavam, o turista, que durante suas viagens inter- rompia a mesmice de seu cotidiano, queria mostrar a seus pa- rentes € amigos que também ele participava do “avango da civilizagdo”, simbolizada, nos cartdes-postais, por um mundo ordenado por signos ja identificados com as nogées de belo, prazer e avango, sobretudo tecnolégico. Figura imagem nos coloca diante de uma outra face do cat- tdo-postal: sua dimensio pedagégica. Vé-se que o foco princi- pal do fotégrafo recai sobre a figura do guarda de transito. Entretanto, 0 sentido pedag6gico da imagem nao se reduz a 60 Historia & Fotogratia ele, ao contrario, se completa com os demais planos da imagem. Ao fundo estd um dos icones da cidade-Iuz: o Arco do Triunfo. Projetado para celebrar a vitéria de Napoledo Bonaparte em Austerlitz, em 1805, esse marco da grandeza da nagdo francesa, concluido em 1836, remete o expectador ao passado e & tradi- ao. Entre sua silhueta e 0 guarda de transito, esto os automé- veis que vém c vo, icones, por sua vez, da velocidade do pro- gresso e da modernidade. As mulheres sobre seus triciclos também sugerem uma certa combinagiio entre tradigao e mo- demidade. Se, por um lado, a presenga feminina ji ganha as iuas; por outro, ela se locomove no espago ptiblico com um vefculo que nao é tio moderno quanto o automével, o qual, naquele periodo era sempre guiado por homens. A conjugagao automdvel/triciclo desperta, no observador, imagens associadas aum tipo de agilidade superior 4 do movimento do corpo huma- no. Fortalecem a crenga na capacidade do homem conquistar e dominar, via tecnologia, a natureza. Diante do guarda de transi- to, no plano inferior da imagem, encontram-se as linhas que demarcam, no chao, uma linguagem prépria das normas de trin- sito, signo da disciplina espacial urbana, condigiio de integra- gdoe sobrevivéncia naurbis. No conjunto, a imagem exala con- tentamento, higienizacao e interaciio entre as pessoas. Agradivel ¢ bonita como um cartéo-postal! A identificagdo entre modernidade e cartio-postal nao se reduz & sua linguagem iconografica. Na realidade, 0 cartao- postal é também uma modalidade nova de correspondéncia. E uma comunicagao constituida de texto e imagem visual que ul- trapassa dois tipos de fronteiras. A espacial, geografica, e a da individuatidade da correspondéncia. As palavras do emitente, livres do sigilo que os envelopes garantem aos textos dus cartas, vio se socializando até chegarem ao destinatario. O fotdgrafo, interlocutor oculto dessa comunicagdo multipartilhada, produz a comprovagio do que 0 olho do(s) destinatario(s) ndo pode(m) ver. No lado oposto do cartdo, as imagens, fcones de uma Jeitura positiva e otimista da modernidade, funcionam como 61 Courto “Historia &.. Reriexces” uma espécie de guia para a imaginacao tanto do emitente da mensagem quanto de seu(s) receptor(es). Se os Albuns de familia podem funcionar como fonte para 0 historiador problematizar temas ligados 4 histéria da vida Privada, os cartées-postais, hoje pegas cruciais dos acervos das cidades, so documentos que tanto informam quanto per- mitem a andlise das representagdes do espago piiblico. A fotografia e as representagées da morte Uma multiplicidade de mitos, positivos ¢ negativos, re- lacionados com o tema da morte marca a trajetéria do homem ao longo da histéria da humanidade. Em todos os tempos, a passagem —definitiva para uns, tempordria pata outros — da vida Para. a morte é celebrada por diferentes rituais fiinebres. Ao exe- cutar seus ritos, os homens nfo apenas criam formas para do- mesticar a dor e o medo diante do sentimento de perda que a morte acarreta, como também estabelecem normas para regular as condutas dos membros das comunidades a que pertencem. E assim que a nocao de morte gloriosa fabrica o mito do heréi, cuja vida sera reverenciada pelos vivos segundo um calendério proprio. Hades, Inferno, Purgatério, Paraiso so alguns dos lugares-icones que a tradigao grega e crista destinaram a vida apés a morte. As representagdes de cada um desses espagos — celebrados pela literatura, misica e ar- tes plasticas — correspondem explicagoes para o alcance ¢ 0 limite da agao humana. Nas sociedades tradicionais, os ritos fiinebres também inclufam a confecg’o de mdscaras mortudrias, as quais nao apenas guardavam as propriedades do morto, como também reverenciavam sua memoria. Expostas em lugares especiais, elas eram sacralizadas e, como tais, institufam, divulgavam, teforgavam e alimentavam o sentimento de pertencimento 62 Historia & Fotografia entre os que as cultuavam. Em torno dos significados a elas atribuidos, os homens tanto podiam se unir quanto se separar. Nas sociedades predominantemente laicas do mundo moderno, mudam as formas de reverenciar a morte ca mem6- ria do morto, As crengas sobrenaturais e os rituais finebres deixam de ser defendidos tao apaixonadamente. A celebragiio da morte ganha um calendario proprio e um espaco que, dia a dia, vai se tornando mais asséptico ¢ impessoal. Ainda assim, durante o ritual destinado a celebrar a meméria do morto, seu retrato feito em vida é, comumente, distribuido entre os que participaram de seu cotidiano. Para cultuar sua lembranca, a fotografia € um dos recursos mais utilizados. No inicio de 2002, o Museu D’ Orsay de Paris apresentou uma exposicio intitulada le dernier portrait. Em meio a escul- turas € pinturas de diferentes perfodos da modernidade, desta- cavam-se as fotografias que, entre 1854-60, também registra- ram “o tltimo retrato” de criangas, jovens e adultos. Esse costume de fotografar a morte recém-chegada, tio corriqueiro ha Franca oitocentista, era partilhado por muitas outras socie- dades do mundo modemo. Ao retratar um ente querido que acaba de morrer. a imagem fotogrdfica faz reviver, em lingua- gem c estética seculares, “algo que se assernelha ao estatuto primitivo das imagens: a magia”. Nesses casos, a fotografia funciona como um “substituto da posse de uma coisa ou pes- soa querida, posse que lhe confere algumas das caracteristicas dos objetos Gnicos.* Sempre que vista, a imagem estimulard lembrangas e, quem sabe, aplacaré a dor da perda. Naquela época, a confecgao do chamado ultimo retrato seguia um padro estético dado pela pintura. No século XVI, 0 pintor italiano Jacopo R. Tintoretto (1518-1594) pintara um quadro retratando a morte de sua filha. Sua estética da represen- tagdo da vida que acabara de se esvair tomou-se um padrao para * SONTAG, Susan. Ensaine sobre fotografi. Lisboa: Dom Quixote, 1986, p. 137 63 Coregaca “HISTORIA &... REFLEXES” outros pintores e, mais tarde, para os fotégrafos oitocentistas Nao por acaso, muitas dessas fotografias eram assinadas por fotégrafos-artistas. Ainda hoje, o diltimo retrato, feito no espago doméstico, & uma tradigéo cultuada em certas comunidades rurais. Todavia, nesses casos, ele ndo apenas tem um outro significado, como tam- bem € reservado aqueles que nao tiveram tempo de experienciar a vida, os recém-nascidos. Na fotografia que se segue, extrafda do livro Terra, 0 fotégrafo Sebastidio Salgado explica que, Segundo a crenga popular do Nordeste, quando mor- fem anjinhos, ainda nao acostumados com as coisas da vida ¢ quase sem conhecer as coisas de Deus, & preciso que seus olhos sejam mantidos abertos para que possam encontrar com mais Jacilidade o caminho do céu. Pois com os olhos fcc! ! ados, os anjinhos etta- tiam cegamente pelo limbo, sem nunca encontrar a morada do Senhor, Ceara, 1983. ** SALGADO, Sebastitio. Terra. S40 Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 140. 64 Historia & Fotwgratia Além dos olhos semi-abertos, a crianga j4 morta traz na cabega uma cruz sustentada por uma espécie de toca. Essa cruz, simbolo do pertencimento ao mundo cristdo, funciona como. guia pata os olhos desprovidos de conhecimento sobre o traje- to a ser percorrido. Para os familiares do bebé recém-morto, a fotografia funcionard como a prova de que a crianga partiu preparada para sua longa viagem em diregio ao paraiso. Para © historiador, interessado na decodificagiio da imagem, esse tipo de fotografia é o testemunho de uma das formas de mani- festaciio do imaginario popular cristao. No século XX, as representagdes do dltimo retrato mi- graram para 0 espago puiblico, paraa imprensa, ¢ adquiram outros usos e fungées. Reproduzidos em jornais — inicial- mente mediante a transcrigio em litografias — eles privile- giam a noticia da morte de individuos cuja vida € associada a algum tipo de insergdo na esfera publica. Sua divulgagio yisa estimular, no leitor, sentimentos e valores professados pelas ideologias que norteiam a jinha editorial dos jornais que o publicam. Foi com objetivos como esse que, em 1938, os jornais brasileiros estamparam as imagens da morte de Lampido ¢ scu bando, 05 quais, conforme depoimentos das autoridades, de- safiavam os valores republicanos desde 1917, data em que Lampifio entrara para o mundo do cangago. Em 1967, é a vez da imprensa boliviana divulgar, em primeira mao, 0 ultimo retrato do comandante Che Guevara, um dos jcones da Revo- lugiio Cubana de janeiro de 1959. Imediatamente. jornais de diferentes pafses do bloco capitalista reproduziram a imagem do corpo de Guevara com 0 objetivo de celebrar o triunfo da luta contra o terrorismo em tempo de Guerra Fria. Para muitos que viram essa fotografia, 0 Ultimo retrato de Guevara teve outro significado. Representou um golpe na luta em prol do a Latina. socialismo na Amé: 65 Conecicr*Hisromn &.. RerLoxcis” Figura il Nessa fotografia os membros do bando de Lampiao mais parece pegas de um muscu macabro, Sem qualquer intengio attistica, 0 objetivo do fotégrafo é informar o desbaratamento de um dos tiltimos redutos do banditismo social no sertiio bra- sileiro. Ironia ou nao, 0 fato é que a imagem também poe a descoberto a violéncia dos meios de combate A agiéo de grupos que, como esse, eram considerados uma ameaga 4 estabilida- de da nagao brasileira. Vestimentas, armas, 0 classico chapéu dos cangaceiras, botas, tudo ricamente omado, querem sim- bolizar © fim da rebeldia camponesa que a cultura excludente e latifundista da Repiblica transformara em simbolo do caos e da anarquia. As imagens das cabecas de Lampiiio e seu bando Parecem ser um caso especifico de didlogo da modernidade com a tradi¢ao. Expor partes do corpo de rebeldes, sobretudo a cabega, é um costume antigo.” Para ficarmos apenas no pas- sado da hist6ria brasileira, lembremo-nos do corpo de Tira- dentes dilacerado, exposto em pontos do caminho entre Rio E £ imports lembrar que as cabegas dos cangaceicos ficaram expostas a visitagao em Salvador até 1969, quando uma decisdo judicial determinou que fc sem sepultadas, “es 66 Histéris & Fotografia de Janeiro e Vila Rica. Pelo que se sabe, sua cabega teria fica- do exposta na capital da capitania de Minas Gerais, de modo a manter viva a lembranga dos custos de uma rebeliao. Quando veio a Repiiblica, Pedro Américo criou o tiltimo retrato de Ti- radentes, jé entio identificado como heréi nacional. Mas a divalgagiio da fotografia na imprensa nao se res- tringiu ao tema da morte. As celebragoes ¢ comemoragées dos atos piblicos dos chefes de Estado e do cotidiano de suas familias, as manifestagdes politicas, as conquistas tec- nolégicas, as reformas no espago piblico, enfim, uma gama yariada de temas e acontecimentos foram, com 0 tempo, pre- enchendo as paginas dos jornais, modificando sua estéticae, sobretudo, contribuindo para criar uma outra relagao dos homens com as imagens. Fotografia, imprensa e politicas publicas Dentre os campos de visibilidade da imagem fotografica na imprensa de fins do século XIX € inicio do século XX, estavam também as representagées sobre as classes sociais. Nesse periodo, o jornalista americano, Jacob-August Riis (1848-1914), especialista em erénicas policiais, descobre 0 poder de persuasao & propaganda da fotografia e inaugura um novo estilo jornalistico: o documentario ilustrado (Figura 12). Tal qual no ultimo retrato de Lampiao e de Che Guevara, af também a solidariedade entre texto ¢ imagem visa 4 forma- gio de opinide dos leitores de jornais. A diferenca é que os temas de Riis privilegiavam a vida e nao a morte. Seu olhar se dirigia para a sociedade concebida a partir de dois grandes blocos: os pobres e os ricos nos Estados Unidos da América. As imagens dos pobres traziam a tona o tema da sociedade de massa, dos trabalhadores imigrantes, dos desempregados, men- digos, em suma, do universo social identificado com as “classes perigosas”. Enquanto a produgao das imagens de trabalhadores 67 and Coreen “HIstORIn &... REEEKGES” italianos, chineses, judeus, irlandeses etc., sobretudo dos de- sempregados ou subempregados, eram guiadas por uma interpre- taco moralista e reformista, saida do othar xendfobo de médicos e juristas de fins do século XEX, as representagSes fotograficas da burguesia pautavam-se por valores positivos, como a beleza plastica, a felicidade, a uniao da familia, o lazer etc.” Ao relacionar a pobreza com as representagdes do aban- dono, da enfermidade, da preguiga, do crime € da subnutrigao, o fotégrafo punha suas imagens a servigo dos discursos des de- fensores das politicas sanitaristas, das reformas urbanas ¢ da aprovagiio de leis de controle e disciplinarizagao do trabalho. * Figura 12 Ainda que circunserito ds grandes cidades norte-america- nas, o wabalho fotografico de Riis dialogava com o de outros fotdgrafos-jormalistas situados em outros espagos geograficos. Sobre essas questbes. ver: LEMAGNY, Jean-Claude © ROUILLE. André, Histoire de ia photographie. Paris: Bordas, 1986. p. 64¢ segs.: FREUND. Giséle. La foto- geafia de prensa. In: La fotografia come documenio social. Barelona: Gili, 1993 68 Hist6ria & Fotografia Na transicdo do século XIX para o século XX, os grandes cen- tros urbanos, sobretudo aqueles ligados 4 produgio industrial, recebiamum grande fluxo de migrantes. A organizagao de seus espacos vai sendo profundamente alterada pela presenga de novos atores sociais, cujas vidas os decretos municipais tenta- vam regular e controlar. Ferreiros, sapateiros, costureiras, bom- beiros, operarios de fabricas, vendedores ambulantes de todo o tipo, desempregados, mendigos ¢ os chamados vagabundos transitavam pelas suas, bairros ¢ pragas antes reservados aos antigos habitantes. Em meio a tais transformagées, criou-se 0 panico das massas, das multidées sem identidade propria, ime- diatamente identificadas com a desordem. Para manter 0 con- trole sobre o processo de alargamento das fronteisas do espaga publico, as autoridades criavam uma série de politicas publicas, alicercadas por uma enorme literatura, sobretudo médica e juri- dica, que a midia se encarregava de divulgar. Texto e imagem compunham a nova linguagem destinada a domesticar 0 espago em diferentes metrépoles da Europa e das Américas. Longe de ser um documento neutro, a fotografia cria novas formas de documentar a vida em sociedade. Mais que a palavra escrita, o desenho ea pintura, a pretensa objetivi- dade da imagem fotografica, veiculada nos jornais, ndo ape- nas informa 9 leitor — sobre datas, localizagdio, nome de pes- soas envolvidas nos acontecimentos — sobre as trat sformagées do tempo curto, como também cria verdades a partir de fan- tasias do imaginario quase sempre produzidas por frages da classe dominante. > Ao lado das imagens sobre a pobreza, cresce, também nesse periode, a produgio fotogréfica especializads em documentar as doengas, Sua citculagto tinha destin eerto. as cevistas médicas. Ao lado das imagens da enfermidade, encontram-se as dos laboratsries de pesquisa, onde se vé médicos ¢ pesquisadores em seus lecais de trabalho, O par satide/doenga orienta as representagdes do espage social identifica- do pelas idéias: de ordenvdesordem, Sobre essas questées, ver: SILVA, James R. De aspectos quase florides. Fotografias em revistas nédieas paulistas, 1998-1920 Revista Brasileira de Histéria ~ Cigncia ¢ Sociedade. $d0 Paulo: ANPU/ Humanitas Publicagdes, v. 24, 0. 41, 2001, p. 201-216. 6 Corccha “Histoxta &... RELEOB” Para se ter uma idéia do poder de difusio dessas e de outras visdes da sociedade presentes nos jomais da época, & importante lembrar que, em meados do século XIX, existia apenas em Nova York cerca de dez mil ilustradores emprega- dos na imprensa. A eles cabia transcrever em litografias as tomadas fotogrdaficas feitas nas ruas ¢ bairres da cidade. Entre 1855-60, o jomal Hustrated London News, promete a seus leitares uma visio dos principais acon- tecimentos mundiais, do progresso social © da da politica, com a ajuda de tmagens variadas e realistas”. Nessa época, sua tiragem passa de 200 mil para 300 milexemplares.” A era moderna da imprensa ilustrada comegou de fatoa ganhar félego com a contratagdo de fotderafos socialmente reconhecidos para acompanhar os chefes politicos ¢ militares em suas campanhas. Esse foi o caso das imagens produzidas pelo fotégrafo francés Le Gray que, a partir de 1856, passou 2 documentar o cotidiano das campanhas de Napoleao I. En- tretanto, é durante a guerra dos Boers (1899- 1902) eda guerra russo-japonesa (1904-1905) que a fotografia de imprensa se firmou. Quando foi deflagrada a Primeira Grande Guerra, 2 fotografia de imprensa ja era um dos principais vefculos de divulgacio de noticias e de produgiio de interpretagao sobre os acontecimentos histdricos.” ~ No decorrer do século XX, 0 avanco das técnicas foto graficas e a mudanga do padrao na edigio dos jomnais foram atribuindo as imagens fotograficas um papel cada vez maior na imprensa escrita, Logo apés os primeiros impactos da crise de 1929, 0 governo norte-americano criou a Farm Security Administration (FSA, 1935-38). Como parte da politica do New » LEMAGNY, Jean-Claude ¢ ROUILLE, Andsé. ister de a phowogranie, Pans Bordas, 1946, p. 76. , Sobre essas questées. ver: FRIZOT. Michel (org). Newvelle histoire dela i Photographie, Paris: PUF, 2001 Historia & Fotografia Deal, 0 governo Roosevelt contratou, sob a diregdo de um so- cidlogo, o trabalho de fotégrafos renomados para documentar os efeitos perversos da crise em solo americano. Nesse caso especifico, as cfimeras fotograficas subsidiariam a montagem de um “balango objetivo das condi¢Ges de vida e trabalho nas reas rurais do pais”,*! com a finalidade de implementar pro- gramas de modemizagio nas areas rurais. Em pouco tempo, a burocracia estatal norte-americana teve em méios um testemunho verossimil e variado do estado em que se encontrava a populag4o das dreas rurais e das pe- quenas cidades atingidas pelos efeitos de uma crise de propor- ¢40 mundial. Das 270.000 imagens produzidas por esse mape- amento do interior dos Estados Unidos da América, cerca de 170.000 encontram-se hoje arquivadas na Biblioteca do Con- gresso em Washington. Largamente difundidas na imprensa da época, as imagens causaram polémica e protestos, sobretu- do por parte dos grandes proprietdrios fundidrios contrarios, desde o inicio, aos propésitos reformistas da Casa Branca. Muito provavelmente, as fotografias de criancas famintas; do desemprego generalizado; das migragées em massa de pe- quenos agricultores e trabalhadores rurais empilhados, como coisas, em precdrias camionetas € em vagées de trens; de carca- gas de animais espalhadas pelas estradas serviram para subsidiar as cenas verossimeis e pungentes que, em 1940, compuseram a trama do cléssico do cineasta John Ford em As vinhas da ira. As construgdes fotograficas da equipe de fotégrafos da Farm Security Administration tivcram um sentido distinto das imagens da pobreza de Jacob-August Riis. Fotégrafos como Walker Evans (1903-1975), por exemplo, transformaram a Farm Security Administration em um empreendimento de ca- réter “etnografico”. Fortemente influenciado pela literatura de Flaubert e Baudelaire, Evans usou sua arte para documentar 0 ™ Dictionarie de ta Photo, Paris: Larousse, 996, p. 220 7 Compas “Historia &.., RELXOS” que Walter Benjamim chamou de fisiognomia da metr6pole. Ao invés de produzir um testemunho pretensamente neutro do real, a equipe de fotdégrafos contratados pelo governo norte- americano buscou apreender as sensagées de dor, sofrimento € esperanga, expressas nos tracos fisiondmicos dos homens e mulheres do interior. Movidos por essa intengdo, suas ima- gens atribuiram dignidade aqueles até entao identificados como miserdveis, vagabundos ¢ sobretudo com os membros da cha- mada fracfo perigosa da sociedade. Para finalizar este capitulo, cabe ressaltar que a tese do realismo, da exatidao e da fidelidade das imagens fotogrdficas — traco atribuido & fotografia em seus primeiros anos — j4 néo é mais cabivel entre os anos 20 e 40 do século XX. Embora o Movimento Surrealista ndo possa ser responsabilizado pela mudanca na caracterizagao da linguagem fotogrifica, néo ha como negar que as montagens dos fotégrafos que dele parti- ciparam muito contribuiram para problematizar sua natureza. A partir de ent&o, fica fortalecida a tese de que por detras da cha- mada camera hicida hd um ou mais individuos interessados em divulgar suas intengdes sociais e suas visdes da realidade. Mas nem por isso as imagens fotograficas perderam sua aura de magia ¢ encanto. Em um livro sobre a relaciio entre a hist6ria-conhecimento ea fotografia, interessa, fundamentalmente, ressaltar que as imagens fotograficas, assim como as literdrias e sonoras, pro- perm uma hermenéutica sobre as praticas soci, sentagdes. Funcionam como sinais de orientagio, como fin- guagens. Quando utilizadas com fins compreensivos e€ explicativos, elas demandam nao apenas 0 emprego de meto- dologias afinadas com seus estilos cognitivos — que ajudam a iléncios — como e suas repre- ler e interpretar suas ambigiiidades € seus também o cruzamento com outros tipos de documentos. A cé- lebre frase de Roland Barthes de “que uma imagem fala por mil palavras” nem sempre se aplica aos objetivos do trabalho 72 Histéria & Fotografia do historiador. Para responder as quest6es que orientam nos- sas pesquisas — calcadas em vestigios do passado e, portanto, marcadas por uma margem relativamente grande de conjectu- ras @ incertezas ~ as imagens fotogréficas devem ser vistas como documentos que informam sobre a cultura material de um determinado periodo histérico e de uma determinada cul- tura, e também como uma forma simbdlica que atribui signifi- cados as representagGes € ao imaginirio social. Os usos ¢ as fungdes sociais atribuidas as imagens foto- graficas do periodo analisado neste capitulo certamente nao coincidem com os significados que hoje lhes conferimos. To- davia, sem compreender as vozes dos homens e mulheres de ontem, ndo podemos conhecer os sentidos que eles atribuiram As suas produgées simbélicas. CAPITULO IL A Histéria-conhecimento e o documento fotografico Pesquisa histérica e documentos visuais Vimos, no capitulo II, que as sociedades oitocentistas se apropriaram das imagens fotogrdficas e legitimaram seu modo de ver e dar a ver a diversidade do mundo muito antes que a pesquisa hist6rica Ihes atribufsse o stams de documento histé- rico, Neste capitulo, interessa-nos discutir 0 papel das ima- gens fotograficas na pesquisa histérica. Para isso, faz-se ne- cessirio compreender comoe porque elas foram incorporadas, como documento, ao novo paradigma histérico. Tomemos, como ponto de partida para nossa andlise, 0 texto Posigdes da Hist6ria em 1950, de Fernand Braudel. Com ele, Braudel, um dos deuses-tutores da Escola dos Annales, introduz. sua aula inaugural no Collége de France em 1* de dezembro de 1950. Ao dizer que “a histéria se encontra, hoje, diante de responsabilidades temiveis, mas também exaltan- tes”, este historiador inicia seu balango sobre a relagio en- tre as trajetérias da pesquisa hist6rica, 0 oficio do historia- dor e a dinamica social no decorrer da primeira metade do século XX. Dirigindo-se a um piiblico jovem e curioso acer- cade sua futura profissio, Braudel analisa as conquistas ted- rico-metodolégicas de sua geraciio e examina os desafios j4 enfrentados nas oficinas da historia. Simultancamente, deixa entrever as conquistas e as responsabilidades que as mudangas ' BRAUDEL, F. Posigdes da Histéria em 1950. In: Escrites sobre a Historia. Sao Paulo: Perspectiva, 1978, p. 17 Cougho “Histon &,, REFLEXOES” sociais em curso jd sinalizam aos futuros membros da comu- nidade de historiadores. Assim como os praticantes da historiografia metédica, Braudel também atribuird um papel de destaque ao documen- to hist6rico. Todavia, a essa altura, outro é 0 conceito de fonte histérica e outro, também, é o lugar que ele ocupa no processo de cogni¢ao hist6rica. Como os demais campos do saber cien- tifico, a histéria-conhecimento também nao ficara imune ao turbilho de mudangas moral, politica, econdmica e sociocul- tural que, apés a vivéncia de duas gucrras mundiais, ia alte- rando a vida de individuos e grupos sociais, independentemente de classe, género, etnia e credo religioso. Como atores ¢€ intér- pretes das mudancas em andamento, os historiadores proble- matizam a realidade social ¢, a partir de seu proprio presente, voltam-se para 0 estudo da multiplicidade de praticas sociais gestadas por homens e mulheres dos perfodos anteriores. Para responder As perguntas nascidas do e no presente ¢ endere¢a-las ao passado, os historiadores nado apenas intensifi- cam seus didlogos com economistas, socidlogos, demégrafos & cientistas politicos, como também desenvolvem novos métodos de pesquisa. No decorrer desse processo de troca ¢ criagio, eles hegam o paradigma metédico. A histéria-fazer j4 ndo mais se confunde com a histéria-conhecimento. O documento histérico nao mais é concebido como um dado puro que fala por si mes- mo e se oferece, objetivamente, ao historiador. Novos temas ¢ objetos de andlise orientam a busca documental. Novos méto- dos de pesquisa orientam o tratamento dado ao documento. A pratica da pesquisa hist6rica vai além do estudo das agdes dos homens pertencentes aos circulos do poder civil, religioso e militar. Engloba, também, os testemunhos andnimos, deixados por todos aqueles que combatem, resistem, interagem e negociam, direta ¢ indiretamente, com as diferentes esferas do poder? e Pouco depois, essa massa documental daria origem a chamada histéria “vista de. baixo” cujos desdobramentos na Inglaterra de E. P. Thompson, de C. Hill e de E. 76 Historia & Fotografia Em prinefpio, 0 novo paradigma histérico implicaria a negacdo da antiga hierarquia de importncia entre os diferen- tes tipos de documentos. Fontes escritas, orais e visuais teriam amesma importincia para e no trabalho do historiador. Deve- riam contribuir para multiplicar, diversificar ¢ iluminar os no- vos objetos que desde entdo conformam os novos territ6rios da pesquisa hist6rica.* Entretanto, veremos que a pritica da pesquisa histérica continuara, por mais algumas décadas, a privilegiar o docu- mento escrito. No momento em que Braudel se dirigia aos fu- turos profissionais da historia, os historiadores de offcio ainda nfio se sentiam & vontade para interrogar as fontes imagéticas com a mesma desenvoltura com que lidavam com as fontes escritas, Timidamente, aqui e ali, ouviam-se vozes favoraveis a incorporagZo da multiplicidade de iconografias produzida no passado, Na realidade, no final da década de 1930, Marc Bloch ja chamara a atengdo para a necessidade de se “obser- var as imagens e compreender sua dimensao ideolégica”.* Nio obstante essa observaco, quando incorporada a pesquisa his- térica, a imagem visual ou era considerada uma fonte mais ou menos fiel 4 realidade, ou era vista como manifestagiio ideol6- gica, como sugerira Bloch. Em que pese a importincia das imagens visuais no coti- diano dos individuos, a pritica da pesquisa histérica traduz, 0 peso de sua prépria tradi¢ao. Cerca de trinta anos ap6s a colo- cago de Mare Bloch, e uma dezena de anos depois da aula inaugural de Fernand Braudel, essa situa¢do finalmente seria Hobsbawm fundamentaram os estudos sobre os mundos do trabalho, na Franca, ela alicergou os estudas sobre as culturas populares inspiradas nas reflexdes de M. Baktin que, na Itdlia, sua influéncia criow as condigdes para o suigimento da metodologia indicidria de C. Ginzburg, ‘GAULIN, Jean-Louis. A ascese do texto ou osetorne as fontes, In: BOUTIER, Jean e JULIA, Dominique. (orgs.). Passadas recomposies ~ campos ¢ canteires da His- toria, Rio de Janeiro: UFRIUGY, 1998, p, 173-182. * SCHMITT, Jean-Claude. El historiador y las imagenes, Relaciones. Mexico: Michoacan, 1999, v. XX, p. 22 Cougho "HsTonia &... Reus” alterada. As imagens visuais seriam um dos mais importantes veiculos de divulgacdo de uma série de acontecimentos que, a um s6 tempo, sustentaria a bipolarizagao do mundo e comecaria acolocé-la em questo. Lembremo-nos, por exemplo, de como as imagens fotogrdficas e televisivas contribufram para veicular e defender tanto os interesses politico-ideolégicos do bloco ca- pitalista, quanto os do socialista. Previamente selecionadas, elas justificariam a onda golpista que marcou as décadas de 1960 e 1970 na América Latina, assim como a expansao das ditaduras de esquerda no leste europeu e na Asia, silenciando sobre as didsporas, as perseguigGes e as torturas dos que ousavam resis- tir a um mundo bipolarizado. Lembremo-nos, também, das re- percussées socioculturais dos protestos contra a Guerra do Vie- tna; das ages dos grupos feministas que sairam as ruas cm defesa dos direitos das mulheres; dos desdobramentos dos protestos estudantis na Franga, China ¢ em tantas outras sociedades; dos ecos contestadores do festival de Woodstock. Desde entéo, as imagens visuais — veiculadas pela im- prensa escrita e televisiva, pelo cinema e nos outdoors espa- Thados nas vias puiblicas —invadem a intimidade e 0 cotidiano de milhares de pessoas. Seu poder de comunicagio ¢ orienta- go é tal que Susan Sontag diré que, se € possivel dizer que a fotografia restaura a relagiio mais primitiva — a identidade parcial da imagem e do objeto —0 que é certo é que os poderes da imagem s3o agora sentidos de um modo muito diferente. A nagdo primitiva da eficdcia das imagens presume que as ima- gens possuem as qualidades das coisas reais, mas ago- ra tendemos a atribuir as coisas reais as quafidades de uma imagem Os homens e mulheres que se dedicam a pensar e arefle- tr sobre os diferentes campos da dindmica social nao podem * SONTAG, Susan. Ensaios sobre a fotografia. Lisboa: Dom Quixote, 1986, p. 139-140. 78 Histéria & Fotografia desconhecer o poder das imagens. Para além de sua dimensio plastica, elas nos pdem em contato com os sistemas de signifi- cacao das sociedades, com suas formas de representagdo, com seus imagindrios. Para que os historiadores assim assimil sem as mensagens imagéticas, seus didlogos com te6ricos como E. Cassirer, E. Panofsky, Gombrich, M. Foucault, R. Williams, P. Francastel, P. Bourdieu, dentre outros, foram cnaciais. A partir de suas reflexdes, os profissionais da histéria redimen- sionam 0 félego da Historia Social e Poiftica, principal campo de estudo da ciéncia histérica até ento. Percebem que se, por um lado, 0 estudo das prdticas sociopoliticas é fundamental para a compreensao dos processos histéricos, por outro, to- mam consciéncia de que os territorios da pesquisa historica nao podem abrir mio da anilise dos sistemas de significagao e Tepresentacao social. Os processos de instituigéo, emissio, difusiic e recepgao das areas dos sentimentos, das atitudes e dos pressupostos que marcam a cultura de um determinado grupo, campo por exce- léncia do historiador da cultura, ndo constituem uma exten- s&o purae simples do universo das praticas sociais. E median- te a andlise dos processas simbélicos que se percebe como se criam os lagos de pertencimento entre os membros de uma mesma sociedade, como e porque a meméria coletiva pode unir ¢ scparar individuos de uma mesma sociedade ou grupo social, como e porque 0 imagindrio social reforga certas vi- sdes de mundo mesmo quando as condigées materiais para que elas existam jd tenham desaparecido. Esses modos de co- municagao criam campos de saber comuns; funcionam como sinais de orientaciio inclusive para as praticas sociais. * Sobre os campos de abordagem da Histéria Cultural, ver: LE GOFF, Jacques. A historia nova. 4.¢d., Sio Paulo: Martins Fontes, 1995, BURKE, Peter (org.). A escrita da histéria: novas perspectivas. Sio Paulo: UNESP, 1990, p. 7-39; HUNT, Lynn, (org). A nova histéria cultesal. Si Paulo. Martins Fontes, 1992. RIOUX. Jean-Pierre e SIRINELLI, Jean-Frongois. (ongs.}. Para una historia cultural. Méxi- co: Tauros, 1998; GOMBRICH, E. H, Para uma histiria cultural Lisboa: Trajectos, (994; WILLIAMS, Raymond. Cultura. Rio de Janeiro: Paz ¢ Terra, 992. 9 Couecho “HisrGan 8... Reriexdes” Nessa perspectiva, a andlise das manifestagdes culturais nao s6 demandaria a valorizagao de outras fontes documentais, além das escritas, como também iria requerer outros métodos de pesquisa e outros esquemas explicativos. Nas tiltimas és décadas do século XX, os didlogos entre os profissionais da hist6ria-conhecimento € os estudiosos dos fenémenos cultu- rais muito tém contribufdo para que os praticantes da ciéncia histérica possam aprender a indagar as imagens visuais, sem perder de vista as quest6es tipicamente histéricas,” Hoje nao mais se duvida da natureza polissémica da ima- gem, da variabilidade de sentidos de suas formas de producdo, emissio e recepgdo. Sabe-se que uma imagem visual é uma forma simbolica cujo significado nao existe per si, quer dizer, “14 dentro’, como coisa dada que pré-existe ao olhar, 4 inten- gdo de quem o produz”.* Vista sob essa Stica, ela deixa de ser espelho ou a duplicagaio do real, como queriam os historiado- res da historiografia metddica. Apresenta-se como uma lin- guagem que nao é nem verdadeira nem falsa. Seus discursos sinalizam légicas diferenciadas de organiza¢ao do pensamen- iais ¢ de medigio dos tempos to, de ordenagio dos espagos soc culturais. Constituem modos especificos de articular tradigao e modernidade. Por tudo isso, sabe-se que uma dada imagem é uma representagiio do mundo que varia de acordo com os c6- digos culturais de quem a produz. Ora, se 0 historiador assim a conceitua, é porque esté operando com outra concepciio de realidade social, de docu- mento, de pesquisa ¢ de conhecimento histérico, Sob essa pers- pectiva, a realidade deixa de ser, como queriam os historiadores T Ainda que esse novo paradigma histérico venha se afirmando na comunidade de praticantes da ciéncia histérica, sua adogio nao € absoluta ¢ tampouco se manifesta em uma tinica diregdo. Sobre a busca de caminhns e solugdes sempre do ponto de vista do historiador, ver: BOUTIER, Jean e DOMINIQUE, Julia (orgs.). Passudes recampostos: campos e canteiros da Histéria, Rio de Janeiro: UFRI/FGV, 1998. * NORONHA, Ronaldo. Luzes ¢ sombras. Presenga de CEC: 50 unos de cinema em Belo Horizonte. Beto Horizonte: Crisilida, 2001, p. 46. 80 Hisiéria & Fotografia da Escola Metédica, a encarnacado de uma verdade tnica e absoluta. O documenta se apresenta como fragmentos do real que nos chegam por meio das intengdes explicitas e ocultas, voluntérias ou involuntarias de seus produtores; e, 0 conheci- mento histérico torna-se uma operagio tedrico-metodolégica que visa compreender € interpretar os sentidos que os atores sociais atribuem a seus atos materiais e simbdlicos. Quando se trabalha com as imagens, sejam elas textuais, sonoras ou vi- suais, a énfase da narrativa hist6rica se desloca do fato para as versGes sobre o fato. Em muitas situagGes, essas verses po- dem produzir outros fatos. O trabalho desenvolvido nas oficinas da histéria — infor- mado, de um lado, pelos didlogos dos historiadores com os diversos analistas das imagens visuais e, de outro, pelo traque- jo dos profissionais da histéria no trato com o documento his- térico — reafirma a tese de que a intencionalidade do testemu- nho histérico, presente no documento escrito, também se manifesta nas formas iconograficas. Ao lidar com as imagens visuais, 0 historiador as encara como um documento, como uma construgao cultural, cuja confecgao e difusio t8m uma histéria que nio pode ser desconhecida pela andlise hist6ri Sabe que as formas ¢ os contetidos imagéticos podem sofrer alteracées, voluntirias ou nao. Ao analisar 0 processo de interpretagdo/tradugdo que os europeus do inicio da Idade Moderna faziam dos idolos produzidos pelas culturas nativas do México pré-colonial, cujos significados eram desconhecidos do leitor europeu, Sérge Gruzinski chama a atencdo para as alteragdes por que passam essas imagens. Descontextualizadas, elas adquiriam, na Europa, sentidos diferentes do que lhes havia sido atribuido no ato da produgiio.’ Isso significa que se uma imagem é datada em sua fabricagiio, sua recepcio pode ser completamente ” GRUZINSKL, Serge. La guerra de lus imagens —de Cristébat Colin a “Blade Runner” (1492-2019). 2. ed., México: Fondo de Cultura Econémica, 1999, p. 26 e segs. 81 Coucéo “Hisrons &.. RETuoM2Es" alicrada quando os que a consomem desconhecem 0s cédi- gos culturais a que ela se refere. Por isso, a pesquisa hist6rica nao pode dispensar a con- textualizagiio da produgdo de documento, da mesma maneira que deve estar atenta aos diferentes sentidos que lhe vio sen- do atribuidos ao longo do tempo. As indagagées: quem produ- ziu tal documento?, que lugar seu produtor ocupa na estratura social?; a quem é dirigida a mensagem de seu documento?; a Partir de que argumentos organizam seu discurso?: com que tipo de dados sustenta sua argumentagao?; 0 que parece pre- tender com esta ou aquela afirmagao?, funcionam como pon- tos de partida para a aniilise documental. ; Esse 0 método da contextualizagao, ainda que necessd- rio, limita-se a esclarecer as indagagdes relativas ao produtor da imagem e ao publico a que se destina sua imagem. Além de contextualizar a imagem, é preciso estar atento ao tipo de su- porte utilizado para veicula-la.Como bem lembra Roland Bar- thes, mesmo dentro da “comunidade de imagens”, os suportes técnicos e as linguagens das imagens fotografica, cinemato- gréfica, televisiva e virtual sao distintos. Cada um deles con- tém uma sintaxe especifica, porque cada um deles é um estilo cognitivo proprio," Assim sendo, é preciso conhecer a gramé- tica da imagem com a qual se trabalha. A imagem fotografica € fixa. E produzida a partir de um artefato fisico-quimico ¢ pressupde a existéncia de um refe- rente. E’ matéria que pode ser tocada e apalpada. Informa so- bre os cendrios, as personagens ¢ os acontecimentos de uma determinada cultura material. E dotada de uma imensa varia- bilidade plastica, materializada por seus diferentes formatos € seus muiltiplos enquadramentos. E fragmento congelado e da- tado. Como outras imagens, cla também pressupée um jogo de “ SAMAIN, Etienne. Quesides heuristicas em torno do uso das imagens nas ciéneias sociais. In: FELDMAN-BIANCO, Bela e MOREIRA LEITE, Miriam (orgs.). De- safios da bnayem — fotografia, iconografia e video nes ciéncias sexiais. Came pinas: Papirus, 1998, p. $4-56, especificaiente, B82 Historia & Fotogralia inclusdo e exclusao. B escolha e, como tal, nado apenas constitui uma representagdo do real, como também integra um sistema simbélico pautado por cédigos oriundos da cultura que os pro- duz. Difcrentemente da pintura, do desenho, da caricatura, a representacdo fotografica pressupde uma inter-relagdo entre o olho do fotégrafo, a velocidade da maquina e 0 referente. Muitas vezes, enquanto os cédigos culturais do fotégra- fo definem a composigiio dos cendrios fotogrificos, a veloci- dade da c4imera pode captar fragmentos do real nao previstos na idealizag’io das poses, porque a chapa fotossensivel captaa luz emanada do objeto fotografado, sem a intervengdo huma- na, Roland Barthes afirmou que a fotografia, nessa e apenas nessa fragiio de tempo, é uma mensagem sem cédigo."' Entre- tanto, quando a intromissao de fragmentos do real interfere no planejamento da pose, o fotégrafo sente-se livre para cortar, selecionar, fazer e refazer scu quadro. Lembremo-nos, por exemplo, dos critérios simbélicos que orientavam as monta- gens das fotografias de estidios, anal das no capitulo ante- tior, Em outras situagées, 0 que a velocidade da cimera capta serve para confirmar.hipsteses. Em 1878, por exemplo, 0 fo- {égrafo inglés radicado nos E.U.A. Eadweard Mybridge (1830- 1904) fez uma série fotografica sobre o percurso do galope de um cavalo, confirmando, assim, a crenga de que esse animal retirava suas patas do cho ducante o galope. O contraste entre os dois exemplos expostos acima nos co- loca diante das ambigiiidades ¢ dos paradoxos da linguagem foto- grafica. Em ambos os casos, suas imagens so de extrema valia para o trabalho do historiador. Muito embora a génese auto- mitica da fotografia tenha criado o mito da camera licida — 1 Muito embora ele tenha deixado claro que essa ¢ apenas umna das dimensdes di fotografia, que ocorre (3o somente no cxato momento em que a cémeraé disparada, suas palavras tém dado arigem a muitas polémicas. Sobre as colocagées de Barthes, yer, BARTHES, Roland. O dbvio ¢ o obtuse. Lisboa: Edigées 70, 1984: Sobre polémica gerada em tomo desua afirmagse, ver: FATORELLI, Antonio, Fotografia ¢ modemnidade. In: SAMAIN, Etienne (org). © fitograifiew, So Paulo: Hucitect CNPa, 1998, p. #5-97. Coureées “Historia &.. RFFLEXGES” responsiyel pela crenca na capacidade da fotografia de duplicar 0 real -, a imagem fotografica conjuga realidade e ficgio. Os planes, os focos, o jogo de sombra e luz que a compéem sao marcados pela encenagio que a inteng’io da fotégrafo cria. O produto fotografico oscila “entre aquilo que The escapa e isto que nela infiltra”’!? Ao inventariar e informar os aspectos materiais de uma cultura, a conjugagio do tripé: fotégrafo, tecnologia e referen- te faz com que a fotografia produza quadros a partir de frag- mentos do real. Entre fins do século XIX e primeiras décadas do século XX, muitos fotdgrafos se dedicaram a produgao de dlbuns de cidades. Para além da estética de cada fotégrafo, que personaliza sua obra, a montagem desses dlbuns revelava a forga de um padrao fotogréfico préprio do tempo em que eles foram produzidos. Interessado em obter lucro com a ven- da do Album, 0 fotégrafo escolhia as imagens e costurava uma narrativa urbana capaz de tornar venddvel o produto de sua criagao. Em geral, a seqiiéncia de imagens dava ver uma cida- de moderna, evoluida e quase sempre higienizada. Em posigiio de destaque encontravam-se as fachadas dos estabelecimentos comerciais ¢ bancdrios; dos hotéis que aguardavam os turistas e homens de negécios de outras pra- as comerciais; as casas, varandas e jardins particulares onde viviam as familias da elite local: as inovagoes urbanas que atestavam o dinamismo da administracio publica; o movi- mento das ruas, dos cafés, clubes e cinemas que informavam €, simultaneamente, produziam uma leitura da urbe marcada pela visdo positiva do progresso e da modernidade.? A{ como " LISSOVSKY, Mauricio. Sab o signo do “clic”: fotografia ¢ histéria em Walter Benjamin, In: FELDMAN-BIANCO, Relae LEITE, Miriam Moreira. (orgs.). De- safios da Imagens: fotugratia, iconografics € video em ciéncias saciais. Campinas; Papirus, 1998, p. 26, "" Um belo estudo sobre albuns de cidade foi desenvolvido por ARRUDA. Rogério Pereira. (org.). Album de Bello Horizonte. Edigo Fac-similar com Estudos Criti- cus. Belo Horizonte: Auténtica, 2003. Sobre outros dlbuns de fotografia produzi- dos no Brasil do século XIX. ver: VAZQUEZ, Pedro Karp. Fotigrafos Alemdes ne Brasil do sévuio XIX. So Paulo: Metalivros, 2000, 84 Historia & Fotogzatia em outros trabalhos fotograficos, a fotografia é a um 86 tem= po cristalizacdo e interrupgiio de idéias e de temporalidades.' Por isso, Susan Sontag sustenta que “a maneira como na ca- mera a realidade se apresenta € uma possibilidade dentre tan- tas outras”.* Ciente das especificidades da linguagem fotogréfica, de seus alcances, limites, particularidades e de suas similitudes com outras formas imagéticas, o historiador que escolhe usar o documento fotografico deve saber, também, que 0 olhar do fotégrafo pode ter sido motivado por intengGes distintas das que norteiam a pesquisa do historiador.'* Para que seu estndo incorpore o que estd explicito e implicito na imagem fotogra- fica sem, no entanto, sucumbir as intengdes do fotégrafo, além do método da contextualizagio da imagem, 0 eruzamento do documento visual com os textuais ¢ orais torna-se um impera- tivo para responder as questies tipicamente historicas. Essa é uma operacdo que também requer a combinagao de diferentes métodos de pesquisa. / Ao trabalhar com as litografias usadas para reproduzir as imagens fotogrdficas ¢ os desenhos dos viajantes estrangeiros no Brasil do século XTX, a antropdloga Maria Sylvia Porto Alegre propée a combinagao do método dacon- textualizagio com o da descontextualizacao. Diferentemen- te do primeiro, o segundo método permitiria enxergar as pos- siveis incoeréncias contidas nas imagens produzidas, independentemente das intengdes do fotdgrafo ou do desenhis- ta. Nesse caso, o olhar do pesquisador se deslocaria sobre as imagens com 0 objetivo de nelas encontrar indi ios e sinais que evidenciem tragos da cultura material ¢ simbdlica dos sujeitos 4 BEJAMIN, W. A doutrina das semelhancas, Textos escolhides. Sio Paulo: Abril Cultural, 1983. (Colegdo Os Pensadores). 1 SONTAG, Susan. Ensaio sobre fotografia. Lisboa: Dom Quixote, 1986, p. 30-31 2 PAULA, Ieziel de. /932: Imagent construindo a Histéria, Campinas: UNICAMP/ UNIMEP, 1998, p. 224. Cougan “Histor &., REtexes” retratados que, apesar de nao serem compreendidos pelo produ- tor das imagens, foram por eles registrados. No caso especifi- co das culturas indfgenas, um exemplo desses indicios diz res- peito as pinturas que vestem os corpos dos membros das sociedades indigenas nas datas de celebragiio dos seus rituais cosmolégicos. Para muitos pintores, desenhistas e fotégrafos estrangeiros, esses sinais passavam de meras tatuagens, eram um indicio do primitivismo da vida indigena. Jos estu- diosos da organizacio social e da cosmologia dos poves indi- genas sabem que essas inscrigdes falam sobre os aspectas biolégicos, psicoldgicose sociais dos mem- bros do grupo, além de ser um clemento-chave para a compreensao do universo€ a expressdo do pensamen- to, dos mitos ¢ da visio de mundo.'" Como se percebe, o uso combinado dos métodos de con- textualizagiio e descontextualizagio nao dispensa 0 saber do especialista acerca de seu objeto de andlise, nem tampouco 0 cruzamento de diferentes tipos de documentos. Todos esses cuidados tedrico-metodolégicos visam suprir lacunas oriun- das da nao-existéncia do documento ideal, ou seja, daquele que poderia responder a todas as indagagées do pesquisador. Por isso se diz que o trabalho do historiador se inscreve no reino das possibilidades ¢ da verossimilhanga com o real. Ao langar mio dessas estratégias de pesquisa, 0 histo- riador visa dessacralizar seu objeto de andlise, quer dizer, desnaturalizé-lo. Assim como o fotdgrafo, o historiador tam- bém seleciona, corta e retine documentos. Esta operacao, no entanto, é guiada por teorias € conceitos sem os quais seria impossivel compreender os sentidos que os atores sociais atri- buem a suas praticas ¢ ds suas representagdes. 1 Sobre exeas questies, ver: PORTO ALEGRE, Maria Sylvia, Reflexdes sobre a iconografia etnogesfica: por uma hermenéutica visual, In: FELDMAN: BIANCO. Belac LEFTE, Miriam Moreira. (orgs.}. Desafies ckt Imagem; fotografia, iconograpia @ video em ciéncias sociais. Campinas: Papitus, 1998, p. 108 86 Historia & Fotografia Cada vez mais valorizada e freqiientada por pesquisado- res ¢ analistas da cultura, a produgdo fotografica, de ontem ¢ de hoje, muitas vezes motivada por uma intrincada rede de interesses materiais e simbélicos, legou-nos uma enorme mas- sa documental. Desde meados dos anos de 1970 ela vem sen- do coletada, classificada e organizada nos arquivos piblicos ¢ privados. Esses acervos tém viabilizado o alargamento dos campos de investiga¢ao nao apenas dos profissionais da histé- ria, mas também de outros campos das ciéncias sociais. Grande parte da documentagao coletada € anénima, nao possui data ou local de produgdo. Carece, portanto, de infor- magées que podem facilitar o emprego do método da contex- tualizacio imagética. Para fazé-la falar, o historiador precisa lancar mio do saber dos que dominam a histéria das técnicas fotograficas. Seu conhecimento muito contribui para desven- dar a datagdo das imagens, & identificagao de suas possiveis filiagdes estéticas e, ainda, permite-Ihe levantar questées rela- cionadas com uso de um determinado tipo de maquina foto- grafica e a margem de liberdade do fotégrafo. Esses elemen- tos técnicos permite ao analista saber, por exemplo, se uma imagem é, ou nao, fruto de uma montagem. Sabe-se, por exem- plo, queem determinados momentos da historia da fotografia, as cameras fotograficas nao permitiam fazer tomadas em am- bientes fechados, a menos que tais imagens fossem feitas em esttidios, os quais possufam uma conjugagdo de luz natural, que entrava pelas clarabdias dos estiidios, e luz artificial. As contribuigGes desses profissionais deverao ser acrescidas das questées tedricas que orientam a produgdo dos especialistas em imagens visuais. Esses campos de saber nio eliminam a necessidade de se cruzara anélise da imagem coma documen- tagio escrita e oral contempordanea ao documento visual e tam- pouco dispensam o didlogo com a produgio historiografica referente ao objeto da andlise em questao. Nio obstante todos esses cuidados, o trabalho desen- volvido nessa ou naquela oficina da histéria — calcado em 87 Caregau “Histon &.., REFLEROLS” vestigios e fragmentos do real, em impressdes, siléncios e possibilidades ~ nao responderd a todas as indagacées formu- ladas. A natureza polissémica do real ¢ das imagens fotografi- cas sempre manterd suas porgdes enigmaticas. Por isso mes- mo, cada vez mais, ganham forga as tentativas dos historiadores de operarem com os preceitos tedrico-metodoldgicos da cha- mada histéria das possibilidades, onde se busca “fontes silen- ciosas e arredias falar com loquacidade.”"* Antes de concluirmos nossa andlise sobre a relacdo entre a hist6ria-conhecimento ¢ as imagens fotogréficas, faremos algummas consideragGes sobre os documentos fotograficos pro- duzidos pelas viagens fotogrdficas realizadas no Brasil ao lon- go do século XIX e das primeiras décadas do século XX. Viagens fotograficas Desde Homero, os relatos de viagens nos remetem ao tema da construgaéo da meméria coletiva, no qual os pares lembrar/esquecer e identidade/alteridade funcionam como janelas a orientar o olhar do viajante. A partir desses artifi- cios, analiticos ele pinga do real, conscientemente ov nao, os fragmentos que comporio a seqiiéncia de sua narrativa. Uma vez ordenadas as imagens, textuais ou visuais, assamem o papel de mensagens, cuja fungao é estabelecer um elo entre 0 viajante e seu piblico-alvo. As andlises dos relatos de viagem — decorrentes da com- binagdo de experiéncias essencialmente individuais e motiva- gao coletiva, produzidas em diferentes momentos da histéria de todos os povos - t@m-nos apontado a presenga de alguns ele- mentos recorrentes. Os viajantes tendem a narrar o visto a partir da montagem de uma seqiiéncia de acontecimentos construida '* Sobre este método, ver : ROMEIRO, Adriana, Unt visiondrio na corte de D. Jodo V—Revoltae melenarismo nas Minas Gerais. Belo Horizonte: Ed. UFMG. 2001. p. 16 . 88 Histéria & Fotografia de acordo com os valores e signos que informam seu espelho cultural. Em casos de viagens patrocinadas por casas comer- ciais, governos, instituigdes cientificas ou qualquer outro tipo de interesse, além do patriménio cultural do viajante agrega-se a observagio de fenédmenos que estejam diretamente rela- cionados com os interesses dos financiadores da viagem. Essa operagao l6gico-comparativa— ao mesmo tempo se- letiva e unificante e jamais definitiva — alimenta todo o pro- cesso de coleta, selegdo, classificagao e organizagdo do que o viajante deve privilegiar em seu relato. Em muitos casos, 0s tragos da cultura observada, que fogem ao padrao cultural do viajante, sio qualificados como exéticos ou fora de lugar. Exa- tamente porque ndo podem ser tidos a partir dos cédigos cul- turais do viajante, eles so qualificados como primitivos, bar- baros, ou algo equivalente. Em outras situagGes, 0 narrador valoriza aspectos da vida social do outro e destaca as contri- buigdes da cultura observada para o “avango” de sua propria cultura, com 0 objetivo de, posteriormente, mostrar que a SO- ciedade do narrador se apropriou desta ou daquela contribui- go para queimar etapas e ir alémdo “estagio” de civilizacdo e desenvolvimento da cultura observada. Outros, ainda, cons- troem narrativas combinadas. Quer dizer, valorizam ¢ desva- lorizam o outro em fungéio de seu imaginirio. Raros sfo os casos em que o viajante incorpora 0 imprevisivel e o assimila desde o ponto de vista da cultura observada. Essa preocupa- 30 com o outro é relativamente recente na historia dos relatos de viagem. Vejamos alguns casos concretos. Quando Herédoto valorizou os conhecimentos egipcios sobre a matemdtica, a astronomia, as técnicas de dominio & domesticagiio das aguas do rio Nilo, seu objetivo nao era ou- tro sendo valorizar a cultura helénica, que nao havia se restrin- gido a incorporar esses conhecimentos. Conforme ja montan- do sua narrativa, Herédoto mostrava que os gregos tinham ultrapassado os egipcios. Os exemplos abaixo nos oferecem a visio de outros modelos de relatos de viagem. 89 Ana Paula Squis BIBLIOTECA padiinele ee a Couegin “Histon. ” Mais que um roteiro de viagem, os mapas medievais, os chamados T — 0, produzidos nas abadias européias, represen- tavam a visio que os viajantes europeus, cristaos, tinham do ectimeno nao-cristdo. Por isso mesmo, a divis’o do mundo era estruturada em uma ldégica dual e excludente. Os lugares ocu- pados por sociedades nfio-cristiis eram designados, nos ma- pas, por signos que remetiam o peregrino a um mundo classi- ficado como herege, quer dizer. pecaminoso e profano. Antes mesmo de iniciar sua peregrinagdo 4 Terra Santa, o mapa que tinha em maos separava os tertitérios a ser percorridos em areas sagradas, afinadas com os vatores cristios, ¢ areas profanas, desprovidas de todo e qualquer valor. No decorrer da Idade Moderna, uma complexa rede de espelhos foi sendo construida a partir do espelho cristo e civi- lizador dos conquistadores europeus, interessados em conquis- tar e dominar os territrios de ultramar. O etnocentrismo e os valores cristdos dos viajantes europeus deram vida e combina- ram diferentes espelhos, utilizados para olhar o outro, ou seja, as sociedades localizadas na Africa, Asia ¢ posteriormente no Novo Mundo, Entre os séculos XIV e XVIII. imagens que compunham 0 espelho do diabo, espelho nistico, espelho selva- gem, espelho atrasado se misturavam com as do espelho do pa- rafso. Os territérios em processo de conquista eram lidos em fungao das articulages entre os espelhos que os diferentes via- jantes escolhiam para se referir As culturas ¢ & natureza dessas areas. Apoiados na combinagao de signos negativos e positivos, os estrangeiros legitimavam a superioridade do espelho corte- sdo ¢ cristo sobre os demais.'” Dessa maneira, eles reforgavam a memiéria coletiva dos grupos culturais envolvidos com aem- presa colonizadora ¢ negavam as culturas observadas o direito de seguir seus préprios caminhos culturais Ha, ainda que observar, que esses modelos paradigmati- cos de relatos de viagens permitiram outras combinagées. Como Sobre essa conjugagio de espelhos, ver: FONTANA, Josep, Eurvpia ante el espejo. Barcelona: Critica, 1994. (Coleccion La construccién de Europa). 90 a Histéria & Fotgrafia bem nos lembra Miriam Moreira Leite, 0 estrangeiro nao tem compromisso com os valores da cultura observada. Sua auto- nomia em relag4o aos mesmos transforma-o em um observa- dor capaz de enxergar aspectos do real que passam desperce- bidos Aqueles que integram as sociedades observadas. Uma outra variagao pode ser encontrada nos relatos de viagem pro- duzidos por imigrantes, Ao eleger 0 novo territéno para ser seu Aabita?", esse viajante tende a aceitar ¢ incorporar parce- las do patriménio cultural de sua nova sociedade, Ha casos de relatos de viagem em que 0 viajante usa a outra cultura como uma forma de criticar a sua propria sociedade. Essa modalida- de normalmente acontece quando o viajante é um individuo que vive em situag4o de perigo, de risco politico-ideolégico, por exemplo, em sua cultura de origem, Nesses casos, as via- gens passam a ser fator de critica social direcionada nao as sociedades observadas, mas as do viajante. Antes de passarmos aos relatos fotograficos propriamen- te ditos, que também seguem padrées semelhantes a esses, € preciso lembrar que qualquer pesquisador com pritica de in- vestigagao empirica, por pequena que seja, sabe que as narra- tivas de viagem so sempre hibridas, tanto do ponto de vista dos signos utilizados — combinam texto e imagem —, quanto da significagdo a eles atribufda. Quer dizer, mesclam fragdes de diferentes espelhos para transmitir suas mensagens. Isso sig- nifica que dificilmente se depara com um relato de viagem que se encaixe em apenas um dos modelos acima apresenta- dos. Esses cendrios analiticos funcionam como pardmetros para a andlise documental. Sem o seu conhecimento, o pesquisador corre 0 risco de nao saber indagar as suas fontes. Desde 0 surgimento da fotografia, 0 fotégrafo € um indivi- duo que transita por diferentes territ6rios geogréficos. Faz de suas cimeras verdadeiros postos de observagio das culturas > Sobre estas quest0es, ver: MOREIRA LEITE, Miriam Lifchitz. Livros de Vagem. 1830-1909. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997. oy Cougaa “Histon Bo. REREAoES” alheias e da sua propria. A partir de seus cddigos culturais ele poe as lentes de suas mdquinas a registrar as paisagens e as interfer€ncias do homem na vida social e natural. Quando dis- para sua camera, o fotégrafo cria e produz mundos. Torna-se um viajante que oferece a seu leitor imagens visuais cujo poder de persuasao pode ser muito superior e mais eficiente do que o que emerge do relato escrito. Enquanto o relato textual produz, no leitor, uma viséo de conjunto apenas quando a leitura do texto se encerra, diante do texto visual, o expectador apreende, de uma s6 vez, a Mensagem que se quer transmitir. Isso, se a conformagio dos signos imagéticos mantiver uma “fidelidade” aos cédigos culturais do expectador. Ao analisar os diferentes relatos fotograficos construfdos sobre uma determinada reali- dade, o historiador deverd levar em conta as variagées paradig- miiticas que compdéem os relatos de viagem, desde Homero. Ora, a génese automatica da fotografia mantém, ainda hoje, a crenga entre muitos de que as lentes fotograficas permitem conhecer 0 mundo “como ele é”. Parceiro e ctimplice dos rela- tos textuais produzidos durante as viagens de dirigentes politi- cos e, sobretudo, dos membros das expedigées cientfficas € co- merciais, a imagem fotografica funciona, na realidade, como um espeiho cultural, que tanto informa quanto constréi inter- pretagSes sobre os objetos e sujeitos fotografados. Dentre a multiplicidade de usos e fungGes a ela atribuida, hé que se res- saltar seu poder de celebrar e difundir a meméria coletiva de grupos sociais e sua capacidade de definir perfis socioculturais. A Missdo Heliogrdfica Francesa e ou.ras viagens A criagdo da Grande Enciclopédia de 1751, registro de “ama meméria alfabética parcelar na qual cada engrenagem isolada contém uma parte animada da meméria total”, sela, » LE GOFF, Jacques. Meméria. Enciclopédia Einaudi. Enciclopédia Einaudi, Porto: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1884, p. 36. 92 Historia & Fotografia de acordo com Le Goff, o momento dureo da preocupagao mo- derna com a preservacdo da meméria, Menos de um século de- pois, as sociedades ocidentais investem na criagao de bibliote- cas, arquivos e museus, lugares privilegiados da celebragdo da memoria coletiva. Criam calendirios para relembrar fatos ¢ acontecimentos que marcaram a vida de suas nagées. Por de- tris dessa inflacdo de comemorag6es encontra-se, de um lado, ‘co medo do homem moderno da perda de seus elos histéricos com 0 passado, que a velocidade das transformagdes sociais parecia ameagar. E, de outro, a necessidade de perenizar, de projetar, no futuro, sua existéncia. Nao por acaso, em 1837 criava-se, na Franga, a Comissdo dos Monumenios Histdricos. Estimulado por seus membros e pelos fotégrafos da recém-criada Société Heliographique, 0 governo francés decidira inventariar seus monumentos histd- ricos. Com esse objetive criou, em 1851, a chamada Missao Heliogrdfica Francesa. Imediatamente, as regides da nagao francesa comegaram a ser mapeadas, dividas e entregues aos mais renomados fotégrafos da Franga ¢ de outros paises da Europa ¢ dos Estados Unides da América. Iniciavam-se, as- sim, as chamadas viagens heliograficas. O nome dado a esse empreendimento, Missdo Heliogrdfica, é uma alusdo direta ao helidgrafo de Niépce.” A partir de seus postos de observagao os fot6grafos de- ram inicio ao inventario da situagio em que se encontrava o patriménio arquiteténico do pais, condigao sine qua non para sua posterior restauragao. Palacios, castelos, igrejas e pon- tes, monumentos aos herdis nacionais, enfim, o conjunto ar- quiteténico historicamente yinculado aos calendarios civil, militar e religioso do passado francés tornava-se objetos do olhar fotografico. Como uma enciclopédia que, com seus ver- betes, vai sugerindo indices para conhecer € interpretar as Vor as informagies sobre o invento de Niépce na parte sobre cronologia 93 ee Cougan “Histinta &,., RELEOE” ages sociais, essas imagens fotograficas informavam sobre 0 estado desses vestigios da cultura material francesa; funcionavam como pré-requisito para sua transformagao em lugar da meméria coletiva. A medida que os prédios eram restaurados, tornavam-se espagos da celebragio do patri- m6nio cultural dos franceses. Funcionavam como medido- res do tempo de gléria do passado longinquo ou recente dos membros dessa nacio. Ao mesmo tempo, esses testemunhos da cultura mate- rial francesa cram representados nos cartées-postais. Os tu- ristas que os adquiriam no apenas alimentavam o sentimen- to de participar da continuidade do passado no presente, como também usavam os correios para ajudar a difundir esses lu- gares de mem6ria, para usarmos uma expresso cara a Pierre Nora.?? Em 1853, foi publicado o dlbum Le Monument de Pa- ris, muito provavelmente oriundo da acdo dos fotégrafos da Société Heliographique. Simultaneamente a essas viagens fotograficas pelo inte- rior da Franga, as autoridades francesas, italianas, inglesas € alemis enviavam seus fotégrafos para a Grécia, o Egito, a Pér- sia, a China e tantos outros territérios das civilizagdes da An- tiguidade. Os chamados técnicos da cémera hicida tinham como missao fotografar as escavagGes arqueoldgicas patrocinadas por governos europeus. Esse misto de curiosidade e interesse pelo Oriente nao se restringia apenas aos arquedlogos, estu- diosos das culturas e fotégrafos. Englobava também os escri- tores, romancistas e poetas, muito deles financiados pelas au- toridades de seus paises. Entre 1848 e 1852, o escritor Gustave Flaubert e 0 foté- grafo Méxime Du Camp (1822-1894) fizeram uma viagem ao Egito. Em 1860, foi a vez do renomado fotdégrafo francés, ee essa questo, ver: NORA, Pierre (org. ) Les fiewx de mémoire. Paris: Gallimard, o4 Hist6ria & Fotografia Gustave Le Gray (1820-1882) embarcar como seu amigo o escritor Alexandre Dumas para uma viagem em tomo do Me- diterranco. Depois de um desentendimento entre ambos, Le Gray seguiu para o Libano e a Siria. Meses depois de uma parada em Alexandria, chega ao Cairo em 1864.4 Certos da superioridade da cultura européia oitocentista, 0s fotégrafos faziam da arte fotografica uma espécie de indice para o retomo As rafzes de sua propria histéria. Uma ponte para movimentar o didlogo entre os tempos passado, presente e futuro. Ao lado dos vestigios da cultura material das dreas dominadas pelo Império Romano, ou que com ele mantiveram relagées, entdo expostos nos museus europeus, as imagens fo- togrdficas também contribuiam para a construgao e celebra- ¢io da meméria nacional dos diferentes paises europeus. Acssa altura, 0 fotégrafo alemao, radicado em Paris, Fré- deric von Marerns (1809-1875) j4 desenvolvera uma camera fotogrdfica que permitia produzir vistas de 12 por 40cm, com Angulo de visio superior a 150 graus. Esse avango técnico per- mitiria a composigo de fotografias de paisagem, muito em- bora o ato de fotografar ao ar livre e em lugares distantes ain- da fosse uma operagao dificil. Com os pequenos verbetes de uma enciclopédia, as fotografias das ruinas gregas, dos monu- mentos persas, das piramides egipcias, doexotismo de sua gente e de suas paisagens urbanas contagiavam o puiblico que, em 1867, pode conhecer as imagens da viagem de Le Gray, ex- postas nos salées da Exposi¢do Universal de Paris. Em 1852, a Imprimerie Photographique, do fotdgrato ¢ editor de Albuns fotogrdficos, Louis Désiré Blanquart-Evrard (1802-1872), pu- blicou o élbum de Du Camp, Egypte, Nubie, Palestine e Syrie, > £ impotante ressaltar que, cm muitos casos, os conflitos entre fotdgrafos e escrilo- res eram smotivados par uma discordancia entre @ que se vin © o que se registrava a partir do texto visual ¢ do texto escrito, Este aspecto nos remete & polissemia do real, percebida de distinias maneias por fol6grafos ¢ escrilores, mesmo quando se trata de individues educados em um wnesmo ambiente sécio-cultural ¢ que parti- Tham de uma mesina reserva de conhecimentos. 95 NN | Cough *Histénin Si... REFLEXCES” primeiro livro ilustrado de fotografias originais.25 A circula- g4o dessas imagens, transcritas em litografias, foi tal que ain- da hoje os livros especializados na hist6ria da fotografia tra- zem intimeras reprodugGes das imagens ento produzidas. Além de preciosos documentos histéricos, elas constituem objeto do interesse dos estudiosos da fotografia. No exato momento em que essas viagens se multiplica- vam, bem antes da idade de ouro do cartéo-postal, em 1861, mais precisamente, o caricaturista francés, Henry de Mon- tault visualiza o poder de circulagdo de idéias contidas na fotografia. Para comemorar o sucesso da viagem de Le Gray ao Oriente, Montault, fez uma caricatura, anos mais tarde trans- formada em cartao-postal pelo proprio Le Gray. Figura [3 Nessa caricatura, tem-se uma metéfora bem-humorada de algumas das caracter{sticas que definiam, naquele momento, a * Sobre outros ilbuns de viagem de Du Camp, ver: D! vi . ICTION. Larousse, 1996, p. 195-196. ° Auge de Poe Pats: Histéria & Fotografia relag&o entre fotégrafo, fotografia e viagem, a saber, seu po- der de conquistar 0 mundo, seu aito potencial de deslocamen- to espacial e, sobretudo, o papel de difusor de informagio con- centrado nas maos do fotégrafo. Se olharmos com cuidado a imagem anteriormente re- produzida, veremos que a partir da articulagio entre texto & imagem, o caricaturista coloca 0 fotégrafo ao lado de trés gran- des conquistadores do Egito: Alexandre, o Grande, César & Napoledo. Como o tema principal da imagem é a importancia da fotografia, o autor da iconografia afirma que, comparado aos demais conquistadores, o fotdgrafo Le Gray — af represen- tando uma categoria profissional — fora o tinico a “marear sua conquista, gracas 4 técnica do colédio”, Segundo o texto ins- crito no cartéo-postal, a dimensdo histérica da conquista dos demais generais (Alexandre, César e Napoledo), “se perdera com amorte dos soldados de seus respectivos batalhdes”.Com a circulagio da imagem fotografica, Le Gray preservaria para sempre a meméria da reconquista do Egito. Ao colocar o fotégrafo assentado sobre a cAmera escura, o caricaturista, conscientemente ou nao, atribui 4 maquina uma identidade quase que absolutamente aut6noma. Observe-se que seu deslocamento no espaco é associado a algo natural, j4 que produzido pelo movimento das asas de um pissaro. Ao foté- grafo apenas cabe colocar o “olho” da camera, ou seja, de suas lentes, na posigdo correta. Feito isso, a maquina se encarrega, por si sd, de registrar o que a paténcia de sua objetiva é capaz de apreender. Se continuarmos a observar o que mais pode ser extraido desse didlogo entre texto e imagem, veremos que 0 caricatu- rista lanca mao de um dos principais ingredientes da comuni- cago figurativa: a metdfora. Ao se referir ao Egito como 0 pais das cebolas (pays de oignons), Montaulf tem em mente, em primeiro lugar, atingir 0 ptiblico francés e, em segundo, fazé-lo rir. Nao podemos nos esquecer de que a culindria tem 97 Coregho “Histon 8... Rercexors” um papel importantissimo na vida dos franceses. Portanto, a associagdo entre Egito e cebolas parece perfeita. Ao colocar, no plano inferior da imagem, a silhueta de duas piramides e trés palmeiras, o caricaturista atribui a sua caricatura uma di- mensdo mais cosmopolita. Afinal, esses signos so universal- mente reconhecidos, pelo senso comum, como simbolos da representagao do Egito. A silhueta de um navio rumando para terra firme, para o Egito, pode estar nos remetendo, simulta- neamente, a dois significados. De um, lado, o caricaturista usa esse recurso imagético para se referir ao meio de trans- porte utilizado na época para a comunicagdo entre Europa e a costa norte da Africa. De outro, Montaulf esta ressaltando a superioridade da velocidade de comunicagéo da maquina fotogrdfica em relagio ao transporte maritimo, pois enquanto o navio ainda se dirige para o Egito, o invento de Niépce e Daguerre, entao aprimorado, j4 est4 noticiando o visto. Suas imagens voam pelo espago. Mediante esse jogo entre o visfvel € o invisivel, o carica- turista parece nfo sé associar fotografia e modernidade (leia- se velocidade, inovacao tecnolégica, comunicagaio), como tam- bém estabelecer um didlogo entre duas modalidades de imagem — texto escrito e visual —, cada uma delas dotada de sintaxe propria. Jé os sinais de um didlogo entre tradigio e modemi- dade podem ser percebidos tanto na conjugacio entre pirami- des e camara escura quanto na linguagem textual, quando jo- cosamente, o caricaturista atribui a Le Gray — protétipo do homem moderno — um papel mais importante do que o dos conquistadores Alexandre, o Grande, e César. A referéncia a Napoledo significa, muito provavelmente, uma forma de con- tar o tempo, de mostrar a continuidade da presenga francesa no Oriente, af representado pelo Egito. Embora escape aos objetivos de nosso estudo, gostaria- mos de destacar outro desdobramento das viagens fotograficas do século XIX. Referimo-nos, especificamente, a relacao entre 98 Hisiéria & Fotografia fotografia e literatura. Como dito anteriormente, as viagens fotograficas ao Oriente eram, quase sempre, feitas em compa- nhia de algum escritor. Enquanto os escritores langavam mao da linguagem escrita para construir uma fisionomia, uma car- tografia, das culturas visitadas, os fotégrafos produziam ima- gens visuais soliddrias. complementares aos textos dos poetas e romancistas. Esses didlogos entre literatura ¢ fotografia fo- ram tendo desdobramentos ao longo do tempo. Ja na primeira década do século XX, o escritor Marcel Proust, influenciado pelas teorias da meméria de Bérgson, langa mio da fotografia para estimular suas lembrangas do passado. Segundo cle, a vida é vivida por meio da memiria, é ela que funde a expe- riéncia do passado latente, que a fotografia ajuda a vir a tona, como presente. Hoje, alguns estudiosos usam a fotografia para estimular a mem6ria do sujeito/objeto de suas pesquisas. Esse € 0 caso dos estudos de Olga von Simpson, que conjugam do- cumento oral e fotografia para estimular a memsria de entre- vistados sobre o Carnaval em Sio Paulo. Retornemos as questdes das viagens fotogrdficas de Le Gray e de outros fotégrafos europeus dos anos oitocentos. Para além do papel que clas desempenharam na construgdo da me- mériae da identidade cultural européia, as viagens fotograficas também serviram para estimular a curiosidade das familias abastadas, de governantes e de comerciantes. Ir ao Oriente tor- na-se, naquele momento, um diferencial social. Nao por aca- so, em 1871, 0 imperador D. Pedro IT incluiu o Oriente no roteiro de sua longa tumé ao exterior. Suas fotografias no Egi- to, hoje sob a guarda da Biblioteca Nacional, so uma evidén- cia do poder de propaganda da fotografia. Considerado por muitos como o primeiro fotégrafo bra- sileiro, D. Pedro I nfo escondeu seu fascinio pela fotografia. Além de fotdgrafo, ele deu o titulo de “Photographo da Casa Imperial a 23 profissionais - 17 no Brasil e seis no exterior, além de Marc Ferrez que recebeu o titulo de Photographo da 99 Coteraa “Histo &,. REFLEXOES” Marinha Imperial”.*6 © imperador tinha plena consciéncia de que a fotografia é uma das mais fortes expressdes do que o historiador Le Goff conceituou como documento/monumen- to. Grande parte dos estudos sobre a fotografia no Brasi] oito- centista se refere as centenas de fotografias — hoje distribuidas entre os acervos da prépria Biblioteca Nacional. do Museu Imperial e do Museu Histérico Nacional — que D. Pedro doou para a Biblioteca Nacional antes de seguir para 0 exilio. O Brasil e o imagindrio dos fotégrafos viajantes Gragas as pesquisas de diversos estudiosos da fotografia no Brasil, sabe-se hoje que cerca de vinte fotégrafos alemies aqui estiveram juntamente com mais de duas dezenas de outros fotd- gtafos franceses, suigos, espanhdis, portugueses, austriacos, in- gleses e italianos. Ao lado desses, diversos fot6grafos brasileiras contribufram para compor 0 conjunte dos relatos fotograficos sobre 0 Brasil do século XIX e das primeiras décadas do século XX. Assim como os relatos fotografices sobre o Oriente, os que foram produzidos sobre o Brasil colocam-no diante de dois tipos de viagem: a de deslocamento no espaco geognrifico e a imaginaria. Nas trés liltimas décadas, parte dessa produgdo fotografi- ca vem sendo pesquisada e transformada em bons trabalhos hoje veiculados em livros e/ou periddicos académicos. Mais que anatisar a obra deste ou daquele fotégrafo, nossa intengito é estimular novas pesquisas sobre temas e subiemas, a partir das imagens deixadas por estes e outros fotégrafos ainda nao estudados. Para isso, apoiamo-nos em alguns estudos sobre parte da produgiio fotografica da época. Durante o Império de D. Pedro II, muitos fotégrafos acompanharam as expedigGes cientificas estrangeiras que aqui ** HISTORIA da fotografia no Brasil: panorama gerai e referéncias bdsicas. 3.ed., Sao Paulo: Instituto Moreira Salles, 2002, p. 5. 100 Histéria & Fotografia estiveram para pesquisar a flora, a fauna € as riquezas mine- rais brasileiras. Quando nao integravam as comitivas cieatifi- cas, os daguerrestipos eram manuseados pelos proprios pes- quisadores. Assim como as viagens fotograficas ao Oriente, os relatos fotograficos ¢ textuais de estrangeiros sobre o Bra- sil também contribufram para reforgar imagindrios, sustenta- dos pelos europeus, sobre a vida ¢ a natureza na recém-criada nagao brasileira. Pode-se dizer que quando se referiam a fauna e 8 flora brasileiras, os membros das expedig6es cientificas tendiam a se orientar pelas imagens que sustentavam 0 espe- Tho do paraiso. A vida social, nas vilas, cidades, nos sertées c nas selvas era, quase sempre, orientada pelos cddigos cultu- rais que alicergavam o espelho nistico, selvagem ¢ atrasado. Vista como uma nagdo “que por assim dizer, nao tem passado” ~ para usar uma expresso do médico e cientista Johann Ema- nuel Pohl em Viagem ao interior do Brasil {1817-1821} -,a pujanga de sua natureza alimentou a projegao de futuro gran- dioso, Essa visio foi partifhada por muitos fotégrafos estran- geiros e brasileiros. Para se ter uma idéia do que significava fazer tomadas fotograficas nessas expedigdes, € importante levar em conta as condigdes em que eram realizadas as viagens. Pensemos no calor do sol; nas chuvas torrenciais prép-ias de certas estagdes do ano; no tamanho das cargas a serem (ransportadas; em seu transporte feito em lombo de burros ¢ nos ombros dos guias € na precariedade dos caminhos. Agresuemos a esses desafios as condigées necessdrias para a produgao das imagens foto- prdficas naquelas primeiras décadas de sua existéncia. Segundo ohistoriador Jean Ciaude Gautrand, a bagagem de viagem de um fot6grafo chegava, em 1849, a pesar cerca de 1.100 quilos. Seus estudos mostram que Depois do surgimento do processo timido nos anos de 1850, as coisas se tornaram ainda mais dificeis. As chapas de colédia deviam ser expostas enquanto esta- var umidas — sendo, portanto, preparadas in situ — © 101 Conecho “Histon &... REFLEXOES” reveladas imediatamente depois de a exposigio ter sido feita. Isso significava que os fotdgrafos viajantes eram obrigadas a transportar um laboratério completo. E, além do préprio laboratério com todos os seus acessérios, ha- via uma tenda dobrivel que, uma vez montada, assegura- va. total escuriddo para que o folégrafo pudesse proces- sar as placas. Eles também transportavam uma caixa de madeira que servia como mesa. Esta continha uma dazia ‘ou mais de frascos de produtos quimicos, um suprimento de chapas limpas, bacias ¢ vidros, égua destilada, supor- tes para as chapas, um tripé e, naturalmente, a propria cAmera que chegava a pesar dezenas de quilos.” Para nés historiadores, conhecer as condig6es de produ- gio de um documento é tao importante quanto saber sobre 6 modo como ele circula e é absorvido pelos diferentes grupos sociais. A citagfo acima, sobre as viagens dos fotégrafos fran- ceses ao Oriente, muito provavelmente se aplica ds imagens de indios feitas tanto pelo fotégrafo Albert Frisch, em 1865 no Amazonas, quanto pelo foidgrafo berlinense Paul Ehrenreich (1855-1914), durante uma expedico, entre 1887/89, em dife- rentes provincias brasileiras. O périplo que os vulcandlogos Alphons Stubel (1835-?)e Wilelm Reiss (1838-7) fizeram por diversas partes do territério brasileiro, entre 1868 ¢ 1876, além de suas viagens pela Colémbia, Equador, Chile, Bolivia, Peru eos Estados Unidos da América também parece se encaixar no exemplo citado.* * Citado por VAZQUEZ, Pedro Karp. Fotdgrafas Alemdes no Brasil do século XIX. ‘Sao Paulo: Metativros, 2000, p. 23-24. A imagem da capa do liveo € uma transcri- do em litografia de uma fotografia extratda do livro Merveilies de la phutographie. publicada por Boris Kossey em Origens e expansio da fotografia no Brasit: séeulo XIX, Ela retrata un acampamento fologrifice durante uma viagem de exploragio no Novo Mundo. > Cabe aqui esclarecer que os estudiosos brasileires, por nés pesquisados, desconhe- com as datas de nascimento ¢ morte de alguns dos foldgrafos aqui mencionados. Nossas buscas por essas informagies em dicionirios fotogrsficos também foram infrutiferas. As indicagées sobre a nacionalidade de alguns foisgrafos também cons- tituem problemas. HA que se observar que alguns deles sio identificados como 102 Histona & Fotografia Além dos complicadores préprios da técnica utilizada pelo fotégrafo, Pedro Vazques ainda chama a atencao para outras varidveis a interferir no trabalho do fotégrafo. Segundo esse pesquisador, se comparado & Europa, no Brasil 0 uso do col6- dio imido era ainda mais complicado porque “a luz € menos 2 suave e uniforme e o clima mais quente”- Se 0 imaginério estrangeiro sobre o Brasil contribuia para estabelecer o que fotografar, as condigdes de produgao das ima- gens acabavam por definir 0 como fotografar. Combinados, es- ses elementos da construgdo imagética criavam um padrio foto- gréfice. Propunham uma estética do olhar, plena metdforas e mensagens culturais que, na realidade, tenderiam a uniformizar nao apenas o modo de ver o mundo, mas também 0 seu consu- mo nas diferentes regides por onde transitavam os viajantes eu- ropeus. Nessa medida, pode-se dizer quea fotografia de viagem era ao mesmo tempo um dos produtos do mundo que vai se globalizando, como também um produtor de parametro univer- sal a influir na proposicio de politicas publicas, na interferéncia nas formas urbanas, na padronizagao do consumo de certas mer- cadorias ¢ no modo de interpretar as relagées sociais. O etnocentrismo de muitos fotégrafos nao lhes permitia incluir em suas imagens o que Luis Humberto chama de o “im- previsto em fotografia”. Ou seja, a aceitagao da entrada, na fotografia, de algo ndo previsto em sua tomada, do intruso que se imiscui “indelevelmente no negativo”.™" Em alguns casos especificos a rejeicdo a esse intruso pode significar a negagiio ‘alemies, antes que a Alemarha existisse como pais. A ulilizagao destas denomina- ges impréprias se deve ora ao fato de desconhecer sua cidade de origem, ora 20 foto de o abrasileiramento de seus nomes ter sido assumido pelos mesmos. Todas estas incorregbes sinalizam as dificuldades que permeiam 0 atual est&gio em que se encontram muitas das pesquisas sobre os fotégrafos estrangeitos no Brasil. VAZQUEZ, Pedro Karp. Fatvigrajos Alemdes nu Brasil do sécuto XIX. Sio Paulo: Metaliveos, 2000, p. 26. 3 LUIS HUMBERTO. Fotografia. a podtica do banal, Brasilia: Imprensa Oficial’ UNB, 2000, p. $0. Cogan “Histoan &.. Reriexces” da alteridade, a recusa em aceitar as diferencas que permeiam uma cultura diferente da do produtor da imagem. A preocupagao em climinar o imprevisto encontra no re- trato individual um campo fértil. Grande parte dos fotégrafos que sc puscram a fotografar indios ¢ negros, portanto mem- bros de grupos sociais nao integrantes da cultura aristocratico- burguesa, criou representagGes estereotipadas desses represen- tantes das etnias e culturas marginalizadas no pais. Figura i4 De acordo com a anilise do estudioso Pedro Vazquez, essa fotografia foi feitana AmazG6nia durante a viagem do fo- (égrafo Albert Frisch, natural de Hamburgo, em tomo do ano de 1865. Juntamente com outras imagens da regidio amazéni- ca, esse exemplar foi exposto na Exposi¢do Universal de Paris em 1867, e vendida, no Rio de Janeiro, pela Casa Leuzinger. Para produzir uma visio paradisfaca (espetho do paraiso) da 104, Historia & Fotograiia regido, Frisch fazia uma espécie de montagem fotografica, En- quanto os indigenas eram fotografados, em separado, diante de um fundo negro, as paisagens eram feitas em outras tomadas. Na hora de montar a fotografia ele reunia as imagens, dispon- do em segundo plano a paisagem natural e, no primeiro, os indfgenas.* Com esse recurso técnico, o fotégrafo materiali- zava o imagindrio europeu sobre a vida das populagoes ditas selvagens ¢ primitivas que habitavam nas terras abaixo da li- nha do Equador. A combinacio entre espelho nistico/selvagem € espelho paradisiaco, que deu origem ao imagin4rio europen, aplicada, durante a Idade Média, as regides do litoral do oceano {ndico, foi posteriormente transplantada para as Aguas e terras do Atlin- tico e do Pacifico pela cartografia contemporanea das grandes navegagoes. Na segunda metade do século XIX, 0 pretenso realismo da fotografia ainda transmitia fragmentos dessas fan- tasias sobre o Nove Mundo. No imaginario dos anos oitocen- tos, essa heranga cultural 4s vezes se mesclava com alguns signos da visio romantica sobre os indios, presente nao ape- nas entre os europeus, desde o Iluminismo, mas também nar- rada no romance O Guarani, de José de Alencar, e posterior- mente cantada na épera de Carlos Gomes. Na pose que Frisch construiu dos dois indios Umaua, salta a vista sua intengiio de ressaltar a nobreza dos guerrei- ros. Cabe aqui observar que as montagens fotograficas do século XIX, como essa de Frisch, objetivavam produzir uma imagem do real como algo natural € verdadeiro. Os estrangei- ros em viagem pelo Brasi! constitufam o ptiblico-alvo do con- sumo de fotografias como essa. Interessava-lhes levar a seus paises de origem uma “prova” da vida nas selvas brasileiras. Essas imagens podiam ser adquiridas em diversos esttidios fotogréficos das capitais brasileiras. E importante ressaltar © VAZQUEZ, Pedro Karp. Fotdgrafos Alemdes no Brasil do sécula XIX. So Paulo: Metalivros, 2000, p. 81 105 Course “Histon &... Rertexces" que essas “montagens” fotogréficas nao podem ser compara- das 4s montagens fotograficas do movimento surrealista das décadas de 20 e 30 do século XX, eriadas com a finalidade de dar a ver um real multifacetado e polissémico, cujas fronteiras entre sonho e realidade so mais fluidas do que pretendia o realismo da arte perspectiva. No caso especffico da fotografia no século XIX, os em- pecilhos para fotografar em dreas distantes e de dificil acesso contribuiram para que a fotografia privilegiasse as cenas da vida urbana. Os naturalistas, interessados na observacio da natureza e na colcta de material para suas pesquisas, busca- vam outros meios para suprir as dificuldades do registro foto- grafico de suas viagens. Texto escrito e desenhos substitufam, na maioria das vezes, a auséncia da camera fotografica. Tanto € que ao fazer o inventdrio das perdas de sua expedigao ao interior do Brasil, o diplomata e naturalista, Francis Castelnau, lamenta a ocorréncia de “um terrfvel acidente” com “explosiio dos vidros que continham bromo e iodo”, provavelmente des- tinados & produgao de imagens fotogréficas a partir de um da- guerreétipo também danificado durante a viagem. Sua conclu- sio, no entanto, deixa entrever o que realmente importava para sua viagem. Conforme palavras suas, felizmente, as perdas “tinham sc limitado a objetos de tio pouco valor”. As cidades — espagos por exceléncia da mudanga social, da absor¢iio das inovagées tecnoldégicas, do comércio de mer- cadorias e das trocas simbélicas, enfim, termémetro dos no- vos tempos — se constitufram no territério por onde mais tran- sitou a maioria dos fotégrafos estrangciros e nacionais. Muitos deles af montaram seus estidios fotograficos e os transformaram em pequenas fabricas de reprodugéo do padrio universal do retrato fotografico comercial. Esse foi o caso da Photographia Alema, do fotégrafo Alberto Henschel, * Citado por MOREIRA LEITE, Miriam. Livros de Viagem, 1830-1900. Rio de Ja- neiro: UFR, 1997, p. 182-83. Histéria & Fotografia que conforme mostramos no capitulo anterior tinha uma ma- triz no Rio de Janeiro e filiais em Salvador, Recife e mais tar- de em Belo Horizonte. Em Sao Paulo, seu estidio, inaugurado em 1882, chamou-se Photografia Imperial. Além desses estabelecimentos, parece que ele e seus sdcios estabeleciam parcetias com outros fotégrafos, um sistema similar as atuais franquias, os quais percorriam cidades do interior do pafs. Em geral, os hotéis eram o local mais utilizado para ser, por algum tempo, © esttidio desses fotdégrafos.* Outros, além de retratistas, eram temporaviamente contra- tados por empresas para documentar seus empreendimentos. Guilherme Gaensly, considerado por Pedro Vazquez 0 maior fotégrafo do final do século XIX, foi contratado pela Light para fotografar as instalagdes dos trilhos dos bondes em Sao Paulo no inicio da década de 1880. Anos antes, cle dominara a foto- grafia em Salvador. Também o inglés Ben R. Mulock documen- tou os trabalhos da construgdo da estrada de ferro Bahia and S. Francisco Railway. O processo de instalagao da rede ferrovid- ia brasileira foi quase todo documentado por fotégrafos. Além de Mulock, ostrabalhos de August Stahl, G. Gaensly, Augusto Amorethy e do fotégrafo brasileiro Marc Ferrez (1843-1923) também registram imagens das atividades de implantacdo dos trilhos, das maquinas, dos vagées, das estages ferrovidrias. A identificago entre ferrovia e superagiio do atraso nacional faz com que tais imagens, patrocinadas por empresas particulares e pelo capital piblico, produzam uma visdo estereotipada da realidade. Sua finalidade era dar a ver o avango da modernidade no Brasil. Por isso mesmo, a seqiiéncia das imagens animava uma narrativa imagindria do progresso do pais. O fato dos trabalhos serem financiados limitava a mar- gem de independéncia dos fotégrafos no que se refere ao tema » Para maiores detalhes das imagens deste ¢ de outros fotdgrafos do perfodo, ver os dois estudos de: VAZQUEZ, Pedro Karp. Fatégrafos Alemdes no Brasil da sécule XIX. Sto Paulo: Metalivros, 2000; A fotografia no Impéria, Rio de Janeiro: Zahar, 2002. (Colegio Descobrindo o Brasil), 107 Cove ko “Hons &... REFLROES” das fotografias, no entanto, niio thes subtrafa seu valor artistico. Durante 11 anos, o fotégrafo Revert Henrique Kiumb esteve a servi¢o do governo brasileiro para fotografar a estrada Unido e Indtstria, que liga Juiz de Fora a Petrépolis. O trabalho efe- tivamente iniciado em 1863 ¢ conclufdo em 1872 resultou no livro Doze horas de diligéncia. Suas imagens foram transcri- tas em litografia ¢ entéo reproduzidas e revendidas em Albuns ou separadamente. Um dos casos mais interessantes de fotografia patrocina- da 6, a nosso ver, o do fotégrafo alagoano Augusto César Mal- tade Campos (1864-1957). Em 1903, esse imigrante nordesti- no, radicado no Rio de Janeiro, foi contratado pela Prefeitura dessa cidade para documentar a reforma urbana ocorrida na gestao do prefeito Pereira Passos. Cria-se af o cargo de foto- grafo do poder piiblico. Seu dia a dia era destinado a fotogra- far as viclas e casas que seriam demolidas, as ruas que seriam alargadas, transformadas em avenidas, os morros que seriam retirados ou perfurados para dar lugar a tineis. Suas imagens ajudavam a convencer empreiteiros e outros financiadores da reforma urbana jé projetada, da necessidade da reurbanizagio da capital da Republica. Além desse trabalho, Malta também deixou uma massa documental sobre o cotidiano da cidade que cobre no apenas os eventos oficiais da prefeitura, como também os calendarios das festas populares, como carnaval, por exemplo, Segundo alguns estidios, seu trabalho € considerado pioneiro na area de reportagem ilustra- da. Intuitivamente, Malta foi o primeiro fotégrafo bra- sileiro a dar imporancia A imagem como documento e veiculo de comunicago com linguagem prépria.* Essas ¢ outras viagens fotograficas legaram-nos visGes a um s6 tempo diversas e unificantes dos ideais de sociedade de. ™ HISTORIA da fotografia no Brasil: panorama geral e referéneias bdsicas. 3.0d., Sio Paulo: Instituto Moreira Salles, 2002, p. It 108 Hictévia & Fotografia homens e mulheres, estrangeiros e nacionais, que viveram transitaram por partes do territ6rio brasileiro, Isoladamente ou em conjunto, essas imagens e as que foram produzidas nas décadas posteriores fizeram circular modos especificos de ver 0 espago e de conceber o tempo. Fundaram e re-fundaram os diferentes conceitos de identidade nacional, que desde 0 perfodo imperial (6m perpassado a historia deste pais. Em suma, seus formatos, planos, texturas, seus jogos € luz e sombra ajudaram a edificar memérias coletivas, criaram sentimento de pertencimento entre grupos sociais e alicerga- ram imagindrios concebidos a partir de espelhos culturais ¢s- trangeiros, muitos dos quais foram sendo internalizados por membros de diversos segmentos sociais do pafs. Como men- is estéticos e cul- sagens, elas nos comunicam seus referenci: turais. Como nos lembra Pierre Francastel, a imagem figurativa é sempre demarcada pelos valo- res de uma determinada época ou cultura, pertence & cadeia de percepgdes onde est inserida. A imagem figurativa é uma percepgao aberta e potivalente.** 3 FRANCASTEL, Pierre. Imagem, visdo e imaginagdo. Lisboa: Presenga, 1983, p. 50. 109 CONSIDERACOES FINAIS utp ioe ea Como dissemos na introdugae deste livro, sua confeccao 1 implicou a tomada de algumas decisdes. Algumas delas foram definidas em fungio dos objetivos da Colegao Reflexées, da qual Histéria & Fotografia é parte. Outras estao diretamente relacionadas com o contetido que consideramos ser necessi- rio a um pesquisador iniciante, interessado em refletir ques- tes ligadas & relagdo entre a histéria-conhecimento e 0 uso do documento fotografico. A leitura que oferecemos das imagens contidas no capi- tulo II nao deve ser tomada como definitiva. Como observa- mos em mais de uma ocasiao, a fotografia, como as outras dos cédigos culturais e da sensibilidade do leitor. Mais que oferecer um modelo para a andlise das imagens reproduzi- das, 0 que constituiria um equivoco analitico, nossa intengéo foi ressaltar alguns elementos que, necessariamente, devem fazer parte do uso da fotografia como documento de pesqui- sa histérica. Chamar a atenciio para os sentidos que os atores sociais foram atribuindo as imagens fotograficas, ao longo : da segunda metade do século XIX e das primeiras décadas do século XX, é 0 mesmo que desnaturalizaras imagens. Equi- vale a conceber a imagem fotogréfica como construgao cul- tural, como cédigo aleatério porque varidvel conforme o pa- triménio cultural de seus produtores. Significa entabular um 4 didlogo entre 0 visivel ¢ 0 invisivel, entre o dito eo nao dito, } condigio sine qua non para se explorar os diferentes niveis imagens, é polissémica. Sua absorgao varia muito em fun¢cdo de andlise de uma imagem-documento. 11 Cogan "Histon &.., RELexoes” E assim que as imagens nos revelam as maneiras de sen- tir e pensar de um grupo social, que elas nos mostram como a meméria coletiva vai sendo construfda, criando lagos de per- fencimento mtituo ¢ unindo os membros de uma mesma cole- tividade. E também dessa maneira que podemos perceber como 0 partilhamento de sentimentos nao é universal, muito embora a forma como certas imagens é transmitida tenda a criar pa~ dr6es de comportamento e alicergar identidades nacionais. Ao analisar a disputa social em torno do significado de uma mes- ma imagem, produzida e difundida em uma mesma sociedade, 0 historiador tem af uma chave importante para fugir dos ris- cos de conceber o real como algo absoluto e natural, como algo que preexiste ao sujeito social. A variabiltdade dos pro- pésitos e das motivagdes que calgam as escolhas dos atores sociais toma-se, nesse momento, uma realidade. Conhecer essa multiplicidade de mundos, de interesses materiais e simbélicos, equivale a conceber 0 real como cend- tio mutdvel que esta sempre em processo de formagao. E per- ceber como homens ¢ mulheres de diferentes épocas se apro- priam de seu passado, conjugam-no com seu presente e apontam safdas para seu futuro. Quando transformada em documento a ser utilizado pelo historiador, a imagem fotografica dessacralizard a tede de re- lagGes que a sustenta. Esse processo, marcado pelo jogo entre raziio e sensibilidade, nao se fara, no entanto, em detrimento de sua magia e de seus miltiplos significados. Ao se debrugar sobre as intengGes do produtor de uma imagem, sobre a andli- se da dindmica social que interfere na produgdo imagética, o pesquisador compreende mais facilmente que 0 conhecimento hist6rico opera no reino das possibilidades e da verossimilhan- ga. Seu oficio implica conhecer, compreender e interpretar, & luz das evidéncias historicas, da qual a imagem fotografica é uma das manifestagdes, os sentidos que os individuos, isolada- mente ou em grupo, quiseram atribuir as suas praticas sociais. 112 Histérie & Fotografia No conjunto, foram essas as questées privilegiadas ao longo deste livro. Para alguns, sua leitura poderd constituir um primeiro contato com o uso do documento fotografico na pesquisa hist6ria. Para avancar nesse processo, oferecemos uma bibliografia vasta ¢ diferenciada que, se procurada, podera con- tribuir para o aprofundamento das indagacoes aqui contidase, muito provavelmente, para a ampliagéo do debate em torno dos aleances, limites ¢ desafios de se trabalhar com a icono- grafia, em geral, ¢ a fotografia, em particular, nos diferentes campos da pesquisa histérica. Mais que encerrar um debate, que por certo jamais sera interrompido, nossa intengio foi mostrar que a fotografia é uma das janelas para refletirmos sobre nds mesmos & sobre as tantas buscas que norteiam 0 caminhar tateante do ser humano. t | i FOTOGRAFIA: CRONOLOGIA Perfodo Acontecimento 1500 Pintores e gravadores usam a camera es- cura inventada por Leonardo da Vinci. 1609 Galileu utiliza a luneta. 1618 Invengao do microscépio. 1671 O jesufta Athanase Kneher faz a primeira descrigfo da lanterna mégica. 1790 Populariza-se, na Franga, 0 uso do Fisio- notrazo, retrato em madeira e em mar- fim. Essa técnica ndo tem nada aver com ada fotografia, muito embora os fisiono- tratistas sejam considerados os precur- sores ideoldgicos do fotdgrafo retratista. 1798 Ocorre a primeira projegio de Fantas- magories, mediante a utilizagao do fantascépio (uma lanterna magica aper- feigoada). 1814 Joseph Nicéphore Niépce (1763-1833) inicia suas pesquisas sobre a fixagao de imagens da cémera obscura a partir de dois métodos distintos. O primeiro con- sistia em testar a fotossensibilidade de algumas substincias como resina, fés- foro ¢ dleo em suportes de papel, vidro, Coucho “Histima &... Renexors” Historia & Fotografia Periodo Acontecimento metal e pedra colocados em uma caéme- ra negra. O segundo visava reproduzir gravuras translicidas a partir de uma su- perficie fotossensivel mediante a agdo da tuz. A esses dois processos ele dé a nome de Heliografia. 1826 As pesquisas de Nicéphore Niépce permi- tem-lhe captar a primeira imagem sobre a cmera escura: uma natureza morta. Para sua produgdo foram necessdrias 14 horas. 1829 Niépce se associa a Louis J.M. Daguerre (1787-185 1), pintor ¢ decorador de tea- tro. Funtos, dio continuidade as pesqui- sas para a reprodugao de imagens na camera cscura. 1832 O fotégrafo francés, radicada no Brasil, Anloine Hercule Romuald Florence (1804-1879) desenvelve suas pesquisas sobre a reprodugao de imagens median- te processos quimicos que ele préprio chamou de photographie. 1835 O fotégrafo inglés William Henry Fox Tatbot (1800-1877) substitui a placa metatica de Daguerre, 0 daguerreétipo, por um papel sensibilizado a partir do lodo. Essa técnica, conhecida como ca- I6tipo, cria a possibilidade de reprodu- ¢8o de miltiplas copias cm papel ou em vidro. A partir da década de 1840 ela seria utilizada por diversas fotdgrafos. 1835 Daguerre descobre, no mesmo ana em que Talbot, que os vapores de merctirioa agem como revelador de imagens. 116 Periodo Acontecimento 1837/38 As pesquisas de Daguerre levam-no a descobrir que uma fina camada de prata polida, aplicada sobre uma placa de co- bre e sensibilizada em vapor de iodo, produzia uma imagem de alta preci: embora em apenas uma copia. Em 1838, ele batiza scu invento de da- guerreotipia. Até 1855 0 daguerrestipo é 0 processo mais utilizado pelos fat6- grafos que vao se profissionalizando. 1839 O astrénomo e politico F. Arago divul- ga, na Academia de Ciéncias e Belas Artes de Paris, a canfiabilidade ¢ a pre- cisdo da reproducio de imagens por mé- todo automitico. Essa data é accita por todos como 0 mo- mento da divulgaciio da fotografia. Daguerre passa a comercializar sua in- vengao em diversos lugares da Europa ¢ dos Estados Unidos, além de publicar em diversos idiomas seu livro Historique et descriptions de procédés du daguerréo- type et du diorama. 1847 © quimicoe negociante de tecidos Louis Désiré Blanquart-Evrard (1802-1872) anuncia oresultado de suas pesquisas com © calétipa sobre papel albuminado. Os sais de prata ndo sio mais sobre superfi- cie do papel, mas impregnam sua textu- ra. Esse processo permite preparar o ne- gativo em papel antes de tirar a foto. A tiragem de suas provas em posilivo é mais facil do que o processo inventado pelo inglés Talbot em 1835. 117 Cotcio “Histo &.,, RUF exces” Periodo Acontecimento O fotdégrafo inglés Frederick Scott Ar- cher (1813-1857) cria 0 colddio timido, processo que mescla partes iguais de éter/alcool em uma solugao de nitrato de celulose. O uso do colddio timido em negativos sobre vidro e provas de albu- mina iria predominar entre 1855-1880. 1850 E eriado o papel albuminado. 1851 O governo francés cria a Mission Hélio- graphique destinada a inventariar, me- diante fotografias, o patriménio arqui- teténico da Franga. 1856 Surge o ferrétipo, no qual a imagem é produzida a partir do col6dio umido so- bre um suporte em chapa de ferro es- maltada com laca pretae marrom. A cor castanha da imagem permite sua visio como positive, quando colocada sobre uma superficie negra Foi usado como retrato em substituigao ao daguerredtipo, devido a seu baixo custo. 1854 O fotégrafo francés André A. Eugéne Disdéri (1819-1889) instala-se em Pa- tis, onde abre um dos mais importantes estidios fotograficos. Cria uma modali- dade fotogréfica feita a partir de um apa- telho com 4 ou 6 objetivas. Esse apare- Iho permite fazer de 6 a 8 clichés em uma mesma placa fotografica. Estava in- ventada a carte de visite, responsdvel pelo baraleamento e popularizagao da fotografia. 118 Historia & Fotografia Periodo Acontecimento 1858 © fotégrafo Nadar faz a primeira foto aérea. 1879 Ferricr inventa 0 primeiro filme foto- grafico. 1880/ 1910 Perfodo em que predomina o uso dos negativos em gclatina ¢ brometo de pra- ta sobre vidro, bem como as provas em. papel directo de fabricagao industrial (de gelatina ou colédio), 1888 George Eastman (1854-1934) comer- cializa seu mais novo invento: a Kodak, primeiro aparelho fotogréfico portétil contendo um rolo de filme que permitia sacar até 100 imagens, intitulado por cle de instanténeo. 1892 G. Eastman cria a Eastman Kodak Com- pany ¢ se dedica 4 fabricagio de apare- Thos fotograficos cada vez mais faceis de serem manuseados pelo piiblico amador, como a Brownie, comercializada a partir de 1900. 1895 Irmios Lumiére inventam o cinematé- grafo. Em 28 de dezembro de 1895, exi- bem a primeira sega de cinema no salao indiano do Grand Café, no boulevard dos Capuchinhos, em Paris. 1912 1925 A Kodak cria 0 primeiro aparelho foto- grafico portatil Oskar Barnak cria a Leica, uma came- ra fotografica de tamanho reduzido que usa um filme de roto, utilizado no cine- ma, que permitia, 4 época, sacar 36 fo- tos sem necessidade de ser recarregada. 19 Cotegéo “Histonta &... RELEOES" Periodo Acontecimento 1927 | Anos mais tarde, esse aparelho foi res- ponsavel pela grande difusio do foto- jornalismo. 1932 | Surge o cinema falado. A cor entra no cinema mediante uma téc- nica de superposi¢ao de trés filmes co- loridos em vermelho, azul e amarelo. Somente na década de 1960 € que o ci- nema adotaria a cor tal qual a conhece- mas hoje. 1947 | Surge o primeiro modelo da Polaroid. 1963 | Surge a Instamatic 50 da Kodak. 1981 | A Sony lanca um protdtipo do aparelho fotogrdfico eletrénico que marcara o ini- cio da era da imagem magnética. 1994 | Inicio da comercializagio do CD-Rom. * As informagées contidas nesta secéio foram feitas a partir do Glossdrio contido em VAZQUEZ, Pedro Karp. A fotografia no Império. Rio de Janeiro: Zahar, 2002. (Colegio Descobrindo o Brasil); do DICTIONAIRE de Photo. Paris: Larousse, 1996 e do texto “O Acervo Fotogrifico do Arquivo Pablico Mineiro”, de autoria de Juno Alexandre Vieira Carneiro (Bolsista de Aperfeigoamento no Projeto de Digitalizagao do Acervo Fotogrifico do Arquivo Pablico Mineiro), 2002, mimeo. 120 REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS ARRUDA, Rogério Pereira. (org.). Album de Bello Horizonte. Edi- cdo Fac-similar com Estudos Criticos. Belo Horizonte: Auténtica, 2003. BARTHES, Roland. A Camara Clara: nota sobre a fotografia. 2.ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. ——. 0 dbvio € 0 obiuso. Lisboa: Edigdes 70, 1984. BAURET, Gabriel. Approches de la photographie. Paris: Nathan, 2002. BAZIN, André. “Ontologia da imagem fotogrdfica”. In: XAVIER, Ismael (orgs.). A experiéncia do cinema: aniologia. Rio de Janeiro: Graal/ Embrafilme, 1991. BELLONE, Roger. La photographie. 2.ed., Paris: PUF, 1997. (Cole- ¢4o Que sais-je?). BENDIX, Reinhard. Max Weber. Buenos Aires: Amorrortu, 1979. BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Magia e técnica, ante e politica: Ensaios sobre literatura e historia da cultura (obras escolhidas v.1) S40 Paulo: Brasiliense, 1987, p. 165-196. . Textos escolhidos. Sao Paulo: Abril Cultural, 1983. (Cole- ¢ao Os Pensadores). BERMAN, Marshall. Tudo que é sélido desmancha no ar —a aven- tura da modernidade. Sio Paulo: Companhia das Letras, 1986, BORGES, M. Eliza L. “Imagens da nagdo brasileira”. Locus ~ Re- vista de Hist6ria. Juiz de Fora: UFJF, 2001. 121

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