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A CONSOLIDAGAO DA PSICOLOGIA SOCIAL COMO DISCIPLINA INDEPENDENTE . A DIFERENCIAGAO DA PSICOLOGIA SOCIAL NO CONTEXTO DA PSICOLOGIA = A Vélkerpsychologie de Wilhelm Wundt i da psicologia da Gestalt = A teoria psicanalitica: influéncias na psicologia social = William McDougall e a teoria dos instintos = John B. Watson e as origens do behaviorismo = As criticas as teorias dos instintos = Amente grupal = Floyd Allport e a introdugao do behaviorismo na psicologia social ‘A DIFERENCIAGAO DA PSICOLOGIA SOCIAL NO CONTEXTO DA SOCIOLOGIA. = A psicologia social e os primeiros manuais escritos por socislogos = Max Weber ea teoria da aco social = Georg Simmel: © estudo das acées reciprocas = Charles Horton Cooley: As bases psicossociais das relagdes interpessoais e a vida social = A ssociologia da Escola de Chicago e sua influéncia na psicologia social am I. Thomas: O estudo das atitudes sociais como objeto da psicologia social = George Herbert Mead: O interacionismo simbélico (OS PRESSUPOSTOS METODOLOGICOS DA PSICOLOGIA SOCIAL = Atendéncia experimental da psicologia social psicolégica = Oecletismo metodolégico da psicologia social sociolégica RESUMO_ : Be PSICOLOGIA SOCIAL * PERSPECTIVAS PSICOLOGICAS E SOCIOLOGICAS A partir do que foi visto até agora, pode-se afirmar que nio existem marcos fundadores nem na Psicologia, nem na sociologia, que demarquem claramente 0 momento em que a psicologia social se originou como uma disciplina unificada, nem dentro da psicologia nem dentro da sociologia. Desde seu surgimento, no pensamento social europeu do século XIX, a psicologia social se definia como uma disciplina plural, A pluralidade, tanto de enfoques tedricos como de objetos de estudo, continuou ca- racterizando a psicologia social 4 medida que ocorria sua diferenciagio ¢ sua consolidagio definitiva como disciplina cientifica independente, 0 que aconteceu simultaneamente na psicologia e na socio logia. Procurar um evento que nos sirva como critério para diferenciar 0 momento em que surge 0 pensamento psicossocial e a psicologia social como 4rea de conhecimento auténoma seria uma tarefa impossivel que daria lugar, além disso,a uma idéia errada:a de que a psicologia social foi se diferencian- do progressivamente em uma disciplina matriz, quer seja a psicologia ou a sociologia, tornando-se inde- pendente dela quando alcangou a maturidade como ciéncia independente. Alguns autores situam o inicio da fase independente da psicologia social em 1908, ano em que foram publicados os dois primeiros livros que tinham como titulo o nome da disciplina, o de William McDougall, Introduction to social psychology € © de Edward Ross, Social psychology. Essa €, entretanto, uma escolha arbitraria e pouco justificada pois, em primeiro lugar, nfo leva em consideragio a publicagio, no final do século XIX, dos livros de Gabriel Tarde, Estudios de psicologia social (1898) ¢ de Chatles Ellwood, Algunos prolegémenos a la psicologia social (1901). Em segundo lugar, no considera também o fato de que © titulo de um livro depende, as vezes, de fatores que no se relacionam estritamente com seu conteti- do. Em psicologia social temos um claro exemplo disso nos dois livros de Tarde, Las leyes de la imitacién (1890) e La légica social (1895), que inicialmente tinham sido concebidos por ele como um tinico livro que levaria o titulo de Psicologia social y légica social. Se nao tivessem ocortido fatores comerciais envolvidos em sua publicagio, este teria sido o primeiro manual de psicologia social (veja Ibatiez, 1990). E, finalmen- te, ignora o fato de que no primeiro manual de sociologia, publicado por Small e Vincent em 1894, An Introduction to the study of society, foram incluidos cinco capitulos dedicados a psicologia social. Por iiltimo, o simples fato de considerar como ponto de referéncia a publicagio de um manual em ver de qualquer outro acontecimento é, por si s6, uma decisio bastante arbitraria, Se em vez de um ma- nual, fosse utilizada, por exemplo, a realizagio do primeiro curso sobre psicologia social como 0 ponto de partida da etapa independente da disciplina, terfamos que nos referir a George Herbert Mead e a0 curso que comegou a ministrar na Universidade de Chicago em 1900. Estes sio somente dois exemplos que ilustram a inadequacio de procurar em um evento concreto © sintoma de maturidade e de consolidagio da psicologia social. Como foi descrito no capitulo anterior, em meados do século XIX comegaram a ser tragados os diferentes caminhos que o desenvolvimento da disciplina poderia ter seguido. Como veremos nas paginas a seguir, todos esses caminhos continuavam abertos no primeiro quarto do século XX, perfodo em que a psicologia social foi se consolidando como disciplina cientifica independente. E de cada um deles foi surgindo uma forma diferente de entender 0 estudo dos fendmenos psicossociolégicos. O objetivo deste capitulo é analisar a forma pela qual a psico- logia social foi se consolidando durante os primeiros anos do século XX como uma disciplina cientifica independente que teria, na pluralidade te6rica e metodolégica, um de seus mais claros sinais de identidade. Capitulo 2A Consolidacso da Psicologia Social como Disciplina Independente B® A DIFERENCIACAO DA PSICOLOGIA SOCIAL NO CONTEXTO DA PSICOLOGIA Nas primeiras décadas do século XX foram abertos diferentes caminhos pelos quais poderia ter acontecido o desenvolvimento da psicologia social. Um deles foi o da Volkerpsycholagie ou Psicologia dos Pos, que se iniciou no século XIX e foi desenvolvida por Wilhelm Wundt durante as duas primeiras décadas do século XX. Também na Alemanha surgi, como alternativa 4 psicologia de Wundt, uma nova corrente psicol6gica, a psicologia da Gestalt, que exerceria uma grande influéncia no desenvolvimento da psicologia social. Mas, sem diivida, a principal linha de desenvolvimento da psicologia social psicol6- gica durante essa etapa inicial foi um produto das teorias evolucionistas e da influéncia que elas exerce- ram nas psicologias britinica e norte-americana, Trata-se da teoria dos instintos, cujo principal expoente {io psicélogo social britinico William McDougall. A idéia de que grande parte do comportamento numano pode ser explicada recorrendo a fatores como o instinto ou a heranga genética dominou a Psicologia social do inicio do século, até que foi finalmente abandonada devido, entre outros fatores, 20 aparecimento de uma nova corrente teérica da psicologia, o behaviorismo, cujos principios foram introduzidos na psicologia social por Floyd Allport. Nos parigrafos seguintes analisaremos as principais aracteristicas de todos esses enfoques da psicologia social. A Volkerpsychologie de Wilhelm Wundt Como vimos no capitulo anterior, a consolidacio definitiva da psicologia como disciplina cien- tifa independente da filosofia ocorreu na Alemanha em meados do século XIX. Nesse processo foi fundamental o trabalho de Wundt, que definiu a psicologia como a ciéncia da mente e reivindicou 0 so da experimentagdo como a tinica forma valida para estudar os processos mentais de uma maneira cientfica. No inicio, quando se falava do estudo experimental da mente, falava-se unicamente do estu- do da percepgio e dos tempos de reagio, ¢ a psicologia experimental baseava-se, de fato, na psicofisica ena psicofisiologia. Mas, 4 medida que a nova ciéncia foi se consolidando, surgia também a necessidade de abordar © estudo de processos mentais mais complexos, como a meméria ou o pensamento, Foi a partir desse momento que o método experimental comecou a ser questionado como um procedimen- to adequado para o estudo da mente. O proprio Wundt foi percebendo as limitagdes da psicologia experimental para 0 estudo dos processos mentais superiores ¢ acabou propondo uma divisio da psi- cologia em duas éreas: a psicologia experimental, centrada no estudo de processos mentais bisicos, a Valkerpsychologie, cujo objetivo deveria ser o estudo dos processos mentais superiores.A Volkerspychologie pode ser considerada um dos antecedentes da psicologia social. De fato, Wandt analisou a possibilidade de denominar essa area “estudo de psicologia social”, mas descartou a idéia devido 4 identificago que naquela época se estabeleceu entre a psicologia social e a teoria dos instintos de McDougall (1908), que era baseada em explicagdes biol6gicas. Partindo de algumas das idéias ja esbogadas por Lazarus ¢ Steinthal (veja 0 capitulo anterior), Wundt propés a Valkerpsychologie como uma via adequada para abordar estudo dos processos mentais superiores. ‘Wandt expés suas idéias sobre a Vélkerpsychologie em dez volumes que foram publicados entre 1900 e 1920. Os trés primeiros foram traduzidos para o inglés (Wundt, 1916). Nao é esta, entretanto, 2 fonte essencial para obter informagio sobre seu pensamento. Ou, pelo menos, esta é a conclusio de Gustav Jahoda (1995) depois de uma andlise sobre o desenvolvimento histérico da psicologia como dis- ciplina cultural, no qual a Velkerpsychologie ocupa um lugar central. Segundo o psicélogo, a fonte mais PSICOLOGIA SOCIAL + PERSPECTIVAS PSICOLOGICAS E SOCIOLOGICAS adequada para analisar 0 contetido tedrico da Valkerpsychologie & o resumo dela que © proprio Wundt ofereceu na terceira edi¢io da Légica, cujo terceiro volume foi publicado em 1908. Como o proprio Wunde definiu, a Valkerpsychologie era uma area da psicologia interessada no estu- do dos processos mentais superiores para cuja compreensio a psicologia individual no seria adequada. Uma das idéias que podem ser consideradas centrais em seu pensamento é a de que o desenvolvimento individual depende do contexto mental no qual a pessoa esté inserida. Este contexto mental & constituido pela linguagem, os costumes e as crengas. A maneira pela qual Wundt utilizava o conceito era, entretan- to, muito confuwsa. Como destaca Jahoda (1995), 0 conceito de contexto mental usado as vezes como sindnimo do conceito atual de cultura, Mas freqiientemente coincidia com o conceito de alma do povo, utilizado também por Wundt de forma muito ambigua. Uma prova das contradigdes em que incorria 20 utilizar © conceito era, por exemplo, o fato de ter recebido numerosas criticas tanto por utilizi-lo como por nio fazé-lo, Em alguns momentos Wundt afirma que “a comunidade cria valores psiquicos independentes [geistige Werte], enraizados nas propriedades mentais [seelischen] do individuo, porém de uma classe especifica que por sua vez agrega 4 vida mental individual [Seclenleben] seus contetidos mais importantes”. Mas, em outros momentos, responde 4s criticas dizendo que “ninguém mais mantém a nogio de uma entidade desgarrada independente do individuo” (Jahoda, 1995). A ambigitidade com que utilizava esses conceitos ¢ a confiusio com que delimitava as relagdes entre a Volkerpsychologie © a psicologia individual foram, de fato, algumas das principais criticas que sua proposta recebeu. Quanto ao conteiido tedrico da Volkerpsychologie, Jahoda (1995) destaca que a maioria das contri- buigdes de Wundt, & excecio das relacionadas com o estudo da linguagem, onde ele fez contribuigées destacadas, podem ser consideradas como psicologia. O restante de suas contribuigdes esta fora da esfera da psicologia e tem mais relagio com a etnografia. Apesar de todas as limitagdes de sua teoria, Wundt desenvolveu algumas abordagens de inegivel relevincia para a psicologia social. Expés a idéia de que existe uma intima relagio entre a mente ¢ a cultura, e que a mente individual é produto do contexto cultural no qual se desenvolve a pessoa. Foi, de fato, essa idéia que © levou a defender a necessidade de uma psicologia cultural, separada da psicologia individual no somente no objeto de estudo, mas também no método. Wundt reconhecia as limitagdes do método experimental para abordar o estudo dos processos mentais superiores. © fato desses proces- sos estarem tio determinados pelo contexto cultural no qual a pessoa se desenvolve, tornava invidvel seu estudo no laboratério, utilizando os métodos experimentais, Para abordar a andlise desses processos, propunha a pesquisa etnogeifica ‘Wunde atribuiu aos métodos da Vélkerpsychologie um status cientifico semelhante a0 que previa mente havia dado ao método experimental. De fato, ele sempre defendeu a idéia de que o carter cien- tifico de uma disciplina deve ser avaliado pela adequagio da metodologia & natureza do fendmeno que se esti estudando e nao o contririo. Uma abordagem que, como veremos, nio teve muita aceitagao no desenvolvimento posterior da psicologia ¢ da psicologia social. Embora algumas das idéias expressas na Volkerpsycholagie tivessem sido adotadas e desenvolvidas por Mead, Vygotski e Durkheim, 0 certo é que, em geral, a influéncia da Valkerpsychologie na evolugio da psicologia social foi inexpressiva. Sao varias as razes para seu esquecimento. Alguns autores atribuem a0 proprio Wundt a responsabilidade pelo fato das abordagens da Valkerpsychologie terem sido ignora~ das pela psicologia social emergente. Liick (1987), por exemplo, destaca o fato de a propria abordagem Capitulo 2A Consolidacio da Psicologia Social como Discplina Independente metodolégica de Wundt da Volkerpsychologie ter impedido um desenvolvimento adequado da psicologia social nessa linha:“o que ocupou a atengio de Wundt em seus titimos anos foi uma psicologia de pol- frona, uma antropologia cultural sociologizante, para a qual ndo considerou as tltimas descobertas da pesquisa”, Nesse mesmo sentido, Hellpach, um discipulo de Wundt, escreveu: “o inicio da psicologia so- ial foi desafortunado porque Wilhelm Wandt, a maior autoridade psicolégica na Alemanha no tiltimo século, nio se interessou absolutamente por ela” (apud Liick, 1987, p. 23). No entanto, o fato de Wundt ter dedicado 20 anos & elaboracio de seu Vélkerpsycholagie nio corrobora a idéia de que a considerou uma psicologia pouco rigorosa do ponto de vista metodolégico. Danziger (1983, p. 307), por exemplo, nos Jembra que Wundt sempre mostrou um grande interesse pelos campos no experimentais das cién- cias naturais, e que nunca condicionou a objetividade do conhecimento cientifico ao uso de procedi- ‘mentos experimentais ou quantitativos. A pouca influéncia da Vélkerpsycholagie na psicologia social explica-se fundamentalmente por ela ter surgido no exato momento em que a psicologia experimental de Wundt estava sendo fortemen- te questionada. Tanto suas contribuigdes teéricas quanto as limitagdes que impusera 4 experimentagio Jogo se converteram no alvo de numerosas criticas nas quais se refletia, em tltima instincia, a resisténcia 4a nova psicologia em abandonar, mesmo que parcialmente, 0 caminho da experimentagio que re- presentava um dos seus sinais de identidade. As crescentes criticas ao sistema de Wundt procediam de diferentes frentes. Nos Estados Unidos, seu sistema teérico foi confundido com o estruturalismo de Titchener, que introduziu suas idéias naquele pais. Entre os aspectos do pensamento wundtiano nio considerados por Titchener estava, justamente, 4 Volkerpsycholagie, Ao contririo de Wundt, Titchener nio admitiu a existéncia de processos mentais superiores, mas considerou que eles podiam ser reduzidos a sensagdes periféricas. Mediante essa aborda- gem, a introspeccio podia manter-se como ‘inico método de estudo vilido em psicologia, enquanto a Volkerpsychologie se tornava desnecessaria. Na Alemanha, os trabalhos da Escola de Wurzburgo significa- ram também uma rejeigio 3 Valkerpsycholagic. Embora os psicélogos dessa escola aceitassem a existéncia de processos mentais superiores, rejeitaram diretamente a negativa de Wundt de estudé-los experimen- tulmente. Os estudos de Kiilpe sobre o pensamento sem imagens e os de Ebbinghaus sobre a meméria constitufram um dos maiores desafios 4 psicologia de Wundt. Também na Alemanha, surgiu no principio do século XX, uma corrente teérica contriria 4 psicologia de Wundt, a Escola da Gestalt, cujos represen tantes se opuseram 4 utilizagio de uma perspectiva analitica como a adotada por Wundt, argumentando que a decomposi¢io do todo em suas partes no s6 é artificial, mas também cientificamente estéril, jé que nio revela nada sobre a mente. Embora nfo tivessem enfrentado abertamente a Valkerpsychologie, os sgestatistas fomentaram a realizagao de estudos experimentais e nao utilizaram em nenhum momento 0 étodo histérico-comparativo proposto por Wund. A despeito de a Valkerpsychologie ter tido uma influéncia limitada no desenvolvimento inicial da Psicologia social, sso no nos impede de inclui-la em uma reconstrugio histérica da disciplina. Como destaca Alvaro (1995, p. 9),"o estudo dos processos mentais como produtos histéricos e sociais e, por- tanto, nio reduziveis a uma psicologia individual, a importincia atribuida 4 linguagem, tanto na forma- gio de toda organizagio social como na explicagio de todo estado psicolégico individual, e sua abertura para métodos nio experimentais no estudo dos produtos da mente coletiva, como a linguagem, a reli- sido, os costumes ou 0s mitos, sio aspectos a serem considerados em uma concepgio nao reducionista da psicologia social”, opiniio compartilhada por outros psicélogos sociais, como Danziger (1983) ou Farr (1983) PSICOLOGIA SOCIAL * PERSPECTIVAS PSICOLOGICAS E SOCIOLOGICAS O inicio da psicologia da Gestalt No inicio do século XX surgiu na Alemanha uma nova forma de entender o estudo dos processos mentais, que exerceria, a longo prazo, uma enorme influéncia no desenvolvimento da psicologia social. Trata-se da Escola da Gestalt, uma corrente psicolégica que rejeitava a idéia de Wundt de que o estudo da percepgio s6 poderia ser feito pela sua decomposigio em seus elementos mais simples. Os principios da psicologia da Gestalt foram introduzidos na psicologia social na década de 1930, por intermédio da obra de Kurt Lewin, e deram lugar a um importante desenvolvimento da disciplina entre 1945 ¢ 1960. Tanto as contribuicdes de Lewin como as dos principais representantes da psicologia social gestaltista serio analisadas nos proximos dois capitulos. Antes, porém, convém nos determos, ainda que brevemente, em uma anilise dos principios gerais da Escola da Gestalt e de sua importncia na his- t6ria da psicologia, A psicologia da Gestalt surgiu como critica ao enfoque analitico da psicologia experimental de ‘Wande. Boring (1950), de fato, a define como a primeira fase do protesto alemio contra a psicologia de Wandt. Essa anilise, entretanto, nio é completamente certa, jé que a Escola de Wureburgo, embora tivesse tido uma existéncia muito efémera, foi a primeira a confrontar a psicologia de Wunde. Por ou- tro lado, também a psicologia compreensiva de Dilthey surgiu, paralela 4 de Wundt, como uma critica a simplicidade de algumas das suas abordagens. Nao obstante, pode-se afirmar que a Escola da Gestalt & © primeiro movimento da psicologia alema que consegue consolidar-se como uma alternativa experi mental a Wundt, A psicologia da Gestalt, que tem suas raizes filoséficas na fenomenologia de Edmund Husserl (1859-1938), se ops tanto a concep¢io analitica da psicologia defendida por Wundt e, sobretudo por Titchener, como as abordagens derivadas do positivismo. Apesar de Wunde no ter sido tio atomista como alguns de seus discfpulos, 0 certo € que adotou o esquema analitico das ciéncias naturais, e mais concretamente o da quimica, ¢ ressaltou que o objetivo da psicologia devia ser a anilise da conscién- cia, mediante 0 estudo dos elementos mais simples das sensagdes € dos sentimentos. Em sua anilise da percepgio, partia-se da premissa de que ela era uma soma de sensagdes. Os psicélogos da Gestalt se opuseram abertamente a tal enfoque ¢ reivindicaram uma psicologia da totalidade, que analisasse a ex- periéncia como um todo. Para os psicdlogos da Gestalt, o que primeiro chega a consciéncia nio sio as sensagSes, os elementos constituintes, e sim o todo, Essa totalidade, além disso, no pode ser concebida como a soma das partes, pois teria propriedades emergentes. A Escola da Gestalt se opés a0 sensaciona- lismo empirista, cujo postulado central é que o conhecimento é o resultado dos dados adquiridos pelos sentidos.A psicologia experimental de Wunde se baseava nessa hipétese empirista, segundo a qual nio hi nada que faga parte de nosso conhecimento que nio tenha passado antes pelos sentidos. Os psicdlogos da Gestalt negavam que a percepgio e, portanto, o conhecimento, dependesse das impresses individuais, Se nosso conhecimento dependesse de algo tio variavel como as sensagdes individuais ¢ nio de abstragdes ou totalidades, o mundo seria visto de uma maneira diferente a cada dia, pois uma sensagdo nunca pode repetir-se da mesma maneira em nossa consciéncia, Nao foi a primeira vez que, na psicologia, defendia-se tal tipo de idéias, Franz Brentano (1838- 1917) ja havia se oposto ao atomismo de Wundt ¢ adotara um enfoque holistio, destacando que a psi- cologia deveria estudar o que nos é dado pela experiéncia imediata, e nio uma decomposigio dela em Capitulo 2. Consolidagdo da Psicologia Social como Disciplina Independente seus elementos mais simples. Também Christian von Ehrenfels (1859-1932) afirmara que a forma é uma construgo mental, propondo como exemplo o fato de se ao escutar uma melodia, o que chega ao inte- Ikcto no sio 0s sons que 0 ouvido recebe de forma isolada, mas a melodia, isto é,a forma. Apesar desses antecedentes, o inicio formal da psicologia da Gestalt foi a publicagdo, em 1912, do artigo de Max Wertheimer (1880-1943), “Experimentelle Studien ueber das Schen von Bewegung”. Nele se apresentavam os resultados de um experimento realizado pelo autor ¢ em que também colabo- tram Kurt Koflka (1886-1941) e Wolfgang Kéhler (1887-1967). De forma resumida, 0 experimento consistia em mostrar 4 pessoa dois pontos de luz que apareciam em répida sucessio em dois lugares diferentes. Os resultados mostravam que 0 que a pessoa percebia no eram dois pontos de luz, mas um fico ponto que se movia. O fenémeno, conhecido como movimento estroboscépico, que consiste no aparente movimento entre duas luzes estiticas que acendem com intervalos curtos e regulares, fora observado anteriormente pelo fisico Plateau, em 1850. A contribuigio de Wertheimer, ao estudar ex- Perimentalmente o aparente deslocamento de linhas, consistiu em dar uma nova explicagio ao que se conhece habitualmente como fendmeno phi. Para esse psicdlogo o efeito phi nao podia ser explicado uti- lizando-se 0 esquema atomista de anilise da consciéncia. A seu ver, o efeito phi nio podia set entendido como uma mera ilusio perceptiva, mas como a percepgio de uma Gestalt, resultado de uma excitagio fisiolégica global no individuo. Os elementos sensoriais nio sio percebidos isoladamente, mas dio lugar Apercepgio de algo qualitativamente diferente. Sua proposta explicativa est em destacar que a unidade deanilise no estudo da percepgio devia ser 0 todo, e que este era algo mais que 0 somatério das partes. Essas conclusdes se tornaram, como jé dito, 0 ponto de partida da psicologia da Gestalt. Depois desse trabalho inicial, os trés psicdlogos, Wertheimer, Kofika e Kéhler, iniciaram uma critica radical a0 ele~ mentarismo da psicologia de Wundt e inauguraram uma nova forma de entender a psicologia, como 0 estudo da totalidade, As contribuigdes mais conhecidas dos psicélogos da Gestalt sio as feitas no campo da percepsio, onde introduziram 0 conceito de campo, procedente da fisica. A idéia central dos estudos sobre percep- ¢40 realizados pelos gestaltistas era que a experiéncia que se percebe é uma Gestalt, uma forma ou tota~ lidade, que se encontra organizada e estruturada de acordo com uma série de leis, cuja anilise devia ser objeto da psicologia. Embora os primeiros psicdlogos gestaltistas se concentrassem principalmente no estudo da per cepcio, nio foi este 0 tinico processo investigado pela psicologia da Gestalt. Somente um ano depois da publicago do artigo inicial, iniciaram-se as pesquisas de Kéhler sobre 0 aprendizado dos chimpanzés em Tenerife, desenvolvidas entre 1913 e 1914. Aplicando os mesmos principios derivados do estudo ch percepcio ao estudo do aprendizado, Kahler (1966) afirmou que a situacio de aprendizado deve ser considerada na totalidade, um campo constituido pelas inter-relagdes entre diferentes elementos. A resposta do animal, isto é, 0 aprendizado, se produz quando cle é capaz de reestruturar a situagio, de compreender as relagdes entre os diferentes elementos. Como em outros estudos sobre aprendizagem, nos estudos de Kbler se pretendia que os chimpanzés aprendessem a conseguir uma recompensa, que era colocada em lugares de dificil acesso para o animal. Por exemplo, em alguns dos experimentos, a recompensa consistia em uma banana que se colocava em um lugar visivel mas suficientemente alto, de maneira que o chimpanzé nio pudesse alcangé-la. Perto do animal, e em um lugar acessivel, eram colo- cados alguns objetos (paus, caixas ete.), que podiam ser utilizados para alcangar a comida, PSICOLOGIA SOCIAL * PERSPECTIVAS PSICOLOGICAS E SOCIOLOGICAS Os resultados desses estudos indicaram que a aprendizagem nio se produzia por tentativa e erro, ‘mas o animal acabava tendo uma visio global da situacZo que the ajudava a elaborar uma estratégia para conseguir a recompensa, Depois de varias tentativas sem sucesso para alcangar as bananas, 0 chimpanzé parecia desistir; entretanto, passado algum tempo, voltava a tentar utilizando desta vez algum dos obje- tos que tinham sido colocados ao seu alcance. Como se tivesse reestruturado mentalmente a situacio, 0 chimpanzé utilizava 0s paus ou as caixas para chegar meta. Surge assim © conceito de insight, oposto 3 aprendizagem por ensaio e erro de Thorndike (1898) e 4 aprendizagem por contigtiidade dos behavioristas, que dé lugar a um dos primeiros modelos cognitivistas sobre a aprendizagem. A idéia de insight, como mudanga abrupta no comportamento precedida de uma completa reestruturagio do campo, ser retoma- da por Kurt Lewin, que reforcari as transformagdes comportamentais produzidas como conseqtiéncia de ‘uma mudanga na cognicdo do campo. Também Wertheimer dedicaria uma grande parte de seu trabalho cientifico ao estudo da aprendizagem, mais concretamente ao relacionado com o pensamento produtivo. Os resultados desse trabalho se encontram em seu livro Productive thinking, publicado postumamen- te em 1945, embora suas idéias também estejam registradas em suas criticas & logica aritmética ocidental ¢ em sua anilise do pensamento produtivo, desenvolvidos entre 1918 ¢ 1920 (veja Ash, 1995). Nesses trabalhos, Wertheimer aponta que o pensamento numérico que deriva da logica aritmética é inadequa- do para explicar 0 pensamento natural das pessoas. O pensamento natural, diria Wertheimer, caracteri- za-se pot um processo de centralizago no qual as diferentes partes emergem como um todo. Sao estas gestalt que determinam nosso pensamento. Em concordincia com esses postulados, Wertheimer explica a inovagio € 0 pensamento criativo como um processo de recentralizagio e reestnuturagio. © pensamento produtivo considera a capacidade de reestruturar a situagio dando lugar a mudangas conceituais que permite a resolugio de problemas. Como proceso, é muito semelhante ao descrito por Kéhler como insight em seus estudos sobre a inteligéncia dos chimpanzés. Se do ponto de vista tedrico e conceitual, a Escola da Gestalt significou uma mudanga de rumo importante para a psicologia, do ponto de vista metodolégico foi uma ratificagio das tendéncias ini- ciadas no periodo anterior. Embora os gestaltistas tivessem sido bastante ecléticos em suas abordagens metodoldgicas, o certo 6 que, na pritica, se inclinaram em sua maioria pela experiéncia. Nesse sentido, a Escola da Gestalt continuou a tendéncia da psicologia tradicional de estudar os processos mentais no laboratério, isolando-os completamente do contexto social em que se enquadram. Como destaca, por exemplo, Boakes (1989, p. 442), os estudos sobre a resolugio inteligente de problemas inspirados pela Gestalt se baseiam na idéia do desafio intelectual do ambiente ¢ colocam a pessoa na situacio de enfren- tar, de forma isolada, os problemas que recebem do exterior. Embora alguns autores destaquem que os fundadores da psicologia da Gestalt ndo trouxeram ne- nhuma contribuigdo para a psicologia social (veja Jackson, 1988), outros afirmam que as contribuigées 4 psicologia social se produziram desde o primeiro momento. Jiménez Burillo (1985), por exemplo, nos Iembra que Koffka (1935) dedicou um capitulo de seu livro Principios de psicologia de la forma 8 psicologia social, ¢ Kahler (1929) dedicou atengio ao tema da percep¢io interpessoal, que considerava um fato bisico em psicologia social. No entanto, a verdadeira introdugao dos principios da psicologia da Gestalt na psicologia social aconteceu por meio da teoria do campo de Kurt Lewin. Capitulo 2 A Consolidacio da Psicologia Social como Disciplina Independente Para alguns autores, é precisamente a chegada dele aos Estados Unidos que marca o inicio da etapa de consolidagio da disciplina (veja Jiménez Burillo, 1985). As contribuigdes desse autor, assim como as de psicélogos sociais inffuenciados por essa corrente, serio analisadas nos dois capitulos seguintes, A teoria psicanalitica: influéncias na psicologia social Sigmund Freud (1856-1939) ocupa um lugar central no desenvolvimento das ciéncias sociais do século XX. Seus primeiros trabalhos estavam associados ao estudo das neuroses histéricas. Influenciado no inicio pelo trabalho de Jean Martin Charcot e, mais tarde, por Joseph Breuer, Freud chegaré a con clusio de que as neuroses tém uma causa psicolégica em vez de uma causa fisioldgica. A terapia propos- ta por Freud era a identificagio, mediante a expressio verbal das lembrangas do paciente, das causas que originaram a doenga. © reconhecimento da libido e da repressio dos impulsos sexuais dariam um novo edefinitivo impulso a psicanilise freudiana. Seria na repressio dos impulsos sexuais que Freud situaria o centro das neuroses. Desvendar, por intermédio dos sonhos ou dos atos falhos,a repressio daquelas e sua integracio no inconsciente foi um dos principais objetivos da terapia freudiana, A primeira teoria dos instintos destacava que a energia libidinal tinha como meta o principio do prazer, Posteriormente, Freud daria cada vez mais importincia aos impulsos de autopreservacio diante dos impulsos sexuais, formulando uma segunda teoria dos instintos na qual incluiria o instinto de morte ou Thanatos. © biologismo subjacente em toda a teoria dos instintos de Freud, o carter clinico de sua Psicologia e suas aplicagdes & psicopatologia, seus postulados sobre a natureza impulsiva da pessoa, junto com sua redugio do social a sua fungio repressora dos impulsos fizeram com que sua possivel contri- buigio 4 psicologia social fosse muito questionada, Fatores externos, como a separagio entre a psico- lgia social e a psicologia da personalidade, 0 predominio de uma psicologia social experimental ¢ © desinteresse pelos estudos culturais sobre a socializagio e a personalidade, realizados depois da Segunda Guerra Mundial (veja Collier, Minton e Reynolds, 1991), somados 3 influéncia mais determinant de outras correntes tedricas em psicologia social, como a teoria do campo, o behaviorismo, o cognitivismo ou o interacionismo simbélico, também contribuiriam para a situago de marginalidade da psicanilise 1a psicologia social. Por isso, nio surpreende que enquanto alguns autores consideram Freud um dos fndadores da disciplina junto com Mead, Lewin e Skinner (Schellenberg, 1978), outros nao tém uma opiniio favorvel 4 sua inclusio na psicologia social (veja Blanco, 1988) E possivel verificar a situagdo periférica da psicanilise refletida em uma anilise recente dos ma- unis de psicologia social americanos e europeus realizada por Jiménez Burillo, Sangrador, Barrén e de Paul (1992).A extensa revisio realizada por esses autores mostra que a psicanilise é a orientagio teérica que recebeu um menor porcentual de capitulos independentes nos textos analisados. Conclusio se- melhante pode ser obtida apés uma anilise do contetido das duas diltimas edigdes do Handbook of social psythology (Lindzey e Aronson, 1985; Gilbert, Fiske e Lindzey, 1998), onde as referéncias & psicanilise ocupam um lugar bastante marginal Desde © inicio, o pensamento psicanalitico tem sido objeto de divisdes entre as quais valeria a pena destacar as de Carl Gustav Jung e as de Alfred Adler. Ainda que os enfoques de Jung e Adler re- presentem uma supera¢io do enfoque individualista de Freud (veja Munné, 1989), serio os psicélogos neofreudianos Karen Horney (1885-1952) e H. S. Sullivan (1892-1949), ao lado de Abram Kardiner e o frankfurtiano Erich Fromm, aqueles que no somente criticario a teoria dos instintos de Freud, mas PSICOLOGIA SOCIAL * PERSPECTIVAS PSICOLOGICAS E SOCIOLOGICAS também destacario 0 fato de o aspecto biopsicolégico ser definido pelo meio social. Assim, Horney res saltari a influéncia do meio cultural nas neuroses; Kardiner elaborari seu conceito de estrutura basica da personalidade ou personalidade basica em que o aspecto cultural tem um papel modelador desta; Fromm. manterd a importincia da organizacio social na satisfago das necessidades humanas ¢ Sullivan destacard em sua teoria o fato de a personalidade nio poder ser compreendida fora da interago social. Mengio parte merece a obra de outro neofreudiano, Erik Erikson (1902-1994), interessado principalmente nas fases do desenvolvimento da identidade psicossexual. Além das contribuigdes jé mencionadas, podemos observar que a influéncia da psicanilise na psi- cologia social teve um cariter indireto. Caberia ressaltar nesse sentido sua influéncia sobre 0s teéricos da aprendizagem social, como Dollard ¢ Miller, e mais concretamente sua contribuigo a formulagio da hipétese frustragio-agressio, ou sobre teéricos das atitudes como Katz (1967) ¢ seu enfoque funcional, em que se destaca 0 papel ego-defensivo daquelas. Nao menos importante foi a influéncia do pensa~ ‘mento psicanalitico nos estudos sobre o cariter autoritirio que se iniciaram na década de 1920. Aqui, um dos exemplos mais conhecidos e divulgados em psicologia social foi o estudo de Adorno, Frenkel- Brunswik, Levinson e Sanford (1950) sobre a Personalidad autoritaria. Do mesmo modo, a influéncia de autores como Reich e sua Psicologia de masas del fascsmo (1933) é importante para compreender tanto o estudo de Fromm (1939) sobre a personalidade autoritiria em El miedo a la liberdad quanto as pesquisas de Adorno e colaboradores (1950). Em suma,a posicio de Freud ¢ do pensamento psicanalitico na psicologia social é complexa e est submetida a um debate explicito ou implicito, tal como fica refletido nestas paginas. Nao obstante, algumas de suas contribuigdes e de seus desenvolvimentos posteriores, conquanto nao tivessem tido uma influéncia decisiva nas concepges dominantes da psicologia social, contém elementos que no somente atravessam a psicologia social, mas também devem constituir ferramentas para 0 debate e a reflexiio desta, William McDougall e a teoria dos instintos Outra importante linha de desenvolvimento da psicologia social durante os primeiros anos do sé- culo XX se originou ao redor da idéia de que grande parte do comportamento humano é de natureza instintiva. A idéia tinha sido abandonada durante muito tempo pela psicologia, devido a influéncia do empirismo. Os filésofos empiristas tinham concebido a mente humana como uma tabula rasa que vai se enchendo de contetidos medida que a pessoa vai adquirindo mais experiéncia. © mecanismo que explica 0 desenvolvimento mental & a associagio de idéias, A pessoa percebe que ha eventos que acon tecem relacionados. Com base nessas abordagens, nio se admitiam explicagdes do comportamento ba- seadas no instinto ou na heranga genética. As teorias da evolugio representaram, entretanto, um desafio a tais postulados, ja que permitiram utilizar conceitos como o de instinto sem entrarem em conflito di- reto com os principios do empirismo (veja 0 Capitulo 1), Nesse contexto, surgia um interesse crescente pelo estudo das bases instintivas do comportamento, que foi favorecido pelo enorme desenvolvimento alcangado pela psicologia animal. Durante a segunda metade do século XIX, autores como Spalding ou Romanes realizaram alguns experimentos que mostravam que os animais exibiam determinados comportamentos, apesar de haverem sido privados de qualquer contato com © mundo exterior. Esses resultados, que significavam que os animais nasciam com alguns padres de conduta predeterminados, foram transferidos muito rapidamente para a psicologia humana. William James, por exemplo, reuniu os Capitulo 2 A Consolidacio da Psicologia Socal como Disciplina Independente principais resultados da psicologia animal britinica em seus Principios de psicologla (1890), onde apoiava Autilizagdo do instinto como explicagio do comportamento humano. Mas do ponto de vista da psico- Jogia social, o principal impulso para o desenvolvimento da teoria dos instintos foi a obra do psicélogo britinico William McDougall (1871-1938), autor do primeiro manual de psicologia social escrito por tum psicélogo: An introduction to social psychology (1908). O manual de McDougall esté dentro da tradigio evolucionista da psicologia britinica. A concep- io da psicologia social que dele deriva é marcadamente individualista e biologicista. Para McDougall, 0 objetivo da psicologia social é a anélise das bases instintivas do comportamento social, isto é: Mostrar como, dada as tendéncias e capacidades naturais da consciéncia individual, toda a complexa Vida das sociedades se vé modelada por aquelas, reagindo no curso de seu desenvolvimento e influindo no individuo. (McDougall, 1908, p. 3) Embora o objetivo do livro fosse formular uma teoria sobre os instintos, o que se oferece realmen te é um conceito e uma classificagio dos principais instintos humanos. Opondo-se forma como se vinha definindo 0 instinto até aquele momento, McDougall defende que ele é algo mais do que uma tendén- cia inata para realizar certa classe de movimentos. Para McDougall, o instinto tem trés componentes: ‘componente cognitive, definido como a tendéncia a prestar atengio a determinados objetos, © componente ‘nocional, definido como a tendéncia a experimentar uma rea¢io emocional determinada diante de um objeto, ¢ 0 componente comportamental, definido como a tendéncia a reagir de uma maneira especifica. O instinto, portanto, é definido como: --uma disposigao herdada ou inata que determina que seu possuidor perceba e preste atencio a objetos de certa classe, que experimente uma excitagio emocional peculiar na hora de perceber esse objeto, ¢ que reaja a respeito dele de uma maneira particular ou, pelo menos, que experimente um impulso para essa ago. (McDougall, 1908, p. 25) ‘Um dos resultados do interesse suscitado pelo estudo da conduta instintiva foi a proliferagio, cada ver maior, das classificagdes de instintos. McDougall criticou essa situagao, destacando que “postular levianamente um néimero variado e indefinido de instintos humanos é uma forma ficil e barata de re- solver problemas psicologicos e é um erro, ndo menos grave € comum que 0 erro contrério, de ignorar todos os instintos” (1908, p. 88). Na classificagio proposta inicialmente por McDougall incluiam-se sete instintos primérios que estavam associados a outras tantas emogdes primérias: fuga/medo, repulsio/ desgosto, curiosidade/surpresa, luta/ira, autoassertividade/jdbilo, autodegradacio/degradacio ¢ instinto paternal/ternura. Além dos instintos primarios, ele propunha a existéncia de quatro disposigdes instin- tivas de segunda ordem: reprodugio, gregarismo, aquisi¢io e construgio, relevantes nio para a origem das emogdes, mas para a vida social da pessoa. Por tltimo, existiam pseudo-instintos que exerciam uma influéncia significativa no processo de interagio entre as pessoas: imitagio, sugestio e simpatia. Em relagio a metodologia, as idéias de McDougall eram um reflexo dos principais tragos da psi- cologia britinica do inicio do século, contexto no qual se formou e onde desenvolveu seus principais tmabalhos. Rejeitando abertamente os métodos de pesquisa subjetivos utilizados pela psicologia, como a PSICOLOGIA SOCIAL * PERSPECTIVAS PSICOLOGICAS E SOCIOLOGICAS - William McDougall (1871-1938) William McDougall nasceu em Lancashire, Inglaterra, em 22 de junho de 1871. Aos 19 anos havia completado seus estudos em ciéncias na Universidade de Manchester, O fato de pertencer a uma familia rica Ihe permitiu continuar sua formacao, primeiro na Universidade de Cambridge, onde cursou estudos de fisiologia e, posteriormente, ‘em um hospital de Londres, onde passou trés anos estudando medicina. Sua forma- ‘¢do académica se completou com uma permanéncia de um ano no laboratério de psicologia de G. E, Mueller. Durante seu periodo de formagao, McDougall também se interessou pela antropologia, fazendo parte em 1898 de uma expedicao a Indonésia e a Bornéu organizada pela Universidade de Cambridge. ‘McDougall iniciou sua carreira académica como diretor do laboratério de psicologia da University College de Londres, onde passou quatro anos, ¢ depois comecou a ministrar aulas nas universidades de ‘Cambridge e Oxford. Como muitos pensadores ingleses de sua época, ele esteve em contato com as teorias dda evolugao que floresceram no final do século XIX. McDougall encontrou nos postulados de Lamarck, es- pecialmente quanto a hereditariedade das caracteristicas adquiridas durante a vida, a base para suas idéias. Em seu livro An introduction to social psychology (1908), considerado 0 primeiro manual de psicologia social escrito por um psicdlogo, sente-se fortemente a influéncia das teorias evolucionistas. Nesse trabalho, ‘McDougall defende a idéia de que grande parte do comportamento social 6 de natureza instintiva, uma idéia que teria uma ampla acolhida na psicologia social da época. Desse perfodo so também suas obras Physiological psychology (1905), e Body and mind (1911), nas quais desenvolveu sua teoria hérmica do comportamento, baseada no cardter teleol6gico e propositivo da conduta, Em 1920 se muda para os Estados Unidos para vincularse a Universidade de Harvard, onde permaneceu até 1928. Embora McDougall chegasse universidade carregando a reputacdo da grande influéncia que introspeccio, McDougall defendeu a aplicagio & psicologia humana dos métodos objetivos que vinham sendo utilizados no estudo da psicologia animal, Sempre foi partidario da experimentagio. De fato, seus primeitos trabalhos, realizados no campo da psicofisiologia, foram experimentais, e durante as etapas posteriores de sua carreira desempenhou papel destacado na institucionalizagio da psi- cologia experimental britinica, Apesar disso, seu trabalho foi muito especulativo. Como destaca Boakes (1989, p.385),sua Social psychology nao contém um {nico exemplo de trabalho sistemitico partindo dos cestudos da conduta animal até chegar & andlise de um instinto humano em particular. Pelo contritio, sua lista de instintos primfrios contém um indice de especulagio tio alto diante dos dados concretos como o de qualquer um de seus predecessores. Os tnicos avangos na diregio que McDougall dizia ter tomado se produziram na breve descri¢ao dos aspectos aparentemente compariveis da conduta animal, Nio parece que McDougall considerasse que cle proprio nio estaria procurando seletivamente exemplos que confirmassem as crengas jé preestabelecidas; ou se as descrigdes do com- portamento animal nio estariam distorcidas pelas concepgdes prévias do observador sobre a psicologia humana. {A proposta de McDougall de fundamentar a psicologia social nas bases da teoria dos instintos teve, a principio, uma boa acolhida, ¢ classificagio dos instintos que propés seguiram-se muitas outras, a maioria das vezes contririas entre si. A influéncia das teorias evolucionistas e a difusio, naquela época, Capitulo 2A Consolidacdo da Psicologia Social como Discplina Independente avia tido sua teoria dos instintos, sua chegada a Harvard foi marcada pela forte rejeic&io que suas idéias im entre os psicdlogos behavioristas, que naquela época dominavam 0 panorama da psicologia te-americana. No entanto, pouco depois tomou as rédeas da Faculdade de Psicologia e se converteu 0 principal critico do behaviorismo, que considerou incapaz de abordar os problemas fundamentais da onduta humana. A idéia de McDougall de que grande parte do comportamento humano é herdado se nfrontava com ambientalismo dos behavioristas, que destacavam que a maior parte do comportamen- é ruto do aprendizado. A rejeicao de McDougall a0 behaviorismo ficou bem exemplificada no debate alico que manteve com Watson em 1924, publicado em 1929 com o titulo The battle of behaviorism, e na Espanha foi registrado como um anexo da obra de Watson El conductismo. No primeiro ano que 1u em Harvard publicou The group mind (1920), onde utiliza outro conceito polémico para a psico- gia da epoca, o de mente grupal. Com esse trabalho, McDougall se tornaria de novo o alvo das criticas dos behavioristas, representados essa vez pelo psicdlogo social Floyd Allport. iridas durante a vida, orientou seus interesses pela eugenia. Acreditava que cada nacdo devia ter a aistocracia intelectual, e por isso Considerava que os estudos eugénicos eram da maior importinci s & procriagao, Chegou inclusive a escrever ao imperador do Japo, assegurando que as riticas eugénicas praticadas nesse pafs seriam um exemplo para a humanidade. ~ Pelo fato de as teorias de Lamarck nunca poderem ser provadas, as hipdteses de McDougall também erderam influ€ncia. Isso, somado ao auge do behaviorismo durante as décadas seguintes, explica o es- imento em que cairam as teorias do pensador britanico. Em 1928 abandona Harvard ¢ se instala na dade de Duke, em Durham, onde permaneceu até sua morte em 1938. éa teoria psicanalitica de Freud sio alguns dos fatores que explicam 0 sucesso inicial das teorias dos ins- tintos. Um exemplo da ampla acolhida do conceito na psicologia social é a intervengio de Dewey na American Psychological Association, afirmando que a psicologia social deveria ser fundada sobre a base a teoria dos instintos. Também constitui um exemplo da ampla acolhida da proposta de McDougall num primeiro momento o fato de ter sido aceita até por alguns dos psicdlogos sociais procedentes da sociologia, os quais introduziram algumas modificagdes, mas nao abandonaram conceito. Um exemplo do eco das idéias de McDougall esti na atengio recebida de diferentes cientistas sociais da época. Mead, por exemplo, fez uma resenha do livro de McDougall para o Psychological Bulletin, em 1908, ¢ incluiu uma ampla reflexio sobre o papel do instinto na psicologia social em seu artigo “Social psychology as counterpart of physiological psychology” (1909), onde criticou a incapacidade da teoria de McDougall para dar conta da origem social da consciéncia. O desenvolvimento das teorias dos instintos coincidiu com © movimento da eugenia, que teve também sua origem nas teorias evolucionistas. © movimento da eugenia visava 4 melhoria da espécie humana mediante a interven¢io no processo de selecio. Os defensores da eugenia propunham pér em pritica as medidas que favorecessem a reproducio dos mais aptos e dificultassem a dos menos aptos. O movimento da eugenia se iniciou no final do século XIX tanto na Gri-Bretanha quanto nos Estados Unidos, ¢ nas primeiras décadas do século XX tinha aleangado uma grande forca. Nos Estados Unidos, PSICOLOGIA SOCIAL * PERSPECTIVAS PSICOLOGICAS € SOCIOLOGICAS © movimento acabou se tornando um dos fundamentos do racismo. Evidentemente, as teorias dos ins~ tintos no tinham por que envolver a defesa das abordagens da eugenia. Entretanto, alguns teéricos do instinto também as apoiaram. Este foi, por exemplo, 0 caso de McDougall, cujas idéias racistas estio refletidas no livro Is America safe for democracy? (1921). ‘Apesar do sucesso inicial, tanto o movimento da eugenia quanto as teorias dos instintos acabaram se tornando alvo de numerosas criticas até que, finalmente, foram rejeitadas. A rejeigio da teoria dos ins- tintos, assim como a de outras explicagdes do comportamento baseadas em fatores de natureza inatista (raca, heranga genética etc), foi reforgada pelo fato de a psicologia entrar em uma nova fase de predomi- nio das idéias ambientalistas. O principal resultado da nova etapa foi o behaviorismo. John Broadus Watson e as origens do behaviorismo Em 1913, cinco anos depois da publicagio do manual de McDougall, foi publicado o artigo de John Broadus Watson (1878-1958) “Psychology as the behaviorist views it”, que pode ser considera~ do 0 inicio formal do behaviorismo, uma nova corrente tedrica da psicologia, que representou uma mudanga radical tanto de direc como de identidade da disciplina, O objetivo principal do programa behaviorista foi tornar a psicologia uma ciéncia objetiva, o que envolveu uma redefinigio tanto do ob- Jeto de estudo quanto dos métodos de pesquisa. A proposta sobre a qual se articulou 0 behaviorismo foi © abandono da consciéncia como objeto de estudo da psicologia, e sua substituigio pelo comportamento observivel. Do ponto de vista metodol6gico, os behavioristas conservaram 0 método experimental ado tado pela psicologia como proprio durante a etapa anterior, mas rejeitaram a introspecgZo ¢ enfatizaram a necessidade de técnicas objetivas direcionadas 4 medigio do comportamento observavel. Finalmente, © programa behaviorista tratava de fazer da psicologia uma ciéncia aplicada, interessada na predigao e no controle do comportamento. Quando foi publicado 0 artigo de Watson, a psicologia jé estava cami- nhando na direcio do behaviorismo. ‘Um dos fatores que propiciaram 0 surgimento do behaviorismo pode estar no desenvolvimento do positivismo, que deu lugar a uma preocupacio crescente dos psicdlogos da época para adaptar-se a0s ctitérios de objetividade préprios das ciéncias naturais. Nesse contexto, surgia uma rejeigo, cada ver maior, a0 método introspectivo, acelerada pelas contradigdes profundas advindas da pesquisa psicol6gica € da dificuldade de resolver as polémicas geradas pelos resultados da experimentagio. Considerando que tanto © proceso de introspec¢io quanto seu objeto nao eram diretamente observaveis, era dificil contrastar de forma objetiva seus resultados, © que foi usado como argumento para questionar a validade desse método. Como destaca Gondra (1992), tanto a introspecgo quanto a propria nogio de consciéncia tinham entrado em crise em 1912, um ano antes de se publicar o artigo de ‘Watson. Por outro lado, nos Estados Unidos surgiu, conforme mencionado no capitulo anterior, o pragma- tismo, considerado um novo enfoque do estudo da mente. Aos psicélogos pragmatistas no interesava 0 estudo da estrutura da mente, mas o estudo de suas fizngSes. Em 1868 publicou-se um artigo de Peirce, “Some consequences of four incapacities”, onde eram eliminados alguns mitos sobre a mente. Um de- les era a capacidade de introspeccio, que surge do pressuposto de que podemos obter conhecimentos a partir do exame de nossa consciéncia. Todo © conhecimento do mundo interno vem, segundo Peirce, Capitulo 2 A Consolidacio da Psicologia Social como Discipina independent do raciocinio hipotético de nosso conhecimento de fatos externos.A certeza individual ndo garante ne- nhum conhecimento objetivo. A idéia de que a psicologia devia abandonar o uso da introspecgio foi reforgada também pelo enorme desenvolvimento da psicologia animal e da psicologia comparada. Ambas eram psicologias ob- jetivas, no sentido de que somente estudavam processos diretamente observiveis. Para estudar 0 com- portamento dos animais nio era necessiria a utilizagZo de técnicas de pesquisa subjetivas, como a intros~ pecrio, ou 0 uso de conceitos mentalistas, como o de consciéncia, Mas, apesar de se constatar que as mudangas que resultariam no behaviorismo jé estavam em ges- taco havia algum tempo, é inegivel que, de um ponto de vista formal, a primeira formulagio dos principios do behaviorismo como paradigma cientifico da psicologia é encontrada no artigo de Watson “Psychology as the behaviorist views it” (1913). O eixo ao redor do qual se estruturava essa proposta era adefesa de uma psicologia objetiva.A objetividade radical de Watson o levou a propor uma mudanga do ‘objeto de estudo da psicologia.A consciéncia nao podia ser aceita como objeto de estudo de uma cién- cia objetiva, ja que “Nunca tinha sido vista, tocada, farejada, provada ou movida. E uma mera suposi¢io, com possibilidades tio escassas de ser demonstrada quanto 0 antigo conceito da alma” (1913, p.289).A ‘mesma sentenga era vilida para outros conceitos subjetivos, como “sensagio, percep¢io, imagem, desejo, finalidade, pensamento emogio, em suas concepgdes originais”.A proposta de Watson era que a psico~ logia se concentrasse no estudo do comportamento observavel. © comportamento era importante em simesmo, sem necessidade de ter que inferir dele a existéncia de processos intangiveis. Tendo como exemplo os trabalhos que se desenvolviam no ambito da psicologia animal, em que nio era necessirio inferir a existéncia de estados de consciéncia nio observaveis, Watson propds que também a psicologia humana se limitasse a0 estudo do comportamento, Sem chegar a negar a existén- cia da consciéncia, ele propés que ela fosse ignorada pela psicologia que, desse modo, comecou a deixar de ser a ciéncia da mente ou da consciéncia para converter-se na ciéncia do comportamento, Nio era a primeira vez que se reivindicava para a psicologia o estudo do comportamento. Um ano antes, em 1912, McDougall publicara o livro Psychology, the study of behavior, no qual a psicologia era definida como cién- cia do comportamento. Entretanto, a abordagem de McDougall nio foi aceita pelos behavioristas norte- americanos, jé que o comportamento era definido em termos de intencionalidade. Para os behavioristas, 4 psicologia ndo pode deter-se em explicagdes do comportamento baseadas na intengio ou em outras forgas de natureza interna. Pelo contrario,a tarefa da psicologia é explicar o comportamento recorrendo 4 fatores ambientais alheios & pessoa. Do ponto de vista metodol6gico, a objetividade behaviorista representou uma rejei¢io radical a introspecao como método vilido em psicologia e a substituicio desse método pela observacio ea experimentagio objetiva. Segundo Watson, o critério geral de validade para qualquer método de pes quisa cra que medisse unicamente o observavel. Nesse sentido, aceitava-se a validade dos testes e dos telatérios verbais, sempre que fossem utilizados para medir resultados objetivos e comportamentais ¢ nio para inferir deles processos mentais. O principal objetivo de Watson depois de seu artigo inicial foi © estudo do proceso de aprendizagem, que foi impulsionado pela incorporagio dos trabalhos de Ivan Pavlov. No condicionamento clissico pavloniano, o aprendizado é conseqiiéncia da associagio de um estimulo incondicionado (El) a um estimulo inicialmente neutro que, por associagio com o El, torna- se um estimulo condicionado (EC) e da lugar a uma resposta condicionada ou RC. No experimento Be PSICOLOGIA SOCIAL * PERSPECTIVAS PSICOLOGICAS E SOCIOLOGICAS john Broadus Watson (1878-1958) John Watson nasceu na Carolina do Sul em 1878, em uma familia com poucos recursos econémicos. Em virtude de o pai ter abandonado 0 lar familiar, a educacao de Watson foi assumida completamente por sua mae, que tentou orienté-lo para 0 sacerdécio. Aos 16 anos comecou seus estudos na Universidade de Furhan, onde permaneceu até 1899. Em 1900 ingressou na Universidade de Chicago para estu- dar filosofia, simultaneamente com a realiza¢ao de diferentes trabalhos. Embora estudasse filosofia com John Dewey, sua verdadeira vocacao surgiu nos cursos de psicologia de James R. Angell, com quem se doutorou em psicologia experimental. Depois de graduar-se, em 1903, trabalhou na Universidade de Chicago até 1908, ano em que obteve uma vaga de professor na Universidade John Hopkins, onde foi nomeado diretor do la boratério de psicologia. Poucos anos depois, definiria os rumos pelos quais orientaria seu pensamento. Os resultados veriam 3 luz pela primeira vez em seu artigo de 1913, “Psychology as the behaviorist views it”. 3s tragos principais que caracterizaram seu pensamento foram a rejeicio da consciéncia como objeto de estudo da psicologia e a busca de métodos de medida objetivos. “A psicologia necessita tanto da introspec- (do quanto a quimica ou a fisica”, escreveu Watson em uma ocasido, negando a possibilidade de abordar a anilise da consciéncia cientificamente, e legitimando a utilizacdo da pesquisa no estudo da conduta. A unidade basica da conduta era, a seu ver, o reflexo sensorial-motor ou, simplesmente, a associacdo que se estabelecia entre um estimulo e uma resposta. clissico de Pavloy, realizado em 1908, ele fazia soar um sino (EC) e imediatamente depois mostrava um prato de comida (El) a um cio. Depois de uma série de repetigdes, o animal associava 0 som com a presenga da comida, aprendendo a salivar (RC) diante do som do sino ¢ na falta da comida. Se antes a resposta incondicionada (RU) s6 se produzia diante da presenga do El, agora ela se tornava uma resposta condicionada (RC) provocada pela associagio entre 0 EC e o EI. Nos anos seguintes 4 Primeira Guerra Mundial, Watson aplicou esse esquema de aprendizagem por condicionamento clissico num experi- mento realizado em colaboragio com sua ajudante Rosalie Rayner, com um bebé de 11 meses, Albert B.Nesse experimento se comprovou que 0 medo podia ser aprendido por condicionamento cléssico. ‘A associacio entre um ruido provocado pelo golpe de um martelo sobre uma barra de metal (El) € a presenga de um rato branco (EC), que previamente nao gerava nenhuma resposta de medo, acabou por provocar, depois de sucessivas repetigdes, uma resposta emocional de medo (RC) bastando apenas a presenga do animal. O medo do rato mostrado pelo pequeno Albert se generalizou a outros animais, como um coelho € um cio, € a outros objetos, como uma mascara de Papai Noel. AAs pesquisas de Watson tiveram como finalidade enunciar leis gerais sobre 0 aprendizado expressas em termos objetivos. Sem negar a existéncia de fendmenos internos nio-observiveis, comparou-os, em concordincia com os objetivos de seu programa, aos que sio diretamente observaveis. Quando estendeu 6s resultados de suas pesquisas a0 aprendizado humano, comegou a traduzir conceitos mentalistas em termos comportamentais. Dessa maneira, 2 imaginacZo ¢ o pensamento se transformaram em conduta verbal e motora,¢ 0 sentimento em atividade glandular. Suas contribuigdes a0 desenvolvimento tedrico da psicologia da aprendizagem foram, entretanto, escassas. Como destaca Yela (1980, p. 154), “Watson teve tempo apenas para enunciar 0 programa da Capitulo 2 A Consolidacio da Psicologia Soctal como Disciplina Independente Pesquisando 0 tipo de respostas que determinados estimulos desencadeavam, ele considerava que se dia planejar uma sociedade melhor. Seguindo os principios do behaviorismo clissico de Ivan Pavlov, Ws a emitir respostas de medo a Albert, um bebé de 11 meses, demonstrando que era possivel con- ionar as emoces. “Durante 0s 14 anos que permaneceu na Universidade John Hopkins, Watson manteve uma intensa vidade de pesquisa, que compartilhou com um importante trabalho institucional, Em 1915, foi no- neado presidente da American Psychological Association, e de 1916 até 1927 foi diretor da Journal of perimental Psychology. Sua carteira académica se interrompeu prematuramente devido ao escdndalo ado pela relagao com sua auniliar de pesquisa Rosalie Rayner, com quem se casou apés divorciar-se sua primeira esposa, Surpreendentemente, aquele que 10 anos antes fora considerado 0 fundador do fiorismo, teve que renunciar & Universidade na metade de sua vida devido a pressdes sociais. Watson ‘ransferiu para Nova York e comecou a trabalhar para a agéncia de publicidade J. Walter Thompson, de realizou alguns estudos sobre publicidade e técnicas de motivagao para o consumo. Em 1935 foi eado executivo da William Esty Company, onde permaneceu até seu afastamento em 1945. Depois sua aposentadoria, ele se enclausurou em uma pequena granja de Connecticut, onde morou até sua em 1958, Um ano antes, suas contribuigdes a psicologia receberam o reconhecimento da American chological Association (APA). Seu legado esta registrado em varios livros, entre os quais se destacam chology fom the standpoint of a behaviorist de 1919 e Behaviorism de 1924. nova psicologia, iniciar uma tradugio apressada dos conceitos mentais em termos fisicos (por exemplo, 0 pensamento nao seria mais do que uma linguagem subvocal) e realizar uns poucos experimentos, alguns deles especialmente valiosos”. A influéncia de Watson na evolugio posterior da psicologia é inequivoca. Embora suas contribui- ges tedricas para o estudo da aprendizagem tivessem sido poucas, sua proposta programitica foi ampla- mente acolhida pelos psicélogos norte-americanos da época. Como destaca Boring (1950), 20 anos depois da publicagao do artigo de Watson (1913), todo mundo nos Estados Unidos era behaviorista. Uma das conseqiiéncias imediatas do behaviorismo foi o advento de um novo perfodo ambientalista em psico- dade dos conceitos inatistas (instintos, tragos hereditarios logia, em que se comegou a questionar a vs etc.) para explicar 0 comportamento humano, Depois de um periodo de ampla aceitagio, a psicologia social de McDougall ¢ de outros tedricos do instinto comegou a ser objeto de duras criticas.A anilise de algumas delas sero assunto dos pariigra~ fos seguintes. As criticas as teorias dos instintos Como ji foi discutido, a proposta de McDougall de fiundamentar a explicago do comportamento no instinto teve, no inicio, uma boa acolhida e foram numerosos os autores que elaboraram teorias desse tipo. Cada um partia de uma definigao de instinto diferente e propunha uma relago de instintos dife- rente. Como dizia Miller (1972, p. 341), “nenhum estudante era capaz de absorver as sutilezas de matéria tio ampla e emaranhada; era mais ficil inventar uma classificagio propria do que tratar de PSICOLOGIA SOCIAL * PERSPECTIVAS PSICOLOGICAS E SOCIOLOGICAS compreender a do outro”, Desse modo, as relagdes de instintos proliferaram até provocar uma situagio tio absurda como a que descrevia Bernard (1924) em seu livro Instinct: study in social psychology. Depois de uma revisio de todas as teorias do instinto que naquela época proliferavam, Bernard afirmava que nos primeiros 20 anos do século, apareceram 400 livros ou artigos sobre 0 assunto, originando a proposta de quase 6 mil tipos de instintos diferentes. Entre os exemplos encontrados por Bernard destacam-se 0 seguintes: instintos estéticos (instinto de uma menina ajeitando 0 cabelo), instintos alfrulstas (0 desejo de libertar os cristios do sultio), instintos religiosos (instinto inglés de entristecer-se aos domingos), instinto social (0 dos socialistas diante das relagdes internacionais), instinto anti-social (0 dos mexicanos de classe alta que se consideravam diferentes dos da classe baixa) (Bernard, 1924, pp. 172-220). E ficil compreender que as criticas 4s teorias dos instintos no tardassem em aparecer. Seu inicio formal foi o artigo de Dunlap (1919) “Are there any instincts?”. O artigo era uma critica 4 confusio conceitual existente em torno do termo, Dunlap destacou a necessidade de distinguir entre a expres so reagio instintiva (resposta fisiolégica no aprendida) € 0 conceito de instinfo como © utilizava, por exemplo, McDougall, para referir-se 4s classes de comportamento voltadas a um propésito comum (uso teleolgico).A proposta de Dunlap era que, do ponto de vista teleoldgico, os instintos deviam ser consi- derados simples etiquetas para agrupar comportamentos, auxiliando a classificagio de condutas. Dunlap se opunha 4 tendéncia da psicologia social de tirar conclusdes sobre a natureza das atividades descritas como instintos. A esse artigo seguiram-se muitos outros nos quais se questionava a validade da utilizagio do con- ceito de instinto em psicologia. Uma das criticas mais bem formuladas no ambito da psicologia social foi, como vimos,a de Bernard (1924), um socidlogo vinculado & Escola de Chicago, cujas contribuicdes 4 psicologia social analisaremos mais adiante. Uma das conclusdes de Bernard era que 0 conceito de ins- tinto se convertia muitas vezes em uma espécie de caldeirdo de idéias vagas e indefinidas sobre as causas ou as relacdes das atividades. Os autores, incapazes de explicar com clareza um fendmeno particular do comportamento sobre bases puramente objetivas, recorrem ao termo instinto e o utilizam como uma palavra magica, evitando assim a responsabilidade de aventurar uma explicacao. A raca foi outro conceito semelhante, algo que serviu para substituir uma explicagao completa do fenmeno social em termos de fatos cientificamente com- provados. (p. 172) Dessa maneira, uma discussio que, em principio, esteve centrada na validade do conceito de instin- to, caiu logo em um debate no qual o tema central era a importincia relativa da natureza e do ambiente na determinagio do comportamento. A polémica sobre o instinto, ao lado da critica da teoria racial e dos testes mentais, teve uma importincia decisiva para acelerar a tendéncia ambientalista da psicologia norte-americana que havia sido iniciada com o behaviorismo (veja Boakes, 1989). proprio Watson também participou, embora tardiamente, na polémica sobre o instinto. Ainda que em 1919 tivesse proposto uma rela¢io de instintos, os resultados que posteriormente obteve em suas pesquisas com recém-nascidos levaram-no a adotar uma posigio radicalmente ambientalista, re- Jeitando a existéncia dos instintos humanos. Em seu livro Behaviorism, publicado em 1924, afirmava que todas as pessoas tém a mesma heranca biol6gica, ¢ as diferengas individuais sio 0 resultado do aprendizado precoce. A idéia o levou a rejeitar diretamente qualquer explicagio inatista, tanto basea- da nos instintos quanto relativa 4 eugenia. Um aspecto central no debate de Watson mantido com os Capitulo 2 Consoldacio da Psicologia Socal como Disipina Independente BY __inatistas foi a pouca evidéncia empirica aportada para apoiar suas afirmagdes. O famoso parigrafo do livro Behaviorism: Eu ousaria afirmar algo mais: com uma diizia de meninos sadios, bem formados, e meu préprio mun- do especifico para educé-los, posso garantir que escolhendo qualquer deles ao acaso e formando-o, ele chegard a ser o tipo de especialista que eu me propuser: doutor, advogado, artista, comerciante ¢ até mendigo e ladrao, independentemente de seus talentos, afeicées, tendéncias, capacidades, vocacdes ou a raca de seus antepassados. foi muito reproduzido, mas com a importante omissio da frase que se seguia imediatamente:“Vou além dos fatos ¢ 0 admito, mas os que defendem o contrario fizeram o mesmo, € 0 estiveram fazendo por mi- Ihares de anos”. (Watson, 1924, p. 104) Em 1924, a teoria dos instintos de McDougall se tornou o principal alvo das criticas de Watson {ambos participaram de um debate ptiblico sobre o tema nesse mesmo ano) e dos behavioristas. © fato de muitos psicélogos da época identificarem a psicologia social com as numerosas teorias dos instintos que haviam proliferado se converteu em um sério obsticulo para o desenvolvimento posteriot da disci- plina. Como destaca Boakes (1989, p. 442),"'com a rejeigdo da teoria do instinto também, inadvertidamente, foi rejeitada a idéia de que o homem é um ser social cuja mente se desenvolve a partir das interagdes que mantém com outras pessoas". Como veremos mais adiante, sem negar a existéncia do instinto, os Psic6logos sociais da Escola de Chicago se inclinaram para as explicagdes do comportamento nas quais se destacava sua determinagdo social. No contexto da psicologia, entretanto, foram os psic6logos beha- Vioristas os que defenderam uma posicio ambientalista. A mente grupal Pouco depois do inicio das polémicas sobre o instinto, McDougall publicou um novo livro, The roup mind (1920), que apresentou como uma continuagio do manual de 1908, onde realizou outra proposta polémica: explicar os processos sociais recorrendo ao conceito de mente grupal. Adotando uma posigio realista, McDougall atribuiu 4 mente grupal uma entidade psicoldgica independente daquela de seus membros. Ainfluéncia que exerce 0 meio sobre 0 individuo como membro de um grupo organizado nao é nem soma de seus membros individuais nem algo cuja existéncia nio seja mental. £ 0 grupo organizado como tal, cuja existéncia esté nas pessoas que o compdem, mas que nao existe na mente de nenhuma delas, e que tio poderosamente influi sobre cada um deles por ser algo mais poderoso, mais globalizan- te do que a simples soma desses individuos. (McDougall, 1920, p. 12) A contribuigio de McDougall ao estudo do grupo social se divide em trés partes. Na primeira, le realiza uma anilise dos processos que explicam a vida mental dos grupos, na segunda, apresenta uma chsificagio dos principais tipos de mente grupal e na terceira ele descreve suas caracteristicas diferen- ciadoras. Alguns autores destacaram a existéncia de certas semelhangas entre as abordagens de McDougall e as de Le Bon (veja Carpintero, 1995; Jackson, 1988). Concretamente, McDougall propée que a influéncia PSICOLOGIA SOCIAL + PERSPECTIVAS PSICOLOGICAS E SOCIOLOGICAS grupal se exerce, basicamente, mediante um processo de indugio direta da emogio, equivalente a0 con~ tégio que mencionava Le Bon. A integragio entre 0 conceito de mente grupal e a teoria dos instintos resulta dificil, apesar de te- rem sido apresentadas por McDougall como duas partes de um mesmo projeto. A defesa de uma teoria instintivista e de uma teoria do comportamento coletivo lembra a separacio de Wundt entre a psicolo- gia individual e a Vilkerpsychologie. O objetivo era articular os dois pélos em que se baseava sua anilise do comportamento: os instintos ¢ a coletividade. McDougall acentuari cada vez. mais suas diferengas com relagio aos behavioristas a0 evoluir para uma concepgio propositiva ou intencional da conduta humana. Para ele, todo comportamento é teleolégico, o que significa que tende para uma meta ou fins determinados. Essa concep¢io motivacional da atividade de todo o organismo o levou a definir sua psi- cologia como teoria hérmica, Voltando ao seu conceito de mente grupal, a influéncia deste nao teve tanta importincia, mas sim © fato de que logo se tornaria alvo de diversas criticas, entre as quais se destacam as de Allport em seu li- vvr0 Social psychology de 1924. Um ano antes, em 1923, Allport publicara um artigo onde se referia 4 no- do de McDougall de mente gnpal como um exemplo do que ele denominava falécia grupal. No artigo, publicado no The American Journal of Sociology, Allport criticava a posigio de McDougall por substituir © individuo pelo grupo como principio explicativo.A seu ver,a origem de toda realidade social esta nos individuos que a formam, de maneira que nio existe nada nos grupos que nio se encontre nos indivi- duos, ¢ no ha outro modo de explicar 0 comportamento grupal que nio seja a andlise dos principios que explicam o comportamento individual. ‘A posigio de Allport pode ser classificada hoje como relacionada ao individualismo metodol6gico. Diante da énfase no coletivo, caracteristica da sociologia influenciada por Durkheim, os partidérios do individualismo metodol6gico defendem a idéia de que a sociedade s6 pode ser explicada pelo com- portamento dos individuos que a constituem. Logicamente, as posicdes de Allport encontraram eco na psicologia social. Como veremos adiante, um dos tragos que provocaram a critica de diferentes psicd- logos sociais durante a década de 1970, ¢ que originaria uma importante crise, refere-se precisamente 20 psicologismo que caracterizava uma parte importante da psicologia social da qual Allport é um de seus primeiros expoentes. O texto de McDougall e as eriticas de Allport & falécia grupal se tornariam, portanto,o eixo de uma polémica que no somente atingiu cientistas sociais da época, mas também, posteriormente, incluiria 05 psicdlogos sociais da linha gestaltista, como Muzafer Sherif e Solomon Asch. Em suma, 0 texto de McDougall The group mind reavivaria e seria centro da polémica entre quem enfatizava os determi- nantes grupais ¢ coletivos da conduta e aqueles que viam no individuo a tnica origem de toda forma- 40 social. Enquanto McDougall acreditava que o grupo influencia os individuos e € algo mais que a sua soma, para Allport nio existia nada nos grupos que nao estivesse previamente nos individuos e, em conseqiiéncia, nio podia existir uma psicologia do grupo diferente de uma psicologia dos individuos. B na anilise dos comportamentos individuais onde devemos, segundo Allport, encontrar as causas da suposta infiuéncia do grupo sobre os individuos. A mente grupal nio mais do que uma metifora que no ajuda a compreender os principios explicativos do comportamento. Tais principios, em sua opiniio, tinham de ser encontrados na teoria behaviorista, assunto do nosso préximo capitulo. Capitulo 2A Consolidacdo da Psicologia Social como Disciplina Independente Floyd Allport e a introdugao do behaviorismo na psicologia social A introdugio dos principios do behaviorismo na psicologia social foi feita por Floyd Allport (1890-1978). Partindo de uma concepgio claramente comportamentalista, Allport (1924) definiu a psicologia social como uma especialidade da psicologia dedicada ao estudo do comportamento social. Embora em alguns manuais da historia da psicologia ele esteja incluido no grupo dos behavioristas pu- 1s (veja Garcia Vega e Moya, 1993), em outros textos ele € definido como um behaviorista heterodoxo, opositor do radicalismo de Watson (veja Munné, 1989). Na verdade, a caracterizagio do behaviorismo de Allport varia se considerarmos sua posi¢io diante do debate consciéncia/comportamento, ou a posi cio que assumiu no debate psicologia social individual/coletiva, A posigio de Allport no debate consciéncia/comportamento esti mais préxima do behaviorismo de Edwin Bissel Holt (1873-1946), de quem foi aluno, do que do behaviorismo radical de Watson. Com efeito, Allport (1924) admitia 0 conceito de consciéncia e a considerava uma parte necessiria do estudo do comportamento, Tampouco mostrou uma rejeicio radical da introspeccZo:“A introspecgio dos estados de consciéncia nio s6 é interessante por si mesma, mas também necesséria para um relato completo... relat introspectivo nos ajudari em nossas interpretagdes e as complementaré com uma parte descritiva” (p.3).E necessitio destacar, entretanto, que essa aceitagio da consciéncia era meramente formal. Para Allport, a consciéncia tem um papel absolutamente secundario no estudo do comportamen- to, jé que em nenhum caso pode ser utilizada como mecanismo explicativo deste. Por outro lado, apesar do papel que deu a consciéncia de certo modo o afastar do radicalismo de Watson, seu reducionismo biolgico (0 comportamento é explicado por processos fisiol6gicos ¢ sua aquisi¢ao est regulada pelas Ikis do condicionamento) 0 aproxima claramente das posigdes de Watson, Porém, é na sua contribuigio para o debate da psicologia social individual/coletiva que a posi¢ao de Allport se torna mais radical. Opondo-se abertamente & concepgio da psicologia social que emergia dos primeiros manuais, concentrados no estudo do grupo, Allport questionou a validade desse conceito € defendeu uma psicologia social voltada ao individuo, Para Allport (1924), 0 grupo nio pode ser con- rado uma entidade psicolégica independente, mas unicamente um niimero de individuos diferentes que reagem uns diante dos outros ou de uma situa¢o comum, de acordo com as leis psicolégicas fun damentais. O grupo era, para Allport, algo intangivel, o mesmo que a consciéncia tinha sido para Watson 6 portanto, nao podia ser objeto de estudo de uma psicologia social objetiva. Por isso, a psicologia social somente podia ser entendida como psicologia individual: Nao ha psicologia de grupos que nao seja essencial ¢ totalmente uma psicologia dos individuos. A psicologia social nao deve ser colocada em oposigao 2 psicologia do individuo; ela é uma parte da Psicologia do individuo cujo comportamento estuda, considerando o ambiente, que compreende seus semelhantes. (Allport, 1924, p. 4) © objetivismo radical de Allport ¢ a equiparagio que estabeleceu entre psicologia social e psicologia individual levaram a uma proposta metodolégica idéntica a do behaviorismo: a utilizagio objetiva do mé- todo experimental que, embora em psicologia tivesse uma grande tradicio, em psicologia social era prati- camente inexistente nesse momento. Sem diivida Allport teve uma influéncia decisiva no répido desenvol- vimento da experimentagio em psicologia social. De fato, alguns autores destacaram que teve mais éxito na proposta metodoldgica do que em seu desejo de dar uma reorientagio behaviorista & disciplina (Collier PSICOLOGIA SOCIAL * PERSPECTIVAS PSICOLOGICAS E SOCIOLOGICAS Floyd Henry Allport (1890-1978) Floyd Allport nasceu em Milwaukee, Wisconsin, em 22 de agosto de 1890. Estudou psicologia na Universidade de Harvard de 1913 a 1919, com uma curta interrupco de alguns meses em que teve de servir como tenente no exército norte- americano, durante a Primeira Guerra Mundial. Durante os anos em que Allport es- tudou nessa universidade, o behaviorismo era a corrente de pensamento dominante em psicologia, devido a influ€ncia dos recentes textos de Watson. Edwin Bissell Holt foi um dos professores que introduziram Allport nas linhas do pensamento behavio- rista, fazendo com que ele comegasse a ver a psicologia como uma ciéncia objeti- va baseada na experimentacdo. Também teve como professor de psicologia Hugo ‘Miinsterberger, nascido na Alemanha, mas que emigrou para os Estados Unidos, onde seria contratado pela Universidade de Harvard, a pedido de William James, amigo e conhecedor de sua obra. Entre outras atividades, Miinsterberger desenvolveu um importante trabalho de pesquisa experimental e trabalho de campo sobre a inexatidao dos julgamentos de testemunhas presenciais de atos delitivos, de grande im- portancia na psicologia social jurfdica atual. Conhecedor dos trabalhos experimentais de Walther Moede, ‘Minsterberger orientou Allport na pesquisa sobre facilitagao social. ‘Assim que terminou seus estudos, Allport iniciou seu trabalho como docente na mesma universidade onde se doutorou, permanecendo lA até 1922. Nesse ano obteve uma vaga de professor associado na Universidade da Carolina do Norte, onde iniciou seus estudos em psicologia social. Os resultados de sew esforco originariam o livro Social psychology, publicado em 1924, que foi muito bem recebido pela co- munidade académica € outros, 1991). No entanto, o proprio Allport (1924, p. 284) alertou sobre as limitagdes do método expe- rimental, destacando que a realidade social dos grupos € mais complexa que a reproduzida em situagdes experimentais e que, portanto,as generalizagdes devem ser realizadas com cautela. O enfoque behaviorista de Allport teve uma notavel influéncia em psicdlogos sociais posteriores, como Robert Zajonc. A forma pela qual Allport (1924, p. 12) definiu a psicologia social, como “a cién- cia que estuda o comportamento do individuo da mesma maneira que o comportamento do individuo estimula 0s outros individuos, ou é por si sé uma reagio a0 comportamento deles”, guarda um grande paralelismo com a defini¢o de Zajone (1967), que defende que a psicologia social é 0 estudo do com- portamento individual compreendido como uma reagio a0 comportamento de outro individuo. Em ambos 0 casos, 0 mecanismo explicativo do comportamento é a seqiiéncia estimulo-resposta (S-R). De acordo com essa definigao behaviorista, nfo é de estranhar que os estudos de Allport, assim como 0s de Zajone, se dirigissem & pesquisa da influéncia social e, mais concretamente, a anilise dos processos que explicam a facilitago social, ambos reconhecendo o papel, em sua opiniio pioneiro, do trabalho de Norman Triplett (1897). Os experimentos realizados por Allport no laboratério de psicologia da Universidade de Harvard, onde ele analisou a forma pela qual a realizagio de uma tarefa era afetada pela presenga de outras pes- soas, € que levariam ao estudo do que conhecemos hoje como facilitagio social, serviriam para que Zajonc desenvolvesse seu modelo para a explicago dos resultados aparentemente contraditérios obti- dos como consegiiéncia da presenga de outras pessoas ou da sua colaboragio no desempenho de tarefas (veja © Capitulo 4). Nos estudos realizados por Allport (1920) observava-se que o fato de realizar uma tare- Capitulo 2. Consolidagao da Psicologia Social como Disciplina Independente _ Agrande aceitacdo dessa publicacao Ihe valeu 0 titulo de precursor da psicologia social experimental, No livro, ele se mantém fiel aos seus interesses prévios, a sua concepcao behaviorista, ao seu forte indi- vidualismo na interpretacao de fendmenos grupais ou coletivos, ¢ a defesa do método experimental. Nos postulados expostos nesse livro, Allport introduziu 0 conceito de personalidade, que para ele significava 2 influéncia da sociedade sobre o individuo. Ele também acreditava que a personalidade € a forma carac- ica com a qual cada individuo reage aos estimulos sociais. Por isso, a segunda parte de seu livro se edica a0 estudo da estimulacao e da resposta social, e analisa temas como a natureza do eu, o conflito ocial e a conduta em relagao com a sociedade. Em 1924 ingressou como professor de Psicologia Social ¢ Politica na Universidade de Syracuse, onde fmaneceu até 1956. No decorrer de sua carreira académica, Allport desenvolveu um importante tra- lho. itucional. Entre 1921 e 1924, fez parte do conselho editorial da revista Journal of Abnormal ‘Psychology. A partir de 1925, e durante os periodos 1925-1927 e 1929-1931, fez parte do conselho de isa em ciéncias sociais da American Psychological Association (APA), e entre 1940 e 1941 foi pre- dente da Sociedade para 0 Estudo Psicolégico da Ciéncia Social. Além disso, foi membro da Sociedade ericana para o Avanco da Ciéncia e da Associacao Americana de Sociologia, entre outras. Suas cont ligdes para 0 fortalecimento da psicologia social como disciplina cientifica lhe renderam varios prémios, ntre 05 quais se destaca a medalha de ouro da APA. ___ £m 1957 vinculou-se como professor visitante 8 Universidade da Califémia, onde permaneceu até sua morte em 1978. fa em grupo melhorava, em geral, 0 rendimento das tarefas que necessitavam da utilizagio de processos de raciocinio simples. Entretanto Allport verificou que, em certos casos, como a resolugio de problemas que necessitassem de processos de raciocinio mais complexes, a execugio de uma atividade na presenga de outras pessoas que trabalhavam no mesmo tipo de tarefa, também podia diminuir o rendimento. Os efeitos da presenca de outras pessoas no desempenho das atividades realizadas formaram, por tanto, parte fundamental das preocupacdes de psicdlogos sociais como Floyd Allport, dando lugar a nu- merosos estudos posteriores sobre os efeitos da facilitacao social em psicologia social (veja 0 Capitulo 4). Como jé foi dito, Allport nfo foi tio radical quanto Watson, Nao rejeitou veementemente a cons- ciéncia nem a introspec¢io. Entretanto, exerceu na psicologia social uma influéncia parecida a que Watson exercera na psicologia. No momento em que a psicologia social estava consolidando-se como disciplina cientifica independente, Allport a conduziu definitivamente para bases individualistas, embora posteriormente (Allport, 1962) terminasse revendo sua defesa radical do individualismo. B® A DIFERENCIACAO DA PSICOLOGIA SOCIAL NO CONTEXTO DA SOCIOLOGIA Conquanto posteriormente a psicologia social estivesse mais vinculada 4 psicologia do que 4 so- ciologia, a situago era muito diferente nas etapas iniciais do seu desenvolvimento. Ao mesmo tempo que a psicologia comegava sua reflexdo sobre os fatores sociais que determinam 0 comportamento PSICOLOGIA SOCIAL * PERSPECTIVAS PSICOLOGICAS E SOCIOLOGICAS individual, surgia na sociologia o interesse por analisar os determinantes psicoldgicos da vida social Dessa maneira desenvolveram-se diferentes linhas de pensamento microssociolégico ou psicossociol6- gico que contribuiriam para a diferencia¢io progressiva da psicologia social na sociologia, Na sociologia curopéia se destacam, pela énfase dada ao ponto de vista microssociol6gico, as contribuiges de Max ‘Weber e, sobretudo, de Georg Simmel. Mas, diferentemente do que ocorria no caso da psicologia social psicol6gica, cujo desenvolvimento comegou na Europa, a consolidacio da psicologia social sociolégica teve lugar fundamentalmente nos Estados Unidos. Para o desenvolvimento experienciado durante esses anos pela psicologia social sociolégica norte-americana contribuiram significativamente autores como Charles Horton Cooley e, sobretudo, os socidlogos vinculados 4 Escola de Chicago, da qual algumas idéias originariam posteriormente o interacionismo simbélico. A publicago concomitante do livro de William McDougall e do manual de psicologia social es- ctito pelo socidlogo Edward A. Ross (1866-1951) costuma ser citada como um exemplo do proceso de consolidagio simultinea da psicologia social tanto na psicologia como na sociologia. Por outro lado, a quantidade de manuais de psicologia social escritos por sociélogos é outra prova do desenvolvimento alcangado pela psicologia social sociolégica durante as duas primeiras décadas do século XX. A psicologia social e os primeiros manuais escritos por socidlogos Como acabamos de mencionar, no mesmo ano em que se publicou © manual de McDougall, pu- blicou-se outro livro, Social psychology: an outline and a source book, escrito por Edward Ross (1866-1951). © contetido desse livro, considerado © primeiro manual de psicologia social oriundo da sociologia, era muito diferente do manual de McDougall. Fortemente influenciado por Gabriel Tarde (veja 0 Capitulo 1), Ross (1908, p. 3) definiu a psicologia social como uma especialidade da sociologia orientada ao es- tudo das “uniformidades devidas a causas sociais, isto €,a0s contatos mentais ou as interagdes mentais”, Segundo Ross (1908, p.3),a psicologia social deve ignorar as uniformidades no comportamento deter- minadas por fatores biolégicos, como a raga ou os instintos, ¢ concentrar-se unicamente naquelas que tenham sua explicagio em causas sociais, isto é, que so produto da associagdo entre as pessoas. Ros estabeleceu uma divisio da psicologia social em duas areas: a ascendéncia social, voltada 20 estudo da influéncia que a sociedade exerce sobre a pessoa por meio da moda, dos costumes ou das convengdes sociais, e a ascendéncia individual, centrada na andlise da lideranga, na invengio € no papel do grande homem. Para Ross, os principais mecanismos explicativos do comportamento social sio a invengio, a su- gestio € a imitagio, O manual de Ross constitui, portanto, uma alternativa 4 explicagio inatista do comportamento social oferecida por McDougall e outros tedricos do instinto. A evolugio posterior da psicologia e da psicologia social mostrara que a proposta de Ross de centrar a explicago do compor- tamento social na imitagio era acertada, De fato, a idéia de que grande parte do aprendizado humano corre por imitagio era compartilhada pela maioria dos psicélogos da época (veja 0 Boakes, 1989), apesar disso os estudos sobre aprendizagem animal no haviam dado muita atengio a esse processo.A proposta de Ross poderia ter sido um bom ponto de partida para que, a partir da psicologia social, se comegas- se a desenvolver uma linha de pesquisa sobre a aprendizagem por imitacio, paralela ¢, inclusive, como Capitulo 2A Consolidago da Psicologia Social como Disciplina Independente _ alternativa para a linha que surgira no marco da psicologia animal para conhecer outros processos de - aprendizagem. ‘Mas isso nao aconteceu. Ross se limitou a reproduzir as leis da imitagio de Tarde, sem fazer ne~ __thuma contribuigio tedrica importante nem utilizar as propostas do sociélogo francés para realizar uma pesquisa rigorosa sobre a aprendizagem por imitago. Embora se costume considerar a posi¢ao de Ross uma alternativa sociolégica ao inatismo de McDougall, o certo é que suas posigdes no debate heranga/ ambiente foram inicialmente muito semelhantes.A defesa das diferengas raciais de McDougall, destaca~ da em quase todos 0s textos de historia da psicologia social, era compartilhada também por Ross, que em 1912 escreveu varios artigos sobre a superioridade dos anglo-saxdes e a inferioridade dos imigrantes "do sudeste da Europa, opinides que posteriormente iria apurar em consonancia com sua ideologia mais progressista (veja Collier, Minton e Reynolds, 1991). — O manual de Ross no foi o Gnico texto de psicologia social oriundo da sociologia. De fato, a maior parte dos manuais de psicologia social publicados entre 1908 ¢ 1928 foi escrita por socidlogos. _ Dois anos apés a publicago do texto de Ross, outro sociélogo, Howard, publicou um texto conciso de psicologia social: Social psychology: an analytical sillabus que, de certa maneira, pode ser considerado uma continuagio e ampliagio do texto de Ross. Da mesma maneira que Ross, Howard considerava a psicologia social parte da sociologia. No livro se inclui uma referéncia ao desenvolvimento histérico da Psicologia social que comega com a origem da sociologia psicologica e a unidade do social e o psiqui- co, Nele se incluem referéncias a autores como Comte, Spencer, Lazarus e Steinthal, Ward, Giddings, Durkheim, Small, Cooley e Ross, entre outros Porém, dos textos publicados no inicio do século XX, devemos destacar os de autoria de sociélo~ g0s vinculados, quanto a sua formagio, 4 Escola de Chicago. Este € 0 caso de Charles Ellwood (1873-1946), Emory F Bogardus (1882-1973) e Luther L. Bernard (1881-1951). A obra de Ellwood destaca-se especialmente pela sua influéncia posterior nos Psicdlogos sociais de formagio sociolégica. Os dois principais textos de Ellwood: Sociology and its psycho logical aspects, de 1912, e An introduction to social psychology, de 1917, vam precedidos de seu Prolegomena to social psychology, publicado em 1901 e que apareceria anteriormente, em 1899, no American Journal of Sociology. Nesses relatos de psicologia social, o socidlogo defende © nome de sociologia psicolégica ou psicossociologia para a psicologia social. Embora Ellwood parta dos individuos e das relagdes entre les para explicar as instituicdes sociais, ele reconhece que estas possuem uma realidade externa aos individuos, sem cuja influéncia é impossivel entender os contetidos da mente social Essa afirmagio leva Ellwood a criticar tanto o associacionismo quanto a psicologia individual como pilares da psicologia social. Para 0 sociélogo, o estudo das relagdes entre os individuos tem que ser realizado, necessariamen- te,definindo tais relagdes como intera¢io mental, o que o leva a considerar a psicologia social uma rea da sociologia. Enquanto a psicologia individual se preocuparia com os aspectos sociais da consciéncia individual, a sociologia se preocuparia em analisar os processos mentais que acompanham a vida social. A psicologia social devia incluir ambos 0s processos; isto é, a dimensio social da mente individual e a dimensio psiquica da vida social. © corolirio da psicologia social de Ellwood é a impossibilidade de entender a sociedade sem nos referirmos a consciéncia, e a impossibilidade de nos referirmos 3 mente individual sem considerar sua origem social. PSICOLOGIA SOCIAL * PERSPECTIVAS PSICOLOGICAS E SOCIOLOGICAS Edward Alsworth Ross (1866-1951) Edward Ross nasceu em Illinois em 1866. Fez seus estudos na Universidade John Hopkins, doutorando-se em economia em 1891. Em 1893 comecou a ministrar au- las de economia na Universidade de Stanford, onde permaneceu até 1900, quan- do foi destituido por motivos politicos. Ross havia criticado a forma de utilizar os imigrantes chineses para a construcio de ferrovias, entrando em conflito com a fa- miflia Stanford, fundadora da Universidade e acionista da Union Pacific Railroad. Depois de sua destituicao, Ross foi contratado pela Universidade de Nebraska ¢, posteriormente, em 1906 conseguiu uma cétedra de sociologia na Universidade de Wisconsin. Af permaneceu até que se aposentou em 1937. Viajante incansavel, tou diferentes paises como a China, a India e o México, entre outros. Também viajou para a Rissia durante a revolucao bolchevique em 1917, chegando inclusive a entrevistar Leon Trotsky. Ross foi um socidlogo de idéias progressistas e partidério de reformas sociais, 0 que o levou a manter posigdes criticas diante de valores conservadores da sociedade norte-americana. No entanto, o clima conservador de sua época influiu, inicialmente, em algumas de suas consideracbes sobre as diferencas entre ragas e culturas. E. Ross, como W. McDougall ou F. Allport, defendeu a existéncia de diferencas raciais. McDougall foi partidario do movimento eugénico, Allport defendeu a superioridade da inteligéncia da raca branca sobre a raca negra, € Ross chegou a afitmar a inferioridade dos imigrantes procedentes do sul da Europa. As opinides de Ross, no entanto, variariam com 0 tempo, como conseqtiéncia de seus ideais politicos e de sua crenca nos Entre 0s sociélogos que escreveram manuais de psicologia social baseados no texto de Ross e os de Ellwood, destaca-se Bogardus. Suas duas obras principais sio Essentials of social psychology ¢ Fundamentals of social psychology. Em sua primeira obra, Bogardus (1918) define a psicologia social como © estudo das interagdes das pessoas nos grupos. Nesse texto nota-se a influéncia de McDougall, Tarde, Ross ¢ Ellwood, entre outros. Bogardus comega com a anilise dos instintos sociais, continua com a imitagio ¢ a sugestio, ¢ termina com uma reflexio sobre os processos grupais e a mudanga social. No segundo texto, Bogardus (1924) amplia algumas de suas posi¢des anteriores relacionadas a psicologia social. A psicolo- gia social nao é a simples aplica¢io dos princfpios da psicologia individual ao estudo do comportamen- to coletivo; ela tem seus proprios principios ¢ seus proprios conceitos. Esta citagZo revela a concepgdo que Bogardus tem da psicologia social: AA psicologia social é algo mais do que a aplicacao da psicologia do individuo a conduta coletiva. £ ‘mais do que uma teoria da imitagio, uma teoria dos instintos, do instinto gregério ou uma teoria do cor {lito da vida social. £ 0 desenvolvimento do seu proprio enfoque, seus conceitos ¢ leis... A quinta-essé cia da psicologia social se encontra no estudo da estimulacao intersocial e nas respostas que provocam, nas atitudes sociais, valores e personalidades resultantes. (Bogardus, 1924, prefacio) A énfase nos processos de interago social — interestimulagio social — e suas conseqiiéncias, na forma de atitudes sociais ou personalidades, situa alguns aspectos da concepgio mais global de Bogardus em uma perspectiva no muito afastada da de Mead, Dewey ou Thomas. Este iiltimo sociélogo, também da Escola de Chicago e cujas contribuigdes analisaremos mais adiante, em suas reflexes sobre a nature~ za da psicologia social a definia como: Capitulo2 & Consoldacio da Psicologia Social como Dsiplina Independente GE es culturais e nos processos de imitacio como elementos que favoreciam a igualdade entre pessoas herangas genéticas diferentes. foi o autor do primeiro manual de psicologia social escrito por um socidlogo, Social psychology: outline and a source book, publicado em 1908. No livro, se percebe uma forte influéncia da sociologia €, mais concretamente, da teoria da imitagao de Gabriel Tarde. Para Ross, a psicologia social deve to social. O livro de Ross teve grande aceitagao e influéncia entre os socidlogos norte-americanos da ‘que publicavam textos de psicologia social. Este & 0 caso, entre outros, de C. Ellwood, G. Howard ES. Bogardus. Em todos esses autores se nota a importancia do conceito de imitagdo introduzido por toss como mecanismo fundamental para explicar a conduta social. Além dessa obra, Rass publicou outros ose ee de sociologia, entre os quais se destacam Social control (1901) e Principles of sociology Ross fo membro fundador da Sociedade Americana de Sociologia, junto com Lester F. Ward, socié- que fot influenciado pelas idéias de Herbert Spencer, com quem comparilharia sua preocupacao pela langa social e com quem manteria uma especial relacao de amizade e apreco que se veriam reforcadas ‘casamento com uma das sobrinhas de Ward. Em 1937 Ross publicaria sua autobiografia com o titulo ‘years of it. © estudo dos processos mentais individuais na medida em que so condicionados pela sociedade, dos processos sociais na medida em que so condicionados pelos estados da consciéncia. (Thomas, 1905, p.445-46) Da mesma maneira, 0 campo da psicologia social era para Thomas “o teste da interagio da cons iéncia individual com a sociedade ¢ dos efeitos desta interago sobre a consciéncia individual e sobre 4 propria sociedade” (Thomas, 1906, p. 860-61). O pensamento psicossociolégico de Thomas evoluiria para um enfoque situacional em que a forma pela qual a pessoa define as situagdes nas quais se encontra se torna um fator de especial relevincia para 0 estudo das ages. A idéia de que “se os homens definem 4s situagdes como reais, elas sio reais em suas conseqiiéncias” (Thomas e Thomas, 1928, pp. 571-572) resume bem 0 pensamento do autor. Outro texto de grande importincia e a0 qual se deu pouca atengio € o de Floriam Znaniecki, pertencente também 4 Escola de Chicago e colaborador de W. I. Thomas no The polish peasant in Europe and America. Em seu livro The laws of social psychology (1925), Znaniecki afirma que a psicologia social parte da sociologia. Uma idéia que jé encontramos em Ross e, com ressalvas, em Ellwood, Entretanto, diferentemente desses autores, a obra de Znaniecki nao é produto da influéncia de Tarde; surge de uma teoria da ago que Ihe leva a definir a psicologia social como uma ciéncia cultural, radicalmente diferen- te da psicologia fisiologica ou da psicologia do comportamento:"Se o psicélogo quer estudar a ago em seu curso original e em seu significado atual, nio pode defini-la como o faz 0 behaviorista; deve seguir sua prépria experiéncia” (Znaniecki, 1925, p. 307). Em resumo, para Znaniecki, o objetivo da psicologia social 6 a anilise da agio social. PSICOLOGIA SOCIAL * PERSPECTIVAS PSICOLOGICAS E SOCIOLOGICAS Diante de uma interpretagio naturalista da realidade como algo objetivo, Znaniecki expde a ne- cessidade de uma andlise cultural da ago a partir da interpretagio que sujeitos ativos dio 4 sua experiéncia 2 sua conduta, Finalmente, podemos mencionar o livro de Bernard, An introduction to social psychology, publicado em 1926, dois anos depois do famoso manual de Allport. A idéia de Bernard da psicologia social dife- tia significativamente da de Allport, pela importincia diferente que ambos davam ao social. Embora Bernard concordasse com Allport em sua critica 4 nogio de instinto, rejeitava o viés individualista que esse autor dera a psicologia social. Nesse sentido, em seu texto, Bernard defendia a utilizagio do con- ceito de habito como ferramenta de anilise da conduta social. Os habitos, em sua opiniio, no tém sua origem nos instintos, mas conforme “o socidlogo nos demonstra, é 0 meio que, cada vez mais, domina tanto 0 conteiido quanto a diregio e o funcionamento da formacio dos habitos” (Bernard, 1926, p. 533-3). O objetivo da psicologia social &, segundo Bernard, 0 estudo da conduta dos individuos nas situagdes sociais e, mais concretamente, a anilise das reagdes dos individuos aos estimulos sociais do meio. Depois desse resumo, é necessério lembrar, entretanto, que o fato de a maioria dos manuais publica- dos nesse periodo terem sido escritos por sociélogos nao implica, necessariamente, que a disciplina tivesse uma orientagio sociol6gica, conforme a entendemos atualmente. A maioria dos textos escritos por socié- logos durante esse periodo se enquadra em uma tradicio que foi produto da integragio da teoria social francesa na sociologia norte-americana nascente.A influéncia da teoria social francesa se faz sentir no valor que adquirem nesses manuais conceitos como a imitagio e a sugestio. Da mesma forma que no manual de Ros, nesses textos a psicologia social é considerada uma disciplina da sociologia. Entretanto, a maioria dos autores compartilhou a formagio da sociologia como uma ciéncia sintética, onde devia ter expago tanto a biologia como a psicologia. A visio que esses socidlogos ¢ psicdlogos sociais norte-americanos tinham da sociologia era, portanto, semelhante 3 de Tarde e muito diferente da defendida por Durkheim, Max Weber e a teoria da a¢ao social Tanto a maneira pela qual Max Weber definiu a sociologia como a sua concep¢ao da a¢io social situam suas abordagens em um nivel de reflexo psicossociolgico. © objeto da sociologia é, segundo ‘Weber, a acio social, e mais especificamente a agio relacionada a outros, isto é,a interagio social, Quando Weber fala de agio social, o faz contrastando esse conceito com 0 conceito de comporta- mento, Rejeitando a idéia de que o comportamento humano é uma simples reago aos acontecimentos, Weber sublinha o cariter reflexivo ¢ significativo da agio humana. Seu objetivo especifico fo da sociologia compreensiva] ndo o constitui para nés um tipo qualquer de “estado” interno ou de comportamento extemo, mas a aco. Porém “aco” (incluindo a omissio e a admissao deliberadas) significa sempre para nés um comportamento compreensivel em relagao a “ob- jetos", isto é, um comportamento especificado por um sentido (subjetivo) “possuido” ou “mencionado”, nao interessa se de maneira mais ou menos despercebida. (..) Mas a a¢30 que especificamente é impor- tante para a sociologia compreensiva 6, em particular, um comportamento que: 1) se refere, de acordo ‘com o sentido subjetivamente mencionado do ator, & conduta de outros; 2) esta co-determinado em seu decurso por esta sua referéncia plena de sentido, e 3) € explicavel pela compreensio a partir deste senti- do mencionado (subjetivamente). (Weber, 1913/73, p. 177) Capitulo 2A Consolidacio da Psicologia Social como Disciplina Independente Apesar da forma que Weber definia a sociologia o situe claramente em um nivel microssociol6- gico, o modo pelo qual conduziu suas pesquisas 0 afasta desse nivel. A contradigao na obra de Weber deu lugar a interpretagSes muito diferentes sobre ela. Alguns autores, como Gordon (1995) afirmam que Weber foi um dos maiores defensores do individualismo metodolégico. Na mesma linha, Rossi (1967/73, p. 31) destaca que desde 0 momento em que o tiltimo termo ao qual pode chegar a sociolo- gia“compreensiva” é 0 individuo que assume determinada conduta em relagio com outros individuos, arelagio social nio designa, nos fatos, uma entidade superior ao plano da existéncia individual, que ti- vesse um tipo de existéncia heterogénea. E simplesmente uma conduta de varios individuos, instaurada sobre a base de uma conduta redproca, isto 6, um modo de ago individual. Outros autores, entretanto, ressaltam a énfase que levou Weber 3 anilise das grandes estrutura so- ciais, que o afasta claramente de uma sociologia individualista (veja Ritzer, 1996a). Entre as contribuigdes de Weber que nos interessa destacar aqui, encontram-se suas reflexes sobre a metodologia da pesquisa social. Suas idéias sobre a metodologia das ciéncias sociais aparecem reunidas em uma série de artigos que foram publicados entre 1903 € 1921 ¢ foram editados conjuntamente em 1922 sob o titulo Compilacién de ensayas para uma doctrina de la ciencia. Uma selegio desses ensaios foi publicada em espanhol com o titulo Ensayos sobre metodologia sociolégica. ‘Uma de suas principais contribuigdes para o debate epistemoldgico,em que se encontravam imer- sas naquela época as ciéncias sociais alemis, foi a maneira que definiu as relagSes entre sociologia e historia, que, como se relatou no capftulo anterior, foi um dos principais motivos de polémica para os primeiros cientistas sociais alemies. Entre as posicdes que entraram em conflito nesse debate, algumas foram analisadas previamente, destacam-se a de Dilthey, por um lado, ¢ as de Windelband e Rickert, por outro. Dilthey havia defendido a idéia de que a sociologia devia fazer parte, junto com a psicologia, das ciéncias do espirito, caracterizadas pela relagio especial que mantém o pesquisador com 0 objeto pes- quisado, e pela utilizagio do método compreensivo. Diante da posigéo de Dilthey, a solucio trazida por Windelband consistiu em diferenciar as cién- cias nomotéticas das ciéncias idiogriticas, sublinhando que qualquer fendmeno poderia ser estudado a partir de qualquer uma das duas perspectivas. Semelhante A tiltima foi a distingio de Rickert entre cién- cias naturais e ciéncias culeurais (veja 0 Capitulo 1). ‘Weber se situou na posicio intermediaria entre as duas posigdes ¢ rejeitou tanto as bases metodo- lgicas derivadas da tradigio historicista alema quanto as procedentes do positivismo. Weber no com- partilhou com Dilthey a idéia de que as ciéncias sociais se distinguem por ter como objeto de estudo 0 espirito ou porque seu método seja a compreensio e nao a explicagio. Aproximando-se mais da posigio de Rickert, Weber destaca que a distingio entre ciéncias sociais e ciéncias naturais nio é dada pela na- tureza do objeto de estudo, mas pela finalidade com que este é pesquisado e pela metodologia utilizada para a elaboracio dos conceitos. Isto nio quer dizer que Weber rejeitasse totalmente a proposta metodolégica de Dilthey, ja que admitiu a Verstehen como metodologia caracteristica das ciéncias sociais. E necessario destacar, entretan- to, que 0 significado que deu a esse método foi diferente do dado por Dilthey. A Verstehen weberiana nio se baseava no conhecimento intuitivo, que é 0 sentido com o qual atualmente a reivindicam alguns PSICOLOGIA SOCIAL * PERSPECTIVAS PSICOLOGICAS E SOCIOLOGICAS vs Max Weber (1864-1920) Karl Emil Mi iam Weber nasceu em Erfurt, Alemanha, em 1864. Aos 18 anos iniciou seus estudos de direito na Universidade de Heidelberg, onde permaneceu durante trés anos. Em 1884, depois de ter interrompido seu perfodo de formagao para fazer 0 servico militar, retomou os estudos na Universidade de Berlim, onde se doutorou em 1892. Durante algum tempo deu aulas nessa Universidade, tarefa que dividiu com o exercicio da advocacia. O trabalho docente fez com que Weber comecasse a se interessar pela sociologia, a economia e a histéria. Em 1896 ob- eve uma vaga de professor na Universidade de Heidelberg, onde ministrou aulas de economia. Em 1897, sua carreira académica se viu interrompida pelo impacto psicolégico que Ihe causou 0 fato de seu pai ter morrido depois de manter com ele uma forte discussao, permanecendo afastado da Universidade até 1918, A partir de 1902, dedicaria-se ao estudo da metodolo- gia das ciéncias sociais, porém seria somente em 1904 que reataria sua atividade intelectual dando uma conferéncia nos Estados Unidos e colaborando na edi¢ao dos Arquivos de ciéncia social e politica social. Um ano depois, em 1905, Weber publicava La ética protestante y el espiritu del capitalismo, possivelmente ‘sua obra mais conhecida e influente, onde explora os vinculos entre o ascetismo protestante e a emergén- cia do capitalism modemo. Segundo Weber hd uma estreita relacdio entre a ética protestante, que reafirma as atividades da vida cotidiana com um cardter religioso, e a preocupacao capitalista pelo rendimento e © lucto econmico. Para 0 protestantismo, a tinica forma de comprovar a graca de Deus era por meio do rendimento nas atividades terrestres, razdo pela qual o lucro era considerado sinal de virtude. Cientistas sociais, mas era um procedimento racional, dirigido 4 formulagio de hipéteses interpretativas que deviam ser verificadas empiricamente (veja Ritzer, 1996a, Rossi, 1967). A compreensio ¢ a expli- cagio causal nio eram, segundo Weber, incompativeis, por isso ele nao rejeitou que as ciéncias sociais pudessem oferecer explicagdes causais dos fendmenos estudados, como fizera Dilthey. Adotando um esquema de explica¢io probabilistica, Weber destacou que, diferentemente das cién- cias naturais, que explicam os fendmenos mediante um sistema de leis gerais, as ciéncias hist6rico-sociais os explicam em sua individualidade. No caso das ciéncias sociais nio se pode falar, portanto, de casualidade necessiria, mas sim de uma casualidade adequada ou condicional. A casualidade adequada significa assumir que a respeito dos fendmenos sociais s6 se podem fazer proposigdes probabilisticas; isto 6, 96 se pode chegar a afirmagdes do tipo dadas certas condigdes é posstvel que ocorra X, € 0 maximo que se pode conse- guir é estabelecer as circunstincias que facilitam sua ocorréncia. Assim, por exemplo, em sua obra La ica protestante y el espiritu del capitalismo (1904/5) Weber analisou como 0 sistema ideolégico do pro- testantismo constituiu um dos fatores causais decisivos que resultaram no desenvolvimento do sistema capitalista Portanto, o reconhecimento de que as ciéncias sociais tém de estudar os fendmenos em sua indivi- dualidade nio foi incompativel com a adogio de um enfoque nomoldgico. Para tornar compativel este enfoque com o conhecimento individualizado das disciplinas historicas, Weber utilizou os tipos ideais Os tipos ideais sio 0s conceitos que o cientista utiliza para elaborar explicagées da realidade social. De maneira geral, um tipo ideal € um conceito que, embora nio corresponda exatamente ao fendmeno so- cial estudado, serve 20 pesquisador como ferramenta heuristica para analisi-lo. O cientista social estabe- Capitulo 2 A Consolidacio da Psicologia Social como Discipina Independente ina e a austeridade protestantes também sdo elementos que potencializaram nocGes como as economia e acumulacao, bases igualmente importantes do capitalismo. do. Mas nao seria a ligagao entre histéria e religido que teria um maior impacto nas ciéncias sociais, ligacio que estabeleceu entre a histéria e a sociologia. A sociologia, pensava, daria & histéria as fer- necessérias para fazer dela um conhecimento objetivo, sem ter de adotar os métodos da ciéncia na- ituais que denominou tipos ideais, e cuja fungao é a de fazer compreensiveis, sob categorias amplas las, situagdes sociais de diferentes naturezas. Essas categorias cumpriam uma funcao heuristica ‘morreu em 1920, antes de terminar sua obra mais importante, Economia y sociedad. Essa obra ida para varios idiomas. Antes de morrer participou da Primeira Guerra Mundial, fazendo parte nsadores sociais, como Georg Simmel e Georg Lukécs. Sua obra, na qual também se destacam os relatos e metodologia das is, indamental para a consolidacao da sociologia moderna. Sua 8a Marianne Schnitger publicou em 1948 uma detalhada biografia do socidlogo alemao, Max Weber, bild, traduzida para o espanhol com o titulo Biografia de Max Weber. lece os tipos ideais de forma indutiva, partindo de informagio empirica procedente da anilise histérica. Valendo-se desses conceitos, 0 pesquisador pode formular hipéteses explicativas sobre a realidade social, que depois devem ser contrastadas empiricamente. Nessa fase, 0 pesquisador se concentrar nas diver- sgincias entre o tipo ideal e o caso particular que esta estudando e explicara possiveis divergéncias Como destaca Rossi (1967),a idéia de Weber é que 0 conhecimento histérico utiliza as uniformi- dades, formuladas como regras gerais da evolugio, com o propésito de obter a explicagio dos fendme- nos em sua individualidade, Nao 6, portanto, a presenga ou auséncia do saber nomolégico que diferen cia as ciéncias naturais das histérico-sociais, mas a fang que cumpre: 0 que nas primeiras é 0 fim da pesquisa, nas segundas é somente determinado momento dela, Portanto, apesar de a reivindicagio atual da Verstehen weberiana servir para que alguns cientistas sociais justifiquem a superioridade do método compreensivo diante da explicagio causal, o certo € que ambas as formas de anilise da realidade social foram concebidas por Weber como totalmente compativeis. Weber diferenciou quatro formas de tipos ideais: tipo ideal histérico, referindo-se a um fendmeno presente em determinado momento da historia; o tipo ideal geral, que abrange os fenémenos que se dio transversalmente na histéria e nas diversas sociedades; 0 tipo ideal da asio, referindo-se as ages deter- minadas pelas motivagdes dos individuos; e o tipo ideal estrutural, que se refere as formas que se obtém como resultado da ago social. Seja qual for a interpretagio mais adequada do pensamento de Weber, o certo € que tanto sua de- finigio explicita do objeto da sociologia quanto seu conceito da a¢io social situam suas abordagens em um nivel de anilise psicossociolégico semelhante ao adotado pelos socidlogos da Escola de Chicago. PSICOLOGIA SOCIAL * PERSPECTIVAS PSICOLOGICAS E SOCIOLOGICAS Apesar disso, Weber nio exerceu nenhuma influéncia sobre eles, o que pode set explicado pelo fato de 05 trabalhos sociolégicos de Weber serem posteriores aos primeiros trabalhos dessa escola. Nio obstante, parece que Weber, como os socidlogos da Escola de Chicago, viu-se influenciado por algumas das idéias de William James (veja Collier, Minton e Reynolds, 1991) Georg Simmel: 0 estudo das agées reciprocas A reflexio de Simmel sobre as relagdes entre o individuo e a sociedade faz com que sua obra deva ser considerada uma referéncia da psicologia social. Fora da Alemanha, Simmel manteve uma fiuida correspondéncia com Albion Small (1854-1926), fundador do Departamento de Sociologia da Universidade de Chicago, que traduziu diversos textos de Simmel para 0 American Journal of Sociology. De fato, as idéias de Simmel, introduzidas na sociologia norte-americana por intermédio de Park (1864- 1944) foram uma das fontes de inspiragio dos psicdlogos sociais da Escola de Chicago. Em sua forma de conceber a sociedade, Simmel se afasta de outros sociélogos, como Durkheim, que haviam definido os fatos sociais como realidades externas que se impSem & consciéncia individual, e destaca 0 cariter dinamico tanto das relagdes humanas quanto das formas de socializagio que se produ- zem como resultado da interagdo social. Simmel considera que a sociedade esti constitufda pelas ages reciprocas entre seus membros. “Nas partes consideradas isoladamente no ha ainda sociedade; nas ages reciprocas ela j existe realmente” (1908/77, p. 37). A seu ver, as diferentes formas de ago reciproca nao sio nem o antecedente nem a conseqiiéncia da sociedade, mas a propria sociedade. Para Simmel (1908/77, p.51), a existéncia do homem nao é em parte social e em parte individual, com a cisio de seus contetidos, ‘mas se encontra sob a categoria fundamental, iredutivel, de uma unidade que s6 podemos expressar mediante a sintese ou simultaneidade das duas determinacGes opostas: ser ao mesmo tempo a parte € 0 todo, produto da sociedade e elemento da sociedade... E estes nao so dois pontos de vista coexistentes, sem relagdo... mas ambos constituem a unidade disso que chamamos ser social. ‘As mesmas idéias serio desenvolvidas em um novo texto de sociologia publicado em 1917 e tr duzido para o espanhol com o titulo Cuestiones fundamentales de sociologia, Nele, novamente enfatiza a idéia de que a sociedade ¢ 0s individuos nio podem ser concebidos de forma isolada, a0 mesmo tempo que destaca como objetivo da sociologia as diferentes formas de socializagio que acontecem nas rela- es sociais. De acordo com a maneira que definiu a sociedade, Simmel concentrou seu interesse nos compo- nentes psicologicos da vida social. Para ele, o objetivo fundamental da sociologia era a anilise das intera- ‘ges que acontecem diariamente entre as pessoas. Mais especificamente, a sociologia devia ocupat-se do estudo das interagSes sociais mais simples, como a diade ¢ a triade, ¢ de sua influéncia na origem e no desenvolvimento das instituigdes sociais. Seu objetivo principal era realizar uma descrigdo das distintas manifestagdes da vida social por intermédio do estudo das inter-relagSes sociais bisicas. A forma mais simples de ago reciproca descrita por Simmel é a interago entre duas pessoas. Esse tipo de associagio esta baseado na individualidade das duas partes, ¢ sua manuten¢io depende da vontade de cada uma delas.A tinica excecio nesse sentido sio as relagdes de subordinacio caracterizadas pela coagio fsica imediata, Capitulo 2A Consolidacfo da Psicologia Social como Disciplina Independente Nesses casos, se trata de relagdes entre uma pessoa e um objeto, ¢ no se pode falar de relagio social pro- priamente dita. Segundo Simmel, o passo da diade para a triade, isto é,a agregagio de um terceiro elemento na relagio entre duas pessoas, significa uma mudanga qualitativa de grande importincia social que nio se prodnz com sucessivas agregacSes numéricas Nas associagdes entre trés, a relagdo entre os dois primeiros se vé alterada. Eles podem ver o tercei~ 1 elemento como um complemento da relago ou podem senti-lo como um intruso. Existe também. 4 possibilidade do estabelecimento de partidos ¢ maiorias mediante as coalizées entre dois elementos. Do mesmo modo, 0 terceiro pode atuar como elemento imparcial ou mediador diante do qual as partes hosts expdem suas desavencas; ou como Arbitro com capacidade de decisio sobre ambas. Inversamente, pode atuar como parte interessada que utiliza ambas as partes em beneficio proprio. Finalmente, o ter- cxiro pode provocar 0 conflito entre as duas partes para obter uma superioridade sobre ambas. Uma das principais contribuigdes de Simmel para a microssociologia foi a identificacio e a andli- se das formas de interac30. O interesse por esse aspecto da realidade social se viu determinado pela sua concepcio de metodologia. Simmel considerava que para analisar a interagio social, o sociélogo devia proceder do mesmo modo que o leigo quando interpreta suas interagdes cotidianas. Na hora de dar sentido a tais interagdes, as pessoas no atuam como se fosse a primeira vez que as vivenciam, mas as definem utilizando uma série de etiquetas ¢ modelos que jé possuem. Amizade, intercdmbio ou estranheza sio alguns dos modelos com os quais contamos para dar sentido as interagdes que mantemos cotidiana- mente com outros. Segundo Simmel, o sociélogo deve atuar do mesmo modo, diminuindo 0 complexo emaranhado de interagSes a um niimero limitado de classes ou formas de interagio, Entre as formas de interagio analisadas por Simmel destacam-se 0 conflito, o intercimbio,a estranheza,a supra-ordenasio ¢ a su- bordinacio. Além do interesse pela identificagio das diferentes formas de interacdo, Simmel dedicou uma con- siderivel atengo ao papel que desempenham nas interagdes cotidianas os diferentes atores que partici pam delas. Desse modo, desenvolveu um importante trabalho, dirigido 4 identificagio e anilise de uma série de tipos sociais, em que destacam suas reflexdes sobre 0 estranho ou 0 pobre. Como no restante de sua sociologia, a anilise do pobre como tipo social se caracteriza pelas ages reciprocas que estabelece com outras pesso: ‘Aquele que recebe a esmola dé também algo; dele parte uma aco sobre o doador, ¢ isto é, justamen- te, o que converte a doacdo em uma reciprocidade, em um processo sociolégico. (Simmel, 1908/74, p.490) As relagdes entre doador e pobre estio regidas pelo direito deste de receber ajuda e o dever do primeiro de socorré-lo. A finalidade dessa relagio é a de que o pobre que se encontra fora do grupo social se reintegre nele por meio do dever da coletividade de socorré-lo, Por sua vez, a coletividade se defende da possibilidade de que 0 pobre faca uso da violencia para alterar sua situagZo, Paralelamente 4 anilise do pobre como tipo socal, Simmel realizou estudos sobre temas variados, como a condicio de estrangeiro, a moda e 0 adoro. Entre os estudos que realizou, destaca-se seu amplo ensaio sobre La filosofia del dinero (1907) e seu estudo sobre El secreto y la sociedad secreta (1908). No primeiro, Simmel comega ressaltando © fato PSICOLOGIA SOCIAL + PERSPECTIVAS PSICOLOGICAS E SOCIOLOGICAS vos» Georg Simmel (1858-1918) Georg Simmel! nasceu em 1858 em uma familia rica da cidade de Berlim. Estudou histéria € filosofia na Universidade de Berlim. Teve como professores fi- {guras destacadas da filosofia, da histéria, da antropologia e da sociologia, o que 0 levou a interessar-se por um amplo leque de matérias. Em 1891 obteve seu dou- torado em filosofia, e em 1895 comecou a ministrar aulas nessa Universidade como Privatdozent, ou seja, um professor que a Universidade ndo remunerava e dependia diretamente da matricula que os estudantes pagavam por assistir a0, Curso. Tanto pela quantidade de matérias que ministrava (sociologia, psicologia social, economia, filosofia, hist6ria, ética) como pelo brilhantismo de suas licdes, © curso de Simmel atraia nao sé estudantes, mas também intelectuais da elite cultural da cidade. Isso the permitiu permanecer durante 15 anos na Universidade, apesar de ndo ter conseguido uma vaga oficial. Nao obstante a boa reputacao que chegou a ter como docente, Simmel encontrou grandes dificuldades para consolidar sua posi¢ao na Universidade. Mesmo contando com 0 apoio de importantes personalida- des do mundo académico, como Max Weber ou Heinrich Rickert, Simmel ndo conseguia nenhuma das vvagas que disputava. de que 0 valor que damos 4s coisas é em fangio do trabalho que nos custou consegui-las. © valor dos objetos depende da distancia que nos separa de sua posse; essa relacZo, entretanto, tem um ponto de in- flexio quando os objetos de nosso desejo estio completamente fora de nosso alcance, e entio deixam de ter valor para nés: ‘Comegamos a desejar realmente ali onde o prazer pelo objeto se mede em distancias intermedirias, isto 6, onde pelo menos o prego da paciéncia, da rentincia a outra pretensdo ou desfrute afasta 0 objeto de nds a uma distancia possivel de ser vencida e que se converte no proprio desejo. (Simmel, 1907/77, p. 63) ‘Ao mesmo tempo, para que os objetos entrem em uma relagio de intercimbio entre as pessoas, é necessirio que se renuncie ao objeto: Em economia, este processo transcorre da seguinte maneira: 0 contetido do sacrificio ou da rentincia, que se produz entre o homem e o objeto de seu desejo, é, a0 mesmo tempo, objeto de desejo de alguém mais; 0 primeiro deve renunciar a possuir ou desirutar de algo que o outro deseja a fim de transferir a este a reniincia possivel de ser vencida e que se converte no préprio desejo. (Simmel, 1907/77, p. 43) E nessas relacdes de intercambio surgidas dos desejos pelos objetos e de sua relativa escassez onde aparece 0 valor econémico destes e 0 papel do dinheiro como objeto divisive! de intercimbio. © dinheiro mantém, segundo Simmel, uma relagio ambivalente com os objetos que desejamos. Por um lado, nos aproxima deles, nos torna possivel seu consumo; mas também se interpde entre nés e os objetos. E nes- sas relagdes de intercimbio que ocorre uma economia monetarizada, onde Simmel se propée analisar 0 papel do dinheiro e seus efeitos sobre os habitos que caracterizam a sociedade moderna; uma socie- dade em que tudo pode ser adquirido. Em relacio com essa economia monetiria, se criam diferentes Captulo 2A Conslidago da Psicologia Socal como Dixcptina Independence HE OGnico vinculo oficial com a Universidade de Berlim foi um titulo de professor honorffico que recebeu ‘em 1900, mas que nao the dava direito a nenhuma remuneracdo. Apesar disso, sua situagao econémica : i ‘he permitiu manter-se durante muito tempo no posto de Privatdozent, e tanto suas aulas quanto seus textos ‘o levaram a fazer parte dos cfrculos intelectuais e artisticos de Berlim. Em 1914, com 56 anos, obteve por fim um posto de professor na Universidade de Estrasburgo, onde permaneceu por pouco tempo, pois logo depois comegou a Primeira Guerra Mundial, que interrompeu a atividade universitéria. Simmel foi um escritor muito prolific. Além dos artigos publicados em periddicos e revistas ao longo de toda sua vida, " escreveu importantes obras sobre filosofia, ética, soclologia etc. Entre seus trabalhos mais importantes, podemos destacar La filosofia del dinero (1900), El secreto y la sociedad secreta (1906), El extrafio (1908), EI pobre (1908) e Sociologia: investigaciones sobre las formas de socializacién (1908). ‘Apesar de Simmel nunca ter criado uma escola, sua influéncia na sociologia foi indubitével. Do ponto de vista da psicologia social, por exemplo, é de destacar sua influéncia na sociologia de Robert Park, que introduziu as idéias de Simmel nos Estados Unidos, incorporando-as a bagagem tedrica da sociologia da Escola de Chicago. Georg Simmel morreu em 1918. fipos sociais, entre os quais se destacam © cinico € © avaro. O primeiro se caracteriza por nivelar todos 0 valores, consciente de que tudo se reduz ao dinheiro ¢ de que até os mais sublimes estio 4 mercé de quem os possui. O segundo, o avaro, caracteriza-se por seu desejo de acumulagio como objetivo final. Mas, além : de gerar tipos sociais especificos, o dinheiro tem, segundo Simmel, um papel fundamental em nossas i vidas cotidianas, pois reduz a qualidade 3 quantidade; dado que tudo se pode conseguir com dinheiro e que ele & a medida de todas as coisas, reduz o valor delas a sua expressio quantitativa: Desse modo, uma das grandes tendéncias da vida, a redugao da qualidade a quantidade, alcanga no dinheiro sua imagem mais extrema e definitiva; também aqui aparece o dinheiro como 0 ponto mais elevado de uma ordem de evolugio historico-espiritual que determina inequivocamente sua orientacdo. (Simmel, 1907/77, p. 332) Outro efeito da economia monetiria é que nos faz dependentes de iniimeras prestagies propor cionadas por pessoas com as quais nio temos vinculos pessoais. Nessas relagdes destacam-se o célculo e a légica, porém, a0 mesmo tempo, nos dio uma maior liberdade ao nos fazer mais independentes dos interesses dos grupos aos quais estamos vinculados. Outro aspecto analisado nessa obra é a redugio dos valores pessoais a seu equivalente monetario. Em sua opinio, o dinheiro é 0 que faz possivel dar uma idéia quantitativa do ser humano: “nio € s6 0 dinheiro a medida do ser humano, mas 0 ser humano é também a medida do dinheiro” (Simmel, 1907/77, p. 438). Um exemplo apresentado por Simmel para explicar como o valor das pessoas se traduz em valor monetirio é a introdugio nas sociedades primitivas da absolvigio do homicidio mediante o pagamento de um valor monetirio; outro exemplo é a prosti- tuigdo, que reduz as relagdes sexuais a sua forma monetiria. Em ambos os casos, o dinheiro se converte em um equivalente de valores pessoais. A economia do dinheiro faz com que as relagdes interpessoais acabem por reduzir-se a sua expresso econémica. PSICOLOGIA SOCIAL * PERSPECTIVAS PSICOLOGICAS E SOCIOLOGICAS Em resumo, a economia monetiria supée um estilo de vida que determina as relagdes reciprocas centre as pessoas, que se encontram determinadas pelos interesses de tal sistema econdmico: A caracteristica psicolégica da época aqui analisada... parece encontrarse em uma fntima relacdo ‘causal com a economia monetéria. Esta justifica, em fun¢do de sua prépria esséncia, a necessidade con- tinua de operagdes matematicas na circulago econdmica cotidiana. As vidas de muitos seres humanos estdo caracterizadas por essa possibilidade de determinar, equilibrar, calcular e reduzir valores qualita- tivos a outros quantitativos... A exatidao, intensidade e preciso nas relagdes econdmicas da vida que, é claro, também afetam seus outros contetidos, correm paralelas com a extensao do dinheiro, mas n3o para o fomento do grande estilo na forma de vida. (Simmel, 1907/77, p. 558) Como vemos, as andlises de Simmel nos ajudam a entender a influéncia do dinheiro nas relagdes reciprocas que constituem a sociedade. Ao estudar a incidéncia da monetarizagio da economia nas rela~ ¢Ges entre os individuos, Simmel contribui para um estudo dinimico da interagio social. Quanto ao outro estudo que mencionamos, aquele dedicado 4 anilise do segredo, Simmel destaca que a fungio deste ¢ ampliar nossa vida ao possibilitar a convivéncia entre dois mundos, um conhecido € outro desconhecido, Além disso, ele destaca que quando comunicamos alguma coisa sempre realiza~ ‘mos uma sele¢io em que nem tudo © que somos esti presente. Assim, embora as relagdes estejam apoia- das no conhecimento do outro, também necessitam de certo grau de ignorincia, dissimulagio e segredo. Finalmente, as sociedades secretas, apoiadas nas relagdes de confianga miitua entre seus membros, sur- gem quando o segredo & compartilhado por um grupo. O ritual, a hierarquia e a desindividualizagio se estabelecem como necessidades dessas sociedades secretas para fortalecer sua coesio e sobrevivéncia. Outro aspecto a ser destacado na obra de Simmel é sua preocupagio tanto pela anilise das intera- ¢es sociais mais simples quanto pelo estudo de fendmenos mais complexos, como 0 comportamento dos grupos ou a estrutura social Para isso, adotou a doutrina da emero social. A tese na qual se baseia Simmel é a de que os niveis sociais mais altos emergem dos mais baixos, Em seus estudos sobre os grupos, destacam-se suas reflexdes sobre as relagdes entre o individuo e o grupo e sobre as diferengas entre os grupos sociais de acordo com a quantidade de seus membros. Enquanto as relagdes interpessoais esto caracterizadas por certa capacidade reflexiva que permite ao sujeito analisar-se do ponto de vista do outro, nos grupos peque- nos, como nas massas, a influéncia do grupo anula a capacidade de decisio pessoal. No caso dos grupos pequenos, a menor diversidade de seus elementos o que provoca sua uniformidade € os leva a com- portamentos ¢ atitudes mais radicais, enquanto a conduta irracional das massas é explicada pela sugestio € 0 contigio. Ao mesmo tempo, a maior diversidade nos elementos que formam os grandes grupos per- mite que estes apresentem uma menor uniformidade no comportamento de seus membros. Como veremos mais adiante, a visio de Simmel da sociedade como agio reciproca de seus mem- bros exerceri sua influéncia, por intermédio da obra sociolégica de Park, na idéia que o interacionismo simbélico tem das relages entre 0 individuo ¢ os grupos sociais, para cuja compreensio é fundamental a nogio de interagio (veja Meltzer, Petras e Reynolds, 1975). Para Simmel, os individuos ou os grupos sociais mantém relagdes que tém seu fundamento nas imagens miituas que elaboram no decorrer de suas ages recfprocas. Um processo andlogo é 0 que permite que o individuo seja capaz, mediante uma atitude reflexiva, de ver-se a si mesmo como um outro. Tampouco ¢ arriscado destacar que a anilise Capitulo 2 A Consolidacio da Psicologia Social come Disciplina Independente tealizada por Simmel (1908) em seu estudo sobre “o segredo ¢ a sociedade secteta” ou suas reflexdes sobre a figura do pobre e dos processos de ago reciproca que provoca sio um antecedente do enfoque microssocioldgico de Erving Goffman. Finalmente, a concepsio emergentista de Simmel da sociedade exerceu uma influéncia notivel sobre alguns teéricos do intercdmbio social, como o socidlogo Peter Bhu.A obra desses sociélogos seri tratada em capitulos posteriores A concepgio dialética entre o individual e 0 social que emerge da teoria microssociolégica de Simmel, sua influéncia em teorias como o interacionismo simbélico ou o intercimbio social, assim como suas reflexdes sobre os grupos sociais, fazem com que sua obra deva ser recuperada como um an- tecedente de diferentes campos de anilise da psicologia social de procedéncia sociolégica. Charles Horton Cooley: as bases psicossociais das telagGes interpessoais e da vida social Na sociologia norte-americana do inicio do século XX, a obra de Charles Horton Cooley (1864- 1929) também constitui um ponto de referéncia obrigatério para uma aproximagio, historica a0 desen volvimento do pensamento psicossociolégico. Diferentemente de outros sociélogos da época, Cooley nio se baseou na anilise das macroestruturas, mas no estudo da consciéncia, da ago e da interagzo. Uma idéia central da microssociologia de Cooley & que individuo e sociedade nio tém uma exis- téncia separada, mas fazem parte indissolivel da experiéncia. Nao é possivel estudar a sociedade sem nos referirmos aos individuos que a constituem, nem tampouco é possivel analisar 0s individuos sem fazer referéncia & sociedade da qual fazem parte:“Um individuo separado é uma abstragio desconhecida para 4 experiéncia, da mesma maneira que a sociedade quando é considerada algo separado dos individuos” (Cooley, 1902, p.1). Essa idéia se veri ampliada no The social process, onde desenvolve suas idéias sobre 0 crescimento adaptativo, em cujo curso se materializa a vida humana: ‘A vida humana & um conjunto em crescimento, unificado por correntes intermindveis de interacdo, mas ao mesmo tempo diferenciadas nessas diversas formas de energia que vemos como pessoas, fac. Ges, tendéncias, doutrinas e instituigdes. (Cooley, 1918, pp. 3-4) Entre as contribuigdes de Cooley a psicologia social destaca-se sua anilise sobre a formagio inter~ subjetiva da identidade e, mais concretamente, sua teoria do eu espelho, desenvolvida em seu livro Human nature and the social order (1902). Cooley defende que a imagem que os outros tém sobre nés acaba fi- zendo parte da nossa identidade. No decorrer da interagio cotidiana, a pessoa nfo somente consciente da imagem que outros tém dela, mas também é capaz de interpretar os sentimentos, positivos ou nega tivos, que desperta nos outros. As outras pessoas atuam como espelhos nos quais nos vemos reffetidos. Para Cooley (1902, pp. 184-5): Um autoconceito deste tipo parece ter trés elementos principais: a idéia que outra pessoa tem da ‘nossa aparéncia; a imagem da sua avaliago desta aparéncia, e certo sentimento sobre si mesmo, como ‘orgulho ou mortificacao. A comparacdo com o espelho somente sugere o segundo elemento, que resulta fundamental, & imagem da avaliacdo do outro. O que nos leva ao orgulho ou a vergonha néo é o reflexo ‘mecinico de nés mesmos, mas um sentimento atribuido, o efeito imaginado deste reflexo na mente da outra pessoa... Sempre imaginamos e, ao imaginar, compartilhamos julgamentos e valoracdes da outra mente. 7 PSICOLOGIA SOCIAL * PERSPECTIVAS PSICOLOGICAS E SOCIOLOGICAS Charles Horton Cooley (1864-1929) Charles Horton Cooley nasceu em 1864, em Ann Arbor, Michigan, em cuja Universidade cursou seus estudos. Embora inicialmente se decidisse pela engenha- ria, esta ndo foi uma profissdo pela qual se sentisse atraido. Por isso compensou sua falta de entusiasmo lendo Darwin, Spencer e Schaeffle, um socidlogo aleméo, cuja influéncia o levou a interessar-se pela economia e a sociologia. Em 1890 comegou a ministrar aulas de economia na Universidade de Michigan, onde se doutorou, qua- tro anos depois, em economia politica e sociologia. Ao finalizar 0 doutorado, come- ‘cou a trabalhar como docente na mesma universidade, e a realizar as pesquisas que © tornariam uma referéncia para a sociologia. Dedicou grande parte de seu trabalho anillise dos problemas sociais de sua época, e seus estudos tinham como objetivo principal compreender o desenvolvimento do eu. Nesse interesse, percebe-se a influéncia que exerceram os psicdlogos James M. Baldwin e William James sobre seu pensamento. © método de Cooley foi introspectivo, uma vez que se apoiou na analise de si mesmo e das pessoas préximas a ele (parte de suas observacdes sobre o crescimen- to eo desenvolvimento do eu foi realizada com seus préprios filhos) para consolidar suas teorias a respeito da determinacao social do eu. E também no decorrer da intera¢do com os outros que se desenvolvem o pensamento e a conscién- Gia. O estudo do desenvolvimento evolutivo levou Cooley a ressaltar que tanto 0 pensamento quanto a personalidade infantil so o resultado da interagiio com os demais. Dai a importincia da linguagem e da comunicagio com os outros para o desenvolvimento do individuo. Essas idéias aproximam as aborda- gens de Cooley das de Mead. Cooley ressalta a importincia da definigio subjetiva das situacdes na compreensio da agio huma- na, uma idéia que veremos também em William I. Thomas. Da mesma maneira, para entender as rela Ses sociais imediatas devemos fazé-lo partindo da consciéncia que cada individuo tem do outro. Desa maneira, no existe diferenga entre a pessoa real e a idéia que de tal pessoa tem 0 outro com quem man- tém uma relagio. Do mesmo modo, a importincia de Cooley para a psicologia social reside também nas idéias desenvolvidas no livro Social organization a respeito da natureza dos grupos primérios, caracteriza- dos pelas relagdes face a face e a cooperagio. Para Cooley, a natureza humana nfo se expressa por meio da existéncia isolada de cada individuo, mas por meio dos grupos primrios. A iidéia principal ao redor da qual se articula a sociologia de Cooley é a de que é no curso da in- teragio com outros que acontece © desenvolvimento da consciéncia, do pensamento, da identidade e da personalidade. A linguagem e a comunica¢io sio os principais mecanismos pelos quais se produz a inte- racio social, para a qual resulta bisica, além disso, a capacidade que tem a pessoa de se colocar no lugar dos outros ¢ imaginar o que pensam. © principal instrumento da interagio social é, segundo Cooley, a introspeczio simpatica, proceso mediante 0 qual uma pessoa imagina as coisas tal como os outros as ima- ginam Para Cooley, a introspecyao simpatica nao é somente a ferramenta pela qual ocorre a interagio co- tidiana, mas também deve ser utilizada como método de pesquisa da sociologia. Da mesma forma que Capitulo 2A Consolidacio da Psicologia Social como Disciplina Independente "Sua teoria postula que a identidade se consolida pela interacdo entre as pessoas e as expectativas mu que entram em jogo. Nés nos comportamos e nos auto-regulamos, assegura Cooley, a partir daquilo supomos que a outra pessoa nota ou interpreta em nossos atos. Os outros so, portanto, uma referéncia ispensavel para a consttuicao do préprio self, © conceito basico de sua teoria da identidade € o de _ Apesar de ter sido na Universidade de Michigan onde desenvolveu toda sua producdo intelectual, Cooley é uma referéncia indiscutivel para compreender a corrente da psicologia social que surgiu em ago no inicio do século XX. Os fortes vinculos que manteve com Mead ¢ o fato de dividir os interesses ‘Suas obras mais destacadas so Human nature and the social order (1902), Social organization (1909), social process (1918) e Sociological theory and social research (1930). fazem as pessoas no transcurso de suas interacdes cotidianas, o cientista social deve se colocar no lugar dos atores para poder compreender os significados da ago social. As idéias de Cooley influenciario o pensamento de Mead, que incorporari na sua formulagio do interacionismo simbélico a nogio do eu espelho, mas rejeitard outros aspectos, como © mentalismo e a introspeccio de sua teoria social. Como veremos, diferentemente de Cooley, Mead adotou um enfoque cientifico no estudo da mente, que © afastou da metodologia introspectiva defendida por Cooley e da concepgio da sociedade como mero produto das imagens ou idéias que as pessoas tém de si mesmas e dos outros. Para Mead, a teoria de Cooley nao podia comportar a existéncia da sociedade como algo externo aos processos de ideagio individuais. ‘Mas, independentemente das criticas que sua posi¢o recebeu, a maneira pela qual Cooley definiu 6 objetivo da sociologia, sua anilise da interagio social, assim como sua nogio do eu espelho e suas refle- xdes sobre a metodologia das ciéncias sociais, exerceriam uma influéncia significativa sobre os sociélo- gos da Escola de Chicago, cujas contribuigdes 3 psicologia social se analisam a seguir. A sociologia da Escola de Chicago e sua influéncia na psicologia social ‘A Universidade de Chicago, fandada em 1890, foi, durante as duas primeiras décadas do século XX, o principal nficleo de desenvolvimento das ciéncias sociais norte-americanas. Tanto 0 contexto social da cidade de Chicago quanto a estrutura institucional da Universidade favoreceram um desen- volvimento sem precedentes da pesquisa empirica em diferentes Areas, como a psicologia, a sociologia, a cigncia politica ou a economia. No inicio do século XX, a cidade de Chicago estava mergulhada em PSICOLOGIA SOCIAL + PERSPECTIVAS PSICOLOGICAS E SOCIOLOGICAS um processo de ripida industrializago que a transformou no principal ponto de destino de um néimero crescente de imigrantes procedentes tanto de Areas rurais dos Estados Unidos quanto de outros paises. ‘A prosperidade econémica da cidade teve sua contrapartida no aparecimento de iniimeros problemas sociais, derivados da incapacidade para absorver de forma tio ripida grupos de pessoas tio numerosos. Desa maneira, 4 medida que a cidade crescia, foi se tornando cada vez mais evidente a precariedade em que viviam amplos setores da populagio, com os problemas sociais que isso desencadeava (violencia, po- breza, marginalizacio etc.).A sensibilizagio da sociedade de Chicago diante desses problemas e a crenga de que uma anilise cientifica destes levaria a sua solugio fizeram com que a cidade direcionasse grande parte de suas necessidades de solugdes 4 Universidade, que contou com um forte apoio econémico das instituigdes locais. ‘A idéia de que a pesquisa cientifica era 0 caminho para resolver os problemas sociais que a cidade vinha enfrentando se viu enormemente favorecida pelo clima intelectual da Universidade de Chicago, que no inicio do século XX se tornou o principal centro de difusio da filosofia pragmatista. O pragma- tismo foi, como se comentou no capitulo anterior, a primeira corrente filos6fica propriamente norte- americana. Embora tivesse se iniciado por Charles Sanders Peirce e se popularizado por William James (veja © Capitulo 1), foram John Dewey George Herbert Mead que criaram a versio do pragmatismo que serviu de inspitagao para 0 desenvolvimento das ciéncias sociais na Universidade de Chicago, John Dewey assumiu a diregio do departamento de filosofia desta Universidade em 1894, ¢ nesse mesmo ano incorporou George Herbert Mead a esse departamento, com quem tinha colaborado anteriormente na Universidade de Michigan. Dewey rejeitou a separacio clissica que a filosofia estabelecera entre o pen- samento € a a¢io, € definiu 0 conhecimento como uma forma de atividade diante de uma situagio que € percebida como problemitica.A atividade reflexiva sup6e uma reconstrugao continua da experiéncia, ¢ surge quando a pessoa tenta resolver os problemas os quais diariamente deve enffentar. [As crengas io hipéteses que elaboramos 4 medida que tentamos dar solugio a esses problemas, ¢ sio verdadeiras 4 medida que servem para sua resolugio. Aplicado & ciéncia, 0 conceito do conhecimento e da verdade desembocava em uma reivindicagio do cariter aplicado do conhecimento cientifico. A ciéncia tem como objetivo a resolugao dos proble- mas sociais. Essa forma de definir os objetivos do trabalho cientifico, compartilhada também por Mead, fer com que na Universidade de Chicago se criasse 0 clima propicio para 0 desenvolvimento da pesqui- sa sociologica © estimulo representado pelos problemas sociais da cidade, a orientagio filosofica proporcionada pelo pragmatismo e 0s recursos econémicos que as instituigdes locais puseram a servigo da pesquisa fizeram com que 0 departamento de sociologia da Universidade de Chicago, fiundado em 1892, se tornasse 0 centro da sociologia norte-americana até os anos 1930. Embora freqiientemente se identifi- que os socidlogos da Escola de Chicago com o interacionismo simbélico, a escola se caracterizou pela auséncia de uma orientagao predominante e pela diversidade, tanto tedrica quanto metodolgica (vejt Bulmer, 1984). Apesar disso, € possivel identificar alguns tragos que compartilharam em maior ou me- nor medida todos seus representantes. Possivelmente uma das caracteristicas mais definidoras da Escola de Chicago foi o enorme interesse que nela foi dado 4 pesquisa empirica e & aplicacio do conhecimen- to sociolégico na resolugio de problemas sociais. 0 enorme esforgo que dedicou 3 pesquisa aplicada fez com que uma das principais contribuigdes desta escola fosse o desenvolvimento de métodos de pesquisa Capitulo 2A Consolidacdo da Psicologia Social como Disciplina Independente especificamente sociolégicos, Do ponto de vista metodolégico, os socidlogos da Escola de Chicago fo- ram bastante ecléticos, sendo esta uma de suas principais caracteristicas. Como destaca Bulmer (1984), embora seja freqiiente identificar a Escola de Chicago com 0 uso de métodos qualitativos, a metodolo- gia quantitativa também ocupou um importante lugar na pesquisa sociolégica que ali era realizada. Do ponto de vista tedrico, os socidlogos da Escola de Chicago foram fortemente influenciados pelo prag- matismo de Dewey, assim como pela microssociologia de autores como Simmel, cujas idéias foram in- troduzidas por Robert Park (1864-1944) e Charles H. Cooley. influéncia deste diltimo foi tio notével que alguns autores o incluem na escola (veja, por exemplo, Ritzer, 1996a). Anteriormente descrevemos a obra de sociélogos como Charles Ellwood, Emory F Bogardus e Luther L. Bernard, que se doutora- ram em Chicago. Também dedicamos uma se¢io 4 obra de Charles H, Cooley. Agora nos concentraremos em dois dos autores que tiveram uma maior influéncia no desen- volvimento da psicologia social, William I. Thomas (1863-1947) e George Herbert Mead (1863- 1931). William I. Thomas: 0 estudo das atitudes sociais como objeto da psicologia social Sem dévida, uma das principais contribuigdes da Escola de Chicago para o desenvolvimento da sociologia ¢ da psicologia social foi a obra de William Thomas, que destacou a necessidade de a sociolo~ gia se orientar para a pesquisa empfrica. Entre 1918 1920 publicou, junto com Florian Znaniecki, The Polish peasant in Europe and America, apresentando os resultados de oito anos de pesquisa realizada tanto na Europa quanto nos Estados Unidos. A relevincia desse estudo para o desenvolvimento da psicologia social se deve, fundamentalmente, a dois motivos. Por um lado, a pesquisa é um dos primeiros exemplos de pluralismo metodolégico pela diversidade de fontes de dados utilizadas: material autobiogrifico, cor respondéncia familiar, arquivos jornalisticos, documentos piiblicos, cartas de instituigdes... Por outro lado, seus autores destacaram, pela primeira vez, 0 cariter empirico do conceito de atitude, que seria central para a constitui¢io e 0 desenvolvimento da psicologia social. O objetivo de ambos os autores foi formular uma nova teoria social a partir da qual pudessem es- tudar a transformagio das relagdes interpessoais e familiares dos camponeses poloneses como conseqiiéncia dos processos de modernizacio industrial e econémica ocorridos no final do século XIX ¢ inicio do século XX. Seu trabalho original, publicado em cinco volumes entre 1918 ¢ 1920, se refere tanto as mudangas na estrutura social do grupo de camponeses poloneses quanto a sua experiéncia como emi- grantes na Europa e na América. Sua anilise s6 pode ser compreendida referindo-se a dois conceitos bisicos em sua formulagio teérica: os valores sociais e as atitudes. A tese central desse estudo era que a in- terdependéncia entre a organizagio social, a cultura e os individuos torna inevitével considerar tanto 0s determinantes objetivos quanto os subjetivos da vida social. 6 esse aspecto que, junto com sua proposta de uma nova metodologia, faz da publica¢io de ambos os autores algo mais que um clissico da psico- logia social. Na opiniio dos autores, para o estudo de um processo social devem ser considerados tanto toda coisa natural que tem um significado para a ago, 0 que a torna um valor social, quanto sua contra- parte individual, isto as atitudes. Os valores, por meio das regras do grupo, guiam a a¢io dos individuos, mas sio as atitudes que explicariam o processo de... consciéncia individual que determina a atividade possivel ou real do individuo no mundo social” (Thomas ¢ Znaniecki, 1918/84, p. 58). Essa concep¢io PSICOLOGIA SOCIAL * PERSPECTIVAS PSICOLOGICAS E SOCIOLOGICAS psicossociolégica das atitudes, afastada da perspectiva dominante da psicologia individual, levou ambos 0s autores a reivindicar uma metodologia diferente para a psicologia social:“... a psicologia social é a ciéncia das atitudes e enquanto seus métodos sio essencialmente diferentes dos métodos da psicologia individual, seu campo é tio amplo quanto o da vida consciente” (p. 63). © centro da atengio do estudo de Thomas ¢ Znaniecki é a dindmica entre valores e atitudes. A interdependéncia entre ambos seri o que explica os processos de adapta¢io e mudanga social dos cam- poneses poloneses ¢ suas familias diante da modernizagio e das transformagdes sofridas em sua forma de vida tradicional. Seu enfoque te6rico é precursor de perspectivas posteriores construcionistas em psicologia social, como a de Berger e Luckmann (1967), pois, da mesma maneira que para esses dois sociélogos, a realidade é para Thomas e Znaniecki uma construgio simbélica de processos dindmicos de objetivagio e da subjetivacio, Nesse sentido, Thomas e Znaniecki (1918/84, p.293) destacam o fato de que todo processo social é (0 produto de uma interagao continua entre a consciéncia individual e a realidade social objetiva... para a ciéncia social nao pode haver uma mudanca na realidade social que nao seja o efeito comum de valo- res sociais preexistentes e de atitudes individuais que atuam sobre eles, ndo ha mudangas na consciéncia individual que nao seja 0 efeito comum de atitudes individuais preexistentes e de valores sociais que atuam sobre aquelas. Da mesma maneira, encontramos nesses autores uma teoria da personalidade que Mead desen- volveri tendo como eixo © conceito de atitude. A grande transcendéncia do enfoque de Thomas ¢ Znaniecki para a psicologia social est em ter sabido combinar uma perspectiva fenomenoldgica na anilise dos processos de mudanga social vividos pelos camponeses poloneses, com a hist6ria social de tais processos. Diversos acontecimentos serio responsiveis pelo fato de 0 esforgo renovador dessa obra nio se consolidar nas ciéncias sociais. Na sociologia, o auge de um enfoque positivista e o incremento dos es tudos quantitativos durante as décadas de 1930 e 1940 irdo deslocar o interesse pelos estudos qualitativos ¢ pela anilise da subjetividade. Por outro lado, o auge do experimentalismo como recurso metodolé- gico e a psicologizagio do conceito de atitude em psicologia social contribufram para que os trabalhos de Thomas ¢ Znaniecki nio recebessem a atengio merecida. No entanto, como veremos mais adiante, a importincia que tiveram na atualidade a teoria das representagdes sociais e sua critica ao conceito tra- dicional de atitude, elaborada por Serge Moscovici, fez renascer em alguns psicélogos sociais o interesse pela obra desses autores. George Herbert Mead: 0 interacionismo simbélico De todos os representantes da Escola de Chicago foi, sem ddvida, George Herbert Mead (1863- 1931) quem exercen maior influéncia no desenvolvimento da psicologia social. Embora seu livro mais itado seja Espiritu, persona y sociedad, também outras de suas obras, como Movements of thought in the nineteenth century, The philosophy of the act e The philosophy of the present, sio de enorme interesse para entender seu pensamento. Embora todos esses trabalhos tivessem sido publicados depois de sua morte, em 1931, Mead tinha comegado a desenvolver ¢ a difiundir sua visio da psicologia social muito antes Capitulo 2A Consolidagao da Psicologia Social como Disciplina Independente Em 1900 comegou a ministrar um curso sobre psicologia social, sendo seu trabalho docente o principal meio que utilizou para difundir suas idéias Inspirando-se no pragmatismo de autores como James ou Dewey, Mead assumiu 0 conceito de que 0 que prova a verdade de uma idéia é sua capacidade para a resolugio de um problema. O prag- matismo defendido por Mead nao foi mais do que uma aplicagio do método cientifico ao estudo do comportamento: ‘A doutrina pragmatista seria a expressio filosdfica do método cientifico. Segundo ela, a verdade de uma hipétese se baseia no seu funcionamento, Esta doutrina nao é outra que a adocao do método cien- tifico, que é um método experimental. (Mead, 1936, p. 354) A adogio do pragmatismo por parte de Mead estava relacionada com seu compromisso como re- formador social. Foi sua crenga no desenvolvimento social que o levou a adotar uma concepgio instr ‘mental do conhecimento que permitisse o avango humano e a resolugio de problemas sociais. Ao mes~ mo tempo, tanto sua defesa de um ponto de vista evolucionista quanto sua concepgdo da inteligéncia reflexiva como uma forma superior de resolugio dos problemas o levaram a adotar uma filosofia prag- matista. Nesse sentido, Mead € um continuador da idéia de vincular 0 conhecimento a agio. Segundo Mead, o cariter reflexivo de nosso pensamento é 0 que nos permite antecipar as conseqiiéncias de nossas ages, incorporar nossa experiéncia passada e prever os resultados de diferentes cursos de agio sem incorrer em custos que derivariam de tais agdes. Em resumo, nos permite escolher as soluges mais adequadas aos problemas apresentados e prosseguir com um ato interrompido. Mead criticou o enfoque individualista que vinha caracterizando a psicologia ¢ propés uma mu- danga na sua perspectiva, de tal maneira que a experiéncia individual fosse tratada do ponto de vista da sociedade. De acordo com Mead (1934/72, p. 49): A psicologia social se interessa, especialmente, pelo efeito produzido pelo grupo social na determina- ‘G20 da experiéncia e do comportamento do membro individual. Se abandonarmos a concepgo de uma alma substantiva dotada, desde 0 nascimento, do eu do individuo, poderemos entio considerar o desen- volvimento do eu individual, e 0 de sua consciéncia de si mesmo, no campo de sua experiéncia, como © interesse especial do psicélogo. Existem, portanto, certos campos da psicologia que estio interessados em estudar a relacao do organismo individual com o grupo social ao qual pertence, e estes campos s0 © que constitui a psicologia social como ramo da psicologia geral. Uma parte importante do trabalho de Mead se desenvolveu em um momento histérico no qual a Psicologia estava dominada pelo behaviorismo. Como comentado anteriormente, em 1913 se publicou o artigo de Watson que deu origem a essa teoria, ¢ a partir dese momento a psicologia se inclinou ma- Joritariamente pelo estudo do comportamento sem fazer referéncia 4 mente nem consciéncia. Mead no ignorou o fato de a psicologia estar caminhando nessa direc, nem evitou a tarefa de tomar uma posi- Glo diante desse proceso. De fato, adotou 0 behaviorismo, apesar de sua idéia deste no coincidir com a de Watson. Diferentemente dele, Mead no excluiu a consciéncia e considerou necessitio seu estudo partindo da anilise do comportamento observavel. Para Mead, 0 comportamento observavel tem uma expressio no interior da pessoa. © estudo do comportamento nao pode ser considerado um fim em si ‘mesmo, mas um meio para obter conhecimento sobre os processos internos: a PSICOLOGIA SOCIAL * PERSPECTIVAS PSICOLOGICAS E SOCIOLOGICAS A psicologia social é comportamentalista no sentido de que parte de uma atividade observavel... que deve ser estudada e analisada cientificamente. Mas nao é comportamentalista no sentido de deixar pas- sar longe da experiéncia interna do individuo a fase interior desse processo ou atividade. (Mead, 1934, p. 55) Alguns autores qualificam seu enfoque como behaviorismo metodolégice, centrado mais na defesa do método cientifico do que em uma referencia a um marco teérico especifico (Baldwin, 1986). Desse ponto de vista, podemos entender o behaviorismo social de Mead como uma extensio de sua filosofia pragmatista. Entretanto, embora utilize 0 termo behaviorismo no sentido amplo, para fazer referencia ao fato de ser o comportamento a unidade da anilise, continua em sua obra uma concepgio teérica do behaviorismo herdada de Dewey, onde a estrutura do ato ¢ a atividade mental sio vistas como insepari- veis. Para Mead, o que caracteriza o complexo comportamento humano, a estrutura do ato completo, é © pensamento reflexivo: Continuamente interpretamos © que vemos como algo que representa um futuro comportamento. Para compreender 0 que aparece diante da nossa experiéncia, devemos considerar nao somente o est mulo imediato, mas também a resposta. A resposta se encontra parcialmente na tendéncia imediata em direg2o ao objeto e também nas imagens de nossa meméria, nas experiéncias que tivemos no passado... © organismo nao € algo que simplesmente recebe impresses e responde a essas. Nao é um protoplasma sensitivo que esté recebendo e dando resposta a estimulos do meio. (Mead, 1936, p. 389) Essa forma de entender o ato levou-o a rejeitar as explicagdes do comportamento oferecidas pelos behavioristas. Devemos lembrar que 0 objetivo deles era explicar 0 comportamento referindo-se uni- camente aos estimulos externos que o desencadeiam. O comportamento era concebido, dessa maneira, como uma reagio mecinica diante de estimulos do ambiente. Diferentemente dos behavioristas, Mead entende que a atitude nao é somente produto de uma série de reflexos condicionados, mas também tem um papel importante a consciéncia que se tem do objeto e a experiéncia passada deste. A consciéncia intervém, portanto, entre o impulso em direcio a certos objetos e a resposta. Mediante a anilise ¢ a dis- ctiminagio dos possiveis comportamentos que conduzem 4 consumagio do ato, algumas respostas sio inibidas e outras favorecidas. Mas a anilise da atitude de Mead, que a sintetiza em quatro fases (impulso, percepgio, manipulagio e consumagio), ndo pode ser vista como uma relagio sujeito/objeto (Mead, 1938). A anilise comportamental da atitude estaria incompleta sem uma anilise da linguagem. O que contribui para um desenvolvimento extraordinirio da teoria comportamental de Mead é a inclusio de uma teoria da comunicagio, em que se percebe a influéncia da Volkerpsychologie de Wundt e das idéias de Darwin sobre a expressio das emogdes. Um dos principais interesses de Mead foi estudar a evolugio da linguagem e analisar as relagGes existentes entre ela e os gestos. A idéia de Darwin de que as emogdes foram adquirindo um valor expressivo, mais até do que de sobrevivéncia, é o ponto de partida da anilise dos gestos realizada por Mead. Em sua opiniio, o gesto tem uma fungio comunicativa ou expressiva que fica bem evidente naquilo que ele denomina conversa por gestos, ¢ na qual cada gesto adquire o signi- ficado do ato total do qual faz parte, ou da resposta que termina provocando: “[os gestos] significam as ‘iltimas etapas da atitude que se aproxima... o punho fechado significa o golpe,a mio estendida significa © objeto que se tenta pegar” (Morris, 1934/72, p. XX, preficio). Capitulo 2A Consolidacdo da Psicologia Social como Disciplina Independente Para que exista comunicagio nio basta, entretanto, a linguagem de gestos, que seria somente a sua base, Para que exista comunicagio, os gestos devem adquirir, conforme Mead, valor simbélico ou, 0 que €a mesma coisa, transformar-se em gestos significativos, o que acontece quando a pessoa é capaz de an- tecipar a resposta que seu gesto provocari nos demais: (Os gestos se transformam em simbolos significativos quando provocam implicitamente, no individuo ‘que os faz, as mesmas respostas que provocam explicitamente (ou se supde que deveriam provocar) em outros ind (Mead, 1934/72, p. 47) A esséncia da comunicagio humana é, desse ponto de vista, a capacidade da pessoa para antecipar 48 respostas que cada ato provocari nos outros ou, 0 que é a mesma coisa, a capacidade para assumir 0 papel do outro. Isso faz com que sejamos sujeitos e objetos de nossa atividade reflexiva. Do ponto de vista evolutivo, isso supde um aprendizado que Mead situa nos jogos infantis em que, pela identifi- cagio com outros significativos, 0 menino aprende a adotar, para com ele proprio, a atitude dos outros. Finalmente, 0 proceso de aprendizado se completa com a adogio das atitudes da sociedade em seu conjunto, isto é, do outro generalizado. Essa capacidade para assumir o lugar dos outros e da comunidade organizada ou outro generalizado, consubstancial ao uso da linguagem na interagio social, é 0 que Mead utiliza para explicar © desenvolvimento do si mesmo. © surgimento do si mesmo é inseparivel do proces- so de interagao simbdlica que envolvem toda atividade e experiéncia social. Mas, se 0 assumir de papéis determina © processo social de formagio da identidade, seu conteiido nao pode ser considerado um reflexo ou copia de tais papéis. Adotar 0 papel dos outros ou do outro generalizado é, acima de tudo, uma atividade reflexiva. O produto de tal atividade reflexiva € 0 que explica que tenhamos consciéncia de 1n6s mesmos como individuos particulares com uma personalidade ‘inica. Isso leva Mead a estabelecer uma distingao entre o mim € o eu, onde se percebe a influéncia de William James “eu reage & pessoa que surge gragas a adogao das atitudes dos outros. Mediante a adogio de tais atitudes introduzimos 0 “mim” e reagimos a ele como um “eu” [..] a atitudes dos outros, que adotamos quando afetam a propria conduta, constituem o “mim", e isso 6 algo que existe, mas as reaces a isso do aconteceram ainda. Quando alguém se senta para meditar sobre alguma coisa, possui certos dados que existem. Suponhamos que se trata de uma situacao social que tem que resolver. Ele se vé a si mesmo do ponto de vista de um ou outro individuo do grupo. Estes individuos, relacionados todos juntos, the conferem certa pessoa, Bem, 0 que deve fazer? Nao sabe, e ninguém sabe |...]. © “eu”, como reagio a essa situago, em contraste com 0 “mim” envolvido nas atitudes que adota, € incerto. (Mead, 1934/72, pp 202-4) Embora se observem algumas imprecisSes no pensamento de Mead em relagio as fungdes do en ¢ do mim, podemos dizer que 0 eu reflete a criatividade e inova¢io pessoal, como conduta social indeter- minada, enquanto 0 mim refletitia 0 controle social exercido sobre nossa conduta. O objetivo central do pensamento psicossociolégico de Mead 6, afinal, explicar a determinagio social do comportamento, afistando-se das concepgdes individualistas das teorias psicol6gicas de sua época. Mead pée a énfase no social, mas também é necessério destacar sua nogdo de pessoa como agen- te ativo e nio como sujeito passivo diante das influéncias do meio. Esse enfoque da interagio como processo comunicativo levou socidlogos como Strauss (1956) a destacar que, na concepgio de Mead ca sociedade, esti presente a idéia de uma ordem negociada. Ao explicar as relages entre o individuo PSICOLOGIA SOCIAL * PERSPECTIVAS PSICOLOGICAS E SOCIOLOGICAS George Herbert Mead (1863-1931) George Herbert Mead nasceu em 1863 em South Hadley, Massachusetts, e depois de graduar-se em Oberlin College ¢ trabalhar para a Rede Ferroviaria de Wisconsin, decidiu ingressar em Harvard para completar seus estudos. © psicé- logo e pensador pragmatista William James foi um de seus mestres. Gracas a uma oferta que o proprio James Ihe fez para que fosse o tutor de seus filhos, pode custe- at as despesas de sua educacio. Isso Ihe deu a oportunidade de conhecer James de pperto, com quem manteve longas conversas. Como parte de sua formacao, estudou latim, grego, alemao e francés; familiarizou-se com a obra de Kant e Schopenhauer, e visitou as Universidades de Berlim e Leipzig. Suas raizes intelectuais sao, por essa razio, variadas: Darwin, os pragmatistas, 0 behaviorismo (embora rejeitasse a concepcao linear de estimulo e resposta de Watson), Adam Smith, Rousseau e Cooley. Conheceu Cooley na Universidade de Michigan, onde comecou a dar aulas em 1891, sem ter concluido seus estudos em Harvard. Cooley se tornaria um de seus melhores amigos e suas idéias sobre o desenvolvimento do selfexerceriam uma grande influéncia em seu trabalho. Durante os anos que permaneceu em Michigan, manteve também uma estreita relacio, tanto pessoal quanto intelectual, com John Dewey. De fato, quando Dewey se tornou diretor do departamento de filosofia da Universidade de Chicago, em 1894, Mead também deixou a Universidade de a sociedade, Mead mantém uma posi¢io emergentista, em que a consciéncia e a pessoa sio concebidas como 0 resultado da influéncia do grupo. No entanto, Mead nfo precisou recorrer a conceitos como 0 de mente grupal para explicar 0 fato de a sociedade ser anterior & pessoa e condicionar seu desenvolvi- mento. © mecanismo mediante o qual se produz o surgimento da pessoa no decorrer da evolugio é a lin- guagem, na forma de gesto vocal pela interacio simbélica, ‘A complexidade e riqueza do pensamento de Mead e 0 fato de uma parte de sua obra ter sido publicada de maneira péstuma, por intermédio de seus alunos, fizeram com que a acolhida de sua teo- ria social estivesse sujeita a diversas interpretagdes € criticas. Podemos resumi-las assim: falta de clareza conceitual, esquecimento dos elementos emocionais ¢ inconscientes do comportamento, imprecisio metodolégica, ambigitidade sobre o cariter processual ou estrutural do comportamento e, finalmente, excessiva énfase nos processos microssociais em detrimento dos macrossociais (veja Caballero, 1997) Apesar de todas essas criticas, a sistematizagio ¢ a riqueza do modelo tedrico de Mead o tornam indispensivel para a psicologia social. A insisténcia de Mead na comunicagio, na interagio da pessoa com os demais ¢ na determinacio social do comportamento individual torna a sua proposta uma ver- dadeira alternativa psicossocial 4s abordagens individualistas dominantes tanto na psicologia do inicio do século XX quanto em uma considerivel parte da psicologia social atual. Embora a corrente teérica iniciada por Mead tivesse tido continuidade, posteriormente, em diferentes tradigdes do interacionis- mo simbélico, desenvolvidas fundamentalmente nas escolas de Towa e Chicago, os psicélogos sociais da época, principalmente os que procediam da psicologia, nfo foram influenciados por seu pensamento. Fato que, infelizmente, ainda acontece atualmente e que se baseia na falsa crenga de que a teoria so- cial de Mead é, acima de tudo, uma teoria filos6fica incontrastivel mediante as priticas metodolégicas Capitulo 2 A Consolidacdo da Psicologia Social como Disciplina Independente ‘Michigan para incorporar-se ao mesmo departamento, La comecou a ministrar, em 1900, 0 primeiro curso sobre psicologia social, onde apresentou suas idéias sobre temas como os processos mentais € a relagao entre o selfe a sociedade. Seu interesse pelos processos sociais nao foi sé tedrico. Uma vez em Chicago, viu-se envolvido em pro- __jetos de reforma social relacionados com os direitos da mulher, as condicdes de vida dos trabalhadores, a __teforma das prisdes e a vida dos imigrantes. Como outros pragmatistas, acreditava que a sociedade devia reformar-se para permitir que a democracia se desenvolvesse. Era, sobretudo, um otimista. Sua conviccdo de que as condig6es de vida melhorariam com o tempo nao se viu frustrada nem com os acontecimentos que precipitaram o inicio da Primeira Guerra Mundial. Em 1931, sendo o diretor do Departamento de Filosofia em Chicago, viu-se envolvido em um confronto com os diretores da Universidade, que o obriga- ram a tenunciar, Pouco tempo depois um ataque cardfaco acabou com sua vida. ‘Apesar do amplo reconhecimento que Mead teve por seu trabalho docente, nao pul tado sistemético onde expusesse suas idéias. Sempre reclamou de sua dificuldade para registrar por escrito suas idéias, o que teria comprometido a permanéncia de seu legado se seus estudantes nao tivessem re- colhido as anotaces das aulas para editar, entre outros, Espiritu, persona y sociedad, publicado em 1934, Inés anos depois da morte de Mead. da psicologia social atual. No campo da sociologia, o pensamento de Mead teri influéncia nos anos 1920 e 1930, e,a partir dai, sua influéncia vai diminuindo diante do aparecimento e dominio da teoria funcionalista de Talcott Parsons. O declinio posterior do pensamento parsoniano dard lugar a uma influéncia crescente do interacionismo simbélico na sociologia e na psicologia social sociolégica. I OS PRESSUPOSTOS METODOLOGICOS DA PSICOLOGIA SOCIAL Durante o perfodo que estamos analisando, jé estavam definidas as tendéncias que caracterizaram © desenvolvimento metodolégico da psicologia social até o momento atual. A tensio entre 0 subjetivis- mo € © objetivismo, que marcaram 0 nascimento tanto da psicologia quanto da sociologia, continuava presente quando a psicologia social comegou a diferenciar-se como uma disciplina independente. A concep¢io positivista da ciéncia, que tinha se afirmado ao longo do século XIX, acabou impondo-se definitivamente no Ambito das ciéncias sociais durante as primeiras décadas do século XX. Isso induziu a maioria dos cientistas sociais a aceitarem a idéia de que existe um Gnico método cientifico ao qual to- das as ciéncias, sem excecio, devem ajustar-se, Como veremos a seguir, a defesa dessa consideragio posi- tivista teve diferentes implicag3es para a psicologia social psicol6gica e sociolégica. No primeiro caso, a interpretagio ortodoxa da tese da unidade da ciéncia teve como conseqiiéncia o predominio da experi- mentacio. O fato de a psicologia, que desde 0 comeco se inspirou nos métodos da fisica, ja ter tido uma ampla tradigo na utilizagio desse método facilitou sua incorporagio & psicologia social. No caso da psicologia social sociolégica, entretanto, a situagio foi diferente. A maior parte da pes- quisa empfrica realizada durante esse periodo aconteceu no contexto da Escola de Chicago, 0 que pro- piciou uma interpretagio mais flexivel da tese da unidade da ciéncia. PSICOLOGIA SOCIAL * PERSPECTIVAS PSICOLOGICAS E SOCIOLOGICAS Inspirados pelo pragmatismo, os socidlogos da Escola de Chicago nio renunciaram 4 idéia de que existia um método cientifico comum a todas as ciéncias, mas nunca utilizaram como referéncia os mé- todos experimentais da fisica ou da quimica, mas os métodos de pesquisa naturalista da biologia. Isso fez com que, sem abandonar a pretensio de obter um conhecimento cientifico sobre a realidade social, os psicélogos sociais procedentes da sociologia procurassem outros referenciais metodolégicos. A tendéncia experimental da psicologia social psicolégica Como vimos no capitulo anterior, no final do século XIX, a experimentagio era concebida como © principal método de pesquisa da psicologia cientifica, o que deve ser considerado um reflexo da he- gemonia que comesava a exercer o positivismo durante esse periodo. © uso do método experimental no serviu, entretanto, para que os psicélogos tivessem a sensagio de que sua cigncia avangava no mes mo ritmo que as ciéncias naturais. Depois de meio século de experimentagio, a psicologia do principio do século XX tinha entrado em crise. Do ponto de vista metodoldgico, uma das manifestagdes dessa tise foi a polémica provocada pelo uso do método experimental para abordar o estudo do pensamento € dos processos mentais superiores. Como j4 comentamos, quando Wilhelm Wundt propés a experi- mentagio como método de estudo da psicologia, estava restringindo sua aplicagao 4 anilise de processos mentais bisicos, como a sensagio ¢ a percepcio. Com isso, se mostrava de acordo com autores como Dilthey, que defendia que 0 método experimental era inadequado para conhecer o funcionamento de processos mentais mais complexos, como o pensamento ou a meméria. Mas os psicélogos da época no aceitaram 0s limites que tanto Wundt como Dilthey trataram de impor ao uso da experimentacio. As polémicas que a questio provocou, que se encontram exemplificadas pelas fortes discusses entre Dilthey ¢ Ebbinghaus (veja 0 Capitulo 1) e pelo enfrentamento entre Wandt e os psicélogos da Escola de Wurzburgo, foram uma caracteristica central da psicologia do inicio do século XX. A sensagio de que a psicologia havia entrado em crise se viu reforcada, além disso, pela crescente suspeita de que a aplicagio rigorosa do método experimental no estava servindo para obter um conhe- cimento objetivo sobre a mente, Ou, pelo menos, os dados derivados da experimentagio psicoldgica no pareciam ter o mesmo grau de objetividade que 0 conhecimento das ciéncias naturais. A pesquisa psicologica estava dando lugar a profundas contradiges, ¢ os resultados experimentais nio pareciam servir para resolver os debates te6ricos que a psicologia havia proposto, Essa situagio foi dando lugar a uma rejei¢io cada vez mais generalizada da introspecgio. O fato de © processo de introspeccdo nao ser acessivel a um observador externo, com a conseqiiente dificuldade para contrastar 0s resultados derivados desta, transformou-a em um método incompativel com © tipo de objetividade que se buscava. Quando se publicou o manifesto behaviorista de Watson, o rompimento metodol6gico que apresentava com relagio A psicologia anterior era uma rejeicdo total da introspecgio. O método experimental, entretanto, foi mantido pelos behavioristas como tinico método valido da psi- cologia. Seguindo as formas mais radicais do positivismo, Watson propés como critério geral vilido para qualquer método de pesquisa a inclusio unicamente daquilo que é observivel. E que se o fizesse, além disso, de maneira experimental. ‘Também as abordagens da Escola da Gestalt significaram, do ponto de vista metodolégico, uma ra- tificagio da tendéncia experimentalista da psicologia. Conquanto 0s representantes dessa escola fossem bastante ecléticos em suas abordagens, o certo € que, na pritica, inclinaram-se em sua maioria pela Capitulo 2 A Consolidagao da Psicologia Social como Disciplina Independente experimentagio, Uma prova da importincia que os gestaltistas davam a esse método & o fato de no arti go de Wertheimer de 1912, considerado o ponto de partida da escola, o experimento sobre o fenémeno phiser concebido como um experimento crucial, isto é, como uma evidéncia determinante com a qual se provava a inadequacao da psicologia wundtiana e se avalizava sua substituicio pela psicologia da Gestalt. Na mesma época em que foram publicados os artigos de Watson e Wertheimer, com os quais se iniciavam as duas psicologias hegeménicas do século XX, comegava a introduzir-se 0 método expe- rimental em psicologia social. Embora contasse com o antecedente dos trabalhos de Norman Triplett (1897), © primeiro uso sistemético da experimentagio em psicologia social aconteceu, segundo Danziger (1992), nos trabalhos de Walther Moede, realizados na Alemanha em 1913 e publicados em 1920. O fato de sua pesquisa se realizar precisamente na Alemanha e coincidir, além disso, com a pu- blicagio dos dez volumes da Vélkerpsycholagie de Wandr, ilustra a resisténcia dos primeiros psicélogos sociais a orientar sua disciplina para rumos diferentes aos dos experimentais. Nem mesmo os proprios discipulos de Wundt deram atengio as suas recomendacdes quanto is limitagdes do método experimen- tal. Como destaca Liick (1987, p. 26),"se os primeiros psicélogos sociais empiricos fossem seguidores de Wundt, nao foi o Wundt da Valkerpsychologie, mas 0 Wundt da psicologia fisiolégica quem Ihes serviu de modelo ¢ foram seus métodos que, completamente contra sua vontade, se utilizaram para pesquisar processos sociais”. Assim, por exemplo, no trabalho experimental de Moede nao se utilizaram como fonte teérica as idéias de Wand, mas as derivadas da psicologia das massas. Os trabalhos experimentais de Moede foram utilizados, posteriormente, por Allport (1924) em seus estudos sobre facilitagio social O objetivismo radical de Allport e a equiparagio que se estabeleceu entre psicologia social e psi cologia individual foram um passo decisivo para a orientacio, definitivamente experimentalista, que seguiria a psicologia social na primeira metade do século XX. Fiel ao positivismo dominante naquele momento, cuja expressio maxima na psicologia foi o behaviorismo de Watson (1913, 1924), Allport in- vestiu contra 0 conceito de mente grupal, por consideri-lo inatingivel e elaborou uma proposta metodo- ligica idéntica 4 do behaviorismo, em que a utiliza¢io objetiva do método experimental era considera~ daa tinica garantia do carster cientifico da psicologia social. A proposta metodologica de Allport, que na tealidade nio tinha feito mais do que destacar de maneira explicita o caminho que a psicologia social ja tomara havia tempo, foi amplamente aceita pelos psicdlogos sociais de orientagio psicologica. A utilizagio do método experimental no teve como tinico fim a comprovacio de hipdteses de- rivadas das teorias, mas teve também uma dimensio aplicada. Um dos exemplos mais ilustrativos do uso da experimentago com fins aplicados foram os estudos realizados por Elton Mayo nas instalagdes da Western Electric Company em Hawthorne, Chicago, entre 1924 e 1932 (Mayo, 1933). A conclusio principal dos experimentos de Mayo foi que a produtividade dos trabalhadores esta va mais afetada pelas relacdes que se estabeleciam entre eles do que por outro tipo de fatores, como as condigdes fisicas nas quais executavam suas tarefas, os incentivos econdmicos ou as horas de trabalho. A polémica em torno desses experimentos nio demorou a chegar. Além das criticas de cariter ideolégi- co, em que Mayo era acusado de no considerar os interesses dos trabalhadores ¢ de seguir as diretrizes marcadas pelos diretores da companhia, evidenciaram-se algumas irregularidades no desenvolvimento das pesquisas que afetavam, sobretudo, os critérios que se utilizaram para selecionar e excluir as trabalha~ doras de um dos experimentos realizados. Também foi questionada a validade interna do experimento, PSICOLOGIA SOCIAL * PERSPECTIVAS PSICOLOGICAS SOCIOLOGICAS no s6 pela falta de um grupo de controle mas também pelo denominado ¢feito Hawthome: 0 fato de os trabalhadores saberem que estavam sendo observados pode ter sido a causa que provocou os resultados obtidos. Mas, independentemente das criticas recebidas, 0 certo & que as pesquisas realizadas por Elton Mayo nas instalagSes da Hawthorne constituem uma referéncia obrigatéria na anilise do desenvolvi- mento metodoldgico da psicologia social, nio somente pelo conhecimento essencial que se derivou estas, que representou 0 reconhecimento da importincia das relagdes pessoais no contexto do trabalho, mas também por constituir um exemplo recente da utilizagio do método experimental na pesquisa aplicada, O ecletismo metodoldgico da psicologia social socioldgica Como j foi dito,a aceitagio da tese da unidade da ciéncia, que no ambito da psicologia culminou com 0 predominio da experimentago, foi objeto de uma interpreta¢io muito diferente no contexto da psicologia social socioldgica, dominada, no periodo que estamos estudando, pelas pesquisas da Escola de Chicago. Assumindo a concepgao de ciéncia derivada da filosofia pragmatista em que se inspiraram, os socidlogos dessa escola defenderam a aplicagio do método cientifico ao estudo da realidade social, em- bora nio concordassem com a idéia, tio forte na psicologia da época, de que os procedimentos experi- mentais utilizados pela fisica ou a quimica fossem um modelo adequado para as ciéncias sociais. Ainda que ecletismo metodolégico que caracterizou a Universidade de Chicago fizesse com que muitos de seus representantes nio rejeitassem radicalmente 0 uso desse método, o certo é que a estratégia expe- rimental resultava incompativel com os esquemas explicativos aos quais os autores davam prioridade, inspirados em idéias como a introspecsio simpatica de Cooley. Isso levou alguns deles a criticar a experi- mentagio. Thomas ¢ Znaniecki (1918-20), por exemplo, rejeitavam esse método por entender que ele obrigava 0 pesquisador a definir 0 comportamento como uma reagio mecinica aos estimulos do meio. Segundo os autores, para entender as manifestagdes da consciéncia individual é preciso entender o sig- nificado que as pessoas dio a suas ages, ¢ a nZo as isolar do meio social no qual sio produzidas: Qualquer método que considera o individuo como uma entidade particular e 0 isola de seu meio so- cial... para estudar experimentalmente seu comportamento como reacio a um estimulo, somente neces- sita de fatores psicol6gicos, fisicos ou biolégicos essencialmente e de forma indissolivel relacionados ‘com individuos concebidos como realidades psiquicas, fisicas ou, geralmente, biolégicas. (Thomas e Znaniecki, 1918/84, p.62) Mas a rejeigio da experimentagio nio implicava a rejei¢io do método cientifico como Gnica forma de acesso a0 conhecimento da realidade social. Da concepgao pragmatista da ciéncia da qual par- tiam, os representantes da Escola de Chicago estavam convencidos da superioridade do método cienti- fico, ¢ de que sua aplicago ao estudo da sociedade levaria & resolugio dos problemas sociais. O que os diferenciava dos partidérios da experimentagio nio era, portanto, a crenga no método cientifico, mas 0 modelo de ciéncia que consideravam mais adequado para a pesquisa social. Nesse sentido, rejeitavam 0 modelo da fisica e da quimica, e se inclinaram pelo modelo da biologia. Esta era, por exemplo, a visio de Mead. Em sua opinio, o surgimento da mente estava relacionado com o desenvolvimento da inteligén- cia reffexiva. © método cientifico nio era para ele mais do que uma conseqiiéncia I6gica do processo evolutivo que leva 0 ser humano a diferenciar-se das demais espécies:“A ciéncia é a expressio da forma mais elevada de inteligéncia, um método de continuo ajuste a0 que é novo” (Mead, 1936, p. 290). Esse Capitulo 2A Consoldacso da Psicologia Social come Discitina independente GH ajuste a um meio em constante evolugio é 0 que o levaria a defender um conhecimento empirico dos processos sociais identificado com 0 progresso cientifico, De acordo com sua visio dindmica da socieda- de,o conhecimento cientifico esta em constante transformagio: O cientista aceita sua teoria somente como um postulado valido para o presente € néo como algo que tem que ser adotado de uma maneira dogmtica... Nao considera que as leis e as formas em que aparecem devam ser mantidas como algo que nao deve ser tocado. Pelo contrario, esta ansioso por en- ccontrar uma excegao a formulacdo de tais leis (Mead, 1936, p. 265) Essa concepeio pragmatista da ciéncia, compartilhada por outros membros da escola, fez com que a sociologia e a psicologia social desenvolvidas durante esses anos na Universidade de Chicago tivessem uma clara orientagio empitica. A idéia de que © conhecimento cientifico devia ser comparado com a realidade, ¢ a opiniio de que a verdade das hipéteses cientificas depende de suas conseqiiéncias priticas, deram lugar a um enorme desenvolvimento da pesquisa aplicada, Esse tipo de trabalhos também se viu enormemente estimulado pelas demandas que a cidade de Chicago fazia Universidade. Como jé co- ‘mentamos, durante 0 perfodo que estamos analisando, a cidade estava vivendo um processo de ripida industrializagio, que a convertera no destino de um néimero crescente de imigrantes procedentes de diferentes paises. As dificuldades da cidade para absorver de forma tio ripida uma populagio cada vez ‘mais numerosa tinham dado lugar a situagdes de grande precariedade ¢ o surgimento de numerosos problemas sociais. Inspirando-se nos principios do pragmatismo, 0s socidlogos da Escola de Chicago as- sumiram a tarefa de realizar uma anilise cientifica desses problemas, como passo prévio a sta solugio. A idéia fez com que as pesquisas realizadas por esses autores fossem além do ambito da Universidade e se envolvessem na vida da cidade. A concepgio pragmatista da ciéncia defendida pelos socidlogos da Escola de Chicago foi compativel com diferentes estratégias metodoldgicas. Como veremos a seguir, embora seja freqiiente que os trabalhos da escola se identifiquem com o uso de métodos qualitativos de pesquisa, o certo & que eles coexistiram com o desenvolvimento de importantes estudos de cariter quantitativo, Um dos tragos mais caracteristicos da metodologia utilizada pelos socidlogos da Escola de Chicago foi a importincia que atribufram a pesquisa etnogrifica, onde se percebe a influéncia de Robert Park.A. concep¢do que tinham da cidade, que consideravam um laboratério sociol6gico, fomentou a realizacio de mumerosos estudos etnogrificos destinados a analisar e, em diltima instincia, resolver os problemas sociais que a rapida industrializagio ¢ © aumento da imigragio estavam provocando. A convivéncia em Chicago de setores de populagio de diferentes procedéncias social e cultural, que apesar de compartilhar © mesmo espago, nio se relacionavam uns com outros, transformava a cidade em um amilgama de di- ferentes realidades. A situagio levou autores como Park a conceber a cidade como uma justaposi¢io de reas naturais, muito diferenciadas umas de outras,e suscetiveis de ser estudadas do mesmo ponto de vista que adota o etnégrafo ao analisar outras culturas.A idéia inspirou a realizagio de uma grande quantida- de de estudos orientados a conhecer a forma de vida em cada uma dessas areas. De todos os trabalhos tealizados cabe destacar, por sua relevancia para a psicologia social, a pesquisa sobre as atitudes do grupo de camponeses poloneses, realizada por Thomas e Znaniecki (1918-20), ja mencionada anteriormente. William Thomas foi um dos autores que mais influenciaram na orientago empirica que tomou a psi- cologia social sociol6gica. O estudo que realizou junto com Florian Znaniecki, cujo objetivo foi ana~ lisar a resposta dos imigrantes poloneses diante da mudanga social que supunha sua integragio na vida norte-americana, foi um marco para a pesquisa psicossociol6gica, e exerceu uma enorme influéncia na PSICOLOGIA SOCIAL * PERSPECTIVAS PSICOLOGICAS E SOCIOLOGICAS metodologia adotada pelos sociélogos da Escola de Chicago durante os anos 1920.0 miétodo utilizado por esses autores para obter informagio sobre a situagio dos imigrantes poloneses foi a andlise de do- cumentos procedentes de diversas fontes: cartas, noticias de jornais, registros de julgamentos, sermées, panfletos religiosos ou politicos etc. Mas a principal inova¢io metodologica que esse estudo trouxe para a pesquisa social foi a utilizagio de documentos pessoais, por meio dos quais se obtinha informagio em primeira mio sobre diferentes aspectos da vida dos imigrantes e suas familias. A elaboragio de histérias de vida e a andlise das cartas que os imigrantes trocavam com familiares que ficaram na Polénia serviram para que os autores estudasssem a situagio social dos imigrantes, ado- tando © ponto de vista destes. Uma posi¢io metodolégica coerente com a concepgio de ago da qual partiam Thomas e Znaniecki, em que eram parte essencial a definigo que a pessoa dava da situagio ea forma pela qual entendiam a mudanga social, como produto da interago entre a consciéncia individual €.a realidade social objetiva. ‘O estudo de Thomas ¢ Znaniecki é representativo de uma parte importante da pesquisa que se reali- zou durante as duas primeiras décadas do século XX no departamento de sociologia da Universidade de Chicago, onde se priorizava a utilizagio de técnicas de pesquisa qualitativas por entender que eram mais apropriadas para entender 0 ponto de vista do individuo. Entretanto, apesar da identificagio que se esta beleceu com o tempo entre a sociologia dessa escola e a pesquisa qualitativa, ndo era esta a tinica meto- dologia utilizada. A pesquisa quantitativa nio s6 nio foi rejeitada pelos socidlogos da Escola de Chicago, mas também conheceu ai um grande desenvolvimento durante periodo que estamos analisando. De fato, foi no contexto da Universidade de Chicago onde comegaram a ser elaboradas, na segunda meta- de da década de 1920, as primeiras escalas de atitudes. Embora a pesquisa sobre atitudes realizada pela Escola de Chicago costume ser identificada mais com a anilise qualitativa de Thomas ¢ Znaniecki que com a pesquisa utilizando escalas, o fato & que foi af onde surgiram as primeiras tentativas de medir 0 conceito de atitude. Foi Emory F Bogardus, vinculado ao departamento de sociologia da Universidade de Chicago, que, em 1925, desenhou o primeiro instrumento para medir as atitudes. Com o objetivo de analisar as atitudes da popula¢io norte-americana para com os imigrantes, Bogardus elaborou a denominada Escala de Distancia Social, com a qual pretendeu quantificar a distancia social que se desejava manter com pessoas de outros grupos, Essa distincia, considerada um bom indicador da atitude para com outras pessoas, foi definida como o grau de intimidade que o individuo poderia aceitar em uma relagio.A idéia que emer- ge da escala elaborada por Bogardus € que quanto maior for o grau de intimidade, menor é a distancia social ¢ mais positiva é a atitude. A escala consistia em apresentar 3 pessoa uma lista de diferentes grupos nacionais (canadenses, hispanos, gregos, servo-croatas) e perguntar que tipo de relagio estaria disposta a manter com pessoas pertencentes a esses grupos. As possibilidades de resposta eram as seguintes: pa- rentesco pela via matrimonial, como membros do mesmo clube, como vizinhos, trabalhando na mesma ocupagio no proprio pais, como cidadios do pais, somente como visitantes do pais, no os deixaria en- trar no pais. Se considerarmos © contexto cientifico dos anos 1920, temos que concluir que a proposta de Bogardus era engenhosa. Valendo-se de uma analogia entre a distancia fisica e a distincia social, elabo- rou uma escala com a qual situava as pessoas em uma graduagio que ia da maxima distancia (atitude negativa) até a méxima aproximagio (atitude positiva). Evidentemente, a proposta de Bogardus tinha Capitulo 2A Consolidasio da Psicologia Social como Disciplina Independente suas limitages. Uma delas era que as distincias entre os diferentes pontos da escala no eram iguais. Por exemplo, a diferenga de atitude que existe entre alguém que aceita outra pessoa como cénjuge e al- guém que a aceita como membro de um clube parece ser maior que a que hi entre quem aceita alguém como membro de um clube e quem o aceita como vizinho, apesar de a escala assumir distincias iguais. Por outro lado, a ordem em que estio situados os pontos da escala nfo tem por que coincidir com a ordem no grau de intimidade. No entanto, independentemente das criticas que naquela época recebeu, nio hi dividas de que a escala foi uma importante contribuigio para o desenvolvimento metodolégico da psicologia social. O simples fato de contar com um instrumento para medir atitudes, impulsionou a pesquisa empfrica sobre este tema e foi, além disso, um estimulo para a elaboracio de outros instrumen- tos de medida Embora a Escala de Distincia Social de Bogardus fosse 0 ponto de partida da pesquisa quantitativa sobre as atitudes, o verdadeiro desenvolvimento das escalas de atitude ocorreria durante os anos 1930. Como veremos no capitulo seguinte, foi Thurstone, pertencente também 4 Universidade de Chicago, quem deu um impulso definitivo ao estudo quantitativo das atitudes, com a elaboragio de uma nova scala (Thurtone, 1927, 1929), com a qual solucionava alguns dos problemas da escala de Bogardus. Ainda que Thurtone pertencesse ao Departamento de Psicologia, onde permaneceu de 1924 a 1952, cle também exerceu uma notivel influéncia no Departamento de Sociologia, onde teve alguns estudan- tes, como Samuel A. Stouffer, que contribuiriam posteriormente para 0 desenvolvimento, nesse depar- tamento, de uma importante linha de pesquisa quantitativa, Portanto, apesar de freqiientemente a sociologia da Escola de Chicago ser identificada com 0 uso de métodos de pesquisa qualitativos, 0 certo é que, desde seu inicio, a pesquisa qualitativa coexistiu com arealizagio de estudos de cariter quantitative. Durante as primeiras décadas do século XX, a convivén- cia entre ambas as formas de pesquisa nfo trouxe controvérsias, existindo inclusive algumas tentativas de integrar ambas as estratégias. Mas, infelizmente, o ecletismo metodolégico que caracterizou a sociologia de Chicago, que poderia ter tido um efeito muito positivo na psicologia social sociolégica, comegou a desaparecer no final da década de 1930. ‘Como veremos nos capitulos seguintes, as disputas que comegaram a surgir nesse periodo entre os defensores da pesquisa qualitativa, como Herbert Blumer, ¢ 0s partidérios da utilizagao de procedimen- tos quantitativos, como Samuel Stouffer (veja Bulmer, 1984), desde entio acompanham o desenvolvi- mento metodolégico da psicologia social ® RESUMO Neste capitulo analisamos a forma pela qual a psicologia social foi se diferenciando como uma disciplina independente. Um processo que teve lugar durante as primeiras décadas do século XX e que aconteceu de forma simultinea tanto na psicologia quanto na sociologia. A simultanei~ dade com que foi se desenvolvendo o pensamento psicossociolégico em ambas as disciplinas nio €0 tinico exemplo da pluralidade que caracterizou a psicologia social nessas etapas iniciais. Tanto ma psicologia quanto na sociologia criaram-se diferentes linhas de desenvolvimento da psicologia social que significavam formas diferentes de entendimento da disciplina. PSICOLOGIA SOCIAL * PERSPECTIVAS PSICOLOGICAS E SOCIOLOGICAS Um dos caminhos pelos quais seguiu 0 desenvolvimento da psicologia social na psicologia foi a Volkerpsychologie ou Psicologia dos poves, uma psicologia cultural que comecou a se desenvol- ver na Alemanha na segunda metade do século XIX e que foi retomada, durante as duas primeiras décadas do século XX, por Wundt, que a considerou uma alternativa a psicologia experimental. Ao mesmo tempo, surge também na Alemanha a psicologia da Gestalt, uma corrente psicolégica que exerceria uma grande influéncia no desenvolvimento posterior da psicologia social. Durante a pri- meira etapa, a principal linha de desenvolvimento da psicologia social psicolégica foi a gerada em torno da teoria dos instintos. Sob a influéncia das teorias evolucionistas, surgiu na psicologia um crescente interesse pelo estudo das bases inatas do comportamento. © exemplo mais representati- vo dessa forma de entender a psicologia social é 0 trabalho do britinico William McDougall, autor do primeiro manual de psicologia social escrito por um psicélogo. A idéia de que grande parte do comportamento humano pode ser explicada recorrendo a fatores como o instinto ou a heranca genética teve tanta influéncia que, nas primeiras décadas do século XX, a psicologia social chegou a ser identificada com as teorias dos instintos. Finalmente, essa linha de trabalho foi abandonada devido, entre outros fatores, ao surgimento de uma nova corrente teérica da psicologia, 0 behavio- rismo, cujos principios foram introduzidos na psicologia social por Floyd Allport. No mesmo ano em que se publicou o manual de McDougall surgiu o primeiro manual de psicologia social procedente da sociologia. Trata-se do manual de Ross, um sociélogo norte-ame- ricano que, reunindo algumas das idéias da teoria social francesa de meados do século XIX, explica © comportamento social recorrendo ao conceito de imitacdo. Depois dos manuais de McDougall e Ross, foram aparecendo outros textos de psicologia social, a maior parte procedia da 4rea da socio- logia. Na anilise da psicologia social das primeiras décadas do século XX é necesséria uma mencio particular aos trabalhos desenvolvides por Cooley e por alguns sociélogos vinculados a Escola de Chicago. Fortemente influenciados pelo pragmatismo, os sociélogos da Escola de Chicago desen- volveram uma linha de trabalho que se converteria na base do interacionismo simbélico, principal teoria da psicologia social sociolégica. Embora tenha sido nos Estados Unidos que a psicologia social comecou a ser definida como uma especialidade da sociologia, também a sociologia européia de prineipios do século XX nos oferece alguns antecedentes importantes da psicologia social. A microssociologia de autores como Weber ou Simmel sio claros exemplos de um pensamento psi- cossociolégico na sociologia.

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