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Bern eerste key A EFICACIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS UMA TEORIA GERAL DOS bikelres FUNDAMENTAIS NA PVE CROLL ZC) Eee A livrariaf! rye) un s/o Sere Décima edigao indice geral Nota a 10° edigao Agradecimentos Abreviaturas Prefiicio . Sumério Notas introdutérias ¥ Parte sistema dos direitos fundamentais na Constituigao: delineamentos de uma teoria geral constitucionalmente adequada 1. A problematica da detimitagdo conceitual e da definigdo na seara terminoldgica: a busca de um consenso : 2. Perspectiva histérica: dos direitos naturais do homem aos direitos fundamentais constitucionais eu problemdtica das assim denominadas dimensdes dos direitos fundamentais ... 2.1. Consideragdes preliminares 2.2. Antecedentes: dos primérdios & concepeZo jusnaturalista dos direitos naturais € inatiendveis do homem 2 O processo de reconhecimento dos direitos fundamentais na esfera do direito positive: dos direitos estamentais aos direitos fundamentais constitucionais do século XVIII 2.4, AS diversas dimensdes dos direitos fundamentais ¢ sua importincia nas etapas de sua positivagdo nas esferas constitucional e internacional 2.4.1. Generalidades : 2.4.2. Os direitos fundamentais da primeira dimensio 2.4.3. Os direitos econdmicos, sociais ¢ culturais da segunda dimensio 2.4.4. Os direitos de solidariedade e fratemidade da terceira dimensao 24.8. Direitos fundamentais da quarta e de quinta dimensio? 246. Algoma consieragdes conclsivaseslgumasindagagdes em fomo da oben das dimensdes dos direitos fundamentais : 3. Direitos fundamentais ¢ Constituigdo: a posigio eo significado dos direitos fundamentais ‘na Constituigiio de um Estado Democritico e Social de Direito 4, A concepgao dos direitos fundamentais na Constituigao de 1988, 4.1.0 catélogo dos direitos fundamentais na “ConstituigSo-Cidada” de 1988, 4.1.1. Breve apresentagio 4.1.2. Elementos caracterizadores de um sistema de direitos fundamentais .. u 15 19 2 a2) 58 63 6 63 - 9 4.2. A nota da “fundamentalidade” formal e material dos direitos fundamentais na Constituigao de 1988... "4 4.3. O conceito materialmente aberto de direitos fundamentais no direito constitucional positivo brasileiro oo = i a B 4.311. Sigificadoe aleance do ar. 5°. § 2" da Constituigdo de 1988: nogdes preliminares B 4.3.2. Abrangéncia da concepgdo materialmente aberta dos direitos fundamentais, na Carta de 1988 : wee 82 43.3. Contomos de um conceito material de dieitos fundamentais na Consiga 84 4.3.3.1. Consideragdes preliminares : 84 4.33.2 Critériosreferenciais para um conceto material de direitos fundamentais - 9 4,3.3.2.1. Consideragdes introdutérias: 0 critério implicito da equivaléncia e seu significado ... 91 4333.22. Prinefpiosfundamentss direitos fundamen, com especial tengo para 0 principio da dignidade da pessoa humana . : 8 43.32. Outros referencias para a consrugo de um concito material de direitos fundamentais . : 4 ee ee —— categorias ¢ a busca de exemplos : cece HS 4.3.4.1. Consideragdes preliminares . MS eee ,rr—™rhrLrvLrercrc_ trl 4.3.4.3. Diteitos fundamentais sediados em tratados internacionais, se 19 4.3.4.4. Algumas notas sobre o novo § 3° do art. 5° da Constituigdo ¢ seus possiveis reflexos no que dz coma incoporaoehiearuia dos dito com sede em retados internacionais cee . 127 ee 5 137 4.35, Possibilidadeselimitages do conceito material de direitos fundamentais su s+uv+» 137 5. A perspectiva subjetiva e objetiva dos direitos fundamentais, sua multifuncionalidade classificacdo na Constituigdo de 1988 ....... 5 se 4d 5.1. dupla perspectva ds direitos fundamentais na condigd de normas objetivas © direitos subjetivos: significado e aleance M4 5.1.1. Consideragdes preliminares . 1a 5.1.2. A perspectiva juridico-objetiva dos direitos fundamentais ¢ seus diversos desdobramentos .. 142 5.1.3. Os direitos fundamentais na sua perspectiva jurfdico-subjetiva peeves 15H 5.2 A multfunconlidade dos diets fundamentss¢o problema de sua classificagho na Constituiga0 155 5.2.1 Intodugto: a multifuncionalidade dos direitos fundamentais ea atualidade da teoria de Georg Jellinek : 155 5.2.2. O problema da classificagdo dos direitos fundamentais na Constituigdo de 1988......... 159 5.2.2.1. Consideragées preliminares 5.2.2.2. ConsideragGes em torno de uma proposta Fe de posiglo pessoal... ..eecveeeee =. 162 5.2.2.3. Samia apresenagto ds diversas cetegoris de iets fandamentasindvidualmente consideradas : 168 5.22.3.1. Os direitos fundamentais na qualidade de direitos de defesa : 168 5.2.2.3.2. Os direitos fundamentais como direitos a prestacdes : 184 6. Os direitos fundamentais e seus titulares . 208 6.1, Notas introdut6rias: a distingao entre titulares e destinatarios dos direitos e garantias fundamentais — aspectos conceituais e terminolégicos .............. 6.2. O principio da universalidade e a titularidade dos direitos fundamentais 6.3. A pessoa natural como titular de direitos fundamentais: generalidades 6.4, Direitos dos estrangeiros e a relevancia da distingdo entre estrangeiro residente endo-residente . 65. O problema da titularidade (individual e/ou coletiva?) dos direitos sociais, 6.6. Casos especiais: direitos do embrio e 0 problema da titularidade de direitos fundamentais nos limites da vida e post mortem 6.1. Pessoas juridicas como titulares de direitos fundamentais .. . 6.8. Direitos dos animais e de outros seres vivos? O problema da titularidade de direitos fundamentais para além da pessoa humana 7, Deveres fundamentais 7.1, Notas introdutérias 7.2. Tipologia dos deveres fundamentais . 73. O regime juriico-constitucional dos deveres fundamentas “2 Parte O problema da eficacia dos direitos fundamentais 1. Introdugdo: colocagao do problema e distingdes nas searas conceitual e terminolégica 2. A problemiitica da eficdcia das normas constitucionais em geral no ambito do direito constitucional brasileiro: principais concepgdes € tomada de posigo pessoal 2.1. As concepgies clissicas 2.2. & enttica da concepgaio classica de inspiragio norte-americana e sua reformula resenha das principais concepgées na literatura juridica nacional 2.3, Sintese conclusiva e posigao pessoal 3. A eficécia dos direitos fundamentais 3.1, Consideragdes introdut6rias 3.2. A aplicabilidade imediata (direta e plea eficcia das norma definidoras de direitos fundamentais: significado e alcance do art. 5°, § I°, da Constituigao de 1988 3.3. A eficdcia dos direitos fundamentais propriamente dita: significado da aplicabilidade imediata para cada categoria dos direitos fundamentais 3.3.1. A titulo de preliminar 3.3.2. A eficdcia dos direitos de defesa . 34. Accacia dos direitos soca na sua dimensto prstacional como problema espectfico 3.4.1. Consideragdes preliminares 3.4.2. Aspectos relevantes concernentes & distinglo entre os direitos de defesa os direitos sociais prestacionais 3.4.2.1. Consideragdes introdutérias 3.4.2.2. Os direitos sociais prestacionais e seu objeto 3.4.2.3. A especial relevancia econdmica dos direitos sociais prestacionais € o limite (relativo) da “reserva do possfvel” 3.4.2.4. Caracterfsticas normativo-estruturais dos direitos sociais a prestacdes e 0 problema de sua habitualmente sustentada dependéncia de concretizagdo legislativa 3.4.3. A eficdcia dos direitos sociais no ambito de sua possivel dimensio 3.4.4. A problemitica dos direitos sociais na qualidade de direitos subjetivos a prestagdes .. 3.4.4.1. Considerages gerais 3.4.4.2. Os direitos derivados a prestagdes 3.4.4.3. A discusso em tomo do reconhecimento de direitos subjetivos originérios a prestagdes sociais, analisada & luz de alguns exemplos 224 . 226 226 28 229 242 242 = 244 250 257 257 261 23 273 274 280 280 281 281 282 284 289 291 299 299 301 - 305 3.4.4.3.1. Os principais argumentos 3.4.4.3.2. O direito a garantia de urna existéncia 1a: a problematica do saldrio minimo, da assisténcia social, do direito & previdéncia social e do direito & satide e & moradia 3.4.4.3.3. O direito social & educagio 3.4.4.3. Anilise critica dos argumentos e exemplos. & luz de algumas concepgdes doutrinérias ‘e tomada de posigdo pessoal sobre o reconhecimento de direitos subjetivos prestagées sociais 3.5. A vinculago do poder publica e dos particulars as direitos fundamentsis 3.5.1. Consideragdes preliminares 3.5.2. A vinculagio do poder publico aos direitos fundamentais ‘A amplitude da vinculagao 3.5.2.2. A vinculagao do legislador aos direitos fundamentais . 3.5.2.3. Vineulagio dos érgios administrativos (Poder Executivo) aos direitos fundamentais 3.5.2.4. A vinculago dos juizes e tribunais aos direitos fundamentais ........- 3.5.2.5. A assim denominada eficécia “privada” ou “horizontal” dos direitos fundamentais (a problemitica da vinelago ds pariculres 3s normas defniors de dicts e garantias fundamentais) Bene codoee eueoseeed A protecao dos direitos fundamentais em face de suas restrigdes: Ambito de protegio, limites ¢ limites aos limites dos direitos fundamentais, com destaque para a protecdo em face da atuagio do poder de reforma constitucional e da assim designada proibicio de retrocesso 4.1, Considerac 412. Ambito de protegao, limites e limites aos limites dos direitos fundamentais 'sintrodutsrias 4.2.1. Consideragdes introdut6rias 4.2.2. 0 Ambito de protegdo dos direitos e garantia fundamentais . 4.2.3. Os limites dos direitos fundamentais 4.2.4, Os assim chamados limites aos limites dos direitos fundamentais 4.2.4.1. Nogdes preliminares 4.2.4.2. Proporcionalidade e razoabilidade como limites dos limites . 4.2.4.3. A garantia do nicleo essencial dos direitos fundamentais 4.3. Direitos fundamentais ereforma da Consttugio: a efiescia “protetiva” dos direitos fundamentais contra a sua supressio e erosdo pelo Poder Constituinte Reformador 4.3.1. Consideragdes introdutérias . 4.3.2. Colocagao do problema e distingdes conceituais . 4.3.3. Os limites & reforma da ConstituigHo: consideragdes gerais .. 4.3.3.1. A titulo introdut6rio 4.3.3.2. Limites formais ¢ temporais (circunstanciais) 4.3.3.3. O problema dos limites materiais 4.3.4. “Cléusulas pétreas” e direitos fundamentais 4.3.4.1. Consideragdes preliminares . 4.342. Abrangéncia das “cléusuls pétreas” na esfera dos direitos fundamentais 4.3.4.3. Alcance da protecdo outorgada aos direitos fundamentais 4.4, Direitos fundamentais e proibigao de retrocesso 4.4.1. Consideragées preliminares ce 4.4.2. A problemitica da proibigdo de retrocesso e suas diversas manifestacées 4.4.3, Fundamentacao juridico-constitucional de uma proibigdo de retrocesso, especialmente em matéria de direitos sociais 4.4.3.1. Alumas premissas para a andlise 305 309 332 342 365 365 365 365 367 369 372 374 4.4.3.2. Um olhar sobre o direito estrangeiro: breve apresentacio das experiéncias portuguesa ¢ alema em matéria de proibigao de retrocesso - 4.4.3.3, Algumas objegdes em relagdo ao reconhecimento de uma proibicao de retocesso em matéria de direitos sociais . 4434. Princfpais argumentos em prol do reconhecimento de um richie implicit da proibigio de retrocesso na ordem constitucional brasileira . 443.5. Algunsertéris para aferigfo do alcance possvel (necessério do principio da proibigdo de retrocesso Conelusio Referéncias bibliograficas 39 43 444 - 450 459 461 A EFICACIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS UMA TEORIA GERAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NA PERSPECTIVA CONSTITUCIONAL 2683 Zao ley oO Ingo Wolfgang Sarlet S ticuanne = Doutor em Dro pea Universidade de unique. Estudos em Nivel de 6s Dowtorado nas Unversdadah PARIS. &, unique, Georgetown e unto a0 insuto Max-Planck de Direlto Socal Estrangeio Internacional (Munk ‘onde tamisém atua como representante brasiero correspondente centio, Protessor Titular de Direto Consttucional Direites Fundamentals nos cursos de Graduapo, Mestrado e Doutorado da PUCIRS ¢ da Escola Superior da Macistratura do RS (AJURIS), Professor do Doutorad ‘em Diretos Humanos ¢ Desenvolvimento da Universidade Pablo ce Olavide, Sevha. Professor vistante (como bolsista do Programa Erasmus Mundus, da Unido Européia) da Faculdade de Direlto da Universidade CCatbica Portuguesa ~ Lisboa. Pesqulsador vista na Harvard Law School. Coordenador do Nicleo de Estudos e Pesquisas em Diretos Fundamentals (CNPo),vinculado 20 Mestrado e Doutorada em Direto da PUGIRS. Jul de Direito de Entrca Final (RS), ‘> Ss os A EFICACIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS UMA TEORIA GERAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NA PERSPECTIVA CONSTITUCIONAL DECIMA EDICAO revista, atualizada e ampliada fh. livraria DO ADYOGADO feditora Porto Alegre, 2009 Notas prévias a 10? edigdo Embora, dada a circunstincia de que a edigao anterior tenha esgotado nova- mente em menos de um ano, fosse legitimo optar tanto por uma reimpressio, quanto por uma ligeira atualizagao ¢ revisao da obra, tomamos a liberdade de, também mo- tivados pelo fato de ser esta precisamente a décima edigao da obra, cuja preparagao iniciou j4 no ano do décimo aniversério da publicaco da primeira edigao, em abril de 1998, de também desta feita ir algo além. Com efeito, além da jé convencional, mas agora amplamente reforgada, revisdo e atualizaco (apenas em matéria de referéncias bibliograficas, foram considerados quase uma centena de titulos, além de uma série de decisdes dos Tribunais) do texto, com destaque para os capitulos da classifica- go, titularidade e eficacia dos direitos fundamentais, levamos a efeito uma alteragao (parcial, é certo) na propria estrutura da obra, mediante a insergdo, na segunda parte, de um capitulo auténomo sobre os limites e restrigdes dos direitos fundamentais, que, além da j4 versada problematica da protegdo dos direitos fundamentais em face das reformas constitucionais e de um retrocesso, agora abarca a matéria relativa a0 Ampito de protecio, limites e restricdes, com destaque para a questio dos limites aos limites dos direitos fundamentais. Ainda que também neste particular se trate de um tema que estd a merecer maior desenvolvimento, consideramos que o material ora colocado & disposigo do leitor esté em condigGes de ser integrado ao texto da obra, sujeito ao habitual processo de discussio na esfera académica e conseqiiente aperfei- coamento. De outra parte, levando em conta que ao longo desta edie e da imediatamente anterior, houve a inclusao de trés novos capitulos, versando, respectivamente, sobre a titularidade dos direitos fundamentais, os deveres fundamentais ¢ agora sobre os limites e restrigdes dos direitos fundamentais, a obra, no seu conjunto, ja preenche os pressupostos de uma parte geral da dogmética jurfdico-constitucional dos direitos fundamentais, o que, de certa maneira, considerando a utilizacao do livro como texto de referéncia em varios cursos de graduacdo e pés-graduacio, motivou também a alteragGo do préprio titulo, que ora ostenta, cremos de modo justificado, além da mengao 2 eficdcia dos direitos fundamentais, a justificada referéncia a uma teoria geral. Além disso, em virtude de mais um ajuste no formato e diagramago da obra, foi possivel minimizar o impacto das insergdes (que representa cerca de cinguenta paginas de texto, sem contar a bibliografia) no que diz com o néimero total de paginas do livro e o respectivo custo. De qualquer modo, o que esperamos é que independen- temente da mudanga do titulo, a atualizagao e a ampliagao ora levadas a efeito fagam com que a obra siga merecendo a atengio da comunidade (fel dos amigos dos direitos fundamentais. Por derradeiro, no poderfamos deixar de formular especial agradecimento & pessoa amiga ¢ sempre presente do Prof. Dr. Vasco Pereira da Silva (Lisboa), parcei- To ja de algumas jornadas, assim como a Diregio e Secretaria da Faculdade de Direito da Universidade Catélica Portuguesa (Lisboa) e ao Programa Erasmus Mundus da Unitio Européia, que nos propiciaram, além dos recursos materiais (bolsa para inves: tigagio e docéncia), a acolhida c o ambiente de trabalho propicio para a pesquisa e a redagdo desta décima edigio. Ao Prof. Dr. Paulo Mota Pinto, da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, que nos brinda com sua amizade ha quase duas déca- das, igualmente importa direcionar um voto de gratidao e reconhecimento, pelo apoio pessoal € académico, assim como pela generosa oferta das instalagdes em Lisboa, tudo a contribuir para uma estada altamente proveitosa e um excepcional ambiente de trabalho, Igualmente gratos somos aos Professores Jorge Miranda e Joaquim José Gomes Canotilho, aqui também representando o grupo de constitucionalistas e estu- dantes de alto gabarito com quem tivemos o privilégio de conviver durante a estada em Portugal. Na biblioteca do Tribunal Constitucional, em Lisboa, também obtive- mos acolhida e suporte, razao pela qual néo poderiamos deixar de formular nossos agradecimentos & equipe responsdvel. Agradecemos, ainda, ao colega e amigo Prof. Dr. Jorg Neuner (Universidade de Augsburg, Alemanha) e & sua equipe da Catedra de Direito Privado e Filosofia do Direito pelo generoso auxilio na disponibilizagio da mais atualizada literatura alema sobre os temas versados. Ao Mestre em Direito (PUCRS), Doutorando e Professor Assistente (Augsburg) Pedro Scherer de Mello Aleixo, a nossa gratidao pelo competente auxilio na pesquisa e formatagao inicial das anotacdes que resultaram, em boa parte, na redaco do capitulo, ora inserido na obra, sobre 0s limites e restrigGes dos direitos fundamentais. Finalmente, agradecemos & parceria amiga e competente do Walter € do Valmor, ambos representando a equipe da Livraria do Advogado Editora. De Lisboa para Porto Alegre, fevereiro de 2009, smente em expansio) Prof: Dr. Ingo Wolfgang Sarlet Agradecimentos (1? edigao) Ainda que cada obra cientifica exija de seu autor um considerével dispéndio de tempo, além de persisténcia e uma vontade firme ¢ direcionadada, isto nao signi- fica que tenha sido elaborada sem qualquer tipo de contribuig2o, direta ou indireta. Também este trabalho nao pretende (nem poderia) constituir excegdo & regra, raziio pela qual se impde seja rendida a justa homenagem ao expressivo nimero de pessoas que ofereceram a sua colaboracao. Deixar de referi-las nesta oportunidade significa- ria desconsiderar a importancia da contribuicao recebida. Uma vez que o trabalho, ainda que de forma meramente parcial, deita raizes na tese de doutoramento por mim escrita a0 longo dos anos de 1995 e 1996,' nao poderia deixar de ressaltar, neste contexto, a figura impar de meu orientador, Prof. Dr. Heinrich Scholler, Catedrético de Direito Constitucional, Administrativo ¢ Filosofia do Direito da Universidade de ‘Munique, a quem devo a orientacao sempre presente e segura, intelectualmente esti- mulante € receptiva a posigdes por vezes divergentes. Ao estimado Mestre e amigo Prof. Dr. Juarez Freitas, que me proporcionou a inestimavel honra de prefaciar esta obra, enderego a mais profunda gratidao, tanto pelo fato de ter assumido, desde o infcio da redaco da tese de doutoramento, a co- orientagdo do trabalho (de modo especial, da parte nacional), quanto pelas preciosas sugestées € estimulos, acrescendo-se a sua decisiva contribuigo no ambito de mi- nha trajet6ria académica. No Desembargador e Prof. Dr. Ruy R. Ruschel, que me acompanha desde que fui seu aluno no curso de pés-graduagiio em Direito Politico na UNISINOS, e que, além disso, integrou a banca examinadora do concurso para professor de direito constitucional nessa Universidade, hoje j4 decorridos mais de 11 anos, encontrei um interlocutor sempre interessado e incansdvel na discussaio dos originais da tese e desta obra. Ao Desembargador e Prof. Sérgio G. Pereira, expresso 2 Cumpre referir, a tfulo de esclarecimento, que a tese de doutoramento apresentaéa em julho de 1996 pelo autor na Universidade de Munique, Alemanha (Ludwig-Maximilians-Universiti), versou sobre “A Problematica dos Dircitos Fundamentais Socisis na Constituic20 Brasileira de 1988 e na Lei Fundamental da Alemanha - um Estudo de Direito ‘Comparado”, tendo a argligio oral ocorrido em dezembro de 1996. A tese foi publicada sob o titulo “Die Problema tik der Sovialen Grundrechte in der brasilianischen Verfassung und im deutschen Grundgeset2", pela Editora Peter Lang Verlag, de Frankfurt, Alemanha, em fevereiro de 1997, na série “Escritos Universitarios Europeus", com um total de 629 piginas. Na presente obra, alim de terem sido excluidos diversos capitulos especificamente ligados 20 problema dos direitos fundamentais sociais e do Estado social de Direito, de modo especial na Alemanha, foram in- Clufdos diversos capitulos novas, versando sobre aspectos que no foram abordados na tese. Os demais capitulos da tese foram reformulados substanciaimente, procedendo-se. ademais. 3 inclusio de referéncias bibliogrficas € plos extraidos do direito expantol, além de outras fontes de consulta. Além disso. atualizou-se a bibliografia nacional sobre os temas versados, considerando-se as principais obras surgidas no decorrer do ano de 1997, 6 meu reconhecimento pelo tempo dispendido na criteriosa leitura da primeira versio do texto, bem como pelo constante apoio e sugestdes recebidas. A todos os mestres nominados, devo o exemplo de grandes professores, intelectuais e, acima de tudo, seres humanos, na mais nobre acep¢ao do termo, As contribuicdes recebidas nao se limitam, contudo, a esfera da confeceao pro priamente dita do trabalho escrito. Assim sendo, nao poderia deixar de referir aqui o Ministro Ruy Rosado de Aguiar Jénior, cujo estimulo ¢ apoio foram decisives para que a meta do Doutorado, iniciado ainda antes de meu ingresso na Magistratura, pu- desse tornar-se realidade, Aos Desembargadores Décio A. Erpen, Milton dos Santos Martins, Adroaldo Furtado Fabricio, Guilherme Castro e Clarindo Favretto, devo a concessiio da licenga especial para aperfeigoamento no exterior, bem como o actimu- lo de férias regulares sem as quais a realizacio da pesquisa ¢ a redagio da tese, assim como a argiligdo oral, nao teriam sido concretizados. Pela confianga depositada na minha pessoa, sou-lhes profundamente grato, sentimento este que torno extensivo a0 Poder Judiciério do Rio Grande do Sul, que tenho a honra ¢ o privilégio de integrar, Porto Alegre, janeiro de 1998. Abreviaturas A.E, Pérez Lufio, Derechos Humanos. A. Bleckmann, Die Grundreehte AICRIS, AK Fell AR BDA BK BMI BVerfG ByerfG und GG I BVerfGE BVerwG BVerwGE cr Canotilho. Constimicdo Dirigente ‘Canotilho/Moreira. Fundamentos cpccr cDTFP ppc cRP Dov DVBL cr. EuGRZ F.Piovesan. Protecto Judicial Gs HBSIRI-V- VI- VI HbVR inc. ». Derechos Humanos, Estudos de Derecho y ed. 1995. sr A. 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Grundrechte R. Barbosa, Commentirios Ie V RT par. ‘Schmidt-BieibuewKlein incisos J, Miranda. Manual de Direito Constitucional, vol. I, 2*ed., Coimbra, 1988, ¢ vol. LV, 2 ed., Coimbra, 1993, J. A. da Silva. Aplicabilidade das Normas Constitucionais, P ed., Sao Paulo, 1982. J. L, Barroso. 0 Diseito Constitucional e a Efetividade de suas Normas, 3*ed., Rio de Janeiro, 1996, J.C.S, Gongalves Loureiro, © Procedimento Administrative ‘entre a Efciéncia e a Garantia dos Particulares, Coimbra, 1995. Juristische Arbeitsblatter HLD. Jarass/B. Pieroih. Grundgesetz fir die Bundesrepublik Deutschland, Kommentar, 3 ed, 1995, Juristisene Ausbildung Juristsche Schulung Juristemzeitung. K. Hesse. Grundziige des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland, 20" ed, Heidelberg, 1995, K. Stern, Das Siaatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, vol. , 2 ed. Munchen, 1984, K. Stern, Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, vol. 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Revista Brasileira de Estudos Politicos Revista de Direito Constitucional e Ciéncia Politics Revista de Estudios Politicos Revista de Direito Administrative Revista Espafiola de Derecho Constitucional Revista del Centro de Estudios Constirucionales Revista de Direito Publico Revista do Tribunal Regional do Trabalho da &* Regio Revista Forense Revista de Informacdo Legislativa Revista da Procuradoria-Geral do Estado de $i0 Paulo Revista dos Tribunais Revista Trimestral de Direito Publico Revista Trimestral de Jurisprudéncia Revista do Tribunal Superior do Trabalho seguintes pardgrafo B. Schmidt-BleibrewP. Klein, Kommentar zum Grundgesetz, St ed., Neuwied, 1995. vide (veja) Verw Arch. ‘Vieira de Andrade. Os Direitos Fundamentais von Mangol/Kein von Miinch fl von ManchyKunig 1 von Miinch’Kunig I vypsit ZRP Verwaltngsarchiv J.C. Vieira de Andrade. Os Direitos Fundamentals na ‘Constituicao Portuguesa de 1976. Coimbra. 1987. H, von MangoldVvF. Klein. Das Bonner Grundgesetz, vol. I 3¥ed.. 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Com efeito, existe imbricacio intensa entre o prinefpio da legitimidade e 0 resguardo juridico da pessoa em sua esséncia, porque, esté claro, os princfpios fun- damentais constituem-se mutuamente e jamais devem se eliminar. E dizer, a preocu- pagao objetiva com a eficdcia dos direitos fundamentais identifica-se com aquela de querer, verdadeiramente, respeitado 0 nosso Estatuto Fundamental, interpretando-o e, em simnltanea medida, coneretizando-o adequadamente. Destarte, em face da elevada hierarquia dos valores em tela, mister que toda a interpretagao principialista dos direitos fundamentais tome na devida conta o im- perativo de Ihes conferir e outorgar a maxima aplicabilidade, pois de nada adianta que permanegam como exortacdes abstratas ou construgdes fadadas ao limbo, quicd numa falsa homenagem & suposta reserva do possivel, que, 4s vezes, apenas revela contumécia na resisténcia & incluso de todos os seres humanos no chamado “reino dos fins”, isto é, no reino da dignidade, que veda qualquer “reificagao” O livro, que tenho a honra de prefaciar, apresenta-se fiel & aludida procura da maxima aplicabilidade concreta dos direitos fundamentais. Seu autor, nitidamente, almeja contribuir, de modo efetivo e sério, para alcangarmos um patamar superior em termos de eficdcia dos mais nobres direitos. Por todos os motivos, merece ser lido com atengao e respeito, por se tratar de jurista que desponta com a excelente promessa de desdobrar e de fazer avancar, criticamente, o estudo do tema pelo qual nutre, mais do que interesse, afeigao e zelo. Neste diapasdo, convém ressaltar alguns dos méritos do trabalho, que tive a feliz ocasiao de acompanhar em todos os seus pasos. Entre os aludidos méritos, avulta, de inicio, 0 cuidado de bem examinar 0 modo pelo qual o nosso sistema constitucional albergou os materialmente abertos direitos fundamentais, enfrentando as graves dificuldades de efetuar um esbogo de teoria ge-~ ral constitucionalmente adequada, que evite, 20 mesmo tempo, qualquer reducionis- mo € a exacerbada ontologizagio do Direito posto. Ao lado disso, ao desvendar as miltiplas dimens6es dos mencionados direitos e apés revelar a evolugio do processo de positivac’o dos mesmos, ousou oferecer convincente visio a respeito do alcance do art. 5°, § 2°, da nossa Lei Maior, flagrando a insofismAvel eleicao do conceito material de direitos fundamentais pelo constituinte originario. Cuidou, outrossim, de prescrever critérios, de certo modo pragmatticos, para emprestar determinaciio a con- ceito assaz aberto, sobressaindo. no ponto, a sua abordagem do substancial principio da dignidade da pessoa, o qual, a meu juizo, transcende, por instancias do hist6rico, a proclamada restricdo & perspectiva eminentemente estatal Ainda: em harmonia com o STF, reconheceu direitos fundamentais situados, por assim dizer, fora do catélogo, conquanto detentores de estatuto constitucional formal Rejeitou a existéncia de direitos apenas formalmente fundamentais e, numa louvavel postura teleolégica, conferiu o devido elastério ao art, 60, § 4°, inc. IV, da Carta, fazen- do ver que se encontram, intangivelmente, protegidos todos os direitos e garantias fun- damentais, niio apenas os individuais. Sublinhou, com a necesséria e oportuna énfase, a vineulag2o cabal dos Poderes aos direitos fundamentais, assim como tratou de apontar 05 limites intransponiveis (formais e materiais), cujo respeito faz-se indispensivel para que se evitem retracessos em face de exageros do poder constituinte derivado. Lamentou, de modo perfeitamente compreensfvel, a auséncia de uma explicita protegiio do niicleo essencial dos referidos direitos, similar aquela, em boa hora, alojada no art. 19, 1, da Lei Fundamental alemi. Correto, por igual, ao adotar a avangada postu- ra hermenéutica no sentido de que os direitos fundamentais (expressos ou nao-escritos) no formam um sistema separado e fechado no contexto da Carta, mas, a0 revés, con- figuram sistema aberto ¢ flexivel (admitindo, na mesma linha de Stern, a convergéncia sistémica) e demonstrando ter vivida a fecunda nogao contempordnea de correlagao obrigat6ria e deontolégica entre os prinespios e normas (ou regras) ¢ 0 inafastével subs- trato valorativo desias e daqueles, posigéo que supera os antiquados formalismos estri- tos ¢ adere & angulagao imprescindivel para quem queira perceber a distincia, &s vezes abissal, entre 0 Direito nominal positivo e o mundo palpitante e complexo da vida. 14 a0 fazer a abordagem das perspectivas objetiva e subjetiva dos direitos fun- damentais, parece-me ter bem enfrentado belissimo tema, a exigir, no entanto, des- dobramentos reflexivos, especialmente no tocante & chamada eficdcia irradiante. Idéntica assercao afigura-se cabivel no pertinente & multifuncionalidade dos direitos eA suposta atualidade da posigdo de Jelinek e de sua doutrina dos quatro status, convindo, a esse respeito, aprofundar a critica formulada por Hesse e repensar, ainda mais, 0 status activus. espartilhado que restou no rol dos chamados direitos de defesa. Em contrapartida, registre-se que, embora suméria, a apresentaco das diversas ca- tegorias de direitos individualmente considerados é das mais claras ¢ instigantes das encontraveis na literatura nacional. : De sua vez, sua proposta de definicao dos direitos fundamentais, afinada par- cialmente com a de Alexy, apresenta o persuasive mérito de agasalhar, com igual én- fase, a fundamentalidade, seja sob o aspecto formal, seja sob o prisma material mais promissor. Afinal, como salientou Paulo Bonavides, em estudo memordvel sobre a interpretaco dos direitos fundamentais, so esses direitos a ConstituigZo mesma em seu méximo teor de materialidade, Justamente consoante tal ordem de consideragdes, parece Kcito asseverar que, & base do conceito esposado, toda discrigio, piblica ou privada, haverd de estar juridicamente vinculada, formal e materialmente, aos direi- tos fundamentais, ao menos em sistemas jurfdicos democraticos, abertos ¢ unitérios. Adentrando na tematica de fundo, 0 autor resolveu aderir & concepgiio classica (por assim dizer) de eficacia juridica, em que pese sua aparente resposta pluralista &8 perplexidades e matizacdes trazidas pela defasagem entre o positivado e 0 que testa a ser construido em matéria de direitos fundamentais. Sem embargo, fez consistente e valiosa interpretago do art. 5°, § 1°, da Lei Maior, de sorte a realgar o significado ¢ a extensdo da aplicabilidade imediata, sempre no desiderato de imprimir a maior efi- cacia posstvel aos direitos fundamentais. Nesta vertente, sobe de ponto 0 seu estudo a propésito dos direitos sociais constitucionais o concernente aos limites da reserva do possfvel, assim como merece destaque o tratamento seguro que oferece a vincu- lagdo do Poder Judiciério aos direitos fundamentais (ndo apenas por desvendé-los, mas por constitui-los, decisiva ¢ prudentemente), bem como & denominada eficacia privada ou horizontal e, também, & protecdo contra a eventual ago corrosiva prota- gonizada pelo constituinte derivado. Em todos os casos, evidente 0 espago reservado, conscientemente, para ulteriores meditagGes, dada a clareza quanto 2 alta significa- do da matéria, notadamente a que envolve as limitagdes formais e materiais (inclu- sive implicitas) A reforma e a discussao a respeito do conceito de niicleo essencial, a requerer, por certo, a densificacao de reflexes atentas a interpenetragao de assuntos correlatos, tais como o neocontratualismo e a temdtica da justiga, que fugiriam & acer- tada limitago metodolégica da presente obra. contudo j4 suficientemente notavel e imponente, inclusive pelo que, de modo deliberado, estimula e sugere em termos de desenvolvimento futuro dos temas enfrentados. Por tudo, neste momento em que redirecionamos o olhar, em tons comemo- rativos e inquietantes, para a Declaragdo Universal de 1948, urge que tenhamos a convicgao — fortalecida pela leitura deste trabalho — de que a igualdade em dignidade e direitos segue, mais do que nunca, como algo a ser edificado. Trata-se, sem divida, de uma meta suprema, que consiste em aleangarmos, corajosamente e sem escapis- mos, uma lidima maioridade civilizatéria, na qual devemos seguir depositando nos- sas melhores esperancas. Em outras palavras, a eficdcia dos direitos fundamentais apresenta-se como 0 mais inadiavel ¢ portentoso dos desafios, em especial para os que assimilaram a cidadania como direito a ter direitos (H. Arendt), mas, acima de tudo, como diteito a ter direitos intangiveis. Neste contexto, o livro do eminente colega Dr. Ingo Sarlet, sem cair numa pos- tura irracionalmente decisionista, vem prestar uma relevante e benfazeja contribuicao para que se instaure, entre nés, um clima de didlogo realizador e produtivo entre aqueles que, lidadores com o living law, anelam, de fato e de direito, promover mar- cantes e profundos avangos éticos e humanitarios. Oxald alcance realizar tal superior desfgnio e sitva para despertar ou fomentar as consciéncias para & grandeza e para a urgéncia do referido desafio de guamecer e viabilizar, expansivamente, os direitos fundamentais, no intuito de, vez por todas, lancarmos os alicerces dinimicos de um milénio sem a crueldade e 0 inusitado barbarismo que foram lamentaveis tdnicas e constantes no ciclo que ora finda, Um novo milénio em que se conquiste 0 pleno flo- rescimento de nossa fundamental dignidade, aquela que, quando respeitada, faz, de todos e de cada um, os verdadeiros e tinicos legitimadores do Direito Positivo. Enfim, um milénio no qual possamos nos sentir em casa, ainda neste mundo Prof. Dr. Juarez Freitas Professor do Mestrado de Direito da PUCIRS, de Dizeito Administrative da UFRGS da Escola Superior da Magistratura-AIURIS, Sumario Notas introdutérias . 2 1 Parte O sistema dos direitos fundamentais na Constituigio: delineamentos de uma teoria geral constitucionalmente adequada . 25 1. A problematica da delimitagao conceitual e da definigdo na seara terminalégics a busca de um consenso . cee : 2 2, Perspectiva hist6rica: dos direitos naturais do homem aos direitos fundamentais constitucionais e a problemética das assim denominadas dimensdes dos direitos fundamentais, 7 viene : 36 2.1. Consideragdes preliminares 00 36 2.2. Antecedentes: dos primérdios & concepslo jusnaturalista dos direitos naturals, e inaliendveis do homem ......... veceeeeeee : 37 2.3. O processo de reconhecimento dos direitos fundamentais na esfera do direito positive: dos direitos estamentais aos direitos fundamentais constitucionais do século XVI 4 2.4 As diversas dimensbes dos direitos funtamentais su importiocia ns tapas de sua positivagdo nas esferas constitucional e internacional cece AS 3, Dieitosfundamentais e ConstnucBo: a posigho e o significado dos direitos fundamentais na Constituigao de um Estado Democrético ¢ Social de Direito - peeeeee eSB jo de 1988... . : 63 4. A concep¢io dos direitos fundamentais na Constiti 4.1. O catdlogo dos direitos fundamentais na “Constituigao-Cidada” de 1988 68 4.2. A nota da “fundamentalidade” formal ¢ material dos direitos fundamentais na Constituigio de 1988 : sed 4.3. 0 conceito materialmente aberto de direitos fundamentais no direito constitucional positivo brasileiro . 8B 5. A perspectiva subjetiva e objetiva dos direitos fundamentais, sua multifuncionalidade e classificagao na Constituigao de 1988 ; 141 5.1. A dupa perspectva dos direitos fundamentis na condo de norms objeivase direitos subjetivos: significado e alcance 141 5.2. A multifuncionalidade dos direitos fundamentals e o problema de sua classificagio nna Constituigio . : 135 6. Os direitos fundamentais e seus titulares 208 6.1, Notas introdut6rias: a distingdo entre titulares e destinatérios dos direitos e garantias fundamentais — aspectos conceituais e terminolégicos cece 208 6.2. O principio da universalidade e a titularidade dos direitos fundamentais .. 209 6.3. A pessoa natural como titular de direitos fundamentais: generalidades 210 6.4. Direitos dos estrangeios e a relevancia da distin. ce niio-residente . entre estrangeiro residente 6.5. O problema da titularidade (individual e/ou coletiva?) dos direitos sociais............... 214 66, Caso especie dite do embrido co problema da tiuaridade de dito Fndamentis nos limites da vida e post mortem - vecceeees 219 67. Pessasjurdicas como ttulares de direitos fundamentas an oz 68 Diseitos dos animais ede outros sees vivos? O problema da titularidade de direitos fundamentais para além da pessoa humana - 224 7. Deveres fundamentais . ponedeoBsonouEsd0H so5sud00 + 226 7.1. Notas introdutérias 226 12. Tipologia dos deveres fundamentais ses 2B -.229 7.3. O regime juridico-constitucional dos deveres fundamentais, 2 Parte 0 problema da eficdecia dos direitos fundamentats . : 1 Inrodugo: colocagio do problema edisting6es nas seaas conceitualeterminol6zica 2. A problemética da eficdcia das normas constitucionais em geral no ambito do direito constitucional brasileiro: principais concepgdes ¢ tomada de posigo pessoal ......++ 2.1. As concepgoes cléssicas votes : 2.2. A critica da concepedo clissica de inspirago norte-americana e sua reformulagao: resenha das principais concepgdes na literatura jurfdica nacional .........+.. 2.3, Sintese conclusiva e posigao pessoal 3. A cficdcia dos direitos fundamentais, 3.1. Consideragies introdutérias . 3.2. A aplicabilidade imediata (direta plena eficdcia das normas definidoras d de direitos fundamentais: significado e aleance do art. 5°, § 1°, da Constituigao de 1988 261 3.3. A eficdcia dos direitos fundamentais propriamente dita: significado da lidade imediata para cada categoria dos direitos fundamentais . cee UB 34. A efieéia do direitos sociais na sua dimensio prestacional como problema especitico .. 280 3.5. A vinculacdo do poder piblico dos particulares aos direitos fundamentais «365 4.A protegdo dos direitos fundamentais em face de suas restrig&es: ambito de protecio, limites € limites aos limites dos diteitos fundamentais, com destaque para a protecao em face da atuaco do poder de reforma constitucional e da assim designada proibigdo de retrocesso... 384 4.1. Consideraghes introdutérias .......- : ceseeseees 384 eee —— err 4.3. Direitos fundamentais e reforma da Constituigio: a eficécia “protetiva’” dos direitos, fundamentais contra a sua supressio e erosdo pelo Poder Constituimte Reformador ....... 405 4.4. Direitos fundamentaise proibigfo de retrocesso 433 Conclusto.........+. . 459 Referéncias bibliograficas nopsonuobor a sonobieconnspotinggn - 461 indice geral ... - 489 Notas introdutorias Que os direitos fundamentais constituem construgdo definitivamente integrada ao patrimdnio comum da humanidade bem o demonstra a trajetéria que levou A sua gradativa consagracao nos direitos internacional e constitiicional. Praticamente, nao ha mais Estado que nao tenha aderido a algum dos principais pactos internacionais (ainda que regionais) sobre direitos humanos ou que nao tenha reconhecido ao menos um néicleo de direitos fundamentais no Ambito de suas Constituigdes. Todavia, em que pese este inquestionavel progresso na esfera da sua positivagao e toda a evolu- 40 ocorrida no que tange ao contéudo dos direitos fundamentais, representado pelo esquema das diversas dimensdes (ou geragdes) de direitos, que atta como indicativo seguro de sua mutabilidade hist6rica, percebe-se que, mesmo hoje, no limiar do ter- ceiro milénio e em plena era tecnolégica, Jonge estamos de ter solucionado a mirfade de problemas e desafios que a matéria suscita. Neste contexto, segue particularmente agudo 0 perene problema da eficdcia ¢ efetivacao dos direitos fundamentais, de modo especial em face do ainda niio supe- rado fosso entre ricos e pobres.* Além disso, ha que lembrar as agressGes ao meio ambiente, as manipulagdes genéticas, os riscos da informatica e cibernética e a fragi- lidade da paz em se considerando os “progressos” da indistria bélica, notadamente no campo das armas nucleares e quimicas. Nao menos gravosos, assumem relevo os problemas ocasionados pela crescente instabilidade social e econdmica e pelos fana- tismos de cunho religioso e politico. Paradoxal (mas compreensivelmente), em mui tos paises que consagraram formaimente um extenso rol de direitos fundamentais, estes tém alcancado o seu menor grau de efetivagdo. Cumpre referir, por oportuna, a adverténcia atualissima de Pierre-Henri Imbert, Diretor de Direitos Humanos do Conselho Europeu, apontando para a simultinea multiplicagao dos tratados e meca- nismos destinados a proteco dos direitos fundamentais, e o paralelo recrudescimento de suas violagGes, de tal sorte que, por ocasidio da Conferéncia de Viena, recordou-se que mais da metade da populagio mundial se encontrava privada de seus direitos fundamentais. A propésito, a Declaragdo Universal dos Direitos Humanos da ONU, em que pesem os notiveis avangos a que se chegou desde que foi proclamada, em 10 deste fosso entre ricos € pobres que nos fala E. Hobsbawm, A Era dos Extremas, p. 540. salientando-se, a este respeito, que, no que diz com os reflexos para a problemstica da efetivagio dos direitos fundamentais, o abismo da diferenca econ6mica nto se refere apenas & divisio entre paises desenvolvidos e subxlesenvolvidos, mas também as gritantes diferencas econdmicas entre as classes alta e baixa, como resultado da injusta distibuigo de renda no Ambito da economia interna dos paises em desenvolvimento. 3.Cf. PH. Imbert, n: A.E, Pérez Lutio (Org). Derechos Humanos y Constitucionalismo Ante el Tercer Milenio, ICACIA DOS DIREITOS FUNDAMENTA'S 21 de dezembro de 1948, ainda constitui mais esperanga que realidade para a maior par- te dos seres humanos. J4 por este motivo, a preocupacao com o estudo dos diversos problemas que so inerentes aos direitos fundamentais representa, por mais modesto que seja o seu resultado, uma atitude concreta na busca de sua superagao. O estudo dos direitos fundamentais implica, contudo, necessariamente, uma to- mada de posigao quanto ao enfoque adotado, bern como no que diz. com © método de trabalho. Hé que optar por uma (ou algumas) das miltiplas possibilidades que se oferecem aos que pretendem se dedicar ao enfrentamento de téo vasto e relevante universo temético. Neste sentido, podemos tomar como ponto de partida a liga0 do jurista lusitano Vieira de Andrade, ao referir que os direitos fundamentais podem ser abordados a partir de diversas perspectivas, dentre as quais enumera trés: a) perspec- tiva filos6fica (ou jusnaturalista), a qual cuida do estudo dos direitos fundamentais como direitos de todos os homens, em todos os tempos e lugares; b) perspectiva universalista (ou internacionalista), como direitos de todos os homens (ou catego- rias de homens) em todos os lugares, num certo tempo; c) e perspectiva estatal (ou constitucional), pela qual os direitos fundamentais sao analisados na qualidade de direitos dos homens, num determinado tempo ¢ lugar.' Cumpre lembrar, todavia, que a trfade referida por Vieira de Andrade nao esgota 0 elenco de perspectivas a partir das quais se pode enfrentar a temética dos direitos fundamentais, j& que niio se pode desconsiderar a importancia, ainda mais nos tempos atuais, das perspectivas sociol6- gica, histérica, filos6fica (de longe niio limitada ¢ identificada com o jusnaturalismo), ética (como desdobramento da filoséfica), politica e econdmica, apenas para citar as mais relevantes. Cada um destes enfoques, ainda que isoladamente considerados, suscita uma enorme gama de aspectos e problemas especificos passiveis de andlise. Vale dizer que, também nesta seara, os tinicos limites residem, em tltima andlise, no alcance da criatividade e da imaginagdo humanas e no universo de abordagens que esta pode gerar. Sem perder de vista a inequivoca e necesséria interpenetragio entre as diversas perspectivas referidas, e desde jd reconhecida a relevancia de todas elas, optamos por centrar nossa atengéo na dimensio concreta dos direitos fundamentais, tais quais se encontram plasmados na érbita do direito constitucional positivo (perspectiva estatal, portanto), com énfase particular no Direito patrio. Em suma, 0 que se pretende neste estudo € estabelecer uma relagao mais préxima com algumas das principais questdes relativas & problematica dos direitos fundamentais na nossa Constitui¢ao De modo especial (¢ 0 titulo da obra jé o sinaliza), é no problema da eficécia dos direitos fundamentais na nossa ordem constitucional que iré desaguar a nossa in- vestigagio, consignando-se, desde jé, que é nas diversas facetas da eficécia juridica, como precondigao da propria efetividade (ou eficdcia social) dos direitos fundamen- tais que iremos centrar as atengdes, conquanto, por vezes, ndo poderemos nos furtar de efetuar alguma referéncia aos instrumentos de efetivagao dos direitos fundamen- tais. Antes, contudo, de adentrarmos 0 exame da problematica da eficdcia (segunda parte), nao poderiamos deixar de, na primeira parte desta obra, dedicar — ap6s breve nota historica ~ algumas paginas ao exame do sistema dos direitos fundamentais em nossa Constituigao, no Ambito do que se poderia denominar de elementos rudimen- tares de uma teoria geral constitucionalmente adequada, até mesmo pelo fato de que "CEC. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais, p. 1 ess 22 INGO WOLFGANG SARLET se cuida de aspectos essenciais ao deslinde da prépria problemdtica da eficacia dos direitos fundamentais, como 0 leitor tera oportunidade de perceber. Limitando-nos, para efeitos destas notas introdutérias. a estas consideragdes sobre o contetido desta obra, remetemos 0 leitor a0 sumério, no qual teré uma visdo global e detalhada dos diversos aspectos a serem enfrentados. No que diz com 0 método utilizado, perceberd o leitor explicita predilegao pelo recurso ao direito (constitucional) comparado, cuja importincia chega a ser tal nos dias atuais que h4 quem o considere até mesmo auténtico método de interpretacao (Peter Haberle). Se isto ja se justifica relativamente a qualquer ramo da ciéncia ju- ridica, assume cardter virtualmente cogente na esfera do direito constitucional, no qual cada vez mais trabalhamos com categorias de cunho universal (Constitui Estado, poder, governo, constitucionalidade e inconstitucionalidade, direitos funda- mentais, etc.), sustentando-se até mesmo a existéncia de um direito constitucional internacional. Particularmente, 6 no campo dos direitos fimidamentais (ou humanos) gue esta universalizagao se manifesta ainda com maior intensidade, seja em virtude da relevancia que a matéria aleangou no Ambito do direito internacional, de modo especial, de cunho convencional (e, por sua vez, dos reflexos na ordem interna), seja em virtude da forte influéncia do direito constitucional positivo, da doutrina e juris- prudéncia de uns Estados sobre os outros. Cuidando-se, consoante j4 salientado, de obra centrada na perspectiva constitucional (estatal), buscamos priorizar as fontes de direito comparado que mais diretamente influenciaram, ndo apenas 0 nosso consti- tuinte, mas principalmente a nossa ciéncia juridica. Neste contexto, de modo especial no que diz com os direitos fundamentais, inquestiondvel a nossa parcial aproxima¢o aos modelos lusitano € espanhol, ambos, por sua vez, marcados pelos influxos da doutrina e da jurisprudéncia constitucionais de matriz germanica. Categorias dogmiticas como Estado de Direito, Estado Social, “clausulas pétreas”, controle abstrato de constitucionalidade, perspectiva juridico- objetiva e subjetiva dos direitos fundamentais, principio da proporcionalidade, con- cordancia prética, aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais, assim como 0 proprio conceito classificagao dos direitos fundamentais no poderiam hoje, dentre outras categorias, ser analisadas sem que se fizesse uma referéncia 4 doutrina germa- nica, Para além disso, a prioriza¢ao das fontes citadas, notadamente portuguesa e es- panhola, encontra respaldo na prépria similitude entre estas ordens constitucionais e a nossa, particularmente no campo dos direitos fundamentais, ainda que se registrem distingdes dignas de nota, as quais serdo oportunamente analisadas, No que tange & jurisprudéncia citada (¢ isto aplica-se também as fontes nacionais), restringimo-nos a buscar, na medida do possfvel, arestos das Cortes Constitucionais de cada Estado, pois a elas cabe, em tiltima andlise e prioritariamente (ainda que nao de forma exclu- siva), a interpretago eo desenvolvimento do direito constitucional © que se pretende com o recurso ao direito comparado ~ e isto convém seja aqui ressaltado — no é em hipstese alguma a importagao direta de dispositivos cons- titucionais ou mesmo de concepgdes jurisprudenciais e doutrinérias alienfgenas, mas sim, a reavaliagdo de algumas posigées patrias habituais e, por vezes, deslocadas ou desatualizadas, bem como a anilise da viabilidade da recepeo (obviamente filtrada pelo nosso direito constitucional positive ¢ a ele adaptada) de categorias dogmitico- Juridicas jé tradicionalmente aceitas na maior parte dos paises desenvolvidos (nota 'AEFICACIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS 23 damente europeus) € que, a despeito de sua inequivoca relevancia e do interesse que deveriam suscitar também entre nés, continuam sendo desconhecidas ou, no minimo, subestimadas na esfera do Direito patrio. A titulo de adverténcia ao leitor e como exigéncia natural da honestidade cien- tifica, cumpre destacar que cada item deste trabalho encerra aspectos e problemas diversos, todos merecedores de uma andlise individualizada e bem mais aprofunda- da do que aqui pudemos fazer, alguns dos quais haverao de ser objeto nao apenas de um reexame futuro no Ambito desta obra, bem como de desenvolvimentos em artigos ou outras monografias. A nossa intengdo — e outra nao poderia ser, tendo em vista a abrangéncia do tema € a limitagdo fisica desta obra - foi a de langar algumas consideragdes que possam contribuir para o aprofundamento do debate ¢ auxiliar na busca de uma cultura juridica nacional constitucionalmente adequada, mas sempre afinada com a evolugao internacional na fascinante trajetéria em busca da afirmagdo e efetivacio dos direitos fundamentais. Para finalizar esta introdugao, gostarfamos de fazer uma referéncia ao imortal poeta Fernando Pessoa, que, em nota preliminar & sua obra O Eu Profundo ¢ os Outros Eus, sustenta que o “entendimento dos simbolos e rituais (simbélicos) exige do intérprete cinco qualidades ou condigdes, sem as quais os simbolos serdo para ele mortos e ele um morto para eles”? Dentre estas qualidades (so elas a simpatia, a intuigdo, a inteligéncia, a compreensio e a graca), destaco uma com a qual tenho a esperanga de ser brindado por parte do leitor, qual seja, a simpatia. Que todo aquele que se propuser a ler esta obra possa debrugar-se sobre ela de espirito e mente aber- tos, além de disposto a formular as criticas e sugest6es que julgar oportunas e pela quais, desde jd, somos profundamente gratos. Se este livro tiver logrado provocar a reflexdo, ja poderemos considerar alcancado 0 nosso objetivo CE. F, Pessoa, O Eu Profunndo e os Outros Eus. p. 43-4, condigies que, salvo melhor juizo, aplicam-se também a leitura e andlise de qualquer obra elaborada pelo ser humano. j4 que tudo, de certa forma, é objeto de constante interpretagio. 24 INGO WOLFGANG SARLET 1? PARTE O Sistema dos Direitos Fundamentais na Constituigao: delineamentos de uma teoria geral constitucionalmente adequada 1. A problematica da delimitagao conceltual e da definicao na seara terminolégica: a busca de um.consenso No que conceme & terminologia ¢ ao conceito adotados, a prépria utilizagiio da expresso “direitos fundamentais” no titulo desta obra ja revela, de antemao, a nossa opco na seara terminolégica, 0 que, no entanto, ndo torna dispensavel uma justificagdo, ainda que sumdria, deste ponto de vista, no minimo pela circunstancia de que, tanto na doutrina, quanto no diteito positivo (constitucional ou internacional), sio largamente utilizadas (¢ até com maior intensidade), outras expresses, tais como “direitos humanos”, “direitos do homem”, “direitos subjetivos pablicos”, “liberdades pliblicas”, “direitos individuais”, “liberdades fundamentais” e “direitos humanos fun- damentais”, apenas para referir algumas das mais importantes. Nao 6, portanto, por acaso, que a doutrina tem alertado para a heterogeneidade, ambigttidade e auséncia de um consenso na esfera conceitual e terminoldgica, inclusive no que diz com o significado e contetido de cada termo utilizado,! o que apenas reforga a necessidade de obtermos, ao menos para os fins especificos deste estudo, um critério unificador. Aléin disso, a exemplo do que ocorre em outros textos constitucionais, hd que reco nhecer que também a Constituigio de 1988, em que pesem os avangos aleangados, continua a se caracterizar por uma diversidade semantica,? utilizando termos diversos ao referir-se aos direitos fundamentais. A titulo ilustrativo, encontramos em nossa Carta Magna expressdes como: a) direitos humanos (art. 4°, ine. 1); b) direitos e garantias fundamentais (epigrafe do Titulo II, ¢ art. 5°, § 1°); ¢) direitos e liberdades constitucionais (art, 5°, ine. LXX1) e d) direitos e garantias individuais (art. 60, § 4°, ine. IV) 1 Esta, dentre outros, a adverténeia de B. M. de Vallejo Fuster. in: J. Ballesteros (Ed.), Derechos Humanos ~ Cow cepto, Fundamentos, Sujeros, p. 42-3, Neste sentido também a adverténcia de A. E, Pérez Luno, Dereclios Humanos, Estado de Derecho y Constituci6n, p. 21 ¢ss.. que ~ centrando-se no conteido ¢ significado do termo “ieito huma- ‘nos” — alerta para a cada vez maior falta de precisao na uilizagao desta terminologia, apontando as diferencas entre (0 s2u contetidoe significado em relago aos outros termos empregados. Esta a observagdo ~ dirigida & Constituicao Espanhola de 1978 - de L. Martin-Retonillo, in: Derechos Funda ‘menrales y Constitucidn, p. 7, e que também se ajusta a0 dieito constitucional patrio, Com efeito, entre nds, existe significativa doutrina a apontare analisar tal diversidade terminolégica. para o que remetemos ao recente estudo de ‘YV. Brega Filho, Direitos Fundamemtais na Consttuigao de 1988 - Conveiido Jurfdico das Expressbes, p. 65 € ss. Explorando com riqueza esta questo. v. uumbém. J. A. L. Sampaio. Direitos Fundamentais. Retérica e Historici- dade, p. 7 segs.,e, mais recentemente, 0 alentado estudo de A.S. Romita. Direitos Fundamenrais nas Relagdes de Trabalho, p. 40-46. ‘AEFICACIA 00S DIREITOS FUNDAMENTAIS 27 Em primeiro plano, ainda mais em se considerando que 0 objeto deste trabalho € justamente a andlise dogmético-juridica dos direitos fundamentais & luz do direi- to constitucional positivo, h4 que levar em conta a sintonia desta opgao (direitos fundamentais) com a terminologia (neste particular inovadora) utilizada pela nos- sa Constituigao, que, na epfgrafe do Titulo Il, se refere aos “Direitos e Garantias Fundamentais”, consignando-se aqui o fato de que este termo ~ de cunho genérico ~— abrange todas as demais espécies ou categorias de direitos fundamentais, nomea- damente os direitos e deveres individuais e coletivos (Capitulo I), 0s direitos sociais (Capitulo II), a nacionalidade (Capitulo IID), os direitos politicos (Capitulo IV) e regramento dos partidos politicos (Capitulo V). Cumpre salientar, ainda, que estas categorias igualmente englobam as diferentes fungdes exercidas pelos direitos funda- mentais, de acordo com pardmetros desenvolvidos especialmente na doutrina ena jurisprudéncia alemas e recepcionadas pelo direito luso-espanhol, tais como os direi- tos de defesa (liberdade e igualdade), os direitos de cunho prestacional (incluindo os direitos sociais e politicos na sua dimensao positiva), bem como os direitos-garantia © as garantias institucionais, aspectos que ainda serio objeto de consideracdo. No que diz com 0 uso da expresso “direitos fundamentais”, cumpre lembrar que 0 nosso Constituinte se inspirou principalmente na Lei Fundamental da Alemanha e na Constituigao Portuguesa de 1976, rompendo, de tal sorte, com toda uma tradigiio em nosso direito constitucional positivo.? Além deste forte argumento ligado ao direito positivo, 0 qual por si s6 ja bas- taria para justificar a nossa opgo terminolégica, a moderna doutrina constitucional, ressalvadas algumas excecdes, ver rechagando progressivamente a utilizagao de ter- mos como “liberdades publicas”, “liberdades fundamentais”, “direitos individuais” € “direitos pablicos subjetivos”, “direitos naturais”, “direitos civis”, assim como as suas variagdes, porquanto — a0 menos como termos genéricos — anacrdnicos e, de certa forma, divorciados do estégio atual da evolugao dos direitos fundamentais no dmbito de um Estado (democratico e social) de Direito,? até mesmo em nivel do direi- to internacional, além de revelarem, com maior ou menor intensidade, uma flagrante insuficiéncia no que conceme a sua abrangéncia, visto que atrelados a categorias es- pecificas do género direitos fundamentais.* Neste contexto, ha que ter em mente que nao pretendemos, aqui, entrar no exame do significado especifico e das diferengas en- tre os diversos termos referidos,’ jé que a nossa busca se restringe a nos situarmos no 3 Na Constituigio de 1824, falava-se nas “Garantias dos Direitos Civis ¢ Politicos dos Cidadéos Brasileiros”, a0 ppasso que a Constinuicao de 1891 continha simplesmente a expressio “Declaraciio de Direitos” como epigrafe da ‘Seceo Il. integrante do Titulo IV (Dos cidaddos brasileiros). Na Constituigio de 1934, uilizou-se, pela primeira vez, ‘a expressio “Diteitos e Garantis Individusis”, mantida nas Constituigées de 1937 e de 1946 (integrando o Titslo 1V dda Declarago de Direitos), bem como na Constituigio de 1967, inclusive apés a Emenda n° | de 1969, integrando 0 Titulo da Declaragio de Dircitas. Entre n6s, aderindo & utlizagio da expresso direitos fundamentais e endassando também a argumentacto ora desenvelvida, v. entre outros, especialmente o ensaio de D. Pimoulis, “Dogmitica dos Direito Fundamentais: conceitos basicos”, in » Comunicacdes. Caderno do Programa de Pés-Graduacdo da Univer- Sidade Metodista de Piracidaba, ano 5, n° 2, (2001), p. 13. ‘Atente-se aqui pars alguns exemplos de Constituiges do segundo pés-guerra que passaram a utilizar a expresso, genética “direitos fundamentsis", tais como a Lei Fundamental da Alemanha (1949) e a Constituigao Portuguesa (1976), ambas jé eferidas, bem como as Constituigdes da Espanha (1978), da Turquia (1982) e da Holanda (1983). 5 Neste sentido, v. J.A. da Silva, Curso de Direito Constitucional Positive, p. 157 es, © Para quem objetiva Iangar um olhar mais criterioso sobre esta problematic, sugerimos a leitura do primeiro capitulo da obra de A.E, Pére2 Luno, Derechos Humanos, p.21 €. 28 INGO WOLFGANG SARLET que concerne a um termo e conceito genéricos e, acima de tudo, constitucionalmente adequados, e que possam, além disso, abranger as diferentes espécies de direitos, Neste sentido, assume atualmente especial relevancia a clarificagao da distingao entre as expressdes “direitos fundamentais” e “direitos humanos”, nao obstante tenha também ocorrido uma confusio entre os dois termos, confusio esta (caso compre- endida como um uso indistinto dos termos, ambos designando 0 mesmo conceito e contetido) que nao se revela como inaceitavel em se considerando o critério adotado. Neste particular, ndo h4 diividas de que os direitos fundamentais, de certa forma, so também sempre direitos humanos, no sentido de que seu titular sempre serd o ser humano, ainda que representado por entes coletivos (grupos, povos, nagGes, Estado). Fosse apenas por este motivo, impor-se-ia a utilizagio uniforme do termo “direitos humanos” ou expresso similar, de tal sorte que nao € nesta circunstancia que en- contraremos argumentos idéneos a justificar a distingao. De qualquer modo, cumpre destacar, antes de prosseguirmos, que se € certo que ndo-pretendemos hipostasiar a relevancia deste ponto, também nao podemos passar ao largo do mesmo, seja pelo fato de estarmos diante de um aspecto a respeito do qual existe uma ampla discuss%o na doutrina, seja pelas conseqiléncias de ordem pratica (especialmente no que diz com a interpretago e aplicagio das normas de direitos fundamentais e/ou direitos humanos) que podem ser extraidas da questo. De fato— como pretendemos demons- trar minimamente — nfo se cuida de uma mera querela académica entre tedricos que no tém mais o que fazer. Em que pese sejam ambos os termos (“direitos humanos” e “direitos fundamen- tais”) comumente utilizados como sin6nimos, a explicagao corriqueira e, diga-se de passagem, procedente para a distincdo é de que o termo “direitos fundamentais” se aplica para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado,’ ao passo que a expressio “direitos humanos” guardaria relacZo com os documentos de direito internacional, por referir-se aquelas posigdes juridicas que se reconhecem ao ser humano como tal, independentemente de sua vinculacdo com determinada ordem constitucional, e que, portanto, aspiram a validade universal, para todos os povos e tempos, de tal sorte que revelam um inequivoco carter supranacional (internacional).* A consideragao de que 0 termo “direitos humanos” pode ser equiparado ao de “direitos naturais” nao nos parece correta, uma vez que a propria positivacdo em normas de direito interna- cional, de acordo com a liicida ligao de Bobbio, jé revelou, de forma incontestavel, a dimensao histérica e relativa dos direitos humanos, que assim se desprenderam — a0 menos em parte (mesmo para os defensores de um jusnaturalismo) — da idéia de um direito natural."° Todavia, nao devemos esquecer que, na sua vertente histérica, os direitos humanos (internacionais) e fundamentais (constitucionais) radicam no reco- 7 Assim, por exemplo, 1. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, p. $28, ¢ M. L. Cabral Pinto, Os Limites do Poder Constitute e a Legitimidade Material da Constisuiao, p. Vi. Enire ns, esta distinglo fol adotada, entre outros, por E, Perera de Farias, Cold de Diretos, p. 39-60. ® Neste sentido, dentre outros, a ligdo de J, Miranda, Manual IV. p. 51-2, citando-se, a titulo de exemplo, a Declara- Ho Universal dos Direitos do Homem (1948), a Declaragdo Europeia de Diteitos do Homem (1951), A Convengio Americana sobre Direitos Humanos (1969), dentre outros tanfos documentos. ° Esta a posigdo de M. Kriele, in: PS fiir Seupin, p. 188. '° Cf, N. Bobbio, A Era dos Direitos, principalmente no ensaio “Presente Futuro dos Direitos do Homem’” (p. 26 € $8), O abandono da condiclo de direitos naturas pode ser também exemplificado com base na doutrins francesa, onde jf se reconhece que a8 liberdades pablicas no se confundem com a noglo de direitos naturais do homer, ‘AEFICACIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS. 29 nhecimento, pelo direito positivo, de uma série de direitos naturais do homem, que, neste sentido. assumem uma dimensao pré-estatal e, para alguns, até mesmo supra~ estatal."! Cuida-se, sem diivida, igualmente de direitos humanos ~ considerados como tais aqueles outorgados a todos os homens pela sua mera condigéo humana ~, mas, neste caso, de direitos nio-positivados. Assim, com base no exposto, cumpre tragar uma distingdo, ainda que de cunho predominantemente didatico, entre as expressGes “direitos do homem” (no sentido de direitos naturais nao, ou ainda nao positivados), “direitos humanos” (positivados na esfera do direito internacional) e “direitos fundamentais” (direitos reconhecidos ou outorgados e protegidos pelo direito constitucional interno de cada Estado)", Neste particular, como o presente estudo se restringe — em que pesem algumas breves noti- cias de cunho histérico ~ aos direitos positivados, centrar-nos-emos em tragar, de for- ma mais clara. a distingdo entre os termos e conceitos “direitos humanos” e “direitos fandamentais”. A utilizagao da expressao “direitos do homem”, de conotacao mar- cadamente jusnaturalista, prende-se ao fato de que se torna necessaria a demarcagao precisa entre a fase que. nada obstante sua relevancia para a concep¢io contempo- ranea dos direitos fundamentais e humanos, precedeu 0 reconhecimento destes pelo diteito positivo interno e internacional ¢ que, por isso, também pode ser denominada de uma “pré-histéria” dos direitos fundamentais. A distincZo ora referida, entre direitos do homem ¢ direitos humanos — que se assume ser essencialmente didatica — recebeu a recente critica de Bruno Galindo,® argumentando que direitos do homem e direitos humanos (ou direitos do homem) sio sempre todos os direitos inerentes & natureza humana, positivados, ou nao, dis- tinguindo-se dos fundamentais, que sto os direitos constitucionalmente positivados ou positivados em tratados internacionais, ainda que com uma eficdcia e protecao diferenciadas. Com relagao a critica do autor, vale objetar que, consoante ja frisado, a distingio entre direitos do homem e direitos humanos (que efetivamente também podem, se assim se preferir, ser tidos como equiparados, desde que 0 contetido que Ihes é atribuido seja o mesmo) prende-se ao fato de advogarmos a tese da possivel diferenciacao entre os direitos fundamentais na condigio de direitos constitucionais € sujeitos ao duplo regime da fundamentalidade formal e material e direitos humanos como direitos positivados no plano internacional. O préprio autor, todavia, reconhece que os direitos fundamentais constitucionais distinguem-se dos direitos fundamentais de matriz internacional no que diz com sua eficécia e efetiva protegio, justamente a raziio pela qual — acrescida de outros motivos colacionados na presente obra — se tem advogado a distingao entre direitos humanos ¢ direitos fundamentais a partir do tratando-se de posigdes juridicas reconhecidas pelo direito constitucional positivo (v. neste sentide, C.A. Colliard Libertés Publiques, p. 12 $s.) A este respeito, v. K, Stem, Staatsrecht II/I. p. 42¢ ss. Entre nés, explorando esta perspectiva, v. entre outros, P. Melgaré, “Dircitos humanos: uma perspectiva contempordnea para além dos reducionismos tradicionais”, in: RIL, 1° 154, (2002), p. 73 e ss, destacando a perspectiva suprapositiva e a sua relevancia para a aplicagio judicial, Mais recentemente, J, Neuner, “Los Derectios Humanos Sociales”, in: Anuirio Iberoamericano de Justicia Constitucional, 1° 9, 2005. p. 239, também suftagou esta linha de entendimento, ao advogar a distingo entre os direitos fundame tals, fundadas no pacto constituinte e limitadores do poder das maiorias parlamentares,¢ os direitos humanos, com- preendidas como dizeitos supra-estatais, com validade universal e vinculativos inclusive das maiorias constituintes, "CL, por iltimo, aderindo a tal concepeio, G. Marmelstein, Curso de Direitos Fundamentais, Sao Paulo: Atlas, 2008, p. 25-27. i © B. Galindo, Direitos Findamentais. Andlise de sua concretisagao constitucional, p. 48. 30 INGO WOLFGANG SAALET critério do seu plano de positivacto. Que os assim designados direitos do homem sto sempre direitos de todos os seres humanos, independentemente do seu género, sempre foi assumido como um pressuposto também de nossa andlise. Além do mais, no que diz com a assertiva do autor referido quando afirma ser a noco de direitos humanos (ou direitos do homem) mais abrangente que a de direitos fundamentais, ha como objetar que a abrangéncia de certos catélogos constitucionais (como é 0 caso do brasileiro), 20 enunciarem direitos que dificilmente poderiam ser qualificados de humanos no sentido de direitos inerentes d natureza humana (basta aqui, em cardter ilustrativo, referir o direito ao salario minimo, ao terco de férias, entre outros). Assim, a ndo ser que se exclua do catdlogo constitucional todos os direitos que nao sejam também sempre diteitos humanos no sentido de direitos naturais, a tese da maior abrangéncia dos direitos humanos revela-se no minimo questiondvel. Neste contexto, de acordo com o ensinamento do conceituado jurista hispanico Pérez Luiio, 0 critério mais adequado para determinar a diferenciacao entre ambas as categorias € o da concregao positiva, uma vez que o termo “direitos humanos” se revelou conceito de contornos mais amplos e imprecisos que a nocao de direitos fun- damentais,"* de tal sorte que estes possuem sentido mais preciso e restrito, na medida em que constituem 0 conjunto de direitos e liberdades institucionalmente reconheci- dos e garantidos pelo direito positivo de determinado Estado, tratando-se, portanto, de direitos delimitados espacial e temporalmente, cuja denominagao se deve ao seu caréter bésico e fundamentador do sistema juridico do Estado de Direito.!* Assim, a0 menos sob certo aspecto, parece correto afirmar, na esteira de Pedro C. Villalon, que os direitos fundamentais nascem e acabam com as Constituigdes,'* resultando, de tal sorte, da confluéncia entre os direitos naturais do homem, tais como reconhecidos e elaborados pela doutrina jusnaturalista dos séculos XVII e XVIII, e da prépria idéia de Constituigdo."” Neste contexto, situa-se — apenas para citar um posicionamento extraido da literatura filos6fica — o recente magistério de Otfried Hoffe, ao destacar a pertinéneia da diferenciaco conceitual entre direitos humanos e fandamentais, justa- mente no sentido de que os direitos humanos, antes de serem reconhecidos e positi- vados nas Constituigdes (quando se converteram em elementos do direito positivo e direitos fundamentais de uma determinada comunidade juridica), integravam apenas uma espécie de moral juridica universal. Assim, ainda para Héffe, os direitos huma- nos referem-se ao ser humano como tal (pelo simples fato de ser pessoa humana) a0 passo que os direitos fundamentais (positivados nas Constituigdes) concernem as pessoas como membros de um ente piblico conereto.§* Igualmente ~ muito embora 4 Em sentido proximo, v. M. Carbonell, Las Derechos Fundamentales en México. 2 e8.. México: Porrus, 2006, p. 8 es, destacando que, por se tratar de categoria mais ampla, as fronteras conceituais dos direitos humnanos so mais, imprecisas que o termo direitos fundamentais, 15 CE AE. Perez Lufo, Los Derechos Fundamentales. p. 46-7. Em que pese a nossa divergéncia com rel significado atribufdo & expresso “direitos humanos”. cumpre referi: aqui a posigio de M. Kriel advoga 0 entendimento de que a categoria dos direitos fundamentais 6 temporal ¢ espacialmente condicionade, visto que se cuida da institucionslizacio juridica dos direitos humanos na esfera do direito positivo. No mesmo sentido, v. também G. C. Villar, El sistema de los derechos y las libertades fundamentales”. in: F. B. Callej6n (Coord.), Manual de Derecho Constitucional, vol. Il. Madrid: Tecnos. 2005. p. 29 ss., assim como L. M. Diez-Picazo, Sistema de Derechos Fundamemtales, 2 ed. Madrid: Civitas, 2005. p. 35 ¢ ss. 6p. C, Villalon, in: REDC n! 25 (1989). p. 41 7 Assim a ligdo de K. Stern, Staatsrecht 1/1. p. 43. "CE. 0. Hoffe, Derecho Intercultural, especialmente p. 166-69. explorando, ainda. a diferenga entre o plano pré- estatal (dos direitos humanos) ¢ o estatal (dos direitos fundamentais). ‘A EFICACIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS 31 por razSes diversas -, apontando para uma poss{vel distingdo entre direitos funda- mentais e 0 que designa de direitos morais (reconhecendo, contudo, que os direitos fundamentais possuem um contetido e fundamentagao de cunho moral), vale referir a lembranga de Habermas, no sentido de que os direitos fundamentais, que se manifes- tam como direitos positives de matriz constitucional, nio podem ser compreendidos como mera expressiio de direitos morais, assim como a autonomia politica nfio pode set vista como reprodugio da autonomia moral.” Jéa partir do exposto, considerando que ha mesmo varios critérios que permitem diferenciar validamente direitos humanos de direitos fundamentais, assume relevo — como, alids, dio conta alguns dos argumentos j4 deduzidos ~ que a distineSo entre direitos humanos ¢ direitos fundamentais também pode encontrar um fundamento, na circunstancia de que, pelo menos de acordo com uma determinada conéepgao, os di- reitos humanos guardam relag’o com uma concepeao jusnaturalista (jusracionalista) dos direitos, ao passo que os direitos fundamentais dizem respeito a uma perspectiva positivista, Neste sentido. os direitos humanos (como direitos inerentes & prépria con- digdo e dignidade humana) acabam sendo transformados em direitos fundamentais pelo modelo positivista, incorporando-os ao sistema de direito positive como ele- mentos essenciais, visto que apenas mediante um processo de “fundamentalizacio” (precisamente pela incorporagdo as constituigdes), os direitos naturais e inalienaveis da pessoa adquirem a hicrarquia juridica e seu carter vinculante em relagdo a todos 0s poderes constitufdos no mbito de um Estado Constitucional” Em face dessas constatagdes, verifica-se, desde j4, que as expressdes “direitos fundamentais” e “direitos humanos” (ou similares), em que pese sua habitual utili- zagio como sindnimas, se reportam, por varias possfveis razées, a significados dis- tintos. No minimo, para os que preferem o termo “direitos humanos”, ha que referir ~ sob pena de correr-se o risco de gerar uma série de equivocos — se eles esto sendo analisados pelo prisma do direito internacional ou na sua dimensao constitucional po- sitiva. Reconhecer a diferenga, contudo, nao significa desconsiderar a intima relagio entre os direitos humanos e os direitos fundamentais, uma vez que a maior parte das Constituigdes do segundo pés-guerra se inspirou tanto na Declaracio Universal de 1948, quanto nos diversos documentos internacionais e regionais que as sucederam, de tal sorte que — no que diz com o contetido das declaragdes intenacionais e dos textos constitucionais — est4 ocorrendo um processo de aproximagiio harmonizacao, rumo ao que ja esta sendo denominado (e no exclusivamente ~ embora principal- mente -, no campo dos direitos humanos e fundamentais) de um direito constitucio- nal internacional 2 "9 C£ J. Habermas, Faktisitdr und Geltung: Beitriige zur Diskurstheorie des Rechts und des demokratischen Rechtss- taats, . 138 (“Deshalb durfen wir Grundrectie, die in der positiven Gestalt von Verfassungsnormen aufircten, nicht als blosse Abbildungen moralischer Rechte verstehen, und die politische Autonomic nicht als blosses Abbild der mo- ralischen.”). No mesmo sentido, v., entre nds, 0 belo ensaio de M. C. Galuppo, “O que sio direitos fundamentais?", in: J. A.. Sampaio (Org), Jurisdigdo Constitucional e Direitos Fundamentais, 9. 233, 2 Neste sentido, v. os desenvolvimentos de F.J. Bastida Freijedo, “Concepto y modelos histéricos de los derechos fundamentales”, in: FJ. Bastida Freijedo e outros, Teorfa General de los Derechos Fundamentales en la Constituc ‘in Espaitola de 1978, Madrid: Tecnos, p. 18 ess. 2 Sobre o direito constitucional internacional na esfera dos direitos humanos, consultem-se as recentes obras de F. Piovesan, Direitos Humanos e 0 Direito Constiucional Internacional, Max Limonad, Rio de Janeiro, 1996, e de A.A. Cangado Trindade, Traiado do Direito Intemacional dos Direitos Humanos, vol. 1, Sergio A. Fabris, Porto Alegre, 1997, 32 INGO WOLFGANG SARLET No ambito da discussao em torno da melhor terminologia a ser adotada, é de se destacar 0 uso mais recente da expresso “direitos humanos fundamentais” por alguns autores. De acordo com Sérgio Rezende de Barros, que refuta a tese da distin¢do entre direitos humanos e fundamentais, esta designaco tem a vantagem de ressaltar a unidade essencial e indissoltivel entre direitos humanos e direitos fundamentais.> Quanto a este aspecto, e sem que se possa aqui adentrar ainda mais o estimulante de- bate em tomo da temitica versada neste segmento, ndo nos parece existir um conflito tdo acentuado entre a posigio por nés sustentada e as corretas e bem fundadas ponde- ragées do ilustre jurista paulista, j4 que nZio deixamos de reconhecer a conexao intima entre os direitos humanos e os fundamentais, pelo fato de que as diferengas apontadas radicam em alguns ctitérios especificos, como € 0 caso, especialmente, do plano de po- sitivago. Neste mesmo contexto, seguimos entendendo que o termo “direitos humanos fundamentais”, embora no tenha o condo de afastar a pertinéncia da distingao tracada entre direitos humanos e direitos fundamentais (com base em alguns critérios, como id frisado), revela, contudo, a nitida vantagem de ressaltar, relativamente aos direitos humanos de matriz internacional, que também estes dizem com o reconhecimento e protegiio de certos valores e reivindicagdes essenciais de todos os seres humanos, des- tacando, neste sentido, a fundamentalidade em sentido material, que — diversamente da fundamentalidade formal ~ € comum aos direitos humanos € aos direitos funda mentais constitucionais, consoante, alids, ser objeto de posterior andlise. No que concerne ao t6pico em exame, h4 que atentar para o fato de nao existir uma identidade necessaria — no que tange ao elenco dos direitos humanos e funda- mentais reconhecidos ~ nem entre o direito constitucional dos diversos Estados e 0 direito internacional, nem entre as Constituigdes, e isso pelo fato de que, por vezes, © catélogo dos direitos fundamentais constitucionais fica aquém do rol dos direitos humanos contemplados nos documentos internacionais, a0 passo que outras vezes chega a ficar — ressalvadas algumas excecdes ~ bem além, como € 0 caso da nossa atual Constituig¢ao.* Da mesma forma, nao hé uma identidade necessdria entre os assim denominados direitos naturais do homem, com os direitos humanos (em nfvel internacional) e os direitos fundamentais, ainda que parte dos tradicionais direitos de liberdade contemplados na esfera constitucional e internacional tenha surgido da positivacao dos direitos naturais reconhecidos pela doutrina jusnaturalista, tais como 0s clssicos direitos A vida, & liberdade, & igualdade e & propriedade. Além disso, im- porta considerar a relevante distingao quanto ao grau de efetiva aplicagao e protecdo das normas consagradoras dos direitos fundamentais (direito interno) e dos direitos humanos (direito internacional), sendo desnecessario aprofundar, aqui, a idéia de que so os primeiros que — ao menos em regra — atingem (ou, pelo menos, estio em melhores condigées para isto) 0 maior grau de efetivacao, particularmente em face da existéncia de instancias (especialmente as judicidrias) dotadas do poder de fazer respeitar e realizar estes direitos.”* 2 Entre nds, 0 primeiro autor a utilizar a expressio “direitos humanos fundamentais”. ao menos de acordo com 0 nosso conhecimento, foi M.G. Ferreira Filho, Direitos Humanos Fundamentais, Saraiva. Sio Paulo.1996. Também ‘A. Moraes, Direitos Humanos e Fundamentais, Sto Paulo: Atlas, 1998, utiliza-se desta terminologia. CE. S.R, de Barros. Direitos Humanos. Paradoxo da Civilicacao, especialmente p. 29 ¢ ss. ™ Neste sentido. « lio de K. Stem, in: HBSIR V, p. 35. * Explorando as Convergéneias e dissonncias entre ambas as esfera, v. especialmente, G.L. Neumann, “Human Ri- zghts and Constitutional Rights: Harmony and Dissonance”. in: Stanford Law Review, vol. 55 (2003), p. 1863-1900. ‘AEFICACIA DOS DIREITOS FUNDAMENTA'S 33 Cumpre lembrar, ainda, o fato de que a eficacia (juridica e social) dos direitos humanos que nao integram o rol dos direitos fundamentais de determinado Estado depende, em regra, da sua recepgtio na ordem juridica interna e, além disso, do starus juridico que esta Ihes atribui, visto que, do contrério, Ihes falta a necessaria cogén- cia.* Assim, a efetivacdo dos direitos humanos encontra-se, ainda e principalmente, na dependéncia da boa-vontade e da cooperagao dos Estados individualmente consi derados, salientando-se, neste particular, uma evolugio progressiva na eficdcia dos mecanismos juridicos internacionais de controle, matéria que, no entanto, refoge aos limites desta investigagtio. Em suma, reputa-se acertada a idéia de que os direitos humanos, enquanto carecerem do carter da fundamentalidade formal préprio dos direitos fundamentais® — cujo significado ainda sera devidamente clarificado ~, nao lograrao atingir sua plena eficécia e efetividade, o que nio significa dizer que em muitos casos nao a tenham. Importa, por ora, deixar aqui devidamente consignado e esclarecido o sentido que atribuimos as expressdes “direitos humanos” (ou direitos humanos fundamentais) ¢ “direitos fundamentais”, reconhecendo, ainda uma vez, que ndo se cuida de termos reciprocamente excludentes ou incompativeis, mas, sim, de dimensGes intimas e cada vez mais inter-relacionadas, 0 que nao afasta a circu tancia de se cuidar de expressdes reportadas a esferas distintas de positivagio, cujas 2 Neste sentido, R. Alexy. "Direitos Fundamentais no Estado Constitueional Demoertico”, in: RDA a 217 (1999), referindo que ~ a despeito de sua crescente releviincia ~ no se deve superestimao significado da protegio intern ional, j que sem a concretizagao (institucionalizagio) dos direitos do homem (tundamentais) em Estados partieula- res 0 ideal da Declaragao da ONU nao seré alcungado. 2 Cumpre registrar, neste contexto, que em face do reconhecimento da prevaléncia normativa de pelo menos parte dos Tratados de Direitos Humanos (como & 0 caso da Conven¢ao Européia dos Direitos Homanos) em relagdo 20 direito interno dos Estados integrantes da Comunidade e da Unio Européia, bem como diante da existéncia (pelo ‘menos no Ambito regional europeu) de drgdos jurisdivionais supranacionais com compet8ncia para editar decisoes vyinculativas e dotadas de razoavel margem de efetividade, hi quem sustente a fundamentalidade também em sen- {ido formal dos Direitos Humanos nesta esfera, inclusive fo que diz com a recente Carta de Direitos Fundamentais a Unio Europsia, que, em principio, ainda esti aguardando 0 momento de alcangar sua vinculatividade. Este é precisamente o caso de J.J. Gomes Canatilho. “Compreensio Juridico-Polftieo da Carta”, in: RIQUITO, Ana Luisa et al. Carta de Direitos Fundamentais da Unido Européia, p. 11. A propésito vale lembrar, ainda, que justamente (embora nfo exclusivamente) em face da jf spontada existéncia (ainda que nio incontroversa) de um dieito consti- tucional internacional dos direitos humanos, somada 3 solidez das intituigbes suprunacionais (pelo menos, de carster regional), & que jf se encontra em fase de amadurecimento o projeto de uma Constituigao da Unio Européia, que se Viera ser efetivamente implementado (como parece ser a endéncia) havera de provocar uma revisio significativa dde uma série de conceitos tradicionais na esfera da teoria constitucional. que, de rest, jd tem passado por um amplo pprocesso de discussio, A respeito da formagio de um Direito Constitucional Europeu, v., entre outros, F. Lucas Pires, Innrodusao ao Pireito Constitucional Europeu. Coimbra: Coimbra Ed.. 1997. e, ainda dentre 0s autores estrangeiros, 6 paradigmaico contributo de J.H.H. Weiler, The Constitution of Europe. “Do the new clothes have a n emperor?” ‘and otlier essays on european integration, especialmente p. 221-63, Entre nds, confira-se JA. de Oliveira Baracho, “Teoria Geral do Direito Constitucional Comum Europeu”. in: D. Annoni (Org ), Os Novos Conceitos do Novo Di- reita Internacional. Cidadania, Democracia e Direitos Humanos, p. 319-42, ¢ mais recentemente, A.C. Pagliarini, A Constituigdo Européia como Signo. Rio de Janeiro: Lomen Juris. 2005. Este, aproximadamente, 0 ponto de vista advogado por K. Stem, in: HBSIR V, p. 35. A falta de identidade entre ‘0 rol internacional dos direitos humanos e 0 eatdlogo constitucional é, de certa forma, inevitével. Neste sentido, bi {que ftisar que nem todos os diceitos consttucionais podem ser exercitados por qualquer pessoa, ji que alguns direitos. fundamentais se referem to-somente 20s cidados de determinado Estado, Assim. por exemplo, 0 direito de vo1o € 0 dircito de ser eleito podem até encontrar mengio entre os direitos civis ¢ politicos constantes em documentos internacionais, mas, no que concerne ao seu efetivo exereicio, sua ttularidade esti restrita aos cidadiios de cada pais. (© mesmo pode afirmar-se com relagio aos direitos de propor agiio popular, ou mesma de participar de plebiscitos ‘ou integrar proposta de iniciativa popular legislativa, apenas para ficarmos em terreno nacional. Em contrapartida, (0s direitos humanos so atribufdos a qualquer um. e nde apenas aos cidados de determinado Estado, razio pela qual também so denominados de direitos de todos (K Stern, Staatsreche H/I,p. 45). Atente-se, ainda, para a cireunstin- cia de uma significativa parcela das direitos fundamentais corresponder aos direitos humans, no sentido de que sua titularidade no fica reservada aos cidadios nacionais, estendendo-se também aos estrangeiros, tema que, contudo, ‘io se encontra imune a controvérsia, 34 INGO WOLFGANG SARLET conseqiténcias priticas nao podem ser desconsideradas. A luz das digressées tecidas, cumpre repisar, que se torna dificil sustentar que direitos humanos e direitos funda- mentais (pelo menos no que diz com a sua fundamentagao jurfdico-positiva consti- tucional ou internacional, j4 que evidentes as diferengas apontadas) sejam a mesma coisa,” a no ser, é claro, que se parta de um acordo semantico (de que direitos humanos e fundamentais sto expresses sindnimas), com as devidas distingdes em se tratando da dimensao internacional e nacional, quando e se for 0 caso. Os direitos fundamentais, convém repetir, nascem e se desenvolvem com as Constituigdes nas quais foram reconhecidos ¢ assegurados, é sob este Angulo (nao excludente de ou- tras dimens6es) que deverao ser prioritariamente analisados ao longo deste estudo. ® Neste sentido. contudo, recente entendimento de A.C. Ramos. Teoria Geral dos Direitos Humanas na Ordem In- ternacional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 21-30, em excelente monografia sobre o tema dos direitos humanos. /AEFIGAGIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS 35 2. Perspectiva historica: dos direitos naturais do homem aos direitos fundamentais constitucionais e a problematica das assim denominadas dimensées dos direitos fundamentais 2.1, Consideragdes preliminares A andlise da origem, da natureza ¢ da evolugao dos direitos fundamentais ao longo dos tempos é, de per si, um tema fascinante e justificaria plenamente a realiza- do de um curso inteiro € a redagao de diversas monografias e teses. Nosso objetivo, contudo, € bem mais modesto, sendo nossa intengZo apenas referir alguns aspectos relevantes a respeito desta tematica, de modo especial para propiciar uma adequada compreensiio da importincia e da fung%o dos direitos fundamentais, além de nos situarmos no tempo € no espaco. E necessério frisar que a perspectiva hist6rica ou genética assume relevo nao apenas como mecanismo hermenéutico,” mas, principal- mente, pela circunsténcia de que a historia dos direitos fundamentais é também uma historia que desemboca no surgimento do moderno Estado constitucional, cuja essén- cia € razo de ser residem justamente no reconhecimento e na protegao da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais do homem.! Neste contexto, ha que dar razo aos que ponderam ser a hist6ria dos direitos fundamentais, de certa forma (e, em parte, poderfamos acrescentar), também a histéria da limitagao do poder. No que concerne ao itinerdrio a ser percorrido, uma abordagem historica pres- supde, num primeiro momento, que se ressalte onde, por que e como nasceram os direitos fundamentais, matéria que ainda hoje suscita controvérsias. Cuida-se, nes- ta etapa, de destacar alguns momentos, concepgdes doutrindrias e formas juridicas que antecederam e influenciaram o reconhecimento, em nivel do direito constitu- cional positivo dos direitos fundamentais no final do século XVIII. Somente a par- tir do reconhecimento e da consagragao dos direitos fundamentais pelas primeiras * Sobre este aspecto, v. B. Pieroth, in: JURA 1984. S. 11, que analisa o problema da importincia da interpretagio hist6rica 3 luz do exemplo da evolusao do constitucionalismo germanico, 31 Neste sentido. K. Stern, in: HBSER V, 108, p. 5. SCL, K. Stern, Staatsrecke III, p. 55, % Assim leciona M. Kriele, i: FS fir Seupin. p. 187. 36 INGO WOLFGANG SARLET es & que assume relevo a problemética das assim denominadas “geragdes” (ou dimensdes) dos direitos fundamentais, visto que umbilicalmente vinculada as transformages geradas pelo reconhecimento de novas necessidades basicas, de modo especial em virtude da evoluco do Estado Liberal (Estado formal de Direito) para 0 moderno Estado de Direito (Estado social e democratico [material] de Direito),¥ bem como pelas mutagdes decorrentes do processo de industrializago € seus reflexos, pelo impacto tecnol6gico e cientifico. pelo processo de descolonializagao e tantos outros fatores direta ou indiretamente relevantes neste contexto e que poderiam ser considerados.* Assim, fica desde j4 subentendida a idéia de que a primeira geracao ou dimensio dos direitos fundamentais é justamente aquela que marcou o reconhe- cimento de seu status constitucional material ¢ formal. Sintetizando o devir histérico dos direitos fundamentais até 0 seu reconhecimento nas primeiras Constituigdes es- itas, K. Stern, conhecido mestre de Col6nia, destaca trés etapas: a) uma pré-hist6- ria, que se estende até 0 século XVI; b) uma fase intermedidria, que corresponde a0 perfodo de elaboragao da doutrina jusnaturalista e da afirmacao dos direitos naturai do homem; c) a fase da constitucionalizagao, iniciada em 1776, com as sucessivas declaragdes de direitos dos novos Estados americanos.** Impende considerar ainda, no que tange & abordagem dos direitos fundamentais em sua perspectiva histérica e no que concerne & sua dimensao espacial, que 0 nosso enfoque se limita ao surgimento do Estado constitucional de matriz. européia e ame- ricana, limitando-se, além disso, a alguns aspectos e exemplos pingados entre 0 vasto material que se encontra & disposigao do estudioso da histéria dos direitos fundamen- tais. Por derradeiro, de acordo com a oportuna licdo do notavel jurista espanhol Perez Lufio, ndo se deve perder de vista a circunstincia de que a positivacao dos direitos fundamentais é 0 produto de uma dialética constante entre 0 progressivo desenvolvi- mento das técnicas de seu reconhecimento na esfera do direito positivo e a paulatina afirmagao, no terreno ideolégico, das idéias da liberdade e da dignidade humana.” Importa, neste contexto, destacar 0 paralelismo e a interpenetrago entre a evolugio na esfera filos6fica e o gradativo processo de positivacao que resultou na constitucio- nalizagao dos direitos fundamentais no final do século XVIII, direttizes que preten- demos ressaltar no decorrer desta suméria abordagem de cunho hist6rico.* 2.2, Antecedentes: dos primérdios concepgdo jusnaturalista dos direitos naturais ¢ inaliendveis do homem Ainda que consagrada a concepgio de que nao foi na antiguidade que surgiram primeiros direitos fundamentais, no menos verdadeira é a constatagio de que a possivel distingdo entre o Estado Liberal. o Estado Social de Direito e 0 Estado Demoeritico de Diteito, v. eck eJ.L. Bolzan de Morais, Ciéncia Politica e Teoria Geral do Estado. p. 83 ss. 55 Como acertadamente aponta K. Stern, Staatsreche III. p. 53. a evolugao hist6rica dos direitos fundamentals for rece elementos que explicam sua multidimensionalidade no modemo Estado constitucional. S8CL_K. Stem, Staatsrecht II/, p56. » AE, Perez Luo, Derechos Humanos, p. 109. 38 No ambito da doutrina nacional sobre a trajet6ria evolutiva dos direitos fundamentais, imprecindiveis, entre outras, as contribuigdes de F. K. Comparato, A Afirmacio Histdrica dos Direitos Humanos, 1999: S. R. Barros, Direitos Humanos: paradoxos da civilizagdo. 2003; por iltimo. 5. A. L. Sampaio. Direitos Fundamentais.p.142-259. A EFIGACIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS 37 © mundo antigo, por meio da religido e da filosofia, legou-nos algumas das idéias- chave que, posteriormente, vieram a influenciar diretamente o pensamento jusnatu- ralista e a sua concepcao de que o ser humano, pelo simples fato de existir, é titular de alguns direitos naturais e inaliendveis, de tal sorte que esta fase costuma também ser denominada, consoante ja ressaltado, de “pré-hist6ria” dos direitos fundamen- tais. De modo especial, os valores da dignidade da pessoa humana, da liberdade e da igualdade dos homens encontram suas rafzes na filosofia classica, especialmente na greco-romana, e no pensamento cristo. Saliente-se, aqui, a circunstancia de que a democracia ateniense constitufa um modelo polftico fundado na figura do homem livre e dotado de individualidade.” Do Antigo Testamento, herdamos a idéia de que © ser humano representa o ponto culminante da criagio divina, tendo sido feito imagem e semelhanga de Deus. Da doutrina estéica greco-romana e do ctistianismo, advieram, por sua vez, as teses da unidade da humanidade e da igualdade de todos os homens em dignidade (para os cristaos, perante Deus) De irrefutavel importancia para o reconhecimento posterior dos direitos funda- mentais nos processos revolucionarios do século XVIII, foi a influéncia das doutrina jusnaturalistas, de modo especial a partir do século XVI. J4 na Idade Média, desen- volveu-se a idéia da existéncia de postulados de cunho suprapositivo que, por orien- tarem ¢ limitarem o poder, atuam como critérios de legitimagio de seu exercicio.® De particular relevancia, foi o pensamento de Santo Tomas de Aquino, que, além da jé referida concepgio crista da igualdade dos homens perante Deus, professava a existéncia de duas ordens distintas, formadas, respectivamente, pelo direito natural, como expresso da natureza racional do homem, e pelo direito positivo, sustentando que a desobediéncia ao direito natural por parte dos governantes poderia, em casos extremos, justificar até mesmo 0 exercicio do direito de resisténcia da populagio." Também o valor fundamental da dignidade humana assumiu particular relevo no. pensamento tomista, incorporando-se, a partir de entio, d tradi¢ao jusnaturalista, ten- do sido o humanista italiano Pico della Mirandola quem, no perfodo renascentista ¢ baseado principalmente no pensamento de Santo Tomés de Aquino, advogou o ponto de vista de que a personalidade humana se caracteriza por ter um valor proprio, inato, expresso justamente na idéia de sua dignidade de ser humano, que nasce na qualida- de de valor natural, inaliendvel e incondicionado, como cerne da personalidade do homem.# Por sua vez, é no nominalismo do pensador cristo Guilherme de Occam que se busea a origem do individualismo que levou ao desenvolvimento da idéia de direito subjetivo, principalmente por obra de Hugo Grécio, que, no limiar da Idade % Neste sentido, a ligio de A.E. Perez Lufo. Derechos Humanos, p. 109, que também refere a importaneia do pen- smento sofisa e estico no reconhecimento das idéias da igualdade natural dos homens e da crenga num sistema de leis no-escrtas anteriores e superiores is do Estado e dos homens. A respeito deste ponto. como ce modo geral sobre 1 evolugio dos direitos humanos e fundamentais, vale conferir a estimulante narrativa de F. K, Comparato, A Afir- macdo Historica dos Direitos Humanos. especialmente p. | a 55. Apresentando um historico a partir da perspecstiva 4a evolugtio do Estado, v.. entre nés, 0 importante contributo de R.G. Leal, Perspectivas Hermenéuticas dos Direitos Humnanos e Fundamentais no Brasil, p.59 ess. + Cf, A.B, Perez Lutlo. Las derechos fundamentales, p. 30, 4! CE. ALE. Perez Lutio, Los derechos findamentates. p. 30. A respeito da doutrina de Santo Tomas de Aquino, v. Juarez Freitas, As Grandes Linhas da Filosofia do Direito, p. 31 e ss.,€ C.J. Friedrich, Die Philosophie des Rechts historischer Perspektive, p.25 e s., que apresentam excelente sinopse do pensamento tomista no que tange a estes e ‘outros aspectos ligados i filosofia do Direito e do Estado. ler, in: HBSIR V, p. 6 Assim, entre outros. K 38 Moderna, 0 definiu como “faculdade da pessoa que a torna apta para possuir ou fazer algo justamente”.* A partir do século XVI, mas principalmente nos séculos XVII e XVIII, a dou- trina jusnaturalista, de modo especial por meio das teorias contratualistas, chega 20 seu ponto culminante de desenvolvimento. Paralelamente, ocorre um proceso de laicizagio do direito natural, que atinge seu apogeu no iluminismo, de inspiragao jusracionalista. Cumpre referir, neste contexto, os tedlogos espanhéis do século XVI (Vitoria y las Casas, Vézquez de Menchaca, Francisco Sudrez e Gabriel Vazquez), que pugnaram pelo reconhecimento de direitos naturais aos individuos, deduzidos do direito natural e tidos como expresso da liberdade e dignidade da pessoa humana, além de servirem de inspiragdo ao humanismo racionalista de H. Grocio, que divul- gou seu apelo a raziio como fundamento dltimo do Direito e, neste contexto, afirmou a sua validade universal, visto que comum a todos os seres humanos, independen- temente de suas crencas religiosas.* Ainda no século XVI, merecem citagao 0s nomes dos jusfilésofos alemaes Hugo Donellus, que, j4 em 1589, ensinava seus discfpulos, em Nuremberg, que 0 direito 4 personalidade englobava os direitos vida, & integridade corporal e & imagem, bem como o de Johannes Althusius, que, no inicio do século XVII (1603), defendeu a idéia da igualdade humana e da sobe- rania popular, professando que os homens estariam submetidos a autoridade ape- nas A medida que tal submissao fosse produto de sua prépria vontade e delegagao, pregando, ainda, que as liberdades expressas em lei deveriam ser garantidas pelo direito de resisténcia.* No século XVI, por sua vez, a idéia de direitos naturais inaliendveis do homem € da submissao da autotidade aos ditames do direito natural encontrou eco € elabora- da formulagio nas obras do jé referido holandés H. Grécio (1583-1645), do alemio Samuel Pufendorf (1632-1694) e dos ingleses John Milton (1608-1674) e Thomas Hobbes (1588-1679). Ao passo que Milton reivindicou 0 reconhecimento dos direitos de autodeterminagdo do homem, de tolerdncia religiosa, da liberdade de manifesta- do oral e de imprensa, bem como a supressio da censura, Hobbes atribuiu ao homem atitularidade de determinados direitos naturais, que, no entanto, aleangavam validade apenas no estado da natureza, encontrando-se, no mais, & disposigao do soberano.* Cumpre ressaltar que foi justamente na Inglaterra do século XVII que a concepgao contratualista da sociedade e a idéia de direitos naturais do homem adquiriram par- ticular relevancia, e isto ndo apenas no plano tedrico, bastando, neste particular, a simples referéncia as diversas Cartas de Direitos assinadas pelos monarcas desse periodo, Ainda neste contexto, hd que referir 0 pensamento de Lord Edward Coke (1552- 1634), de decisiva importancia na discussio em torno da Peririon of Rights de 1628, 0 qual, em sua obra e nas suas manifestagdes piblicas como juiz e parlamentar, susten- tou a existéncia de findamental rights dos cidadaos ingleses, principalmente no que * Chuado por C. Lafer. A Reconstrugdo dos Direitos Humanos. p. 120-L, onde também enconttamos a referéncia a Guilherme de Ocear, + assim A.E, Perez Lutio, Los Derechos Fundamentales, p. 30-1, Sobre a laicizagao do diceito natural, v. C. Lafer A Reconstrusio dos Direitos Humanas, p. 121..de onde também extraimos as palavras sobre a concepgio racionalista do dreito natural de H. Grécio, CE. K. Stern, in: HBSIR V, p. 10. “© V.também K. Stem. in: HBSIR V, p. 9-10. AEFIGACIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS. 39 diz com a protegao da liberdade pessoal contra a prisdo arbitraria e o reconhecimento do direito de propriedade, tendo sido considerado o inspirador da classica triade vida, liberdade e propriedade, que se incorporou ao patriménio do pensamento indivualista burgués.*” Decisiva, inclusive pela influéncia de sua obra sobre os autores iluminis- tas, de modo especial franceses, alemaes e americanos do século XVIII, foi também a contribuigao doutrindria de John Locke (1632-1704), primeiro a reconhecer aos direitos naturais ¢ inaliendveis do homem (vida, liberdade, propriedade e resisténcia) uma eficdcia oponivel, inclusive, aos detentores do poder, este, por sua vez, basea- do no contrato social, ressaltando-se, todavia, a circunstineia de que, para Locke, apenas os cidadtios (e proprietérios, j4 que identifica ambas as situagdes) poderiam valer-se do direito de resistencia, sendo verdadeiros sujeitos, ¢ nao meros objetos do governo. Na ligdo de Perez Lufio, com Locke a defesa dos direitos naturais & vida, a liberdade e propriedade converteu-se na finalidade precipua da sociedade civil e em principio legitimador do governo.” Cumpre salientar, neste contexto, que Locke, assim como jé 0 havia feito Hobbes, desenvolveu ainda mais a concepgao contratu- alista de que os homens tém o poder de organizar o Estado e a sociedade de acordo com sua razio e vontade, demonstrando que a relago autoridade-liberdade se funda na autovinculacio dos governados, langando, assim, as bases do pensamento indivi- dualista e do jusnaturalismo iluminista do século XVIII, que, por sua vez, desaguou no constitucionalismo e no reconhecimento de direitos de liberdadade dos individuos considerados como limites ao poder estatal.*? Foi principalmente — apenas para citar os representantes mais influentes ~ com Rousseau (1712-1778), na Franga, Tomas Paine (1737-1809), na América, e com Kant (1724-1804), na Alemanha (Prissia), que, no Ambito do iluminismo de inspiragdo jusnaturalista, culminou 0 processo de elaboracio doutrinaria do contra- tualismo e da teoria dos direitos naturais do individuo, tendo sido Paine quem na sua obra popularizou a expressao “direitos do homem” no lugar do termo “direitos naturais”.S' E 0 pensamento kantiano, nas palavras de Norberto Bobbio, contudo, 0 marco conclusivo desta fase da hist6ria dos direitos humanos. Para Kant, todos os direitos esto abrangidos pelo direito de liberdade, direito natural por exceléncia, que cabe a todo homem em virtude de sua prépria humanidade, encontrando-se limitado apenas pela liberdade coexistente dos demais homens.* Conforme ensina Bobbio, Kant, inspirado em Rousseau, definiu a liberdade juridica do ser humano como a faculdade de obedecer somente As leis 4s quais deu seu livre consentimen- to,** concepeio esta que fez escola no Ambito do pensamento politico, filos6fico ¢ jurfdico, *™CE. K. Stern, in: HBSER V, p. 10. “8 Neste sentido a igo de T. F. Sanjudn, Constitucién y Derechos Fundamentales. p. 13 K. Stern, in: HBSIR V. p-10. * AE. Perez ufo, Los Derechos Fundamentales, p.31- °° Bsta a ligdo de C. Lafer, A Reconstrucdo dos Direitos Humanos, p. 122-3 51 Neste sentido v.. dentre outros, A.E. Perez Luft, Los Derechos Fundamentales, p. 31-2. *N, Bobbio, A Era dos Direitos, p. 73 * Bsta a ligdo de A.E. Perez Lun, Los Derechos Fundamentales, p. 32. 5!N. Bobbio, A Bra dos Direitos, p. 86. 40 INGO WOLFGANG SARLET 2.3. O processo de reconhecimento dos direitos fundamentais na esfera do direito positive: dos direitos estamentais aos direitos fundamentais constitucionais do século XVIII Como aponta Perez Lufio,5> 0 processo de elaboragio doutrinaria dos direitos humanos, tais como reconhecidos nas primeiras declarag6es do século XVIII, foi acompanhado, na esfera do direito positivo, de uma progressiva recepcio de direi- tos, liberdades e deveres individuais que podem ser considerados os antecedentes dos direitos fundamentais. E na Inglaterra da Idade Média, mais especificamente no século XIII, que encontramos o principal documento referido por todos que se dedicam ao estudo da evolugao dos direitos humanos. Trata-se da Magna Charta Libertatum, pacto firmado em 1215 pelo Rei Jodo Sem-Terra e pelos bispos e bares ingleses. Este documento, inobstante tenha apenas servido para garantir aos nobres ingleses alguns privilégios feudais, alijando, em principio, a populagao do acesso aos “direitos” consagrados no pacto, serviu como ponto de referéncia para alguns direitos ¢ liberdades civis classicos, tais como 0 habeas corpus, 0 devido proceso legal € a garantia da propriedade.* Todavia, em que pese possa ser considerado 0 mais impor- tante documento da época, a Magna Charta nao foi nem o tinico, nem o primeiro, destacando-se, j4 nos séculos XI e XIII, as cartas de franquia e os forais outorgados pelos reis portugueses e espanhdis.*” Desde ja, ha que descartar o cardter de auténticos direitos fundamentais desses “direitos” e privilégios reconhecidos na época medieval, uma vez que outorgados pela autoridade real num contexto social e econémico marcado pela desigualdade, cuidando-se mais, propriamente, de direitos de cunho estamental, atribuidos a certas castas nas quais se estratificava a sociedade medieval, alijando grande parcela da populagdo do seu gozo.* Como leciona Vieira de Andrade, referindo-se, a titulo de exemplo, 8 Magna Charta, esses pactos se caracterizavam “pela concessao ou reco- nhecimento de privilégios aos estamentos sociais (regalias da Nobreza, prerrogativas da Igreja, liberdades municipais, direitos corporativos), além de que verdadeiramente nao se reconheciam direitos gerais, mas obrigacdes concretas daqueles reis que os subscreviam”. Ainda assim, impende nao negligenciar a importancia desses pactos, de modo especial as liberdades constantes da Magna Charta, para o ulterior desenvol- vimento ¢ reconhecimento dos direitos fundamentais nas Constituigdes, ainda mais quando € justamente no seu jé referido art. 39 que a melhor doutrina ~ contrariando a ainda prestigiada tese de Georg Jellinek, no sentido de que a liberdade religiosa teria sido o primeiro direito fundamental — vé a origem destes direitos na liberdade de 55 A.E, Perez Lutio, Los Derechos Fundamentales. p. 33 % Neste sentido, A.E. Perez Luho. Los Derechos Fundamentales, p. 34, devendo apontar-se, de modo especial, para ‘a importincia do artigo 39 da Magna Charta 57 Relativamente ao mesmo perfodo histérieo, podemos citar 0 documento firmado por Afonso IX, em 1188, a Bula de Ouro da Hungria (1222), 0 Privilegio General outorgado por Pedro II] em 1283 (cortes de Zaragoza) € 05 Privi {égios da Unido Aragonesa (1286) *® assim, por exemplo,Truyol y Serra, Los Derechos Fundamentales, p. 12. 271.C. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais. p.25. Saliente-se. neste contento.a referencia de H.P. Schnei~ der, in: REP n?7 (1979), p. 8-9, no sentido de que estes privilégios estamentais¢ liberdades corporativas tinham sua titularidade fundada no nascimento, na ascendéncia familiar ¢ na tradigo, encontrando-se enquadrados no ambito de uma sociedade estratificada e estamental ‘A EFIOACIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS 41 Jocomogio e sua protegio contra prisdo arbitraria, por constituir 0 pressuposto neces- sdrio ao exercicio das demais liberdades, inclusive da liberdade de culto e religiaio.* De suma importéncia para a evolucio que conduziu ao nascimento dos direitos fundamentais foi a Reforma Protestante, que levou & reivindicagao € ao gradative reconhecimento da liberdade de opcio religiosa e de culto em diversos pafses da Europa, como foi o caso do Edito de Nantes, promulgado por Henrique IV da Franca, em 1598, e depois revogado por Luis XIV, em 1685. Neste contexto, também podem ser enquadrados os documentos firmados por ocasifio da Paz de Augsburgo, em 1555, eda Paz da Westfalia, em 1648, que marcou o final da Guerra dos Trinta Anos, assim como 0 comhecido Toleration Act da colonia americana de Maryland (1649) e seu si- milar da colonia de Rhode Island, de 1663." Igualmente, nao hd como desconsiderar a contribuigao da Reforma e das conseqiientes guerras religiosas na consolidaciio dos modernos Estados nacionais e do absolutismo monarquico, por sua vez precondigo para as revolugdes burguesas do século XVII, bem como os reflexos j4 referidos na esfera do pensamento filos6fico, conduzindo a laicizagao da doutrina do direito natural, € na elaboragao tedrica do individualismo liberal burgués.** Cumpre lembrar aqui a ligdo de H. P, Schneider, que aponta para a circunstncia de que foi justamente o entrelagamento e a interagdo destas duas diretrizes ~ a secularizaco do direito na- tural e a individualizaco dos privilégios estamentais — que propiciaram a formagio das garantias dos direitos fundamentais. De qualquer modo, inobstante a decisiva contribuigao desses documentos concessivos de liberdades, igualmente nao ha como atribuir-Ihes a condigao de direitos fundamentais, pois, consoante ja ressaltado, po- diam ser nova e arbitrariamente subtraidas pela autoridade monarquica. Como préxima etapa, impende citar as declaracdes de direitos inglesas do sé- culo XVII, nomeadamente, a Petition of Rights, de 1628, firmada por Carlos I, 0 Habeas Corpus Act, de 1679, subscrito por Carlos Il, ¢ 0 Bill of Rights, de 1689, promulgado pelo Parlamento e que entrou em vigor jé no reinado de Guilherme d’Orange, como resultado da assim denominada “Revolugio Gloriosa”, de 1688, ha- vendo, ainda, quem faga mengao ao Establishment Act, de 1701, que definiu as leis da Inglaterra como direitos naturais de seu povo.* Nesses documentos, os direitos ¢ liberdades reconhecidos aos cidadios ingleses (tais como o principio da legalidade penal, a proibicao de prisdes arbitrarias e o habeas corpus, 0 direito de peticao e uma certa liberdade de expresso) surgem, conforme referiu Vieira de Andrade, como enunciagdes gerais de direito costumeiro,* resultando da progressiva limitagao do poder mondrquico e da afirmagao do Parlamento perante a coroa inglesa." Importa consignar, aqui, que as declaragdes inglesas do século XVII significaram a evoluciio © Neste sentido, v. M. Kriele. in: FS flr Scupin. p. 205, © A respeito da liberdade e da tolerdncia religiosa nos séculos XVI € XVI. v., dentee tantos, Truyol y Serra, Los Derechos Fundamentales. p. 14-5. Assim também M. Kriele, in: FS fur Scupin, p. 194 € s. © Assi Cf. B, Pieroth, in: JURA 1984. p, 570-1. © V., dentre outros, C. Lafer. A Reconstrusao dos Direitos Humanos, p. 120-1 HL. Schneider. in: REP n°7 (1979). p.9 © & este respeito v.. dentretantos, T. Freixes Sanjuiin, Constinucidn y Derechos Fundamentales, p. 13, A. E, Perez Luo, Los Derechos Fundamentales. p. 34 © 1.C. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais, p. 26. ® Segundo averba H.P. Schneider. in: REP r® 7 (1979), p. 10, foi o confronto entre o Parlamento e a Coroa inglesa que ensejou o surgimento das primeiras garantias juridico-politcas perante o arbitio da autoridade, a expropriagio 0 desterr. 42 INGO WOLFGANG SARLET das liberdades e privilégios estamentais medievais e corporativos para liberdades ge- néricas no plano do direito pablico, implicando expressiva ampliag&o, tanto no que diz com o contetido das liberdades reconhecidas, quanto no que toca a extensio da sua titularidade & totalidade dos eidadaos ingleses.* Em que pese a sua importincia para a evolug’o no Ambito da afirmagio dos direitos, inclusive como fonte de inspiracio para outras declaragdes, esta positiva- io de direitos ¢ liberdades civis na Inglaterra, apesar de conduzir a limitagdes do poder real em favor da liberdade individual, ndo pode, ainda, ser considerada como 0 marco inicial, isto é, como o nascimento dos direitos fundamentais no sentido que hoje se atribui ao termo. Fundamentalmente, isso se deve ao fato de que os direitos e liberdades — em que pese a limitagao do poder mondrquico ~ nao vinculavam 0 Parlamento, carecendo, portanto, da necessdria supremacia e estabilidade, de tal sorte que, na Inglaterra, tivemos uma fundamentalizacao, mas nao uma constitucionaliza- io dos direitos e liberdades individuais fundamentais.® Ressalte-se, por oportuno, que esta fundamentalizagiio nao se confunde com a fundamentalidade em sentido formal, inerente A condigao de direitos consagrados nas Constituigdes escritas (em sentido formal). A despeito do dissidio doutrinario sobre a paternidade dos direitos fundamen: tais, disputada entre a Declaragdo de Direitos do povo da Virginia, de 1776, e a Declaragdo Francesa, de 1789, 6 a primeira que marca a transigao dos direitos de liberdade legais ingleses para os direitos fundamentais constitucionais.” As declara- des americanas incorporaram virtualmente os direitos e liberdades ja reconhecidos pelas suas antecessoras inglesas do século XVI, direitos estes que também tinham sido reconhecidos aos stiditos das coldnias americanas, com a nota distintiva de que, a despeito da virtual identidade de contetido, guardaram as caracteristicas da univer- salidade e supremacia dos direitos naturais, sendo-Ihes reconhecida eficacia inclusive em relagio a representacdo popular, vinculando, assim, todos os poderes pitblicos.” Com a nota distintiva da supremacia normativa e a posterior garantia de sua justicia- bilidade por intermédio da Suprema Corte e do controle judicial da constitucionalida de,” pela primeira vez os direitos naturais do homem foram acolhidos e positivados como direitos fundamentais constitucionais, ainda que este status constitucional da fundamentalidade em sentido formal tenha sido definitivamente consagrado somente a partir da incorporagio de uma declaragio de direitos & Constituigio em 1791, mais exatamente, a partir do momento em que foi afirmada na pratica da Suprema Corte a sua supremacia normativa.” Igualmente de transcendental importancia foi a Declaragio dos Direitos do Homem e do Cidadao, de 1789, fruto da revolucdo que provocou a derrocada do an- ‘ Assim a ligdo de A.B, Porea Luo. Los Derechos Fundamentales, p. 345, © ¥., sobretudo, a ligio lapidar de D. Grimm, Die Zukunft der Verfassung. p. 79-80. 7 Esta a ligho, dentre outros, de D. Grimm, Die Zukunft der Verfassung. p. 80. A Declaragio da Virginia acabou servindo de inspiragdo para as demais Declaragies das ex-col6nias inglesas na América tais como as da Pensilvania, Maryland e Carolina do None (igualmente de 1776), bem como as de Massachussetts (1780) e de New Hampshire (1784), acabando por refletir na incorporagio dos direitos fundamentais & Constituigo de 1787 por meio das emen: das de 1791 71 y, também D. Grimm, Die Zukunfi der Verfassung. p. 80-1 CL. D. Grimm, Die Zukunft der Verfassumg, p. 82. A este respeita, v. também B. Pieroth, in: JURA 1984, p. 573. 7 Assim a lembranga de M. Kriele, in: FS filr Seupin. p. 207-8. [AEFICACIA 00S DIREITOS FUNDAMENTAIS 43 tigo regime € a instauracao da ordem burguesa na Franga, Tanto a declaragao france: quanto as americanas tinham como caracteristica comum sua profunda inspiracZo jusnaturalista, reconhecendo ao ser humano direitos naturais, inaliendveis, inviola- veis e imprescritiveis, direitos de todos os homens, e no apenas de uma casta ou estamento.” A influéncia dos documentos americanos, cronologicamente anteriores, é inegavel, revelando-se principalmente mediante a contribui¢o de Lafayette na confecgao da Declaragao de 1789." Da mesma forma, incontestével a influéncia da doutrina iluminista francesa, de modo especial de Rousseau e Montesquieu, sobre os revoluciondrios americanos, levando a consagracao, na Constituigiio Americana de 1787, do prinefpio democratico ¢ da teoria da separagao dos poderes. Sintetizando, hd que reconhecer a inequivoca relagao de reciprocidade, no que concerne a influéncia exercida por uma declaragio de direitos sobre a outra, sendo desnecessdria, para os fins deste estudo, qualquer andlise que tenha como objeto a mensuracao da graduagio da intensidade desta influéncia miitua, se € que tal aferigao se afigura vidvel E necessério, contudo, apontar para algumas diferengas relevantes entre a Declaracao de 1789 ¢ os direitos € liberdades consagrados pelo constitucionalismo americano. Assim, sustenta-se que 0 maior contetido democritico e social das decla- rages francesas € 0 que caracteriza a “via” francesa do processo revolucionério e constitucional.”* Atente-se, neste contexto, ao fato de que a preocupagao com 0 social e com o prinefpio da igualdade transparece nfo apenas na Declaragio de 1789, mas também na Constituigio de 1791, bem como ~ e principalmente — na Constituigao jacobina de 1793, de forte inspiracao rousseauniana, na qual chegaram a ser reconhe- cidos os direitos ao trabalho, & instrugao e & assisténcia aos desamparados. Costuma referir-se, ainda, a aspiracdo universal ¢ abstrata da Declaragao francesa e dos direitos nela reconhecidos, contrastando, assim, com o maior pragmatismo das Declaragdes americanas, sendo correto afirmar-se que a Declaragiio de 1789 nao postulava a con- digo de uma Constituigao, incorporando-se, posteriormente, aos preambulos di Constituigdes de 1791 e de 1793, integrando também, por meio da técnica de remis. sio, o predmbulo da vigente Constituigdo francesa de 1958, que deu seguimento & uadigao. O certo é que, durante muito tempo, os direitos da Declaragio francesa se encontravam virtualmente a disposi¢ao do legislador, visto que no vinculavam © Parlamento, a mingua de um sistema operante de controle de constitucionalidade das leis. Ainda neste contexto, é de lembrar que, enquanto na Franca o sentido revolucio- nario da Declaragao de 1789 radica na fundamentacio de uma nova Constituigao, no proceso constitucional norte-americano este sentido revolucionario das declaragées de direitos radica na independéncia, em conseqiiéncia da qual se faz necesséria uma nova Constituicao.”” A contribuicao francesa, no entanto, foi decisiva para 0 processo de constitucionalizagio e reconhecimento de direitos e liberdades fundamentais nas Constituigdes do século XIX. Cabe citar aqui a ligdo de Martin Kriele, que, de forma sintética e marcante, traduz a relevancia de ambas as Declaragdes para a consagragao dos direitos fundamentais, afirmando que, enquanto os americanos tinham apenas direitos fundamentais, a Franca legou a0 mundo os direitos humanos." Atente-se, CE AE Perez Lun, Los Derechos Fundamentales, p36. 75 V., neste sentido, K. Stern, in: HBSIR V.p. 13. 78 Neste sentido. a ligdo de E.K.M, Carton, in: RIL n* 106 (1990), p. 252-3. CE EKM.Camion, ns RIL 3° 106 (1990). p. 256, valendo-se das alavras de J. Habermas 78M. Kricle, in: FS fir Seupin. p. 190-1 44 INGO WOLFGANG SARLET ainda, para a circunstancia de que a evolugdo no campo da positivagao dos direitos fundamentais, recém-tragada de forma sumdria, culminou com a afirmagdo (ainda que nao em cardter definitivo) do Estado de Direito, na sua concepgio liberal-burgue- sa, por sua vez determinante para a concepcAo classica dos direitos fundamentais que caracteriza a assim denominada primeira dimensio (geragdo) destes direitos. 2.4. As diversas dimensées dos direitos fundamentais e sua importéncia nas etapas de sua positivagio nas esferas constitucional e internacional 2.4.1, Generalidades Desde © seu reconhecimento nas primeiras Constituigdes, os direitos funda- ‘mentais passaram por diversas transformag6es, tanto no que diz com o seu contetido, quanto no que concerne & sua titularidade, eficdcia e efetivacdo. Costuma-se, neste contexto marcado pela auténtica mutagio histérica experimentada pelos direitos fun- damentais,” falar da existéncia de trés geragdes de direitos, havendo, inclusive, quem defenda a existéncia de uma quarta e até mesmo de uma quinta e sexta geragdes. Num primeiro momento, é de se ressaltarem as fundadas criticas que vém sendo dirigidas contra préprio termo “geracdes” por parte da doutrina alienigena ¢ nacional. Com efeito, nao hd como negar que o reconhecimento progressivo de novos direitos fun- damentais tem 0 cardter de um processo cumulativo, de complementaridade," e nao de alternancia, de tal sorte que o uso da expressiio “geragdes” pode ensejar a falsa im- presstio da substituigao gradativa de uma geraco por outra, tazéo pela qual hé quem prefira o termo “dimensdes” dos direitos fundamentais, posigdo esta que aqui opta- mos por perfilhar, na esteira da mais moderna doutrina."' Neste contexto, aludiu-se, entre nds, de forma notadamente irdnica, ao que se chama de “fantasia das chamadas geragdes de direitos”, que, além da imprecisao terminolégica ja consignada, conduz a0 entendimento equivocado de que os direitos fundamentais se substituem ao longo do tempo, nao se encontrando em permanente processo de expansio, cumulagio fortalecimento.” Ressalte-se, todavia, que a discordancia reside essencialmente na esfera terminoldgica, havendo, em principio, consenso no que diz com o contetido das respectivas dimensdes e “geragdes” de direitos.” Neste sentido, aligdo de A.E. Perez Lutio, in: RCEC n° 10 (1991), p. 205. para quem o apareeimento de sucessivas, dimensbes de direitos fundamentais foi determinado justamente pela mutacio historica destes direitos. ® advogando a complementariedade das diversas dimensbes (geragbes) de direitos fundamentais, v., entre nds & entre outros, os aportes de V, Brega Filho, Direitos Fundamemtais na Constiuicdo de 1988... p. 25 € SS. "Este o entendimento de E. Riebel, in: EuGRZ 1989, p. 11. No ambito do direito patrio. foi talvez P. Bonavides, Curso de Direito Constitucional, p. 525, quem primeiro fez alusio a esta imprecisio terminol6gica. Mais recente mente, v, no mesmo sentido, B. Galindo, Direitos Fundamentais...p. 57. bem como J. Schafer, Classifieagao dos Direitos Fundamentais, Porto Alegre: Livraria do Advogado, p, 39. que igualmente aderiu 4s erticas por tantos ja enderegadas uo termo geragées. "Cf, A.A. Cangado Trindade, Pratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos, vol.1, p. 24. Importa referir neste contexto que o priprio termo dimensdes ji tem sido alvo de eriticas por parte da doutrina, como é 0 caso de A.S. Romita, Direitos Fundamentais nas Relagdes de Trabalho. p. 89-90, ao sustentar que o terme dimensdes se refere « um significado e fungao distinta do mesmo diteito, e no de um grupo de direitos, razio pela {qual prefere falar em “naipes” ou “familias” de direitos fundamentais (referindo um total de seis), ainda que ao final AEFICACIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS. 45 Em que pese o dissfdio na esfera terminoldgica, verifica-se crescente conver- géncia de opinides no que concerne a idéia que norteia a concepgiio das trés (ou quatro, se assim preferirmos) dimensdes dos direitos fundamentais, no sentido de que estes, tendo tido sua trajetéria existencial inaugurada com o reconhecimento formal nas primeiras Constituicdes escritas dos classicos direitos de matriz liberal-burguesa, se encontram em constante processo de transformacao, culminando com a recepgio, nos catélogos constitucionais na seara do Direito Internacional, de miiltiplas e dife- renciadas posigdes juridicas, cujo contetido € tdo varidvel quanto as transformacées ocorridas na realidade social, politica, cultural ¢ econémica ao longo dos tempos. Assim sendo, a teoria dimensional dos direitos fundamentais nao aponta, téo-somen- te, para o cardter cumulativo do processo evolutivo e para a natureza complementar de todos os direitos fundamentais, mas afirma, para além disso, sua unidade ¢ indivi- sibilidade no contexto do direito constitucional interno e, de modo especial, na esfera do moderno “Direito Internacional dos Direitos Humanos.”* Pela sua relevancia para uma adequada compreensio do contetido, importancia € das fungdes dos direitos fundamentais na atualidade, impde-se breve digressio so- bre esta temdtica, que deverd iniciar com uma visio panoramica sobre as principais caracteristicas de cada uma das dimensdes dos direitos fundamentais, encerrando com algumas consideragées sumérias de natureza critica a respeito desta matéria, Além disso, em prol da clareza, € de se atentar para a circunstdncia de que a expres- sdo “dimensdes” (ou “geragdes”), em que pese sua habitual vinculagio com a termi- nologia direitos humanos, se aplica igualmente aos direitos fundamentais de cunho constitucional. 2.4.2. Os direitos fundamentais da primeira dimensdo Os direitos fundamentais, 20 menos no dmbito de seu reconhecimento nas primeiras Constituigées escritas, so 0 produto peculiar (ressalvado certo contetido social caracterfstico do constitucionalismo francés), do pensamento liberal-burgués do século XVIII," de marcado cunho individualista, surgindo e afirmando-se como direitos do individuo frente ao Estado, mais especificamente como direitos de defe- sa, demarcando uma zona de nio-intervengao do Estado e uma esfera de autonomia critique a classifieagdo em geragaes ou familias, naquilo que obnubila a interdepencléncia e unidade do sistema de diteitos fundamentals (y. p. 88-117). Aqui vale referira posigo de C, Weis, Direitos Humanos Contempord tradicional das “geragbes” de direitos humanos. ainda aponta a circunstincia de que as classiticasses tradicionais baseadas no critério da evolucio histérica - , além de gerarem confuses de cunho conceitwal, pecam por nia 2zelarem pela correspondéncia entre as assim designadas geragdes de direitos humanos € 0 processo histérico de nas- cimento e desenvolvimento destes direitos. razio pela qual propde um outro eritéio classificatério, sintonizado com «a positivagio no plano internacional, de tal sorte que se poderia falar de direitos liberais (civise politicos) e direitos socials, econdmicos e culturas, adotando-se a terminologia “direitos globais” para aqueles direitos que a doutiina ccostuma enquadrar na terceira zeragao, ® CE. A.A. Cangado Trindade. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos, vol. |, p. 25. No mesmo sentido, v.. por timo, G. Marmelstein. Curso de Direitos Fundamentais, . 57. igualmente destacando que a mul- tidimensionalidade implica indivisibilidade e interdependénci cos, p.37 s., que, criticando a eondepe.i0 Os direitos fundamentais da primeira dimensdo encontram suas rafzes especialmente na doutrinailuminista e jus naturaista dos séculos XVII ¢ XVIII (nomes como Hobbes, Locke, Rousseau ¢ Kant). segundo a qual, a finalidade preefpua do Estado consiste na realizagiio da liberdade do individuo, bem como nas revolugdes politicas do final 4o século XVIII. que marcaram 0 inicio da positivagio das reivindicagbes burguesas nas primeiras Constituigdes eseritas do mundo ocidental 46 INGO WOLFGANG SARLET individual em face de seu poder.’ Sao, por este motivo, apresentados como direitos de cunho “negativo”, uma vez que dirigidos a uma abstengdo, e no a uma conduta positiva por parte dos poderes piiblicos, sendo, neste sentido, “direitos de resisténcia ou de oposigao perante o Estado”.** Assumem particular relevo no rol desses direitos, especialmente pela sua notéria inspiracdo jusnaturalista, os direitos & vida, a liberda- de, a propriedade e & igualdade perante a lei. Sao, posteriormente, complementados por um leque de liberdades, incluindo as assim denominadas liberdades de expresso coletiva (liberdades de expressio, imprensa, manifestacio, reunitio, associacio, etc.) € pelos direitos de participagio politica, tais como 0 direito de voto ¢ a capacidade eleitoral passiva, revelando, de tal sorte, a intima correlagao entre os direitos funda- mentais € a democracia.” Também o direito de igualdade, entendido como igualdade formal (perante a lei) e algumas garantias processuais (devido processo legal, habeas corpus, direito de petigdio) se enquadram nesta categoria. Em suma, como relembra P. Bonavides, cuida-se dos assim chamados direitos civis e politicos, que, em sua maioria, correspondem & fase inicial do constitucionalismo ocidental,® mas que con- tinuam a integrar os catélogos das Constituigdes no limiar do terceiro milénio, ainda que hes tenha sido atribuido, por vezes, contetido e significado diferenciados. 2.4.3. Os direitos econémicos, sociais e culturais da segunda dimenséo impacto da industrializagao e os graves problemas sociais e econdmicos que a acompanharam, as doutrinas socialistas e a constatagao de que a consagracio formal de liberdade e igualdade nao gerava a garantia do seu efetivo gozo acabaram, jé no decorrer do século XIX, gerando amplos movimentos reivindicatérios ¢ o reconheci- mento progressivo de direitos, atribuindo ao Estado comportamento ativo na realiza- go da justiga social. A nota distintiva destes direitos é a sua dimensao positiva, uma vez que se cuida nao mais de evitar a intervengao do Estado na esfera da liberdade individual, mas, sim, na lapidar formulagao de C. Lafer, de propiciar um “direito de participar do bem-estar social”. Nao se cuida mais. portanto, de liberdade do e pe- ante o Estado, e sim de liberdade por intermédio do Estado. Estes direitos fundamen- tais, que embrionéria e isoladamente j4 haviam sido contemplados nas Constituigdes Francesas de 1793 e 1848, na Constituigao Brasileira de 1824 e na Constituicao Alemd de 1849 (que ndo chegou a entrar efetivamente em vigor,” caracterizam- se, ainda hoje, por outorgarem ao individuo direitos a prestagdes sociais estatais, como assisténcia social, satide, educacio, trabalho, etc., revelando uma transicéio das liberdades formais abstratas para as liberdades materiais concretas, utilizando-se a formulacdo preferida na doutrina francesa. E, contudo, no século XX, de modo espe- cial nas Constituigdes do segundo pés-guerra, que estes novos direitos fundamentais "TV. dentre muitos, C. Lafer, A Reconsirugdo dos Direitos Humanos, p. 126. J.C. Vieira de Andrade. Os Direitos Fundamentais, p. 43. 8 Esta a formulagio de P. Bonavides, Curso de Direito Constitucional, p. $17, © Também C. Lafer. A Reconstrucdo dos Direitos Humanos. p. 126-1. ¢ 1.C. Vieira de Andrade. Os Direitos Fun damentais, p. 45 es. CL P. Bonavides, Curso de Direito Constitucional, p. 517. "CEC. Lafer, A Reconstrugdo dos Direitos Humanos. p. 27 ® Sobre a evolutio na esfera do reconhecimento das direitos sociais no constitucionalismo acidental. a0 menos ‘no plano europeu, v. a contribuigio de P. Krause, in: Grund-und Freiheitsrechte im Wandel von Gesellschaft und Geschichte, p.402 ess ‘AEFICAGIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS 47 acabaram sendo consagrados em um ntimero significativo de Constituigoes, além de serem objeto de diversos pactos internacionais. Como oportunamente observa P. Bonavides, estes direitos fundamentais, no que se distinguem dos classicos direitos de liberdade e igualdade formal, nasceram “abragados ao principio da igualdade”, entendida esta num sentido material. Ainda na esfera dos direitos da segunda dimensao, ha que atentar para a circuns- tancia de que estes ndo englobam apenas direitos de cunho positivo, mas também as assim denominadas “liberdades sociais”, do que dio conta os exemplos da liberda- de de sindicalizagio, do direito de greve, bem como do reconhecimento de direitos fundamentais aos trabalhadores, tais como 0 direito a férias € ao repouso semanal remunerado, a garantia de um salério mfnimo, a limitagao da jornada de trabalho, apenas para citar alguns dos mais representativos. A segunda dimenstio dos direitos fundamentais abrange, portanto, bem mais do que os direitos de cunho prestacional, de acordo com o que ainda propugna parte da doutrina, inobstante 0 cunho “positi- vo" possa ser considerado como 0 marco distintivo desta nova fase na evolugao dos direitos fundamentais. Saliente-se, contudo, que, a exemplo dos direitos da primeira dimensio, também os direitos sociais (tomados no sentido amplo ora referido) se Teportam a pessoa individual, no podendo ser confundidos com os direitos coleti- vos e/ou difusos da terceira dimensao. A utilizagdo da expresso “social” encontra justificativa, entre outros aspectos que nao nos cabe aprofundar neste momento, na circunstancia de que os direitos da segunda dimensao podem ser considerados uma densificagio do princfpio da justiga social, além de corresponderem a reivindicages das classes menos favorecidas, de modo especial da classe operdria, a titulo de com- pensagao, em virtude da extrema desigualdade que caracterizava (e, de certa forma, ainda caracteriza) as relagdes com a classe empregadora, notadamente detentora de um maior ou menor grau de poder econdmico. 2.4.4. Os direitos de solidariedade e fraternidade da terceira dimensaio Os direitos fundamentais da terceira dimenso, também denominados de di- reitos de fraternidade ou de solidariedade, trazem como nota distintiva o fato de se desprenderem, em prineipio, da figura do homem-individuo como seu titular, des nando-se & protegio de grupos humanos (familia, povo, nagio), ¢ caracterizando-se, conseqiientemente, como direitos de titularidade coletiva ou difusa.* Para outros, 08 direitos da terceira dimensio tém por destinatario precfpuo “o género humano mesmo, num momento expresivo de sua afirmagio como valor supremo em termos de existencialidade concreta”.® Dentre os direitos fundamentais da terceira dimensao. consensualmente mais citados, cumpre referir os direitos & paz, & autodeterminagdo dos povos, ao desenvolvimento, a0 meio ambiente e qualidade de vida, bem como 0 direito & conservacao e utilizago do patriménio histérico e cultural e o direito de comunicagiio.” Cuida-se, na verdade, do resultado de novas reivindicagdes funda- mentais do ser humano, geradas, dentre outros fatores, pelo impacto tecnolégico, SCE. Bonavides, Curso de Direito Consttucional, p. $18. CLC. Lafer. A Reconstrugdo dos Direitos Humanos, p. 131 %5 Ci. P. Bonavides. Curso de Direito Constinucional, p. 523. %®CF., dentre outros, P. Bonavides, Curso de Direito Coustitucional, p. 523, 48 INGO WOLFGANG SARLET pelo estado cronico de beligerdncia, bem como pelo processo de descolonizagao do segundo pés-guerra e suas contundentes conseqiiéncias, acarretando profundos refle- xos na esfera dos direitos fundamentais. A nota distintiva destes direitos da terceira dimensio reside basicamente na sua titularidade coletiva, muitas vezes indefinida e indetermindvel, o que se revela, a titulo de exemplo, especialmente no direito ao meio ambiente e qualidade de vida, © qual, em que pese ficar preservada sua dimensao individual, reclama novas téc- nicas de garantia e protegao. A atribuigdo da titularidade de direitos fundamentais a0 proprio Estado e & Nacdo (direitos & autodeterminagao, paz e desenvolvimento) tem suscitado sérias diividas no que concere & propria qualificacio de grande parte destas reivindicagdes como auténticos direitos fundamentais.” Compreende-se, por- tanto, porque os direitos da terceira dimensio sdo denominados usualmente como direitos de solidariedade ou fraternidade, de modo especial em face de sua implicagio universal ou, no minimo, transindividual, e por exigirem esforcos e responsabilidades em escala até mesmo mundial para sua efetivagao. No que tange a sua positivactio, € preciso reconhecer que, ressalvadas algu- mas exceges, a maior parte destes direitos fundamentais da terceira dimensio ainda (inobstante cada vez mais) nao encontrou seu reconhecimento na seara do direito constitucional, estando, por outro lado, em fase de consagracao no Ambito do direito internacional, do que da conta um grande nimero de tratados € outros documentos transnacionais nesta seara.* Para outros, por sua vez, os direitos fundamentais da terceira dimensfio, como leciona Pérez Luvio, podem ser considerados uma resposta ao fenémeno denomina. do de “poluigao das liberdades”, que caracteriza 0 processo de erosio e degradacio sofrido pelos direitos ¢ liberdades fundamentais, principalmente em face do uso de novas tecnologias. Nesta perspectiva, assumem especial relevancia 0 direito ao meio ambiente ¢ & qualidade de vida (que j4 foi considerado como direito de terceira ge- ragdo pela corrente doutrindria que parte do critério da titularidade transindividual), bem como 0 direito de informatica (ou liberdade de informatica), cujo reconhecimen- to € postulado justamente em virtude do controle cada vez maior sobre a liberdade e imtimidade individual mediante baneos de dados pessoais, meios de comunicagao, etc,. mas que — em virtude de sua vinculacao com os direitos de liberdade (inclusive de expres io) e as garantias da intimidade e privacidade suscita certas diividas no que tange ao seu enquadramento na terceira dimenso dos direitos fun- damentais. De qualquer modo, também com relagao aos direitos da assim chamada terceira dimenstio importa reconhecer a procedéncia da ligo de Ignécio Pinilla a0 destacar a diversificagao™ (e, portanto, a complexidade) destes direitos Ainda, neste contexto, costumam ser feitas referéncias as garantias contra ma- nipulagdes genéticas, ao direito de morrer com dignidade, ao direito & mudanga de * Neste sentido, v. E, Riedel, in: EuGRZ 1989, p. 17 ess. Esta divida também é suscitada por N. Bobbio, A Era dos Direitos, p. 9-10 °* Y., dentre outros, a ligio do mesire argentino M. A. Ekmekdjian, Tratado de Derecho Constitucional, p. 91, que também refere nominalmente os principais documentos internacionais que vém consagrando estes assim denomina- dos direitos da fraternidade ou solidariedade, especialmente os direitos ao desenvolvimento e progresso social e 0 direito & paz (v. p. 95 e s, da obra citada) CL. A.B, Pérez Lui, in: RCEC n° 10 (1991). p. 206 ¢ ss. Cf. LA . Pinilla, Las ransformaciones de los derechos humanos. p. 134 € s. A EFICACIA 00S DIREITOS FUNDAMENTAIS 49 sexo, igualmente considerados, por parte da doutrina, de direitos da terceira dimen- sto, ressaltando-se que, para alguns, j4 se cuida de direitos de uma quarta dimensio. Verifica-se, contudo, que boa parte destes direitos em franco processo de reivin- dicagio e desenvolvimento corresponde, na verdade, a facetas novas deduzidas do princfpio da dignidade da pessoa humana, encontrando-se intimamente vinculados ( excecao dos direitos de titularidade notadamente coletiva € difusa) & idéia da liber- dade-autonomia ¢ da protecdo da vida e outros bens fundamentais contra ingeréncias por parte do Estado e dos particulares. Com efeito, cuida-se, no mais das vezes, da reivindicagao de novas liberdades fundamentais, cujo reconhecimento se impde em face dos impactos da sociedade industrial e técnica deste final de século. Na sua es: séncia e pela sua estrutura jurfdica de direitos de cunho excludente e negativo, atuan- do como direitos de caréter preponderantemente defensivo, poderiam enquadrar-se, na verdade, na categoria dos direitos da primeira dimensao, evidenciando permanente atualidade dos direitos de liberdade, ainda que com nova roupagem e adaptados as exigéncias do homem contemporaneo. 2.4.5, Direitos fundamentais de quarta e de quinta dimenséio? Ainda no que tange & problemética das diversas dimens6es dos direitos funda- mentais, € de se referir a tendéncia de reconhecer a existéncia de uma quarta dimen- so, que, no entanto, ainda aguarda sua consagraciio na esfera do direito internacional € das ordens constitucionais internas.""" Assim, impde-se examinar, num primeiro momento, 0 questionamento da efetiva possibilidade de se sustentar a existéncia de uma nova dimensao dos direitos fundamentais, 20 menos nos dias atuais, de modo especial diante das incertezas que o futuro nos reserva." Além do mais, nao nos parece impertinente a idéia de que, na sua esséncia, todas as demandas na esfera dos direitos fundamentais gravitam, direta ou indiretamente, em torno dos tradicionais e perenes valores da vida, liberdade, igualdade e fraternidade (solidariedade), tendo, na suat base, 0 principio maior da dignidade da pessoa, Contudo, hé que referir, no Ambito do direito patrio, a posi¢ao do notivel Paulo Bonavides, que, com a sua peculiar originalidade, se posiciona favoravelmente a0 reconhecimento da existéncia de uma quarta dimensio, sustentando que esta € 0 re- sultado da globalizacao dos direitos fundamentais, no sentido de uma universalizagao no plano institucional, que corresponde, na sua opinido, a derradeira fase de institu- cionalizagao do Estado Social. Para o ilustre constitucionalista cearense, esta quarta dimensao é composta pelos direitos 4 democracia (no caso, a democracia direta'™) ¢ a 10 Entre nés. existéncia de uma quarta dimensio de direitos fundamentals ¢ preconizada peto ilustre mestre P. Bo navides. Curso de Direito Consttucional, p. 524 ¢ Ss. Recentemente, houve até mesmo quem sugerisse a existencia de uma 5* geraglo (ou dimensio). Neste semtido, o posicionamento de J, A. de Oliveira Junior. Teoria Juridica e Novos Direitas, p.97 es. 102 Neste sentido, a indagagio de A. E, Perez Lio, in: RCEC o° 10, p. 209-10, © Cumpre destacar. neste contexto, que sufragamos integralmente o entendimento de que os mecanismos de de- ‘mocrucia direta previstos na nossa vigente Carta Magna infelizmente pouca atengaa e implementagio tem recebido, nnotadamente por parte do legislador infraconstitucional, alm de aderirmos & posigio que sustemta a fundamental dade formal e material das respectivas disposigdes constitucionais, que integram um auléntico direito i democracia Participativa, na esteira do que também tem proposto e defendido enfaticamente P. Bonavides, Teoria Constitucional da Democracia Participativa, Sa0 Paulo: Malheiros. 2001, em obra que reine importantes estudos sobre o tera. Dente a literatura nacional produzida recentemente sobre 0 tema, lembre-se, entre outros, 0 ensaio de D. Annoni, ‘0 Diteito da Democracia como requisito imprescindivel ao exerefcio da cidadania’. in: D, Annoni (Org.), Os Novas Conceitos do Nove Diretio Internacional. Cidadlania, Democracia e Direitos Humanos,p. 93-108, 50 INGO WOLFGANG SARLET informagdo, assim como pelo direito ao pluralismo." A proposta do Prof. Bonavides, comparada com as posigdes que arrolam os direitos contra a manipulagio genética, mudanga de sexo, etc., como integrando a quarta geragio, oferece a nitida vantagem de constituir, de fato, uma nova fase no reconhecimento dos direitos fundamentais, qualitativamente diversa das anteriores, j4 que no se cuida apenas de vestir com roupagem nova reivindicagbes deduzidas, em sua maior parte, dos cléssicos direitos de liberdade."*8 Contudo, também a dimensdo da globalizagdo dos direitos fundamentais, como formulada pelo Prof. Bonavides, longe esta de obter 0 devido reconhecimento no direito positive interno (ressalvando-se algumas iniciativas ainda isoladas de partici- pag popular direta no processo decisério, como ocorre com os Conselhos Tutelares [no Ambito da proteco da infancia e da juventude] e especialmente com as expe- ri€ncias no plano do orgamento participativo, apenas para citar alguns exemplos) e internacional, nao pasando, por ora, de justa e saudavel esperanca com relacdo a um futuro melhor para a humanidade, revelando, de tal sorte, sua dimensdo (ainda) emi- nentemente profética, embora nao necessariamente utdpica, 0 que, alids, se depreen- de das palavras do préprio autor citado, para quem, os direitos de quarta dimensao “compendiam 0 futuro da cidadania e o porvir da liberdade de todos os povos. Tao- somente com eles ser legitima e possivel a globalizagio politica’."™ Consideragdes similares dizem respeito a0 direito & paz, que, na concepsio de Karel Vasak, integra a assim designada terceira dimensio dos direitos humanos e fundamentais, mas que, de acordo com a proposta de Paulo Bonavides, movida pelo intento de assegurar ao direito & paz um lugar de destaque, superando um tratamen- to incompleto e teoricamente lacunoso, de tal sorte a resgatar a sua indispensavel relevancia no contexto multidimensional que marca a trajet6ria e 0 perfil dos direi- tos humanos e fundamentais, reclama uma reclassificagdo mediante sua insergdo em uma dimenso nova e auténoma.""” Sem que aqui possamos aprofundar a matéria, verifica-se, como bem aponta o mesmo Paulo Bonavides, uma tendéncia de o direi- to a paz (entre nés consagrado como princfpio fundamental no artigo 4°, inciso VI, da Constituigao de 1988), ainda que de modo isolado e carente de um desenvolvi- "8 CF, P, Bonavides, Curso de Direito Constitweional. p. 524-6, no qual 0 autor apresenta ¢ analisa os direitos da quara dimensio em capitulo proprio. E de se resaltar que, a0 menos parcial e embrionariamente, alguns destes direitos, notadamente 0s direitos 4 democracia, 20 pluralsmo e informagdo, se encontram consagrados em nossa Consttuigo, de modo especial no preémbulo ¢ no Titulo dos Principios Fundamentas.salientando-se. todavia. que 4 democraciaerigida i condigio de prinefpio fundamental pelo Consituinte de 1988 € represenativa, com alguns ingredients, ainda que timidos, de partcipagio dita, " Com relao a este ponto,verfia-se que a proposta formulada por J. A. de Oliveira Kinior. Teoria Juridica ¢ Novos Direits, p. 97 s., apeesentando cinco geragbes, especialmente ao idemificar os direitos da quata e da 4uinta geragoes,justamente acaba por referir direitos que, apesar de novos em se considerando o momento de seu reconhecimento, em principio representam novas possbilidades e ameagas.& privacdade,liberdade,enlim, novas exigéncias da protego da dignidade da pessoa. especialmente no que diz.com os direitos de quartageragio(relacio- nuts 3 biotenologia) de tal sorte que pelo menos w conto da quartageracio agui no coincide coms proposta de Paulo Bonavides, Embora aderindo a conoepe0 de Oliveira Iénior no tocante ao nlmero de grag0es, vale consignar 1 Enfase outorgada (no nosso sentir comretameate) por A. C. Wolkmer, “Inttodugio a0s fundamentos de uma teria eral das “novos” direitos” in: A. C. Wolkmer e LR. Morato Leite (Org). Os Novos Direiros no Brasil. Natureca e Perspectvas. especialmente p. 23 s. A nogdo de pluralism juriieo vinculada necessariamente & complexidade € hetorogencidade inerentes a processohistrico da permanente construgaoe reconstrugio dos direitos fundamentas Nesta mesma linha de entendimento, ¥., por sitimo, B. Galindo. Dieitos Fundamentais.p. 69-70 "SCF. P. Bonavides, Curso de Direito Consiicional. p. 52. 407 Cf, P, Bonavides, “A quinta geracio de direitos fundamentais” in: Direitos Fundamentais & Justia, Ano 2—n° 3, Abr.JJun. 2008, p. 82 ss, AEFICACIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS 51 mento por parte da doutrina, ser invocado na esfera das relagdes internacionais, mas também em decisdes de tribunais nacionais, como foi o caso, recentemente, da Sala Constitucional da Suprema Corte de Justiga da Costa Rica." Para além da qualifi- cagiio juridico-dogmética da paz como direito fundamental na ordem constitucional, aspecto que merece maior desenvolvimento, o que importa — e quanto a este ponto, absolutamente precisa e oportuna a sua revalorizagao ~ € a percepgao de que a paz (interna e externa), em todos os sentidos que possa assumir, no reduzida & auséncia de guerra entre as nagdes ou de auséncia de guerra civil (interna), 6 condicdo para a democracia, 0 desenvolvimento e © progresso social, econémico e cultural, pressu- posto, portanto (embora nio exclusivo), para a efetividade dos direitos humanos fundamentais de um modo geal. 2.4.6. Algumas consideracdes conclusivas e algumas indagagaes em torno da problemdtica das dimensdes dos direitos fundamentais Ainda que se deva concordar com a lticida ponderagio de Paulo de T. Brando, no sentido de que a divisibilidade dos direitos em dimensdes (ou geracdes), assim como as demais tipologias elaboradas relativamente aos direitos fundamentais nao logra, por si s6, explicar de modo satisfat6rio toda a complexidade do processo de formacao histérica e social dos direitos," nao hesitamos em consignar que o breve olhar langado sobre as diversas dimensées dos direitos fundamentais nos revela que 0 seu processo de reconhecimento € de cunho essencialmente dinamico e dialético, mareado por avangos, retrocessos ¢ contradigdes,""* ressaltando, dentre outros aspec- tos, a dimensio hist6rica e relativa dos direitos fundamentais, que se desprenderam —no minimo, em grande parte — de sua concepcao inicial de inspiragao jusnaturalista. Além disso, constata-se a pertinéncia da licao de Norberto Bobbio, ao sustentar, jus~ tamente com base nas transformacées ocorridas na seara dos direitos fundamentais e reveladas plasticamente pela teoria das “geracdes” de direitos, a auséncia de um fun- damento absoluto dos direitos fundamentais.'"' A refutagdo (no nosso sentir correta) de um fundamento absoluto dos direitos fundamentais, nao significa, 4 evidéncia, nem a auséneia de uma fundamentagiio histérica, filos6fica, sociologia, politica, ju- tidico-positiva e até mesmo econémica dos direitos fundamentais (assim como dos direitos humanos) sem falar na relevancia desta fundamentagao para efeitos da legiti- magiio dos direitos fundamentais e para a sua implementago concreta pelo Estado pela sociedade, temdtica que, todavia, desborda dos limites desta obra. Importante é, neste particular e neste contexto, a constatagdo de que os direitos fundamentais sio, acima de tudo, fruto de reivindicagdes concretas, geradas por situagdes de injustica ‘8 CrP, Bonavides, op. cit. p. 84-85. Cf, desenvolvido por P. de T. Brandlo, Aedes Constitucionais: novos direitos e acesso a justiga, p. 123 e ss Embora referindo jé cinco “geragdes” de direitos, v. as riticas direcionadas especialmente em relaglo as tres tlkimas, “geragdes” por J.A.L. Sampaio, Direitos Fundamentals, p. 302 ess., além das objegdes em relag’o a propria classi- dicagio geracional (p. 308 e ss.) HO Neste sentido, A. E. Perez Luho. in: RCEC a? 10 (1991), p. 217, \"' GEN, Bobbio, A Era dos Direitos. p. 15 ¢ss..€ 32¢ ss, Entre nds, C. M. Cleve. Temas de Direito Constitucional, p. 127, bem lembra que os direitos fundamentais ocupam e representam um “espago histérico, um pracesso, um ccaminho de invengao permanente”. 52 INGO WOLFGANG SARLET c/ou de agressao a bens fundamentais e elementares do ser humano." Ainda neste con- texto — no caso referindo um importante adversério de uma visdo abstrata dos direitos e de seu processo evolucional ~ vale lembrar a arguta observac&o de Joaquin Herrera Flores, no sentido de que se é possivel de fato falar em geragdes (para nés, dimens6es!) de direitos, estas encontram-se menos vinculadas a uma manifestagao de racionalidade humana universal, tal como sustentada desde os estéicos até a Declaragao da ONU, de 1948, mas sim, dizem respeito as diversas reagGes funcionais e criticas que tém sido implementadas na esfera social, politica e jurfdica ao longo dos processos de acumu- Jaco capitalista desde a baixa Idade Média até os nossos tempos. "* As diversas dimensdes que marcam a evolugao do processo de reconhecimento e afirmagao dos direitos fundamentais revelam que estes constituem categoria mate- rialmente aberta e mutivel,"" ainda que seja possivel observar certa permanéncia e uniformidade neste campo, como ilustram 0s tradicionais exemplos do direito a vida, da liberdade de locomogao € de pensamento, dentre outros tantos que aqui poderiam ser citados e que ainda hoje continuam tao atuais quanto no século XVIII, ou até mesmo anteriormente, se atentarmos para os precedentes jai referidos no contexto da evolugao hist6rica anterior ao reconhecimento dos direitos fundamentais nas primei- ras Constituig6es. Além disso, cumpre reconhecer que alguns dos classicos direitos fundamentais da primeira dimensao (assim como alguns da segunda) esto, na ver- dade, sendo revitalizados e até mesmo ganhando em importincia e atualidade, de modo especial em face das novas formas de agressio aos valores tradicionais e con- sensualmente incorporados ao patriménio juridico da humanidade, nomeadamente da liberdade, da igualdade, da vida ¢ da dignidade da pessoa humana. Neste contexto, aponta-se para a circunstancia de que, na esfera do direito cons titucional interno, esta evoluco se processa habitualmente nao tanto por meio da positivagio destes “novos” direitos fundamentais no texto das Constituigdes, mas principalmente em nivel de uma transmutagao hermenéutica e da criagdo jurispru- dencial, no sentido do reconhecimento de novos contetidos ¢ fungdes de alguns direi- tos ja tradicionais."'S Com efeito, basta aqui uma referéncia ao crescente controle do individuo por meio dos recursos da informatica, tais como redes e bancos de dados pessoais, novas técnicas de investigagao na esfera do processo penal, avangos cienti- ficos (atente-se para a recente controvérsia em tomo da fabricagao de clones huma nos ou mesmo dos assim designados “direitos reprodutivos”), bem como as ameagas da poluigdo ambiental, apenas para nos atermos aos exemptos mais habituais. No que diz com o reconhecimento de novos direitos fundamentais, impende apontar, a exemplo de Perez Lufio, para 0 risco de uma degradaco dos direitos funda- mentais, colocando em risco o seu “status juridico e cientifico”.""® além do despresti- "2 Cf, demure outros, E, Riedel, in: EuGRZ 1989, p. 10. "3 Cf. 1 Herrera-Flores, Los derechos humanos como productos culturales ~ ertica del huumanismo abstrato, Max did: Los Libros de Catarata, 2005. p. 101. 1 Esta aligdo de N, Bobbio. A Era dos Direitos, p. 32 ss. E também o que se depreende do pensamento de P. Bona vides, Curso de Direito Constitucional, p. $17. No mesmo sentido, v. F.L. Ximenes Rocha, “Direitos Fundamentais 1a Constituigio de 1988", in: A. Moraes (coord.), Os 10 anos da Constinuigdo Federal, p. 267 ¢ ss 15 Neste sentido, dentre outros. a ligfo de E, Denninger, Der Gebsindigte Leviathan, p. 225-6, referindo-se, especifi- ‘camente, a redescoberta dos direitos a seguranga, meio ambiente sadio e equilibrado, protest da liberdade em face dos riscos e agressdes gerados pela tecnologia, ec. MCE A.E. Perez Luo, in: RCEC n° 10 (1991), p. 210. ‘AEFICACIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS 53 gio de sua prépria “fundamentalidade”.""” Assim, fazem-se necessarias a observancia de critérios rigidos e a maxima cautela para que seja preservada a efetiva relevancia € prestigio destas reivindicagdes e que efetivamente correspondam a valores fun- damentais consensualmente reconhecidos no Ambito de determinada sociedade ou mesmo no plano universal."* De outra parte, observa-se que, nada obstante a ja relevada dimensiio coletiva e difusa de parte dos novos direitos da terceira (e da quarta?) dimensao, resta, de regra, preservado seu cunho individual. Objeto Gltimo, em todos os casos referidos, é sem- pre a protecdio da vida, da liberdade, da igualdade e da dignidade da pessoa humana, © que pode ser bem exemplificado pelo direito ao meio ambiente. Este, em que pese a habitual (embora ndo-cogente) presenca do interesse coletivo ou difuso, nao deixa de objetivar a protecdo da vida e da qualidade de vida do homem na sua individualidade. Na verdade, inclusive com maior pertinéncia, € 0 que também ocorre com a assim chamada liberdade de informatica e exemplos correlatos. Todavia, ha que réncia, neste contexto, ao assim denominado direito & paz, cuja dimensiio individual, em regra, nao tem encontrado aceitagiio na doutrina, que se insurge contra a possibi- lidade de reconhecimento de um direito individual paz, cuja titularidade pertenceria aos Estados, aos povos & humanidade em seu todo." Inobstante isso, nao ha como desconsiderar que também a preservagao da paz assume transcendental relevancia para a protegdo e efetivacao dos direitos fundamentais do homem considerado na sua individualidade, ja que é na guerra e em perfodos de exceg’o que costumam ocorrer as maiores violagdes desses direitos fundamentais. Aqui assume relevo a lticida li- ¢40 do ilustre jurista italiano Norberto Bobbio, ao referir que a protecao dos direitos fundamentais do homem se integra ao contetido essencial do Estado democratico, a0 passo que a paz constitui pressuposto indispensavel a protecdo efetiva dos direitos do homem, de tal sorte que, para o eminente mestre, “direitos do homem, democracia e paz stio trés momentos necessarios do mesmo movimento hist6rico: sem direitos do homem reconhecidos e protegidos, niio ha democracia; sem democracia, nao existem as condigdes minimas para a soluco pacifica dos conflitos”. Aspecto que igualmente merece destaque diz com as efetivas dificuldades de protegiio e implementagdo que caracterizam boa parte dos direitos fundamentais da segunda e da terceira dimensdes, apontando para a necessidade de alternativas exclusivamente extrafdas do ordenamento juridico, além da revisio e adaptagao dos mecanismos juridicos tradicionais. Além disso, a evolugao dos direitos fundamentais revela que cada vez mais sua implementaco em nivel global depende de esforgos in: tegrados (por isso, direitos da solidariedade e fraternidade) dos Estados e dos povos. "7 Enure nds, encontramos o recente posicionamento de M.G. Ferreira Filho, Direitos Humanos Fundamentais p. 67-8, referindo uma “inflagio” de direitos fundamentais e alertando para os riscos de sua wulgarizagio. No mesmo sentido, a advertEncia de J.C. Nabais. “Algumas Reflexdes Criticas sobre of Direitos Fundamentais™, in: Ab wno ad ‘omnes ~ 75 anos da Coimbra Editora, p. 980 ¢ ss. referindo uma tendéneia para a jusfundamentalizacio, no ambito ‘de uma inflagao no campo do reconhcimento de novos direitos fundamentais, tamlxém alentando para os Fiscos de ‘uma banalizaglo, "8 No mesmo sentido, v.o recente uporte de V.Brega Filho, Direitos Fundamentais na Constituicdo de 1988. p. Wess 9 Bsta, por exemplo. a pasigo de E, Riedel. in: EuGRZ. 1989, p. 16 € ss. que sustenta ser @ paz um valor universal bhisico da humanidade em seu todo, em que pese a intima relagio entre a paz €a efetivagtio dos direitos fundamentais, Aqui também poderiam ser enquadrados os direitos da quarta dimenso, na forma proposta por P. Bonavides (direitos a democracia, 2 informag3o e 30 pluralismo. ou, no minimo, o primeito e 0 timo). "9CF, N, Bobbio, A Era dos Direitos. p. | 54 INGO WOLFGANG SARLET Mesmo a realizacao efetiva dos direitos fundamentais na esfera interna de cada Estado depende, em tiltima andlise (naturalmente em maior ou menor escala), deste esforgo coletivo, consagrando, também neste campo, a tese da interdependéncia dos Estados ¢ a inevitavel tendéncia ao reconhecimento da inequivoca e irreversivel universali- zacao dos direitos fundamentais e direitos humanos." Alids, ainda que no ambito dos direitos da primeira dimensio o déficit de efetivacao seja mais reduzido (pelo menos se considerarmos a possibilidade amplamente reconhecida de sua exigibilidade judicial), € preciso reconhecer que também nesta esfera longe nos encontramos, mesmo entre nds, de um patamar que se possa considerar tendencialmente satisfat6rio. A vida, a dignidade da pessoa humana, as liberdades mais elementares continuam sendo espe- Zinhadas, mesmo que disponhamos, a0 menos no direito patrio, de todo um arcabougo de instrumentos juridico-processuais ¢ garantias constitucionais. O problema da efeti- vidade €, portanto, algo comum a todos os direitos de todas as dimensdes, mais uma razo para encararmos com certo ceticismo o reconhecimento de uma nova dimensio dos direitos fundamentais, antes mesmo de lograrmos outorgar aos direitos das primei- ras trés dimensOes sua plena eficdcia juridica e social. Nao € a toa que se rememore constantemente que ao mesmo tempo em que boa parte dos direitos fundamentais jé largamente consagrados encontram-se longe de uma implementacao universal € sa- tisfat6ria, novas e complexas situacdes e desafios reclamam um enfrentamento ade- quado, sem que sejam abandonados os esteios do Estado Democratico de Direito. Os direitos da primeira, da segunda e da terceira dimensdes (assim como os da quarta, se optarmos pelo seu reconhecimento), consoante ligdo j4 habitual na dou- trina, gravitam em torno dos trés postulados basicos da Revolugdo Francesa, quais sejam, a liberdade, a igualdade e a fraternidade, que, considerados individualmente, correspondem as diferentes dimensdes.'® Todavia, tenho para mim que esta triade queda incompleta em nao se fazendo a devida referéncia ao mais fundamental dos direitos, isto é, & vida e ao prinefpio fundamental da dignidade da pessoa humana, 0 qual — em que pese a discusso travada sobre a sua caracterizago como direito ou principio fundamental — se encontra na base da mais variada gama de direitos, ainda que exista alguma controvérsia no que concerne ao grau de vinculago do contetido de todos os direitos fundamentais as exigéncias do principio da dignidade da pessoa humana, aspecto sobre 0 qual voltaremos a nos manifestar. A evolugio historica representada pelo reconhecimento do processo qualitati- vamente cumulativo e aberto revelado pelas assim denominadas dimensdes dos di- reitos fundamentais teve como ponto de partida ~ ainda que com rafzes ainda mais remotas — a concepedo jusnaturalista dos séculos XVII e XVIII. Com efeito, os di- reitos fundamentais nasceram como direitos naturais e inaliendveis do homem, sob 0 aspecto de expresso de sua condicao humana. Assim, fala-se de uma universalida- de abstrata dos direitos fundamentais, no sentido de que eram reconhecidos a todos os homens, situando-se numa dimensao pré-estatal, integrando-se ao direito interno apenas mediante seu reconhecimento pela ordem juridica positiva de determinado "21-4 respeito da universalidade dos direitos fundamentals (direitos humanos). analisando a evelugdo histérica, mas es- pecialmente discorrendo sobre o conteido ético dos direitos fundamentais.v. a contribuicio. entre nés.de V.P, Barrelo. “Biodtica bioditeto e diteitos humanos”. in: R. L. Torres (org.), Teoria dos Direitos Fundamentais p. 377 ss. Neste sentido, situa-se a oportuna lembranga de J.L. Bolzan de Morais, As Crises do Estado e da Constitwicdo e 4 Transformagio Espacial dos Diveitos Humanos. p. 63. "3.Cr, por exemplo. A. E. Perez Luo, in: RCEC a? 10 (1991), p.210. AEFICACIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS 55 Estado, desvinculando-se, nesta segunda etapa da evolugio histérica, de sua dimen- sfio abstratamente universal." A partir da Declaragao Universal da ONU, constata-se a existéncia de uma nova fase, caracterizada pela universalidade simultaneamente abstrata e concreta,"* por meio da positivagdo — na seara do Direito Internacional = de direitos fundamentais reconhecidos a todos os seres humanos, ¢ nao apenas (mas também) aos cidadios de determinado Estado. Verifica-se, nesta fase, que se encontra em pleno processo de maturaciio, a gradativa e intensa aproximacao dos di- reitos humanos (considerados como 0s reconhecidos a todos os homens pelo Direito Internacional) e dos direitos fundamentais, mediante a construgdo, a exemplo do que j4 foi referido alhures, do que vem sendo denominado de um direito constitucional internacional. Segundo oportunamente averba Bonavides, esta nova universalidade (simultaneamente absirata e concreta), “procura, enfim, subjetivar de forma conereta € positiva os direitos da triplice geraco na titularidade de um individuo que antes de ser o homem deste ou daquele pais, de uma sociedade desenvolvida ou subdesenvol- vida, € pela condigdo de pessoa um ente qualificado por sua pertinéncia ao género humano, objeto daquela universalidade”."* Mesmo em se considerando a controvérsia que grassa em torno do reconheci- mento do carter de auténticos direitos fundamentais de alguns dos direitos da tercei rae da quarta dimensoes, de modo especial, contudo, no que diz com a possibilidade de sua efetivaco como direitos subjetivos, ndo h4 como negligenciar a relevancia também destas novas dimensées de direitos fundamentais, para o progresso da huma- nidade, Ressalta-se, neste contexto, a dimensio profética e promocional dos direitos fundamentais, que, mesmo nao limitada aos direitos da terceira e da quarta dimen- sdes, € com relago a estes que assume particular relevancia, patenteando que todos os direitos fundamentais so permanentemente direcionados para o futuro, gerando a perspectiva e a possibilidade de mudancas e de progresso.'® De outra parte, verifi- ca-se que 0s direitos da terceira e da quarta dimensdes (ou mesmo de uma quinta di- mensao, como preferem alguns), que ainda se encontram em fase de reconhecimento e positivagio, seja na esfera internacional, mas principalmente em nivel do direito constitucional interno, constituem, na verdade, direitos em processo de formacio, razo pela qual costumam ser caracterizados como auténtico law in making,” cuja importancia juridica e politica nfo deve, contudo, ser menosprezada. Na verdade, como oportunamente menciona Denninger, ilustre catedritico da Universidade de Frankfurt, Alemanha, ao nos depararmos com a pergunta sobre o que de novo efeti- "4 Na dovtrina, € N. Bobbio. A Era dos Direitos, p. 27-8, um dos que melhor reproduz idéia de uma evolugao mat cada por trés fases sucessivas, desnudando a transigdo de uma universalidade abstrata, pessando pela etapa marcada pela particularizacao concreta des direitos fundamentais e culminando com a Declaragio da ONU (1948), numa “universalidade conereta dos direitos fundamentais positivos universais 5 Em que pese terms tomado de N. Bobbio a idéia da transigdo dialética de uma universalidade abstrata para uma universalidade conereta na seara dos direitos fundamentai, tomamos a liberdade de afastar-nos parcialmente do mes tre italiano. por entendermos que a teceira fase na evoluglo dos direitos fundamentais no se limita a uma universa Tidade concreta, mas se evela, por igual. uma universalidade abstrata, a semelhanca do que foi afitmado com relagao a primeira fase, na medida em que. ao menos no plano doutrinsrio e legislativo, é preciso reconhecer que os direitos fundamentais passaram a integrar aquilo que poderfamos denominar de patrimSnio cultural comum da humanidade. 25 p, Bonavides, Curso de Direito Constitucional, p. 525. 27 Sobre a faceta ui6pica e promocional dos direitos fundamentais da terceira dimensAo, v. E. Riedel, ins EuGRZ 1989. 9.20. 128 Assim a expresso utilizada por E. Riedel, in: EuGRZ 1989, p. 17, "9 Esta aligho de E. Denninger. Der Gebsindigte Leviathan, p. 221 56 INGO WOLFGANG SARLET vamente revelam os novos direitos fundamentais na era tecnolégica, talvez possamos responder que eles nos levam a reconhecer que as antigas dificuldades da humanida- de com a problemitica da justiga nao lograram ser superadas pelo avango tecnolégico cientifico." Reconhecendo que os direitos chamados de “novos” nem sempre so genuinamente “novos”, Antonio Carlos Wolkmer bem observa a novidade muitas ve- 2es reside no modo de obtengao (e fundamentagao, poderfamos acrescer) dos direitos, que nio se restringe necessariamente ao reconhecimento legislativo e jurisprudencial, mas resulta de um processo dindimico e complexo de lutas especificas e de conquistas coletivas, até que venham a obier a chancela pela ordem social ¢ estatal."" Agualmente langando um olhar critico sobre uma classificagdo dos direitos fun- damentais a partir do critério histérico privilegiado pelo argumento das “dimensoes” ou “geragGes”, Marcelo Cattoni bem observa que na condicao de classificagao his- torica é questionavel o quanto a perspectiva ora abordada de fato contribui, no plano sistemético (e pragmitico, poder-se- agregar) para um adequado manejo das situa- ges de colisao e concorréncia de direitos fundamentais, notadamente em se tratando de direitos de “geragdes” diversas e quando, como pretende o autor, hd como ques- tionar até mesmo a largamente difundida — mas possivelmente nao suficientemente discutida — tese da unidade e interdependéncia dos direitos fundamentais de todas as geracdes ou dimensdes.'" Na mesma linha critica, a enfatica observagao de Alvaro Ricardo de Souza Cruz, quando refere que a nocao da existéncia de geracdes de di- reitos, tal qual concebida originalmente por Karel Vasak, “nao passa de uma forma académica de facilitar a reconstrugao hist6rica da luta pela coneretizagiio dos direitos fundamentais”," 0 que, a despeito da substancial correco do argumento colaciona- do (€ que, neste sentido, acaba alcangando também o termo “dimensdes” ou outro que o venha a substituir), ndo deslegitima a imagem metaférica eo seu inerente sim- bolismo, desde que, & evidéncia, se esteja sempre ciente de que ela nao reproduz 0 devir histérico dialético ¢ dinamico que marca a formagao e reconstrucao dos direitos e deveres fundamentais ao longo dos tempos. A despeito destes e de todos os demais aspectos que aqui poderiam ser versa- dos e por mais que se possa aderir a boa parte das eriticas colacionadas no que diz especialmente com a supervalorizagao da classificagio histérica (dimensional) dos direitos fundamentais, cremos que o mais importante segue sendo a adogao de uma postura ativa € responsdvel de todos, governantes € governados, no que concerne a afirmagio e a efetivagao dos direitos fundamentais de todas as dimensdes, numa ambiéncia necessdriamente heterogénea e multicultural, pois apenas assim estar-se~4 dando os passos indispensaveis & afirmagio de um direitos constitucional genuina- mente “altruista”™ e “fraterno”.35 10, Denninger, Der Gebtindigte Leviathan. p. 229, Ressalte-se que 0 capitulo de onde foram ext qu referidas justamente ostenta o significative titulo de "Novos Direitos na Era Tecnol6gica "Cf. A.C, Wolkmer, “Introdugio aos fundamentos de uma teoria geral dos ‘novos’ direitos”, p. 20. "® CL. M.A. Cationi de Oliveira, “Teoria discursiva da argumentagio juridica de aplicago e garantia processual Jurisdicional dos direitos fundamentais”, in: M.A. Cattoni de Oliveira (Coord). Jurisdigao e Hermenéutica Const ional. p. 192 5s. (criticando a classificagdo histériea) ¢ 198 e ss. (discutindo o dogma da interdependéncia) "SCF. A.R, de Souza Cruz. Hermendutica Juridica e(m) Debate, Belo Horizonte: Editora Forum, 2007, p. 337. No que diz.com os pressupostos ¢ contornos de um “direito constitucionalaltrusta, v.a recente instigante con- \eibuigdo de M. Carducci, Por um Direito Constirucional Aliruisia, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. £95 Sobre o tema. indispensavel a consulta do pioneiro e paradigmatico estudo de E. Resta, O Direito Fratemo (tradu- go de Sandra Vial), Santa Cruz. do Sul: EDUNISC, 2004. Note-se que a despeito de importantes e evidentes pontos ENTAIS 57 {das as lighes ‘AEFICACIA DOS DIREITOS FUNDAN 3. Direitos fundamentais e Constituigao: a posi¢ao e o significado dos direitos fundamentais na Constituicaéo de um Estado Democratico e Social de Direito Antes de adentrarmos o exame especifico da concepgao de direitos fundamen- tais plasmada na ordem constitucional brasileira vigente, consideramos oportuna bre- ve digresso a respeito do papel desempenhado pelos direitos fundamentais no Ambito do Estado constitucional. Como ponto de partida, salientemos a intima e indissocia- vel vinculagao entre os direitos fundamentais e as nogdes de Constituigao e Estado de Direito. Dada a importancia destes conceitos para o nosso estudo, cabe-nos, ao menos em linhas gerais, lancar breve olhar sobre esta problematica, clarificando um pouco mais estes conceitos e 0 nexo de interdependéncia entre eles. Para tanto, afigura-se oportuna a transcrigdo da seguinte ligdo de Klaus Stern, para quem “as idéias de Constituigao e direitos fundamentais so, no ambito do pensamento da segunda metade do século XVIII, manifestagdes paralelas e unidi- recionadas da mesma atmosfera espiritual, Ambas se compreendem como limites normativos ao poder estatal. Somente a sintese de ambas outorgou 4 Constitui a sua definitiva e auténtica dignidade fundamental”."* Na verdade, 0 pensamento reproduzido encontra-se em sintonia com o gue dispunha multicitado artigo 16 da Declaraciio Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadao, de 26 de agosto de 1789, segundo o qual “toda sociedade na qual a garantia dos direitos nao € assegurada, nem a separaciio dos poderes determinada nao possui Constituicao”. A partir desta formu- lagdo paradigmatica, estavam langadas as bases do que passou a ser o niicleo material das primeiras Constituigdes escritas, de matriz liberal-burguesa: a nogao da limitaga juridica do poder estatal, mediante a garantia de alguns direitos fundamentais e do princfpio da separacao dos poderes. Os direitos fundamentais integram, portanto, 20 lado da definigdo da forma de Estado, do sistema de governo e da organizagao do po- der, a esséneia do Estado constitucional, constituindo, neste sentido, nao apenas parte da Constituicao formal, mas também elemento nuclear da Constituigo material. Para além disso, estava definitivamente consagrada a intima vinculacao entre as idéias de Constituigdo, Estado de Direito ¢ direitos fundamentais. Assim, acompanhando as de convergéncia entre um direito “altruista” e um direito “fraterno”, nio se trata exatamente do mesmo fendmeno. questo que. todavia, ora ni seré desenvolvida, 88 CE K. Stern, Staatsreclit HII. p. 181 58 INGO WOLFGANG SARLET palavras de Klaus Stern, podemos afirmar que o Estado constitucional determinado pelos direitos fundamentais assumiu feigdes de Estado ideal, cuja concretizagao pas- sou a ser tarefa permanente." Tendo em vista que a protegao da liberdade por meio dos direitos fundamentais &,na verdade, protegdo juridicamente mediada, isto 6, por meio do Direito, pode afir- mar-se com seguranga, na esteira do que leciona a melhor doutrina, que a Constituigio (e, neste sentido, o Estado constitucional), na medida em que pressupde uma atuagio juridicamente programada e controlada dos érgiios estatais, constitui condigio de existéncia das liberdades fundamentais, de tal sorte que os direitos fundamentais so- mente poderao aspirar & eficacia no Ambito de um auténtico Estado constitucional." Os direitos fundamentais, consoante oportunamente averbou Hans-P. Schneider, po- dem ser considerados, neste sentido, conditio sine qua non do Estado constitucional democritico. Além disso, como j4 havia sido objeto de previsio expressa na dec! ragio de direitos da ex-col6nia inglesa da Virginia (1776), os direitos fundamentais passaram a ser simultaneamente a base ¢ o fundamento ( basis and foundation of government), afirmando, assim, a idéia de um Estado que, no exercicio de seu poder, esta condicionado aos limites fixados na sua Constituigo.” Considerando-se, ainda que de forma aqui intencionalmente simplificada, 0 Estado de Direito nao no sentido meramente formal, isto é, como “governo das leis”, mas, sim, como “ordenagao integral e livre da comunidade politica”,"! expressao da concepgao de um Estado material de Direito, no qual, além da garantia de de- terminadas formas e procedimentos inerentes & organizagio do poder e das com peténcias dos Srgiios estatais, se encontram reconhecidos, simultaneamente, como metas, pardmetro ¢ limites da atividade estatal, certos valores, direitos e liberdades fundamentais, chega-se fatalmente & nogdo — umbilicalmente ligada a idéia de Estado de Direito — de legitimidade da ordem constitucional e do Estado.'* E neste contexto que assume relevo a concepgao, consensualmente reconhecida na doutrina, de que os direitos fundamentais constituem, para além de sua funcao limitativa do poder (que, ademais, nao € comum a todos os direitos), critérios de legitimagio do poder estatal e, em decorréncia, da prépria ordem constitucional, na medida em que “o poder se justifica por € pela realizagao dos direitos do homem e que a idéia de justica € hoje indissocivel de tais direitos”. E precisamente neste contexto que assume relevo a ligdo de Ferrajoli, no sentido de que todos os direitos fundamentais equivalem a vinculos substanciais que condicionam a validade substancial das normas produzidas a7 3. K. Stern, in: HBSIR V, p. 21 +95 Neste sentido, dentre outros, a ligdo de W. Krebs. in: SURA 1988. p. 617, 19 Cf HP. Schneider, in: REP n° 7 (1979), p. 23. Entre n6s, bem apresentando 0s direitos fundamentals como ‘elementos operativo-constitutivos da Estado Democritico de Direita”. v. a ligdo de R.Gesta Leal. Perspectivas Hermentutieas dos Diveitos Humanos e Fundamentais no Brasil. p. 163 ess. 40 Aqui também ef. K. Stern, Staatsrectu HUI. p. 182. "91 Esta a formulago de H.-P. Schneider, in: REP n° 7 (1979), p. 23 2 Sobre este ponto, notadamente numa perspectiva garantista embasada na obra de Ferrajoli vale confetir 0 im- portante contributo de S, Cademantori, Estado de Diveitoe Legitimidade, expecialmente p. 26 ¢ &s., lombrando, entre outros aspectes, que o constitucionalismo “cria um referente indisponivel de legitimidade para o exetcicio do poder politico (que Ferrajoli chama de esfera do indecidivel):a sua prépria forma de exercicio ~ submetida a0 Direito, de ‘mocritica, de garantia ~ ¢ 0s ambitos de exclusao, como € o caso dos direitos fundamentais."(p. 29). Ainda sobre a {intima conexio entre os direitos fundamentais e a Constituigdo, no Ambito de um Estado Democritico de Dircito,v., entre outras, a recente contribuigdo de J.L. Bolzan de Morais, As Crises do Estado e da Constituigd0... P65 € Ss. "8 CLM. da Silva Cabral Pinto, Os Limites do Poder Constiauintee a Legitimidade Material da Constiuigao, p. 142. ‘ABFICAGIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS 59 no Ambito estatal, a0 mesmo tempo em que expressam os fins ditimos que norteiam o moderno Estado constitucional de Direito." Ainda no que diz com a intima correla- ¢G0 dos direitos fundamentais com a nogao de Estado de Direito, socorremo-nos das palavras de Pérez Lufio, de acordo com o qual “existe um estreito nexo de interde- pendéncia genético e funcional entre o Estado de Direito e os direitos fundamentais, uma vez que o Estado de Direito exige e implica, para sé-lo, a garantia dos direitos fundamentais, ao passo que estes exigem e implicam, para sua realizagao, 0 reconhe- cimento e a garantia do Estado de Direito.”"* Mediante a positivagdo de determinados principios e direitos fundamentais, na qualidade de expressdes de valores e necessidades consensualmente reconhecidos pela comunidade historica e espacialmente situada, o Poder Constituinte e a propria Constituigao transformam-se, de acordo com a primorosa formulagiio do ilustre mes- tre de Coimbra, Joaquim José Gomes Canotilho, em auténtica “reserva de justiga”, em parametro da legitimidade ao mesmo tempo formal e material da ordem ju dica estatal.'* Segundo as palavras do conceituado jurista lusitano, “o fundamento de validade da constituico (= legitimidade) é a dignidade do seu reconhecimento como ordem justa (Habermas) e a conviccao, por parte da colectividade, da sua bon- dade intrinseca”."” Assim, na esteira do proprio Habermas, to bem lembrado por Canotilho, é possfvel partirmos da premissa de que as idéias dos direitos fundamen- tais (e direitos humanos) e da soberania popular (que se encontra na base e forma a génese do préprio pacto constituinte) seguem até hoje determinando e condicionando a auto-evidéneia normativa (das normative Selbstverstindnis) do Estado democra- tico de Direito."* E justamente neste contexto que os direitos fundamentais passam a ser considerados, para além de sua fungao originaria de instrumentos de defesa da liberdade individual, elementos da ordem jutidica objetiva, integrando um sistema axiol6gico que atua como fundamento material de todo 0 ordenamento juridico.'® Situando-nos naquilo que pode ser considerado um espago intermediario entre uma indesejavel tirania ou ditadura dos valores e uma, por sua vez, impossivel indiferenga a eles," importa reconhecer que a dimensio valorativa dos direitos fundamentais constitui, portanto, nogio intimamente agregada A compreensio de suas fungées ¢ importéncia num Estado de Direito que efetivamente mereca ostentar este titulo." "Cf. L, Femajoli, Derechos y Garantias. La ley del més débil, p22, 45 Cf, AE, Pérez Luio, Los Derechos Fundamentales,p. 19. © Cf. LI. Gomes Canotilho. Direito Constitucianal, p. 113 ¢ ss. onde, dentre outros aspectos, aborda 0 problema da legitimidade do Poder Constituinte ¢ da Constiuigio, numa dimensio diplice, guiada pelas idias de um pro- cedimento justo (legitimagio por meio de competéncias procedimentos), bem como pela nogdo de consenso dos individuos sobre os principios basicos de justica numa comunidad (legitimaedo pelo consenso). "7 Cr, 1. Gomes Canotilho, Direito Constiucional.p. 15. 8 Cf, J, Habermas. Faktizita und Geltungio.p- 124, 9 Esta a ligdo de H.-P. Schneider, in: REP n° 7 (1979), p. 25, bascada em jurisprudéncia do Tribunal Federal Cons- titucional da Alemanha, que outorgou aos direitos fundamentais o cardter de decisio juridico-constitucional funda- ‘mental para todos os setores do Direito, aesto este baseado no art. 1°, ine. Il, da Lei Fundamental de Bonn, segundo ‘0 qual os direitos fundamentais s20 0 fundamento de toda a comunidade humana, 150 Neste sentido, J.C.S. Gongalves Loureiro, O Pracedimento Administrativo entre a Eficiéncia e a Garantia dos Particulares, p. 162. aponta, com oportunidade, para a {nlima vinculagio entre as idéias de valor ¢ Constituiglo, s- gerindo que a solugao para que se evitem, simullaneamente, os extremos de uma “tirania dos valores e uma toal (a0 ‘menos pretensa) indiferenga a eles reside na transformagio da teoria dos valores numa teoria dos principios. "SC, também J.CS. Gongalves Loureiro. 0 Procedimento Administrativo. p. 163 e 164, revelando que o Estade constitucional democritico se caracteriza pela transformago dos valores fundamentais em direitos fundamentais, no Ambito de um pracesso de personalizagzo, 60 INGO WOLFGANG SARLET Os direitos fundamentais, como resultado da personalizagao e positivago cons- titucional de determinados valores bisicos (daf seu contetido axiolégico), integram, ao lado dos princfpios estruturais e organizacionais (a assim denominada parte or- ganica ou organizatéria da Constituigio), a substdncia propriamente dita, 0 nticleo substancial, formado pelas decisdes fundamentais, da ordem normativa, revelando que mesmo num Estado constitucional democratico se tornam necessérias (necessi- dade que se fez sentir da forma mais contundente no perfodo que sucedeu a Segunda Grande Guerra) certas vinculagdes de cunho material para fazer frente aos espectros da ditadura e do totalitarismo. A imbricagio dos direitos fundamentais com a idéia especifica de democracia € outro aspecto que impende seja ressaltado. Com efeito, verifica-se que os direitos fundamentais podem ser considerados simultaneamente pressuposto, garantia e ins- trumento do prinefpio democratico da autodeterminacdo do povo por intermédio de cada individuo, mediante o reconhecimento do direito de igualdade (perante a lei ¢ de oportunidades), de um espago de liberdade real, bem como por meio da outorga do direito & participagao (com liberdade e igualdade), na conformagio da comunidade e do processo politico, de tal sorte que a positivagao e a garantia do efetivo exercicio de direitos politicos (no sentido de direitos de participacaio e conformagio do status politico) podem ser considerados o fundamento funcional da ordem democratica’ e, neste sentido, pardmetro de sua legitimidade. A liberdade de participagao politica do cidadao, como possibilidade de intervengo no proceso decisério e, em decorréncia, do exercicio de efetivas atribuigdes inerentes & soberania (direito de voto, igual aces- so aos cargos piiblicos, etc.), constitui, a toda evidéncia, complemento indispensavel das demais liberdades.' De outra parte, a despeito dos iniimeros aspectos que ainda poderiam ser analisados sob esta rubrica, importa referir a fungao decisiva exercida pelos direitos fundamentais num regime democritico como garantia das minorias contra eventuais desvios de poder praticados pela maioria no poder, salientando-se, portanto, ao lado da liberdade de participagao, a efetiva garantia da liberdade-auto- nomia.'* Nesta perspectiva, a doutrina tem reconhecido que entre os direitos fundamen- tais e a democracia se verifica uma relagao de interdependéncia e reciprocidade,* o que nao afasta, como também de hé muito jé corresponde a uma assertiva corrente, a existéncia de tensdes entre os direitos fundamentais e algumas das dimensdes da democracia. Apenas para que tal aspecto nao fique sem referéncia, visto que no sera objeto de desenvolvimento, aos direitos fundamentais é atribuido um caréter contramajoritario, que, embora inerente as democracias constitucionais (j4 que sem a garantia de direitos fundamentais nao hé verdadeiramente democracia) nao deixa de estar, em certo sentido, permanentemente em conflito com o proceso decisério politico, j4 que os direitos fundamentais so fundamentais precisamente por estarem * Neste sentido, a ligdo de K. Stern, Staatsrecht HV/I. . 187, arvimado. por sua vez, nas palavras de Carl Schmitt, para quem é natural que a forma de ser de um Estado € determinada pela forma de ser dos direitos fundamentais que reconhece. +55 Neste sentido, a ligdo de H.-P. Schneider, in: REP n° 7 (1979), p. 26-7. '54 Cy, dentre outros, o entendimento de K. Stern, in: HBSIR V, p. 22-3, +55 assim também K. Stern, in: HBSIR V.p. 23. 'S6 Cf, dentre tantos, a opostuna férmula de G. Binembojm, Uma Teoria do Direito Administrative, 2* ed., Rio de Janeiro: Renaver, 2008, p. 50. ICACIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS 61 subtrafdos & plena disponibilidade por parte dos poderes constitufdos, ainda que de- mocraticamente legitimados para 0 exercicio do poder. Também a estreita ligagdo dos direitos fundamentais com o principio do Estado social consagrado pela nossa Constituigao, na esteira da maior parte das Leis Fundamentais contemporaneas, merece destaque. Apesar da auséncia de norma expressa no direito constitucional patrio qualificando a nossa Repiblica como um Estado Social e Democritico de Direito (o art. 1°, cuput, refere apenas os termos de- mocritico e Direito), nao restam ditvidas — e nisto parece existir um amplo consenso na doutrina — de que nem por isso 0 principio fundamental do Estado social deixou de encontrar guarida em nossa Constituicao."" Além de outros prinefpios expressamente positivados no Titulo I de nossa Carta (como, por exemplo, os da dignidade da pessoa humana, dos valores sociais do trabalho, a construgao de uma sociedade livre, justa e solidaria, etc.),"* tal circunstancia se manifesta particularmente pela previsdo de uma grande quantidade de direitos fundamentais sociais, que, além do rol dos direitos dos trabalhadores (arts. 7° a 11 da CF), inclui diversos direitos a prestag parte do Estado (arts. 6° e outros dispersos no texto constitucional). No Ambito de um Estado social de Direito ~ e 0 consagrado pela nossa evolugio constitucional nao foge a regra — os direitos fundamentais sociais constituem exigén- cia inarredavel do exercicio efetivo das liberdades e garantia da igualdade de chances (oportunidades), inerentes 4 nogdo de uma democracia e um Estado de Direito de contetido nao meramente formal, mas, sim, guiado pelo valor da justiga material." Cumpre frisar, ainda, que a idéia do reconhecimento de determinadas posigdes ju- ridicas sociais fundamentais, como exigéncia do principio da dignidade da pessoa humana, decorre, consoante leciona Klaus Stern, da concepgio de que “homogenei. dade social e uma certa medida de seguranga social nao servem apenas ao individuo isolado, mas também & capacidade funcional da democracia considerada na sua inte- gralidade”."@ Com base nas idéias aqui apenas pontualmente langadas e sumariamente desen volvidas, hd como sustentar que, além da intima vinculagdo entre as nogdes de Estado de Direito, Constituigao e direitos fundamentais, estes, sob 0 aspecto de concretiza- es do princfpio da dignidade da pessoa humana, bem como dos valores da igualda- de, liberdade e justiga,"* constituem condigao de existéncia e medida da legitimidade de um auténtico Estado Democrético e Social de Direito, tal qual como consagrado também em nosso direito constitucional positivo vigente, V., dentre tantos, P. Bonavides, Curso de Direito Constiucional, p. 336 ¢ s5..€ J.A. da Silva, Curso de Direito Consttucional Positive. p. 102-3, 488 V. ort I. ines. le IV. bem como o art. 2° (objetivos fundamentais da Repiiblica), ines. 14 V 4° Segundo averba H.-P. Schneider, in: REP n*7 (1979), p. 30-1, “seas chissicas liberdades fundamentais hao de ser hhoje algo mais que liberdades sem probabilidade de realizago, seu contetido também deve ser algo mais que sim- ples protecio contra as intervengdes do Estado: devem consistir em direitos a prestagdes sociais que compreendem ~ desde 0 ponto de vista subjetivo ~ tanto uma colocagio em marcha da alividadle geral estatal ~ quanto a pretensio de aproveitar servigos jf prestados ou instalagdes jé existentes”. Neste sentido. vale transcrever, ainda, a ligao de LM. da Silva Cabral Pinto, Os Limites do Poder Constiainte ea Legitimidade Material da Constiruigdo, p. (49: "Os direitos fundamentais exigem a democracia material, pois apenas nesta os requisites da dignidade humana poderio ser verdadeiramente preenchidos. i que s6 enti os indivduos estario subtrafdos, no apenas ao arbtrio do poder polttico, mas também as coacgdes derivadas do poder econémico e social” 360 CF. K. Stem, in: HBSIR V, p. 24 16 4 respeito dos direitos fundamentals sob o aspecto de concret Pérez Lutio, Derechos Humanos. p. 15, izagdes do valor fundamental da justiga, v. A.E. 62 INGO WOLFGANG SARLET 4. A concepgao dos direitos fundamentais na Constituicao de 1988 4.1. O catalogo dos direitos fundamentais na “Constituigao-Cidada” de 1988 4.1.1. Breve apresentagio Tragando-se um paralelo entre a Constituigdo de 1988 0 direito constitucio- nal positivo anterior, constata-se, jé numa primeira leitura, a existéncia de algumas inovagdes de significativa importincia na seara dos direitos fundamentais. De certo modo, € possivel afirmar-se que, pela primeira vez na historia do constitucionalismo patrio, a matéria foi tratada com a merecida relevancia. Além disso, inédita a outorga 20s direitos fundamentais, pelo direito constitucional positivo vigente, do starus juri dico que Ihes é devido e que nao obteve 0 merecido reconhecimento ao longo da evo- lugdo constitucional. Na medida em que nosso estudo € prioritariamente centrado nos direitos fundamentais na Constituigao patria, importa tecer algumas consideragdes sobre a posi¢o ocupada pelos direitos fundamentais na Carta de 1988, ainda que em carater sumario. Neste mesmo contexto, tragaremos uma breve resenha dos aspectos positivos mais relevantes com os quais nos deparamos ao proceder a uma primeira leitura da nossa Lei Fundamental no que diz respeito aos direitos fundamentais, sem omitirmos a0 menos uma breve referéncia a alguns aspectos passiveis de critica. No que concerne ao processo de elaboracio da Constituigdo de 1988, ha que fazer referéncia, por sua umbilical vinculagdo com a formatagao do catdlogo dos direitos fundamentais na nova ordem constitucional, A circunstincia de que esta foi resultado de um amplo processo de discussdo oportunizado com a redemocratizagao do Pais apés mais de vinte anos de ditadura militar. Em que pesem todos os argu- mentos esgrimidos impugnando a legitimidade do processo Constituinte deflagrado no governo José Sarney, nao restam dividas de que as eleigdes livres que resulta- ram na instalagdo da Assembléia Nacional Constituinte (ou Congresso-Constituinte), em 1° de fevereiro de 1987, propiciaram um debate sem precedentes na histéria na cional sobre 0 que viria a ser 0 contetido da Constituicao vigente, na redagio final que Ihe deu o Constituinte. Embora nao haja condigdes de reproduzir com minticias © desenvolvimento dos trabalhos da Assembléia presidida pelo Deputado Ulysses Guimaraes, importa registrar aqui a dimensao gigantesca deste processo. O antepro- A EFICACIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS. 63 jeto elaborado pela Comissio de Sistematizacao, presidida pelo Deputado Bernardo Cabral, continha 501 artigos e atraiu cerca de 20.700 emendas. Menos expressiva, mas ainda assim significativa por tratar-se do exercicio de modalidade de democracia participativa, € a constatagiio de que 0 projeto foi objeto de 122 emendas populares, estas subscritas por no minimo 30,000 eleitores."* Ainda que tais niimeros nao sejam diretamente aplicdveis a0 universo dos direitos fundamentais, preciso reconhecer ~ guardadas as devidas proporgdes — que com relagdo a esies a situagio nao foi subs- tancialmente diversa, de modo especial em se considerando a acirrada discussaio em torno do reconhecimento de uma série de direitos econémicos, sociais e culturais. No que conceme aos trabalhos da Constituinte, importa frisar que esta no se ar- rimou a0 menos nao oficialmente ~ em qualquer pré-projeto elaborado anterior ou simultaneamente, o que vale inclusive em relagao ao projeto elaborado pela Comiss’io Afonso Arinos por iniciativa do Presidente José Sarney e concluido em setembro de 1986." Contudo, ndo hé como negar a influéncia exercida pelo Anteprojeto da Comissio Afonso Arinos sobre os trabalhos da Constituinte, o que ficou evidencia- do no primeiro Projeto da Comissio de Sistematizacio, no qual alguns dispositivos sugeridos pelos integrantes da Comissio Afonso Arinos (ironicamente designados de “Notveis”), foram virtualmente transcritos na sua integra." Por outro lado, cum- pre averbar que a auséncia de um anteprojeto devidamente sistematizado contribuitt de forma decisiva para certa desordem e inseguranga no contexto dos trabalhos da Assembléia Constituinte," que nao deixou de se refletir também no campo dos di- reitos fundamentais. Trés caracteristicas consensualmente atribufdas 4 Constituigao de 1988 podem ser consideradas (a0 menos em parte) como extensivas ao titulo dos direitos fun- damentais, nomeadamente seu cardter analitico, seu pluralismo e seu forte cunho programitico e dirigente. Com efeito, € preciso reconhecer que, em face do seu grande niimero de dispositivos legais (246 artigos e 74 disposigdes transitorias), a Constituigdo de 1988 se enquadra no rol das assim denominadas Constituigdes anali- ticas, a0 lado ~ apenas para citar as mais conhecidas — das Constituigdes de Portugal (298 artigos) e da india (395 artigos). Este cunho analitico e regulamentista"® reflete- "62 a este respeito. v. 0 artigo de AL. Lyra Tavares, in: RIL n® 109 (1991), p. 84 "6 Neste sentido, of J. Marinho, in: RF n? 304 (1988). p. 101. Apenas a titulo ilustrativo vale lembrar que a Comis- so Afonso Arinos, também denominada Comissao dos “Notiveis", foi nomeada em julho de 1985 e era integrada or 49 profissionais de renome e projeg0 nacional, selecionados dentre jurists, politicos, jomalistas, escrivores & intelectuais de diversas dreas. tendo sido presidida pelo Prof. Afonso Arinos de Melo Franco. Apds pouco mais de lum ano de trabalho. a Comissio apresentou um projeto de Constituigo com 436 artigos ¢ 32 dispositivos transit6rios, cearacterizando-se pelo seu cunho marcadamente pluralista, e que, apés ter sido entregue ao Presidente José Sarney em 18 de setembro de 1986. foi publicado no Dirio Oficial da Unido. "64 Neste sentido, o entendimento de D.F. Moreira Neto, in: RF n? 304 (1988), p. 67. Saliente-se, todavia, que a designagio “Notiveis”. quando investida de conotago irdnica, se afigura injusta, levando-se em conta no apenas a reputaglo pessoal e profissional da absoluta maioria dos integrantes da Comissdo Afonso Arinos, mas especialmente © valor intrinseco do projeto por ela apresentado. 'S5 CFI, Marinho. in: RF a? 304 (1988). p. 101. Neste sentido, € preciso frisar que o préprio anteprojeto da Comissiio ‘Afonso Arinos. ainda que oficialmente utilizado como fonte principal dos trabalhos Constituintes, nio afastaria por ‘completo a chaga da falta de sistematizagao. jd que ele préprio — como assevera jurista lustano J. Miranda, in: RDP sn? 80 (1987), p. 256 e ss. - havia sido vitimado por este mal 166 Esta a ligho, entre outros, de P. Ferreira, Comentérios I, p. 24: Também S. Dobrowolski, in: RT n? 658 (1990). 1p. 25 ess., abserva que o Constituinte cedeu & ilusio de que com a regulamentagio detalhada da matéria ficariam resolvidos os problemas nacionais. Saliente-se, neste contexto, que uma das efticas mals contundentes habitualmente {ecidas & nossa Constituigdo consiste justamente na alegaedo de que o Constituinte invadiu seara reservada ao legis lador infraconstitucional 64 INGO WOLFGANG SARLET se também no Titulo Il (dos Direitos e Garantias Fundamentais), que contém ao todo sete artigos, seis parégrafos e cento e nove incisos, sem se fazer mengiio aqui aos diversos direitos fundamentais dispersos pelo restante do texto constitucional. Neste contexto, cumpre salientar que 0 procedimento analitico do Constituinte revela certa desconfianga em relagio ao legislador infraconstitucional,” além de demonstrar a in- tengdo de salvaguardar uma série de reivindicagdes e conquistas contra uma eventual erosdo ou supressao pelos Poderes constituidos. O pluralismo da Constituigao advém basicamente do seu cardter marcadamente compromissério, ja que o Constituinte, na redagio final dada ao texto, optou por acolher e conciliar posigGes e reivindicagdes nem sempre afinadas entre si, resul- tantes das fortes pressdes politicas exercidas pelas diversas tendéncias envolvidas no processo Constituinte. Também a marca do pluralismo se aplica ao titulo dos direitos fundamentais, do que dé conta a reunido de dispositivos reconhecendo uma grande gama de direitos sociais, a0 lado dos cléssicos, e de diversos novos direitos de liberdade, direitos politicos, etc. Saliente-se, ainda no que diz com este aspecto, a circunstancia de que o Constituinte — a exemplo do que ocorreu com a Constituigao Portuguesa — nao aderiu nem se restringiu a apenas uma teoria sobre os direitos fun- damentais," 0 que teve profundos reflexos na formatagio do catélogo constitucional destes. De outra banda, ressalta na Constituigdo vigente 0 seu cunho programatico'” e, a despeito das diversas e importantes reformas ocorridas, ainda marcadamente, diti- gente,'”' que resulta do grande némero de disposigGes constitucionais dependentes de regulamentacao legislativa, estabelecendo programas, fins, imposigées legiferantes e diretrizes a serem perseguidos, implementados e assegurados pelos poderes puibli- cos. Mesmo que fortemente mitigado no que conceme aos direitos fundamentais, de modo especial em face da redago do art. 5°, § 1° (que prevé a aplicabilidade imediata das normas definidoras de direitos fundamentais), nao h4 como negar a subsisténcia de elementos programiticos e de uma dimensio diretiva também nesta seara, 0 que, no entanto, sera objeto de andlise mais detida em outro momento. Outro aspecto de fundamental importancia no que concerne aos direitos funda- mentais em nossa Carta Magna diz respeito ao fato de ter ela sido precedida de pe- riodo marcado por forte dose de autoritarismo que caracterizou ~ em maior ou menor escala —a ditadura militar que vigorou no pais por 21 anos. A relevancia atribuida aos direitos fundamentais, o reforgo de seu regime juridico e até mesmo a configuracdo "67 Pertinente, portanto, a ligio de S.A. Romita, in: RDT n° 73 (1988), p.72. "8 Esta a observagio de J. Marinho, in: RF n? 304 (1988). p, 101 ¢ ss, Cumpresalientar que neste aspecto ~ entre outros ~a nossa Consttuigao vigente se assemelha e muito 3 Consttuigio portuguesa de 1976, igualmenteresultante de uma solugdo compromissiria e harmonizadora das diversas forgas politicas (ef. 11. Gomes Canotilho, Direito Constitucionat. p. 323-3) 1 Embora no seja possvel, dadas as dimensdes €o enfogue do presente trabalho, proceder-se a uma andlise mals detda das teorias sobre 0s direitos fundamentais,consatase também, no caso brasileiro. que © Consttunte se ins- Pirou preponderantemente nas cori liberal e socal dos direitos fundamentai. ineluindo suas diversas variantes € rmanifestagbes. Neste sentido, Canotilho-Moreira, Fundamentos . 100 ¢ ss. Para obter-se ura visto panordmica das teorias dos direitos fundamenuss,remetemos leitor is obras de J.J. Gomes Canolil. Dirlto Consttetonal,p.515 ¢ ss..e de E.W.Bockenfbrde. in: NIW 1974, p. 1529¢ ss., dente outras que aqui poderiam ser citadas Nao € & wa que T'S. Ferraz Jr. ( Constinigdo de 1988 ~ Legiinidade, Vigencia e Efcdeia e Supremacia, p. 58) considera a Constituigéo vigente a mais programatica de todas as constitwigdes brasileira, em virtue do grande !nimero de disposigbes de ordem programatica ou imposigdes ao lgislador. "Cr. R Piovesan, Protegdo Judicial. p. 39. que fundamenta Sua posigio nas ligbes JJ. Gomes Canottho. A EFICACIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS 65 do seu contetido sao frutos da reagio do Constituinte, e das forgas sociais e politicas nele representadas, ao regime de restrigdo ¢ até mesmo de aniquilagiio das liberda- des fundamentais. Também neste aspecto é possivel tragar um paralelo entre a nos- sa Constituigao vigente e diversas das Constituigdes do segundo pés-guerra, Dentre os exemplos mais remotos, merecem referéncia a Constituigao italiana de 1947 € a Lei Fundamental da Alemanha, de 1949. Mais recentemente, h que destacar a Constituigao da Repiiblica Portuguesa de 1976 e a Constituigao espanhola de 1978, ambas igualmente resultantes da superacao de regimes autoritérios e que, a exemplo das primeiras, exerceram grande influéncia sobre o Constituinte de 988 Embora nao tenhamos a pretensio de esgotar ¢ aprofundar as diversas questdes que poderiam ser suscitadas no Ambito desta abordagem introdutéria, na medida em que apenas nos propusemos a delinear alguns tragos genéricos que possibilitem a compreensiio da importincia e do significado dos direitos fundamentais em nossa atual Constituigo, entendemos ser adequada para os efeitos desta apresentacio ~ ou, no minimo, ilustrativa — a referéncia a alguns dos aspectos inavadores e positi vos que decorrem de uma primeira leitura do titulo dos direitos fundamentais, assim como de algumas criticas que podem ser tecidas com relagio a ele, aspectos que, em seu conjunto, caracterizam o sistema dos direitos fundamentais no direito constitucional positivo vigente, além de tragarem a distingdo relativamente a tradigdo anterior nesta seara, Dentre as inovagGes, assume destaque a situaciio topografica dos direitos fun- damentais, positivados no infcio da Constituigio, logo apés 0 preambulo e os pi cfpios fundamentais, 0 que, além de traduzir maior rigor logico, na medida em que 08 direitos fundamentais constituem parmetro hermenéutico e valores superiores de toda a ordem constitucional e jurfdica, também vai ao encontro da melhor tradigao do constitucionalismo na esfera dos direitos fundamentais. Além disso, a propria utilizagio da terminologia “direitos e garantias fundamentais” constitui novidade, j4 que nas Constituigdes anteriores costumava utilizar-se a denominagio “direitos e garantias individuais”, desde muito superada € manifestamente anacrdnica, além de desafinada em relagao & evoluco recente no Ambito do direito constitucional internacional." A acolhida dos direitos fundamentais sociais em capitulo proprio no catdlogo dos direitos fundamentais ressalta, por sua vez, de forma incontestavel sua condigao de auténticos direitos fundamentais, j4 que nas Cartas anteriores os direitos sociais se encontravam positivados no capitulo da ordem econémica e social, sendo- thes, ao menos em principio e ressalvadas algumas excegdes, reconhecido cardter meramente programatico. 2 Talvez a inovaciio mais significativa tenha sido a do art. 5°, § 1°, da CF, de acordo com 0 qual as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais pos- suem aplicabilidade imediata, excluindo, em principio, o cunho programatico destes preceitos, conquanto nfo exista consenso a respeito do alcance deste dispositivo. De qualquer modo, ficou consagrado o status juridico diferenciado e reforgado dos direi- tos fundamentais na Constituigao vigente. Esta maior proteco outorgada aos direitos fundamentais manifesta-se, ainda, mediante a incluso destes no rol das “cldusulas 1? Rassalte-se, todavia, que a Constituigfo nio utiliza o termo “direitos fundamentais” de modo uniforme. Assim ‘corre com 0 ait 60. § 4. ine. IV. onde consta a expressio “direitos e garantias individuals”, 0 que acabou gerando um dissidio doutrinirio em torno da melhor exegese desta norma, sobre o qual ainda teremos oportunidade de nos manifesta. 66 Pomraeene! pétreas” (ou “garantias de eternidade”) do art. 60, § 4°, da CF, impedindo a supres- siio e erostio dos preceitos relativos aos direitos fundamentais pela ago do poder Constituinte derivado. A amplitude do catélogo dos direitos fundamentais, aumentando, de forma sem precedentes, 0 elenco dos direitos protegidos, é outra caracteristica preponderante- mente positiva digna de referéncia. Apenas para exemplificar, o art, 5° possui 78 incisos, sendo que do que o art, 7° consagra, em seus 34 incisos, um amplo rol de direitos sociais dos trabalhadores. E de se observar, contudo, que o extenso rol de direitos e garantias fundamentais pode, também, ser avaliado sob Angulo critico, para © que remetemos ao item seguinte. Neste contexto, cumpre salientar que 0 eatdlogo dos direitos fundamentais (Titulo II da CF) contempla direitos fundamentais das di- versas dimensdes, demonstrando, além disso, estar em sintonia com a Declaragao Universal de 1948, bem assim com os principais pactos internacionais sobre Direitos Humanos, o que também deflui do contetido das disposigdes integrantes do Titulo I (dos Prinefpios Fundamentais). No que concerne aos direitos das duas primeiras di- menses, nio se encontram dificuldades para a confirmacao desta hipétese, bastando uma simples leitura superficial dos dispositivos integrantes do catalogo, que acolheu tanto os direitos tradicionais da vida, liberdade e propriedade, quanto o prineipio da igualdade e os direitos e garantias politicos, consagrando, por igual, os direitos sociais da segunda dimensao. J4 no que diz com os direitos da terceira e da quarta dimensdes, ha que ter maior cautela. Certo € que 0 diteito ao meio ambiente ecologi- camente equilibrado (art, 225 da CF) pode ser enquadrado nesta categoria (direito da terceira dimensio), em que pese sua localizagio no texto, fora do titulo dos direitos fundamentais. Poder-se-ia cogitar também do art. 5°, inc. XXXII (prevé a protegao do consumidor), ¢ do art. 5°, inc. XXXII (direito a informagGes prestadas pelos érgios piiblicos). No mais, encontramos referéncia a outros dos assim denominados direitos de terceira dimensio no titulo dos principios fundamentais no que concerne as rela~ ‘ges internacionais, onde se encontram previstas a independéncia nacional, a autode- terminagdo dos povos € a ndo-intervengo (art. 4°, incs. I, Ill e 1V), além da defesa da paz, secundada da solucdo pacifica dos conflitos (art. 4°, ines. VI e VII). Importante é a constatagdo de que, relativamente 2 positivacdo em nivel do direito consititucional interno, os direitos das duas tiltimas dimens6es ainda reclamam uma atengo maior, © que nio significa que inexistam possibilidades de seu reconhecimento e efetivaciio, que poderia dar-se também (mas nao sé) por intermédio da cléusula de abertura pro- piciada pelo art. 5°, § 2°, da CF, 0 qual ainda ser objeto de maior atengao. Ja apés a entrada em vigor da Constituigao, outras novidades foram objeto de previsio pelo poder de reforma constitucional. Digna de nota, neste contexto, é a in- clusdo (de forma expressa) do direito & moradia no artigo 6° (dos direitos sociais), por meio da Emenda Constitucional n° 26/2000. A recente reforma do Poder Judicirio, veiculada pela Emenda n° 45/2004, trouxe outras inivagdes, embora algumas até mesmo questiondveis, j4 que potencialmente ofensivas aos direitos fundamentais, como € 0 caso do incidente de deslocamento da competéncia para o julgamento de graves violagdes dos direitos humanos, que aqui nao seré objeto de comentarios. De positivo, importa citar a insergao, no elenco do artigo $° da nossa Lei Fundamental, do direito a razodivel duragio do processo, assim como a incluso de um § 3° no artigo 5°, prevendo a possibilidade de aprovagao, com status de Emenda Constitucional, de 5 ‘AEFICACIA 00 DIREITOS FUNDAMENTAS 67 tratados em matéria de direitos humanos, ponto que sera especialmente considerado em item préprio. Para efeitos de uma breve apresentagio dos direitos fundamentais na atual Constituigao, h4 que ressaltar alguns aspectos que, salvo melhor jufzo, parecem ser passiveis de critica. Isto tanto no que diz com a sistematica adotada pelo Constituinte, quanto com relagao a técnica legislativa, além da necessidade de se apontarem alguns equivocos e lacunas que deixaram de ser supridas e que merecem alguma reflexao. E de considerar, ainda, que questes especificas, de modo especial aquelas vincula- das a preceitos individualmente considerados, foram propositalmente exclufdas neste momento, De qualquer modo, nao se trata ~ aqui também ~ de abordagem exaustiva e analitica, ja que de cunho meramente exemplificativo e problematizador. A falta de rigor cientifico e de uma técnica legislativa adequada, de modo es- pecial no que diz com a terminologia utilizada, pode ser apontada como uma das principais fraquezas do catélogo dos direitos fundamentais em nossa Constituigao, revelando contradigdes, auséncia de tratamento l6gico na matéria e ensejando proble- mas de ordem hermenéutica. E 0 que ocorre, por exemplo, com a redagiio do caput do art. 5°, seguido dos 77 incisos, bem como do art. 6°, que anuncia genericamente quais 05 direitos sociais basicos, sem qualquer explicitagio relativamente ao seu contetido, que deverd ser buscada no capitulo da ordem econémica e, acima de tudo, da ordem social, suscitando sérias duvidas sobre quais os dipositivos situados fora do Titulo IL que efetivamente integram os direitos fundamentais sociais. Neste mesmo contexto, também ressalta uma auséncia de sistematizagao, oriunda, provavelmente, de uma acomodacdo apressada das matérias, desacompanhada da necessaria reflexo, gera da, entre outros fatores, pela pressao exercida sobre os Constituintes na época da ela- boracdio da nossa Lei Fundamental, aspecto jé apontado, inclusive, por observadores estrangeiros de grande renome, como ¢ 0 caso de Jorge Miranda, apesar do entusias- mo com o qual o mestre de Lisboa recebeu a nossa nova Carta." Basta citar, ainda no que diz com este aspecto, a posig%io “geogrdfica” dos preceitos que consagraram a aplicabilidade direta dos direitos fundamentais (art. 5°, § 1°), bem como a abertura para outros direitos fundamentais, ainda que nao expressos no texto da Constituig’o (art. 5°, § 2°), ambos situados no final do rol do art. 5°, mas antes dos demais direitos fundamentais do Titulo II. A amplitude do catdlogo, em que pese seu cunho preponderantemente positi- vo, também revela ter suas fraquezas, porquanto no rol dos direitos fundamentais foram incluidas diversas posigGes juridicas de “fundamentalidade” ao menos discu tivel, conduzindo — como se tem verificado ao longo dos anos — a um desprestigio do especial starus gozado pelos direitos fundamentais, muito embora nio seja a quantidade de direitos fundamentais uma das principais causas de sua falta de pres- tigio e efetividade. Além disso, em todos os capitulos, mas de modo especial no art, 5° e nos arts. 12 a 17, encontram-se diversos preceitos que, nao obstante sua louvada finalidade (¢ aqui no se discute sua importancia), ndo revelam as caracteristicas de direitos fundamentais, mas, sim, de normas organizacionais (como € 0 caso do 3, J, Miranda, in: RDP n° 80 (1987), p. 256 ess 4 Neste sentido, v.M.G. Ferreira Filho, in: RDA n° 203 (1996), p. 4 € ss, embora nfo possamos compartlhar © ponto de vista do autor no que tange & vinculagdo dos direitos fundamentais "verdadeiros” a0 jusnaturalismo, consi derando-se fundamentais 0s direitos naturais, por sua vez distintos dos “falsos” direitos fundamentais. tidos como tais. fs que. sem serem oriundos do direito natural, foram contemplados nas Coastituigdes e tratados internacionais. 68 INO WOLFGANG SARLET art. 14, § 3°, ines. I a VI, e §§ 4° a 8°) ou até mesmo de normas de natureza penal (art. 5°, incs. XLII e XLII). Cuida-se, na maior parte, de dispositivos que poderiam ter sido remetidos ao legislador infraconstitucional ou mesmo enquadrados na parte organica da Constituigao. Todavia, nfo ha como deixar de outorgar as posigdes de fundamentalidade controversa a plenitude de sua forca juridica, peculiar — no mfnimo —ao regime da fundamentalidade formal, j4 que a controvérsia sobre a fundamentali- dade, nas hipéteses referidas, se restringe & dimensao material. Ademais, parece-nos insustentavel outorgar aos poderes constituidos (mesmo & Jurisdi¢o Constitucional) a atribuicdo de decidir sobre a verdadeira ou falsa fundamentalidade das posigdes consagradas como direitos fundamentais no Titulo IT da nossa Constituigao. Importante lacuna deixada pelo Constituinte diz com a auséneia de previsio de normas genéricas expressas sobre as restricdes aos direitos fundamentais, o que, na verdade, nao encontra maior justificativa, j4 que nao faltaram exemplos concretos de ampla aceitacao no direito comparado. Aqui cumpre lembrar, pela sua importan- cia, as Constituigdes alema (1949), portuguesa (1976) e espanhola (1978). A pro- o do niicleo essencial (Wesensgehalt) dos direitos fundamentais, o principio da proporcionalidade, a reserva legislativa (restrigdes somente mediante leis no sentido formal) teriam sido categorias que, uma vez tendo recebido roupagem nacional, se revelariam extremamente benéficas, servindo como elementos para um tratamento cientifico e uniforme da matéria."* Tendo em vista os aspectos destacados, h4 como afirmar, sem medo de errar, que, a despeito da existéncia de pontos passiveis de critica e ajustes, os direitos fun- damentais esto vivenciando 0 seu melhor momento na histéria do constitucionalis- mo patrio, ao menos no que diz com seu reconhecimento pela ordem juridica positiva interna e pelo instrumentério que se colocou a disposigao dos operadores do Direito, inclusive no que concerne as possibilidades de efetivacdo sem precedentes no or- denamento nacional. Para que este momento continue a integrar 0 nosso presente € nao se torne mais outra mera lembranga, com sabor de ilusdo, torna-se indispensavel 0 concurso da vontade por parte de todos os agentes politicos e de toda a socieda- de. Neste sentido, se ~ de acordo com a paradigmitica afirmacao de Hesse ~, para a preservacio € o fortalecimento da forca normativa da Lei Fundamental se toma indispensdvel a existéncia de uma “vontade de Constituigao”," também poderemos falar em uma vontade dos direitos fundamentais, ainda mais quando estes integram o niicleo essencial de qualquer Constituigao que mereca esta designacao. 4.1.2. Elementos caracterizadores de um sistema de direitos fundamentais No Ambito desta apresentaco do contetido e do significado dos direitos fun- damentais na Constituigdo vigente, importa analisar se ¢ em que medida é possf. vel falar de um auténtico sistema formado pelos direitos fundamentais de nossa Lei Fundamental e, em sendo ao menos tendencialmente afirmativa a resposta, de que maneira este sistema se insere no contexto global da Constituigao. A problematica 5 Neste sentido. chegamos a apresentar sugestio para a reforma da ConstituigSo no Congresso Estadual da Magis- ‘satura, promovido pela AIURIS (Associagio dos Juizes do Rio Grande do Sul) em novembro de 1995, propondo «incluso desta matéria (além de outras alteragdes) num dispostivo genérico. no pértico do titulo sobre os direitos. fundamentais, disciplinando integralmente 0 regime juridico destes. M6CEK, Hess A Forga Normativa da Constiuigdo, p. 32. ‘A EFICACIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS. 69 nao é, além disso, destituida de relevancia pratica, visto que do seu enfrentamento decorrem conseqiiéncias diretas, com reflexo na seara hermenéutica, bem como no que diz com a compreensio da concepgio dos direitos fundamentais consagrada pelo Constituinte de 1988. Estreitamente vinculada com a presente temitica, coloca-se, ainda, a questdo da relagdo entre a parte orginica da Constituigao ¢ os direitos funda- mentais, e que também deverd merecer a nossa atengao. A idéia de que os direitos fundamentais integram um sistema no Ambito da Constituicao foi objeto de recente referéncia na doutrina patria, com base no argu- mento de que os direitos fundamentais so, em verdade, concretizacaos do principio fundamental da dignidade da pessoa humana, consagrado expressamente em nossa Lei Fundamental."” A aplicagdo da nogao de sistema ao conjunto dos direitos funda mentais niio 6, contudo, inovadora e tem sido discutida acirradamente na dogmitica constitucional nacional e estrangeira. E na doutrina e na jurisprudéncia germfnica que 0 tema provocou, antes mesmo do advento da atual Lei Fundamental, as maiores controvérsias. O representante mais ilustre da corrente que sustenta a existéncia de um au- éntico sistema dos direitos fundamentais no direito alem‘o foi Giinter Ditrig, para quem a Lei Fundamental consagrou um sistema de direitos fundamentais isento de lacunas, baseado no principio fundamental da dignidade humana (art. 1°, inc. 1, da LF). Este, segundo o pensamento do ilustre mestre de Tubingen, fundamenta uma pretensiio geral de respeito e protegiio da dignidade da pessoa humana, concretizada nos diversos direitos fundamentais especificos, que, além disso, foram guindados a condigao de diretamente aplicaveis pelo art. 1°, inc. III, da LF. Por meio do art. 19, inc. II (princfpio da preservacao do micleo essencial), bem como do art. 79, inc. III (cldusulas pétreas), ambos da LF, os direitos fundamentais encontraram proteg’io expressa contra a aco erosiva do legislador ordinério e até mesmo contra eventuais reformas da Constitui¢Zo. Com a previsdo de um direito geral de liberdade (art. 2° inc. 1, da LF) e de um direito geral de igualdade (art. 3°, ine. I, da LF), ambos concre- tizados por direitos fundamentais de liberdade e igualdade de natureza especial, bem como diante da previsio de uma garantia fundamental de protegio judiciria (art. 19, ine. IV, da LF),'™ possibilitando 0 amplo acesso & justiga e a efetivactio de todos os direitos fundamentais, ficaria - de acordo com a formulacao de Dulrig — completa a conformagio juridico-positiva de um sistema dos direitos fundamentais."® Sem adentrar aqui a ampla discusso que gerou o sistema idealizado por Diirig —sem diivida uma das mais importantes, originais e influentes formulagées propostas no direito alemao apés o advento da Lei Fundamental -, 0 fato € que esta concepgo sistémica foi merecedora de fundadas criticas por parte da doutrina de seu préprio pais, Além disso, importa frisar que qualquer tomada de posigio sobre um sistema de direitos fundamentais em nossa Constituigdio deve tomar como parimetro o direito "71 CE.E. Pereira de Farias, Colts de Direitos. p.54-5. Mais reventemente. G.B. Pefa de Moraes, Dos Direitos Fun- damentais, p. 89 e se9s...efere-se a0 principio da dignidade da pessoa humana como elemento que confere unidade ao sistema dos direitos fundamentais na nossa Consttuigo. "ACE. G, Durg, in; AOR n° 81 (1956). p. 119 ess, Saliente-se que a nog de um sistema isento de lacunas deve ser compreendida no sentido de um sistema de protego abrangentc e completo, e no como significande um sistema fechado ¢ hermético. Dispositivo que equivale ao ant. 5° inc. XXXV, da CF de 1988 (garantia da inafustablidade do controle judicisrio). '8° CEG. Datig. in: AOR n° B1 (1956), p. 119, 70 INGO WOLFGANG SARLET = positivo patrio. Neste contexto, importa referir a tese de Konrad Hesse, que, embora reconhega a existéncia de certas vinculagdes de natureza sistémica (relagao de espe- cialidade e generalidade entre alguns direitos fundamentais, bem como similitudes ‘no que conceme ao seu contetido), entende ser impossfvel sustentar 0 ponto de vista de um sistema auténomo e fechado integrado pelos direitos fundamentais da Lei Fundamental. Para Hesse, os direitos fundamentais, apesar de comumente agrupados em um catélogo, so garantias pontuais, que se limitam a protegao de determinados bens e posicées juridicas especialmente relevantes ou ameagados. De outra parte, a existéncia de direitos fundamentais dispersos no texto constitucional, a auséncia de uma fundamentagao direta de todos os direitos fundamentais no principio da digni- dade da pessoa humana, bem como o estreito entrelagamento entre os direitos fun- damentais ¢ o restante das normas constitucionais, impedem, segundo a perspectiva de Hesse, a existéncia de um sistema auténomo, fechado (no sentido de isento de Jacunas), tal como sustentado por parte da doutrina e, ao menos de forma majoritaria, pelo proprio Tribunal Federal Constitucional. Com base no que foi exposto e & luz do direito constitucional patrio, verifica-se, de plano, ser invidvel a sustentagdo, também entre nés, da concepgao segundo a qual 08 direitos fundamentais formam um sistema em separado e fechado no contexto da Constituigdo. Com muito mais pertinéncia do que no caso da Lei Fundamental ale~ mi, as ponderagées tecidas por Hesse revelam sua procedéncia e atualidade quando consideradas em face do texto da Constituicdo de 1988, Em primeiro lugar, cumpre referir que 0 conceito materialmente aberto de direitos fundamentais consagrado pelo art, 5°, § 2°, da CF aponta para a existéncia de direitos fundamentais positivados em outras partes do texto constitucional e até mesmo em tratados internacionais, bem as- sim para a previstio expressa da possibilidade de se reconhecer direitos fundamentais ndo-escritos, implicitos nas normas do catdlogo, bem como decorrentes do regime e dos princfpios da Constituigio.™ Além disso, a diversidade de contetido do catélogo dos direitos fundamentais (composto por um ntimero sem precedentes de direitos de liberdade, concretizagdes do princfpio da igualdade, direitos sociais, politicos, ga- rantias institucionais, etc.), impede, em princfpio, que se estabelegam critérios abs- tratos genéricos que possam demonstrar uma identidade de contetidos, inclusive no sentido de uma construgdo baseada numa relagdo de generalidade e especialidade. Outrossim, também os direitos fundamentais de nossa Constituigdo no radicam, em sua totalidade, ao menos nao de forma direta, no principio da dignidade da pessoa hu- mana, havendo que reconhecer, neste sentido, no mfnimo relevantes distingdes quan- to ao grau desta vinculagao,"® questio sobre a qual voltaremos a nos manifestar. Ainda neste contexto, importa frisar que 0 cardter altamente compromissério de nossa Constituigdo, cujos reflexos também se fizeram sentir na esfera dos direitos 181 CF. K, Hesse. Grundzilge. p. 136-7. 18 Sobre o conceito materialmente aberto de direitos fundamentais na nossa Constituigio, remeternos o leit ao item IV. 4. deste Capitulo, onde uprofundamos o tema, 1 Aqui, inobstante dirigida & Constituigio da Repiblica portuguesa de 1976, hi como se aproveitar a pertinente ligo de J.C. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamemis, p. 101 e ss.. para quem alguns direitos fundamentais. constituem explicitayoes de 1° grau da idéia de dignidade da pessoa humana (vida, liberdade fisica e de consciéneia tc.) ao passo que outros se revelam apenas uma decorréncia destes direitos basicos, completundo-os como explicit ‘goes de 2 grau, de acordo com as circunstincias sociais, econdmieas, politicas e ideol6gicas concretas de cada ordem constitucional. A respeito deste t6pico v., ainda, o nosso Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Costiigio Federal de 1988, p. 89 ss. ‘AEFICACIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS 71 fundamentais, resultou na impossibilidade de se identificar uma teoria (ideologia) dominante neste campo, Por derradeiro, também em nosso direito constitucional po- sitivo nao ha como sustentar a idéia de um sistema distinto, no sentido de auténomo (independente), em relago ao restante do texto constitucional, seja no que concerne aos principios fundamentais (dos quais podem ser deduzidos direitos fundamentai no-escritos), seja no que concerne a parte organizacional, bem como em relagdo as ordens econdmica e social, nas quais, alias, se encontra sediada a maior parte dos direitos fundamentais fora do catdlogo. Postas estas questdes preliminares, ha como concluir, desde jd, que, em se reco- nhecendo a existéncia de um sistema dos direitos fundamentais, este necessariamen- te serd, nao propriamente um sistema l6gico-dedutivo (autOnomo e auto-suficiente), mas, sim, um sistema aberto ¢ flexivel, receptivo a novos contetidos ¢ desenvolvi- mentos, integrado ao restante da ordem constitucional, além de sujeito aos influxos do mundo circundante,"* Este entendimento se harmoniza, de outra parte, com a concepgao, que hoje pode ser tida como dominante na doutrina, de que a propria Constituicao constitui, na condi¢Zo de estatuto juridico fundamental (no sentido ma- terial e formal) da comunidade, ¢ & medida que superada a doutrina liberal-burguesa da rigida separacio entre Estado e sociedade,"*’ um sistema aberto de regras e princf- pios,"* questo esta que nao cabe a nds aprofundar e que, por isso, vai aqui referida a titulo de pressuposto teorético para os efeitos de nosso estudo. Se. por outro lado, é defensavel — também entre nés ~ 0 ponto de vista de que existe uma unidade de sentido cultural, de cunho axiolégico-normativo, na seara dos direitos fundamentais,"” € problema que merece andlise mais detida. Tendo em vista que um certo grau de coeréncia interna é algo inerente 4 nogio de sistema, € possfvel falar de uma unidade do sistema dos direitos fundamentais, que, todavia, como oportunamente lembra Vieira de Andrade, consiste numa unidade apenas relativa, fruto de uma convivéncia marcada pela necessidade de harmonizagao de posigoes juridicas muitas vezes conflitantes entre si, uma vez que correspondentes a valores fundamentais distintos, ligados a situagoes historicamente localizadas, as quais, inobstante sejam resultado da luta hist6rica pela afirmag3o do principio da dignidade da pessoa humana, que constitui o niicleo essencial de todas as reivindica- goes e do qual constituem explicitagdes de maior ou menor grau, nao podem, neste contexto, ser deduzidas diretamente “de um valor dividiria em fragdes de soma igual & unidade”."*8 Independentemente da possibilidade de sustentar-se, relativamente aos direitos fundamentais da Constituicao de 1988, a tese de que, na sua base, radica sempre 0 principio fundamental da dignidade da pessoa humana, o fato € que a coeréncia in- terna do sistema dos direitos fundamentais encontra justificativa — para além de sua 8 Neste sentido. a ligdo de K. Stern, in: HBSIR V, p. 63 ¢ segs.,¢ A. E. Pérez Luo, Los Derechos Fundamen- tales. p. (53. que aponta, neste contexto, para a conexo entre o sistema dos direitos fundamentais ¢ 0 prinefpio dda soberania popular, que assumiria o papel de fundamento axial6gico da legitimidade do sistema dos direitos fundamentais, "85 Assim o entendimento de A. E, Pérez Lufo. Los Derechos Fundamentales, p. 150 es. 16 Esta a posigdo, denire tantos, de J. . Gomes Canotilho, Direito Consttucional, p. 171 es. '87 Ta o entendimento do jurista lustano J. C. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentals, p. 106 € ss. "88 CEJ. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentals, 108-9. 72 oO WOLFONNG A vinculago com um ou mais valores (prinefpios) fundamentais"® — em referenciais fornecidos pelo prdprio direito constitucional positive. Neste sentido, assume papel relevante a norma contida no art. 5°, § 1°, da CF de 1988. de acordo com a qual todos 0s direitos e garantias fundamentais foram elevados & condig&o de normas juridi cas diretamente aplicdveis e, portanto, capazes de gerar efeitos juridicos. Apesar de inexistir norma constitucional destituida de eficacia juridica. o fato é que o princi- pio da aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais diferencia — no sentido de uma juridicidade reforgada — esta categoria especifica das normas constitucionais, outorgando-Ihes, de tal sorte, uma qualidade comum e distintiva e que ainda teremos oportunidade de analisar com mais vagar no curso deste estudo. Da mesma forma, hd que fazer referéncia especial protegdo atribuida ao con- junto dos direitos fundamentais pelo fato de terem sido — ainda que nao exclusi vamente — guindados pelo Constituinte & condigdo de limites materiais & reforma constitucional, incluidos que foram nas assim chamadas “cldusulas pétreas” (art. 60, § 4°, IV) de nossa Lei Fundamental. Os indicadores referidos demonstram, portanto, mesmo que se queira negar a existéncia de um auténtico sistema dos direitos fund: mentais em nossa Constituigao, que, no ménimo, ha como sustentar ~ na esteira de Klaus Stern — uma convergéncia sistémica (Systemkonvergenz)™ nesta seara, com reflexos imediatos no que concerne 2 sua concretizacao, aplicacao e interpretagao. Com base no exposto, verifiea-se que, além de no mfnimo uma relativa unidade de contetido (ou, se quisermos, do reconhecimento de certos elementos comuns), 0 principio da aplicabilidade imediata das normas definidoras de direitos ¢ garantias fundamentais, bem como sua protecao reforgada contra a ago erosiva do legisla- dor, podem ser considerados elementos identificadores da existéncia de um sistema de direitos fundamentais também no direito constitucional patrio, caracterizado por sua abertura ¢ autonomia relativa no ambito do préprio sistema constitucional que integra, E justamente sua autonomia relativa que determina a maneira pela qual se inter-relaciona o sistema dos direitos fundamentais com o restante da Constituicao, de modo especial com sua parte organica e com os dispositivos da ordem econémica € social. Em que pese a posigao privilegiada (inclusive no que conceme a sua forga jurfdica) ocupada pelos direitos fundamentais na Constituigao, de tal sorte que se sustenta até mesmo a maxima hermenéutica de uma interpretactio (das normas cons- titucionais ¢ infraconstitucionais) em harmonia com os direitos fundamentais,”" no hd, a evidéncia, como reconhecer uma relago pautada pela diferenga hierérquica entre estes e as demais normas constitucionais originarias, j4 que invidvel a existén- cia de normas constitucionais origindrias inconstitucionais. A posigiio dos direitos inimo ha como sustentar. na triha de K. Stern, in: HBSIR V, p. 64. a possibilidade de se detectar certo grau de identificagao ou afinidade teleol6gica (releologischer Gemeinsamkeit) entre os direitos fundamentais, na medida ‘em que baseados em deierminadas nodes fundamentais que os vinculam e que lhes so inerentes, isto é, na medida ‘em que apresentam certos elementos comuns. CF. K. Stern, int HBSIR V, p. 63. 49! Sobre a méixima hermenéutica da interpretagdo conforme os direitos fundamentais, v. especialmente J.J. Gomes Canotilho € V. Moreira, Fundamentos, p. 143-4. Entre nés, desponta a magnifica contribuigio de P. Bonavides, Curso de Direito Constiucional, p. $32 € ss.. recomendando-se a letura de todo 0 capitulo sobre a interpretacao dos direitos fundamentais. Especificamente sobre a problematica da interpretagao dos direitos fundamentais.v. também AE, Pérez Luito, Derechos Humanos, p. 284 e ss. 192 Esta a ressalva de K. Stem, in: HBSIR V, p. 56, arimado em ligio de Ulrich Scheuner. [AEFICACIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS 73 ~ relativamente ao restante da ordem constitucional deve, neste contexto, ser anali- sada a Iuz do prinefpio da unidade da Constituicao," resolvendo-se os inevitéveis conflitos por meio dos mecanismos de ponderacdo € harmonizagao dos prinefpios em pauta. Cumpre lembrar, neste contexto, a preciosa ligao do mestre gaticho Juarez Freitas, no sentido de que — a despeito de inexistirem normas constitucionais origina rias inconstitucionais - uma interpretacao sistematica implica, necessariamente, uma hierarquizacdo dos valores em pauta, sem que disto resulte a excluso de um valor constitucional em detrimento de outro. 4.2. A nota da “fundamentalidade” formal e material dos direitos fundamentais na Constituicéo de 1988 Como ja frisado alhures, intrinseca 4 nogdo de direitos fundamentais est, ju tamente, a caracterfstica da fundamentalidade, que, de acordo com a ligio do jusfilé- sofo alemao Robert Alexy, recepcionada na doutrina lusitana por Gomes Canotilho, “aponta para a especial dignidade e proteccdo dos direitos num sentido formal e num sentido material”."* A fundamentalidade formal encontra-se ligada ao direito cons- titucional positivo e resulta dos seguintes aspectos, devidamente adaptados a0 nosso direito constitucionat patrio:'™ a) como parte integrante da Constituigao escrita, os direitos fundamentais situam-se no dpice de todo o ordenamento juridico, de tal sorte que — neste sentido — se cuida de direitos de natureza supralegal;"” b) na qualidade de normas constitucionais, encontram-se submetidos aos limites formais (procedi- mento agravado) e materiais (clausulas pétreas) da reforma constitucional (art. 60 da CF)," cuidando-se, portanto (pelo menos num certo sentido) e como leciona Joxo dos Passos Martins Neto, de direitos pétreos,'® muito embora se possa controverter '93 Neste contexto, cumpre frisar. com base na ligio de J.C. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais, p. 945, que as normas constitucionais que versam sobre a organizagdo econdmica. social e politica podem ser consideradas, de certa forma, a0 mesmo tempo garantias ¢ condides de efetivaco dos direitos fundamentais, sem que com estes. 1 entanto, venham a se confundir. ji que uma diluigio dos direitos Fundamentais na organizago estatal importaria tem desvirtuar e corromper o seu sentido, Importa acrescentar, outrassim, que tal conclusio nao afasta a possihilidade de identificagio de normas consagradoras de direitos fundarrentais fora do catilogo, inclusive na parte org dda Constituigao. tal como ocorre com relativa freqiéncia no direito constitucional pitrio(v., neste sentido, o item 4, infra), "98 Cf. J, Freitas, A Interpretagdo Sistemutica do Direito, p. 138 e ss.¢ 184 ¢ss., onde apresente originale sugestivo decilogo norteador da atividade hermenéutica, além de apontar para o fato de que uma interpretagio sistemtica implica sempre uma hierarquizagio axiol6gica, que, por sua vez, se encontra intimamente ligada a0 principio da unidade da Constiuigdo. Nesta mesma linha situa-se a importante contribuigao de A. Pasqualini, Hermendutica € Sistema Juridica, 9.57 es. '95 J, Gomes Canotitho, Direito Consttueional. p. 09, '96 Entre nds, v.. por tltimo, aderindo a esta concepcio. G. Marmelstein. Curso de Direitos Fundamentais, p. 17 97 Neste sentido. destacando o caréter supralegal dos direitos fundamentais e bem lembrando que embora apenas existam direitos fundamentais constitucionais nem todos os direitos consttucionais sio fundamentais, v. JJ. Solo- zébal Echavarria, “Uma revisin de la teoria de los derechos fundamentales”, in: Revista Juridica da Universidade Aut6noma de Madrid. x° 4 (2001). p. 107 498 0 fato de os direitos fundamentais consttufrem “cliusulas pétreas”, revela que a fundamentalidade formal. neste ccontexto, assume uma dimensio simultaneamente material. Com efeito, o aspecto formal diz com a protesao do texto cconstitucional (onde se encontram positivadas os direitos) contra uma supresso pelo poder reformador. A protegio contudo, € outorgada em virtude da fundamentalidade material dox hens e valores protegidos. ' CF. 1 P, Manins Neto, Direitos Findamentas. Conceito, Fungdo e Tipos. p. 81 ¢ ss. 74 INGO WOLFGANG SARLET a respeito dos limites da prote¢ao outorgada pelo Constituinte, o que ser objeto de anélise na parte final desta obra: c) por derradeiro, cuida-se de normas diretamente aplicdveis e que vinculam de forma imediata as entidades puiblicas e privadas (art. 5°, § 1°, da CF). A fundamentalidade material, por sua vez, decorre da circunsténcia de serem os direitos fundamentais elemento constitutivo da Constituig’o material, contendo decisdes fundamentais sobre a estrutura basica do Estado e da sociedade Inobstante nao necessariamente ligada 4 fundamentalidade formal, é por intermédio do direito constitucional positivo (art. 5°, § 2°, da CF) que a nog&o da fundamentali- dade material permite a abertura da Constituigdo a outros direitos fundamentais no constantes de seu texto e, portanto, apenas materialmente fundamentais, assim como a direitos fundamentais situados fora do catdlogo, mas integrantes da Constituigao formal. ainda que possa controverter-se a respeito da extensio do regime da funda- mentalidade formal a estes direitos apenas materialmente fundamentais, aspecto do qual voltaremos a nos ocupar de forma mais detida no préximo capitulo. Importa considerar, ainda com relagio 4 nota da fundamentalidade dos direitos fundamentais, que somente a andlise do seu contetido permite a verificagao de sua fundamentalidade material, isto é, da circunstancia de conterem, ou nao, decisdes fundamentais sobre a estrutura do Estado e da sociedade, de modo especial, porém, no que diz com a posi¢&io nestes ocupada pela pessoa humana. £, portanto, evidente que uma conceituaco meramente formal, no sentido de serem direitos fundamentais aqueles que como tais foram reconhecidos na Constituigto. revela sua insuficiéncia também para o caso brasileiro, uma vez que a nossa Carta Magna, como ji referido, admite expressamente a existéncia de outros direitos fundamentais que nao os in- tegrantes do catélogo (Titulo II da CE), seja com assento na Constituigo, seja fora desta, além da citcunstancia de que tal conceituagio estritamente formal nada revela sobre 0 contetido (isto é, a matéria propriamente dita) dos direitos fundamentais.* Igualmente problematica — no minimo pelas razdes ja apontadas — parece-nos a ado- do da proposta formulada por Ferrajoli, que advoga uma definicao formal de direitos fundamentais embasada tinica e exclusivamente no critério da titularidade universal, prescindindo da natureza dos interesses e necessidades tutelados, de tal sorte que fundamentais seriam aquelas direitos subjetivos que correspondem universalmente a todos os seres humanos.™® Tal concepcao, examinada a luz da Constituicao de 1988, acabaria por excluir uma série de posigdes juridicas que o ilustre jusfilésofo italia- no considera nfo serem fundamentais, por terem carter eminentemente patrimonial = V. especialmente o item 3.6.3.3. infra. onde exploramos a questio dos direitos fundamentais como limites mate- Tiais ao poder de reforma constitucional. 21 Aqui, seguiue-se a ligo de J.J. Gomes Canotitho. Direito Consttucional. p. S09. baseada em R. Alexy. Theorie der Grandreche,p. 473-5. Cabe ressltar aqui a referencia do propio Alexy no sentido de que o fato de as decisis tobe o contetide das normas de direitos fandamentas incuirem também decises sobre a estuturanormativa fn- damental do Estado e da sociedade decorre do objeto a regulamenta. Assim. verifia-se que questoesigadas & lade eiguaidadendo so questesligadas apenas a setores parciais do Direto, mas. sm, qe se refetem em 080 lera jurdico. surgindo em todas as Sas ramificades. de tl sorte que o problema de sua solu no émbio de cada setorisolaamenteconsiderado nfo se apreventa somo questo especffcs, mas, sim, como questio de natreza fundamental (Theorie der Grandreche. p. 478). 22 Na formulagdo de K. Hesse, Grundziige. p. 125. que. no entanto, se refere a0 direito constitucional alemao, no qual também esté prevista expressamente a existéncia de direitos fundamentais fora do cauélogo. inobstante 0 con- ceito material de dietos fundamentas subjacente& Lei Fundamental de 1549 apresenteaspectos em grande pane Giversos do caso brasileiro 2° CFL. Ferrajoli. Derechos y Garantias..p. 37 € 88.onde 0 autor ainda desenvolve toda uma tipologia dos direitos fundamentais que aqui nBo iremos analisar. ‘A EFICACIA DOS DIFEITOS FUNDAMENTAIS 75 (Ferrajoli distingue os direitos fundamentais dos direitos patrimoniais™), mas que por deciséo expressa do nosso Constituinte integram 0 elenco dos direitos e garan- tias fundamentais do titulo II da nossa Carta Magna. Apenas em carter ilustrativo, basta que se analise a garantia e direito fundamental da propriedade privada para que se verifique que, a despeito de uma possfvel dimensao exclusivamente patrimoniat (que mesmo assim poderia ser tida como fundamental) a propriedade encerra muitas vezes, notadamente em cumprindo a sua fungdo social, um conteddo existencial e vinculado diretamente & propria dignidade da pessoa, como ocorre, por exemplo, com 0 imével que serve de moradia ao titular do dom{nio.”* O desafio que a problematica da conceituagao dos direitos fundamentais suscita vem ocupando a doutrina praticamente desde que 0 renomado embora justamente controverso publicista alemao Carl Schmitt, entre outros expoentes da teoria ¢ dog- matica constitucional do perfodo entre as duas guerras mundiais, clarificou a distin- 0 entre Constituigao em sentido material e formal. Qualquer conceituagao — e so inimeras as definigGes que aqui poderiam ser citadas — de direitos fundamentais que almeje abranger de forma definitiva, completa e abstrata (isto é, com validade uni- versal) 0 contetido material (a fundamentalidade material) dos direitos fundamentais esti fadada, no minimo, a um certo grau de dissociacao da realidade de cada ordem constitucional individualmente considerada. E preciso ter em mente, portanto, que um conceito satisfatério somente poderia ser obtido com relagdo a uma ordem cons- titucional concreta, 0 que apenas vem a confirmar a corregao da afirmagao feita por Javier Jiménez Campo, ao sustentar que uma conceituagdo de direitos fundamentais (que encontram vinculagao necesséria — também para o autor — com uma determinada Constituigao) exige tanto uma determinacao hermenéutica quanto uma construgao dogmitica vinculada ao contexto constitucional vigente™ Com efeito, 0 que é fun- damental para determinado Estado pode nio ser para outro, ou nfo sé-lo da mesma forma, Todavia, nfo hé como desconsiderar a existéncia de categorias universais e consensuais no que diz com a sua fundamentalidade, tais como os valores da vida, da liberdade, da igualdade e da dignidade humana. Contudo, mesmo estes devem ser de- vidamente contextualizados, j4 que igualmente suscetiveis de uma valoragio distinta ¢ condicionada pela realidade social e cultural concreta. No que diz com, ainda, com o sentido da nota distintiva da fundamentalidade de determinados direitos (em relagao a outros, que nao foram expressa ou mesmo im- plicitamente albergados pela Constituigao), € preciso enfatizar que, no sentido juridi co-constitucional, um determinado direito é fundamental néio apenas pela relevancia do bem juridico tutelado em si mesma (por mais importante que 0 seja), mas pela relevancia daquele bem juridico na perspectiva das opgdes do Constituinte, acom- panhada da atribuigdo da hierarquia normativa correspondente € do regime juridico- constitucional assegurado pelo Constituinte as normas de direitos fundamentais2” E 2 Cf. L. Ferrajoli, Derechos y Garantias.. p.45.€ 8. 205 Sobre © contetido em dignidade da pessoa humana da propriedade, v. a notivel contribuigo de L. . Fachin, Estaruto Juridico do Patriménio Minimo, Rio de Janeiro: Renovar, 2001. 26 CE. J, Jiménez Campo. Derechos Fundamentales. Concepto y Garantias,p. 19. 27 Cf. também o magistétio de F. J. Bastida Freijedo, in: Teoria General de las Derechos Fundamentales... cit, 1p. 30-33, cuidando do que designa de fundamentalidade “interna” (uridica) dos direitos fundameniais, destacando, ainda, que, na perspectiva estritamente juridico-positiva, os direitos fundamentais possuem esta qualidade indepen: dentemente de quem & seu titular e de qual aestrutura na qual estio articulados os direitos, o que, de resto, nio implica que 0s direitos fundamentals tenham uma determinada estruturajuridica 76 INGO WOLFGANG SARLET. ~ por esta razio que, na esteira do que ja foi frisado, 0 direito & satide (assim como os demais direitos sociais do art. 6°) é um direito fundamental na Constituigao brasileira de 1988, mas ndo 0 € (a despeito de ninguém questionar a fundamentalidade da satide para a vida e dignidade da pessoa) na Constituigéo Espanhola de 1978, pois naquela ordem constitucional nao Ihe é assegurado o regime juridico equivalente aos direitos fundamentais (0 que nao impede que na esfera dos direitos fundamentais haja pecu- liaridades a considerar) ainda que haja importantes desenvolvimentos no que diz. com 0 reconhecimento de eficacia e aplicabilidade aos assim designados principios direti vos da ordem social. Pela mesma razo, apenas para ilustrar com mais um exemplo, ha Constituigdes, como novamente € 0 caso da brasileira, que asseguram aos direitos dos trabalhadores a sua fundamentalidade, sabendo-se que outras ordens constitu- cionais ndo seguem esta mesma orientagdo, assegurando, e mesmo com variagées importantes, protegio estritamente legal a tais direitos. Isto nao significa dizer, como temos insistido, que seja possfvel reduzir a nogio de direitos fundamentais a um conceito meramente formalista ou mesmo nominal, como sendo apenas os direitos expressamente consagrados como tais, 0 que nos leva ao tema da abertura material do catélogo de direitos, que ser4 desenvolvido logo mais adiante. Especificamente no que tange a0 direito patrio, a construgo de um conceito ao mesmo tempo formal e material dos direitos fundamentais passa inevitavelmente pela andlise do alcance e significado do art. 5°, § 2°, da CF, razio pela qual remete~ mos 6 leitor ao préximo capitulo. O que se pretende, como jé frisado alhures, é—além do aspecto terminolégico ja definido — tracar as linhas-mestras de um conceito cons- titucionalmente adequado dos direitos fundamentais, Importa considerar, ainda, que uma conceituagio de cunho genérico e universal somente parece vidvel, & medida que propositalmente aberta. de modo a permitir a sua permanente adaptagio & luz do direito constitucional positivo. Assim sendo, poderfamos propor a seguinte definicao, baseada — importa ressaltd-lo — no conceito de Robert Alexy, mas que ndo deixa de considerar a abertura material consagrada expressamente pelo direito constitucional positivo patrio. Direitos fundamentais s40, portanto, todas aquelas posigdes juridicas concemnentes as pessoas, que, do ponto de vista do direito constitucional positivo, foram, por seu contetido e importancia (fun- damentalidade em sentido material), integradas ao texto da Constituigao e, portanto, retiradas da esfera de disponibilidade dos poderes constitufdos (fundamentalidade formal), bem como as que, por seu contetido e significado, possam Ihes ser equipa- rados, agregando-se A Constituicao material, tendo, out no, assento na Constituicao formal (aqui considerada a abertura material do Catélogo).*% De resto, uma concei- * Para R, Aleny, Theorie der Grindrechte, p. 407. 0s direitos fundamentals podem ser definides como aquelas posigtes que. do ponto de vista do direito constitucional, sio tdo relevantes, que seu reconhecimento ou nio-re conhecimento ndo pode ser deixado a livre disposigio do legislador ordindrio ("Grundrechte des Grundgesetzes sind Positionen, die vom Standpunkt des Verfassungsrechts aus so wichtig sind, dass ihre Gewahrung oder Nicht- ‘gewUhrung nicht der einfuchen parlamentarischen Mehrheit Uberlasse werden kann"), Tendo em vista a distingio por nds tragada entre direitos humanos e direitos fundamentais, & de tessaltar, neste particular a circunstancia de {que uma conceituagio de direitos humanos, no sentido de posiges juridicas utorgadas a todos os homens de to dos os lugares (na esfera do direito internacional). deve. necessariamente. ter um carter universal e, ao menos em. principio, desvinculado do direito constitucional positivo de determinado Estado. ainda que a este seja, parcial ou {ntegralmente, aplicivel em face da possivel coincidéncia entre o elenco dos direitos hummanos e o dos direitos fun Laurence Tribe. American Constitutional Law. p. 34/5. Sobre o tema, v. ainda, do mesmo autor, 0 recente e ins- tigante The Dnvisible Constitution. Oxford University Press. 2008, especialmente, p. 145 e ss, onde examina aspectos relativos a IX emenda. Entre nés, colacionando exemplos da jurisprudéncia norte-americana no campo dos direitos implicitos. v.. por Gltimo, E. Appio, Direitos das Minorias, Sao Paulo: RT, 2008, p. 95 e ss. 84 INGO WOLFGANG SARLET implicitos, que seriam aqueles subentendidos nas regras das garantias fundamentais, dos direitos individuais decorrentes do regime e dos constantes nos tratados interna- cionais ¢ que (ao contrério dos implicitos) no se encontram expressa ou implicita- mente enumerados.° Esta aparente distingdo (entre direitos implicitos e decorrentes) nos revela parte das indagagdes que suscita a exegese do art. 5°, § 2°, da nossa Carta, Ao contrario da Constituigao portuguesa (art, 16/1), que, no mbito da abertura material do catélogo, se limita a mencionar a possibilidade de outros direitos fundamentais constantes das leis e regras de direito internacional, a nossa Constituigo foi mais além, uma vez que, ao referir os direitos “decorrentes do regime e dos principios”, evidentemente consagrou a existéncia de direitos fundamentais ndo-escritos, que podem ser dedu- 2idos, por via de ato interpretativo, com base nos direitos constantes do “catélogo”, bem como no regime e nos principios fundamentais da nossa Lei Suprema. Assim, sob pena de ficar desvirtuado o sentido da norma, cumpre reconhecer — a despeito de todas as dificuldades que a questo suscita — que, paralelamente aos direitos fun- damentais fora do “catélogo” (com ou sem sede na Constituicao formal), 0 conceito materialmente aberto de direitos fundamentais abrange direitos nfo expressamente positivados. Além disso, em se tomando a distingdo tracada por José Afonso da Silva, verifica-se que a categoria dos “direitos implicitos” (pelo menos na conceituaco que este autor Ihes deu) constitui, na realidade, apenas uma das possibilidades de desen- volvimento calcadas na clausula de abertura do art. 5°, § 2°, da CF, Ademais, salta 08 olhos que o citado preceito abrange, além de direitos fundamentais escritos fora do catélogo (com ou sem assento na Constituigao), os direitos ndo-escritos; ou, se preferirmos a terminologia usual, os direitos “implicitos” ou “decorrentes”, com a ressalva de que estes devem ser considerados em sentido amplo (direitos subentendi- dos nas normas definidoras de direitos e garantias ¢ os decorrentes do regime e dos prinefpios). Sobre este assunto convém, ainda, langar um olhar sobre os cléssicos do nos- so direito constitucional. Além da funcio hermenéutica atribufda ao dispositive que consagrou entre nds a noco de direitos implicitos (decorrentes) e que ja havia sido, dentre outros expoentes da cultura juridica nacional, objeto de liicido comentario por parte de Ruy Barbosa e, posteriormente, por Pontes de Miranda, cumpre referir a ligfio da doutrina no que tange ao desenvolvimento interpretativo dos direitos nio-es- ctitos. Neste particular, vale lembrar a ligo de Carlos Maximiliano que, a0 comentar o art. 144 da CF de 1946 (repisando as suas anotacdes & Constituicao de 1891), apon- tou o seguinte: a Constituigao “nao pode especificar todos os direitos, nem mencionar CF. L.A. Silva, Curso de Direito Constincional Positivo, p. 174, com a ressalva critica de que o autor restringe a nogio de direitos implcitos e decorrentes aos direitos individuais. Além do mais, dé a entender que os direitos implicitos constituem categoria ndo necessariamente vineulada ao ant. 5°, § 2°, da nossa CF. AA utlizagio ~ que se reconhece como passivel de questionamentos sob vérios angulos ~ da expresszo direitos ‘fo-eseritos, no sentido de direitos no direta e explicitamente previstos no texto constitucional, também encontra receptividade por outros autores, como € o caso, na Alemanha, apenas para citar um exemplo, de H. H. Rupp, “Ungeschriebene Grundrechte unter dem Grundgeset2”, in: JZ 2004, p. 157 e ss, O autor, todavia, distingue tais direitos ndo-escrtos (ungeschriebene Grundrechte) das posigdes fundamentais deduzidas, no sentido de abrangidas. pelo ambito de protegao do direito geral de personalidad e do direito geral de liberdade. atribuindo. além disso. 0 _generalizado desinteresse pelo tema dos direitos “ndo-escritos” precisamente & wradigao doutrinria e jurisprudencial de extraic uma srie de direitos do jd referida cliusula geral do artigo 2°. inciso I, da Lei Fundamental Alemd, cola- cionando, de resto, uma série de exemplos, como é 0 caso do diteito & propria imagem, da liberdade contratual e do direito & autodeterminagao informativa, ‘AEFICACIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS 85 todas as liberdades. A lei ordindria, a doutrina e a jurisprudéncia completam a obra. Nenhuma inovacio se tolera em antagonismo com a indole do regime, nem com os principios firmados pelo c6digo supremo. Portanto, nao é constitucional apenas o que esti escrito no estatuto basico, e , sim, o que se deduz do sistema por ele estabelec’ do, bem como 0 conjunto das franquias dos individuos e dos povos universalmente consagrados”.2” Seguindo este entendimento, Alcino Pinto Faleio (igualmente co- mentando 0 art. 144 da Carta de 1946), ap6s citar exemplo extraido da jurisprudéncia argentina (direito de reunido), salientou que o dispositivo citado, além de sua “finali- dade reveladora de direito tem, também, a conservadora de direitos outrora expressos € que, por passarem de atualidade, no mais passaram, na Declaracio de Direitos, a ser expressos”.2* Ainda a este respeito, importa transcrever 0 que talvez tenha sido a posig’o mais contundente, entre nés, em favor desta tese. Para Paulino Jacques, “o Legislador- Constituinte, ao referir os termos ‘regime’ e ‘principios’ quis ensejar o reconhecimen- to ea garantia de outros direitos que as necessidades da vida social e as circunstancias dos tempos pudessem exigir. E uma clausula, por conseguinte, consagradora do prin cfpio da ‘eqiiidade’ ¢ da ‘construco jurisprudencial’, que informam todo o direito anglo-americano, e que, por via dele, penetram no nosso sistema juridico. Também entre nds, nio é a lei a tinica fonte do direito, porque o ‘regime’, quer dizer, a forma de associagao politica (democracia social), e os ‘princfpios’ da Constituigdo (repabli- ca federal presidencialista) geram direitos” que se conclui do exposto € que o conceito materialmente aberto de direitos fundamentais consagrado pelo art. 5°, § 2°, da nossa Constituigdo é de uma amplitude {mpar, encerrando expressamente, ao mesmo tempo, a possibilidade de identificagiio € construgao jurisprudencial de direitos materialmente fundamentais nao escritos (no sentido de ndo expressamente positivados), bem como de direitos fundamentais cons- tantes em outras partes do texto constitucional e nos tratados internacionais. De fato, como jé se afirmou em relagdo & experiéneia lusitana, mas que, neste particular (visto existirem importantes diferengas) guarda sintonia com o sentido amplo que assume a “cléusula de abertura” do art. 5°, § 2°, da Constituigdo Brasileira (ainda ~ e precisa- mente por isto - que no se cuide da nica “porta de entrada” para direitos fundamen: tais nao expressamente positivados como tais no texto constitucional), a abertura do sistema de direitos fundamentais, nas palavras de José de Melo Alexandrino, abrange tanto a previsdo expressa de uma abertura a direitos nao enumerados, quanto a de- dugao de posigdes jusfundamentais por meio da delimitagdo do Ambitorde protegao dos direitos fundamentais, a incluso dos direitos de matriz internacional, bem como a dedugio de normas de direitos fundamentais de outras normas constitucionais.° No caso da formula adotada pelo Constituinte brasileiro, verifica-se que a referéncia a direitos decorrentes do regime e dos principios e a inclusao expressa dos direitos positivados em tratados internacionais, se nao esgota as possibilidades inerentes a 2° CLC. Maximiliano, Comentdrios & Constiuicdo Brasileira, vol. I, p. 175: 28 Cf. A. P. Fale. Constitnigdo Anotada, vol. 1 p. 254, CI. P, Jacques, Curso de Direito Constirucional, p. 453. Saliente-se que o autor também critica veementemente o significado restrito que a doutrina tradicional teria emprestado ao dispositive em exame, analisando-o meramente sob ‘enfoque de sua fungio afastadora do principio do inclusius unius alterius est exelusius. 0 CI. M. Alexandrino, A Esrrumuracdo do sistema de direitos iberdades e garantias na Constituigdo Portuguesa, vol. Il. p. 374-75, 86 INGO WOLFGANG SaRLET abertura material, assume um cardter por si s6 relativamente abrangente, mas que nao dispensa andlise mais detida quanto a sua efetiva amplitude. Tal constatagao é, por outro lado, de suma relevaneia para viabilizar a delimitagao de certos critérios que possam servir de pardmetro na atividade “reveladora” destes direitos. Neste sentido, O citado dispositivo reza que “os direitos e garantias expressos nesta Constituigdo nao excluem outros decorrentes do regime e dos princfpios por ela adotados, ou dos tra- tados internacionais em que a Repiiblica Federativa do Brasil seja parte”. Com apoio no sentido literal da norma e com o objetivo de propiciar um exame mais sistematico da problematica do conceito materialmente aberto de direitos fundamentais em nossa Constituigao, ha que visualizar as diversas alternativas com as quais nos deparamos na anilise do significado e alcance da norma contida no art. 5°, § 2°, da CF, Neste contexto, ousando divergir, em parte, da proposta classificatéria de José Afonso da Silva, e com base no que jé foi exposto relativamente a este ponto (des- considerados, aqui, outros critérios vidveis de classificagaa), j4 podemos sustentar a existéncia de dois grandes grupos de direitos fundamentais, notadamente os direitos expressamente positivados (ou escritos), no sentido de expressamente positivados, € 08 direitos fundamentais nao-escritos, aqui genericamente considerados aqueles que no foram objeto de previsdo expressa pelo direito positivo (constitucional ou internacional). No que conceme ao primeiro grupo, nao existem maiores dificuldades para identificar a existéncia de duas categorias distintas, quais sejam, a dos direitos expressamente previstos no catalogo dos direitos fundamentais ou em outras partes do texto constitucional (direitos com starus constitucional material e formal), bem como 0s direitos fundamentais sediados em tratados internacionais e que igualmente foram expressamente positivados. J4 no que conceme ao segundo grupo, podemos distinguir também duas categorias. A primeira constitui-se dos direitos fundamentais implicitos, no sentido de posigdes fundamentais subentendidas nas normas definido- ras de direitos e garantias fundamentais (aproximando-se da nogio atribufda por J.A. da Silva), ao passo que a segunda categoria corresponde aos direitos fundamentais que a propria norma contida no art. 5°, § 2°, da CF denomina de direitos decorrentes do regime e dos principios.™" Tal classificagao deverd, doravante, servir de referen- cial para o desenvolvimento da anilise da concepcao materialmente aberta dos direi- tos fundamentais em nossa Lei Fundamental, ora intentada Ainda no que tange A classificagio calcada no art. 5°, § 2°, de nossa Le Fundamental, cumpre aludir 4 problemdtica relativa 4 existéncia de direitos funda- mentais com assento na legislagdo infraconstitucional. A respeito da existéncia de direitos materialmente fundamentais oriundos de textos legais infraconstitucionais thipétese que, ao menos a priori no deve ser excluida, no minimo diante do que reza 0 art. 7° da CF), hd que ter a devida cautela, porquanto 0 texto do art. 5°, § 2°, da CF, ao contrério do art. 16/1 da Constituigao portuguesa, nao utiliza a expres- sao “lei”. Neste sentido, lembra Canotilho que Marnoco e Souza, relativamente Averbe-se. no que tange a proposta classificatéria aqui enunciada, a qual, de forma ligeiramente diversa, j8 haviamos esbogado em estudo publicado em margo de 1996 na revista AJURIS n° 66 (posteriormente publicado na RIL n® 131). que. mais recentemente. a classificagao de J. A. da Silva foi também alvo de acertada eritica por parte de F. Piovesan, Direitos Humanos e 0 Direito Constitucional Intemacional. p. 87-9. ds qual apenas divergimos no que concerne a circunstincia de que esta renomada autora agrupa sob a denominagio de implicitos tanto 0 direitos Subentendidos nas regras de garantias, quanto os decorrentes do regime e dos principios de nossa Lei Fundamental ” A respeito deste t6pico, v. também o nosso Dignidade da Pessoa Humana... 3 ed. p. 106-7. Explorando bem este aspecto, confira-se 0 ensaio de C. A. Mello, “Contribuigao para uma teoria hibrida dos direitos de personalidadle” sn: LW. Sarlet (Org), O Novo Cédigo Civil e a Constituigdo, 2003. Desenvolvendo 0 tema na perspectiva do direito comparado, indispensavel 0 estudo de P-Mota Pinto, “Direitos de Petsonalidade no Codigo Civil Portugués © no Novo Cédigo Civil Brasileiro", in: Revista da AJURIS n° 96, Dez. 2004. p. 407-838, +. o acdrdio prolatado no Recurso Extraortinério n° 248.869-1 (07.08.2003), tendo como relator © Ministro ‘Mauricio Corréa. onde resiou mais uma vez consignado que “o direito ao nome insere-se no conceito de dignidade ‘da pessoa humana e traduz a sua identidade. a arigem de sua ancestralidade, o reconhecimento da familia, ra2so pela gual o estado de filiagdo € direito indisponivel 2° Cf, A. B. de Holanda Ferreira, Novo Diciondrio Aurdlio da Lingua Portuguesa. p. 923. = Os alemies, a0 se referirem ao Ambito de protegdo de determinado diseito fundamental valem-se da expresso Schutzbereich, nogio fundamental para a problematica das restrigées aos direitos fundamentais. que aqui nao pode ‘er analisada, 1 qui assumem relevo exemplos extraidos da experiéncia constitucional alema, onde direito geral de liberdade e 42 personalidade, consagrado expressamente no art. 2, inc. I, da Lei Fundamental, abrange as mais variadas posigdes |iridicas fundamentais,tais como a liberdade contratual, a autonomia privada, a liberdade de ago na seara econémi= ca. Neste sentido, v., dentretantos, H-U. Erichsen, in: HBSIR VI. p. 1195 ess. ‘ BFICACIA 00S DIREITOS FUNDAMENTAIS 89 dade, apropriado 0 uso da expressiio de maneira genérica, que, como demonstrado, 6 dissonante de seu real significado, de tal sorte que entendemos mais apropriada a denominacio direitos nio-escritos (ou nio-expressos), que abrange igualmente os direitos implicitos ¢ decorrentes. Seja qual for o critério utilizado (direitos implicitos ou direitos decorrentes do regime ¢ dos princfpios), distingdo que se justifica, tal como frisado, pelo menos em face do enunciado semantico do artigo 5°, § 2°, da CF e da circunstancia de que os principios fundamentais do Titulo Il € outros dispersos na Constituigdo nao ne- cessariamente podem ser considerados, em si mesmo, normas definidoras de direi- tos fundamentais (que atuariam, quando explicitadas no texto constitucional, como fundamento dos direitos implicitas em sentido estrito), 0 fato € que para o art. 5°, § 2° — para 0 efeito de dedugao de posigdes juridicas fundamentais — assume caré- ter essencialmente declaratério (j4 que, em princfpio, desnecessério, pelo menos se considerarmos que implicito é 0 que j& est subentendido). De outra parte — e neste ponto nfio hd como desconsiderar a relevancia da previsio no texto constitucional de “direitos decorrentes do regime ¢ dos principios” — também é certo recordar que além de atuar como uma espécie de autorizagao expressa e permanente “lembrete” para 0 reconhecimento de direitos implicitos em sentido amplo (na condigio de direitos nfio expressamente positivados) a legitimar e até mesmo vincular positivamente a atuacao dos 6rgios jurisdicionais nesta seara, que, nesta perspectiva, nao poderiam deixar de reconhecer um direito implicito no minimo quando tal reconhecimento corresponder, em face das circunstancias, is exigéncias do sistema constitucional. No campo dos direitos implicitos e/ou decorrentes do regime e dos prineipios, vale mencionar alguns exemplos que tém sito citados na doutrina, mas que também ja encontraram aceitagdo na esfera jurisprudencial, ainda que se esteja longe de aleangar um consenso, especialmente (mas nao exclusivamente, importa destacar) no concer- nente ao contetido ¢ alcance destes direitos. Assim, verifica-se que na doutrina mais recente yoltou a ser referido o direito de resisténcia** ou o direito 4 desobediéncia civil? que, embora também possam ser tratados como equivalentes (desde que haja concordancia em termos conceituais) tém sido apresentados com tragos distintos pela doutrina nacional. Também o direito a identidade genética da pessoa humana,” 0 direito & identidade pessoal. as garantias do sigilo fiscal e bancdrio (em geral dedu- zidas, por expressiva parcela da doutrina e jurisprudéncia nacional, do direito a pri vacidade), assim como, mais recentemente, um direito & boa administragio piiblica2* entre outros, revelam nao apenas o quanto j tem sido feito neste esferd, mas também Apostando no direito de resisténcia, confira-se 0 importante contibuto de J. C, Buzanello, Direito de Resisténcia Constitucional, 2003. 258 Sobre o tema, v.a pioneira obra de M. Garcia, Desobediéncia Civil. Direito Fundamemal, 9 ed,, 2004. 25! Em lingua portuguesa, v. entre tantos. 9 notivel ensaio de J.C.S.G. Lourviro, “O direito &identidade genética do ser humana”, in: Pornugal-Brasil Ano 2000. p. 263-389. No Brasil, confira-se a recente ¢ importante contribu de S, R. Petterle. O Direito Fundamental a Ientidade Genética na Constituigdo Brasileira, Porto Alegre: Livearia, cdo Advogado. 2007. bem explorando a fundamentagao deste dieito na Constituigao e apresentando seus contomnos dogmaticos i luz da teoria dos direitos fundamentais, sem descurar da abordagem de exemplos atuais e relevantes, 35 Soe o tema, v.o recente estudo de M.C. de Almeida, DNA e estado de fliagdo a luz da dignidacle humana, p. 117 ess, sublinhando nesta quacra 0 dreito ao conhecimento da origem genética, que, de certa forma, guarda cone- xo com 0 préprio direito (mais amplo) a identidade genética e sua protegio. 55 Cy. a proposta. entre nés inspirado na Carta de Direitos Fundamentais da Uniso Buropéia, J. Freitas, Discricione- riedade administrativa e 0 direito fundamental & boa administragao publica. So Paulo: Malheiros, 2007. 90 INGO WOLFGANG SARLET as possibilidades de desenvolvimento da abertura material do catélogo também no que diz. com os direitos no expressamente positivados, No que conceme ao conitetido, significado e alcance do conceito material de direitos fundamentais, remetemos ao proximo item, onde nos ocuparemos de maneira mais detida destas questes. 4.3.3.2. Critérios referenciais para um conceito material de direitos fundamentais 4.3.3.2.1. Consideragoes introdut6rias: 0 critério implicito da equivaléncia e seu significado. Nada obstante nossa Constituigdo no conheca regra expressa similar a contida no art. 17 da Constituigao Portuguesa, que trata dos “direitos andlogos” 2” no restam diividas de que direitos fundamentais em sentido material somente pode- Fo ser os que por sua substancia (contetido) e importancia possam ser equiparados a0 constantes do catdlogo* nogiio esta que ~ muito embora nao tenha o condao de, por si s6, clarificar quais os critérios para aferir esta equiparagdo — devera servir de fio condutor pata 0 nosso intento de investigar quais as linhas-mestras do conceito material de direitos fundamentais em nossa Constituigao: toda e qualquer posigao juridica, seja ela enquadrada na nocdo de direitos implicitos ou decorrentes, seja ela encontrada na Constituigao (fora do catélogo), ou em algum tratado internacional, deverd, para ser considerada auténtico direito fundamental, equivaler — em seu con- tetido e dignidade ~ aos direitos fundamentais do catélogo. Cuida-se, aqui, de autén- tico principio constitucional implicito deduzido diretamente do art. 5°, § 2°, da no Carta Magna, de tal sorte que, a0 menos neste sentido, também h4 como falar de di- reitos fundamentais “andlogos” no direito constitucional patrio. Em outras palavras, esta relagdo de similitude deve, de certa forma, reger todas as categorias (expressos ou nao-escritos) de direitos fundamentais abrangidas pela regra em exame. Cumpre frisar, contudo, que a equivaléncia entre 0s direitos integrantes do catalogo e as po- sigdes juridicas que se encontram em condigdes de, com base no art. 5°, § 2°.da CF, ser contemplados pela nota da fundamentalidade*” inerente aos primeiros, nao afasta eventuais situacdes de concorréncia e/ou conflitos, por sua natureza inerentes ao sis- tema dos direitos fundamentais, situagao com a qual. por dbvio, nao se confunde. 257 Os direitos fundamentais “andlogos” mencionados no art. 17 da Constituigio Portuguesa de 1976 referem-se to-somente aos direitos, iberdades e garantias do Titulo Il. e ndo aos direitos sociais (Titulo lif), Somente para © primeiro grupo (direitos anilogos) aplica-se o regime espectfico ¢ mais rigoroso dos Direitos, Liberdades e Garamtias, como, por exemplo.o fato de constituirem Fimites materiais para a revisio constitucional. Neste sentido, para efeitos dde uma visio sintéica e panordmica sobre o assunto v.. dentre outros. J. Miranda, ins RDP n* 82 (1987). p. 17 € 8. bbem como J.C. Nabais, in: BMI n° 400 (1990), p. 21e ss. 258 Tal conceituagio pode ser encontrada igualmente no diteito constitucional alemo, onde também se fala em di- reitos fundamentais equiparados ( grundreclisgleiche Rechte), embora nao haja um conscnso sobre a terminologia utitizada, bem como a respeito do alcance da cldusula de abertura. Ressalte-se que o art. 93. ine. n° 4. alfnea a a Lei Fundamental de 1949 equipara alguns dispasitivos da Constituigio aos direitos fundamentais do vatslogo, ‘na medida em que prevé sua protec2o judicial mediante a Reclamagio Constitucional ( Verfassungsbeschwerde). remédio processual interposto por qualquer titular de um direito fundamental diretamente perante o Tribunal Federal Constitucional, com o objetivo especitico de garamtir a proreeao e/ou efetivagdo de determinado direito fundamental A respeito destes direitos fundamentas fora do catélogo no direito constitucional alemio, v., entre outros. K. Stern. Staatsrechu 11/1. p. 358 € ss..e Pieroth-Schlink. Grundrechue. p. 16 2° Também lembrando que a fundamentalidade material € essencial para a revelagio de direitos fora do catilogo expressamente enunciado pelo Constituinte, v. W. C. Rothenburg. “Direitos Fundamentais e suas Caracteristeas” in: ademas de Direito Constitucional e Ciencia Politica n° 29, p. 5516. A EFICACIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS. 91 No que tange especificamente aos direitos fundamentais nao-escritos (implici- tos ou decorrentes do regime e dos principios), hd que atentar para alguns aspectos distintivos. Referentemente ao primeiro grupo, que engloba posicées juridicas fun- damentais subentendidas nas normas de direitos fundamentais integrantes do catd- logo nao hé, salvo melhor juizo, equiparacdo a fazer, uma vez que a propria norma constitucional j4 reconhece — ainda que nao expressamente — 0 direito fundamental nao-escrito (implicito), nela subentendido. Trata-se, portanto, de extrair do texto 0 que nele j4 est contido. Ainda no que diz com os direitos implicitos, desimporta a averiguagao de sua decorréncia do regime e dos principios de nossa Carta, na medida em que esta se refere apenas — ao menos segundo o que leva a crer a redago do art. 5°, § 2°, da CF ~ A categoria dos direitos fundamentais decorrentes, Por derradeiro, convém atentar para a circunstdncia de que a existéncia de direitos fundamentais implicitos, no sentido ora emprestado ao termo, mesmo que possa, sob certo ponto de vista, ser tida como abrangida pela norma contida no art. 5°, § 2°, da nossa Carta, dela nao depende. Os direitos fundamentais implicitos tém, isto sim, sua existéncia indiretamente reconhecida pelo citado preceito constitucional. Assim sendo, tenho para mim que a dedugio de direitos implicitos é algo inerente ao sistema, existindo, ou no, norma permissiva expressa neste sentido. Clarificada a situago peculiar dos direitos fundamentais implicitos, centrar- nos-emos, em nossa andlise, nos direitos fundamentais fora do catélogo, os quais, como visto, podem ser escritos (previstos na Constituicdo ou em tratados interna- cionais), ou decorrentes do regime e dos principios (nfo-escritos), excluindo-se os implicitos, na medida em que subentendidos nas normas definidoras de direitos e garantias fundamentais do catélogo. Aqui sim ha que retornar, novamente, ao prin- cipio diretivo ja enunciado alhures: direitos fundamentais fora do catalogo somente poderdo ser os que ~ constem, ou nao, do texto constitucional — por seu contetido € importéncia possam ser equiparados aos integrantes do rol elencado no Titulo I de nossa Lei Fundamental. Ambos os critérios (substancia e relevancia) se encontram agregados entre si e sio imprescindiveis para 0 conceito materialmente aberto de direitos fundamentais. Nao ha como olvidar, neste contexto, que a opgio do Constituinte, ao erigir certa matéria a categoria de direito fundamental, se baseia na efetiva importancia que aquela possui para a comunidade em determinado momento histérico, circunstancia esta indispensdvel para que determinada posigao juridica possa ser qualificada como fundamental. Nao € & toa que autores do porte de um Alexy conceituam os direitos fundamentais como sendo aquelas posigdes juridicas que, do ponto de vista do direi to constitucional, séo de tal sorte relevantes para a comunidade, que nao podem ser deixadas na esfera da disponibilidade absoluta do legislador ordindrio.*" Ressalta, aqui, por outro lado, a dimensio axiolégica dos direitos fundamentais, expressando valores consensualmente reconhecidos no meio social, salientando-se, todavia, que '! No direito constitucional germanico, onde também se reconheveu. na doutrina e na jurisprudéncia, a existéncia de direitos fundamentais ndo-escritos. a problemitica da deducdo destas posigdes juridicas fundamentais subentendidas ‘ou implicitas € tratada como uma operago hermenéutica, inexistindo norma expressa a este respeito. Tanto é, que Alexy, Theorie der Grundrechte. p. 454-5, ainda que limitado a0 Ambito dos direitos sociais (direitos a prestagies em sentido estrito), nos fala de direitos fundamentais interpretaivamente deduzidos interpretativ :ugeordnete Grundre ‘chte). Neste sentido, reportamo-nos aqui aos exemplos jd citados, pilida amostra das possibilidades nesta seara, 281 Cf. R, Alexy. Theorie der Grundrechte. p. 407. 92 INGO WOLFGANG SARLET tal consenso pode, como de resto nao é incomum que acontega, corresponder apenas a uma solugao de cunho compromissério e contingencial, fruto do embate das forgas politicas participes do processo constituinte, sem que, de fato, radique na vontade auténtica e dominante do povo, titular por exceléncia do Poder Constituinte. Na iden- tificacdo dos direitos fundamentais fora do catalogo, e isto convém seja novamente frisado, importa, portanto, que se tenha sempre presente 0 critério da importincia, atentando-se para a efetiva correspondéncia com o sentido juridico dominante, cuja avaliago dependerd, sem diivida, da sensibilidade do intérprete. No que diz com o segundo critério de equiparagao, qual seja, o do contetido, impoe-se, preliminarmente, a referéncia de que nos movemos. também aqui, em ter- reno marcado por forte dose de subjetividade. Num primeiro momento, hd que aten- tar para a circunstincia de que a deciso de se ter determinada posigao juridica tida como equiparada & dos direitos fundamentais do catdlogo pressupde um minimo de clareza no concemnente ao paradigma escolhido. Em outras palavras, que saibamos identificar 0 que caracteriza a matéria dos direitos fundamentais de acordo com o di- reito constitucional positivo vigente. Nao se cuida de efetuar andlise isolada de um ou outro preceito do catélogo, mas, sim. de lancar um pouco de luz sobre os elementos comuns, em principio, ao contetido de todos 0s direitos fundamentais do Titulo II de nossa Carta Magna e que, portanto, pode ser considerado como matéria dos direitos fundamentais, e nao de um ou outro dispositivo isolado. Importante, por ora, € termos bem presente aquilo a que nos referimos quando sustentamos a necesséria equipara- io (ou, no ménimo, similitude), no que diz com seu contetido e importancia, entre 0s direitos fundamentais localizados em outras partes do texto constitucional, nos tratados internacionais, ou mesmo decorrentes do regime e dos principios de nossa Constituigio, com as posigdes juridicas fundamentais contempladas expressamente no catdlogo. 4.3.3.2.2. Principios fundamentais e direitos fundamentais, com especial aten- sao para o principio da dignidade da pessoa humana. Uma primeira tarefa com a qual nos deparamos ao tentar fazer a exegese do art. 5°, § 2°, da CF, diz com o sig- nificado e alcance das expresses “regime” e “principios”. A luz das consideragdes tecidas, parece razoavel o entendimento de que o citado preceito constitucional se refere as disposigdes contidas no Titulo I, arts. I° a 4° (Dos Principios Fundamentais), onde também se encontram delineados os contornos basics do Estado social e demo- critico de Direito que identifica a nossa Republica. Neste titulo, além do regime da democracia social (ou simplesmente democratico, para utilizar terminologia menos sujeita a controvérsias), consagrado pela nossa Carta, encontram-se expressos os fundamentos, objetivos e princfpios fundamentais que regem o Estado brasileiro, seja em nivel interno, seja na esfera das relagdes internacionais. Somente nesta acep¢ao, Relembre-se, neste sentido. a ligio de P. Jacques, Curso de Direito Consttucional, p. 453, que, inobstante vincu- laa 3 ConsttuigZo de 1967 (69). mantém sua atualidade. na medida em que a expressdo “regime” evidentemente se ‘efere ao regime politico da social democracia que (ao menos ainda) caracteriza preponderantemente a nossa ordem constitucional, independentemente de eventuais mudancas substanciais que possam surgir no decorrer do atual pro- cesso de reforma da Constituigdo. Atente-se, contudo, para a circunstincia de que este sentido outorgado 0 termo “regime” niio encontra suporte em norma constitucional expressa, decorrendo de uma exegese sistemtica das diver- sas normas que integram o Titulo I da nossa Cana. Além disso, cumpre lembrar que a CF nio consugrou de forma direta o regime da social democracia, o qual ~ independentemente da composigio das forgas politicas que exercem © poder e abstrafdo de qualquer conotagio politico-partidaria — deffui da indiscutivel caracterizago da nossa repablica federativa coma um Estado social e democritico de Diteito. ao menos no plano juridico-positiva, ‘AEFICAGIA 00S DIREITOS FUNDAMENTAIS 93 salvo melhor jufzo, as expressdes “regime” e “principios” podem ser inseridas no contexto de um conceito material. Caso contrario, tendo em mente que a Constituigao se encontra, mesmo fora do Ambito do Titulo I, repleta de normas de carater princi- piolégico, poderfamos chegar ao extremo de criar novos direitos fundamentais com apoio em qualquer outra disposigiio contida na Constituigilo, de modo especial nas diversas (¢ no so poucas) normas de cunho organizacional e programético, 0 que certamente conduziria a uma ampliagdo ndo muito ttil e, certamente, ainda menos desejavel do catdlogo. Assim, verifica-se que 08 direitos fundamentais decorrentes do regime ¢ dos prinefpios, conforme denominagao expressamente outorgada pelo art. 5°, § 2°, da CF, sio posig6es juridicas material e formalmente fundamentais fora do catalogo (Titulo It), diretamente deduzidas do regime e dos principios fundamentais da Constituigao, considerados como tais aqueles previstos no Titulo I (arts. 1° a 4°) de nossa Carta, exegese que se impde até mesmo em homenagem A especial dignidade dos direitos fundamentais na ordem constitucional. Além disso, importa relembrar que também 05 direitos decorrentes do regime e dos princfpios devem guardar, de acordo com 0 critério jé enunciado, a necesséria relacao de sintonia (importancia equiparada) com 05 direitos do catélogo. De acordo com a redacio do art. 5°, § 2°, da nossa Constituigdo, poder-se-ia, a0 menos em principio, sustentar que apenas os direitos fundamentais decorrentes do regime e dos principios se encontram umbilicalmente vinculados aos princfpios fundamentais consagrados no Titulo I de nossa Lei Fundamental. no sentido de que os demais direitos fundamentais localizados fora do catélogo (na Constituigao ou em tratados internacionais) ndo so — ou no precisam ser — necessariamente decorrentes daqueles. Todavia, ainda que se cuide, como jé ressaltado quando enunciamos nossa proposta classificatéria dos direitos fundamentais, de categorias distintas entre si, 0 fato € que tanto os direitos integrantes do catélogo, quanto os que Ihe so estranhos (escritos, ou nao) guardam alguma relagio ~ ainda que diversa no que tange ao seu contetido e intensidade — com os principios fundamentais de nossa Carta Magna. Neste contexto, basta apontar para alguns exemplos para verificarmos esta estreita vinculagio entre os direitos e os princfpios fundamentais. Assim, ndo hé como negar que os direitos A vida, bem como os direitos de liberdade e de igualdade correspon dem diretamente As exigéncias mais elementares da dignidade da pessoa humana, Da mesma forma. os direitos politicos (de modo especial, 0 sufrdgio, 0 voto ¢ a possi- bilidade de concorrer a cargos péblicos eletivos) sto manifestagdes do principio de- mocratico ¢ da soberania popular. Igualmente, percebe-se, desde logo, que boa parte dos direitos sociais radica tanto no principio da dignidade da pessoa humana (satide, educagao, etc,), quanto nos principios que, entre nés, consagram 0 Estado social de Direito. Ainda que seja invidvel o aprofundamento de todos os aspectos ligados a esta problemética, que, alids, refoge em muito aos estreitos limites desta investigagio, nio nos podemos furtar — sob pena de pecarmos por flagrante omissio — a tecer a0 menos algumas consideragdes em torno do tema. No minimo, impée-se breve exame da maneira pela qual os prinefpios fundamentais integram (se € que é este 0 caso) matéria dos direitos fundamentais. Pela sua particular relevancia para esta andlise, centrar-nos-emos no principio fundamental da dignidade da pessoa humana. No que conceme & construgiio dos elementos de identificagio de um conceito material de direitos fundamentais, € na doutrina constitucional lusitana que pode- 94 INGO WOLFGANG SARLET mos encontrar uma das formulagdes mais interessantes e préximas de nds, de modo especial em face da similitude de ambas as ordens constitucionais e da notéria in- fluéncia do direito constitucional portugués sobre 0 nosso, 0 que por si $6 ja justif a nossa escolha. Cuida-se da proposta formulada pelo Professor Vieira de Andrade, da Universidade de Coimbra, que, entre outros aspectos a serem analisados, iden- tifica os direitos fundamentais por seu contetido comum baseado no principio da dignidade da pessoa humana,** que, segundo sustenta, é concretizado pelo reconhe- cimento e positivagio de direitos e garantias fundamentais.* Posigdo semelhante foi, recentemente, adotada na doutrina patria, sugerindo que o prinefpio da dignidade da pessoa humana, expressamente enunciado pelo art, 1°, ine. III, da nossa CF, além de constituir o valor unificador de todos os direitos fundamentais,*® que, na verda- de, so uma coneretizagao daquele principio, também cumpre funcio legitimatéria do reconhecimento de direitos fundamentais implicitos, decorrentes ou previstos em tratados internacionais, revelando, de tal sorte, sua intima relagdo com o art. 5°, § 2°, de nossa Lei Fundamental. Cuida-se de posigdes exemplificativamente referidas e que expressam o pensamento de boa parte da melhor doutrina, de modo especial no que tange a intima vinculagao entre o princfpio da dignidade da pessoa humana ¢ os direitos fundamentais, a Embora nfo seja nossa intengao adentrar aqui de forma aprofundada o fascinan- te exame que sem diivida merece o principio da dignidade da pessoa humana, ha que apontar, no minimo, para a circunstancia de que a tese enunciada, no sentido de que todos os direitos fundamentais encontram sua vertente no principio da dignidade da pessoa humana e de que este — justamente por este motivo — pode ser tido como elemento comum A matéria dos direitos fundamentais, merece ser encarada, ao menos de inicio, com certa reserva. Em primeiro lugar, parece oportuna a meng — de modo especial & luz de nosso direito constitucional positivo — de que se revela no minimo passivel de discussdo a qualificago do prinefpio da dignidade da pessoa humana, considerado em si mesmo, como um auténtico direito fundamental auténomo, em que pese sua importante funcao, seja como elemento referencial para a aplicagao interpretacao dos direitos fundamentais (mas no s6 deste), seja na condigio de fundamento para a dedugio de direitos fundamentais decorrentes."* De outra parte, € 28 Tendo em conta a edicao do nosso Dignidade da Pessoa Humana ¢ Direitos Fundamentais na Constituigao Federal de 1988, Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2001 (com sua sétima edig30 revista. aualzada langada em 2009) deixamos aqui de proceder. salvo em alguns pontos, a ma revisio e atualizago da parte relativa ao principio 4a dignidade da pessoa humana, femetendo o leitorinteressado em mais informagies e referéncias especificas para a leitura da obra ora referida. CEJ. Vieira de Andrade. Direitos Fundamentals. p. 83 es *8 Cf, ontre nds. a lembranga de F. Piovesan,“Dircitos Humanos ¢o Prinepio da Dignidade Humana”. in: G. Salo- mio Leite (Org.), Dos princpios consttucionais. p. 192. e, no ambito da dovtsina portuguesa, P.Fereira da Cunha, Teoria da Consituigdo Hl. p. 265. No mesmo sentido, J. L. Ces Egaia. Derecho Constitucional chileno, Tomo Up. 40. refere que a dignidade da pessoa humana atua como font e eimento dos direitos fundamentas CB Pereira de Farias, Colisto de Diretos.p. 54 > Ci, dentretantos. a enfitica formulagio de J. Machado . Liberdade de Expressdo. p. 389. no sentido de que 0 princi da dignidade da pessoa humana “consubstancia um limite axiol6gico ao poder constitute e um padao Yalorativo dus actividades de crasio,interpetacio e aplicacio das normas juridicas”. > Sua incluso no Titulo 1. ao lado dos demais priefpios fundamentas, sugere que 0 Constituinte outorgou 20 principio da dignidade da pessoa humana funglo que tanscende a de um direito fundamental. De qualquer modo. reconhecendose que do principio da dignidade da pessoa humana decorrem posigdesjuridico-fundamentais, no nos parece vive falar de um direto i dignidade. no sentido de que ao ser humano seja concedida a digndade que Ihe € dnerente. Sobre tal ponto,contudo, voltaremos a nos manifesta. A EFICACIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS 95 aqui centramos a nossa critica, basta um breve olhar sobre 0 nosso extenso catdlogo dos direitos fundamentais para que tenhamos diividas fundadas a respeito da alega- Gio de que todas as posigdes juridicas ali reconhecidas possuem necessariamente um contetido diretamente fundado no valor maior da dignidade da pessoa humana, Nao pretendendo polemizar especificadamente as diversas hipéteses que aqui podem ser referidas, reportamo-nos, a titulo meramente exemplificativo, ao art. 5°, ines. XVIII ¢ XXI, XXV, XXVIII, XXIX, XXXI, XXXVIH, bem como ao art. 7°, incs. XI, XXVI, XXIX, sem mencionar outros exemplos que poderiam facilmente ser garimpados no catélogo constitucional dos direitos fundamentais.° Sem adentrarmos, ainda, 0 exame de mérito dos questionamentos efetuados € que se legitimam em face das especifidades decorrentes do direito constitucional patrio, verificamos, desde logo, ser indispensdvel uma compreensto prévia do sig- nificado e do contetido do prinefpio da dignidade da pessoa humana, bem como de sua eficacia juridica. Assim, mesmo nao sendo possivel — no contexto deste estudo — muito mais do que uma suméria andlise destas questdes, nao ha como negligenciar por completo 0 exame da matéria, sob pena de pecarmos por omissio e prejudicar- mos substancialmente a compreensio do conceito material de direitos fundamentais consagrado pela nossa Lei Fundamental. A Constituigio de 1988 foi a primeira na hist6ria do constitucionalismo pa- trio a prever um titulo préprio destinado aos princfpios fundamentais, situado — em homenagem ao especial significado e fungao destes ~ na parte inaugural do texto, logo ap6s o preambulo e antes dos direitos fundamentais. Mediante tal expediente, © Constituinte deixou transparecer de forma clara e inequivoca a sua inteng&o de outorgar aos princfpios fundamentais a qualidade de normas embasadoras e infor- mativas de toda a ordem constitucional, inclusive dos direitos fundamentais, que também integram aquilo que se pode denominar de niicleo essencial da Constituiga0 material. Igualmente sem precedentes em nossa evolugao constitucional foi o reco- nhecimento, no Ambito do direito positivo, do principio fundamental da dignidade da pessoa humana (art. 1°, inc. III, da CF), que nfio foi objeto de previsio no direito anterior. Mesmo fora do Ambito dos princfpios fundamentais, 0 valor da dignidade da pessoa humana foi objeto de previsao por parte do Constituinte, seja quando estabeleceu que a ordem econdmica tem por fim assegurar a todos uma existéncia digna (art. 170, caput), seja quando, no Ambito da ordem social, fundou 0 plane- jamento familiar nos principios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsavel (art. 226, § 6°), além de assegurar a crianca e ao adolescente o direito a dignidade (art. 227, caput). Assim, ao menos neste final de século, o principio da dignidade da pessoa humana mereceu a devida atengiio na esfera do nosso direito constitucional. Importa consignar, neste contexto, que 0 constitucionalismo nacional nao che- gou a constituir excegdo, em se tomando como parametro a evolugio constitucional na esfera internacional. A positivagao do principio da dignidade da pessoa humana é relativamente recente, ainda mais em se considerando as origens remotas a que pode 2 No mesmo sentido, manifestando fundado ceticismo em relagdo & corrente afirmagdo de que os direitos funda- mentais (ainda mais quando compreendidos como direitos constitucionalmente assegurados) enconteam todos ura Fundamento direto na dignidade da pessoa humana, v., com razbes adicionais, J. M, Alexandrino, A estruturagiio do sistema de direitos, liberdades e garantias na Constiwicao Portuguesa, vol. I, p. 325 € Ss. 96 INGO WOLFGANG SARLET ser reconduzido. Apenas neste século e, ressalvada uma ou outra excecao. tio- somente a partir da Segunda Guerra Mundial, o valor fundamental da dignidade da pessoa humana passou a ser reconhecido expressamente nas Constituigdes, de modo especial apés ter sido consagrado pela Declaragao Universal da ONU de 1948." Ainda assim, muitos Estados integrantes da comunidade internacional nao chegaram a inserir o principio da dignidade da pessoa humana em seus textos constitucionais. Para fins ilustrativos, parece oportuno seja langado um olhar sobre o direito compara- do, Dentre os paises da Unido Européia, apenas as Constituigées da Alemanha (art. 1°, inc. 1), Espanha (preambulo ¢ art. 10.1), Grécia (art. 2°, ine. 1), Irlanda (preambulo) ¢ Portugal (art. 1°) consagraram expressamente principio. No Ambito do Mercosil, apenas a Constituigd0 do Brasil (art. 1°, inc. III) e a do Paraguai (preambulo) guinda- ram o valor da dignidade ao starus de norma fundamental. No que tange aos demais Estados americanos,”” cumpre citar as Constituigdes de Cuba (art. 8°) e da Venezuela (preambulo), além de uma referéncia indireta ao valor da dignidade da pessoa hu- mana enconirada na Constituigao do Peru, na qual so reconhecidos outros direitos além dos expressamente positivados, desde que derivem da dignidade humana, da soberania popular, do Estado Social e Democratico de Direito e da forma republicana (art. 4°). Na Constituigao da Guatemala, fala-se, no preambulo, da primazia da pessoa humana, ao passo que no art. 4° se consagra o prinefpio da isonomia (todos sao iguais em dignidade e direitos). Também a Constituigao do Chile estabelece, no seu artigo 1°, que os homens nascem livres ¢ iguais em direitos. Assim, ainda que incompleto © quadro apresentado, estes exemplos garimpados no direito comparado ilustram de forma representativa que o valor da dignidade da pessoa humana, ao menos nesta formulagiio e no que tange A sua expressa previsio pelo direito positivo, ainda nao se integrou de forma definitiva e preponderante as Constituigdes de nosso tempo Entre os intimeros aspectos que poderiam ser analisados nesta abordagem do principio da dignidade da pessoa humana, iremos priorizar trés, que reputamos de especial relevancia para os propésitos deste capitulo. Assim, num primeiro momento, impde-se que tecamos algumas consideragdes em torno do significado e do contetido do principio da dignidade da pessoa humana. Numa segunda etapa, haveremos de nos ocupar com a caracterizagao do principio da dignidade da pessoa humana como norma jurfdica, bem assim com as funcdes que exerce como tal. Por derradeiro, de- veremos dispender algum tempo com a posigdo ocupada pelo princfpio da dignidade 29 4 Constiuigio Alem’ de 1919 (Constituigdo de Weimar) ja havia previsto em seu texto o principio da dignidade humana, estabelecendo em seu art. 151, ine. 1, que o objetivo maior da ordem econdmica € o de garantir uma exis téncia humana digna. Também podem ser citadas os exemplos da Constituigdo Portuguesa de 1933 (art.6, n° 3) ea ‘Constituigdo da Irlanda de 1937 (predmbulo). Neste sentido, v. E. Denninger, in: AK 1. p. 275-6. de onde foram extraidos 0s exemplos citados na nota antece- dente ‘As ConsttuigSes da Inia (art, 27, inc. I) e da Turquia (ar. 17, ine. II). em que pese ndo terem reconhecido © principio da dignidade da pessoa humana em dispositivo auténomo. no deixaram de mencionslo, proibindo aplicagio de penas desumanas (Itilia) ou que atentem contra a dignidade da pessoa humana (Turquia). 1 as Const tuigdes da Bélgica, Dinamarca, Holanda e Luxemburgo no mencionam o valor da dignidade da pessoa humana entre ‘08 Seus principios ou direitos fundamentais (Os exemplos relativos aos Estados americanos foram extraidos das diversas contribuigdes individuais (relatérios dos palses) que integram a obra coletiva organizada por D. Garcia Balaunde. F, Femandez Segado ¢ R, Hernandes Valle, Los Sistemas Constitucionales Iberoamericanos, onde podemos encontrar interessante sinopse das ordens ‘constitucionais da Espanha e dos pafses da América Latina e do Sul. inclusive 0 relato apresentado por José Afonso da Silva sobre o Brasil ‘AEFICACIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS. 97 da pessoa humana no Ambito da concepgao materialmente aberta de direitos funda- mentais consagrada pela nossa Constituigao. Com 0 reconhecimento expresso, no titulo dos principios fundamentais, da dig- nidade da pessoa humana como um dos fundamentos do nosso Estado Democratico (e Social) de Direito (art. 1°, inc. III, da CF), o Constituinte de 1987/88, além de ter tomado uma decisao fundamental a respeito do sentido, da finalidade e da justifi do exercicio do poder estatal e do préprio Estado. reconheceu expressamente que & 0 Estado que existe em funcZo da pessoa humana, e nao 0 contrério, j4 que o homem constitui a finalidade precfpua, ¢ nao meio da atividade estatal.2* Em outras palavras, de acordo com a ligdo de Jorge Reis Novais, no momento em que a dignidade é guindada & condigao de principio constitucional estruturante e fundamento do Estado Democratico de Direito, é 0 Estado que passa a servir como instrumento para a garan- tia e promogao da dignidade das pessoas individual e coletivamente consideradas.”" Ainda que se possa controverter a respeito da afirmagao de que 0 Constituinte tenha tido a intengdo de instaurar, também entre nés, uma ordem constitucional embasada no direito natural, mas dotada de plena eficdcia normativa2” 0 fato € que nao ha como desconsiderar, de forma absoluta, a vertente filos6fica e histérica do principio ¢ sua intima relagao com a doutrina jusnaturalista Sem entrarmos, ainda, no significado (ou nos significados), que se pode hoje atribuir ao principio da dignidade da pessoa humana, cumpre ressaltar, de inicio, que a idéia do valor da pessoa humana encontra suas raizes j4 no pensamento classico e na ideologia crista. Tanto no Antigo quanto no Novo Testamento podemos encontrar referéncias no sentido de que o homem foi criado & imagem e semelhanga de Deus, premissa da qual 0 cristianismo extraiu a conseqiiéncia de que o ser humano € dotado de um valor préprio e que Ihe € intrfnseco, nao podendo ser transformado em mero objeto ou instrumento2™ Se, por um lado, a dignidade (dignitas) da pessoa humana no Ambito do pensamento classico significava a posigdo social ocupada pelo indivi- duo e o seu grau de reconhecimento pelos demais membros da comunidade, de tal sorte que € possivel falar-se em uma dignidade maior ou menor, por outro lado, a dignidade era tida como a qualidade que, por ser inerente ao ser humano, o distinguia das demais criaturas, concluindo-se, neste sentido, que todos os seres humanos sao dotados da mesma dignidade.*” Esta nocao de dignidade, sustentada de modo espe- 24 Neste sentido. oportuna a lio de P. Badura, Staatsrecht,p, 87, que, apesar de formulada relativamente ao ditcito alemdo (art. 1° in. I. da Lei Fundamental de 1949), se revela perfeitamente aplicavel entre nds, em face qa similar posigo outorgada por ambas as ordens constitucionais ao principio da dignidade da pessoa humana. Como oportu- rnamente eonsigna R. Zippelius, in: BK. p. 7, com a positivagaio do principio da dignidade da pessoa humana no inicio do texto da Lei Fundamental, procurou-se expressar uma clara ¢ inequivoca reagdo ao regime totalitério nazista e ‘concepeao de que "tu no és nada, mas o Estado 6 tudo” Ainda que o regime autoritério instaurado entre nds peta di- tadura militar nao possa ser comparado com a experiéncia nacional-socialistaalem, 0 fato é que também aqui o valor ‘da pessoa humana e seus direitos mais elementares foram objeto de desconsideragio e de degradacio pelo Estado, de tal sorte que, entre outros aspectos. ndo resiam diividas de que também o Consttuinte de 1987/88 reconheceu expres- samente 0 valor de dignidade da pessoa humana como prinefpio fundamental, de modo espevial como reag3o contra ‘© regime autoritirio anterior. Alls, eulda-se de processo similar ao ocorrido em outras ordens consttucionais, sais ‘comoa de Portugal e da Espanha. onde a especial posigio da dignidade da pessoa humara e dos direitos fundamentais também estéestreitamente vinculada is experiéncias autortirias antes vivenciadas naqueles paises. 25Cy, A, Bleckmann, Die Grundreclue, p. 539 PCE J. R. Novais, Os principios constitucionais estruturantes da Repiiblica Pormguesa, p. 52 277 Na Alemanha, tal concepeo foi sustentada recentemente por W. Holling, in: M. Sachs (Org). Grundgesets, p. 101 eS Starck, in: JZ 1981, p. 459-60, [Neste sentido. dentre outros. 2° Cf, Podlech, int AK I, p.275. 98 INGO WOLFGANG SARLET cial no ambito da filosofia estéica. encontra-se, por sua vez. intimamente vinculada & nogdo da liberdade pessoal de cada individuo (o homem como ser livre e responsavel por seus atos e seu destino), bem como a idéia de que todos os homens, no que tange A sua natureza humana, so iguais em dignidade.® A concepciio de inspiragio crist € estdica continuou a ser sustentada durante a Idade Média, tendo sido Tomas de Aquino quem expressamente chegou a fazer uso do termo “dignitas humana”, no que foi secundado, j4 em plena Renascenga e no limiar da [dade Moderna, pelo humanista liano Pico de Mirandola, que, partindo da racionalidade como qualidade peculiar inerente ao ser humano, sustentou ser esta que Ihe possibilita construir de forma livre e independente sua prdpria existéncia e seu préprio destino." Para a afirmagao da idéia de dignidade humana, foi especialmente preciosa a contribuigao do espanhol Francisco de Vitoria, quando, no século XVI e no infcio da expansio colonial espanhola, sustentou, relativamente ao processo de aniquilagao, exploracao e escravizaco dos indios e baseado no pensamento estéico (especialme- ne Cicero e Ovidio) € cristo, que estes, em funco do direito natural e de sua natu reza humana ~ e nao pelo fato de serem cristios, catélicos ou protestantes — eram em prinefpio livres e iguais, devendo ser respeitados como sujeitos de direitos, proprie- Larios e na condigao de signatdrios dos contratos firmados com a coroa2* No ambito do pensamento jusnaturalista dos séculos XVII e XVIII. a concepgio da dignidade da pessoa humana, assim como a idéia do direito natural em si, passou por um pro- cesso de racionalizagao e laicizagio, mantendo-se, todavia. a nocio fundamental da igualdade de todos os homens em dignidade e liberdade. Destacam-se, neste perfodo, os nomes de Samuel Pufendorf, para quem mesmo o monarca deveria respeitar a dig nidade da pessoa humana, considerada esta como a liberdade do ser humano de optar de acordo com sua razio e de agir conforme seu entendimento e sua op¢io,* bem como o de Immanuel Kant, cuja concepgao de dignidade parte da autonomia ética do ser humano, considerando esta (a autonomia), como fundamento da dignidade do homem, além de sustentar que 0 ser humano (0 individuo) ndo pode ser tratado — nem por ele prdprio ~ como mero objeto. Em que pese a existéncia de diversos autores de renome, tais como Marx. Merleau-Ponty e Skinner, que tenham negado qualquer tentativa de fundamentagio religiosa ou metafisica da dignidade da pessoa humana. e apesar das desastr experiéneias pelas quais tem passado a humanidade, de modo especial neste sécu- lo, 0 fato é que esta continua, talvez mais do que nunca, a ocupar um lugar cen- tral no pensamento filos6fico, politico ¢ jurfdico, do que da conta sua qualificagao CE, R. Zippelius. in: BK. p. 8-9, com referéncia ao pensamento de Cicero, > Neste sentido. a igo de K. Stem, Staatsreci LVL. . 7. Cf. M. Kriele, Binftinung in die S taatslehre. 212. 28 Cf, também M. Kriele, Einflhrung in die Staaislehire. p. 214. bem como Podlech. AK I. p. 275. Para C. Starck, in: JZ.1981, p. 460. Pufendorf fundamenta sua concepsao de dignidade na natureza social do ser humano, considerando 2 dignidade da pessoa humana como a base da liberdade elicamente vinculada e da igualdade dos homens. > Neste sentido, dentre outros, Podlech, in: AK I. p. 275. € R. Zippelius. in: BK. p. 9. 2 assim cf. C, Starck, in: 1Z 1981, p, 461-2. Neste contexto. cumpre citar a ligdo de M. Kriele. Einflhrung in die Staanslehre, p. 215-6. pata quem a corrente mais forte que se opés i concepao da dignidade da pessoa humana © os direitos humanos ela decorrentes foi a ética wilitarista, principalmente de Bentham. que justificou restrigdes e agressGes 20s direitos humanos em fungdo dos valores de natureza permanente da comunidade ou da humanidade fem seu todo (a infelicidade de um ou de alguns justifica a maior felicidade da maioria), chancetando. por exemplo, priticas como a escravidio e 6 exterminio de povos indigenas. ‘AEFICACIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS 99 como valor fundamental da ordem juridica por parte de um expressivo niimero de Constituigdes. Da concepgio jusnaturalista remanesce, sem diivida, a constatagao de que uma Constituigao que — de forma direta ou indireta - consagra a idéia da digni dade da pessoa humana justamente parte do pressuposto de que o homem, em virtude o-somente de sua condi¢ao bioldgica humana ¢ independentemente de qualquer outra circunstancia, é titular de direitos que devem ser reconhecidos e respeitados pelos seus semelhantes e pelo Estado. Nada obstante as consideracdes até agora tecidas ja tenham langado um pouco de luz sobre o significado e 0 contetido do principio da dignidade da pessoa humana, no ha como negar que uma definigdo clara do que seja efetivamente esta dignidade ndo parece ser possfvel, uma vez que se cuida de conceit de contornos vagos e im- precisos.” Com efeito, como bem averba José de Melo Alexandrino, em passagem que transcrevemos na integra, “o principio da dignidade da pessoa humana parece pertencer aquele lote de realidades particularmente avessas a claridade, chegando a dar a impress de se obscurecer na razao directa do esforgo despendido para 0 cla- rificar”.2* Mesmo assim, nao restam dividas de que a dignidade é algo real, jé que io se verifica maior dificuldade em identificar as situagdes em que € espezinhada e agredida® Além disso, a doutrina e a jurisprudéncia cuidaram, ao longo do tempo, de estabelecer os contornos basicos do conceito e coneretizar 0 seu contetido, ainda que nao se possa falar em uma definigao genérica e abstrata consensualmente acei- ta.™ Neste contexto, costuma apontar-se corretamente para a circunstincia de que © prinefpio da dignidade humana constitui uma categoria axiolégica aberta, sendo inadequado conceitud-lo de maneira fixista, ainda mais quando se verifica que uma definigdo desta natureza nao harmoniza com o pluralismo e a diversidade de valores que se manifestam nas sociedades democriticas contemporaneas.®" Ha que reconhe- cer, portanto, que também 0 contetido do conceito de dignidade da pessoa humana (a exemplo de intimeros outros preceitos de contornos vagos ¢ abertos) carece de uma delimitagio pela praxis constitucional, tarefa que incumbe a todos os Srgdos estatais.? Inicialmente, cumpre salientar que a dignidade, como qualidade intrinseca da pessoa humana, é algo que simplesmente existe, sendo irrenuncidvel ¢ inalienavel, 2% Neste sentido, a conclusio de M. Keiele, Eoyfihrung in die Staatslehre, p. 214. que oportunamente aponta par ‘a circunstincia de que foi justamente a idéia de que o homem. por sua mera natureza humana, é titular de direitos ppossibilitou 0 reconhecimento dos direitos humanos ¢ a proteciio também das fracas e dos excluidos, ¢ nlo apenas dos que foram contemplados com direitos pela lei, por contratos, em virtude de sua posigdo social ob econdmica 27 Neste sentido, dentre tants. a ligio de Maunz/Zippelius, Dewssches Staatsrecht. p. 179. Entre nds, C. L. Antunes Rocha, “O principio da dignidade da pessoa humana e a exclusio social”. in; Interesse Piblico n® 4 (1999). p. 24, ressaltou a “porosidade e ambiglidade” do principio. 288 CEJ. M, Alexandrino, “Perfil constitucional da dignidade da pessoa humana: um esboso tragado a partir da variedade de concepedes”, in: Estudos em Honra ao Professor Dour José de Oliveira Ascensdo, vol. 1, Coimbra: Almedina, 2008. p. 481 © Esta a oportuna advertencia de J. Tischner, in: BéckenfOrde ¢ outro (Org.), Menschenrechte und Menschemwiirde, p.3l7, 2 Neste contexto, cumpre referir a ligdo de P. Hiberle, in: HBStR 1. p. 853. para quem se revela indispensével 1 utlizagdo de exemplos concretos para obter uma aproximagdo com o conceito de dignidade da pessoa humana. salientando, além disso, a imporncia de um preenchimento desta nogdo “de haixo para cima”, no sentido de que a propria ordem juridica infraconstitucional fornece material para a definiglo dos contornos do conceito. 21 CEE. Pereira de Farias, Colisdo de Direitos. p. 50, arsimado nas ligSes de Gomes Canotlho ¢ Celso Lafer. 2° Cr, averba R. Zippelius. in: BK. p. M4. 100 INGO WOLFGANG SARLET na medida em que constitui elemento que qualifica o ser humano como tal e dele nao pode ser destacado, de tal sorte que no se pode cogitar na possibilidade de determi- nada pessoa ser titular de uma pretenstio a que Ihe seja concedida a dignidade.™ Esta, portanto, como elemento integrante e irrenunciavel da natureza da pessoa humana, é algo que se reconhece, respeita e protege, mas ndo que possa ser criado ou Ihe possa ser retirado, ja que existe em cada ser humano como algo que Ihe é inerente. Nao é, portanto, sem raz&o que se sustentou até mesmo a desnecessidade de uma definigdo juridica da dignidade da pessoa humana, na medida em que, em iiltima anélise, se cuida do valor préprio, da natureza do ser humano como tal." Além disso, como jé visto, nao se deve olvidar que a dignidade independe das circunstancias concretas, sendo algo inerente a toda e qualquer pessoa humana, de tal sorte que todos ~ mesmo maior dos criminosos ~ sao iguais em dignidade. Alids, nao € outro o entendimento que subjaz ao art. 1° da Declaragio Universal da ONU (1948). segundo o qual “todos (08 seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de raziio e de consciéncia, devem agir uns para com os outros em espirito e fraternidade.” Na formulagdo feliz de Jorge Miranda, 0 fato de os seres humanos (todos) serem dotados de razio e consciéncia representada justamente o denominador co- mum a todos os homens e que expressa em que consiste sua igualdade.”* Também o Tribunal Constitucional da Espanha, inspirado igualmente na Declaracdio Universal, manifestou-se — em decisao proferida em 1985 — no sentido de que “a dignidade € um valor espiritual ¢ moral inerente & pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminagao consciente e responsavel da propria vida e que leva consigo a pre- tensio ao respeito por parte dos demais” 2” Nesta mesma linha, situa-se a doutrina de Giinter Diirig, considerado um dos principais comentadores da Lei Fundamental da Alemanha e um dos expoentes do constitucionalismo germanico na segunda metade deste século. Segundo este renomado autor, a dignidade da pessoa humana consiste no fato de que “cada ser humano é humano por forga de seu espirito, que o distingue da natureza impessoal e que o capacita para, com base em sua propria decisao, tor- nar-se consciente de si mesmo, de autodeterminar a sua conduta, bem como de for- matar a sua existéncia e o meio que 0 circunda”.* A luz do que dispde a Declaracio Universal da ONU, bem como dos entendimentos citados a titulo exemplificativo, verifica-se que o elemento nuclear da dignidade da pessoa humana parece residir ~ € a doutrina majoritdria conforta este entendimento — primordialmente na autonomia e no direito de autodeterminacao da pessoa (de cada pessoa).2” Importa, contudo, ter presente a circunstancia de que esta liberdade (autonomia) é considerada em abstrato, como sendo a capacidade potencial que cada ser humano tem de autoderminar sua 23 sia a ligdo de G. Dirrig, in: AOR n° 81 (1956). 0.9. 24 Cf. a formulagiio de K. Stem, Staatsrecht III/I. p. 6. 25 Neste sentido. a ponderagio de H.C. Nipperdey, in: Neumann/Nipperdey/Scheuner (Org). Die Grundrechite. vol. Hepa © Cf. J. Miranda, Manual IV. p. 168. 257 Deciso extrafda da obra de F, Rubio Llorente (Org). Derechos Fundamentales y Principios Constitucionales, pn. *8 Cf. G. Dusig. in: AOR n°81 (1956), p. 125, Na medida em que fizemos uma tadugio lvee do texto orginal em emo e para que se possa afere a correo do trabalho, pasamos a tanscrevero trecho raduzido: “eder Mensch ist Mensch kraft seines Geistes der im abheb von der unpersonlichen Natur und ibn aus eigener Entscheidung dazu befohigt seiner selbst hewusst za werden, sich selbst u bestimmen und sich und die Umwelt 2u gestae 2*°Cf, A. Bleckmann, Die Grndrechte, p. 541 ‘NEFICAGIA 00S DIREITOS FUNDAMENTAIS 101 conduta, ndo dependendo da sua efetiva realizagdo no caso da pessoa em conereto, de tal sorte que também o absolutamente incapaz (por exemplo, o portador de grave deficiéncia mental) possui exatamente a mesma dignidade que qualquer outro ser humano fisica e mentalmente capaz.” Ressalte-se, por oportuno, que com isso estamos a sustentar a equiparagdo entre as nogdes de dignidade e liberdade, j4 que, como veremos, a liberdade e, por conseqiiéncia, 0 reconhecimento e a garantia de direitos de liberdade constituem uma das principais (se nao a principal) exigéncias do principio da dignidade da pessoa humana. Por outro lado, ha quem aponte para o fato de que a dignidade da pessoa humana no deve ser considerada exclusivamente como algo inerente a natureza do homem (no sentido de uma qualidade inata), na medida em que a dignidade também possui um sentido cultural, sendo fruto do trabalho de diversas geragdes e da humanidade em seu todo, raziio pela qual a dimensao natural e a dimensio cultural da dignidade da pessoa humana se complementam e interagem mutuamente.™" E justamente neste sentido que assume particular relevancia a constatacdo de que a dignidade da pessoa humana é simultaneamente limite ¢ tarefa dos poderes estatais. Na condigdo de limite da atividade dos poderes piiblicos, a dignidade necessariamente é algo que pertence a cada um e que ndo pode ser perdido ou alienado, porquanto, deixando de existir, nao haveria mais limite a ser respeitado (considerado o elemento fixo ¢ imutavel da dignidade). Como tarefa imposta ao Estado, a dignidade da pessoa humana reclama que este guie as suas agdes tanto no sentido de preservar a dignidade existente ou até mesmo de criar condig&es que possibilitem o pleno exercicio da dignidade, sendo, portanto dependente (a dignidade) da ordem comunitiia, j4 que € de se perquitir até que ponto € possivel ao individuo realizar, ele préprio, parcial ou totalmente suas necessidades existenciais basicas ou se necessita, para tanto, do concurso do Estado ‘ou da comunidade (este seria 0 elemento mutavel da dignidade):** Ainda no que tange a clarificagao do sentido da dignidade da pessoa humana importa considerar que apenas a dignidade de determinada (ou de determinadas) pe soa € passivel de ser destespeitada, inexistindo atentados contra a dignidade da pes: soa humana em abstrato.” Vinculada a esta idéia, que jé transparecia no pensamento kantiano, encontra-se a concepgao de que a dignidade constitui atributo da pessoa humana individualmente considerada, e nao de um ser ideal ou abstrato, nao sendo licito confundir as nogdes de dignidade da pessoa humana e dignidade humana (da humanidade). Verifica-se, neste contexto, que o Constituinte de 87/88 acolheu esta distingdo, consagrando o prinefpio da dignidade da pessoa humana (e naé da dignida- de humana) entre os princfpios fundamentais de nossa Carta. Por outro lado, nao se descarta uma dimensio comunitiria (ou social) da dig- nidade da pessoa humana, na medida em que todos so iguais em dignidade e como tais convivem em determinada comunidade ou grupo. Neste contexto, assume relevo Neste sentido. a ligio de G, Dirig. im: AOR n 81 (1956). p. 125. que. com base neste ponto de vist, sustenta que ‘mesmo 0 consentimento do ofendido ndo descaracteri2a uma efetiva agresio 2 dignidade da pessoa. Pelo mesmo ‘motivo. também o naseituro, sendo que os rellexos da dignidade atingem até mesmo o corpo humano apés a morte 291 Esta lgdo de P. Haberle, in: HBSIR 1. p. 860. 2 respeito da dignidade da pessoa humana Sob 0 aspecto de limite e tarefa do Estado, v. Podlech, in: AK I, p 280 20° Esta era a lgfo de H.C. Nipperdey. in: Neumann/Nipperdey/Scheuener (Org). Die Grundrecite, vo. I, p.3 204 Neste sentido, v.J. Miranda, Manual 1V.p. 168. Assim também K, Sten, Staasrecht Hl, p, 11 102 INGO WOLFGANG SARLET a ligdo de Pérez Luiio, que, arrimado na doutrina de Werner Maihofer, sustenta uma dimensio intersubjetiva da dignidade, partindo da situag3o basiea do ser humano em sua relagtio com os demais (do ser com 0s outros), a0 invés de fazé-lo em fungi do homem singular, limitado a sua esfera individual. Mesmo assim, nao se admite, em principio, o sacrificio da dignidade pessoal em favor da comunidade,™ jé que a dignidade, como (ao menos também) qualidade inerente a cada ser humano, deste ndo pode ser retirada, perdendo-a apenas quando Ihe faltar a vida, sem prejuizo dos ~ ja reconhecidos — efeitos post mortem da dignidade. Quanto a possibilidade de se estabelecerem limites (restrig6es) 4 autonomia e liberdade pessoal, nao restam duividas de que estas nao se encontram vedadas. Até que ponto, contudo, a propria dignidade é disponivel, no sentido de estar, ou nao, sujeita a restrigdes, € tema sobre © qual voltaremos a nos manifestar, Outra indagacdo que desafia uma anilise mais aprofundada diz com a contextualizagao histérico-cultural da dignidade da pessoa humana. Com efeito, é de perguntar-se até que ponto a dignidade nao esté acima das especifidades culturais, que, muitas vezes, justificam atos que, para a maior parte da humanidade sio considerados atentatérios & dignidade da pessoa humana, mas que para determinados povos sao tidos como legitimos. Esta é, sem diivida, apenas mais uma das questes que aqui haveremos de deixar em aberto. Com base em tudo que até agora foi exposto, verifica-se que reduzir a uma formula abstrata e genérica aquilo que constitui o conteddo da dignidade da pessoa humana, em outras palavras, seu Ambito de protegio, nao parece ser possivel, a no ser mediante a devida andlise no caso concreto. Como ponto de partida, vale citar a formula desenvolvida na Alemanha por Gunter Diirig, para quem a dignidade da pessoa humana poderia ser considerada atingida sempre que a pessoa concreta (0 individuo) fosse rebaixada a objeto, a mero instrument, tratada como uma coisa, em outras palavras, na descaracterizagdo da pessoa humana como sujeito de direitos.” Esta formula, por evidente, nao oferece uma solugdo global para o problema (j4 que niio define previamente o que deve ser protegido), mas permite a verificagdo, no caso concreto, da existéncia de uma efetiva agresstio contra a dignidade da pessoa humana, fornecendo, ao menos, uma diregio a ser seguida, A doutrina e a jurisprudéneia encar- regaram-se, contudo, de identificar algumas posigdes que integram 0 Ambito de prote- do da dignidade da pessoa humana, ao menos de acordo com as circunstancias atuais, € que, portanto, constituem exigéncias diretas e essenciais do principio ora em exame. Assim, no restam diividas de que a dignidade da pessoa humana engloba ne- cessariamente 0 respeito e a protegio da integridade fisica e corporal do individuo, do que decorrem, por exemplo, a proibigdo da pena de morte, da tortura, das penas de natureza corporal, da utilizago da pessoa humana para experiéncias cientificas, limitagdes aos meios de prova (utilizagdo de detector de mentiras), regras relativas aos transplantes de drgios, etc.%® Neste sentido, diz-se que, para a preservagio da 3°5 Cf, A. E, Pérez Luho, Derechos Humanos. p. 318. Esta também parece ser a posigio de J. Miranda, Manual IV, p. 171 e 8s, Destacando a dimensio intersubjetiva da dignidade, v. a recente e notivel contribuigdo sobre o tema de J.C. Goncalves Loureiro. “O Direito a Identidade Genética do Ser Humano”. in: Portugal-Brasil Ano 2000, p. 281. sustentando que a dignidade da pessoa humana “alicerga uma obrigagio geral de respeito da pessoa, traduzida num feixe de deveres e direitos correlativos”. 3 Neste sentido. dentre outros, J. Mira Neves. 3 Cf, G, Dirig. in: AOR n° 81 (1956). p. 127. 3 Assim, dentre tantos, HUMing, i: M, Sac! 1a. Manual IV, p. 172. que. por sua vee. se valeu da ligdo de Castanheira [AEFICACIA DOS DIREITOS FUNDAMENTA'S 103 dignidade da pessoa humana. se torna indispensdvel nao tratar as pessoas de tal modo que se thes torne impossfvel representar a contingéncia de seu préprio corpo como momento de sua prépria, auténoma e responsével individualidade.** Uma outra di- mensao intimamente associada ao valor da dignidade da pessoa humana consiste na garantia de condigdes justas € adequadas de vida para o individuo e sua familia, contexto no qual assumem relevo de modo especial 0s direitos sociais a0 trabalho, a um sistema efetivo de seguridade social, em diltima anilise, & protegiio da pessoa contra as necessidades de ordem material e A asseguragfio de uma existéncia com dignidade2” Para além disso, constitui pressuposto essencial para o respeito da dignidade da pessoa humana a garantia da isonomia de todos os seres humanos, que néio podem ser submetidos a tratamento discriminatério e arbitrério, razo pela qual sao intolerdveis a escravidio, a discriminaco racial, perseguigGes em virtude de motives religiosos, ete! Também a garantia da identidade (no sentido de autonomia e integridade psi- guica ¢ intelectual) pessoal do individuo constitui uma das principais expressdes do principio da dignidade da pessoa humana, concretizando-se, dentre outros aspectos, na liberdade de consciéncia, de pensamento, de culto, na protegao da intimidade, da honra, da esfera privada. enfim, de tudo que esteja associado ao livre desenvolvimen- to de sua personalidade,? bem como ao direito de autoderminacdo sobre os assuntos que dizem respeito & sua esfera particular, assim como & garantia de um espaco pri- vativo no Ambito do qual o individuo se encontra resguardado contra ingeréncias na sua esfera pessoal. Na medida em que o exercicio do poder constitui permanente ameaga para a dignidade da pessoa humana, ha quem considere a limitagao do poder como uma exigéncia diretamente decorrente desta, acarretando, dentre outras con- seqiléncias, a necessidade de se tolerarem ingeréncias na esfera pessoal apenas com base na lei e desde que resguardado o prinefpio da proporcionalidade.* O que se percebe, em tiltima andlise, € que onde nao houver respeito pela vida € pela integridade fisica do ser humano, onde as condigdes mfnimas para uma exis- téncia digna nao forem asseguradas, onde a intimidade e identidade do individuo forem objeto de ingeréncias indevidas, onde sua igualdade relativamente aos demais niio for garantida, bem como onde nfo houver limitagdo do poder, nao haverd espaco para a dignidade da pessoa humana, e esta ndo passard de mero objeto de arbitrio ¢ injustigas. A concepgao do homem-objeto, como visto, constitui justamente a antitese da nogio da dignidade da pessoa humana.’ * CF. Podlech. in: AK J. p. 288. Neste content, vale referirdecisto do Tribunal Constitucional espanol, ne qual foi econhecida a evima vinevlagio entre o principio da dignidade da pessoa humana eo dieito a vida, consideran- do ~ ambos “como el punto de arranque. como el prius 6gico y omtolégico para la existencia y especificaicn de Jos demas derechos (Sentenga de 1985, citada por F. Rubio Llorente (Org), Derechos Fundameniales y Principios Constinicionates. p. 723, 3! Neste sentido, dentre outros, v. Hofling, in: M. Sachs (Org.), Grundgese ippelius, Deusches Staatsrecht p. 182, Podlech, AK 1p. 282-3 31 Cf, Podlech, AK J, p. 283-4, € Hofling, in: M. Sachs (Org.), Grindgeserz, p. 110. 3" 4 respeito destes aspectos, v. Héfling. in: M. Sachs (Org.), Grundgeserz, p. 110 ss..e Podlech, in: AK J. p. 285-7. 313 Cf, Maunz-Zippelius, Deutsches Staatsrecht. p. 181-2. 314 Bsta a ligdo de Podlech. in: AK I, p. 287-8. 35 Neste sentido. também se posiciona M. C. Bodin de Morais, “O conceito de dignidade da pessoa humana, substra- to.axiol6gico conteddo normativo” in| W. Suet (org), Consituigdo, Diretas Fundamentais e Direlto Privado, p 117, que. além disso. propée sugestivo desdobramento da dignidade (com base no seu substralo material) em quatro outros prneipios, quas sejam. oda igualdade. da integridagefsicae moral (pscoffsica, da liberdade ed slidaie- 1p. 109-10. Assim também Maunz- 104 co woLrGaNG carer Apés estas breves consideragdes em torno da definigao e do contetido do prin- cipio da dignidade da pessoa humana, importa avaliar seu status juridico-normativo no Ambito de nosso ordenamento constitucional. Se nas outras ordens constitucionais onde a dignidade da pessoa humana foi objeto de expressa previsio no texto da Lei Fundamental nem sempre houve clareza quanto ao seu correto enquadramento,." tal nao ocorre entre nds. Inspirando-se no constitucionalismo portugués e espanhol, 0 Constituinte de 1987/88 preferiu nao incluir a dignidade da pessoa humana no rol dos direitos e garantias fundamentais, dando-Ihe — pela primeira vez ~ 0 tratamento de prinefpio fundamental da nossa atual Constituig2o (art. 1°, inc, IIT). Alids, 0 en- quadramento como principio fundamental é justamente 0 que melhor afina com a doutrina luso-brasileira dominante,*” encontrando suporte igualmente no Ambito da doutrina espanhola."* Nao se cuidando, portanto, de auténtico e tipico direito funda- mental, tal nao significa, por outro lado, que do princfpio fundamental da dignidade da pessoa humana no possam ser deduzidas posigdes juridico-fundamentais escritas, inclusive de natureza subjetiva, © que, alids, foi expressamente considerado pelo art. 5°, § 2°, da CF de 1988, que trata dos direitos decorrentes do regime e dos principios, bem como dos constantes em tratados internacionais. Da mesma forma, no se deve esquecer 0 fato de que os direitos fundamentais, ao menos de modo geral, podem (e assim efetivamente o so) ser considerados concretizagdes das exigéncias do princfpio da dignidade da pessoa humana, aspecto sobre 0 qual voltaremos a nos manifestar. Num primeiro momento, a qualificagao da dignidade da pessoa humana como principio fundamental traduz a certeza de que o art. 1°, inc, III, de nossa Lei Fundamental ndo contém apenas uma declaragao de contetido ético e moral (que ela, em tiltima andlise, nao deixa de ter), mas que constitui norma juridico-positi- va com status constitucional e, como tal, dotada de eficacia, transformando-se de tal sorte, para além da dimensio ética j apontada, em valor juridico fundamental da comunidade.” Importa considerar, neste contexto, que, na condigao de principio fundamental, a dignidade da pessoa humana constitui valor-guia ndo apenas dos di- reitos fundamentais, mas de toda a ordem constitucional, razio pela qual se justifica plenamente sua caracterizagi0 como principio constitucional de maior hierarquia axiol6gico-valorativa (hdchstes wertserzendes Verfassungsprinzip).™ Nesta perspec dade, proposta esta que. em termos gers, harmoniza plenamente com os diversos elementos da dignidade da pessoa humana (¢ 08 respectivos direitos fundamentals) jf apontados. 3'6 Assim ocorre, por exemplo. na Alemanha, onde, inexistindo titulo auténomo para os principios fundamentais, a signidade da pessoa humana consta no catélogo dos direitos fundamentais (at. inc.) Sendo considera simulta neamente um dieto fundamental e um principio fundamental da ordem de valores objtive, havendo, condo, quem ne gue o carter de dreto fundamental da dignidage da pessoa humana Sobre este tema. v. denre tans. K. Stem Suasrecit HI, p.22e ss. Assia também Maunz-Zippelius. Deusches Starsrecht.p. 180, Podlesh, in AK 1 p. 293, ¢ Hfling, irr: M, Sachs (Org.), Grundgeserz, p. 102. 37 Cf, entre nés, E. Percira de Farias, Colisio de Direitos, p. 48 e ss. No dircito lusitano, v. especialmente as ligbes. de J Miranda, in: Esidos sobre a Constinigdo, p. 14 ss. bem como..J. Gomes Canotilho eV. Moreira, Const tiga da Repibica Portguesa Anorada, v0. 1.p. 70 3'8 Neste sentido, por exemplo, A.E. Pérez Lufio, Derechos Humanas. p. 180 ¢ ss. que se refere & dignidade da pessoa humana como “principio-gis del Estado de Derecho” e “valor bésico (Grndwert)fondamentador ce los derechos humanos" +9 Esta, em outras palavras, a ligio de E. Benda, in: HBVAR J, p. 164, que, inobstante dirigida ao art. 1°, ine. 1. da Lei Fundamental de Bonn (1949) se revela plenamente compativel com a posiglo outorgada pelo Constitute de 1987788 ao principio da dignidade da pesson humana. 9 CL, K. Stem, Staatsrecht IIV/I, p. 3. ‘NEFICACIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS 105 tiva, verifica-se ampla convergéncia a respeito da nogdo de que a dignidade da pessoa humana, designadamente como principio fundamental estruturante (o que nao exclui sua condico de regra), confere e assegura uma certa unidade axiol6gica ou unidade de sentido ao sistema dos direitos fundamentais, 0 que, todavia, como bem aponta José de Melo Alexandrino, nao afasta uma série de aspectos probleméticos, a come- car pela ampla gama de contetidos e dimenses que se atribui 4 nogdo de dignidade da pessoa humana em si, bem como na nio necessariamente linear incontroversa relagio entre a dignidade e os direitos fundamentais.** De acordo com a ligdo de Pérez Lufio, “a dignidade da pessoa humana cons- titui no apenas a garantia negativa de que a pessoa nao sera objeto de ofensas ou humilhagGes, mas implica também, num sentido positivo, o pleno desenvolvimento da personalidade de cada individu” Partindo-se desta atirmacao de tudo o que até agora foi exposto, hd que delinear ao menos os contornos do significado juridico do principio fundamental da dignidade da pessoa humana, partindo-se, desde ja, da premissa de que todas as normas constitucionais, inclusive as que expressam prinef- pios, so dotadas de alguma eficécia juridica. Neste contexto, no restam diividas de que toda a atividade estatal e todos os drgiios piblicos se encontram vinculados pelo prinefpio da dignidade da pessoa humana, impondo-lhes, neste sentido, um dever de respeito € protegiio, que s¢ exprime tanto na obrigagio por parte do Estado de abs- ter-se de ingeréncias na esfera individual que sejam contririas 4 dignidade pessoal, quanto no dever de protegé-la contra agressdes por parte de terceiros, seja qual for sua procedéncia® Assim. percebe-se, desde logo, que o principio da dignidade da pessoa humana nao apenas impde um dever de abstencao (respeito), mas também condutas positivas tendentes a efetivar e proteger a dignidade do individuo. Sustenta- se, nesta linha de pensamento, que a concretizagiio do programa normativo do prin- cipio da dignidade da pessoa humana incumbe aos érgiios estatais, especialmente, contudo, ao legisiador, encarregado de edificar uma ordem juridica que corresponda as exigéncias do principio. Neste contexto, agrega-se a nogao de que a dignidade da pessoa humana integra a assim designada ordem puiblica dos Estados que a con- sagram, cuidando-se (notadamente no que diz com 0 niicleo essencial do principio da dignidade humana e dos direitos fundamentais que the so inerentes) tanto de um fundamento para a limitagao de direitos fundamentais (restringem-se direitos em prot da garantia da dignidade) quanto de um limite dos limites, ou seja, de uma barreira contra limitagdes efetuadas em proveito de outros bens fundamentais.% De outra CE.J.M. Alexandrino, A Estruuragdo do sistema de direitos, liberdades e garanias na Constituigdo Portuguesa, vol Il p. 306 ess CF. A. E. Pérer Luo. Derechos Humanos, p. 318, artimado na conhecida obra de Emst Bloch sobre 0 direito natural e a dignidade humana, 5° Neste semtido. a liglo de K. Stern, Staarsrecht TH/I, p. 28-9, e, mais recentemente, Hofling. in: M. Sachs (Org). Grundgeserz p. 14. Ao contrario da Lei Fundamental da Alemanha, onde hi disposicao expressa impondo no Estado ‘odever de respeito e protegao (art. 1°, ine. 1). 2 Constituigao patria silencia a este respeito. Todavia, no se vishumbra qualquer dbice a esta exegese do significado juriico do principio mesmo entre nds. Sobre a vinculago de toda a atividade estatal ao principio da dignidade da pessoa, v., entre nds, especialmente J. Freitas, O Controle dos Atos ‘Adminisirativas e os Prinefpios Funcdamentais. p. 52 ss "Cf. Hofling, in: M. Sachs (Org.). Grundgesets. p. 114. 525 Neste sentido, v. especialmente o nosso Dignidade da Pessoa Hunan. p. 118 ¢ 88. No mesmo sentido, ¥. entre ‘outros. especialmente L. F.C. Freitas, Diretos Fundamentas, Limitese Restrigdes, p.220. ss. bem como, J.R. Novais, (0s princfpios constiucionais estruturantes da Repiiblica Portuguesa, p. 62-63, embora o tera dos assim designados limites a0s limites dos direitos fundamentas tenha sido objeto de estudo especifica. com amplo desenvolvimento, na 106 NGO WOLFGANG SARLET parte, como oportunamente registra Nadia de Araijo, assume relevo a fungao da di nidade da pessoa humana (na condigao de elemento da ordem publica) como critério material para impedir a aplicagao de normas e atos juridicos esirangeiros na ordem interna, quando ofensivas 8 dignidade da pessoa e aos direitos fundamentais, tudo a ensejar uma releitura do proprio Direito Internacional Privado."* De outra banda, impde-se seja ressaltada a fungdo instrumental integradora e hermenéutica do principio," na medida em que este serve de parametro para a aplic: 40, interpretagao e integractio nao apenas dos direitos fundamentais e do restante das normas constitucionais, mas de todo o ordenamento juridico, imprimindo-lhe, além disso, sua coeréncia interna."* Um exemplo desta aplicacdo do principio da dignida- de da pessoa humana pode ser identificado na leitura necessariamente ampliada do enunciado textual do artigo 5°, caput, da Constituigdo Brasileira de 1988, naquilo em que se pode sustentar que todos os direitos fundamentais inerentes & protecio e pro- mocao da dignidade da pessoa humana também devem ser assegurados aos estrangei- ros nao residentes no Pais, na perspectiva do que reza o principio da universalidade tal qual aplicado & titularidade dos direitos fundamentais.*® Esta eficdcia de natureza juridico-objetiva nao se restringe a estes aspectos, assumindo ainda maior relevancia quando se verifica que o principio da dignidade da pessoa humana constitui, em ver- dade, uma norma legitimadora de toda a ordem estatal e comunitaria, demonstrando, em tiltima andlise, que a nossa Constituigao é, acima de tudo, a Constituicio da pes- soa humana por exceléncia. Neste sentido, costuma afirmar-se que 0 exercicio do poder e a ordem estatal em seu todo apenas serdo legitimos caso se pautarem pelo respeito e protectio da dignidade da pessoa humana. Assim. a dignidade constitui verdadeira condigao da democracia, que dela nfio pode livremente dispor.™ Questo complexa e que inevitavelmente assume crucial importincia diz com a possibilidade de se fixarem limitagdes & dignidade da pessoa humana. Ao contrario, por exemplo, da Lei Fundamental da Alemanha, onde o principio (e direito funda- mental) foi inclufdo no rol das assim denominadas “cléusulas pétreas”, constituindo limite material expresso a0 poder de reforma constitucional (art. 79, inc. III), tal nao se verifica nossa Constituigaio. Além disso, também nao previu 0 nosso Constituinte de 1987/88 a intangibilidade do principio, assim como expressamente o fizeram os pais da Lei Fundamental Alema de 1949. Assim, se na doutrina e na jurisprudéncia alemas a posigiio majoritéria ~ mas nao absoluta ~ sustenta a impossibilidade de sua tese dovtoral As Restricdes aos Direitos Fundamemtais ndo expressamente autori=adas pela Consitiuicdo, Coin bra: Coimbra Editora, 2003. p. 727 e ss.z Por Gltimo. sustentando esta fungi ~ entre outras ~ da dignidade da pessoa ‘humana, v.J. M. Alexandrino, “Perfil constitucional da dignidade da pessoa humana”. cit, p. 510. 3 CF, N, de Araijo, Direito Internacional Privado. Teoria e Pritica Brasileira, 3 ed.. Rio de Janeiro: Renova, 2006, p. 104 ess 7 Idem, p. 116. 5% Neste sentido. jd lecionava H.C. Nipperdey. a: Neumann/Nipperdey/Scheuner (Ors.). Die Gruoudrectite, vol. I 1p. 23, Mais receniemente. v. Maunz-Zippelius. Deusches Staatsrecht. p. 183. e R. Zippelius. in: BK. p. 19, Entre rs, v. E, Pereira de Farias, Colisdo de Direitos. p. 54. Propondo uma exegese norteada pela dignidade da pessoa, a recente contribuigdo de J. Freitas, “Tendéncias Atuais e Perspectivas da Hermenéutica Constitucional”. in: Ajuris 1 76 (1999), p. 406 e, mais recentemente, na sua magistral obra, substancialmente revista, atvalizada e ampliada, A Interpretagdo Sistemética do Direito, 3 ed p. 206 © 38. 39.Cf. apomta A. C. Nunes, A Titwlaridade das Direitos Fundameentais na Constiwigdo Federal de 1988, Porto Ale. gre: Livraria do Advogado, 2007. p. 71 e ss. 39 Neste sentido, aligdo de Hafling, in: M. Sachs (Org.), Grundgese 31 Cf Podlech. in: AK I. p. 281 pels. ‘AEFICACIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS 107 se estabelecerem restrigdes (mesmo com base em outros valores constitucionais) ao principio da dignidade humana ou no contetido de dignidade dos demais direitos fundamentais,** entre nds — & mingua de disposig&o expressa — tal constatagao (da intangibilidade da dignidade da pessoa humana) merece alguma reflexao. Em primeiro lugar, constata-se que a auséncia de norma expressa dispondo so- bre a intangibilidade do princfpio da dignidade da pessoa humana nao significa, por si $6, que esta se encontre sem protegao em nossa ordem constitucional. Na medida em que os direitos e garantias fundamentais (ao menos boa parte deles) podem ser con- siderados expressdes e concretizagdes do principio da dignidade da pessoa humana, verifica-se que — pelo menos de forma indireta — 0 contetido de dignidade dos direitos fundamentais constitui limite material ao poder de reforma constitucional (art. 60, § 4°, inc. IV, da CF), tema sobre o qual voltaremos a nos debrugar na tiltima parte desta obra, De outra parte, é possivel argumentar-se que, sob 0 aspecto de decisiio funda- mental sobre a posic&o da pessoa humana em nossa ordem constitucional, 0 prinefpio (fundamental) da dignidade da pessoa humana integra a esséncia e, conseqiientemen- te, a propria identidade da Constitui¢ao, razdo pela qual parece razodvel sustentar-se © ponto de vista segundo o qual o princfpio da dignidade da pessoa humana (art. 1°, ine. IIT, da CF) pode ser tido como verdadeiro limite material implicito auténomo a poder de reforma da Constituigao. Todavia, ainda que se possa sustentar a sua condigdo de limite ao poder consti- tuinte derivado, tal constatagiio no conduz, por si s6, a uma intangibilidade do prin- cfpio, j4 que pela sistematica de nossa Constitui¢ao apenas sao vedadas emendas (ou propostas de emendas) que revelem uma tendéncia 8 aboligao das normas elencadas no rol das “cléusulas pétreas”, prinefpio que evidentemente hé que aplicar aos limites, implicitos. Na medida em que a problemética da proteco dos direitos fundamentais contra a agdo erosiva do legislador, notadamente do Poder Constituinte reformador, constitui capitulo especifico deste trabalho, importa aqui apenas delinear alguns as- pectos da problematica. Especificamente no que tange ao princfpio da dignidade da pessoa humana, sua absoluta intangibilidade deve ser buscada em outra esfera. Com efeito, na medida em que a dignidade € algo inerente & esséncia do ser humano e que 0 qualifica como tal, sustenta-se que a dignidade da pessoa humana algo do qual nem este pode livremente dispor, sendo, portanto, irrenuncidvel, inaliendvel intangivel. Relembre-se, neste contexto, que todos os seres humanos nascem livres ¢ iguais em dignidade, e é a dignidade de cada pessoa que deve ser objeto do respeito e protesio por parte do Estado e da comunidade 7 Pode afirmar-se, portanto, & luz do exposto, que o prinefpio da dignidade da pessoa humana constitui o reduto intangivel de cada individuo e, neste sentido, a ltima fronteira contra quaisquer ingeréncias externas. Tal nao significa, contudo, a impossibilidade de que se estabelecam restrigdes aos direitos e garantias fundamen- tais, mas que as restrigdes efetivadas nao ultrapassem o limite intangivel imposto pela 52 CL, dente tantos, Holling, in: M. Sachs (Org.), Grundgezetz, p. 104, ¢ Podlech, in: AK I. p. 297. Em favor de restrigdes reefprocas em funcdo da dignidade de uma outra pessoa, v.C. Starck, in: von Mangoldt-Klein, p. 39 ess. 3 este respeito, v. a ligdo de Podlech, in: AKL, p. 296-7. Assim também jé lecionava H.C. Nipperdey. in: New smana/Nipperdey/Scheuner (Org.). Die Grundreche, vol. Il, p. 21-3. Versando precisamente sobre a indisponibili- dade da dignidade e do micleo em dignidade dos dircito fundamentais,v., entre ns. o recente ensaio de J. A. Peres Gediel, “A irrenunciabilidade a dircitos da personalidade pelo trabalhador", in: 1. W. Sarit (org.), Constituigd, Direitos Fundamentais e Direito Privado, p. 159 es. 108 INGO WOLFGANG SARLET dignidade da pessoa humana. Admitindo-se a viabilidade de eventuais restrigdes 20 proprio principio (mas no ao valor!) da dignidade humana — como aceita parte da doutrina, inclusive entre nds — nfo hé como transigir no que tange a preservagao de sua esséncia, j4 que sem dignidade o ser humano estaria renunciando & propria huma- nidade. De qualquer modo ~ e insistimos nisso — causa espécie a tentativa de graduar a dignidade para fins de admitir sua restri¢do, j4 que 0 reconhecimento de diversos niveis de dignidade constitu, em verdade, uma contradictio in terminis, uma vez que € a dignidade das pessoas que as torna iguais em humanidade. Da mesma forma, nao se trata de refutar a possibilidade de alguma relativizagao inerente a dignidade como princfpio juridico, j4 que — para além da dimensdo axiolégica — so os 6rgdos (pe soas) encarregados da aplicagao da Constituic%io que sempre acabario por definir se houve, ou no, uma ofensa & dignidade.** de tal sorte que definir o que é a dignidade sempre é, de certo modo, delimitar seu Ambito de protegao normativo. Por derradeiro, hé que tecer algumas consideracdes sobre a intima vinculagao entre o principio fundamental da dignidade da pessoa humana e os direitos e garantias fundamentais. Neste sentido, importa salientar, de inicio, que o principio da digni dade da pessoa humana vem sendo considerado fundamento de todo o sistema dos direitos fundamentais, no sentido de que estes constituem exigéncias, concretizagdes e desdobramentos da dignidade da pessoa humana e que com base nesta devem set interpretados.™ Entre nds, sustentou-se recentemente que o principio da dignidade da pessoa humana exerce 0 papel de fonte juridico-positiva dos direitos fundamen- tais, dando-lhes unidade e coeréncia.2” Nao se pode desconsiderar, neste contexto, que a liberdade e a igualdade sdo nogGes indissociaveis da dignidade de cada pessoa humana, justificando — como ja visto — 0 reconhecimento de direitos fundamentais diretamente vinculados & proteco das liberdades pessoais e da isonomia. Que o di- reito & vida e & integridade fisica e corporal garante, em tiltima andlise, 0 substrato indispensavel A expresso da dignidade também jé ficou evidenciado e pode ser tido como incontroverso. O mesmo, relembre-se, ocorre relativamente a protego da in- timidade e da esfera privada dos individuos.* Neste sentido, hé que compartilhar 0 ponto de vista de que os direitos e garantias fundamentais (ao menos a maior parte deles) constituem garantias especificas da dignidade da pessoa humana, da qual so ~ em certo sentido — mero desdobramento.* Em relagiio aos direitos fundamentais, a posicao do prinefpio da dignidade da pessoa humana assume a feigdo de lex gene- ralis, j& que, quando suficiente o recurso a determinado direito fundamental (por sua vez jé impregnado de dignidade), inexiste razio para invocar-se autonomamente 0 Esta a posigdo advogada por E. Percira de Farias. Calis de Direitos. p. 52-3, por sua vez, arrimado na doutrina do jusfildsofo germanico R, ALexy. Em sentido oposto, registea-se aligio de Rizzatto Nunes, O prine(pio constitue cional da dignidade da pessoa hnmana. Doutrina e jurisprudéncia, p.5 e ss. advogando que 0s valores sio relativos. £ 05 principios absolutos, partindo, portanto, de uma concepeao distinta de valor e principio da que aqui est sendo adotada, Aqui remetemos novamente ao nosso Dignidade da pessoa humana... p. 123 ¢ ss. Sobre o ponto, v. também, O. V. Vieira. Direitos Fundamentais, Sa0 Paulo: Malheiros, 2006, p. 69, discutindo, alm disso, uma série de decisdes do STF sobre o tema. 356 Nao 6 outra a ligdo de K. Stern, in: Staatsreche III, p33. 5°" Cf. E, Pereira de Farias, Coliso de Direitos. p. 4. 5% Sobre este vinculo, v. especialmente a recente contribuigio de T. Limberger, O Direito d Inimidade na Era da Informitica, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 116 e ss. 2% Neste sentido, v. E. Benda, in: Benda/Maihofer/Vogel (Org.), HBVAR, vol. I p- 166. ‘A EFICACIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAS. 109 principio da dignidade da pessoa humana, que nao pode propriamente ser conside- rado de aplicagao meramente subsididria, até mesmo pelo fato de que uma agresszio a determinado direito fundamental simultaneamente pode constituir ofensa ao seu contetido de dignidade.** Oestreito entrelacamento entre o principio da dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais nao se restringe, contudo, aos aspectos referidos. Para além da triade vida, liberdade ¢ igualdade, também hé outros direitos fundamentais (mesmo fora do Titulo II da nossa Constituig&o) que podem ser diretamente reconduzidos a0 principio da dignidade da pessoa humana, Saliente-se, neste contexto, que outros princfpios fundamentais podem ser considerados como exigéncias da dignidade do indivfduo. Assim ocorre, a toda evidéncia, com o principio democratico (art. I°, ca~ put), 0 da soberania popular (art. 1°, pardgrafo tinico), 0 do pluralismo politico (art. 1°, inc. V), bem assim com o princfpio do Estado de Direito (art. 1°, caput), por sua vez concretizados em outras normas constitucionais, inclusive no Ambito dos direitos e garantias fundamentais, como se verifica pelos exemplos do direito de sufrigio, de voto, pelo direito de portar a nacionalidade brasileira, de ser titular de direitos politicos, na inafastabilidade do controle judiciério, nas garantias processuais, etc. O mesmo se aplica aos diversos princfpios (como, por exemplo, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa fart. 1°, inc. IV], os objetivos fundamentais da cor truco de uma sociedade justa, livre e solidéria fart. 3°, ine. T] ou da erradicactio da pobreza e da marginalizacao [art. 3°, inc. 11T]), que consagram, entre nés, a concepgao do Estado social e aos quais podem ser reportados os direitos fundamentais sociais, sem que se desconsidere a vinculacio entre estes e a garantia de uma vida digna, com liberdade e igualdade reais. Nao deveria haver, por exemplo, qualquer resquicio de diivida no que concerne & importincia do direito & satide, 2 assisténcia e previdéncia social, & educacio, tanto para 0 efetivo gozo dos direitos de vida, liberdade e igualda- de, quanto para o proprio principio da dignidade da pessoa humana Sem qualquer pretenso de aprofundar este aspecto — até mesmo em face da inviabilidade de se aferir caso a caso a relago entre © principio da dignidade da pessoa humana e os diversos direitos e garantias fundamentais -, importa ter em mente, num primeiro momento, a variabilidade do contetido em dignidade de cada direito fundamental, que seguramente nio € 0 mesmo no direito a vida e no direito a0 13° saldrio, assim como nao € 0 mesmo em se comparando 0 direito de livre mani- festagdo do pensamento e a norma que concede aos trabalhadores a participagio nos lucros da empresa. Como referido alhures, a amplitude do nosso catdlogo de direitos fundamentais e as peculiaridades de diversos de seus preceitos justificam inclusive que se questione até mesmo a respeito da existéncia de normas definidoras de direi- tos fundamentais nao-recondutiveis — ainda que de forma indireta ~ ao prinefpio da dignidade da pessoa humana. Ainda que este possa ser considerado prinefpio basilar ¢ uniformizador de toda a ordem constitucional, haveria como sustentar — apenas para retomar alguns dos exemplos ja citados — que as normas contidas no art. 5°, incs. XXI e XXXI, ou mesmo no art. 7°, inc. XXVI, todos de nossa Constituigdo, cons- tituem exigéncia da dignidade da pessoa humana? De qualquer modo, entendemos ser possivel, no mfnimo, sustentar ponto de vista de acordo com o qual os direitos 0 Baa ligdo de HOfling. in: M. Sachs (Org.), Grundgesetz,p. 119. 110 INGO WOLFGANG SARLET fundamentais correspondem a explicitagdes, em maior ou menor grau, do principio da dignidade da pessoa humana.*! Nao € dificil, portanto, perceber que, com algum esforco argumentativo, tudo que consta no texto constitucional pode — ao menos de forma indireta — ser recon duzido ao valor da dignidade da pessoa humana, Nao é, contudo, neste sentido que este principio fundamental deve ser considerado na condigao de elemento integran- te da matéria dos direitos fundamentais, pois, se assim fosse (convém ressalté-lo), toda e qualquer posigZo juridica estranha ao catélogo poderia, seguindo a mesma linha de raciocinio, ser guindada (em face de um suposto contetido de dignidade da pessoa humana) a condiggo de materialmente fundamental. O que se pretende com os argumentos ora esgrimidos é demonstrar que o principio da dignidade da pessoa humana pode, com efeito, ser tido como critério basilar ~ mas nao exclusivo ~ para a construgio de um conceito material de direitos fundamentais, assumindo de tal sor- te, de acordo com a sugestiva formulacdo de Carlos R. Siqueira Castro, a fungdo de elemento proliferador de direitos fundamentais a0 longo dos tempos.” Além disso, abstraindo-se, por ora, os demais referenciais a serem analisados, € preciso ter sempre em mente que determinada posi¢ao juridica fora do catélogo, para que efetivamen- te possa ser considerada equivalente, por seu contetido € importancia, aos direitos fundamentais do catdlogo, deve, necessariamente, ser reconduzivel de forma direta € corresponder ao valor maior da dignidade da pessoa humana. Neste contexto, hd que questionar a respeito da possibilidade de existirem direitos fundamentais fora do catélogo que nao possuam necessariamente um conteiido diretamente fundado no principio da dignidade da pessoa humana, j4 que este, salvo melhor juizo, nao constitui elemento comum (no minimo, nao igualmente comum) a todos os direitos fundamentais do catdlogo.* E justamente neste contexto que assumem relevo os demais principios funda- mentais, visto que, a exemplo da dignidade da pessoa humana, também cumprem fungiio como referencial hermenéutico, tanto para os direitos fundamentais, quanto para o restante das normas da Constituicdo. Além de atuarem como fundamento para eventual dedugio de direitos nao-escritos (mais especificamente, dos direitos decor- rentes dos quais fala o art. 5°, § 2°, da CF), deverdo servir de referencial obrigatério para o reconhecimento da fundamentalidade material dos direitos garimpados fora do catélogo, que, consoante jé frisado, devem guardar sintonia com os principios fundamentais de nossa Carta. 4,3.3.2.3. Outros referenciais para a construgao de um conceito material de direitos fundamentais. Além da estreita vinculagao, j4 apontada, entre os principios I Neste sentido, « ligto de Vieira de Andrade. Os Direitos Fundamentais, p. 102. que nos fala de explicitagdes, em Pe 2 gras. do principio da dignidade da pessoa humana, SCLC. R. Siqueira Castro, A Constiuigio aberta e os direitos fundamentais, . 21 §* Atente-se part 0 fato de que a auséncia de vinculagao direta (e mesmo indireta) entre alguns direitos fundamen- tais do catilogo (Titulo Il da CF) com o principio da dignidade da pessoa humana ndo conduz necessariamente 20 entendimento de que 0s direitos fora do catélogo possam dispensar esta vinculagio. Com efeito, na medida em que. 220 menos de acordo com a doutrina por n6y adotada, milita em favor dos direitos fundamentais da Consttwigo uma presungio de constitucionalidade (Fundamentalidade) em sentido material. verifica-se que esta fundamentalidade ‘material pode, de fato, no exist. Portanto, poder-se-i sustentar que nada impede que se considerem, para efeitos de Identificugio de dizeitos fora do catdlogo, materialmente fundamentais, apenas as posigOes que constituem exig« izeias (ou, no minim, indiretas), do principio da dignidade da pessoa humana. ‘A EFICAGIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS 111 fundamentais de nossa Constituicao, especialmente o da dignidade da pessoa huma- na, e os direitos fundamentais expressos e nio-escritos localizados fora do Titulo II, podemos identificar outros referen-ciais relativos a construg’o de um conceito material de direitos fundamentais. Aqui voltamos a nos socorrer da lig’o do mestre lusitano Vieira de Andrade, que, ao lado da ja referida e analisada vineulagao ao prin- cipio da dignidade da pessoa humana, identifica a matéria dos direitos fundamentais primordialmente pela existéncia do que denominou de um “radical subjetivo”, na medida em que todos os direitos fundamentais se diferenciam das demais categorias por outorgarem ao individuo (isoladamente ou na condi¢fio de integrante de uma co- letividade) certas posigdes subjetivas. Esta subjetividade, segundo sustenta Vieira de Andrade, constitui caracteristica essencial e preponderante da estrutura normativa de todos os direitos fundamentais.** Como terceiro e tiltimo critério distintivo proposto pelo autor, todos os direitos fundamentais possuem fungao protetiva (ainda que de intensidade varidvel), j4 que necessariamente objetivam assegurar e proteger certos bens individuais ou coletivos considerados essenciais.“ Importa salientar, por der- radeiro, que todos os trés critérios permite, em seu conjunto (na acep¢ao do citado publicista), definir a matéria dos direitos fundamentais no contexto de sua autonomia relativa na sistemética da Constituigao e alcangar, de tal modo, a identificagdo de um conceito material de direitos fundamentais. A tentativa levada a efeito por Vieira de Andrade foi criticada por parte da doutrina lusitana, de modo especial sob a acusag&o de nfo ser constitucionalmen- te adequada, censura esta que também deveria aplicar-se a0 caso brasileiro, dada a similitude entre ambos os sistemas, particularmente pela acolhida de direitos fun- damentais sociais nos respectivos textos. A critica de Gomes Canotilho,* embora parcialmente procedente, nao desqualifica os critérios formulados, que, no entanto, devem ser complementados e devidamente adaptados no sentido de englobarem os direitos sociais e para encontrarem a devida insergiio no contexto global do regime e dos prinefpios fundamentais dos arts. 1° a 4° da CF, além de guardarem relagao com as normas contidas no catdlogo da Constituicao (arts. 5°, 6° e 7°, especialmente). Neste sentido, cumpre lembrar que o respeito e a proteco da dignidade humana sao, também para o Estado brasileiro (ainda que nao de forma exclusiva), valores funda mentais subjacentes e informativos de toda a ordem constitucional, e no apenas do titulo relativo aos direitos fundamentais.»” Outro ponto de partida relevante para a construgao de um conceito material de direitos fundamentais & luz da nossa atual Constituigao € a circunstancia (ff de- MICL_J.C. Vieira de Andrade. Os Direitos Fundamentais. p. 84. Encontramos semelhante posigio no direito aler ‘onde Se aponta para a necesséria e intima conexio entre a norma em exame (“candidata” a ser guindada & posigio e direito fundamental) com norma constitucional que consagra dircito subjetivo (v. K. Stera, Staarsrecht III/I, p. 361), consignando-se aqui 0 sentido elistico ¢ n3o limitado 2 idéia de direito subjetivo na condigdo de diretamente justickdvel, mesmo autor (ob. cit. p. 367) ainda aponta para a estreitarelagio entre a maior parte (para no dizer {quase que totaidade) dos direitos fundamentais ea pessoa individual. ressaltando. neste contexto, a existéncia de radical subjetivo, no sentido advogado por Vieira de Andrade, SSCCF. J.C. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais, p. 8. 46 Segundo a ligdo de J.J. Gomes Canotitho, Direito Constinucional.p. 542-3, « proposta de Vieira de Andrade mio corresponde & realidade constitucional portuguesa. por negligenciar a abrangéncia do catilogo dos diteitos funda- ‘mentais, que contempla expressamente os direitos econémicos, sociais e eulturais. * Neste sentido. E. P. de Farias, Colisdo de Direitos. p. 48 ess. inobstante exista ~ consoante jf fisado — a possibi lidade de controverter-se a caracteristica unificadora do principio da dignidade humana com relacio a todo o sistema, dos direitos fundamentais 112 INGO WOLFGANG SARLET vidamente explicitada) de que podemos encontrar tanto direitos materialmente fun- damentais de cunho negativo (direitos de liberdade, igualdade e as correspondentes garantias), quanto direitos prestacionais, sem excluir aqui os direitos e liberdades de participagao politica. Relembre-se, neste contexto, a intima vinculagao dos direitos fundamentais com os principios fundamentais que caracterizam 0 nosso Estado como democratico e social de Direito. Tal constatagio € de suma relevancia para a com- preensio de que a nossa Constituig&o contempla um conceito unitério e abrangente de direitos fundamentais, englobando os diferentes grupos de direitos nas suas mais variadas fungées e sentidos. Critério que também pode auxiliar na identificagao da matéria dos direitos fun- damentais é a distingdo que deve ser tragada entre as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais, vinculadas & regulamentago da posigao do homem na so- ciedade e, principalmente, perante o Estado, e as normas da parte organizatoria da tituigdo, porquanto, apesar da interpenetracio e fluidez entre ambas as esferas, nao hd como sustentar, a0 menos em principio, a existéncia de preceito de cunho tipi- camente organizat6tio e que possa ser, a0 mesmo tempo, auténtica norma definidora de direito ou garantia fundamental localizada fora do catalogo da Constituiga0.** Cuida-se, contudo, de critério meramente supletivo e indicidrio, ainda mais no caso brasileiro, em que no prdprio catélogo dos direitos fundamentais podem ser encontra- dos alguns exemplos que, salvo melhor juizo, mais adequadamente deveriam constar na parte organizat6ria da nossa Lei Suprema. Ainda no que concere & identificagdo dos critérios para definir a matéria dos direitos fundamentais no direito constitucional patrio, cumpre fazer referéncia a dois pardimetros desenvolvidos pela doutrina e pela jurisprudéncia espanholas com base do direito constitucional positivo daquele pais, quais sejam, o da tutela jurisdicional outorgada aos direitos fundamentais e a teoria do contetido essencial destes. Cuida- se, outrossim, de critérios, ao menos em principio, aplicaveis também aos direitos constitucionais alemao e portugués, na medida em que também a Lei Fundamental de Bonn prevé o direito e a garantia fundamental da ampla protecao judicial (art. 19, inc. IV) ea preservacaio do contetido essencial (Wesensgehalt) dos direitos fundamentais contra a acio do legislador (art. 19, inc. III), normas complementadas pelo art. 93, ine. I,n® 4, alfnea a, onde se prevé a possibilidade de uma aco individual para defesa dos direitos fundamentais constantes do catalogo, bem como dos direitos equiparados ou andlogos elencados na citada norma, perante o Tribunal Federal Constitucional, além da protegdo expressa outorgada pela inclusio (ainda que indireta) dos direitos fundamentais nas assim denominadas “cldusulas pétreas” da Lei Fundamental (art. 79, inc. 11). 5 A respeito deste critério distintvo, v. K, Stern, Das Staarsreehit II/1,p. 363. > O art. 93 da Lei Fundamental da Alemanha consagra a existéncia de direitos fundamentas fora do catélogo, nio havendo consenso no que concerne 8 circunstincia de estes estarem limitados aos expressamente referidos na citada \isposigao constitucional. Além disso, hi que apontar a existEncia de ampla controvérsia nio somente com relaci0 2 terminologia utilizada, mas também — e principalmente ~ no que diz respeito & existéncia de outros direitos fun- A despeito das respeitaveis posigdes favordveis a esta exegese, verifica-se que 0 problema nao € to singelo quanto possa parecer & primeira vista. Com efeito, perce- be-se que o art. 5°, § 2°, da CF, nao obstante tenha consagrado o entendimento de que Cr. J, Freitas, Interpretacdo Sistemdtica do Direto. p. 54. de onde foi lteralmente reproduzida a definiedo. C dda-se de obra recente indispensvel para quem deseja obter uma Visio atual e inovadora Sobre o sentido ea ‘uma hermenéutica sistematizadors ehierarquizadora do dieito, resultado de ampla pesquisa e reflexdo e um didlogo ‘com os mais importantes jurstas do nosso e de todas os tempos que se debrugaram sobre a problemstica da herme- néutica (€ a listagem revela apenas uma amostragem da fara e importante bibliografia) desde 0s clissicos Arist6teles, «Plato, passando por Pascal. Bacon, Kant e Hegel. até alcangar os modernos (mas no menos “clissicos”) Kelsen. Larenz, Bobbio, Canaris, Esser. Habermas, Rawls, Popper, sem olvidar os mais ilustres representantes da doutrina ‘nacional, tais como Maximiliano, M. Reale, Pontes de Miranda. dentre outros tantos. 57" respeito do artigo 16/2 éa Constituigdo portuguesa e sobre a recepe0 eo valor juridico da Declaragao Universal dos Direitos do Homem, v.. por todos, J. Miranda, in RDA n® 199 (1993), p. Less. >? Remetemos aqui aos exemplos colacionados por F. Piovesan. Direitos Humanos e 0 Direito Constitucional In temacional. p. 111 es. > Neste sentido, entre outros, v.C.R. Basios ¢ I.G. Martins, que. nos seus Comentdrias | Consrinugdo de 1988, vo. Ip. 395-6, advogam 0 ponto de vista segundo o qual 2 norma do ar. 5°. § 2°, dispensaria a necessidade de qualquer procedimento formal regrando a recepedo das normas internacionais. embora ndo tenham fundamentado mais espe cificamente seu entendimento. de ‘AEFICACIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAS 121 o rol dos direitos fundamentais reconhecidos em nosso direito constitucional positive inclui também posigées juridicas fundamentais oriundas de tratados internacionais, nao fez qualquer referéncia expressa & forma de sua recepgao. Além disso, o citade preceito constitucional refere expressamente os “tratados internacionais em que a Repiblica Federativa do Brasil seja parte” (grifei), revelando, de tal sorte, a neces- sidade inequivoca de uma adesio formal ao tratado para que possa enquadrar-se na hipétese prevista pelo art. 5°, § 2°, de nossa Carta Magna, o que, alids, é reconhecido pela doutrina, que condiciona a recep¢do a ratificagio do tratado. Ora, justamen- te quando o Constituinte, objetivando evidentemente coibir excessos por parte do Executivo no que tange & celebrago de tratados internacionais, previu a necessidade de procedimento legislativo prévio para a sua incorporagao definitiva ao direito in- terno, regra esta embasada, ademais, em abalizada doutrina sobre a matéria, torna-se no minimo de dificil sustentagao o ponto de vista segundo o qual, no concernente aos tratados internacionais sobre direitos humanos (fundamentais), bastaria meramente 0 aval do Executivo. Considerar-se a regra contida no art. 5°, § 2°, da CF, em que pese a auséncia de disposigao expressa sobre 0 tema, como tendo carter excepcional, quando justamente restringe a legitimag3o democratica na recepgao de normas inter- nacionais, ndo nos parece ser a melhor soluco, a0 menos sob a ética do direito co titucional positivo patrio e por mais que se cuide de um debate que envolve também uma releitura da nog&o de soberania no Ambito de uma sociedade internacional cada vez mais conectada e interdependente, aspecto que, a despeito de sua transcendental relevancia, refoge aos propésitos deste trabalho." Ainda neste contexto, cumpre fazer referéncia & construgio doutrinéria susten- tada na doutrina nacional posterior a vigéncia da CF de 1988. Neste sentido, afirma-se aadogdo de um sistema misto no que concerne & recep¢o dos tratados internacionai no direito interno. De acordo com esta tese, embasada numa exegese combinada do art. 5°, §§ 1° e 2°, da nossa Lei Fundamental, ficou consagrada a teoria monista,"” da recepgio automatica de todos os tratados internacionais ratificados pelo Brasil que versatem sobre diteitos humanos, dispensando qualquer ato formal complementar para que possam ser diretamente aplicados até mesmo pelos Tribunais internos, a0 asso que para os demais tratados internacionais continuaria vigorando a teoria dua- lista, segundo a qual a incorporagiio ao direito interno somente se aperfeigoaria apés procedimento legislativo2” A concepgiio doutrinaria ora citada, em que pese sua sin- 3% Assim, dentre outros. oentendimento de F. Piovesan, Direitos Humanos ¢ o Direito Constitucional Internacional. p. 114, para quem, desde que ratifieados. os tratados internacionais sobre Direitos Humanos irradiam automatica mente seus efeitos no ordenamento jutidico interno, passando imediatamente a assegurarem direitos dirctamente exigiveis. * A respeito deste ponto. remetemos. em caréter meramente exemplificativo, ao trabalho de J.A.. Carrillo Salcedo. Soberania de los Estados y Derechos Humanos en Derecho Imeracional Contempordneo, especialmente p. 56-114 Especificamente no que diz com a nogdo se soberania no mundo atual, vale conferiro instigante ensaio de L. Ferra joli, Derechos y Garantias. La ley Del mas débil. p. 125 e ss. 398 nao sendo 0 nosso propésito ~ a despeito da inguestionavel relevancia do tema - adentrar aqui a discussio a res- peito da adocio da teoria monista ou dualista (ou mesmo de alguma de suas variagBes). remetemos o leitor 3 literatura especializada. Neste sentido, vale conferir as recentes e atualizadas contribuigées de N. de Araijo, Direito Interne. cional Privado, 3 ed. Rio de Janeito: Renovar. 2006. p. 146 € ss.e V. 0. Mazzuoli, Curso de Direito Internacional Piblico, Sie Paulo: RT, 2006. p. 47 € ss. 57 Neste sentido, entre outros. as ligdes de A. A. Cangado Trindade, bem como em doutrina estrangeira e exemplos extraidos de outras ConstituigGes onde vige o principio da recepeao automatica. Assim também A. A. Cangado Trin- dade, Trarado de Direito Internacional dos Direitos Humanos, p. 407-8 ¢ 430 e ss., seguida, recentemente, por C. Pinheiro. Direito Internacional e Direitos Fundamentais, p. 14 122 INGO WOLFGANG SARLET tonia com o princfpio de uma interpretacao mais favoravel aos direitos humanos, nao afasta, contudo, a pertinéncia dos argumentos contrarios ja referidos, razao pela qual no pode ser aceita sem maior reflexao. De qualquer modo, o tema é fascinante e por demais controverso para que aqui se possa esgotar a discussio, de tal sorte que, uma vez enunciadas nossas breves consideragdes sobre 0 assunto, remetemos o leitor & literatura especializada."* Outro aspecto que se impoe seja enfrentado (de longe o mais controverso entre és) diz com a posigao hierdrquica das normas internacionais no ordenamento inter- no, Em outras palavras, pergunta-se se um direito fundamental extrafdo de tratado ou convengao internacional possui forga normativa idémtica aos direitos consagrados no catélogo ou, em sendo negativa a resposta, se é hierarquicamente superior (neste caso, subordinado somente 3 Constituigdo), ou equiparado ao direito infraconstitu- cional, A resposta a estas questdes constitui pressuposto para a definigao do status juridico dos direitos fundamentais com sede nos tratados internacionais, inclusive no que concerne & possibilidade do controle de sua constitucionalidade, bem como sua sujeigdo, uma vez incorporado ao direito interno, & proteco das assim denominadas ~cldusulas pétreas” da Constituigao, No que diz com a posigao hierérquica do direito internacional com relago 20 direito infraconstitucional interno, a doutrina encontra-se dividida. Ao passo que uma corrente sustenta a supremacia do direito internacional (que, a exemplo do constitu- cionalismo portugués, se encontraria somente sujeito 4 Constituigao), outros con- sagram a teoria da paridade entre as normas internacionais ¢ a legislagao interna, sob © argumento de que, em face da auséncia de uma disposigio constitucional expressa que consagre a supremacia do direito internacional, deve prevalecer, no caso de con- flito entre tratados internacionais ¢ leis internas, o principio do lex posterior derrogat priori, ressalvada a possibilidade de responsabilizagao do Estado no plano interna- cional, o que, inclusive, vem sendo consagrado pelo Supremo Tribunal Federal desde 0 julgamento do RE n° 80.004, em 1977, apesar da opinidio divergente de alguns de seus mais ilustres integrantes2” No que diz com a hipétese especifica dos direitos fundamentais que, por via da abertura propiciada pelo art. 5°, § 2°, da nossa Carta, passam a integrar 0 nosso catélogo (nao importando aqui se de forma automdtica, ou nao), a solugio nao se revela to singela ou, pelo menos, tio adequada, Na realidade, parece vidvel con cluir que os direitos materialmente fundamentais oriundos das regras internacionais —embora niio tenham sido formalmente consagrados no texto da Constituigao - se aglutinam 4 Constituigtio material e, por esta razio, acabam tendo status equivalen- te. Caso contratio, a regra do art. 5°, § 2°, também neste ponto, teria o seu sentido parcialmente desvirtuado. Nao fosse assim, virtualmente nao haveria diferenca (ao menos sob 0 aspecto da hierarquia das normas) entre qualquer outra regra de direito 28 Para além das obras jé referidas. vale conferr. a respeito da incorporagao dos tratados internacionais, os recentes contributos de G. R. Bandeira Galindo, Tracados Intemacionais de Direitos Humanos e Consttuigdo Brasileira. p. 137 es. cde A. C. Pagliarini, Constimicao e Direito Internacional: cedéncias possiveis no Brasil ¢ no mundo elobalizado, p. 137 € 8. 5°9 Esta a posigdo de A. Stssekind, in Direito Constitucional do Trabalho, vol. T,p. 309 € 5s, mais recentemente re afirmada por A.A. Cangado Trindade, Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos, p. 403 ¢ ss..€ adotada também por F, Piovesan, Direitos Humanos e o Direito Constimcional Internacianal, p. 90 € 5. #0 Neste sentido, a ligdo de J.F. Rezek, Direito dos Trautdas, p. 463 ¢ ss.. que também reproduz o ponto de vista dos {que propugnam a supremacia dos tratados internacionais sobre a legistago interna ‘AEFICACIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS 123 internacional incorporada ao direito nacional e os direitos fundamentais do homem consagrados nos textos internacionais. Apenas para citar um exemplo, um dispositi- vo de um tratado internacional qualquer (por que no o acordo do GATT?) poderia, em tese, ter 0 mesmo valor hierdrquico de um direito fundamental reconhecido pela Convengao Americana sobre Direitos Humanos. Certamente no € este 0 sentido que 0 Constituinte quis atribuir ao art. 5°, § 2°, de nossa Carta ao nele referir express: mente os tratados internacionais. Consoante lapidar ensinamento de Antonio A. Cangado Trindade, h4 como sus- tentar que a Constituigao de 1988 aderiu a tendéncia do constitucionalismo contem- pordneo de dispensar um tratamento privilegiado aos tratados de direitos humanos, tendéncia esta que € “sintomatica de uma escala de valores na qual o ser humano passa a ocupar posigao central”. A este ponto de vista podemos agregar o entendi mento de Flavia Piovesan, que, arrimada em ligdo de Hesse ¢ de Canotilho, advoga a tese de que, em homenagem ao principio hermenéutico da maxima efetividade das normas constitucionais, ao art. 5°, § 2°, de nossa Lei Fundamental deve ser outorgada a interpretacao que the venha conferir a maior realizago, ou seja, que estenda aos direitos fundamentais constantes de tratados internacionais forga juridica equivalente 20s direitos do catdlogo.™ Outro argumento colacionado pela prestigiada jurista en- contra sustentagio na nogo de que os tratados sobre direitos humanos integram um universo de principios com a especial forca obrigatéria de um auténtico jus cogens, que os coloca em posigao hierarquicamente superior em relago aos demais tratados internacionais, justificando, assim, a diferenga de tratamento também na ordem juri- dica interna.” A luz dos argumentos esgrimidos, verifica-se que a tese da equiparacdo (por forca do disposto no art. 5°, § 2°, da CF) entre os direitos fundamentais localizados em tratados internacionais e os sediados na Constituigio formal é a que mais se har- moniza com a especial dignidade juridica e axiolégica dos direitos fundamentais na ordem juridica interna e internacional, constituindo, ademais, pressuposto indispen- sével & construgao e consolidagao de um auténtico direito constitucional internacional dos direitos humanos, resultado da interpenetragdo cada vez maior entre os direitos fundamentais constitucionais e os direitos humanos dos instrumentos juridicos inter- nacionais. No minimo, contudo, para preservar sua condi¢do especifica de direitos materialmente fundamentais e nao remeté-los a um plano idéntico as leis ordinarias. ha que admitir (a exemplo do que entende a doutrina majoritaria em Portugal, nao obstante sucumbente entre nés) sua supremacia com relacdo ao direito interno infra- constitucional 381 Cf, A. A. Cangado Trindade, Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos, Vol. Lp. 409. 82, F, Piovesan, Os Direitos Humanas ¢ o Direito Constitucional Internacional. p. 89-90. Neste sentido, acabou: se posicionando a doutrina nacional majoritéria e expressiva jurisprudéncia, ainda que o Supremo Tribunal Federal muito embora os votos divergentes de alguns Ministros — bem como alguns ilustres autores, sigam mantendo o posi= cionamento da paridade hierarquica entre tratados (mesmo os que dispem sobre Direitos Humanos) ea lei ordinéria entre 0s outros autores nacionais que sustentam a hierarquia constitucional, lemibramos, em cardter exemplificativo, as importantes contribuigSes de C. Pinheiro, Direito Internacional e Direitos Fundamentais, p. 74 ¢ ss. ¢ V. de Oli veira Mazzuoli, Direito Internacional: Tratados e Direitos Humanos Fundamentais na Ordem Juridica Brasileira Rio de Janeiro: América Juridica, 2001, bem como, com maior desenvolvimento, no seu recente Curso de Direito Internacional Piiblico, Sao Paulo: RT, 2006. 38 Cf, F,Piovesan. Os Direitos Humanos ¢ o Direito Constitucional Internacional, p. % € ss. 3 Dentre os autores portugueses, cabe citar J.M.M. Cardoso da Costa, in BMJ n° 396 (1990), p. 21 ess 124 INGO WOLFGANG SARLET Ainda no que concerne a forga juridica dos direitos fundamentais extraidos dos tratados internacionais, impende considerar que, em se aderindo a tese da paridade com os demais direitos fundamentais da Constituigao, incide também o principio da aplicabilidade direta destas normas pelos poderes piiblicos nacionais (art. 5°, § 1°, da CF). Além disso, é de cogitar-se da sujeicio destes direitos fundamentais de matriz internacional & protecdo das assim denominadas “cléusulas pétreas” de nossa Constituigao, posigao esta que ja haviamos sustentado em outra ocasizio e que iambém encontra respaldo na mais recente doutrina.®® Neste particular, contudo, im- poe-se certa cautela, j4 que a incluso dos direitos fundamentais constantes de tra- tados internacionais no rol dos limites materiais 4 reforma constitucional, ainda que integrados formalmente ao direito patrio, nao se revela destituida de problemas. No minimo, causa espécie a possibilidade de se alterar, mediante emenda & Constitui dispositivo de tratado internacional. Importa salientar, neste contexto, que a atua do poder de reforma constitucional atua sobre a Constituigdo formal, ressalvada a possibilidade de incluir-se no texto constitucional algo que nele nao foi expressamen- te contemplado e que com ele guarde a devida sintonia. Cuida-se, portanto, de mais um aspecto carecedor de maior digressao do que a viabilizada nesta abordagem.** Outrossim, cumpre salientar que apenas os dispositivos intermacionais compa- tiveis, no sentido de nfo contrérios a um direito fundamental constitucional, ou dele subversivos, podem ser objetos de cogitagao.*" Reafirme-se, neste particular, que a abertura propiciada pelo art. 5°, § 2°, da CF de 1988 objetiva a complementagio ou mesmo a eventual ampliago do catilogo dos direitos fundamentais. Eventuais (& até mesmo inevitaveis) colisdes, a exemplo das que podem ocorrer, inclusive, entre 0s proprios direitos integrantes do catdlogo, devem ser resolvidas pela aplicagao das regras proprias, sem que se possa partir da premissa de uma solugio sempre favordvel a prevaléncia de um ou outro, no sentido de uma solugdo apriorfstica e aplicavel a todas as hipéteses. A doutrina e a jurisprudéncia nacional tém adotado habitualmente o critério da opcao mais benéfica 4 pessoa. Alguns falam até mesmo da solugao mais favordvel & vitima, exegese esta que entendemos questiondvel, jé que, cuidando-se de Neste sentido. v. 0 nosso artigo “Valor de Alcada e Duplo Grau de Jurisdigdo: Problematizagao em Nivel Cons titucional & Luz de wn Conceito Material de Direitos Fundamensais”, publicado na revista AJURIS n? 66 (1996). p. 85 ess. Assim também F. Piovesan. Os Direitos Humanos € o Direito Constiucional Internacional, p. 98 & s8.. que, ‘de forma apropriada. faz aressalva de que. apesar de invidvel a supressdo por via de emenda constituctonal, sempre & tével a dentincia posterior do tratado, acarretando, desta forma, um tratamento no minima parcialmente diferenciado em relagdo aos direitos fundamentais da Constituigao. Com relagdo & posigao sustentada por F. Piovesan, ousamos De outra parte, as razGes que sugerem uma postura cética em relagfo A pro- pagada prevaléncia da dimensao subjetiva. podem ser reconduzidas a uma série de argumentos que aqui nao se pretende, por ora, desenvolver, mas que devem ser le- vados a sério, notadamente em virtude de suas possfveis repercussdes. Com efeito, dentre os diversos motivos aduzidos pelo autor, destacamos a ponderagio de Jorge Reis Novais, no sentido de lembrar que a presungio em favor de um direito subjetivo adquire relevancia prética apenas se implicar a exigibilidade judicial do direito em questiio, o que, todavia, implica a necessidade de resolver problemas vinculados a0 princfpio da separagao de poderes, bem como aspectos inerentes 3 eficdcia da presta- co jurisdicional, por conta de uma ampliag&o do espaco subjetivo a partir da dimen- sio objetiva e a correlata compressao da dimensio subjetiva individual." 5.2. A multifuncionalidade dos direitos fundamentais e o problema de sua classificacdio na Constitui¢ao 5.2.1. Introdugdo: a multifuncionalidade dos direitos fundamentais e a atualidade da teoria de Georg Jellinek Consoante ficou devidamente comprovado no item anterior, a dupla perspec- tiva (objetiva e subjetiva) dos direitos fundamentais revela que estes exercem va- rias e diversificadas fungdes na ordem juridica, o que deflui tanto das conseqiiéncias atreladas & faceta juridico-objetiva, quanto da circunstdncia de existir um Ieque de + CL.R. Alexy, in: Der Staci 29 (1990), p. 60¢ ss, Ambos os argumentos de Alexy foram. mais recentemente, objeto e referéncia na obra de I.C.S. Gongalves Loureiro. O Pracedimento Administrativa. p. 185 9 C4, 1.1. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, p. $47. *71 Vai neste sentido a ligtio de J.C. Vieira de Andrade. Os Direitos Fundamentals. p. 160. 47 Nese sentido, cumpre acolher o pensamento de IJ. Gomes Canotilho. Direito Constitucional. p. 547-8. 0 qual. ‘com propriedade, aponta para o reconhecimento da prevaléncia do carter subjetivo individual. no caso de uma ten- ‘So entre o direito de um individuo e de uma pessoa coletiva, que vai desembocar numa ponderacio dos valores em {jog0 guiada pelas circunstineias do caso concreto. A respeito da titularidade dos direitos fundamentals, ponto que ‘aqui ndo vai desenvolvido, remetemos ao capitulo 6. infra SCF. J. R. Novais, As restrigdes aos direitos fundamentais ndo expressamente autoricadas pela Constiwigdo, p. Sess. ‘AEFIGAGIA DOS DIREITOS FUNDAMENTASS 155 posigdes juridico-subjetivas que, em principio, integram a assim denominada pers- pectiva subjetiva, Além disso, hd que levar em conta, neste contexto, o fato de que 0 Constituinte de 1988 foi diretamente influenciado, quando da formatagao do catélogo dos direitos fundamentais, pelas diferentes teorias formuladas sobre estes, razo pela qual a doutrina sustenta a tese de uma multifuncionalidade dos direitos fundamentais, que de longe nao mais se restringem a classica fungao de direitos de defesa contra os poderes piblicos. Sem adentrarmos 0 mérito da proposta formulada, ha quem —re- conhecendo a referida multifuncionalidade — tenha relacionado ao todo doze fungdes tipicas atualmente exercidas pelos direitos fundamentais, dentre as quais varias j4 foram, inclusive, objeto de mengao no decorrer do item anterior." A constatagao da multifuncionalidade dos direitos fundamentais nao constitui, por outro lado, nenhuma novidade e pode — a despeito dos novos e importantes des- dobramentos vinculados as perspectivas subjetiva e objetiva— ser reconduzida a dou- trina dos quatro starus de Georg Jelinek, do final do século passado, onde encontraria sua vertente,** tendo sido, além disso (inclusive entre nds), utilizada recentemente como referencial para a classificacao dos direitos fundamentais.‘” Pela importancia que ainda hoje exerce esta original concepcao™ e pela sua reconhecida relevancia para a teoria da multifuncionalidade dos direitos fundamentais, bem como para 0 problema de sua classificagiio, vale a pena nos debrucarmos, ainda que de forma contida, sobre este tema. O publicista alemao Georg Jellinek, na sua obra intitulada “Sistema dos Direitos ubjetivos Pablicos” (System der subjektiv dffentlichen Rechte), formulou concepcao original, de acordo com a qual o individuo, como vinculado a determinado Estado, encontra sua posigao relativamente a este cunhada por quatro espécies de situagdes juridicas (status), seja como sujeito de deveres, seja como titular de direitos. De acor- do com a ligao de Jellinek, na formulago que Ihe deu Alexy, o status seria uma es- pécie de estado (uma situacio) no qual se encontra 0 individuo e que qualificaria sua relagiio com 0 Estado." No ambito do que Jellinek denominou de status passivo (sta- tus subjectionis), 0 individuo estaria subordinado aos poderes estatais, sendo, neste #74 Neste semtido, dentre outros, J.J. Gomes Canotilho. Direito Constitucional, p. $22 ¢ ss: M. Sachs, in: M. Sachs (Org). Grundgesers. p. 85. que. no direito alemio recente. também se pronuncia em favor de uma multifuncionalida- de dos direitos fundamentais. No direito patrio, cumpre citar G. F. Mendes, in: CDTFP 1° 3 (1993). p. 23. “75 Este 0 entendimencode A. Bleckmann, Die Grmdrechte. p.243.¢s..que cita decisées do Tribunal Constitucional Federal sustentando uma multifuncionalidade dos direitos fundamentais (BVerfGE 6.55 {71 e ss.]e 30. 173 (188). arrolando as seguintes fungdes por estes desempenhadas: 1 ~ direitos de defesa (Abwelirrechue); 2 ~ direitos de par cipacao ou quota-parte (Teilhaberechte); 3 ~ garamtias institucionais; 4 — garantias procedimentais; 5 direitos fun- damentais como ordem de valores: 6 ~ direitos fundamentais como normas objetivas; 7~ direitos fundamentais como rnormas impositivas ¢ autorizagdes para aga (Grundrechte als Handlungsermdchtigung und als Verfassungsaufirag), 8 — direitos fundamentais como normas de conduta social (sociale Verhaliensnormen): 9 ~ direitos fundamentais ‘como fundamento de deveres de protecao do Estado: 10 ~ direitos fundamentais negativos. ou deveres fundamentai 1 = fungZo legitimadora dos direitos fundamentais;¢ 12 - fungio pacificadora e de parametro de justica (Friedens- und Gerechtigkeitsfunktion), © Cf. por exemplo, A. Bleckmann, Die Grandrechte, p. 245 e, entre n6s, G.F. Mendes. in: CDTFP n° 3 (1993), p. 23. que também reconduz a multifuncionalidade dos direitos fundamentais 2 teoria dos quatro stares de Jllinek. #7 Y, a recente proposta classficat6ria de E. Pereira de Farias, Colisdo de Direitos, p. 82 ss. a ara P. Heri, citado por J.C. S. Gongalves Loureiro. O Procedimento Administrativo. p. 196, 2 teoria clssica dos status de G, Jllinek representou 0 inicio do desenvolvimento no sentido de tomar juriicamente a sério 0s di- reitos fundamentais “CF, G.Jellinek, System der Subjehtiven Offenttichen Rechte. p. 83. citado por R. Alexy. Theorie der Grundrechte, .230. 156 INGO WOLFGANG SARLET contexto, meramente detentor de deveres, ¢ nao de direitos, significando, de outra banda, que © Estado possui a competéncia de vincular 0 cidadao juridicamente por meio de mandamentos e proibigdes. Para além deste status subiectionis, Jellinek toma como base a idéia de que. por ser dotado de personalidade, ao individuo é re- conhecido um status negativus, consistente numa esfera individual de liberdade imu- ne ao jus imperti do Estado, que. na verdade, é poder juridicamente limitado.*" De acordo com Goncalves Loureiro, “qualquer pretensao do Estado tem de ser fundada juridicamente, tornando-se 0 estado factico da liberdade num estado juridicamente reconhecido”.® O terceiro status referido por Jellinek — ¢ que complementaria o status negativus — & 0 assim denominado status positivus (ou status civitatis), no qual ao individuo seria assegurada juridicamente a possibilidade de utilizar-se das instituigdes estatais e de exigir do Estado determinadas agdes positivas.® E no status positivus que se poderia, grosso modo, enquadrar os assim denominados direitos a prestagdes estatais, incluindo os direitos sociais, salientando-se aqui a critica for- mulada pela atual doutrina no que concerne & localizacio dos direitos de defesa no Ambito da teoria de Jellinek-** Por derradeiro, Jellinek complementa sua teoria com 0 reconhecimento de um status activus ao cidadio, no qual este passa a ser considerado titular de competéncias que Ihe garantem a possibilidade de participar ativamente da formagio da vontade estatal, como, por exemplo, pelo direito de voto.** Sem adentrar 0 exame minucioso das diversas criticas tecidas relativamente & teoria dos quatro status de Jellinek no decorrer do iiltimo século, importa, contudo, consignar algumas das que reputamos mais pertinentes, na medida em que ao mesmo tempo proporcionam uma revisao critica da doutrina, bem como sua complementagao € adaptagao as circunstancias nas quais atualmente se encontram a doutrina e 0 direito constitucional positive. Assim, por exemplo. alerta-se para a circunstancia de que se faz necessiria uma releitura do status negativus (também chamado de status liberta- tis). Tendo em mente que para Jellinek as liberdades do individuo, neste estado, sio exercidas apenas no ambito da lei, encontrando-se, portanto, & disposigao do legisla- dor, hd que adaptar esta concepgdio aos tempos atuais, quando ndo se concebe mais (e isto também no direito constitucional patrio) uma sujeigdo das liberdades individuais A legislagio infraconstitucional. O status negativus de Jellinek deve, portanto, ser encarado mais propriamente como um status negativo dos direitos fundamentais (ein negativer grundrechtlicher Status), no qual a liberdade € concebida como liberdade Cf, a leitura de R. Alexy. Theorie der Grundrechte. p. 230-1 ‘ICL, R, Alexy, Theorie der Grundrechte, p. 233, 52Cf, CS. Gongalves Loureiro, O Procedimemto Administraivo, p. 197 48 Sobre 0 status positivus de Jellinek,v.,principalmente. R. Ale’ + Neste sentido, oportuna a meng de J.C.S Gongalves Loureiro. O Procedimento Administrative, p. 197- ue, baseado na eritica formulada por Alexy. observa que. de acordo com a proposicao de Jellinek. os direitos de defesa (considerados como tais 0s diteitas a abstengdes do Estado) nao se poderiam enquadrar em nenhur dos dois srarus referidos, de tal sorte que se torna imperiosa uma leitura extensiva do starus negarivus. que. além das liberdades juridicas ndo-protegidas, também englobaria os direitos de defesa. que. por outro lado (como direitos ‘ages negativas), também poderiam integrar o status positivus em sentido amplo, Sendo. sob esta dtica, comuns ‘ambos os sranus. © Sobre 0 status activus de Jellinek, v.R. Alexy, Theorie der Grundrechte. p. 242-3. que. secundado por J.C.S. Gongalves Loureiro. O Procedimento Administrativo, p. 198. aponta para as dificuldades que cercam a definigio precisa do estatuto juridico das competéncias que integram este seanus, Theorie der Grundrechte, p. 238 es ‘AEFICAGIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS 157 de quaisquer intervengdes incontitucionais, em outras palavras, em que as liberdades € os direitos fundamentais em geral vinculam também o legislador."* Outra critica a teoria de Jellinek que vem merecendo a atencao da doutrina foi formulada por Konrad Hesse, para o qual. 0 status constitucional do individuo garantido pelos direitos fundamentais no constitui uma situagao meramente formal, relativa ao individuo abstrato (como € 0 caso do status negativus de Jellinek), mas, sim, um status juridico material, com contetido concreto e determinado, que nao se encontra & disposi¢do ilimitada nem do individuo nem dos poderes ptiblicos.**’ Em que pese a pertinéncia das criticas tecidas por Hesse, nao nos parece que elas tenham © condao de fulminar por completo a possibilidade de se aproveitarem, na sua essén- cia, as ligdes de Jellinek, mas, sim, que estas merecem ser lidas e compreendidas & luz das atuais circunstancias. Impende considerar, neste sentido, que Jelinek redigiu sua obra num contexto marcado, por um lado, por uma prevaléncia da concepgao liberal de Constituigiio e, por outro, por uma Constituigao mondrquica de um Estado alta- mente centralizado, como era a Alemanha de Guilherme II. Além do mais, de acordo com a perspicaz ressalva de Alexy, ndo ha como olvidar que a posigao jurfdica global do indivéduo também pode ser analisada com base numa perspectiva formal, que, por outro lado, ndo exclui a correta observagdo de que mediante as normas de direitos fundamentais 0 individuo é reconduzido a status juridicos com determinado contet- do (status juridico-material) ** Para além das questdes colocadas ¢ de outras criticas pertinentes que aqui po- deriam ser colacionadas, é preciso considerar, ainda, que as lices de Jelinek foram sendo, ao longo dos tempos, complementadas pela doutrina, para adaptd-la as funcdes que atualmente so atribuidas aos direitos fundamentais e que ndo correspondem mais a0 ambiente no qual foi desenvolvida a teoria dos quatro status. Neste sentido, além da j4 sugerida releitura do status negativus, cumpre salientar que o status activus foi alargado para que nele também pudesse ser integrado 0 status activus processualis de Peter Haberle,* 0 qual, por sua vez, diz com a dimensio procedimental e organiza- G6ria dos direitos fundamentais, j4 referida quando abordamos a perspectiva objetiva desies. Ademais, deve merecer a devida atengdo o reconhecimento de um status po- “6 Esta a pertinente critica de R.Alexy. Theorie der Grundrechte.p. 244-5. acompanhada. no dirito lustano, por LCS. Goncalves Loureiro. O Procedimento Administrative. p. 198. “81 Cf, K. Hesse. Grundzige p. 127-8. Para Hesse. 0 starus negativus de Jellinek & meramente formal e secundério em relagio ao stamus subjecrionis. i que a pessoa a quem & reconhecido 0 szarus negarivus n&o & 0 ser humamo & cidadio em sua dimensio hstrica e eonereta. mas, sim. o individvo absirato, reduzido & eapacidade de ser titular de direitos e obrigagdes. A liberdade garantida por este stanus nio é — de acordo com a critica de Hesse ~ relacio nada a situages coneretas de vida, mas sim, uma lberdade genérica e abstrata de poder exercido de forma ilegal e que se encontra além disso. & disposicdo do préprio Estado, de tal somte que o status subjections, potencialmente ilimitado, passa a excluir a personalidade e a autonomia individual. Além disso, para Hesse esta concepgao formal de uta garanta formal da liberdade abstata no se harmoniza com 0 sistema consagrado pelo direto consttucional positivo alemio (Lei Fundamental), onde se encontram diversas liberdades fundamentais especificamente previstas € limitadas por elisulas de reserva legal Ci. R. Alexy. Theorie der Grundreche. p. 247, que aponta para a ctcunstincia de que 0 objeto da toria de Jellinek €w estrutura formal das posigdes juridicas fundamentais do individuo e que tal perspectva,além de no ser incompatvel como uma concepei0 material. assume relevancia na medida em que nio é apenas necessiio que se aquestione a respeito do conteido das normas de direitos fundamentals que funéamentam o stars individual, mas, sim, sobre qual aestrutura juridico- formal que as normas devem possuir para exercerem esta fungo. + Sobre conteido do status activus processuais (além de uma ertica&teoria de Jelinek) v.. Hare, n: VWDS- RL 30 (1972). p.81 288 158 INGO WOLFSANG SARLET sitivus socials expressio da consagragdo dos direitos sociais, econdmicos e cultu- rais de natureza prestacional. assim como as demais fungdes decorrentes da perspectiv: subjetiva e objetiva dos direitos fundamentais. que igualmente devem ser considerada neste contexto. O que nos parece relevante € o fato de que a teoria dos quatro starus de Jellinek, na medida em que foi sofrendo criticas e reparos, foi mantida viva mediante um continuo processo de redescoberta pela teoria constitucional (inclusive no direi: pitrio), de modo especial. na qualidade de parametro para a classificacao dos direito~ fundamentais,® tema do qual nos ocuparemos no préximo item. 5.2.2. 0 problema da classificagao dos direitos fundamentais na Constituigdo de 1988 5.2. .1. Consideracaes preliminares A tentativa de uma classificagao sistemética dos direitos fundamentais, cales: em critérios objetives e funcionais, revela-se como sendo extremamente probleme: cae complexa. Tais dificuldades decorrem, dentre outros aspectos, da diversidade fungGes exercidas pelos direitos fundamentais, de sua distinta e complexa estrutus: normativa (por sua vez vinculada & técnica de sua positivagao no texto constituc:o- nal), bem como das especificidades de cada ordem constitucional. Além disso. =3 que considerar a existéncia de diversos critérios classificat6rios utilizados e que nem sempre so compativeis entre si, além de, por vezes. ndo serem afinados com o <2 reito constitucional positivo. Por outro lado, ainda que no se deva supervalorizar problema da classificago, este ndo se revela destitufdo de importincia para a teor.3 dos direitos fundamentais, na medida em que por meio da classificagio € possivz obter no apenas uma viso global e sistematica sobre 0 conjunto dos direitos fiz damentais, mas também parimetros objetivos para sua interpretacdo, enquadramen: funcional e até mesmo a determinagao do regime juridico aplicdvel, Analisada & luz do direito constitucional positivo brasileiro, a questdo classifi catéria revela-se como sendo particularmente problematica. Por um lado, verifica~ a dificuldade de se utilizarem os critérios classificatérios mais comuns na doutriz. na medida em que esbarram nas peculiaridades do direito positive. Além disso. a = séncia de sistematicidade e, em muitos casos, a precaria técnica legislativa do nos~2 texto constitucional” nao contribuem para facilitar o trabalho. Neste sentido. é p- © De um szatus positvus socialis nos fata D. Murswiek, in: HBSIR V. p. 248. “1 Na doutrina constitucionalslienigena, recorem a teoria de Jellinek, no que conceme i clasificagio dos 2.22." fundamentais: na Espanha, cumpre citar o nome de A.B. Pérez Lufio. Derechos Humanos, p. 58.Na Aleman — 7 * cexemplo, valem-se para a proposta de crtérios de classificagao dos direitos fundamentals Pieroth-Schlink. G- lite, p. I8e ss. ¢ C. Starck. in: von Mangolat-Klein. p. 83 ess. 14 em Portugal assume relevo a ligdo de J. St ‘Manual IV, p. 83 €8s.. que, além de propiciar uma sintética e bem-colocada apresentagio da doultina de Jel=7ex 4 utiliza como referencial para uma proposta classificatéria dos direitos fundamentais. No Brasil a teoria de != ex fo utlizada como paramietro por J.C. de Mello Filho. Constituigdo Federal Anotada, p. 425, e, mais recente por GF. Mendes. in: CDTFP n? 3 (1993), p. 23. As mais recentes abordagens da doutrina de G. Jellinek n° pitrio foram efetuadas por E. Pereira de Farias, Colisdo de Direitas. p. 82 e ss..e S. de Toledo Barros. O Pr da Proporcionalidade e o Controle de Constirucionalidade das Leis Restrtivas de Direiros Funudamentais. > ss. Também C. Ati Mello, “Os Direitos Socisis e a Teoria Discursiva do Direito”. in: RDA 224 (2001). p. prefere adotar uma classificacd0 mais afinada com a proposta original de Jelinek. * Neste semtido, a advertincia de C. R, Bastos, in: A Constimwicdo Brasileira 1988 — Imerpretagdes. p. 21¢% 238 além de erticar a amplitude do catélogo dos direitos fundamentais (o qual. na verdade ~ segundo sustenta = ni contém muitos direitos realmente novos). manifestou sua discordancia com relagao a preciria técnica tuva ublizada pelo Constituint. 'AEFICACIA 00S DIREITOS FUNDAMENTAIS. 153 ciso ter em vista que a Constituigdo de 1988 abrigou em seu catélogo (e fora deste) direitos fundamentais que exercem, em prinefpio, todas as fungGes referidas no item anterior, vinculadas & sua dupla perspectiva objetiva e subjetiva. utilizando-se, para tanto, das mais variadas técnicas de positivacao. Basta, contudo, um breve olhar so- bre o texto constitucional, para que se percebam algumas das dificuldades apontadas, Assim, por exemplo, é possivel perceber que, no ambito dos direitos sociais (arts. 6° a II da CF), se encontram tanto direitos a prestages, quanto concretizagbes dos di- reitos de liberdade e igualdade, com estrutura jurfdica diversa. Ainda no capitulo dos direitos sociais, ha que registrar a existéncia de direitos com titulares diversos, de vez que 0s direitos e garantias dos arts. 7° a 11 so outorgados apenas aos trabalhadores. a0 passo que os direitos sociais do art. 6° so, em prinefpio, direitos de todos. Além disso, constata-se que no capitulo dos direitos individuais ¢ coletivos é possivel en- contrar até mesmo normas de contetido eminentemente impositivo (normas-tarefa ou normas-programa), como demonstra 0 exemplo da proteciio do consumidor (art. 5°. inc. XXXII), contendo, ainda. tipicas garantias institucionais fundamentais, como é 0 caso da instituicdo do Tribunal do Juri (art. 5°, ine. XXXVI). Dentre os diversos critérios classificat6rios encontrados na doutrina, alguns po- dem ser exclufdos de plano. Este € 0 caso, por exemplo, da distingdo efetuada entre direitos de liberdade e igualdade. que — a despeito de sua relevancia para outros aspectos da teoria dos direitos fundamentais -. peca pela sua incompletude, ja que no abrange a totalidade dos direitos fundamentais. O agrupamento dos direitos fun- damentais de acordo com as diversas geragdes ou dimensoes ja resiste ao critério da abrangéncia, mas, no mais das vezes. se revela destituido de maior interesse pratico. a semelhanga do que ocorre com a distingdo entre direitos civis, politicos e sociais (sociais, econémicos e culturais), que até propicia uma visio panoramica no que concerne & matéria regulada pelos direitos fundamentais, mas ndo gera maiores bene- ficios quando se cuida de uma organizacao que diga respeito as fungdes dos direitos fundamentais e & forca jurfdica dos preceitos que os consagram.” E nestas classifica ges, contudo, que se situa a maior parte das propostas formuladas.** No direito brasileiro nao se vislumbra, por outro lado, a possibilidade de adotar 0 critério que norteou os pais da Constituigao da Repiblica portuguesa de 1976, de modo especial apés sua depuracio através das posteriores revisdes constitucionais, principal- mente a de 1982. De acordo com o direito constitucional positivo lusitano, os direitos fundamentais podem ser divididos em dois grandes grupos formados, respectivamente. pelos direitos, liberdades e garantias (Titulo II), e pelos direitos econdmicos, sociais e culturais (Tftulo III). Tal classificacao se justifica pelo fato de o Constituinte ter previsto regimes juridicos diferenciados para ambos os grupos, reservando uma forga juridica +3 ainda que estejamos cientes de que autores do porte de um Thomas Marschall (tal qual com propriedade alude Ferrajoli, Derechos y Garantias... p. 55 e ss.) enham adotado esta classificagdo. entendemos que se cuida de uma pproposta inadequada. pelo menos no que diz com a sua relevancia prtica (notadamente na esfera da eficdciae efet vidade) e insuficiente. tl qual ainda teremos ocasido de demonstrar neste capitulo. Dente as diversas vatiantes oferecidas no ambito da doutrina constitucional nacional, aproveitamos para citar a proposta de J. A. da Silva. Curso de Direito Constiucional Positivo. p. 163-4. para quem 0s direitos fundamentais, {e acordo com 0 seu contesdo (natureza do bem protegido e objeto da tutela). em nossa Constituigdo se classificam. ‘nos Seguintes grupos: a) direitos fundamentais do homem-individuo (direitos individusis): b) direitos coletivos (do hhomem como membro de uma coletividade): c) direitos fundamentais do homem social. ou simplesmente direitos soviais: d) direitos & nacionatidade (do homem-nacional);e) direitos do homem-cidado (ou direitos politicos). Esta classificagdo, em que pese estar atrelada & sistemitica da Constituigdo. no oferece muito mais do que uma visio ordenada Sobre 0 contetido do catilogo, tendo relevncia predominantemente didstica, 160 INGO WOLFGANG SAALET privilegiada aos direitos, liberdades e garantias, que, a0 contrario dos direitos sociais, foram incluidos nas “cléusulas pétreas” da Constituigao (art. 288. letra d, da CRP), além de serem considerados diretamente aplicdveis. vinculando todas as entidades piblicas e privadas (art. 18, n° I, da CRP). principio que nao se aplica aos direitos sociais do Titulo 111.” Cumpre reconhecer que, entre nés, tal distingao, ou mesmo alguma que Ihe seja similar, nao é, em principio, vidvel, ja que, A evidéncia, todos os direitos fundamentais esto, em tese, sujeitos ao mesmo regime juridico, A matéria nao se revela, no entanto, totalmente isenta de controvérsias, ao menos potencialmente, Neste contexto, poder-se-ia cogitar, a0 menos ad argumentandum, de uma distingdo entre os direitos fundamentais que integram as cléusulas pétreas de nossa Constituicao e aqueles que. em contrapartida. nao constituem limites ma- teriais A reforma constitucional. Tal disting4o poderia encontrar suporte na redacio do art, 60, § 4°, ine. TV, da nossa Lei Fundamental, de acordo com 0 qual, apenas os direitos e garantias individuais se encontram protegidos contra o Poder Constituinte derivado. Na medida em que teremos oportunidade de aprofundar esta questo no Ultimo capitulo deste estudo, cabe frisar, neste momento, que nao compartilhamos este ponto de vista, por entendermos que & luz de uma interpretacio sistematica e te- leol6gica € possfvel sustentar a tese de que todos os direitos e garantias fundamentais da Constituigdo (inclusive os situados fora do catélogo) constituem limite material & reforma constitucional, j4 que 0 Constituinte contemplou a todos com a mesma forga juridica e fundamentalidade. De qualquer modo, apenas com base numa andlise mais, detida desta problematica é que se poder argumentar com maior autoridade num ou noutro sentido. © mesmo pode ser afirmado relativamente a qualquer tese (indepen- dentemente de seu valor) que proponha a classificagao dos direitos fundamentais de acordo com sua eficdcia ou efetividade, na medida em que uma posigao definitiva pressupde 0 estudo prévio das questdes correlatas e logicamente antecedentes. Uma classificagao que desde j4 se revela vidvel. A luz do que até agora foi ex- posto no decorrer desta obra. é a que distingue entre direitos fundamentais escritos ou expressamente positivados (na Constituigao ou em tratados internacionais), € os direitos fundamentais nao-escritos (implicitos ou decorrentes do regime e dos princi- pios). Cuida-se de proposta sem davida nenhuma importante e embasada no direito constitucional positivo, mais especificamente, no disposto no art. 5°, § 2°, da CF, mas que, além de aludir a direitos nio-positivados e de servir de referencial para algumas das demais consideracdes sobre 0 conceito materialmente aberto de direitos funda- mentais em nossa Constituigdo. pouco contribui para uma apresentacao sistematica e funcional destes. Igualmente vinculada a problematica da abertura do catdlogo pro piciada pelo art. 5°, § 2°, da CF, encontra-se a ja referida distincao entre direitos fun- damentais no sentido material e formal (direitos positivados no texto constitucional, bem como os nao-escritos), e direitos apenas material mente fundamentais (previstos em tratados internacionais). Tal distingfo, todavia. assume relevancia apenas se co- mungarmos do ponto de vista de que os direitos apenas materialmente fundamentais esto sujeitos a regime juridico diferenciado (como. por exemplo, o fato de nao terem a mesma hierarquia das normas constitucionais ou, mesmo a tendo, de nao estarem abrangidos pelas “cléusulas pétreas”). Sobre esta forma de classificagio dos direitos fundamentais no direito constitucional lusitano, bem com a respeito do regime diferenciado entre ambos 0s grupos de direitos consultem-se as obras de J.C. Vieira de Andrade, Os Di- reitos Fundamentais. p. 94 e ss. € .C. Casalta Nabais. in: BMJ 9° 400 (1990), ‘AEFICACIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS. 161 Sem pretendermos esgotar aqui as intimeras e interessantes variantes oferecidas pela doutrina, bem como as diversas possibilidades e aspectos (positivos e negativos) que cada uma suscita, mas para ndo deixarmos de lancar aqui ao menos uma toma- da de posigdo pessoal sobre o tema, abandonamos esta fase preliminar e passamos. no prdximo item, a tecer algumas consideragdes em torno daquela que julgamos a maneira mais adequada de classificar os direitos fundamentais 4 luz de nosso direito constitucional positivo. 5.2.2.2. Consideracdes em torno de wma proposta classificatéria sob 4ngulo funcional e tomada de posicdo pessoal Entendemos, na esteira de outros autores, que é na doutrina de Jellinek, por nds sumariamente exposta, que iremos encontrar uma das vertentes mais férteis para a obtengio de uma proposta classificatoria cientificamente resistente, além de cons- titucionalmente adequada. Outro importante referencial é, sem divida, a influente concepgao de Robert Alexy, por sua vez. inspirado, ainda que parcialmente, nas li- ges de Jellinek. No direito lusitano, a doutrina de Alexy foi recepcionada (embora com as perspicazes ressalvas ¢ a devida adaptacao ao direito positivo) principalmente por Gomes Canotilho.* Aproximando-se mais do modelo original de Jellinek, en- contramos, entre nds, a recente referéncia de Pereira de Farias, em sua dissertagio de mestrado defendida em dezembro de 1995 na Faculdade de Direito da Universidade de Brasilia, o qual, por sua vez, seguiu a formulagio dada & doutrina jellinekiana pelo ilustre publicista de Coimbra. Vieira de Andrade” De qualquer modo, observa-se uma nitida tendéncia a adogdo de formulas classificatérias atreladas ao critério fun- cional, 0 que, se nao representa uma garantia de que nos encontramos no caminho correto, a0 menos demonstra que estamos em boa companhia. Analisando-se as propostas referidas, registra-se uma virtual convergéncia no que concemne & divistio, num primeiro momento, dos direitos fundamentais em dois grandes grupos, formados, respectivamente, pelos direitos fundamentais como direi tos de defesa e pelos direitos a prestagdes. A partir daf, tornam-se perceptiveis algu- mas diferengas, ainda que nao necessariamente essenciais. Em que pese a consensual subdivisdo do grupo dos direitos a prestagdes em outros dois grupos, verifica-se que para o Prof. Canotilho os direitos a prestacdes podem ser clasificados em direitos a0 acesso e utilizagiio de prestagées estaduais (por sua vez subdivididos em direitos deri- vados ¢ direitos origindrios a prestages) e, por outro lado, em direitos & participactio na organizacao e procedimento. J para Alexy, os direitos a prestagdes abrangem os direitos prestacionais em sentido amplo (direitos & protecdo ¢ direitos & organizagio @ ao procedimento), bem como os direitos a prestagdes stricto sensu, que identific com os direitos sociais de natureza positiva. De acordo com a proposta de Pereira de Farias —e, portanto, dos que notadamente optaram por uma fidelidade maior ao modelo Jellinek (na formulagio que Ihe foi dada por Vieira de Andrade) ~, 0 grupo dos direitos + CE. J.J. Gomes Cunotilho, Direito Constitucional. p. 352 ¢ ss. 7 Cf. E, Pereira de Farias. Colisdo de Direitos.p. 84e ss. Atente-se, contudo, para o fato de que 0 priprio Vieira de Andrade. Os Direitos Fundamentais. p. 192... revela ~ diga-se de passagem. oportunamente - que esta modalidade Classificatria, apesar de revelar algum interesse, no é a que melhor harmoniza com o dieito constitucional positivo lusitano. Também esta parece sera perspectiva adotada por P. G. Gonet Branco. in: Hermenéutica Constitucional ¢ Direitos Fundamennais. p. 139 e $8. a0 menos no que diz com as fungbes exercidas pelos direitos fundamentais, mais recentemente. por D. Dimoulis e L. Martins. Teoria Geral dos Direitos Fundamemiais. p. 63 € SS. 162 INGO WOLFGANG SAFLET a prestagdes encontra-se subdividido nos direitos a prestacdes juridicas e nos direitos a prestacdes materiais. Além disso, Pereira de Farias no inclui os direitos & participagio na organizagao e procedimento no grupo dos direitos prestacionais. preferindo, em vez disso, formar um terceiro grande grupo (ao lado dos direitos de defesa e direitos a pres- tagdes), que intitulou de direitos fundamentais de participagdo. ¢ que. na sua 6ti corresponderia ao status activus de Jellinek. abrangendo os direitos politicos Todas as formulagdes ~e nisto reside sua maior vantagem ~ vieram, em nos- so entender, ao encontro da necessidade de se enunciar proposta de classificagao afinada com as diferentes fungdes exercidas pelos direitos fundamentais. evitando, de tal sorte, as desvantagens das demais classificagdes, que. neste aspecto, acabam pecando por sua incompletude. Além disso. a classificagao de acordo com o critério funcional € suficientemente abrangente e eldstica para viabilizar sua adaptaco as peculiaridades do direito constitucional positivo. bem como por propiciar elementos seguros sobre as fungGes dos direitos fundamentais. com aplicagtio na seara herme- néutica, inclusive no que concere ao problema da eficdcia das normas definidoras de direitos fundamentais. Com efeito. sem nos adiantarmos aqui no exame do mérito da problemitica, verifica-se que os direitos de defesa costumam ser considerados como previstos em normas de eficdcia plena. ao passo que. na esfera dos direitos a prestac6es, se apresentam problemas comuns que levam a doutrina e a jurisprudéneia a encaré-los, no mais das vezes. como contidos em normas de eficécia limitada, A doutrina de Jellinek, como visto, desde que reavaliada & luz das circunstancias atuais, mantém, portanto, uma surpreendente atualidade. Por outro lado, ainda que no se pretenda (nem possa) polemizar com a desejavel profundidade sobre eventuais ina- dequagdes das propostas referidas. bem como sobre qual a melhor de ambas. importa que deixemos aqui consignada a nossa posigdo pessoal a respeito do assunto. Neste contexto, cumpre averbar que a proposta de Pereira de Farias (assim como todas as formulagées similares). quando se analisa mais a fundo a sua concepcio de cada um dos grupos que compdem a sua classificagdo. poderia sugerir alguns reparos, em que pesem os aspectos positives j4 destacados. Inicialmente, chama a atengdo que o autor deixou de mencionar as categorias dos direitos origindrios e derivados a pres- tages, corretamente referidas por Canotilho, e que no poderiam, salvo melhor juizo, deixar de ser contempladas, de modo especial. pela distingdo entre ambas e suas rele- vantes conseqiiéncias para a problematica do reconhecimento de direitos individuais subjetivos fundamentais a prestagdes materiais, que ainda ser objeto de andlise no decorrer deste estudo. Trata-se, contudo, de lacuna suprivel mediante a simples inclu- silo destas duas espécies (direitos derivados e originarios) no grupo maior dos direitos a prestacdes. Saliente-se. por outro lado. a acertada distingZo tracada por Pereira de Farias (implicita na classificagdo de Canotilho e expressamente prevista por Vieira de Andrade) entre direitos a prestacdes juridicas e materiais, que. mediante o reparo feito, poderia ser mantida. Outro aspecto que merece algum questionamento € a sugestdo no que tange & formagao de um terceiro grupo de direitos fundamentais, integrado pelos direitos de participacio, que abrangeria os direitos politicos. tal qual como j4 0 havia proposto o proprio Georg Jellinek. Verifica-se. neste particular. que tanto Pereira de Farias quan- to Vieira de Andrade (assim como, mais recentemente, Dimitri Dimoulis e Leonardo ‘AEFICACIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS 163 Martins)** reconhecem — com corregiio — que se cuida de categoria mista, agregando elementos préprios dos direitos de defesa e dos direitos a prestagdes, embora niio resulte suficientemente explicitada a dimensio prestacional dos direitos e liberdades politicas. Neste sentido, cabivel a observacio de que eventual duplicidade de fungdes nao justifica, por si s6, o enquadramento dos direitos politicos num grupo distinto. na medida em que os direitos de participacao podem ser perfeitamente inseridos no grupo ao que mais se ajustam (direitos de defesa ou direitos a prestagdes, conforme o caso). Além disso, omitiram os autores citados a necesséria referéncia aos direitos de participacdo na organizagio e no procedimento, habitual e corretamente integrados (como sustentam Alexy e Canotilho) ao grupo dos direitos prestacionais em sentido amplo. Assim, entendemos que também neste sentido a proposta formulada entre nés por Pereira de Farias poderia sofrer um leve ajuste, no sentido de excluir os direitos de participaco como grupo autonome, reagrupando-os nos dois primeiros grupos, de acordo com sua funcao preponderante.”” Para além do exposto, percebe-se que Pereira de Farias (assim como as classi- ficagdes mais fiéis ao modelo de Jelinek), na sua inovadora obra sobre a temdtica da colisao entre direitos fundamentais, no contemplou (nem no Ambito das categorias especificas), a relevante (e por nds sumariamente referida) funcao representada pelo reconhecimento de deveres de protegio do Estado, aos quais, 20 menos em princf- pio, poderiam corresponder auténticos direitos fundamentais & protegao. Inobstante a necessidade de se aferir a possibilidade de uma recepgao desta categoria de direitos fundamentais em nosso direito positivo (tarefa ainda no empreendida), cuida-se de grupo expressa e corretamente previsto por Alexy e que se enquadra no grupo dos direitos a prestagdes em sentido amplo, tratando-se, principalmente, de prestagées juridicas, e nao fiticas. Por derradeiro ~ em que pesem outras digressdes possfveis — entendemos passf- vel de questionamento o enquadramento das garantias institucionais, tal como efetua- do por Pereira de Farias, que as integrou nos direitos a prestagdes, especificamente, na categoria dos direitos a prestages jurfdicas do Estado. Tal posigdo foi mantida pelo citado autor na 2* edigao de sua obra. inclusive refutando, com argumentos de valor, 0 nosso entendimento. Todavia, reconhecendo uma eventual duplicidade de funcdes, consideramos que nao é o fato de que as garantias institucionais (como de resto, tqdos 0s direitos de defesa) reclamam medidas positivas de protego, que tém 0 condo de afastar sua incluso — pelo critério da fungao preponderante (¢ nao exclusiva) ~ no grupo dos direitos de defesa. Seu objetivo principal continua sendo o de proteger determinadas instituigdes (ou institutos) contra o esvaziamento, su- pressio owt ingeréncias indevidas. Entendemos, neste particular, que nao se veri ca qualquer sustentaculo para a incluso das garantias institucionais no grupo dos 8 Cf, Teoria Geral dos Direitos Fundamenais. p. 68 ¢ Ss. +® Neste particular. cumpre destacar que tal omissio foi reconhecida suprida na 2" edicdo da importante obra de E. . Farias. Colisdo de Direits.p. 108. No mais. o ilutre autor segue mantendo sua posigao de enunciar os direitos de partcipacdo como categoria auténoma. Neste sentido, destaca-se que nlo obstante tal seja una ateroativa plat sfvel. que, de esto, encontr respaldo em abalizada doutrna ¢ continua araindo adeptos,continuamos sustentando ave os direitos de paricipacio, endo em conta sua dimensio prestacional ou defensiva preponderante (embora nl exclusiva). podem ser reconduzidos aos direitos de defesa ou prestacionas. Ito, por outo lado. no afasta, como sempre reconhecemos. 0 fato de que em muitos casos os dieitos fundamentais possuem uma dupla fungio negativa (ou defensiva)e prestacional. 5 CFE. P. Farias, Colisdo de Direitos.p. 108. 164 INGO WOLFGANG SARLET direitos a prestagdes, 0 que nao significa que com isto estejamos negando a efetiv: dimensao protetiva destas posig6es juridicas fundamentais, como, de resto, de todos 0s direitos fundamentais enquanto obstéculo a intervencdes dos poderes piiblicos Consideramos, todavia, que se estas devem ser inseridas no Ambito das propostas classificatérias ora examinadas, devem ser reportadas ao grupo dos direitos de defe- sa, na medida em que, consoante ligdo de C. Schmitt ~ correta e oportunamente reco- Ihida pelo proprio Pereira de Farias —, as garantias institucionais objetivam outorgar uma especial protegao a determinadas instituiges, no sentido de evitar sua supressio por intermédio do legislador infraconstitucional.** Afastando-nos jé do Ambito especffico das consideragdes tecidas em torno das propostas classificatdrias formuladas ¢ encaminhando-nos para uma tomada de posi- do nesta seara, deparamo-nos com algumas questdes interessantes. Poderiamos, por exemplo, indagar da pertinéncia de formarmos, 20 lado dos direitos de defesa e direi- tos a prestacdes, um terceiro grupo, composto exclusivamente pelas garantias insti- tucionais fundamentais. Saliente-se que este terceiro grupo nao abrangeria os assim denominados direitos-garantia, limitando-se as garantias institucionais propriamente ditas, consideradas, em principio. como insuscetiveis de gerarem direito subjetivo in- dividual. Trata-se. contudo, de uma possibilidade que esbarra em alguns ébices e que, portanto, deve ser encarada com reservas. Em primeiro lugar, € de questionar-se se- riamente a respeito da existéncia de alguma garantia institucional que nao possa, em hipotese alguma, gerar direito subjetivo individual ou mesmo de titularidade coletiva De outra banda, poder-se-4 perguntar se as garantias institucionais nao poderiam, neste contexto, ser reunidas num terceiro grande grupo de direitos fundamentais, a0 lado de outras normas consagradoras de direitos fundamentais com sua eficdcia res: trita A dimensao objetiva. No que tange a este aspecto, seria preciso reconhecer uma classificaciio que, apesar de abranger todas as fungGes dos direitos fundamentais, tomaria como ponto de partida a distingo destes em dois grandes grupos, de acordo com sua condi¢io de direito subjetivo ou exclusivamente juridico-objetiva Nao se deve esquecer, contudo, que as diferentes fungdes (ainda que nem sem- pre € no todas a0 mesmo tempo) dos direitos fundamentais podem reunir-se na mes- ma norma que 0s consagra. sendo comum a propria convivéncia das perspectivas juridico-subjetiva e juridico-objetiva. Embutir-se mais um critério de classificagao nas propostas ja referidas, calcadas — em nosso entender corretamente ~ no parimetro das fungGes (Seja na qualidade de direito subjetivo. seja como decoméncia da pers- pectiva objetiva) exercidas pelos direitos fundamentais. poderia colocar em risco a necessiiria elasticidade ¢ o proprio rigor ldgico e sistematico da classificagao.* 50) Cf, E, Pereira de Farias, Colisdo de Direitos. p. 88. 52 Ao pasco que nas formulagdes de Canatilho e de Pereira de Farias wansparece a vinculagdo das respectivas pro- postas lassificagées is fungSes tipicamente desempenhadas por estes na ordem constitucional (Canotilho aborda 0 tema no capitulo sobre as fungées dos direitos fundamentals. e Pereira de Farias refere-se expressamente a0 modelo de Jellinek e & teoria das posigdes juridicas fundamentals de Alex), verifica que R. Alexy. por sus vez. deixa twansparecer que sua classficagio se encontra vinculada a uma concepeao dos direitos fundamentais como direitos. subjetivos com sede na Constituiglo. no sentido de pasigdes subjetivas individuais justicidveis. distinguindo-os de norms meramente objetivas (Theorie der Grundrechte. p. 405). Também a defesa recentemente envidada por parte de D. Dimoulis e L. Martins. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais, p. 64 ess. especialmente p. 68 ¢ ss.) no nos cconvence a abandonar a tese de que a distingio entre direitos de cunho negativo (defensivo) ¢ positive (prestacional). calcada no critério do objeto do direito subjetivo, é a mais adequada para uma classificagao de todos os direitos fundamentals. O fato de termos aderido as criticas enderegadas & clasificagio de Jllinek nado significa dizer que nto se cuide de uma outra forma legitima de classificar os direitos fundamentais, baseada em critério préximo, embora ‘AEFICACIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS 165 Baseados no que até agora foi exposto, seja no que concerne A dupla perspectiva objetiva e subjetiva dos direitos fundamentais, seja no que tange a sua multifunciona- lidade e classificagao. tentaremos formular ndo tanto uma proposta prdpria e original de classificago dos direitos fundamentais, quanto uma aproximagdo entre os mode- los j4 referidos, bem como destes com 0 direito constitucional positivo patrio, cujas especificidades deverdo ser respeitadas e devidamente embutidas na classificacio que iremos sugerir a titulo de posicao pessoal sobre a matéi Jientar desde ja, que. nada obstante a absoluta falta de harmonia com a sistematizacao (ou falta desta) levada a efeito pelo constituinte. nio nos furtaremos a adentrar, ainda que sumariamente, os aspectos criticos que suscita a técnica de redagiio da nossa Lei Fundamental, inclusive no que diz com a impossibilidade de seguirmos até mesmo a terminologia (imuitas vezes equivocada) utilizada pelo constituinte, pelo menos no que diz com a problemitica da classificagiio dos direitos fundamentais. Todavia, & preciso frisar que tais consideracées sero tecidas ao explicitarmos 0 nosso esquema classificatério € suas categorias especificas. Torna-se necessiria, por seu tuo, a adverténcia de que as eategorias referidas no texto da Constituicao (direitos e garantias individuais e coletivos. direitos sociais, direitos politicos, etc.), fatalmente restario deslocadas, na medida em que sero en- quadradas sob outro critério. Apenas a titulo exemplificativo, verificar-se-4 que no Ambito dos direitos sociais convivem simultaneamente direitos de defesa (liberdade e igualdade) e direitos prestacionais. razio pela qual, & luz do critério adotado, a expressio “direitos sociais” nao se revela adequado para servir de epigrafe a0 grupo dos direitos a prestagdes. Por outro lado, hé que Jevar em conta a circunstancia de que varias das normas definidoras de direitos fundamentais exercem simultaneamente duas ou mais fungdes, sendo, neste sentido, inevitavel alguma superposi¢ao. Neste contexto, cumpre teferir que a propria distineao entre as diversas fungdes dos direitos fundamentais nem sempre € clara e perfeitamente delimitada. E de destacar-se, ainda, que a inclusio dos direitos fundamentais em um ou outro grupo se baseia no critério da predominancia do elemento defensivo ou prestacional, j4 que os direitos de defesa podem, por vezes, assumir uma dimensao prestacional, e vice-versa. Além disso, temos plena consciéncia de que também aqui nao temos condigdes de oferecer muito mais do que uma breve digresséio em torno de algumas das facetas que suscita a pro- blematica da classificagio dos direitos fundamentais, além de uma proposta classifi- cat6ria sujeita a eriticas e desenvolvimentos da mais variada natureza, .. Neste contexto, cumpre sa- Com base em tudo o que foi exposto e afastando-nos de formulagao anterior sobre este tema, entendemos que uma classificagZo dos direitos fundamentais cons- istimo. Voltando ao exemplo dos direitos (assim também chamados) de participasao politica, jé demonstramos que estes, na sua condigio de direitos subjetivos, geram ou poderes negatives (no intervengtio na direito de exercer 0 voto ou ser votado) quanto positives, também sendo abrangidos pela elassificagio por nds advogada, 5 Recentemente, também J. Schifer. Classificacdo dos Direitos Fundamemtais. p. 41-44. menciona o critério da preponderancia. aderindo, além disso, ao entendimento advogado nesta obra, desde a sua primeira edigo (1998) no sentido de que a classificagio dos direitos em direitos positivos e negatives nao & incompativel com a classificagao dimensional. j4 que pode haver direitos negativos e positives em todas as dimensoes (geragdes. para quem ainda assim prefere) dos direitos. Referimo-nos aqui i classificagao por n6s proposta na tese de doutoramento apresentada perante a Universidade de ‘Munique. Alemanha. publicada pela Fd. Peter Lang. Frankfurt. sob o titulo Die Problematik der Sovialen Grundrechie in der Brasilianischen Verfassung und im Deutschen Grundgeset: (A Problematica dos Diteitos Fundamentais Sociais. ‘na Constituigdo Brasileira e na Lei Fundamental da Alemanha). aa qual - em virtude do objetivo especifico de ofere 166 INGO WOLFGANG SARLET titucionalmente adequada e que, por sua vez, tenha como ponto de partida as fungdes por eles exercidas. poderia partir, na esteira da proposta de Alexy, da distingao entre dois grandes grupos: os direitos fundamentais na condicao de direitos de defesa e os direitos fundamentais como direitos a prestagdes (de natureza Fatica e juridica).” O segundo grupo (dos direitos prestacionais). dividir-se-ia igualmente em dois subgru- pos, quais sejam, o dos direitos a prestagdes em sentido amplo (englobando, por sua vez, 08 direitos de proteco e os direitos a participago na organizagao e procedimen- to) eo dos direitos a prestagdes em sentido estrito (direitos a prestacdes materiais sociais), salientando que a ambos se aplica a distingdo entre os assim denominados direitos derivados e os direitos origindrios a prestagdes, que ainda sera objeto de nossa atengiio.* Para facilitar a visualizago, oferece-se o esquema que segue. salientando, ain- da, que sua explicitagao. de modo especial no que diz com o significado e contetido de cada categoria, bem como relativamente as questdes suscitadas pela necessidade de harmonizagdo com o direito constitucional patrio, se dard no préximo item Direitos fundamentais como direitos de defesa ~ Direitos fundamentais como direitos a prestagdes, ~ Direitos a prestagdes em sentido amplo — Direitos & protegao — Direitos a participagao na organizagao e procedimento — Direitos a prestagdes em sentido estrito ‘cermos uma visio panorimica sobre 0 conjunto dos direitos fundamentals - optamos por um modelo clussifieat6rio sais atrelado & sistemtica do texto constitucional, e nao rigorosamente baseado num critéio funcional 50 Vale lembrar aqui que a despeito de sugerir. no nosso sentir questionsvel. uma distingio entre direitos de liber- dade e direitos de justiga (como se 0 valor liberdade nao constitufsse também um referencial de justiga) também G., Zagrebelsky. El Derecho Diicil. Ley. Derechos. Justicia, p. 82. admite, na sua bela obra. uma dupla dimensio Positiva e negativa dos direitos fundamentais. Ainda no que diz com outros critérios de classificagio dos direitos fundamentais. colacionamas. dentre outras propostas formuladas por eminentes autores. a sugestao de Habermas. Faktizta und Gelnung... 9. 155 © 85» que. partindo basicamente de um critério de fundamentagio flossfica dos direitos, considera que 0 sistema de direitos fundamentais € composto pelos seguintes grupos de dircitos. que assegu- ram & pessoa o seu status de cidadao: 1) Direitos fundamentais que decorrem do diseito & maior medida possivel de nis direitos subjetivos de liberdade ("Grundrechte, die sich aus der politisch autonomen Ausgestaltung des Reclus auf das grostmdgliche Mass gleicher subjektiven Handlungsfreiheiten ergeben”): Tais direitos fundamentais. por sua vvez, exigem como correlativos necessérios: 2) Dieitos que decortem da condigo de membro da livre associayaio de parceiros na comunidade juriica (“Grundrechte die sich aus der politisch autonomen Ausgestaltung des Stats eines Mitgliedes in einer freiwilligen Assoziation von Rechtsgenossen ergeben”): 3) Direitos que decorrem diretamente da possibilidade de exigirjudicialmente direitos e a protesio individual por parte da ordem juridica ("Grundrechte. die sich unmittelbar aus der Einklagbarkeit von Rechten und der politisch autonomen Ausgestaltung des individuellen Rechasschutzes ergeben” 4) Direitos d igual possibilidade de panicipacdo nos processos de formacio de opiniao vontade. no dmbito dos quais os cidadios exercem sua autonomia politica ("Grundrechte auf die chancenglei che Teilnahme na Prozessen der Meinungs-und Willensbildung. worin Burger ihre politische Auronomie ausuiben tund wodurch sie legitimes Recht setzen”): 5) Direitos 3 garantia das condigdes de vida, que devem ser de tal sorte asseguradas de modo social, tgenico e ecoiégice, na medida em que isto se revela indispensivel para uma pavitiria possibilidade de usufrur dos direitos elencados nos itens 1 a4. nas condigGes ¢ circunstincias em que isto for psec tivamente necessirio ("Grundrechte auf die Gewabhrung von Lebenshedingungen. die in dem Masse sozial. technisch tund dkologisch gesichert sind, wie dies fUr eine chanvengleiche Nutzung der (1) bis (4) genannten birgerlichen Rechte unter gegebenen Verhaltnissen jeweils notwendig ist”). Sublinhe-se. aqui. que efetuamos uma tradugao livre ¢ resumida da sistematizagZo apresentada por Habermas. de tal sore que a fizemos acompanhar. para fins de con: feséncia. da integra do texto em alemao. De outra parte. cuida-se de classificago formulada a partir de eritérios de {ustiga e fundamentagdo filos6fica dos direitos, que. em prinefpio. ndo conflita necessariamente com a classificagao ‘por nds adotads, embasada em eritgrios de outra natureza. ® Nesta linha parece situar-se também a classificagio recentemete adotada por G. F. Mendes, in: Hermendutica Constitucional e Direitos Fundamentais, p. 200. ss /AEFICACIA 00S DIREITOS FUNDAMENTAIS 167 5.2.2.3. Sumédria apresentacdo das diversas categorias de direitos fundamentais individualmente consideradas 5.2.2.3.1. Os direitos fundamentais na qualidade de direitos de defesa. De acor- do com a classica concepcao de matriz liberal-burguesa, os direitos fundamentais constituem, em primeiro plano, direitos de defesa do individuo contra ingeréncias do Estado em sua liberdade pessoal e propriedade.*” Esta concepgiio das fungdes dos direitos fundamentais — em que pese o reconhecimento de diversas outras no Ambito de sua dimensao subjetiva e objetiva — continua ocupando um lugar de destaque. transcorridos mais de duzentos anos de hist6ria dos direitos fundamentais. Como oportunamente averba Konrad Hesse, mesmo uma ordem constitucional democrética necesita de direitos de defesa, na medida em que também a democracia nfo deixa de ser exercicio de poder dos homens sobre homens, encontrando-se exposta As ten- tagdes do abuso de poder. bem como pelo fato de que mesmo num Estado de Direito os poderes piiblicos correm 0 risco de praticar injustigas.** Acima de tudo, os direitos fundamentais — na condigao de direitos de defesa — objetivam a limitagao do poder estatal, assegurando ao individuo uma esfera de liberdade e outorgando-Ihe um direi- to subjetivo que lhe permita evitar interferéncias indevidas no ambito de protecao do direito fundamental ou mesmo a eliminagdo de agressGes que esteja sofrendo em sua esfera de autonomia pessoal.” Com base no que até agora foi exposto, pode afirmar-se, portanto, que os direi- tos fundamentais de defesa se dirigem a uma obrigagao de abstencio por parte dos poderes piiblicos. implicando para estes um dever de respeito a determinados inte- resses individuais, por meio da omissdo de ingeréncias ou pela intervengaio na esfera de liberdade pessoal apenas em determinadas hipéteses e sob certas condigdes."" Na esteira destas consideracdes, importa consignar, que esta “funcao defensiva” dos direitos fundamentais nao implica. na verdade, a exclusao total do Estado, mas, sim, a formalizacio e limitagao de sua intervencdo, no sentido de uma vinculagio da in geréncia por parte dos poderes piblicos a determinadas condigdes e pressupostos de natureza material e procedimental, de tal sorte que a intervencao no Ambito de liber- dade pessoal no é vedada de per si, mas. sim, de modo que apenas a ingeréncia em desconformidade com a Constituigao caracteriza uma efetiva agressao.3" A titulo de sfntese e de acordo com a plastica formulacao de Gomes Canotilho, “os direitos fundamentais cumprem a funco de direitos de defesa dos cidadiios sob uma dupla perspectiva: (1) constituem, num plano juridico-objetivo, normas de com- peténcia negativa para os poderes piblicos, proibindo fundamentalmente as inge- réncias destes na esfera individual; (2) implicam, num plano juridico-subjetivo, 0 Neste sentido. denire outros. A. Bleckonann, Die Grundrechte. p.241. 58 Cf. K, Hesse, Grundzige. p. 131, #® V.. por todos. C. Starck. in: von Mangoldt-Klein. p. 84. ¢, mais recentemente. Jarass-Pieroth. p. 18. Picroth- Schlink. Grundrechte, p. 19.€ M. Sachs, in: M. Sachs (Org.). Grundgeset.p. 80. No direito luso-brasiliro,citemse. por exemplo. J. Gomes Canotitho, Direito Constitucional. p. 552. e. por ultimo. E, Pereira de Farias. Colisao de Direivos. p. 84. 510 Esta a ligdo de G. Manssen. Staatsrecit I. p. 13. SCI. H. Dreier. in: JURA 1994. p. $06. que. além disso. salienta que a ordem constitucional com isto no coloca os. direitos 8 disposigio do legislador ordindrio. na medida em que conta com instrumentos que garantem a sua (da Constituicao) supremacia 168 INGO WOLFGANG SARLET poder de exercer positivamente direitos fundamentais (liberdade positiva) ¢ de exigir omissdes dos poderes piblicos. de forma a evitar agressGes lesivas por parte dos mesmos. Independentemente de qualquer exame mais detalhado das diferentes posigdes juridico-subjetivas e/ou objetivas que podem estar agregadas 4 funcao dos direitos fundamentais como direitos de defesa, h4 que tecer algumas consideragdes sobre quais os direitos fundamentais que efetivamente integram este grupo. Neste sentido, inexiste maior controvérsia no que concerne a uma identificacao dos direitos de defe- sa com os assim denominados direitos fundamentais da primeira dimensio, integra- dos pelos tradicionais direitos de liberdade e igualdade, consagrados nas primeiras declaraces de direitos, ao lado dos direitos & vida e do direito de propriedade, todos recolhidos. no que diz com sua vertente filos6fica. da doutrina do direito natural, Se, relativamente as liberdades fundamentais (exemplificativamente, de locomogao, de consciéncia, manifestacdo do pensamento. de imprensa, de associacio, reunido, etc.), inexiste, desde logo, qualquer davida no que concerne 2 sua funcdo defensiva jd sumariamente explicitada, tal nao se revela com tanta naturalidade com relagao ao direito (ou direitos) de igualdade, Sua incluso neste grupo, em que pese sua estrutura normativa diferenciada.> justifica-se na medida em que garantem a protegdo de uma esfera de igualdade pessoal, no sentido de que o individuo, em prinefpio, nao pode ser exposto a ingeréncias causadas por tratamento discriminatério (desigual), gerando, em conseqiiéncia, um direito subjetivo de defesa contra toda e qualquer agressio a0 principio da igualdade.™* Anda no que diz com as posigées juridicas fundamentais que integram os direi- tos de defesa, importa consignar que estes no se limitam as liberdades e igualdades (direito geral de liberdade ¢ igualdade, bem como suas concretizagdes), abrangendo, ainda, as mais diversas posicdes juridicas que os direitos fundamentais intentam pro- teger contra ingeréncias dos poderes puiblicos e ~ na medida em que se pode admitir uma eficécia privada dos direitos fundamentais — contra entidades particulares, de tal sorte que, em princfpio, se cuida de garantir a livre manifestagao da personalidade (em todos os seus aspectos). assegurando. além disso, uma esfera de autodetermina- gio (autonomia) do individuo.* Percebe-se. portanto, que 0 espectro dos direitos de defesa é de uma amplitude impar, permitindo, inclusive, desenvolvimentos dos mais diversos. Observa-se, neste contexto, além da sobrevivéncia. nas declaragées de direi- tos, dos cléssicos direitos de defesa de matriz liberal-burguesa, a incorporagio de uma quantidade significativa de novas manifestagdes destes direitos, sem que estes —no que tange & estrutura normativa e fungdes — possam ser substancialmente distin- guidos do modelo classico. Basta a referéncia. a titulo meramente exemplificativo, 8 liberdade de informatica e as regulamentagdes na drea da manipulactio genética, transplante de érgaos, ete. Igual mente no Ambito dos direitos de defesa pode ser en- quadrada a maior parte dos direitos politicos, das garantias fundamentais e, inclusive, parte dos direitos sociais, alguns j4 contemplados nos primeiros catélogos. Sobre C£.JJ. Gomes Canotitho. Direito Constitucional. p 519 Sobre a esirutura juridica dos direitos de liberdade e igualdade v. H.-U. Gallwas, Grundrechte, p. 28 ess. 14 Bstaa ligdo. dentre outros, de M. Sachs. in: M. Sachs (Org.). Grundgeset:.p. 81. 518 Neste sentido. v. K. Stern. in: HBSIR V.p. 70-1 A EFICACIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS. 169 estes tiltimos trés grupos de direitos, de modo especial sobre as especificidades do sistema constitucional patrio na seara dos direitos de defesa, convém sejam tecidas algumas consideragdes de cunho mais individualizado. O mesmo impoe-se relativa- mente aos direitos individuais e coletivos, assim referidos pelo Constituinte de 1988. {4 que estes costumam ser identificados com os direitos de defesa (direitos clssicos de liberdade) a) Os direitos individuais e coletivos do art. 5° da Constituigéo de 1988 no dmbito dos direitos de defesa. Inicialmente, hd que fazer ao menos uma breve referéncia ao significado dos assim denominados direitos individuais e coletivos — para utilizar a terminologia da nossa Lei Maior ~ e de seu enquadramento no status negarivus ¢ libertatis caracteris- tico dos direitos de defesa. A distinc (ao menos aparente), tragada pelo Constituinte entre direitos (e garantias) individuais e coletivos representa uma novidade do dircito constitucional vigente. de tal sorte que no encontramos referenciais no direito cons- titucional pretérito que possam elucidar a questo, a qual. além disso, igualmente nao foi enfrentada por boa parte da doutrina. A relevancia da distincao se manifesta no somente no que diz com aspectos procedimentais, ligados a efetivacio dos direitos coletivos. mas pode assumir real importincia dependendo da exegese que fizermos do art. 60, § 4°, inc. IV. da CF, que, a0 menos segundo a expressio literal do texto, exclui os direitos e garantias coletivos do rol das “cldusulas pétreas”. Assim, so trés 08 aspectos que aqui devem ser enfrentados. quais sejam: a) a distingdo entre direitos e garantias individuais e coletivos propriamente ditos no direito constitucional pitrio: b)a identificacdo dos direitos que efetivamente podem ser qualificados de coletivos: € c) a relagao de pertinéncia entre os direitos individuais e coletivos (contidos no rol do art. 5° da CF) e os direitos de defesa. Como ponto de partida para a distingao entre direitos e garantias individuais ¢ coletivos encontramos. na doutrina nacional. a lico de José Afonso da Silva, para quem os direitos individuais constituem “direitos fundamentais do homem-individuo. que so aqueles que reconhecem autonomia aos particulares, garantindo a iniciativa e independéncia aos individuos diante dos demais membros da sociedade politicu e do préprio Estado”. ao passo que os direitos coletivos podem ser. segundo o mes- mo autor. conceituados como “direitos fundamentais do homem-membro de uma coletividade”, ressaltando. em outra passagem de sua obra. que boa parte dos direitos coletivos mencionados sob esta rubrica na Constituigzio (no rol do art. 5°) 6, na ver-* dade, “direitos individuais de expresso coletiva. como as liberdades de reuniio e associacdo”, ao passo que outros se encontram dispersos no texto constitucional.$” Com base na distingdo tragada a luz do direito positivo, verifica-se, de plano. que o Constituinte nao deixou transparecer uma definigdo precisa de direitos coleti- SIC J. A.da Silva, Curso de Direito Constitucional Positiva. p. 171 57 Cf. 1. Ada Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo. p. 163 e 174-5. onde relaciona diversos exemplos de direitos coletivos situados no capitulo dos direitos socias (ants. 8° e 9" da CF), bem como nv capitulo dos direitos politicos (art. 14. nes. 1a ID). No direito patrio. esta definig2o pare os direitos individuais foi também adotada, dentre ‘outros, por M.L.Q. Soares. in: RIL n® 115 (1992). p. 96. Outra tentativa de distingao foi empreendida por J. Ribas Vieira. in: RIL. n° 104 (1990). p. 275 ess.. que vinculou os direitos coletivos & crise do Estado social e aos movimen: tos sociais na drea da defesa do meio ambiente e do consumidor. Este critéri, contudo. em que pese a sus respeitabi- Tidade. carece de maior precisio e apresenta dificuldades evidentes de adaptagio ao direito consttucional positiv. 170 INGO WOLFGANG SARLET vos. Inicialmente. cumpre frisar (como reconhece José Afonso) que a grande maioria dos dispositivos elencados sob o rétulo de coletivos so, na verdade. direitos tipica- mente individuais, ainda que de expressao coletiva, no sentido de que sio exercidos, nao isolada, mas coletivamente. A existéncia de direitos coletivos tipicos e 0 que isto significa para o direito constitucional patrio nao ficou. porém, elucidado. Além disso, verifica-se que diversos dos direitos individuais de expressio coletiva (espe- cialmente as liberdades de reunio e de associago) integram. na verdade. juntamente com os direitos individuais propriamente ditos (a rigor. ambos nao passam de direitos individuais). 0s direitos fundamentais da primeira dimensao. no ambito da tradigao liberal Neste contexto, cumpre referir a ligdo de Vieira de Andrade, que oportuna- mente apontou para a circunstancia de que os assim denominados direitos coletivos ndo podem ser usufruidos pelo individuo isoladamente, na medida em que pressu- poem uma atuacio conjunta de mais de uma pessoa individual. continuando a ser. neste sentido. direitos individuais. de tal sorte que a coletividade passa a ser apenas um instrumento para o exercicio do respectivo direito “coletivo” +” Algo diferente ocorre. contudo. quando nos deparamos com os assim chamados direitos fundamentais da terceira dimensio (direitos de solidariedade ou fraternida- de), os quais efetivamente tiveram sua titularidade, ao menos em prinefpio, outorgada a coletividade (ou entes coletivos), e ndo & pessoa individual. como demonstram os cxemplos do direito & paz. ao desenvolvimento, & autodeterminagao dos povos e a0 meio ambiente ecologicamente equilibrado, sendo justamente esta titularidade cole- tiva que costuma ser utilizada como critério basico para estabelecer a distingao entre estes direitos e os das duas dimensdes anteriores.® Na Constituigdo de 1988, estes direitos da terceira dimensio nao foram contemplados diretamente no catélogo dos direitos fundamentais, podendo ser encontrados no preimbulo (direito ao desenvol- vimento), nos prinefpios fundamentais (autodeterminagdo dos povos e defesa da paz fart. 4°, incs. III e VI}). J4 0 direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e qualidade de vida foi expressamente contemplado no capitulo da ordem social (art. 225), assumindo, de acordo com a formulacao empregada pelo Constituinte. a fei- Go de um “bem de uso comum do povo”. podendo, neste sentido, ser qualificado como auténtico direito coletivo, ainda que se possa controverter a respeito de set cardter de direito fundamental." Verifica-se. portanto, que no caso dos direitos da terceira dimensio a faceta coletiva assume caracteristicas bem diversas das que se 518 Esta a ligho de C. Laer. A Reconstmigdo dos Direitos Humanos. p. 127. para quem estes direitos de expresso coletiva (direito de reunio e associagi0. direito de greve. liberdade de associagao sindical e partidsria) complemen: ram gradativamente 0 catdlogo da Declaragao de 1789 no decorrer do sculo XIX. 51 Cf, LC, Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais. p. 174. que. por sua vez. distingue os direitos individuais, de expresso coletiva dos direitos fundamentais das pessoas coletivas. 52 Neste sentido. v. novamente C. Lafer. A Reconstrugdo dos Direitos Humanos. p. 131. Registre-se neste contexto ‘a contibuigdo de J. L. Bolzan de Morais. Do Direito Social aos Inveresses Transindividuais. especialmente. p. 123 stiva terminologia (transindividuais) aplicada aos direitos de solidariedade de natureza coletiva, muito embora se possa afirmar que nem todos os direitos (ou interesses) transindividuais sejam necessa- riamente fundamentais. Nesta linha situa-se, precisamente 0 entendimento dz R. L. Torres, in: Teoria das Direitos Fundamentais. p. 296-7. 521 Neste contexto. ainda que se cuide de dispositive localizado fora do catilogo. entendemos que se trata de um auléntico direito fundamental, © que encontra suport na abertura propiciada pelo art. 3°. § *. da CF. bem como n0 reconhecimento do direito a0 meio ambiente ¢ & qualidade de vida nos tatados internacionais sobre direitos huma- ‘nos. Sobre este tema, eemetemos a leitor ao Capitulo IV. supra, AEFICACIA 00S DIRE!TOS FUNDAMENTAIS 171 aplicam aos direitos individuais de expressio coletiva encontrados no catilogo de nossa Constituigdo.™ Uma primeira conclusao que resulta do até agora exposto vai no sentido de que — com excegao dos direitos que integram a assim denominada terceira dimensio ~ to dos os direitos coletivos da Constituicio nao se distinguem, nem por sua titularidade, nem por sua fungao € estratura juridica, dos direitos individuais. De acordo com a tradig&o de nosso direito constitucional, os direitos individuais ~ desde a Constituigo Imperial de 1824 — sempre foram considerados tipicos direitos de liberdade, no senti- do de direitos de defesa do individuo em relagao ao Estado, ainda que na doutrina seja frequente a referéncia a uma fundamentacio jusnaturalista destes direitos." Nos seus comentarios & Constituigdo de 1891, Ruy Barbosa jé havia chamado a atengao para 0 fato de que todos os direitos individuais tem em comum sua caracteristica limitadora do poder estatal, nao impondo aos poderes ptiblicos agdes positivas.* Nesta mesma linha, Alcino Pinto Falcdo conceituou os direitos individuais como sendo aqueles que garantem ao individuo uma esfera aut6noma de liberdade perante o Estado. Sem adentrar 0 exame das intimeras conceituagdes de direitos individuais, im- porta consignar que os direitos individuais e coletivos (para utilizar a terminologia da Constituic&o), tais como arrolados no art. 5° e em seus 77 incisos, correspondem, em principio, aos classicos direitos de liberdade,*™ exercendo primordialmente a funcao de direitos de defesa, ainda que tenham sido enriquecidos por novas liberdades e ga- rantias. Para além disso, ha que ter em mente que os direitos fundamentais situados fora do rol do art. 5° da CF. nem por isso deixam de ser também direitos individuais (ou individuais de expresso coletiva), mas, sim, que foram agrupados de forma di- versa em virtude de seu contetido ou suas fungdes. Da mesma forma, verifica-se que no proprio catilogo do art. 5° da CF se encontram, além de uma absoluta maioria de direitos de defesa, direitos individuais com acentuada dimensio social (como o di- reito de propriedade)” e até direitos a prestagdes.™* Por outro lado, grande parte dos direitos fundamentais sociais politicos de nossa Constituigao constitui, na verdade, tipicos direitos de defesa, aspecto que ainda serd objeto de nossa atengo neste item. CCumpre referir aqui as iniimeras questées suscitadas pelos direitos de terceira dimensao, tanto no que diz com 1 devida conceituagdo de sua natureza coletiva (aqui se enquadra a difundida expressdo “direitos difusos"), quanto ‘com os aspectos ligados & sua efetivagio, questBes que, em face do objeto do presente trabalho, no serio alvo de analise. Especificamente no que tange ao direito ao meio ambiente, jé concretizado em nivel legislativo, 0 leitor tem | disposiglo fara literatura onde pode aprofundar seu estudo sobre 0 tema, Ressalte-se que mesmo os direitos de ter- ceira dimensfo revelam uma faceta individual inequivoca, consoante jé ressaltado oportunamente no capitulo sobre as diversas dimensGes dos direitos fundamentais. 523 Neste sentido a ligdo de R. Barbosa. Commentérios, V.p. 189, que agui se arrima na obra de Pimenta Bueno, mais. ilustre comentarista da Constituigio de 1824, 5% Cf, R, Barbosa, Comentarios, V. p. 190. baseado, por sua vez. nas ligdes do publicsta francés Esmein, Neste sentido, cf. ambém R. Russomano, Curso de Direito Consttucional, p. 205, S5.CE AP. Falco. Constituicio Anotada, voll. p. 47. 528 aqui cumpre citar a ligdo de P. Ferreira. Principios Gerais do Direito Constitucional Modemo. vol. Ul. p. 13. Anda que este renomado publicista tenha tecido seu comentario em relagio & Constituigao de 1967 (69), cuida-se de observagdo que mantém sua atualidade relativamente ao texto atual, como, aids. jd foi demonstrado. Mais recente mente, ji sob a égide da Constituigio de 1988, esta nocio foi expressamente sustentada por J.R. de Lima Lopes, in Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justica, p. 126. que concebeu 0s direitos e garantias do art. 5° como direitos cessencialmente de liberdade 527.y. g an. 5% ines. XXIf a XXVI. da CF. 5 Este & 0 caso do direito de acesso & Justiga (ou inafastabilidade do controle judicial), previsto no ar. 5°. inc. XXXV, da CF, 172 INGO WOLFGANG SARLET Em que pese a equiparacZo habitual por parte da doutrina nacional majori- ia entre os direitos e garantias individuais e coletivos e os direitos de liberdade (direitos de defesa), que, alids, transparece igualmente na sistemética adotada pela Constituigao, nao hé como sustentar esta concepcao, a menos que se fagam as devi- das ressalvas. Com efeito, constata-se que os direitos de liberdade, ainda que sejam direitos individuais, nao se identificam (no sentido de nao serem a mesma coisa) com estes. De mesma forma, é equivocada a concep¢ao que identifica os direitos sociais com 0s direitos coletivos ou institucionais. na medida em que todos os direitos sociais dio, acima de tudo. direitos outorgados a pessoa individual, sendo assim — da mesma forma que os direitos de liberdade — direitos de titularidade individual. Na esfera dos direitos sociais, o individuo — ao contrario dos classics direitos de liberdade e igualdade ~ é concebido de acordo com a sua posicdo concreta na comunidade,** pelo que boa parte da doutrina se aproxima da nogdo francesa das liberdades concretas.* Percebe-se, desde logo, a inadequacao da terminologia “direitos e garamtias indivi- duais e coletivos” utilizada pela Constituicao de 1988. no apenas por o fato negli- genciar a dimensio individual dos demais direitos fundamentais, mas também por ter gerado uma equivocada equiparagao entre 0 conceito de direitos individuais e 0 de direitos de defesa (liberdade), independentemente da possibilidade de enquadrarmos a maior parte dos preceitos do art. 5° da CF neste grupo. b) Os direitos fundamentais sociais como direitos de defesa. Especificamente no que conceme aos direitos fundamentais sociais na Constituicdo de 1988, impde-se aqui ao menos uma breve referéncia ao fato de que © conceito de direitos fundamentais sociais no direito constitucional patrio é um con- ceito amplo, incluindo tanto posigdes juridicas tipicamente prestacionais (direito satide, educagao, assisténcia social, etc.), quanto uma gama diversa de direitos de de- tiesa®* Sem que se v4 neste momento (ainda) adentrar os diversos aspectos que envol- 5 Neste sentido, dentre tantos. aligdo de J. Miranda, ia: CDCCP 0? | (1992), p. 201. bem como. entre nés, de C. Lafer, A Reconsirucdo dos Direitos Humanos. p. 127. Entre nés, compre referit 0 magistério de J.R. Lima Lopes, in: Direitos Humanos, Direits Sociais e Justica, p. 126 € $s. que qualificou os direitos socias de direitos coletivos, argumentando tratar-se de direitos que tm por objeto agdes (conduta positiva) do Estado que. em principio, no sto suscetiveis de exigibilidade em Ju‘zo pelos cidadios individualmente considerados. Consideramos equivecada este ponto de vista, na medida em que o fato de um direite fundamental ser individual ou coletivo independe Ue ter ‘como objeto uma abstengdo ou um comportamento positive por parte do destinatirio,além de nfo estar vinculado 2 ‘sua exigibilidade em Juizo como diteito individual subjetivo, $ Cf, Cabral Pinto, Os Limites do Poder Constiuinte e a Legitimidade Material da Constinuigao. p. 148. $51 & este respeito,v., dentre outros. R. M, Horta. in: RIL n° 79 (1983).p. 151. que expressamente adere & doutrina de G. Burdeau. O mesmo autor — em outra oportunidade ~ referiu-se também & evolugao ocorrida na esfera dos direitos individuais, inieiando pelo elissico conceito da “liberdade-resisténcia™. segundo 0 qual os direitos fundamentais servem para proteco do individuo das intervengdes do Estado. até chegar & concepgo da “liberdade-participaci0”, inerente ao Estado social (in: Estudos sobre a Constiwicdo de 1967. p. 140-1). 5 Sobre 0 conceito de direitos sociais na Constituicdo de 1988. v. 0 nosso “Os Direitos Fundamentais Socisis na Constituigdo de 1988”. in: I.W. Sarlet (Org). Direito Piiblico em Tempos de Crise. p. 146. ss..demonstranco que os direitos socias, pelo menos no constitucionalisme patrio. compe um complexo amplo e multifacetado de posigdes Juridicas, de tal sorte que a denominacao direitos sociais encontra sua razio de ser “na circunstincia ~ comum 10s direitos sociais prestacionais e direitos socais de defesa — de que todos consideram o ser humano na sua situagio cconereta na ordem comunitiria (social) objetivando, em prine‘pio.acriagdo e garantia de uma igualdade e liberdade ‘material (real), seja por meio de determinacas prestagées materiais ¢ normativas. seja pela protegao e manutengao do ‘equilorio de forgas na esfera das relagoes trabalhistas” (ob. cit. p. 149) e sociais em geral, como poderiamos acres centar. Assim. considerando os aspectos referidos.& possivel conceituar os direitos socisis (negative positivos) ~ na esteira de Jorge Miranda, in: CDCCP n° 1 (1992). p. 201 ~ como direitos & libertagdo da opressio social e da necessi dade, Aproximando-se deste conceito, no obstante em outro contexto, encontzamos a definigio de A C. Wolkmer, ‘AEFICACIA 00S DIREITOS FUNDAMENTAIS 173 vem esta concepcaio. de modo especial no que diz com as diferencas entre os direitos sociais a prestages e os de defesa. ha que apontar alguns exemplos. Assim, verifica- se que boa parte dos direitos dos trabalhadores, positivados nos arts. 7° a 11 de nossa Lei Suprema. sao, na verdade, concretizagées do direito de liberdade e do principio da igualdade (ou da nao-discriminagao), ou mesmo posicées juridicas dirigidas a uma proteg’o contra ingeréncias por parte dos poderes ptiblicos e entidades privadas. E 0 caso, por exemplo, da limitago da jornada de trabalho (art. 7°, incs. XII e XIV), do reconhecimento das convengdes e acordos coletivos de trabalho (art. 7°, inc. XXVI), das normas relativas & prescrigdo (art. 7°, inc. XXIX), das proibigdes consignadas no art. 7°, ines. XXX a XXXII, da igualdade de direitos entre o trabalhador com vinculo empregaticio ¢ 0 trabalhador avulso (art. 7°, inc. XXXIV), da liberdade de associagao sindical (art. 8°). bem como do direito de greve (art. 9°), apenas para ficarmos no Ambito das hipsteses mais evidentes. Em que pese a denominacio de direito social (cuja pertinéncia nao se pretende aqui colocar em davida), o fato é que estes dispo- sitivos ~ de acordo com 0 critério da fungao desempenhada — contém tipicos direitos de defesa. situando-se, de acordo com abalizada doutrina, no dimbito das assim de- nominadas liberdades sociais (direitos sociais negativos),* tomando-se a expressiio em sentido amplo, jé que evidentemente (ao menos no que diz com 0 rol dos direitos sociais na nossa Constituig&io) nao restrita a direitos tipicos de liberdade. Da mesma forma. enquadram-se na nogao de direitos sociais negativos (de cunho defensivo) os direitos subjetivos de cardter negativo (defensivo) que corres- pondem também dimensio prestacional dos direitos fundamentais, inclusive dos direitos sociais a prestagdes. Neste sentido, é possivel afirmar que assim como os direitos negatives possuem uma repercussao prestacional, também os direitos a pres- tages possuem uma dimensio negativa, representanda, como jé frisado, por poderes (direitos) subjetivos negativos. Como teremos a oportunidade de explicitar melhor no capitulo relativo a eficdcia dos direitos a prestagdes, estes sempre geram (além de direitos de cunho positive) direito subjetivo negativo de impugnagao de atos que Ihes sejam ofensivos. como bem da conta o exemplo do direito social 2 moradia, quando se afasta a penhora do imével que serve de moradia em demandas executivas ou em outras situagdes que aqui ndo vem ao caso apontar. O préprio reconhecimento de um principio de proibig&o do retrocesso, igualmente desenvolvido mais adiante, ja constitui por si sé uma demonstragio inequivoca da dimensao negativa também dos direitos fundamentais sociais. c) Os direitos de defesa e os direitos fundamentais da nacionalidade e da cidadania. Outra referéncia obrigatéria é a que afeta os direitos politicos, aqui considera- dos em sentido amplo, De acordo com a concepgiio de Jellinek, cuida-se de posigdes in: RIL n° 122 (1994), p. 278 e ss..que vincula os direitos sociais com a nevessidade de se assegurar as condighes ‘materiais minimas para a sobrevivénciae. para além disso. para a garamtia de uma existéncia com dignidade. conceito este que. muito embora mais préximo da perspectiva prestacional. no necessariamente precisa ser tomado neste sentido estrto 8 Explorando com propriedade 0 direito (humano e fundamental) & liberdade sindieal no direito constitucionat brasileiro. v., entre outros. a recente contribuigio de G. Siler, A Liberdade Sindical. Porto Alegre: Livratia do Advogado. 2007. * Dentre os autores que sustentam a existéncia de direitos socials negativos. vale referc, dentre outros. C. Fabre, Social Rights under the Constitution, p.53 € 6. 174 INGOWOLFGANG SARLET juridicas fundamentais caracterizadoras do status activus (ou status activae civitatis), tendo sido também entre nés denominados recentemente de direitos de participa- 40. Ressalvada a dimensao prestacional que podem ter estes direitos fundamen- tais, verifica-se, contudo, que boa parte deles exerce Fungo peculiar aos direitos de defesa, podendo ser enquadrada nesta categoria. Sobre esta problematica, bem como a respeito do contetido e significado dos direitos politicos na Constituigio de 1988, é que iremos tecer algumas consideragdes. Neste contexto, entendemos apropriada uma abordagem conjunta de todos os direitos fundamentais elencados nos Capitulos IIT. IV e V de nossa Carta Magna. que poderiam ser agrupados — a0 menos para este fim — sob a denominacao de direitos da cidadania, Isto se justifica em face da estreita conexao entre os direitos de nacionali- dade (arts. 12 13 da CF), 0s direitos politicos (arts. 14a 16 da CF) e as normas sobre 0 partidos politicos (art. 17 da CF), que ainda sera objeto de maior explicitacao. Diferentemente dos direitos individuais ¢ coletivos. reconhecidos a todos os brasi- leiros e estrangeiros residentes no Pais. os direitos de cidadania tém sua titularidade atribuida a um especifico grupo de pessoas, formado pelos nacionais e cidadaos.** Ainda no que podemos considerar a fase preliminar destas consideragées, vale lem- rar, para efeitos de uma comparagdo, que o Constituinte de 1988 adotou também nesta seara uma sistemética que em muito se distingue da de outras ordens constitu- cionais. Neste sentido. a Constituicdo da Republica portuguesa de 1976 abrigou as normas sobre a nacionalidade (art. 4° da CRP). bem como as regras gerais sobre © direito de sufragio (art. 10/1 da CRP), além das fungdes dos partidos politicos (art 10/2 da CRP), no titulo dos prineipios fundamentais da Constituigao. Os direitos po- liticos fundamentais (entre outros. a liberdade de filiacdo politico-partidaria prevista no art. 51 da CRP) foram, por sua vez. positivados no titulo dos direitos. liberdades e garantias. De acordo com 0 nosso direito constitucional positivo. os direitos da naciona- lidade (art. 12 da CF) regulam basicamente os pressupostos que 0 individuo deve preencher para alcancar a nacionalidade brasileira. seja em virtude do nascimento, seja em virtude de naturalizago. de tal sorte que a aquisi¢ao da nacionalidade, na condigdo de posigio juridica fundamental, no pode ser considerada como sendo di- reito de todos. mas apenas dos que atendem aos requisitos constitucionais. De outra parte, apenas os detentores da nacionalidade brasileira podem ser titulares de direitos, politicos fundamentais, respeitadas as diversas condigGes e pressupostos previstos na Constituicao. Neste sentido, é possivel afirmar que a titularidade dos direitos politicos é reservada aos nacionais. Além disso. 0 direito de nacionalidade expressa a uniaio entre a pessoa individual e um Estado, de modo que a nacionalidade pode ser definida como 0 vinculo juridico e politico que une um individuo a determinado Estado, tor- nando-o membro da comunidade politica” No direito brasileiro, evidencia-se, por- tanto, a clara distingao entre a nacionalidade (vinculo juridico entre pessoa e Estado) ea cidadania (possibilidade de ser titular de direitos politicos) Assim, em que pese 595 CF. entre outros. a recente posiglo de E. Pereira de Farias. Colisdo de Direitos, p. 92. 6 Neste sentido, nio obstante em outro contexto, v. JLL.Q. de Magalhies. in: RIL n° 99 (1988), p. 1 527 Neste sentido, dentre outros algo de C. Lafer. A Reconstrugdo dos Direitos Humanos.p. 135. 5% Este o entendimento de J.A. da Silva. Curso de Direito Constitucional Positivo. p. 279. Em sentido semelhante MG. Ferreira Filho, Curso de Direito Constitucional. p.99..que concehe a nacionalidade como um starus que iden- Lifica um individuo com determinado Estado e cujo conteddo apenas pode ser aferido em face do estrangeiro (1 ‘AEFICACIA DOS DIREITOS FUNDAMENTA'S. 175 sua freqiiente utilizagao como sindnimas. as nogdes de nacionalidade e cidadania nao se confundem, jé que. de regra. € preciso ser nacional para gozar de direitos politi: cos, mas nem todo nacional é titular de direitos politicos. Os direitos politicos (0, neste sentido, de abrangéncia mais restrita que os de nacionalidade.** No que concerne ao contetido dos direitos de cidadania, é interessante observar que, na Constituig&o portuguesa, nos direitos, liberdades e garantias de participacdo politica também foram incluidos 0 direito de acesso aos cargos piiblicos (art. 50), a liberdade de associacao (art. 51/3), 0 direito de peticio (art. 52/1 e 2) e a agio popular (art. 52/3). Na Constituicao patria, por outro lado, estes direitos fundamentais, com excegdo do acesso aos cargos piiblicos (art. 37, inc. 1), foram contemplados no capi- tulo dos direitos individuais e coletivos.*! [sso demonstra que no nosso direito consti- tucional os direitos politicos se restringem. em principio, & participagtio dos cidadiios no exercicio da soberania popular, por meio da democracia representativa e, excep- cionalmente, direta. A vantagem desta sistemdtica reside na circunstancia de que a liberdade de associagao e o direito de petigo so, entre nés, considerados direitos de todos os brasileiros e estrangeiros residentes no Pais, independentemente da capa- cidade de ser titular de direitos politicos. Além disso, verifica-se que o Constituinte de 1988 incluiu no titulo dos direitos fundamentais um capitulo sobre os partidos politicos. Este, pela sua intima relacao com a participagao do cidadao na vida politica e formagdo da vontade nacional, deve ser enquadrado no ambito do status civitatis (direitos da cidadania em sentido amplo). Dentre outros aspectos, o art. 17 da CF ga- rante ndo apenas a livre criagao, fusio, incorporagao e extingao de partidos politicos, quanto sua autonomia, abrangendo —e isto importa fique aqui consignado ~ também a liberdade de associacao partidaria, ainda que nao expressamente referida.*? Na medida em que os direitos politicos so considerados como direitos de parti- cipagdo (no sentido de uma posigao ativa do individuo) na atividade estatal e na con- duciio do interesse ptiblico, costumam — como jé frisado alhures ~ ser enquadrados no status civitatis de Jellinek ou mesmo no ambito das liberdades-participagio dos franceses.** Neste sentido também a ligao de Pontes de Miranda, para quem os direi- tos politicos so direitos & participagdo na formagdo da vontade estatal e direitos 20 exercicio de funcdes piblicas.* Mais recentemente, de acordo com ligao recolhida de Vieira de Andrade, sustentou-se, entre nés (diga-se de passagem, acertadamente), nacional), 20 passo que a cidadania representa um starus que vineula uma parte dos nacionais com o sistema politico, ‘Assim também a posigao de C.R. Bastos, Curso de Direito Consttucional. p. 231. 59 Apenas para exemplificar, na Constituiglo vigemte a pessoa que tiver completado 16 anos € titular do direito de voto, mas nio se the aplica ocorrespondente dever (art I4.§ 1°. inc. I. alinea c). Da mesma forma, exister restrigdes. 08 direitos politicos passivos. ja que nem todos podem concorrer a todos os cargos sem que se observem as peculiari- ddades (regrasrelativas 8s elegibilidades). Além disso, verifica-se a possbilidade da cassagio dos direitos politicos, SCF, 1A. da Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo. p. 300, 5 © direito de acesso aos cargos ptblicos (art 37. in. 1. da CF), em que pese ter sido positivado no capitulo da administragdo publica, pode ser considerado tipico direto fundamental fora do eatélogo, com base na abertura propi- ciada pelo ar. §°. § 2°, da nossa Lei Fundamental, de acordo com o que foi examinado no capitulo anterior. 58 Esta a ligdo de J.A. da Silva, Curso de Direito Constirucional Positivo, p. 347. Cumpre ressaltar, no que tange 4 liberdade Ge fiiagio partidiria, que esta também poderia ser tida como implicitamente contida na liberdade de ascociagao (art. 5°. ine. XVI. da CF), na medida em que a tinica ressalva feita é a que veda a associago para fins paramilitares. “4 Neste sentido a ligdo de J. Miranda, Manual IV. p. 86-7. No que conceme 30 enquadramento sistemtico dos direitos politicos, esta também & a posigio de J.C. de Mello Filho. Constiuigao Federal Anotada, p. 425. 4 F, Pontes de Miranda. Comentirios IV. p. 662. 176 INGO WOLFGANG SARLET

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