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Organizadores CLAUDIO LAKS EIZIRIK, FLAVIO KAPCZINSKI ANA MARGARETH SIQUEIRA BASSOLS O CICLO DA VIDA HUMANA: UMA PERSPECTIVA PSICODINAMICA Reimpress&o 2007 Abpresentagio O CICLO VITAL E SUAS VICISSITUDES! Eis um texto que se debruga sobre nosso maior patriménio: a Vida. E sobre como a vivemos. Os organizadores deste livro ¢ os demais autores a dissecam. Capitulo apés capitulo. O produto deste trabalho é 0 de uma dissecciio, mas também de sin- tese. Penso que serd facil aos leitores perceber que cada capitulo retine em algumas paginas o resultado de anos de estudo e de experiéncia. Seus autores so, em sua grande maioria, professores do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul ou colabora- dores destes. Médicos de outras especialidades também escrevem, destacando as caracteristicas biolégicas de cada uma das fases da vida. Também especialistas de outras profissées se somaram, ampliando a visdo multi e interdisciplinar do tema. O Departamento de Psiquiatria ministra a formagao em psiquiatria mais antiga em atividade continua do Pafs. Apés anos de reconhecida exceléncia na segura formagio de especialistas para o exercicio profissional, também esta assumindo uma nova dimensao, a da pés-graduacio strictu sensu, com 0 inicio do Mestrado e do Doutorado em Psiquiatria. Sua orientagio tradicional, fortemente alicergada na vertente psicanalitica, vem assimilando progressivamente os novos conhecimentos oriundos da neurociéncia, em convivéncia cotidiana com diferentes orientagdes de seus docentes. As atividades de pesquisa, de ensino e de assisténcia ocorrem no Hospital de Clinicas de Porto Alegre, o que promove sua integracéio com as demais areas médicas através da interconsultoria, tanto em ambiente intra como extra-hos- pitalar. Também recentemente, esses professores passaram a ampliar suas ativida- X Apresentagdo des através do Centro de Atengiio Psicossocial, coordenado pelo Servico de Psiqui- atria e pelo Servico de Psiquiatria da Infancia e da Adolescéncia, acompanhando a tendéncia contemporanea da atengao a satide mental. Ligado ao Departamento, o Centro de Estudos Luis Guedes retine alunos e ex-alunos, além dos professores, em torno de sua rica biblioteca e de suas atividades cientificas, que contam também com a ampla patticipacao de seu corpo associative. £ importante ressaltar 0 cendrio em que estio inseridos os autores deste livro, emespecial seus organizadores. Isso explica sua orientacdo psicodinamica, aomesmo tempo interdisciplinar, ndo-reducionista. Também explica a aproximagao psicodina- mica do modelo da medicina baseada em evidéncias, valorizando a experiéncia ea impressio clinica, mas buscando na pesquisa a confirmacio e 0 alicerce de sua orientagiio. A compreensio das demandas de cada faixa etdria e das capacidades de se lidar com ela enriquece extraordinariamente o trabalho clinico. Além da correta identificagao de sintomas, o clinico deve estudar a pessoa como um todo. Em que contexto social ela esté? Como se constitui sua familia? Quais projetos de vida sofrem a interferncia de uma enfermidade? Quais mudangas ocorreram em sua vida que poderiam ter contribuido para o desencadeamento de alguma doenga? Que suporte tem para lidar com suas limitagdes? Quais as fantasias que poderé desenvolver a partir de um sintoma? Essa e outras perguntas poderio ser formuladas para melhor entender nosso paciente e seus familiares. Parece complicado estar atento a tudo isso? Em alguns casos, talvez seja, mas, em muitos deles, certamente é mais com- plicado nao perguntar, nao reservar um pouco de tempo para conversar € observar a pessoa que temos a nossa frente. Quanto atalho poderia ser descoberto a partir de ‘uma boa conversa! Claudio Eizirik também é vice-presidente da Associagao Psicanalitica Inter- nacional (IPA), interessado especialmente em estabelecer os vinculos da psicané- lise com a medicina, a cultura-e a vida académica, além de coordenador do Pés- Graduagiio em Psiquiatria. . Ana Margareth Bassols especializou-se em criangas e adolescentes. Flavio Kapezinski, apés passar pelo Instituto de Psiquiatria de Londres e pela Universidade McGill em Montreal, onde concluiit sua pés-graduacio, voltou a0 Hospital ¢ ao Departamento, onde iniciou sua especializagio em psiquiatria como professor e pesquisador. Para mim, é um grande prazer apresentar este livro aos leitores, pois 0 vejo como mais um produto do amadurecimento e da seriedade com que se deve trabalhar em psiquiatria e em satide mental. Seus coordenadores representam trés geragdes de professores, todos com curriculo respeitavel em suas dreas de ago. Rogério Wolf de Aguiar Professor Adjunto do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da UFRGS. Chefe do Servico de Psiquiatria do HCPA. Ex-Presidente da Associacdo Brasileira de Psiquiatria. | . refacio Em 1972, o Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da Faculdade de Me- dicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, ent3o sob a lideranga do Professor David Zimmermann, comecou a ministrar a série de disciplinas deno- minadas de Introdugao a Psiquiatria, visando a familiarizar os alunos com os as- pectos emocionais do ciclo da vida humana e com a relagio médico-paciente. Posteriormente, essas disciplinas passaram a denominar-se, de acordo com sua especificidade, de Desenvolvimento da Crianga e do Adolescente, Desenvolvi- mento do Adulto e do Idoso e Relagiio Médico-Paciente. Com 0 objetivo de proporcionar aos alunos um livro-texto que Ihes permitisse acompanhar os contetidos teéricos, um grupo de professores do Departamento rea- lizou a revisio da tradugio do livro A pessoa, de Theodore Lidz, langado pela Edi- tora Artes Médicas Sul em 1983 e que serviu como guia para os semindrios ¢ as discussdes das entrevistas, nessas disciplinas, por muito anos. Outros livros e textos ~ foram sendo utilizados, mas uma crescente insatisfagéo de alunos e professores levou o corpo docente do Departamento 4 conclusio de que se impunha um novo livro, escrito por autores brasileiros, contemplando os dados de nossa realidade e voltado para os programas das duas disciplinas, a que trata da infancia e da adoles- céncia e a que examina o desenvolvimento dos adultos e dos idosos. Com esse objetivo, organizamos a presente obra. Seus autores sfio professores ou colaboradores do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da Faculdade de Medicina da UFRGS e, em sua maioria, trabalham nessas disciplinas hé muitos anos como professores— alguns tendo, inclusive, sido alunos das mesmas -, motivo pelo qual estio familiarizados com suas necessidades e caracteristicas. Ao longo xii Preficio destes quase 30 anos, o.convivio com sucessivas geragées de alunos evidenciou a utilidade ¢ a necessidade deste espago para refletir e discutir sobre as caracteristicas evolutivas do ciclo vital e entrevistar pessoas rido-doentes, preparando, assim, os futuros médicos para sua mais dificil tarefa: estabelecer uma relagdo emocional com seu paciente que permita seguir o caminho do diagnéstico, do tratamento e da prevengao, Sem ela, correrdo o risco de se constituirem técnicos, talvez eficientes, mas sem a indispensdvel empatia que proporciona a base para 0 adequado e real- mente eficiente ato médico. Pensamos que este livro serd itil a todos os estudantes e profissionais da satide que lidam com o ser humano sadio ou doente e que necessitam estar atentos as especificidades e as caracteristicas de cada etapa do ciclo vital, para, dessa forma, reconhecer e lidar com situagées pessoais, familiares e sociais complexas. Da ade- quada identificag’o e compreensiio dessas situagdes dependerd a adogiio de ages preventivas e de tratamento bem-sucedidas. Procuramos, assim, retratar nossa experiéncia, utilizar dados de pesquisas recentes e, sempre que possivel, trazer informagdes sobre o que se observa na realidade brasileira, ilustrando as situagdes com exemplos clinicos ou referéncias a obras significativas do cinema e da literatura para o tema em estudo. Cada capi- tulo, abordando uma etapa, nao pretende ser exaustivo nem completo, mas cobrir as principais dreas que necessitam de atengiio neste periodo, sugerir questdes para discussio e fornecer bibliografia complementar atual e relevante. Embora tenhamos tido 0 cuidado editorial de buscar uma certa uniformidade na apresentago dos varios capitulos, respeitamos o estilo, a experiéncia e a abor- dagem de cada autor ou grupo de autores. Afinal, essa diversidade também reflete as descontinuidades, as especificidades e as cambiantes énfases com que cada pessoa vive e experimenta as etapas de seu ciclo vital. Esperamos contribuir para a melhor compreensio do ciclo vital, no seu con- junto ¢ em suas Varias etapas e, com isso, auxiliar os estudantes e os profissionais da drea da satide e das ciéncias humanas a aproximarem-se da pessoa com quem convivem, trabalham ou de quem cuidam com a atitude receptiva de quem jé sabe algo, mas que esta de olhos, ouvidos e mente abertos para aprender mais, nesta fascinante experiéncia que o poeta Carlos Drummond de Andrade descreveu como a dificil, dangerosissima viagem de si a si mesmo, para poder experimentar a indizivel alegria de con-viver. Flavio Kapczinski Ana Margareth Siqueira Bassols | | umdrio Apresentagio.... Rogério Wolf de Aguiar Prefacio. Claudio Laks Eizirik Flavio Kapezinski Ana Margareth Siqueira Bassols Nogées Basicas sobre o Funcionamento Psiquico ........... 15 Cléudio Laks Eizirik Flavio Kapczinski Ana Margareth Siqueira Bassols Gestagiio, Parto e Puerp6rio «ccs Aida Zimmermann Heloisa Zimmermann Jacques Zimmermann Fernando Tatsch Cristina Santos O Bebé ec os Pais AL Maria Lucrécia Scherer Zavaschi Flavia Costa Carla Brunstein 14 Sumério t 4 O Ciclo Vital da Familia Olga Garcia Falceto José Ovidio Copstein Waldemar A Crianga de 0 a 3 Anos Gisele Gus Manfro Sandra Maliz Luciano Isolan A Crianga Pré-Escolar ... Ana Margareth Siqueira Bassols Ana Litcia Dieder Michele Dorneles Valenti A Idade Escolar: Laténcia (6 a 12 anos) . Maria Helena Mariante Ferreira Marlene Silveira Araiijo 105 A Puberdad Liicia Helena Freitas Ceitlin Akemi Scarlet Shiba Michele Dorneles Valenti Patricia Sanchez O Adolescente .. Ruggero Levy 127 Adultos Jovens, seus Scripts e Cendrios .. Cléudio Maria da Silva Osério 141 Idade Adulta: Meia-Idade ... Regina Margis 7 Aristides Volpato Cordioli A Velhice Cléudio Laks Eizirik Rafael Henriques Candiago Daniela Zippin Knijnik A Morte: ima Etapa do Ciclo Vital... Claudio Laks Eizirik Guitherme Vanoni Polanezyk Mariana Kizirik : N o¢ées Basicas sobre o Funcionamento Psiquico Claudio Laks Eizirik , Flavio Kapezinski, ‘Ana Margareth Siqueira Bassols O funcionamento psiquico baseia-se numa complexa interagao de elementos bioldgi- cos, psicoldgicos @ sociais. Quando se avaliam o estado. psicolégicoe o comportamen- to de uma pessoa, dois fendmenos devem ser considerados. O primeiro é que os tipos de comportamer stado emocional, caracterizados Como’ ais, ou anormais, variam enormemente com a idade: 0 que se considera normal num estdgio “do-dexenvolvimento pode ser considerado deeisivamente como anormal em out, oO Osegnnde fendmeno € que o desenvolvimento psicolégico nao prossegue unifor- mieimente. Ocorre em estagios descontinuos, sep separados por perfados de mudangas—— buyscas.ou de transigto de um estgio para outro. A identificagiio e a descrigo dos estagios do desenvolvimento sao importantes: para todos os profissionais da rea da satide e para os estudantes dessas disciplinas. Oconhecimento profundo desses estdgios possibilita uma melhor percepgiio a respei- to da estrutura dos padres normais ¢ dos conflitos psiquicos esperados, assim como dos limites entre satide e transtornos emocionais. Desse modo, é importante conhe- cer que certas crises do desenvolvimento, acompanhadas por ansiedade, incerteza e estresse, esto dentro de uma expectativa normal e nao sao, necessariamente, sinais de séria instabilidade ou doenga mental. a SS = 2 mrgo doe caphalos que descreverdo as etapas do desenvolvimento huma- no, varios conceitos basicos serio utilizados. O objetivo deste capitulo é descrever tais conceitos de forma sintética e fornecer uma visdo geral do funcionamento psi- quico ao longo do ciclo vital. Por sua prépria natureza introdutéria, o que segue é uma formulagiio necessariamente resumida, que deve ser complementada pela lei- 16 Eizirik; Kapczinski & Bassols (orgs.) i. tura dos trabalhos dos autores aqui citados, para fazer justi¢a 4 complexidade ¢ & ctiatividade de suas contribuigdes. NORMALIDADE O conceito de normalidade é ambiguo, tem uma multiplicidade de significados e usos e pode ser definido como um juizo de valor. Também depenide das normas culturais, dos valores e da época dentro do contexto social. As quatro principais perspectivas pelas quais pode ser compreendido sao: a) Normalidade como satide, em que um comportamento é considerado nor- mal quando nao hé nenhuma psicopatologia presente. b) Normalidade como utopia, em que ocorre um equilfbrio harménico de di- versos elementos do aparelho mental que culmina com um 6timo funciona- mento. c) Normalidade como média, isto é, baseada no principio matematico da curva de Gauss, sendo considerada a média como normal ¢ as extremida- des da curva como desyiantes. d) Normalidade como um sistema de transagées, resultante de sistemas que interagem ao longo do tempo, englobando varidveis de origem biolégica, psicolégica e social. A integragao dessas perspectivas e 0 uso de uma ou outra vai favorecer a compreensio da pessoa como um todo, seja num corte transversal ou longitudinal de seu desenvolvimento. E importante que nio se utilize 0 conceito de normalida- de como juizo de valor, o que sé colaboraria para uma simplificagao e um conse- quente empobrecimento da compreensio do desenvolvimento humano. O DESENVOLVIMENTO DO SISTEMA NERVOSO Durante os nove meses da gestag4o, o cérebro do embriao humano adquire neur6nios ao ritmo de 250.000 por minuto. Inicialmente, esses neur6nios desenvolvem-se de uma maneira que parece castica e entéo migram para destinagdes predeterminadas. Os principais circuitos neuronais sto basicamente os mesmos em todos os mamife- Tos. O desenvolvimento do organismo tem origem em um tinico ovo fertilizado e culmina no individuo adulto. Nesse processo, a arquitetura dos circuitos neuronais € determinada pelos genes e por suas interagdes com o ambiente celular. Entre 0 40° e 50° dias de gestagio, o cérebro humano assemelha-se ao cérebro de um peixe. Por volta do 100° dia, passa a assumir todas as caracteristicas do cérebro de um mamifero. A partir do quinto més de gestacdo, 0 cérebro humano examen Smet | 7 O Ciclo da Vida Humana 17 adquire as caracteristicas tipicas de imata. A partir desse ponto, a grande ‘laboragdo do prosencéfalo, do cortex cerebrl edo cerebelo caracteriza exclust vamente o género humano. O fato de qué'os estdgios iniciais do desenvolvimento do cérebro e do embrio humano como um todo guardam alguma semelhanga com o curso da evolugiio de formas mais simples até as mais sofisticadas de vida levou a antiga nogio de que a ontogénese reproduz a filogénese. Hi trés teorias que procuram explicar 0 modo pelo qual as mesmas vias e padrées especificos de conexdes neuronais so reproduzidos em cada cérebro humano: 1) teoria do crescimento tr6fico; 2) teoria da competigio das células; 3) teoria do movimento dirigido pelas fibras. 1. Teoria do crescimento tréfico: postula que terminais nervosos em cres- cimento juntam-se a neurénios ou células espectficos, porque gradientes quimicos de certas substancias estimulariam 0 crescimento do axénio numa dada diregao e no sentido de um determinado grupo de células-alvo. A pesquisadora Rita Levi-Montalcini foi agraciada com o prémio Nobel por ter identificado, em 1951, o primeiro membro de uma familia de substai cias denominadas fatores de crescimento. Nas suas pesquisas, Montalcini (apud Kapczinski, 2000) verificou que a injegdo de fatores de crescimento em ratos promove o crescimento de ax6nios simpaticos em direg’io ao local da injegio. Dessa forma, o desenvolvimento neuronal seria mediado _ or gradientes de i al. 2. Teoria da competicao das células: propée que, no curso do desenvolvi- mento do embriao, certas conexGes axonais acabam por se desenvolver a custa de outras, que se retraem e desaparecem. Certos nticleos do sistema auditivo, por exemplo, contém muito mais neurénios antes do que depois do nascimento. Desse modo, sao formados mais neurénios e sinapses do que seria necessario, os ax6nios competem, ¢ o ntimero de sinapses e neu- r6nios acaba sendo reduzido. Dentro dessa perspectiva, esse seria 0 processo que levaria 4 modelagem fina da organizac4o anatémica do cérebro do embriaio, chegando posteriérmente & organizaciio precisa e detalhada das conexées sinapticas do cérebro adulto,* 3. Teoria do movimento dirigido pelas fibras: segundo esse modelo, cada neur6nio em desenvolvimento emitiria prolongamentos que, ao alcangarem. obstaculos (superficie cerebral, por exemplo), j4 nio podem crescer mais. O corpo celular passaria a migrar ao longo de seu prolongamento até chegar ao obstéculo. Um exemplo desse proceso sio as células de Purkinje, no cerebelo, cujo corpo celular se encontra no cértex cerebelar e cujos ax6nios se projetam para nticleos profundos bem abaixo do cértex. E provavel que esseé trés modelos sejam validos em diferentes situagdes do desenvolvimento, em diversos grupos neuronais. sfio formadas modificadas ao longo da vida. Essas conexdes podem ser aliéi 18 _Eizirik, Kapczinski & Bassols (orgs.) f O NEURONIO O neurénio é a unidade funcional do cérebro- Ele recebe informagdes em seus dendritos e corpo celular ¢ as envia para outros neur6nios e células ao longo de seu ax6nio. O ax6nio tipico divide-se em varias fibras menores que acabam em terminais, cada qual formando uma sinapse em Outra célula. A sinapse representa aconexdo funcional entre o terminal axonal ¢ 0 neurénio seguinte, sendo 0 ponto onde a informacio é transmitida de um neurénio ao outro. A fenda sindptica € 0 Pequeno espaco que separa o terminal axonal, o corpo celular ou o dendrito de uma outra célula, com a qual ele faz contato sindptico. A trasmissao sindptica depende de agentes neuroativos clasificados em trés . grupos: neurotransmissores, neuromeduladores e neuro-horménios. Para que seja classificada como neurotransmissor, uma dada substancia deve ser sintetizada e Hberada pelo neurOnio pré-sindptico Os neuromoduladores ndo apresentam ati- vidade sindptica intrinseca e atingem o nivel pré ou pés-sindptico somente quando hd transmissao sindptica em curso. A modulagiio geralmente.ocorre por meio de segundos-mensageit idos na issfio, Os neuro-horménios podem _ser liberados por neurénios e por células-ndo-neuronais-Sua principal caracteris- tica é de que trafegam na cir fia. para exercerem sua agdo em um ponto distan- fede 4 ntimero de substancias identificadas como neuro- transmissores, neuromoduladores ou neuro-horménios é préximo de cem, Esses agentes atuam em receptores de varios tipos, por meio dos quais podem produzir efeitos diferentes. Assim como € provavel que nem todos os neurotransmissores sejam conhecidos, tampouco pode-se considerar que o mapeamento dos recepto- res tenha sido completado. Um neurénio pode receber milhares de conexédes sindpticas de outros neurdnios, uma vez qué o cérebro humano apresenta, aproximadamente, 10" neurd- igs Esses neurénios realizam aproximadamente 10" (ou varios trilhées) de sinap—_ ‘Ses. O ntimero possivel de combinagées de conexdes sindpticas entre neurénios em um tinico cérebro humano é maior do que o mimero estimado de particulas atémicas que compéem o universo conhecido. As vias e os sistemas de conexdes do nascimento. Contudo, hoje se admite que muitas conexdes sindpticas das ¢ moldadas pela experiéncia e podem constituir uma das bases para a foe gio de determinados tipos de mem6ria. Calcula-se que o néimero total de genes do DNA humano chegue a 100.000. Desses, talvez 50.000 sejam fuincionai’ exclusivamente no cérebro, o que sugere a enorme complexidade do controle genético sobre 0 cérebroe seu desenvolvimento. Contudo, a hipdtese de que os genes determinam exatamente as diversas conexdes entre os neur6nios pode ser descartada por simples aritmética. O miimero de sinapses do cérebro humano ~ na ordem de trilhdes —.ultrapassa em muito 0 némero de conexdes que poderiam estar especificadas em detalhe pelos genes. Dessa forma, no s6 os fatores do desenvolvimento. mas também a experiéneia do individuo — Ste th —— So f O Ciclo da Vida Humana 19 desde antes do nascimento até a morte — dio forma e rearranjam continuamente a estrutura e a fun¢&o de cada cérebro individual. Embora a arquitetura geral seja a mesma no género humano, os detalhes da organizagiio cerebral diferem amplamen- te de uma pessoa para outra devido tanto a fatores genéticos e do desenvolvimento, quanto "as experiéncias individuais de.cada pessoa ao longo da vida. A interago destes fatores — quais sejam, heranga genética, fatores ligados ao desenvolvimento e experiéncias ao longo da vida — determina o que tem sido descrito como equacaio etiolégica das disfuncGes psiquicas. As pesquisas recentes tém contribufdo para esclarecer a correlagio entre ex- periéncias estressantes e 0 surgimento de quadros psiquicos disfuncionais. O ter- mo estresse surgiu para designar as forgas envolvidas em uma situagdo de ameaga Ahomeostase. O organismo reage ao estresse ativando um complexo repertério de respostas comportamentais e fisiolégicas, conhecidas como reagdes de “luta-fuga”, j4 descritas no inicio do século XX por Walter Cannon (apud Kapezinski, 2000). Genericamente,o-estresse é referido como qualquer mudanga fisica ou psicolégi- a que ompe.o equilforio do organisimo, ousefa- ater a homeontage Essa alters Gio é freqiientemente apontada como um fator para o surginiento Ou manutencio de qu: siquidtricos, como depressio, trat siedade ¢ esquizofrenia, A resposta cléssica ao estresse caracteriza-se por mudangas fisicas e compor- tamentais, envolvendo o sistema-nervoso simpatico e 0 eixo hipotélamo-hipéfise-. adrenal (HHA). A ativago do HHA causa a liberagio de catecolaminas nas termi-- agbes nervosas e pela medula da adrenal, além da secrecao de adrenocorticotrofina pela adeno-hipofise, io de’Cortisol Ro cértex da adrenal. Os niveis elevados de cortisol podem favorecer a atrofia de dendritos da zona CA-3 do hipocampo. Mesmo sem ser diretamente t6xico, o cortisol em niveis elevados pode favorecer a suscetibilidade de neurénios 4 morte, tormando-os menos resistentes a adversidades ipoglicemia, hipoxia e njveis elevados de aminodcidos excita- torios. De fato, individuos submetidos a situagdes de estresse muito intensas apre- sentam diminuicao de estruturas hipocampais. Da mesma forma, criangas que so- frem traumas importantes, como abuso sexual, apresentamniveis elevados de cortisol, Femonasidade adulta. Essas-crian ‘as estilo mai: ensas a desenvolverem pro- blemas psiquidtricos, como depressfo, quando adultas_ provavel que essa maior vulnerabilidade seja mediada pela disfuncd . Dessa forma, fatores biolégicos podem predis] i adros psi- Eprard . 6 ee a quidtricos. Esses fatores bioldgicos podem originar-se da heranga genética ou de fatores ambientais como. Oestresse. | NOCOES PSICANALITICAS BASICAS A mais completa e sofisticada formulaciio dos aspectos psicoldgicos do funcionamen- to mental é fornecida pela psicandlise, disciplina estabelecida por. Sigmund Exoud~ (1856-1939) e desenvolvida por uma série de pesquisadores da mente, dentre os quais se destacam as contribuigdes de Anna Freud, Melanie Klein, Karl Abraham, 20 Eizirik, Kapezinski & Bassols (orgs.) | i Sandor Ferenczi, W. R. Bion, D. Winnicott, J. Lacan, Margareth Mahler, Erik Erikson | e, naatualidade, Otto Kenberg, André Green, Jean Laplanche, Hanna Segal, Janine \ Chasseguet Smirgel, Betty Joseph. A contribuigao latino-americana para o desen- : volvimento da psicandlise baseia-se principalmente nas contribuigdes de Angel Garma, Heinrich Racker, Willy e Madeleine Baranger, Arminda Aberastury, Leon Grinberg e David Liberman. A palavra psicandlise designa uma teoria do funcionamento mental, um + método de investigagiio dos_processes-mentais-inconscientes € um _método de | tratamenfo-para_transtornos emocionais._ Como teoria do funcionamento mental, a psicandlise baseia-se em dois postulados fundamentais: 0 determinismo pstquico ou princtpio da causalidade e i ‘a existéncia do inconsciente. O primeiro sustenta que todos os acontecithentos da vida mental so determinados, produzidos ou, ao menos, influenciados por even- tos anteriores do desenvolvimento, tanto os que ocorreram imediatamente antes quanto os que foram vividos'no inicio do desenvolvimento. Além dos dados clini- cos que permitem comprovar o principio da causalidade, hé crescentes evidéncias } de pesquisas recentes que sustentam estarem as doéngas mentais da idade adulta relacionadas com situagdes traumaticas da infancia. Ao longo deste livro se vera que o autor que estabeleceu de forma inais abrangente d seqiiéncia de fases e suas tarefas evolutivas especificas foi Erikson, seguindo a8 formulagées iniciais de Freud e ampliando-as. O segundo postulado estabelece que nossa vida mental é predominantemen- te inconsciente, ou seja, o estado mental consciente corresponde ao que Freud sugeriu ser apenas a ponta de um iceberg, de reduzidas proporgées face A imensa massa submersa. Nig wMos-UCesTo aiTeTS ao inconsciente, mas apenas.aos seus } derivados, como os sonhos,os-atos falhos, os-sintomas-e-as-vérias-manifestagGes_ i emocionais.c.comportamentais que se.expressam-na-transferéneia;-conceito que | caracterizaremos.adiante...__ \ : ; ‘Ao longé do desenvolvimento teérico da psicandlise, fotam propostos varios : i modelos para tentar descrever 0 desenvolvimento da personalidade ¢ o funciona- mento mental. Os mais relevantes para a perspectiva de desenvolvimento adotada neste livro sero agora resumidamente descritos. As cohtribuigdes de outros auto- res sero descritas ao longo dos capitulos seguintes. FREUD Freud, em 1905, propés a primeira teoria psicanalitica do desenvolvimento, apre- L sentando estdgios seqiienciais do desenvolvimento sexual, em que postula nao ape- : | nas uma teoria sobre o desenvolvimento sexual infantil, mas também uma teoria de i interag&o entre constituig&o (seqiiéncias maturacionais inata’) e experiéncia. As principais etapas do desenvolvimento infantil estudadas por Freud foram a fase _ oral, aanalea-félica,em que ocorre 0 que considerava o principal evento organizador k O Ciclo da Vida Humana 21 do funcionamento mental e cujas formas poss{veis de resolugdio determinariam um maior ou menor grau de satide ou doenga mental:.o complexo de Edipo, Freud descreveu dois modelos principais de organizagao da mente. O primeiro, conhecido como primeira tépica ou teoria topogrfica, divide a mente em consciente, pré-consciente e inconsciente. O consciente é formado pelas idéias e sentimentos que _estiio emmnossa mente a.cada-dado-momento_O } pré-consciente inclui contetidos men- tais que podem ser facilmente trazidos 4 consciéncia pelo simples aumento da atencio ou esforgo de memsria. Jé o inconsciente apresenta contetidos mentais censurados Por serem inaceitdveis, sendo reprimidos ¢ nao podendo emer consciéncia, As evidéncias clinicas que Freud utilizou para comprovar aexisténcia do “ificonsciente foram os sonhos e as_parapraxias. Japsos ou atos falhos_ A segunda tépica, ou modelo estrutural (1923), passa a considerar a existéncia de trés instancias ou estruturas psiquicas na mente:ego, id e su Nesse mode- lo, o ego era entendido como separado das demande peisonat Pulsionais, possuindo aspectos conscientes ¢ inconscientes. O aspecto consciente era 0 6rgio executivo da mente, responsdvel pela tomada de decisdes e pela integraco perceptiva. O aspecto incons- ciente continha os mecanismos de defesa, como a repress, necessdrios para defender ego das pulsdes poderosas da sexualidade (libido) e da agressividade, oriundas do id. Q id é uma instincia psiquica totalmente inconsciente que inclui.as pulsdes—de vida e de morie-Gu-amorosas_€ agressivas —, tendo como objetivo descarregar a tensfio provocada pela opera eo dessas forcas. controlado pelos aspectos incons- cientes do ego e pelo superego, que incorpora a consciéncia moral e 0 ideal de ego. oO superego € formado a partir das identificagdes inconscientes com as figuras dos pais e de outras pessoas significativas, ou seja,. lexo.de Umconceito central daf decorrente é o de conflito psfquico, resultante essencial- mente da Inta entre paderosas.forcas inconscientes que buscam expresso e forcas " postas que impedem seu surgimento. Ocorre, entio, principalmente entre id ¢ 0 ego, embora também possa énvolver outras estruturas e a realidade externa. O conilito produz uma ansiedade de-alarme ou ansiedade-sinal-inconsciente, que pe em aciio. os mecanismos dedefesa, Assim, 0 conflito produzansiedade, que resulta em defesa, levando a um compromisso entre 0 id e 0 ego. A partir do conflito, surge o sintoma, constituindo uma formagio de compromisso que; ao mesmo tempo, defende contra © surgimento do desejo proveniente do id e o gratifica de uma forma simbilica. ‘Os mecanismos de defesa contra a ansiedade sao de grande importéncia para a compreensiio do funcionamento psiquico normal e patolégico. Os principais mecanismos de defesa e sua caracterizagiio serao descritos adiante. MELANIE KLEIN Em contraste com a teoria freudiana, porém complementando-a, Melanie Klein ¢ colaboradores (apud Segal, 1975) descreveram um modelo que privilegia as rela- g6es de objeto primitivas e duas posigdes evolutivas — esquizoparandide e depres- 22 Eizirik, Kapezinski & Bassols (orgs.) c _siva -, bem como postula que 0 conflito psiquico ocorre desde 0 inicio do desenvol- vimento, considerando que o sadismo atua como um fator determinante no conflito mental. A posigo esquizoparandide ocorre nos primeiros_meses e é caracterizada por infensa-ansiedade-persecutéria, provocada pela sensagdo de que a mie ou partes dela estiio cindidas por ago da agressividade inconsciente do bebé e podem tornar- se perseguidores, percebidos como vindo de dentro de si ou de fora. Na posi¢o depressiva, o bebé percebe a mae como mais integrada, reconhece-a come unrebjeta_ total (em contraste com os objetos parciais, ou partes dela, da fase anterior) e é capaz de relacionar-se com mais tranqiiilidade e menos temor persecutério. Klein sugeriu que a presenga de excessiva ansiedade na infancia e predominio d rego primitivo e severo conduz.a distirbios no desenvolvii lo ego ‘e apsicoses. Descreveu um novo mecanismo de defesa, a identificag4o projetiva, pelo qual partes do self ou eu de uma pessoa sio projetadas na mente de outra, que passa a ser acionada a funcionar de acordo’com essa projeciio, assim identificando- se coma parte projetada e passando a comportar-se ou sentir conforme esse aspecto do outro colocado dentro de si. O reconhecimento e a descrigéo desse mecanismo , foram possivelmente o fator que modificou a compreensio das relagdes analista- * paciente e médico-paciente, como veremos a seguir. BION Seguindo a teorizagio kleiniana, Bion (apud Hinshelwood, 1989) descreveu com maior sofisticacdo a estrutura de mente, sugerindo que todo o desenvolvimento psiquico ocorre a partir das experiéncias emocionais vividas nos vinculos huma- nos. Esse desenvolvimento se iniciaria na primitiva relagdo mae/bebé, em que a mie “emprestaria” sua mente, sua capacidade de pensar, para compreender e trans- formar as emogées brutas do bebé em elementos psiquicos com significado. A mie seria, entéo, continente para as emogGes do bebé, estabelecendo uma primeira relaco transformadora continente/contido. Com o passar do tempo, o bebé iden- tifica-se com esta fungo continente e transformadora da mie e, assim, adquire uma fungiio essencial que 0 tornard capaz nao sé de conter suas préprias emogées, como também transformé-las em elementos psiquicos capazes de serem memori- zados, sonhados, armazenados. Em suma, Bion concebe que assim se constréi a mente humana. A esses elementos frutos da transformagio, Bion denomina ele-. mentos ct, e a funcdo transformadora é chamada por ele de fun¢iio a. Além disso, concebe que a mente oscila permanentemente entre dois estados basicos, Ps e D, ou seja,.esquizoparandide ¢-depressivo, conforme descritos por Klein. Esta oscilagdo é que dé flexibilidade A mente e permite que novas experién- cias sejam assimiladas. Ou seja,conceitua-que,.quando somos expostos a uma cova experiéncia emocional, entramos numa certa-desorganizacao-psiquica. (Ps)-c. _gue, se pudermos tolerd-la, a seguir chegaremos a um novoestado, mais organizado tendo aprendido algo novo. ee Poet O Ciclo da Vida Humana 23 ERIKSON Erik H. Erikson, um dos mais influentes psicanalistas americanos, ampliou a teoria psicanalitica do desenvolvimento para fora dos lagos da familia nuclear, focalizan- do seu interesse além das questdes da importancia das primeiras experiéncias do bebé e do romance familiar edipico para ‘mundo mais amplo, a sociedade, onde a crianga interage com amigos, professores, dentro do contexto da cultura onde vive. Ele foi além de Freud ao descrever o desenvolvimento apés a puberdade, contestan- do a nogio de que a experiéncia infantil €o tnico determinants de paroes de per- sonalidade ao longo da vida. Considera que a pessoa evolui durante toda a vida, interagindo constantemente com o meio ambiente. Sua teoria é voltada para o de- senvolvimento-de-ego-ao-longa do ciclo-vital, sendo o ego a fertamenta utilizada pelo individuo para organizar informacdes externas, testar percepgoes, selecionar mem6rias, realizar agSes adaptativas e integrar capacidades de orientagao e plane- jamento. Descreve oito estdgios do desenvolvimento do ego, que abrangem desde o nascimento até a morte. Cada estégio apresenta aspectos positivos e negativos, é marcado por crises emocionais e é afetado pela cultura particular do individuo e pela sua interacdo com a sociedade da qual faz parte. Define como bisico 0 princf- pio epigenético, no qual cada estégio psicossocial serve como base para o subse- qiiente. O mais importante é que considera que a personalidade continua a ser mol- dada no decorrer dos oito estégios seguintes: Estagio Crise Psicossocial I, Sens6rio-Oral (Infancia) Confianga Basica X Desconfianga 11, Anal-Muscular Autonomia X Vergonha, Davida IIL. Genital-Locomotor Iniciativa X Culpa IV. Laténcia (Idade escolar) Atividade X Inferioridade V, Puberdade e Adolescéncia Identidade X Confusdo de Identidade VI. Adulto Jovem Intimidade X Isolamento VIL. Adulto Generatividade X Estagnaciio VIII. Maturidade Integridade de Ego X Desespero PSICOLOGIA DO EGO Hartmann (apud Kaplan e Sadock, 1999) ¢ seus colegas da psicologia do ego des- creveram um modelo em que hé matrizes inatas desde o inicio do desenvolvimento, reas livres de conflito ¢ uma busca de adaptaciio face ao meio ambiente expectante. Dentro dessa tradicio te6rica, M. Mahler (apud Kaplan e Sadock,. 1999) propés uma seqiiéncia de etapas que vai dos estados de simbiose para o de separagdo- individuagdo, a partir da observacio empirica de-criangas em desenvolvimento. Para ela, a crianga evolui de um estado autistico para um simbistico, perfodo em que o bebé ainda esté ligado psicologicamente 4 mie como se fossem um s6. O —_ 24 Eizirik, Kapczinski & Bassols (orgs.) processo inclui um niimero de subestdgios ao longo dos quais a crianga adquire capacidades que a auxiliam a desenvolver forgas de ego necessérias para a adapta- gio. O objetivo final do processo é atingido em torno dos 36 meses de idade, quan- do a crianga adquire a “constancia objetal”, apresentando uma relativa indepen déncia da mie, e pode manter uma imagem mental estével da mesma. Outro autor importante dessa escola é René Spitz (apud Kaplan e Sadok, 1999), com seu con- ceito de “organizador”. Para ele, o primeiro organizador é a resposta do sorriso, em torno das primeiras seis semanas de vida, quando o bebé reage de forma consistente e repetida em resposta a uma face humana, o que sugere que essa face representa o primeiro objeto “ndio-eu” para o bebé, com a fungi de ligar eventos externos e inter- nos. O organizador seguinte é a “resposta ao estranho”, que ocorre em torno dos sete meses de idade. A crianga reage evitando, com apreensio, uma pessoa estranha a0 seu ambiente, sinalizando 0 vinculo a alguém especifico (mie ou cuidador). O ter- ceiro organizador de Spitz é 0 desenvolvimento do “nao”, que sinaliza a presenca de um ser separado, que pode recusar algo utilizando 0 nao, mostrando-se um cen- tro de desejos separado da mie. MECANISMOS DE DEFESA O conhecimento dos principais mecanismos de defesa é de grande utilidade para a compreensao do funcionamento da mente, tanto dos processos mentais normais como dos patolégicos. Seu estudo foi iniciado por Freud e seguido por sua filha Anna Freud, que ampliou e detalhou alguns mecanismos especificos como: repres- so, formagio reativa, anulagio, introjegio, identificaciio, projeciio e sublimacao, entre outros. O repertério de defesas utilizado por uma pessoa para lidar com a ansiedade em situagées de estresse fornece uma contribui¢do decisiva para a formaciio de sua personalidade. Os mecanismos de defesa podem ser classificados de varias maneiras, tal como levando em consideragio a fase libidinal em que surgem, de acordo com uma forma particular de psicopatologia, como simples ou complexos, etc. Consideramos aqui a classificagio em defesas narcisicas, imaturas, neuréti- cas e maduras, seguindo a sistematizagio e a descrigio propostas por Gabbard (1999) e adaptando-a aos propésitos deste capitulo. Note-se que o mesmo meca- nismo pode ser utilizado em nfveis diferentes de funcionamento mental, o que explica estarem citados em mais de uma categoria classificatéria. I. Defesas Narcisicas: — Negagiio: evitar a percepeao de algum aspecto doloroso da realida- de, negando dados sensoriais Afeta mais a percepgdo da realidade externa do que da realidade interna. Nao é necessariamente psicotica, podendo estar a servigo de objetivos adaptativos ou neuréticos. Se I. / O Ciclo da Vida Humana 25 — Projecdio: perceber e reagir a estimulos internos inaceitdveis e seus derivados como se estivessem fora do self (eu). Pode levar a delirios francos sobre a realidade externa, usualmente de cunho persecut6rio; inclui tanto a percepgio de seus prdprios sentimentos em outros como agir em fungfio dessa percepgio. - Distorgao: reformular grosseiramente a realidade externa no sentido de enquadré-la aos desejos internos, podendo incluir crenga irreal megalomaniaca, alucinagGes e delfrios, utilizando sentimentos deli- rantes de superioridade ou autoridade. Defesas Imaturas — Atuagio (acting-out): expresso direta de um desejo ou pulsio in- consciente para evitar a consciéncia do afeto associado a eles. A fanta- sia inconsciente é vivida de modo impulsivo, gratificando mais oimpul- so do que a sua proibigdo. Inclui agir para evitar a tensfo que resultaria se 0 impulso fosse postergado. — Bloqueio: inibicdo usualmente temporaria dos afetos, pensamentos ‘ou impulsos. - Hipocondria: transformagao da censura alheia em autocensura e quei- xas de dor e enfermidade somatica, como conseqiiéncia de privacio, solidao ou pulsées agressivas inaceitaveis. — Introjecao: internalizagao das caracteristicas de um objeto amado, visando a aproximar-se deste e manter sua presenga. A introjegdo de um objeto temido, pela internalizagdo das suas caracteristicas agres- sivas, leva a um controle da agressdo. — Comportamento passivo-agressivo: agressiio para com 0 objeto, manifestada de forma indireta e ineficaz por meio de passividade, maso- quismo e voltando-se contra si mesmo. = Projegio: atribuicio aos outros dos prdprios sentimentos inaceitaveis. Inclui preconceitos, rejeigdo, suspeita, excessiva cautela contra peri- gos externos, etc. . — Regressiio: retorno a um estdgio anterior do desenvolvimento devido a dificuldade de enfrentar as ansiedades e desafios atuais. Inclui um. retorno a pontos de fixagao primitivos e incorporagio de comporta- mentos jé abandonados. — Somatizagiio: conversio defensiva de derivados psfquicos em:sin- tomas corporai Til. Defesas Neuréticas — Controle: tentativa exagerada de manejar ou regular os aconteci- mentos ou o ambiente externo com 0 objetivo de minimizar a ansie- dade e resolver conflitos internos. 26 — Eizirik, Kapczinski & Bassols (orgs.) : Iv. Deslocamento: sentimentos vinculados a um objeto sio redirecio- nados a outro (p. ex., fobias). Dissociagio: modificacio do cardter de uma pessoa ou de seu sentimen- todeidentidade a fim de evitar anguistia. Separa ativamente sentimentos, representagdes do selfou do objeto contradit6rias como bem-mal, pra- zer-desprazer, etc. “ Intelectualizaciio: controle dos afetos e dos impulsos pensando so- bre eles, mas nao os experimentando. Isolamento: divisio intrapsiquica ou separacio entre 0 afeto e seu contetido, levando a repressdo da idéia ou afeto ou ao deslocamento do afeto para um contetido diferente ou substituto. Racionalizagio: aplicacao de justificativas incorretas ou uso de so- fismas convincentes para explicar atitudes, crengas ou comportamen- tos inaceitéveis de outra forma. Formagio reativa: expressdo de sentimentos inaceit4veis de uma forma antitética ou oposta. Repressio ou recalque: expulsio de uma idéia ou sentimento da percepcio consciente para o inconsciente. Defesas Maduras. Altrufsmo: satisfagdo vicdria construtiva e gratificante das pulsées por servigos prestados aos outros. Ascetismo: gratificacio derivada da rentincia do prazer atribuida a uma experiéncia em favor de valores morais. Humor: capacidade de fazer graca de si mesmo sem incémodo pes- soal e sem causar desprazer nos demais. Permite que se tolere o que parece ser terrivel de ser suportado. Sublimagio: gratificacdo de uma pulsdo cuja finalidade é preservada, mas cujo alvo ou objeto é convertido de socialmente objetavel em socialmente valorizado. Permite que as pulsdes sejam canalizadas em vez de reprimidas ou desviadas. Supressio: decisdo consciente ou semiconsciente de adiar a atengdo para um impulso ou conflito consciente. RELACAO MEDICO-PACIENTE Os varios modelos psicanaliticos da mente e do funcionamento psiquico ttm como decorréncia pratica a concepgio de uma relagiio terapéutica que se baseia num interjogo inconsciente entre terapeuta e paciente e médico e paciente. Dois concei- tos basicos nesse sentido so os de transferéncia e de contratransferéncia. A transfe- téncia é a reedicao de sentimentos, idéias, fantasias ou experiéncias infantis na relagio atual com o terapeuta. Assim, as experiéncias infantis com os pais ou outras figuras significativas so revividas na relacio terapéutica atual, em que o terapeuta pode fi O Ciclo da Vida Humana 27 ser visto como uma figura idealizada ou persecutéria, alternada ou sucessivamente. A compreensio dos fenémenos transferenciais é central para se entender a atitude e as expectativas do paciente em relagdo ao médico e A equipe de satide. Em resposta a transferéncia, o terapeuta reage com idéias, sentimentos e fanta- sias inconscientes que constituem a contratransferéncia. Considerada inicialmente como um obstdculo para o tratamento analitico e para a compreensio da relagio médico-paciente, a maioria das escolas contemporaneas aceitam-na como essencial, pois possibilita entender o que est4 se passando na relagdo bipessoal, assim como 0 nivel de desenvolvimento emocional apresentado pelo paciente tanto naquele mo- mento como ao longo de sua evolugio. Assim, na medida em que se espera que um estudante das dreas da satide aprenda a relacionar-se com as pessoas que observa, espera-se também que esteja, dessa forma, preparando-se para estabelecer relagSes adequadas e éticas com seus pacientes, respeitando, reconhecendo e identificando tanto as suas reagdes emo- cionais como as de seu paciente, em qualquer fase do ciclo vital, pois isso tera decisiva importiincia para o diagnéstico e o tratamento das varias situagées en- contradas na sua atividade clinica. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS ERIKSON, E.H. Identidade, juventude e crise. Rio de Janeiro: Zahar, 1976. FENICHEL, O. (1945) Teoria psicoanalitica de las neuroses. Buenos Aires: Paidés, 1946. FREUD, A. (1946) O ego e os mecanismos de defesa. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilizagio Brasileira, 1972. FREUD, S. (1915) O inconsciente. In: Edigdo Standard Brasileira das Obras Psicologi- - cas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1974. v.14. . (1923) O ego ¢ 0 id. In: Edigdo Standard Brasileira das Obras Psicolégicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976. v.19. HINSHELWOOD, R.D. A dictionary of Kleinian thought. London: Free Association Books, 1989. GABBARD, G. Psicanilise. In: KAPLAN & SADOGK. Tratado de psiquiatria. 6.ed. Porto Alegre: Artmed Editora, 1999. KAPCZINSKI, F. et al. Bases bioldgicas dos transtornos psiquidtricos. Porto Alegre: Artmed Editora, 2000. KAPLAN, H.J.; SADOCK, B. J. Tratado de psiquiatria. 6.ed, Porto Alegre: Artmed Editora, 1999. SEGAL, H. Introducdo @ obra de Melanie Klein. Rio de Janeiro: Imago, 1975. TYSON, P. Teorias psicanaliticas do desenvolvimento: uma integragdo. Porto Alegre: Artes Médicas Sul (Artmed), 1993. ZIMERMAN, D.E. Fundamentos psicanaliticos. Porto Alegre: Artmed Editora, 1999. estacio, Parto e Puerpério Aida Zimmermann, Heloisa Zimmermann, Jacques Zimmermann, Fernando Tatsch, Cristina Santos E muito importante o conhecimento dos aspectos emocionais relacionados a gravi- dez, ao parto e ao puerpério, uma vez que essas fases sio cruciais para a satide do bebé e para o desenvolvimento das relacées familiares. Nesse contexto, a equipe de satide pode realizar um bom atendimento orientando adequadamente a gestante seu companheiro. Neste capitulo, sero abordados a gravidez, 0 parto e o puerpétio, salientando-se os aspectos emocionais sadios mais relevantes. A GESTACAO Hé um consenso de que a gestacio protege a mulher das doengas mentais, exceto na adolescéncia, quando pode aumentar o risco de varias atuagées, inclusive 0 tisco de suicidio, pelas dificuldades em lidar com as exigéncias conseqiientes. Entretanto, esse quadro melhorou muito depois do advento da contracepgio e dos suportes sociais disponiveis. A gravidez € um evento tinico, no qual alteragdes metabélicas ¢ hormonais causam mudangas estruturais que influenciam o comportamento. Qualquer pes- soa identifica uma gestante pela barriga desproporcionalmente grande; porém, um observador um pouco mais atento também verificaré uma forma diferente de pensar e agir. CO instinto de ser mie estd presente em todas as fases da vida da mulher, contri- buindo no seu modo de ser, pensar e agir, fazendo parte da psicologia feminina. dificil determinar até que ponto esse modo é inato e até onde é estimulado social- it 30 _Eizirik, Kapezinski & Bassols (orgs.) f mente. Ao brincar com bonecas, as criancas demonstram a precocidade com que ele se manifesta, sendo notével a espontaneidade com que elas, jé aos dois ou trés anos, abracam, repletas de afeto, seus filhos imagindrios. A mulher que teve um desenvolvimento infantil e uma adolescéncia saudé- veis, guardando lembrangas afetivas dos pais como modelos, provavelmente for- mard uma familia bem-estruturada e poderé contar com Q apoio e o amor do compa- nheiro. Assim, as dificuldades desse evento vital serio minimizadas. Entretanto, nao se pode afirmar que gestantes saudaveis sejam apenas as oriuridas de familias bem-estruturadas, pois esse nao é 0 tinico fator responsdvel por um desenvolvimen- to adequado. Gestantes vindas de famflias funcionais podem vivenciar experiéncias desagradéveis durante a gestaciio, sendo o inverso também verdadeiro, No inicio da gestag&o surge o sentimento de ter-se tornado finalmente “mu- Iher”. A gestante esté inebriada com a percepgio de algo semelhante a poder, capa- cidade, realizacio; j4 nfo é mais uma menina mas uma mulher. Assim, no primeiro trimestre, apesar de todos os temores, sente-se plena e orgulhosa. A gravidez repre- senta, para a maioria das mulheres, uma questo fundamental, que dd significado e equilibrio a suas vidas. A maternidade e a fertilidade sfio muito valorizadas em nossa cultura, de forma que, muitas vezes, a importancia da pessoa fica ligada a sua capacidade de procriar. Muitas mulheres nunca se sentem sexualmente satisfeitas enquanto usam métodos anticoncepcionais. A fertilidade eleva sua auto-estima e aumenta o Tespeito € a atengiio que recebem do companheiro, da familia e da sociedade. A gravida sente-se “com o rei na barriga”. O bebé pode vir a ser 0 Messias, 0 presidente da reptiblica, um fdolo, etc. Espera-se das mies um relacionamento préximo e afetivo com seus recém- nascidos, o que ocorre em mulheres psicologicamente saudaveis, que atravessaram a gestacdo superando adequadamente as ansiedades e as fantasias. Torna-se neces- sdria, ent&o, uma revisdo sobre os eventos ansiogénicos, os mecanismos por meio dos quais as fantasias so elaboradas ¢ a sua relevancia no relacionamento mater- no-infantil. As principais elaboracdes psiquicas giram em torno de: 1, representagées da gestante como mulher e nadie; 2. fantasias a respeito do filho ¢ da sua identidade futura; 3. antecipagdes de dificuldades profissionais ¢ no relacionamento com 0 marido; 4, medo da propria morte e/ou do bebé no parto, bem como de malformagées. Durante a gestacio, podem-se identificar perfodos em que prevalecein de- terminados sentimentos. Fica clara-a associagio entre a percepgao da gravidezeo inicio de um periodo atribulado, no qual temores, ansiedades e alegrias estario constantemente presentes ¢ refletidos na conduta da gestante. A confirmacdo da gravidez sempre desperta ansiedade, mesmo em gesta¢3es planejadas. Para compreender melhor esse sentimento, é necessario ter-se em men- f O Ciclo da Vida Humana 31 te a importancia do relacionamento precoce entre pais e filhos ¢ a infancia da futura gestante. As elaboragGes psiquicas nao sao necessariamente entendidas de modo racio- nal. Pelo contrério, sio percebidas apenas como um desconforto, um certo nervo- sismo. Os temores presentes durante toda a gestagio mobilizam defesas impor- tantes, como negagdes, somatizag6es e reagdes manjacas. E necessério enfatizar que as manifestagdes psicossomaticas costumam ser reduzidas se a gestante for devidamente esclarecida a respeito dos eventos aos quais esid sujeita em decor- réncia da gravidez, de modo que um apoio psicol6gico e afetivo pode trazer ganhos significativos. A gestacio é marcada pela ambivaléncia dos futuros pais, que tendem a sen- tir-se vigorosos por serem férteis, mas angustiados pelas perspectivas de profun- das alteracdes em suas vidas, j4 que a gravidez é o prentincio de uma nova fase da vida de ambos. As fantasias de prazeres idflicos desencadeados pela maternidade e paternidade siio contrabalangadas pela realidade das dificuldades surgidas pela chegada de um bebé, centradas nas restrigdes da independéncia dos futuros pais. Considera-se uma importante tarefa do profissional da satide fazer com que eles percebam que tal ambivaléncia é natural para que a ansiedade e os sentimentos de culpa desnecessérios ndio aumentem ainda mais. Assim como se verificam alteragdes na gestante, seu companheiro também as apresenta, principalmente as psicolégicas, originadas em fantasias. Para que se possa compreender tais fantasias, é necessdrio retornar as etapas mais precoces do desenvolvimento do homem, perfodo em que ele se identificava e competia com seu pai no objetivo de ganhar 0 amor e 0 carinho da mie. Esse sentimento de triunfo, associado 4 perda da forma fisica da companheira e aos temores de lesio ao feto, leva-o a afastar-se sexualmente da mulher, sendo que alguns homens, nesse momento, procuram relacionamentos extraconjugais. Espera-se que 0 ho- mem consiga entender e diferenciar as relagdes edfpicas do relacionamento ma- trimonial e que possa manter-se préximo e afetuoso durante toda a gestagao. No entanto, muitas vezes isso nao ocorre, e o marido apresenta desde uma discreta diminuigao do interesse sexual até uma completa indiferenca em relagio a gestan- te. Somando-se aos problemas do relacionamento recém-descritos, existe quase sempre um distanciamento amoroso da gestante em relagao a seu companheiro, pois seu afeto esta direcionado ao bebé e niio mais apenas ao marido. O resultado &uma sensagio de frustragio e abandono experimentada pelo homem, que deveré aprender a tolerd-la. Nesses casos também siio comuns as manifestagGes psicos- somiaticas, representadas por gripes, crises de asma, tilcera, etc. A mie sempre teve uma unidade natural com o bebé, mas 0 pai, nos tempos atuais, esti cada vez mais envolvido com o desenvolvimento do seu filho. Os médicos incentivam e valorizam muito que o pai acompanhe o pré-natal, prepa- rando-o para participar do parto. O futuro pai fantasia e vivencia as experiéncias que sua companheira est passando, observa a sua barriga aumentando, encanta- se com os primeiros sinais de vida do seu filho, sonha com 0 que faré com a “sua” Instituto de Psicologia - UFRGS Biblioteca: 32 Eizirik, Kapezinski & Bassols (orgs.) crianga. Contudo, a gravidez e o posterior nascimento de um primeiro filho pro- vocam mudangas fundamentais no relacionamento do casal, gerando profundas redefinic6es nos papéis familiares. Muitos casais n’io esti maduros para as mo- dificagdes necessdrias ao cuidado de um filho e precisam de assisténcia. A gestante que ja tem filhos pode verificar a animosidade dos mesmos, pois, com freqiiéncia, eles percebem a gravidez antes da mie e sentem seu espago ameaca- do. O manejo dessa situac’o nem sempre é simples e sugere-se que, logo que possivel, a gravidez seja comunicada para os outros filhos, a fim de que eles a compreendam. Ainda assim, podem: ocorrer manifestagées de intolerdincia e um comportamento regressivo, expresso por agressdes 4 barriga da mie ou por atitudes infantis para a idade. Além disso, cabe enfatizar a importancia de deixar que eles saibam aquilo que é Sbvio: o futuro irmio est na barriga da mie e no no bico de uma cegonha. Em geral, entre a 16¢e a 20 semanas de gestacdo, so notados os primeiros movimentos fetais. Esses causam sobressalto e sentimentos de prazer e temor por algo estranho ¢ insélito. Os movimentos fetais causam temores por representarem a dissociagao entre mie e feto. O feto nao é mais apenas parte do corpo da mie, mas um ser com movimentos préprios, cada vez mais independente. A gestante, até ent&o deslumbrada com a sua condigao de mulher completa e cumpridora de seu papel na sociedade, vé-se agora exposta ao Onus de ser mie. Percebe que a euforia do inicio da gestaciio no 6 eterna, pois em breve dard luz uma crianga. Isso permite a elaboragio de fantasias cada vez mais reais a respeito de seu papel na educaciio e no cuidado do filho, o que implica responsabilidades imensas. Ao mesmo tempo em que os movimentos fetais impdem um limite entre a mae 0 feto, a mulher tem um sentimento de que o descendente representa a continuida- de de seus genes, dando-lhe a idéia de perpetuacgio. A aproximagio do parto au- menta os medos devido As fantasias de morte. O obstetra tem um papel decisivo ao tranqiiilizar a gestante, explicando os procedimentos realizados durante o parto e informando sobre as chances de eventuais complicacdes, relativamente raras. J4 nos primeiros meses, verificam-se alteragdes no corpo da gestante. Du- rante a gravidez, sua aparéncia ficaré temporariamente alterada, pois apareceriio edema dos membros inferiores, varizes, seios aumentados e uma barriga incémo- da que parece ter um crescimento sem limites. O que de fato gera preocupagiio é a possibilidade de ser rejeitada pelo companheiro, de nao se sentir querida, dese- jada, uma vez que percebe que seu corpo nao estd mais t&o atraente. O temor seri~~ maior se o ntimero de relagdes sexuais diminuir apés 0 inicio da gestagdo, o que freqiientemente ocorre. Mais uma vez, torna-se essencial:a atengio do médico assistente para identificar os problemas e orientar a gestante e seu companheiro. A manutengio das relagdes sexuais é, na medida do possfvel, recomendada, in- clusive no tiltimo més da gestagHo, pois, além de promover um alivio das ansieda- des do casal, pelas sensagGes orgasticas, confirma seu sentimento de que se amam. O crescimento da barriga provoca uma modificacio no ponto de equilibrio; logo, € necesséria uma readaptagdo no modo de caminhar, de sentar e para a rea- lizagdo de qualquer movimento. Contudo, tal readaptagio é prontamente aceita pela gestante. f O Ciclo da Vida Humana 33 Nos meses que precedem o parto, as dificuldades fisicas acentuam-se, e, do ponto de vista psicolégico, a mulher encontra-se em meio a um turbilhio de emogées. Por um lado, hé a alegria associada ao nascimento do filho com a conseqiiente satis- fagiio do instinto materno e o alivio que o parto proporcionard. Por outro lado, as preocupagdes sfio cada vez mais intensas pela proximidade do parto e por reavivar os medos da gestante de ser mutilada ou morrer. Além disso, estio presentes sensa- Ges fisjcas desagradaveis, como peso no perineo, micgdes freqiientes, compressio do estémago, diminuic¢o da capacidade pulmonar, hemorréidas, etc. Nessa época, 2 maioria das gestantes adquire a consciéncia da responsabilida- de implicada em ser mie. Junto a isso, imagens da aparéncia e do temperamento da crianga invadem a mente da futura mie, trazendo consigo temores de defeitos fisi- cos. Em alguns casos, ocorre a parada dos movimentos fetais, sendo rapidamente associada a complicagées e gerando verdadeiras crises de ansiedade. Porém, se a gestante perceber e aceitar os motivos que desencadeiam essas ansiedades, elas diminuirao. Mais uma vez, toma-se evidente a importancia de um relacionamento franco e préximo do obstetra com a paciente, o que apenas € atingido se aquele estiver disponivel e puder transmitir gestante seguranca e firmeza. O médico deve saber detectar os sinais de ansiedade da paciente para poder tranqiiilizé-la. ; O periodo da gestagiio é critico para a satide do feto e do futuro bebé. E fundamental o acompanhamento pré-natal para que se possam evitar problemas permanentes futuros, tanto de origem materna quanto fetal. E interessante que se faga uma consideragao sobre uma situacio especial. Quando a gestante é médica, esta ciente das eventuais complicagdes que podem advir da gravidez e do parto. Isso determina uma carga extra de preocupagées quando comparada As gestantes niio-médicas; porém, 0 conhecimento paralelo dos manejos de tais complicagdes pode produzir um alivio parcial, se nao total, das preocupagées geradas. O psicanalista inglés Donald Winnicott acreditava que um ambiente que no € suficientemente bom poderia prejudicar 0 desenvolvimento do bebé. Winnicott (1956) descreveu um estado a que chamou de Preocupagdo Materna Priméria, ponderando que, se nfo fosse pela gravidez, esse estado seria considerado uma doenga, algo como um episédio esquizéide. Eleargumentava que uma mie preci- saria ser saud4vel tanto para desenvolver esse estado de Preocupagiio Materna Primaria quanto para se recuperar dele. Winnicott 0 descreveu como um estado de sensibilidade aumentada da mie, que iniciaria durante a gestacdo e continuaria por algumas semanas depois do nascimento da crianga, deixando a puérpera mais identificada com o bebé e, assim, assistindo-o melhor. Seria como se, durante toda a gestagiio, a mae gradativamente fosse se identi- ficando com o bebé para entendé-lo e saber 0 que ele esté sentindo. Essa identifica- Gio torna-se ainda mais importante no periodo pés-natal, quando o filho nao pode expressar suas necessidades. A mie, entio, “entenderia”: “Ele est com frio, com fome, molhado”. Nesse perfodo, a mie estaria muito regressiva, muito vulnerdvel, necessitando da protegio e do cuidado do companheiro, fundamental para a dupla miie-bebé. 34 Eizirik, Kapczinski & Bassols (orgs.) ! A gestagio a termo representa o triunfo do instinto materno sobre todos os obstdculos que se ergueram durante os nove meses, e o bebé que nasce vem para corresponder as expectativas dos pais. PARTO Nas tltimas semanas da gestagao, hd uma antecipagao das fases do estresse que ‘ocorrem durante o trabalho de parto. A primeira é representada pelo iminente afas- tamento do feto, que faz com que a mae reviva ansiedades de separagao, tema pes- soas estranhas e o hospital. A segunda, que chega a um pico durante o trabalho de parto, 6 precedida pelos temores de ser ferida pelos movimentos do bebé. A tercei- ra, também mais evidente durante o parto, refere-se 4 fantasia com relagio a perda dos genitais, que seriam retirados junto com a crianga. Chegada a hora do parto, em meio A incerteza, surgem crises de ansiedade e Teaparece,o temor a dor, 4 morte, ao parto traumatico, ao férceps, 4 cesariana, a0 filho disforme e 4 morte dele. Geralmente essas crises marcam 0 processo de apagamento ou preparagdo do colo do titero e o progresso das contragées efetivas para a descida da cabeca do bebé em busca da exteriorizacao. Em condigées normais, a culminancia do proceso de dilataciio traz consigo uma modificagdo nas sensagdes corporais. O apoio da cabeca do feto no assoalho perineal e a conseqiiente compressio do reto produzem um reflexo evacuativo que, além de surpreender e assustar, é doloroso. De acordo com a capacidade da mulher de reconhecer e situar 0 estimulo, o parto prosseguiré naturalmente até a expulsio, ou produzir-se-do intensas dores motivadas pela contratura dos miisculos perineais. ante da decisao de internagao hospitalar, o parto aparece como um fato con- creto, irreversivel. HA situagGes que exacerbam a ansiedade: 0 ‘toque vaginal, a tricotomia, o enema. O toque tomna-se especialmente ansiogénico porque é por meio dele que se verifica se h4 ou nao uma dilatagiio adequada. Ele é sentido como se seu resultado fosse um prémio ou um castigo: o prémio é a internagdo; o castigo, ser mandada de volta para casa. O enema e a tricotomia sao vividos como a peniténcia merecida pela pritica da sexualidade e pela pretensio de ser mile. A futura me necessita de apoio e tranqiiilizagao desde a preparagiio para o parto e durante este, por parte de seu companheiro, de sua prépria mie, da partei- ra, da enfermeira ou do médico. E imprescindivel que a paciente confie na equipe que aesté atendendo. Com base nesse aspecto, afirma-se que o parto ideal é aque- le assistido pela equipe médica que atendeu a gestante durante o pré-natal, situa- go dificil nos atendimentos da rede hospitalar publica. A chegada A sala de parto provoca, em geral, outra crise de ansiedade com manifestagdes varidveis: psiquicas, fisicas, no comportamento social, etc. Algu- mas pacientes se tornam agressivas com a equipe, como reflexo dos temores e das fantasias em relacdo ao parto. A fantasia da castragao, sempre presente, manifes- Z O Ciclo da Vida Humana 35 ta-se no temor a episiotomia, que costuma provocar um estado de alerta em rela- Ho a tudo que transcorre no recinto. E crucial que, durante o trabalho de parto, a paciente nao seja deixada sozi- nha. Ela deve ser acompanhada e incentivada a participar e cooperar o maximo possivel. Essa participagdo é muito importante, pois dard & futura mae uma sensa- ao de competéncia. O uso de medicacao tranqiiilizante deve ser evitado ao maxi- mo, tanto para manter a mae consciente e cooperativa para © momento Unico do nascimento do seu filho, como para que este nasga alerta e em condigdes de for- mar os primeiros vinculos com sua mie ainda na sala de parto. E importante salientar que os efeitos depressores sobre o sistema nervoso central do recém- nascido causados por essas drogas podem afetar o seu comportamento por até sete dias depois do nascimento. Apés 0 parto, os pais no demonstram qualquer decepgio diante da Constatagdo de que o seu bebé nio corresponde ao modelo de perfeicao, idealiza- do por todos os casais. Antes, os sentimentos predominantes sao de alfvio por terem obtido éxito, gratid’o pelo fato de o filho ter nascido, éxtase por ele ser normal ¢ uma sensagdo gloriosa de querer criar ¢ abragar aquela criatura pequenina e dependente. Todos os pais esperam um parto normal e gratificante. Se participaram de Cursos pré-natais, estardo ainda mais determinados em suas expectativas. Assim, © choque provocado pela necessidade de uma cesariana é seguido por uma impor. tante decepgao, encarada como um fracasso. De forma semelhante, os pais de bebés prematuros enfrentam uma espécie de reagiio de luto, sentindo-se incompe- tentes ¢ culpados. B necessdrio que a equipe interfira e os ajude a entender e a aceitar o que realmente est acontecendo. A partir do parto, a crianga adquire vida propria, sendo expulsa do organis- mo materno e assumindo suas fungées fisiolégicas vitais. Por sua vez, a mae comega a passar por um processo de readaptaco ao estado de nao-gravidez, Es- sas modificagées bruscas podem ser complicadas, dificeis e dolorosas, o que tor- Na O puerpério um momento muito delicado e importante. Até aqui, apenas descrevemos a gestacio a termo e os Ppartos por via baixa. Entretanto, existem problemas de. satide maternd ou fetal que podem acarretar a interrup¢ao da gestagiio e alteram ainda mais o comportamento e o equilibrio emo- cional da futura mie e de sua familia. As insegurangas ¢ os temores quanto anestesia, ao ato cirdrgico, ds condigdes de satide do bebé e da gestante angustiam toda a familia e a equipe médica. E muito importante que a equipe fique tranguiila © explique de modo claro para a paciente, seu companheiro e familiares o que esta ocorrendo, o que pretende realizar e 0 prognéstico, bem como que os mantenha informados sobre 0 que est4 ocorrendo no bloco obstétrico e a previsio do que estd sendo esperado tanto para a mae quanto para o bebé. Da mesma forma, assim que seja possivel, deve-se deixar 0 pai ver a mae e o bebé, informando sobre o que Ocorreu € 0 que se pode esperar na evolugiio de ambos. 36 Eizirik, Kapezinski & Bassols (orgs.) __/ PUERPERIO puerpério inicia-se com a dequitaco da placenta e tem duragio varidvel confor- me o enfoque: 0 puerpério legal dura 40 dias; 0 orginico pode levar até 90 dias; 0 social, até 120 dias e 0 psicolégico nao tem um término preciso. Essa 6 uma fase de grandes transformages, tanto orginicas, pela involucio das modificagSes que ocorrem durante a gestago, como emocionais, uma vez que a gestante se transforma em mie ¢ o feto “toma-se” real como filho. Soifer (1984) considera o puerpério’ uma situago de delimitagio entre 0 perdido, que seria a gravidez, e 0 adquirido, representado pelo filho, e também uma delimitacao entre os periodos caracterizados pela fantasia inconsciente e, apés, pela realidade. De forma semelhante, Deutsch (1951) e Langer (1981) consideram o puerpério um perfodo intermediério entre a gravidez e a vida normal, durante o qual o trauma da separa- io vivido pela mie é diminuido pelo inicio da relago maternal com 0 filho. A puérpera, como a gestante, apresenta fantasias a respeito da satide de seu filho, sobre o futuro dele e medos (geralmente provocados por sentimentos de culpa inconscientes) de que alguma “mulher perversa” ou “bruxa” venha fazer- Ihe mal ou roubé-lo. Além disso, as dtividas sobre a capacidade de cuid4-lo sao muito predominantes. Por isso, toda mie deve ser orientada quanto ao modo de segurar o bebé, de como olhd-lo e amamenté-lo, quanto as trocas de fraldas, etc. Esse apoio é essencial para a relagiio da mie com seu filho e com ela mesma, uma vez que a inseguranga pode afetar todos os processos envolvidos no puerpério. ( periodo de internagao obstétrica é encarado diferentemente pelas mulhe- res: para algumas, significa agradaveis férias de responsabilidades, enquanto para outras representa uma prisdio onde devem refrear seus desejos ¢ impulsos mater- nais. Nessa confustio emocional observada logo apés o parto, é freqilente a reso- luco das ansiedades por meio de defesas maniacas, caracterizadas pela diminui- dodo sono, da fome ou mesmo pela agitagio das visitas no quarto da nova mie. No entanto, isso nao é de todo indesejado, j4 que muitas vezes, quando nao ocorre esta situagiio de carinho e festejo, pode haver sintomas de depressdo puerperal. ‘Nos casos em que a mie tem alta hospitalar, e o bebé necessita permanecer internado, as ansiedades da mie e dos familiares so muito grandes. A vontade de estar sempre com 0 bebé, amamenti-lo e 0 desconforto de ficar longe do lar um tempo considerdvel do dia desorganizam ainda mais a vida emocional da nova mic. Atualmente, hd servicos que valorizam a relago mae-bebé, criando progra- mas de auxilio para a amamentagio ¢ do tipo “mae-canguru”. Este auxilia mae € pai a ficarem com o bebé em contato com sua pele, durante parte do dia, enquanto © bebé est hospitalizado. No retorno para casa, ressurgem as dtividas em relagio A capacidade de to- mar conta do bebé, dos (eventuais) outros filhos (que nessa fase apresentam ma- nifestagdes de citime, agressividade ou depressio), do marido, da casa e dos de- mais afazeres ao mesmo tempo, o que também provoca ansiedade e depressao. ‘Agora que nao hé mais a mesma quantidade de visitas como no hospital, a puérpera nao consegue negar a depressiio. Ela deve encarar sua casa e tarefas sozinha, no / O Ciclo da Vida Humana 37 méximo com a ajuda da sua mie e/ou sogra. Nesse momento, € importante o apoio dos familiares e das amigas, pois a depressio é extremamente comum e ocorre nos mais variados graus. . Durante o puerpério, a mae comega a cuidar de seu filho. Quando 6 bebé nasce, a puérpera jé apresenta o desejo de alimentar, cuidar e ficar préxima dele. Ao identificar-se com o filho, a mae pode regredir e repetir, em seu comportamento materno, suas experiéncias infantis. Essa regressfio também serve para uma ade- quada compreensio do recém-nascido e um melhor estabelecimento dos vinculos com ele. Como dito anteriormente, a atitude da mulher como mie depende de varios fatores: seu desenvolvimento, a identificag¢30 com a propria mie, a aceita- ao do seu papel feminino e de mie e suas experiéncias pessoais. Ser uma boa mie envolve um certo grau dematuridade psicossocial, e implica muito mais do que simplesmente nutrir 0 bebé. O:recém-nascido, s6 pelo fato de sua existéncia, representa o preenchimento das necessidades receptivas da mie, fazen- do com que ela se sinta inteira ¢ completa. A medida quea simbiose emocional pés- parto evolui, a mie comega a individualizar-se novamente, tornando-se cada vez mais segura quanto A sua habilidade de amar e tomar conta de seu bebé. Cuidar de seu filho envolve muitas tarefas que serio realizadas conforme a personalidade e experiéncia das mies. Muitas pedem ajuda e instrugdes, enquanto outras desejam resolver sozinhas as dificuldades, julgando assim construir funda- Mentos mais sdlidos da sua competéncia como mies. Escalona observou, durante as primeiras seis semanas pés-parto, uma tendéncia nas puérperas a minimizarem seu desejo e necessidade de ajuda e explicou que isso ocorre em “obediéncia” a pres- s6es culturais de auto-suficiéncia das mies. Além disso, interpretou esse fato como sendo uma negagao dos desejos das mulheres de serem cuidadas por uma mie. A mesma autora sugeriu que o entendimento dessa negagio pode esclarecer e melho- rar a capacidade das puérperas de lidarem com seus problemas de infancia e, conse- qlientemente, com seus filhos. A amamentacao é muito importante para a satide do bebé. No entanto, podem ocorrer problemas que dificultam esse ato. A maioria é de origem psicogénica, ge- rada por ansiedade. Deutsch (1951) acredita que durante a lactagao um cordao um- bilical psiquico liga o seio da mie a boca do bebé, e af se implanta o conflito entre as tendéncias egoistas e altruistas da maternidade. O resultado desse conflito determi- na se a amamentagio poderé ou nao ser realizada. Observa-se que as mulheres com capacidade de. amar os filhos sem temores, que nao apresentam conflitos entre 0 ‘eu” ea tendéncia maternal e que ndo temem as sensagdes sexuais provocadas pela lactagao geralmente amamentam com sucesso por tanto tempo quanto acharem necessdrio. As mées que amamentam sem experimentar essa funcéio como um de- ver secundario referem que se-sentem particularmente felizes durante esse perfodo, no se preocupando tanto consigo mesmas, pois sua satisfaciio esta completamente ligada ac bem-estar do bebé. Outro aspecto importante é 0 fato de a amamentagao amenizar 0 trauma do nascimento, j4 que com ela a dfade mie-bebé permanece unida por mais tempo, tendo assim uma separacio, por meio do desmame, mais Jenta e menos traumitica. : 38. Eizirik, Kapezinski & Bassols (orgs.) Todas as mies tém desejos e aspiragdes independentemente da sua fungio reprodutora. Hoje em dia, em nossa cultura, as mulheres costumam apresentar um modelo “masculino” de ideal de ego, ou seja, tém objetivos e oportunidades de trabalhar fora de casa, de ter atividade profissional, de ter independéncia econd- mica, etc. Tal situagdo thes permite, por um lado, proteger mais os interesses de seu “eu”, mas, por outro, dificulta o processo de amamentagio e de cuidados com o bebé. E interessante observar o conflito nessa drea, em que cada vez mais se dé oportunidades e estimulos As mulheres para que se desenvolvam em sua fungao reprodutora tanto quanto nas outras dreas, enquanto se exalta a ideologia da ten- déncia maternal ativa, inclusive pelo regime de livre demanda de amamentagio. Nota-se, ent&o, que a sociedade aumenta 0 conflito interno: pede-se que a mulher renuncie parcialmente, ora em uma diregdo, ora em outra. Assim, compreende-se a inseguranga que algumas mulheres sentem de serem mies ¢, ao mesmo tempo, continuarem a realizar seu trabalho fora de casa. Porém, esse feito pode ser reali- zado com sucesso por meio de manobras relativamente faceis, desde que a mulher tenha disponibilidade emocional para dedicar-se A crianga durante 0 seu tempo livre. Sem duivida, um filho gera infindaveis mudangas na vida da mie e do pai, mas com uma boa estrutura e com amor todas as dificuldades so superadas, e ‘ocorre uma boa adaptagio & nova vida, principalmente se o pai colaborar. As visitas de felicitagao sio um costume muito antigo e difundido e constituem. ‘uma ocasifio adequada para a puérpera mostrar sua casa, seus adomnos e seu filho (sempre bem arrumado) para as amigas, parentes e vizinhas. E freqiientemente as mies fazem isso com 0 objetivo de despertar nao apenas a admiracio das visitantes femininas como também sua inveja. Essa é uma manifestagiio do elemento narcisista da mulher, que ainda nao foi absorvido no seu amor pelo filho. Menos incisivamen- te, Danusa Ledo (1992) refere em seu livro sobre regras de etiqueta que as pessoas que desejam visitar mulheres que tiveram filhos recentemente devem preparar-se para ouvir e falar apenas da crianga (com quantos quilos ¢ centimetros nasceu, como €esperto, rosado, tranqiiilo, etc.), e aquele que nio tiver tal disposigao é preferivel que nao fagaa visita, pois magoaré a puérpera se “ousar” preferir falar sobre outro assunto, Dessa forma, 0 jogo entre o amor a si mesma e a preocupaciio com o filhoé evidente e inconfundivel durante os dias felizes, porém ansibsos, do puerpério. Aatividade sexual sempre deve ser considerada e, no caso da puérpera, merece uma importncia ainda maior devido 4 falta de conhecimento geral, tanto em relagio Aduragdo da fase de abstinéncia (de cerca de duas semanas) quanto 4 anticoncepg0 durante a amamentagao. Algumas mulheres se queixam de diminuigao de desejo e satisfagdo sexual, o que pode ser explicado pelos altos niveis de prolactina necessérios para a amamentagio; no entanto, isso nao traz conseqiiéncias importantes, uma vez. que, em geral, por volta da terceira semana tanto o marido quanto a esposa jd sen- tem desejo sexual. Com freqiiéncia, ambos tém medo de que a mulher se machuque durante a relagio, o que, contudo, raramente ocorre. puerpério é uma fase dificil para o marido pela quantidade de frustragdes e pelo profundo sentimento de abandono que gera. Isso é ainda mais marcante naquele que j4 se mostrava enciumado e regressivo durante a gestagio, pois agora o seu O Ciclo da Vida Humana 39 “concorrente” tornou-se real e consome a maior parte do tempo e da atengao da esposa. Como se isso nio bastasse, ela est4 bem mais feia do que antes, nao pode ter relagdes sexuais com ele e, freqiientemente, nem o quer. Por isso, sio comuns as brigas e as relagGes extraconjugais nesse perfodo, o que, por sua vez, faré com que 0 marido tenha dificuldades para voltar a ter relagdes sexuais com a mulher, pois estaré sentindo-se culpado. Independentemente de como tenha evoluido o puerpério, 0 rea- tamento das relagdes sexuais geralmente é insatisfatério e frustrante. Tanto o homem como a mulher buscam resgatarem-se da regressio, porém esta ainda é muito pro- funda nos.primeiros contatos e, portanto, geradora de muita ansiedade. Problemas psicolégicos so comuns nessa fase de vida to importante e tio freqiientemente vista como uma crise. As mudangas repentinas que ocorrem no. corpo da mulher podem ser vivenciadas por algumas como uma “castracio”. Além das grandes expectativas em relacio a produgao de leite, satide e ao temperamento da crianga e & sua capacidade de cuidé-la, sempre existem outros fatores que, geral- mente, aumentam 0 estresse dessa fase. Para algumas mulheres, a cesariana € uma derrota para a sua auto-estima, como se elas tivessem falhado no seu dever de mu- Iher por néo terem tido parto normal. No caso das mies adolescentes, a internagio obstétrica pode ser a primeira vez que elas se encontram afastadas da familia, o que se soma & ansiedade de ter tido um filho tao jovem. Por toda esta “pressiio” emocio- nal, € muito comum que pessoas previamente sadias desenvolvam quadros psiquié- tricos pés-parto, como a depressio (situagdo importante e predominante), e que pacientes em remissio de doengas psiquidtricas tenham uma recaida. COMENTARIOS FINAIS Em vista do que foi exposto, parece-nos que fica clara a importancia da atengio da equipe de satide para com esses aspectos da gestaciio, do parto e do puerpério, pois medidas simples podem representar a diferenga entre uma gravidez bem- sucedida e um evento traumitico na vida familiar. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS AMMANITI, M. 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Uma mie e um pai nao podem deixar de sorrir para 0 filho que lhes sorri. Embora o grande universo que encerra o bebé e seus pais esteja ainda longe de ser decifrado em sua totalidade, é 0 préprio desenvolvimento do bebé, no seio de sua familia, que dé o norte para a compreensfio de tais fenémenos. A observa- Go da reciprocidade de manifestagdes pré-verbais ¢ verbais entre pais e bebés, somada a inferéncias do observador e ao estudo de pesquisas ¢ teorias herdadas tanto da psicandlise quanto de outras disciplinas, permite-nos hoje melhor com- preensio dos fenémenos que ocorrem entre um bebé normal e seus pais. Com 0s avangos da tecnologia, sobretudo com a ecografia, foi possivel vis- lumbrar alguns aspectos das experiéncias do bebé ainda dentro do titero de sua mie, e observou-se que o comportamento do feto durante sua vida pré-natal tem continuidade apés o nascimento. A interagio entre 0 inato e-o adquirido sugere que certas experiéncias pré-natais podem ter profundo efeito emocional sobre a crianga, especialmente se forem reforcadas pelas experiéncias pés-natais, O desenvolvimento de cada individuo est4 intimamente condicionado as interagdes com seus pais. B-condicio vital que o bebé tenha um pai e uma mie ou ¢ \ 42° Eizirik, Kapezinski & Bassols (orgs.) outra pessoa que os substitua, caso contrario, nao sobreviverd. As relagdes entre o bebé e seus pais sdio pautadas por um grande numero de sistemas reguladores que atuam em diferentes niveis de organizaciio. Ressaltam-se aqui os trés sistemas regu- ladores mais importantes do desenvolvimento: 0 Biolégico, o Social e 0 Afetivo. As interagdes com o biolégico sao preponderantes durante a embriogénese, quando mudangas no estado do fenétipo do organismo funcionam como gatilhos para o genétipo, desencadeando novas séries de fenémenos bioquimicos. Essas expe- riéncias so reguladas pelo ligar e desligar de varias atividades genéticas dirigidas A construgao de um bebé humano vidvel. Esse processo continua depois do nascimento, e as interacSes com o sistema social dominam a maior parte do perfodo que vai da infancia até a idade adulta. Assim como hd uma organizagio biolégica ~ 0 gendtipo — que regula a emer- géncia das caracteristicas fisicas e temperamentais de cada individuo — 0 fendtipo ~; hd uma organizagiio social que regula a forma como os seres humanos se adap- tam em sua sociedade. Essa organizagio opera por meio dos lagos afetivos da familia e dos padrdes da organizagao cultural. A adaptagao do bebé em desenvolvimento, portanto, constitui-se de uma seqiién- cia de transages entre 0 genstipo, o fenctipo e o ambiente que originalmente € 0 titero da mie, depois 0 rosto, 0 corpo, 0 colo, o cheiro, o olhar somados a seguranga e A alegria transmitidas pelo pai, sempre presente desde 0 inicio. Sabe-se que a expresso do rosto da mié, a tensio ou a flexibilidade do seu corpo, a forma como ela sustenta 0 filho em seu colo, sdo todas expressées de seu afeto perceptiveis pelo bebé. Como 0 objetivo deste capitulo é a abordagem do bebé normal, criado em um ambiente suficientemente bom, sensivel ¢ responsivo, pressupde-se que tanto sua bagagem genotfpica como sua expresso fenotipica sejam predominantemen- te integras e saudveis, salvaguardadas as inimeras caracteristicas pessoais que fazem desse bebé um ser tinico. Do ponto de vista do psiquiatra e do psicanalista, é no ambiente que se encon- tram os vestigios reguladores mais perceptiveis. (Por ambiente aqui se compreende desde as condigées fisicas do meio intra-uterino até as condigdes emocionais e socioculturais nas quais a famflia do bebé est inserida.) Assim, sao fatores preditivos de uma boa interagao do bebé com seus pais e conseqiientemente de um desenvol- vimento saudavel: a motivacio altruistica do casal parental para ter o bebé, a hist6- ria pessoal de cada um, o amor que os une, sua maturidade, a tradico de suas familias de origem, varias geragdes anteriores de satide, solidariedade, capacidade de suportar frustragdes, postergar prazeres imediatos e capacidade construtiva. O amor que os une se expressa por meio da compreenso miitua, da preser- vago da sensualidade, do companheirismo cuidadoso durante a gestacfio, da rea- lizago do pré-natal, da privagio de drogas e de tantas outras medidas jé conheci- das, mas que, tomadas nesse momento, sero de profunda importancia para a construgio deste universo que é um novo bebé saudavel. Nés, humanos, vivemos experimentando alegrias e tristezas que pontuam nossa vida. As alegrias ¢ tristezas sio principalmente motivadas por encontros e despedidas. Empregamos grande parte de nossa vida na expectativa de encontros ; O Ciclo da Vida Humana 43 ¢ realizagdes, preparando-nos para as separagdes, fracassos e ajustamentos que visam a novas adaptagGes para 0 crescimento e também adaptagao as perdas e as separagdes que iniciam com o nascimento ¢ culminam com a morte dos pais.e a continuidade da vida por meio do nascimento dos filhos. Implicita 4 chegada do bebé est sua inexoravel separacdio do corpo da mie, a primeira e necessdria separacio. A absoluta dependéncia que ele tem de seus cuidadores vai deixando lugar a um longo processo de desprendimento e desenvol- viento que se constituiré em um exercicio constante de encontros e separagdes progressivas que culminard em sua independéncia como individuo. O desenvolvi- mento pleno de um bebé sé poderd ocorrer se contar com 0 amor de seus pais, que vai-se expressar como uma fntima relagdo que os estudiosos denominam de apego. OS PAIS i: Tornar-se pai.ou mie é um dos acontecimentos mais marcantes do ciclo vital de qualquer individuo e imprime profundas mudangas em sua vida e personalidade. Jé nas brincadeiras com bonecos e bichinhos podemos observar nas criangas 0 projeto da parentalidade futura. De fato, a parentalidade decorre de motivagdes humanas de ordem biolégica instintiva que, integradas a fatores evolutivos, sofrem também in- fluéncias de ordem social e cultural. , Como nascimento do primeiro filho é que tem inicio a familia. Mas a rela- Gao pais-bebé nao inicia af. Ela é precondicionada pelo desenvolvimento psicolé- gico do pai e da mie e pela qualidade de sua unifio. Quando um casal se une, dé inicio a um novo campo psicolégico, onde cada um exerceré influéncia sobre 0 outro. A concepcao e o nascimento de um filho produzem mudangas nesse cam- po, pela necessidade de abrir-se um espaco emocional para o novo ser. Além disso, os novos pais deparam-se com as tarefas psicolégicas de renunciar A sua prépria condigio de filho ou filha e de mobilizar identificacdes com seus proprios pais, a fim de assumir o papel de pai ou de mie perante seu filho. Cada filho que nasce encontrar um tipo de campo psicolégico com o qual ird interagir e alterar com sua presenga e caracteristicas individuais. Pai e mae revivertio suas proprias experiéncias infantis de forma diferente com cada filho. Disso resulta- r4 uma influéncia reciproca de processos evolutivos individuais com repercussio sobre as estruturas intrapsiquicas ao longo de geragGes que se sucedem. Os estudos derivados das teorias de John Bowlby vém ampliando o entendimento da transmis so transgeracional de padrées de relacionamento mostrando a tendéncia A repeti- Gio de padrdes de interagio e de resposta afetiva nos relacionamentos familiares. A medida que esses padres siio internalizados, formam o que Bowlby denominou “representagées internas” dos relacionamentos — uma montagem de muitas formas especificas de interagées. Tais representacdes, uma vez estabelecidas, tendem a es- tabilidade e 4 repetigiio inconsciente, se nenhum outro fator influencié-las no senti- do de mudanga. Observa-se como, muitas vezes, um bebé pode tornar-se, de forma inconsciente, o representante de figuras internas do passado dos pais ou mesmo de : \ 44 Eizirik, Kapczinski & Bassols (orgs.) algum aspecto repudiado ou negado deles préprios, com prejufzo para a relacio e para o desenvolvimento do bebé. Essa compreensio € central no trabalho de Selma Fraiberg (1980), psicanalista americana que desenvolveu técnicas psicoter4picas de auxilio aos pais e seus bebés. Em linguagem metaférica, Fraiberg refere-se a essas situagdes como “a intrustio de fantasmas do passado dos pais no quarto do bebé”. Diz ela: “Todo quarto de crianga abriga fantasmas. Sao visitantes que surgem do passado esquecido dos pais. E, mesmo nas familias que mantém lacos amorosos estaveis € fortes, esses intrusos podem romper o circulo magico... e um dos pais e seu bebé podem ser surpréendidos repetindo um momento ou uma cena originérios de outras épocas com outros personagens”. No momento do nascimento de um filho, especialmente o primeiro, os pais invariavelmente se deparam com a tarefa de integrar fantasia e realidade. Existe um bebé imagindrio que povoou seus sonhos e fantasias, um outro nio visivel mas real (0 feto que j4 vem por meses mostrando-se com seus ritmos e caracteris- ticas préprias) e, finalmente, o bebé real, que pode agora ser visto, ouvido e final- mente tomado nos bragos. Pai e mie terfo intimeras tarefas de ajustamento psicolégico a cumprir. Da parte da mae sobressaem:.a sensaciio brusca do rompimento de uma fusiio com o feto e.das fantasias de completude e onipoténcia proporcionadas pela gravidez; a adaptacdo a um novo ser que Ihe provoca sentimentos de estranheza; a elaboragio do luto pela perda do bebé que foi idealizado como perfeito e a adaptagao as caracteristicas reais de seu préprio filho; ser capaz de enfrentar e manejar seus medos de causar dano ao bebé frdgil e aprender a tolerar e obter satisfacéio das enormes exigéncias advindas da total dependéncia do bebé. Sob condigdes favoraveis, a mie, gratificada por sua habilidade de cuidar de forma adequada de seu filho, estabelece maior autoconfianga e um novo nivel de integracao da personalidade. Ao introjetar um “bebé bom”, que progride, assegura uma parte de seu ideal de ego e pode, de alguma forma, sentir-se mais competente para enfrentar as ansiedades, medos e frustragdes que sio inevitaveis quando se cuida de um bebé. Suas préprias experiéncias e caréncias infantis podem ser revividas e corrigidas. O pai, atualmente sob influéncia das mudaneas Sociais nos papéis masculi- nos ¢ femininos, muito mais autorizado a participar da criagdo dos filhos, tem igualmente ajustes importantes a enfrentar. Uma de suas primeiras reagdes poder ser um sentimento de exclusao frente a intima relagdo mae-bebé, podendo reviver sentimentos de rivalidade e citime que possa ter experimentado com seu pai ou irmdos na infancia com relagao a seu desejo de atengdo exclusiva da mae. Na infancia, o menino identifica-se primeiro com a mie e suas capacidades de gerar e cuidar filhos. $6 um pouco mais tarde iré identificar-se com 0 pai. E é neste interjogo de identificagdes que sua identidade de género se forma. Uma resolugao equilibrada permite ao menino aceitar no futuro seu papel de pai cuidador e a0 mesmo tempo identificar-se com a gravidez de sua mulher nao se sentindo exclui- doe invejoso de suas capacidades criadoras. Muitos homens conseguem sublimar esses desejos e sentem-se entio mais criativos e produtivos durante a gravidez da O Ciclo da Vida Humana 45 mulher. Freud apontou, na histéria do Pequeno Hans, como um menino de cinco anos acreditava poder gerar também uma crianga. Assim como sua mulher, 0 homem deseja renovar seus. velhos relacionamentos com figuras importantes do passado e tem a expectativa de que seus filhos Ihe propiciem isso. Seu desejo pot um filho sofre também a influéncia da rivalidade edipica: ter um filho para igua- Jar-se a seu pai e crié-lo melhor para suplantar o proprio pai. O exercicio da funciio de pai ou mie, sendo uma fase do desenvolvimento e momento importante do ciclo vital, contém em si 0 potencial para tornar-se uma oportunidade de renovagio e enriquecimento da personalidade. O DESENVOLVIMENTO DO PSIQUISMO DO BEBE, Recentes pesquisas sobre psiquismo humano evidenciam a importancia das rela- es dos pais com seus bebés para um desenvolvimento saudavel do individuo. Assim, relagdes de apoio, cuidados e afetos no inicio da vida favorecem 0 desabro- char das qualidades inatas do individuo. Porém, se-as relagdes primitivas forem escassas ou nao corresponderem as necessidades do bebé, poderao acarretar sérios prejuizos A sua satide. Winnicott divide o universo de pessoas em duas classes: “Aquelas que jamais se desapontaram enquanto bebés e, na mesma medida, sio candidatas a viver alegremente e a aproveitar a vida. E aquelas que sofreram expe- riéncias traumaticas, provenientes de decepgdes com o ambiente, e que necessitam. carregar consigo perpetuamente as lembrancas (ou o material para as lembrangas) do estado em que se encontravam no momento do desastre. Estas so candidatas a levar vidas tempestuosas e tensas e talvez candidatas a doenga”. Embora a necessidade de mais pesquisas sistemdticas nesse Ambito, obser- vou-se que os pais, representantes maiores do meio ambiente no inicio da vida, submetidos & violéncia crénica, a pobreza eA falta de emprego, sentem-se frustra- dos e desesperancados, podendo tornar-se incapazes de cuidar bem de seus filhos. As instituigdes que poderiam prestar um servigo preventivo para essas criancas € seus pais, que sio o sistema de satide e de educacio, precisam ser eficazes. Pot essa razio, € necessdrio que os técnicos de satide, e sobretudo os que se dedicam a medicina, estejam sensiveis ¢ atentos as caréncias e aos sofrimentos dos pais, procurando instrument4-los com 0 conhecimento acerca de suas préprias capaci- dades e das capacidades de seus bebés, para que esse conhecimento possa favore- cer 0 Vital intercdmbio entre eles, contribuindo também, dessa forma, para a pro- mogio da satide mental da populagao. Para dar conta dos miiltiplos fatores associados a satide ou 4 doenga mental, indimeros te6ricos, clinicos e pesquisadores langaram-se a tarefa de buscar os fa- tores etiolégicos da doenga mental. Ainda estamos a caminho de decifrar tal enig- ma, mas hd aproximag6es importantes que esto ao nosso alcance. O mais proeminente dos médicos que se ocupou dessa tarefa foi Sigmund Freud, que, com a criacdo da psicandlise, inaugurou uma sofisticada teoria sobre 0 desenvolvimento do psiquismo humano. Ele partiu da observagio de pacientes adul- 46 _Eizirik, Kapczinski & Bassols(orgs.) —_' tos que, ao relatarem seus sintomas, remetiam-se a lembrancas infantis traumiticas que faziam nexo com os sintomas e 0 conflito do presente. Suas teorias revolucio- naram 0 entendimento da doenga mental. A maioria de suas idéias ainda é aceita apés um século de vigéncia. A’atualidade de seu trabalho pode ser apreciada por meio da sua concepgao de doeiga, que seria influenciada por miltiplos fatores re- sultantes de um indissoivel inter-relacionamento entre o psiquico eo neuroquimico. Freud concebeu a doenga como resultante de uma combinagiio de fatores constitu- cionais e ambientais, sendo que as “vivéncias infantis”, ou as experiéncias resultan- tes da interagiio entre’o bebé e seus pais, representariam a parcela significativa da contribuicao ambiental. Observou que as agressdes ambientais — entendidas como desde as provocadas por um virus sobre o embrido até a violéncia de um pai sobre 0 bebé, a morte prematura de um dos pais ou o abuso sexual — podem danificar, em variados graus de intensidade, tanto o aparelho psicolégico como, conseqiiente- mente, o genético, dada a plasticidade do sistema nervoso central. Freud formulou a hipétese da mente constituida por trés instancias psiqui- cas, As quais chamou de id, ego e superego, cada uma com tarefas determinadas. No id, encontra-se um reservatério de energia psiquica, geneticamente determinada, que se expressa por meio de impulsos de vida e de morte. Ora, a fome e 0 desejo de saciedade correspondem ao impulso de vida que move o bebé a manifestar-se com um choro tio veemente que mobiliza imediatamente a mie a atendé-lo em sua necessidade mais primdria, que tem por objetivo a manutengao da vida. A fome e a saciedade pdem em marcha o desenvolvimento do pensamento. Imediatamente apés 0 nascimento, o bebé nao percebe a diferenca entre ele proprio e seus pais. Porém, as frustragdes — a fome, por exemplo - fazem com que gradativamente v4 percebendo 0 desconforto e, decorrente disso, v4 também iden- tificando a fonte de onde provém 0 alfvio — no caso, a saciedade. Aos poucos, a crianga vai percebendo o seio da mie, o rosto desta e, por fim, a mie vai sendo percebida como uma pessoa distinta, como a fonte de alimento, de prazer e de vida, convertendo-se no primeiro objeto de amor do bebé. Essa relagao entre a mie e seu bebé foi descrita por Freud como uma relagio sem paralelo, estabelecida de forma inalterdvel para toda a vida, sendo o prototipo de todas as relagdes pos- teriores. Pois essa relagao primordial vai fundando 0 ego, que corresponde a ins- tancia 4 qual temos acesso consciente e que vai-se construindo ao longo do desen- volvimento. A teoria freudiana acerca do desenvolvimento do psiquismo aproxima-se do modelo fisioldgico no qual as forgas instintivas — como a fome, no caso do exemplo citado ~geram uma tens&o que impele o bebé a uma atividade que visa a buscar 0 alivio. Por meio da saciedade e da sucgo, obtém também um grande prazer oral. HA uma segunda etapa do desenvolvimento, por volta dos dois anos de ida- de, na qual a primazia das fungdes passa a ser a do controle esfincteriano. Essa fase denomina-se de fase anal, na qual a outra extremidade do aparelho digestivo constitui-se no lugar mais importante de tensdes e gratificagdes. As caracteristi- cas de retengio, controle e expulsio marcam essa fase. : O Ciclo da Vida Humana 47 A concepgiio do desenvolvimento em etapas sucessivas é aceita pela maioria dos autores. Para que o bebé o faga de forma harménica, cada etapa supée a resolugio da anterior, de acordo com o principio epigenético. Seguidores de Freud continuaram sua investigaco, modificaram-na e ampliaram-na, porém estiio de acordo quanto direcdo do desenvolvimento. O bebé parte de uma etapa mais indiferenciada e evolui para uma mais diferenciada; parte de uma situacio de extrema dependéncia para uma situagdo de independéncia; de uma visio idealiza- da do mundo para uma visdo mais realista. Essas idéias convergem quanto aos conceitos de maturidade e de satide mental. Dessa forma, 0 momento do nasci- mento culmina uma etapa de amadurecimento, e o corte do cordio umbilical é, além da separaciio fisica, o simbolo de uma autonomia que comeca e que se mani- festa no primeiro choro. Com efeito, desse momento em diante, tanto a situagao de desamparo e dependéncia como a exigéncia-de autonomia e independéncia coexistem como que dialeticamente na vida da crianga. E ébvia a importincia que tém os pais nesse delicado equilibrio de forgas. Embora nem tudo possa ser feito por eles, nada se fara sem eles. Isso significa que, fora do alcance da ago dos pais, hd toda uma 4rea inerente 4 economia interna da crianga, & sua constituigao genética e As caracteristicas:prdprias do bebé como a voracidade excessiva, a agressividade incontrolavel e a incapacidade de reparagio que também podem dificultar 0 crescimento harm@nico. Se a essas caracteristicas das criangas se somarem pais imaturos, frustrados ou que no tenham resolvido seus proprios problemas constitucionais ou patologias mentais — incluindo sobretu- doa depressio, o uso de drogas ou graves desvios caracterolégicos —, certamente 0 desenvolvimento do bebé estard em risco. Pode-se observar outro angulo da relagiio pais-bebé de forma hipotética. O bebé inicialmente percebe a mie como objeto de amor quando esta o sacia, 0 aca- lenta e 0 cuida. Porém, quando de novo a fome, a frustrago e o mal-estar invadem a crianga, essa mesma mie passa a ser objeto de frustracHo e édio. Finalmente, quando a crianca puder discernir que a mae é uma pessoa separada, e que essa separagiio Ihe provoca uma enorme falta, tem inicio o processo de pensamento. Ea percepgio da falta, da necessidade vinculada a pessoa amada, no caso a mie, o pai e os demais cuidadores conhecidos, que leva o bebé a desenvolver o pensamento. ‘A crianga percebe que a pessoa que a satisfazia era a mesma que a frustrava; tratava-se, portanto, da mesma pessoa. Dessa forma, passa a perceber sua vital ne- cessidade dessa mie. Nessa situacio, o bebé sente culpa, depressio e sofrimento por haver odiado a mesma pessoa que 0 conforta. O estado de espirito do bebé e de todo ser humano, ao longo da vida, vai oscilar entre o sentimento de amor e ddio e 0 sentimento de culpa pelo édio ao proprio objeto de amor. Assim, desde o inicio da vida j4 se manifesta outra caracterfstica psfquica propria dos humanos — a ambivaléncia. As tarefas paternas vio evoluindo juntamente com o filho. Assim, no inicio, o amor dos pais se manifesta pela absoluta doacio, pelo oferecimento de tudo que a crianga necessita, permitindo-Ihe > ilusao de que tudo ser assim por toda a 48 Eizirik, Kapczinski & Bassols (orgs.) : vida. Aos poucos, 4 medida que a crianga se desenvolve, cabe também aos pais desiludi-la, propiciando um gradativo confronto com a realidade. No inicio, a mie fica to sensivel e preocupada de maneira to integral com seu bebé, que se desliga do mundo exterior. Comporta-se como um “ego auxiliar”. Segurando o bebé, confortando-o em suas necessidades ¢ sustentando-o em seus bragos de forma segura, permite ao bebé perceber e integrar suas sensagdes cor- porais, os estimulos ambientais, suas capacidades motoras crescentes e construir, dessa forma, uma representacio mental de si mesmo e dos demais. A experiéncia psiquica em evolugao também pode ser vista da perspectiva hipotética de Winnicott, que identificou trés 4reas distintas: a interna, a externa e a intermediaria ou Area de ilusao ou transicional. Assim, quando o bebé tem fome e deseja satisfazé-la, se a mae Ihe dé o seio, a crianga fica com a ilusio de que “criou” oseio. Nesse caso, 0 seio nfo é uma alucinagio e sim 0 resultado da criatividade do bebé. O seio também niio é um objeto externo do ponto de vista do bebé. Seria algo intermedirio entre a alucinagio e 0 objeto externo — “me pertence, mas nao sou eu” —, uma ilusdo. Entre. os 4 e os 12 meses, a crianga passa a chupar uma fralda, se agarra a um pedago de cobertor ou a um bichinho de pano, pée os dedos na boca, produz sons, se apega aferradamente a esses objetos. Winnicott chamou tais fatos de fenémenos ou objetos transicionais. Sio uma defesa contra a ansiedade de sepa- ragdo da mie ou contra as ansiedades depressivas. Esses objetos, sons ou sensagdes representam a mie, objeto vivenciado como bom, ao qual-a crianga se apega intensamente. A crianga pode mimé-lo ou mutilé- Jo. A crianga terd a impressiio de que o objeto a protege, se move, Ihe da calor, possui mais qualidades do que as que tem de fato. Para 0 observador, o objeto pertence ao mundo exterior, mas para a crianga isso niio é to claro; para ela também nao perten- ce ao mundo interior, nao é uma alucinagdo. E importante que o objeto sobreviva & sua agressio. Como 0 objeto transicional nio fica destruido irreversivelmente pelos ataques agressivos da crianga, 0 objeto interno que estd construindo — ou seja, a imagem de si e de seus pais em sua mente — torna-se mais forte, aumentando a sua capacidade de neutralizar a agressio provinda das frustragdes que sente pela ausén- cia da mie. O passo seguinte € o de afastar-se do objeto transicional, que por sua vez deixa uma marca: fica na mente da crianga um espaco, que, assim como 0 objeto transicional, é intermedirio entre o interno e o externo no qual se desenvolvem muitas atividades criativas. : ‘Vimos como o processo de desenvolvimento é construfdo no campo das re- lages entre 0 bebé e seus pais, permeado de percepgies fortes, como a fome e 0 desconforto ou a saciedade e o prazer, de sentimentos de frustragdo e édio e de amor e gratiddo, de sentimentos de abandono e desamparo alternados com 0 con- forto e a sensacao de seguranga. Esse intercambio de percepgées s6 é possivel se houver uma mie ou um pai presentes e ativos junto a um bebé capaz de interagir. Nesse campo existente entre o bebé e seus pais, constitui-se a nova familia que esta sendo construida. E complexo 0 estudo da interagao entre seus membros, pois a nova familia esté composta de individuos que, por sua vez, representam | | | : | ane eet 2 O Ciclo da Vida Humana 49 universos especificos e complexos. Além disso, a familia é composta de relagdes em todas as diregdes que precisam também ser apreendidas. Sao relagées firmes duradouras, prolongando-se por geragées. TROCAS AFETIVAS ENTRE O BEBE E SEUS PAIS Hi algumas décadas se consolidou a idéia de que as condutas do préprio bebé sio as responsaveis desde’o nascimento pelo desencadear das interagdes afetivas com o mundo, incluindo os estimulos e as respostas de seus cuidadores. Uma tendéncia clara para procurar e manter a proximidade e 0 contato direto com seu cuidador pode ser observada independentemente de qualquer aprendizagem anterior. Essas condutas funcionam como sinais emitidos que provocam cuidados por parte dos adultos & sua volta e os mantém préximos. O choro ¢ o sorriso, por exemplo, fazem com que os pais cheguem perto do bebé, procurando compreender o que tenta co- municar e assegurando, assim, os cuidados necessérios para sua sobrevivéncia. Gradativamente sao estabelecidos comportamentos de apego caracteristicos de cada bebé que, inicialmente, desenvolve 0 apego por sua mie, garantindo, dessa manei- ra, a seguranca psicol6gica, tio essencial para o desenvolvimento pleno. Oapego emocional pela mie ou por quem a substitua nessa relagio inicial é de tamanha intensidade, que esta figura de apego é mais capaz do que qualquer outra pessoa para perceber e satisfazer o bebé e ser sensivel aos seus sinais mais sutis de desconforto e de bem-estar. Ao mesmo tempo, esta serd a pessoa a quem 0 bebé recorrerd mais adiante para aplacar sua necessidade de consolo ou de brincadeira interativa espontnea. Medos comuns também podem ser menores na presenga de uma figura de apego do que quando essa pessoa est ausente. Sentimentos desagra- daveis podem ser minimizados por meio da interagdo com tal pessoa significativa, em quem a crianga confia, j4 que, comumente, tais sentimentos sfio desencadeados por sensagdes de perigo ou desconforto e contidos pela percepgao de seguranga frente ao aconchego do adulto. Em situagées de cansago, ansiedade, fome ou afli do de qualquer natureza podem ser observados no bebé os mais diversos movi mentos em direcio ao pai ou A mae ou para permanecer proximo a eles. Assim, os modos como tais movimentos manifestam-se variam nao s6 em fungio da idade do bebé, como também devido as suas caracteristicas individuais e as respostas dadas pelos adultos. Logo apés 0 nascimento, 0 choro parece ser 0 sinal mais evidente de que algo precisa ser comunicado A mie e de que alguma coisa precisa ser modificada para que cesse determinado desconforto. Os primei- ros choros do bebé, aparentemente indefinidos quanto ao seu significado, gradativamente, tomam forma e, nfo raras vezes, um choro absolutamente indecifravel para um estranho é facilmente decodificado pela mie, que passa a conhecer as diferengas mais sutis entre um choro e outro. Uma relagdo intima entre a crianga e 0 cuidador comega efetivamente a se.criar, agora, fora do titero materno. Uma aprendizagem mitua delicada, mas, ao mesmo tempo, de mudan- ¢as rapidas, permite experiéncias que podem garantir ao bebé a confianga na mae 50 Eizirik, Kapczinski & Bassols (orgs.) (ou no adulto que o cuida) e, portanto, em si proprio, pois é capaz de provocar eages em alguém e esse alguém responde ao que tenta comunicar, atendendo-o em suas necessidades. Pouco tempo passa e, repentinamente, por volta de dois a trés meses, o bebé comega a sorrir, especialmente para a mie, para o pai ou para quem também for um cuidador préximo. O sorriso j4 nao aparece somente durante 0 sono ou como uma resposta reflexa a um estimulo qualquer. Agora, ele tem uma fungéio bem especifica, ou seja, a de facilitar uma interagiio de trocas afetivas. O encantamen- to do adulto, em geral, toma conta e, irresistivelmente, mantém-se perto daquele pequeno que busca seu contato. O sorriso inicialmente indiferenciado e dirigido para qualquer pessoa é freqiientemente nominado pelos pais como direcionado a eles especialmente. Nenhum mal ha nisso pois, muitas vezes, esse sorriso é real- mente mais ditigido a alguém. Com o passar do tempo, o foco da resposta de sorriso adquire valor comunicativo ainda maior e configura uma das mais visiveis expressées de prazer e trocas mutuas entre o bebé e a mie ou outros adultos. Na medida em que se desenvolve, o bebé encontra formas de provocar rea- gGes nos adultos de acordo com suas caracterfsticas pessoais e com sua etapa evolutiva. O apego a mie (ou ao cuidador) fica cada vez mais evidente e tanto os momentos de afligo como os de alegria so preferencialmente compartilhados com ela. Surge, entio, depois do choro e do sorriso, um terceiro marco psiquico e comportamental: a reagao ao estranho. Esta ocorre por volta de seis a oito meses. Nao substitui os marcos anteriores, antes soma-se a eles, manifestando-se como uma maneira mais especifica ainda de demonstragiio de apego por alguém. Além disso, ao “estranhar”, o bebé mostra claramente que j4 é capaz de distinguir o familiar do no-familiar, o que é fundamental para o seu desenvolvimento cognitivo ¢ social e para sua organizacao emocional posterior. Entretanto, a reacdo do bebé ao estranho adquire sentido, na medida em que mobiliza, também, diferentes emogdes e respostas nos pais. Desde as manifesta- ges mais sutis de estranhamento, como nfo sorrir ou nao olhar para o estranho até as mais intensas, como o choro intermitente acompanhado de agarramento desesperado ao corpo do adulto de referéncia, podem ser percebidas pelos pais de formas distintas. Suas reagGes tém influéncia determihante sobre a maneira como acrianga vai enfrentar uma situagdo estranha ou nova, permitindo-se a diferencia- io entre o novo e o familiar paralela A aproximagio e exploragdo de novos estimu- los ou, num outro extremo, evitando qualquer contato e sentindo-se impedida de explorar o ambiente que a rodeia. Alguns pais, em sintonia com seu bebé, reagem A sua expresso de seriedade diante de um desconhecido compreendendo sua sen- sagdo de estranheza, mas encorajando-o ao nov 2 contato, garantindo-Ihe a seguran- ga¢ o respeito ao seu préprio tempo e sua necessidade de aproximagao. Outros pais podem terminantemente definir essa mesma reagdio do bebé como completa recusa de aproximagao, confirmando assim, inconscientemente, o perigo de tal contato para a criariga. E, hd pais, ainda, que podem nem perceber tal manifesta- ¢ao como estranhamento e, portanto, nao decodificar um sinal importante de ne- cessidade de reasseguramento de seu bebé, oferecendo-lhe poucas condig&es para O Ciclo da Vida Humana 51 discernir seus préprios sentimentos. Da mesma forma, as manifestagdes de extre- ma estranheza podem ser tomadas como simples “bobagens” ou como completo impedimento de contato interpessoal fora da relago diddica entre a mie e o bebé. Entretanto, quando adequadamente manejada, pode passar de situacio de ansie- dade intensa para situagGes de prazer a serem vividas em outras trocas afetivas. O padrio de relacionamento que sé estabelece nessa etapa evolutiva é de fundamental importancia. Serve como modelo para interagées posteriores que se desenvolvem sobre bases psiquicas saud4veis ou comprometidas em diferentes niveis. Porém, independentemente da qualidade das vivéncias interativas iniciais, existe uma tendéncia para que se repitam em relagées posteriores, fazendo com que o individuo mantenha tais padrées relacionais ao longo de sua vida. Esse momento do desenvolvimento do bebé, ocasidio em que se incrementam 0s processos interativos, constitui época de transigo em que 0 apego e os com- portamentos de apego comegam a ser francamente exibidos e quando se pode observar a intersec¢io entre caracteristicas individuais e influéncia ambiental como formadoras do psiquismo e da conduta. Em etapa subseqiienie, 0 bebé € capaz de caminhar, aparecendo um outro desenvolvimento. Novas experiéncias emocionais surgem, uma vez que jé pode-se movimentar com maior independéncia, mas, ao mesmo tempo, a mie e os demais cuidadores precisam propor-lhe alguns limites fisicos. O referenciamento social ¢ 0 uso de comunicagées a uma maior distdncia fisica sfio caracteristicas desse perfodo. Nao raras vezes, 0 adulto assusta-se mais do que a pr6pria crianga frente a possibi- lidade de distanciamento independente que se cria e de exposicio a perigos. Isso & real e a necessidade de cuidado € ainda maior. Contudo, o bebé também precisa do Suporte emocional e da atengio continua de um adulto que possa promover seus movimentos exploratérios. Novas regras so instituidas no entremeio das comunica- Ges afetivas que se estabelecem e so essenciais nao somente para o reasseguramento emocional mas também para a manutengio da satide fisica do bebé. Muitos pais, exauridos com a “energia” de seus bebés nessa época, por vezes, questionam seus movimentos de independéncia e de retorno a eles, quase que instantneos, numa seqiiéncia ciclica que parece nao ter fim. As descobertas do bebé so tantas, que alguns pais confundem-se entre 0 cansaco fisico,’a sensagio de perda de controle e a satisfagdo diante da evolugio do filho que, nessa ocasidio, entre 10 e 13 meses aproximadamente, passa por mudangas répidas a cada dia. O inicio da linguagem ocorre, assim, como 0 que podemos considerar o quinto marco desenvolvimental do bebé, quando, por volta dos 18 aos 22 meses, a consciéncia reflexiva é acompanhada pela capacidade de prontincia e uso ade- quado de um niimero cada vez maior de palavras. Paralelamente, aparecem as primeiras manifestagdes de consciéncia moral e a capacidade de empatizar com sentimentos alheios, nao apenas percebendo-os mas, também, procurando ofere- cer consolo a um adulto aflito, por exemplo. Nessa época, 0 bebé consegue, ain- da, manifestar claramente suas vivéncias em relagio aos cuidados recebidos dos Pais ou de outros cuidadores. Isso aparece tanto em relacdo a outras pessoas como no brinquedo simbélico, j4 mais elaborado. A crianga passa a dramatizar e a exer- i : 52. Eizirik, Kapczinski & Bassols (orgs.) citar sua parentalidade quando brinca com bonecos, sendo capaz de demonstrar por meio deles diferentes emogdes prdprias, bem como as emogées percebidas nos demais. Os brinquedos ganham vida, e a participagao do adulto é freqiiente- mente solicitada em diversas brincadeiras. Sendo capaz de verbalizar, o bebé descobre que pode mostrar a sua vontade e que pode provocar outras reagdes nos pais, assinalando-Ihes que é um ser dife- rente deles. O “nao” eclode como definitivo nas mais variadas situagées. A atitu- * de negativista do bebé, nessa época, e suas mudangas repentinas do humor exi- gem modificagGes na organizagao do ambiente para que progressivamente se adapte 4s rotinas familiares e sua socializagio se incremente. Em geral, dependendo do temperamento da crianga e da forma como os pais lidam com tal situagiio, pode-se criar um clima de tolerancia e de limites adequados ou, ao contrario, um ambiente onde se estabelece uma verdadeira guerra de forgas. Este momento é fundamental: ao mesmo tempo em que tenta impor o seu desejo, o bebé necessita da presenca acolhedora dos pais, sem que deixem de Ihe fornecer a nogao dos limites da realidade. A coeréncia dos pais entre o que dizeme © que fazem é essencial para que essa nogio seja adquirida e permita a construgdo de outras capacidades mentais. A partir disso, a tolerfncia a frustragio, aparente- mente inexistente nessa ocasido, paulatinamente toma forma, e o exercicio para a consolidagdo dessa capacidade psiquica contribui significativamente para a sua so- cializagao. Aos 36 meses, aproximadamente, o bebé j4 possui dentro de si a base para seus relacionamentos futuros. Concomitantemente, consegue expressar-se ver-. balmente com maior clareza e pode narrar fatos que acontecem na presenga ou na auséncia da mae. Dessa forma, a narrativa, juntamente com todo o mecanismo psiquico e cognitivo que a acompanha, parece ser 0 sexto marco do desenvolvi- mento do bebé, que vale salientar, ao final de seus primeiros trés anos de vida. O contetido afetivo que acompanha a narrativa de um pequeno narrador, apresenta histérias de intensas emog6es que, reais ou fantasiadas, clamam pela atenc&io dos adultos. A capacidade simbélica da crianga, em pleno afloramento, nao dispensa © olhar parental. Os pais precisam, também agora, poder movimentar-se em dire- do A sua crianga interna, resgatando em suas propria’ vivéncias a possibilidade de brincar e de, portanto, oferecer ao filho momentos interativos que Ihe permi- tam experimentar alternativas de enfrentamento de eventos futuros. Todos esses movimentos evolutivos, conduzindo a um desenvolvimento saudavel, parecem estar ligados ao tipo de apego que se estabelece desde o inicio da relagao entre a mie e o bebé. Nao é possivel definir exatamente os motivos que levam aos diferentes tipos de apego que podem ser identificados por volta dos 18 meses. Entretanto, podem ser constatadas formas distintas de reagdes de bebés frente 4 aproximagao e ao distanciamento da mie, como pre- ditoras de formas de relacionamentos futuros com raizes’bastante precoces. Na presenga de uma pessoa estranha, diante do afastamento e do retorno da mie, algumas criancas manifestam um padrao de apego seguro, procurando-a em seu O Ciclo da Vida Humana 53 retorno e sendo facilmente confortadas por ela, mesmo tendo protestado A sua saida. A manutengio desse padrio de apego, em geral, favorece a adequacio de relacionamentos posteriores tanto na infancia como na vida adulta. Por outro lado, alguns bebés demonstram um apego inseguro que pode ser observado com diferentes manifestag6es. As criangas que ndo reclamam o afastamento da mie, evitando-a ao seu retorno e continuando a brincar como se nada de incomum. tivesse acontecido, sao identificadas como tendo um apego evitativo A figura de referéncia. O apego resistente, por sua vez, 6 manifestado pelos bebés que, quan- do a mie sai, ficam muito aflitos e, quando volta, aproximam-se-e afastam-se dela alternadamente. Tanto 0 apego evitativo como 0 apego resistente, quando persistentes, tendem a consolidar a busca de relacionamentos inseguros e inst4- veis, nos quais o individuo dificilmente alcanga um padrio satisfatorio de trocas afetivas baseadas em relagées de confianga miitua. Um quarto tipo de apego pode ser identificado entre criangas que parecem confusas e com medo diante do afastamento e da aproximagiio de suas mies. Esse padrao é chamado desor- ganizado e parece freqiiente entre criangas maltratadas, filhos de mies deprimi- das e criangas cujas mies sofreram perdas precoces de suas préprias figurasde apego. Mies que tiveram apego inseguro com suas proprias mies tendem a repetir esse padrdo com seus filhos. O prejuizo emocional dessas'criangas, ge- ralmente, é bastante evidente, sendo comum entre elas 0 desequilibrio entre as diversas éreas do desenvolvimento. | VINHETAS CLINICAS Caso 1 Roberta, 32 anos, primeira gravidez, possu‘a intimeros fatores de risco para a interag&io com seu bebé. A pobreza, 0 uso de drogas e os maus-tratos fisicos e emocionais faziam parte de sua hist6ria pregressa. A tendéncia & repetigiio dessas vivéncias em sua vida conjugal era clara. Entretanto, uma motivagao psiquica saudavel permitiu-the buscar auxilio terapéutico no ambulatério Pais-Bebé do Hospital de Clinicas de Porto Alegre (HCPA), no intuito de oferecer ao seu bebé algo diferente daquilo que tivera em sua infancia, O nascimento do bebé, que chamou de Ana, fez com que Roberta colocasse a prova a sua capacidade de ser mae. Tranqiila inicialmente, Ana s6 chorava quando tinha fome. Mesmo orienta- da a utilizar formula na mamadeira para alimentar o bebé entre as mamadas ao peito, Roberta tinha certeza de que Ana preferia o seu leite, diretamente do peito, a0 outro na mamadeira. Com poucos parimetros familiares para cuidar bem de seu bebé, Roberta procurava informar-se com o terapeuta, com amigos, com as enfermeiras do hospital onde deu a luz e com livros sobre cuidados adequados. O bebé mantinha-se visivelmente bem atendido. Olhava fixamente para © rosto da mie, que correspondia constantemente durante as mamadas, acariciando-a com 54 Eicirik, Kapezinski & Bassols (orgs.) delicadeza e tentando decodificar de forma adequada os pequenos gemidos que emitia. Aos dois meses e meio, aproximadamente, Ana ja sorria especialmente para sua mie e procurava corresponder quando Roberta conversava com ela, emi- tindo sons guturais e movimentando 0 corpo. Caso a mie falasse com outra pes- soa enquanto a alimentava, Ana interrompia a sucgiio e choramingava. Cessava imediatamente essa manifestag0 de desconforto quando Roberta se voltava no- vamente para ela, compreendendo o seu desejo de contato. . Uma das questées que chama a atenciio nesse caso recai sobre os riscos inegaveis presentes na hist6ria da mae. No entanto, mesmo diante de tantas con- digdes adversas, Roberta fica absorta por seu bebé. Seu desejo de ser uma boa mie, acionado por uma crianga que exerce um tropismo ativo em diregio a ela, parece permitir, ao menos nesse momento, o estabelecimento dos primérdios de um apego sustentado por uma comunicagio de trocas afetivas, mutuas e sadias. Caso 2 Paula, preocupada com sua pouca disposi¢o para cuidar do filho e as repercussées disso sobre o desenvolvimento do bebé, busca auxilio terapéutico no HCPA para ambos. Em uma das sess6es iniciais de acompanhamento, Gabriel, com seis meses, do colo da mie observa o ambiente. Inicia um leve sorriso para uma das pessoas sua frente e 0 apaga em seguida do rosto, virando-se para o peito da mie, que conta de sua desmotivagio para cuidar da casa ¢ da familia. Gabriel procura novamente 0 olhar do adulto que ouve e conversa com a mie, sorti e, a0 ser correspondido, olha para a mie, insistentemente, até que ela também o olhe e fale sobre sua atitude. Gabriel parece pedir-Ihe autorizagao para interagir com a outra pessoa. Repetindo esses movimentos algumas vezes, parece sentir-se mais seguro para a exploragio do que est sua volta. Entéo, sorri muito, vocaliza, balanga bracos e pernas e volta a aconchegar-se no peito da mie, apés longos momentos de trocas de olhares e “conversa” com 0 adulto que os atende. Apesar das preocupagées e manifestagdes depressivas maternas, Gabriel pare- ce, nesse momento, conseguir resgatar na mae o preenchimento de suas necessida- des de reasseguramento para que possa explorar 0 seu entorno, Mesmo sentindo-se incapacitada para ser uma boa mie, Paula consegue dar a Gabriel a oportunidade de utilizar meios préprios para mobilizar a sua atengdo, e certamente Gabriel possui importantes recursos pessoais para isso. Contudo, 0 atendimento de Paula parece fundamental para que tal processo interativo tenha continuidade. Caso 3 Nina, dois anos ¢ oito meses, desesperava-se quando um desejo seu nao era aten- dido, tentando controlar o ambiente com ordens continuas a todos os adultos sua volta. Nao conseguia brincar como uma crianga de sua idade e mantinha-se cons- tantemente muito agitada, falando e caminhando quase sem qualquer pausa. A O Ciclo da Vida Humana 55 mie nao sabia mais 0 que fazer e procurou o auxilio terapéutico no HCPA, suge- rido pela escola. Durante os atendimentos, mae e filha tiveram a oportunidade de observar e vivenciar um novo modelo de interagdo. Sentindo que nao havia qual- quer petigo quando Nina recebia um limite, ambas puderam tranqiiilizar-se, Nina p6de comegar a manter-se por algum tempo concentrada em uma atividade, pois a mie também conseguiu brincar com ela. Certamente, um longo trabalho precisard ser feito no sentido de compreen- der a dindmica familiar.e 0 papel que a agitagiio de Nina tem nesse contexto. Entretanto, a partir de resultados terapéuticos ainda incipientes, pode-se supor um potencial de reorganizagio do padrao de apego que se estabelecera precoce- mente, de maneira que Nina tenha condigdes de desenvolver relagées afetivas saudaveis posteriores a partir de novas experiéncias de interaciio com sua mie. Os trés casos clinicos, aparentemente diversos, tem em comum 0 risco que a relagio inicial fragil com a mie pode representar para o desenvolvimento do bebé. As situagGes apresentadas envolvem bebés em diferentes etapas evolutivas, cada uma delas com suas peculiaridades e necessidades especificas. Um bebé inicia a sua vida de relagio, o outro procura ampliar as suas relagées a partir da autorizacgio materna, e 0 ultimo tenta independizar-se, mas ainda precisa do respaldo da mae para conseguir isso de forma sadia. As potencialidades dos bebés para sinalizar e para interagir manifestam-se em todas as vinhetas descritas, ao mesmo tempo em que a relacao com suas mies permite 0 estabelecimento do apego entre ambos. As condutas de apego estiio permeadas por significados atribuidos por cada pai e/ou mie a cada bebé, pois essas mies, como tantas, possuem histérias de relaciona- mentos anteriores dificeis revividas com seus filhos. Entretanto, os trés bebés, em distintos momentos de seu desenvolvimento, alcangam a possivel comunicagio com seus cuidadores mantendo-os atentos as suas necessidades. Se j4 pudessem falar, estariam possivelmente dizendo “Estou aqui, nao desanime! Ajude-me a continuar crescendo”, pois é a relaciio com as pessoas mais proximas que dard ao bebé condigées para que utilize o potencial que traz consigo. Nao se pode prever o futuro desses bebés e de seus pais. Sabemos que, no primeiro caso, temos uma relagio que, mesmo sendo bastante inicial, j4 revela grande potencial,;mas que precisa ser cultivada para que tenha continuidade. Na segunda vinheta, temos uma mie sensivel, mas que sente nao conseguir utilizar toda a sua sensibilidade, e um bebé que tenta reanimé-la. Na terceira situagao, por fim, ha uma bebé que claramente expressa, a seu modo: “Algo ficou faltando, preciso preencher esse espago, mas preciso de ajuda. Podemos conseguir juntos”. O interessante é que situagdes como as que foram brevemente relatadas pas- sam diariamente pelos olhos de intimeros profissionais. Essas que foram discuti-~ das neste texto chegaram ao atendimento, buscaram os recursos da comunidade e esto sendo ajudadas. B aquelas que passam despercebidas? E nosso papel estar- mos alertas a todos os sinais, no apenas aos do bebé como parte de seu desenvol- vimento, mas a relagdo que estabelece com seus pais e, especialmente, a relagdo Instituto de Psicologia - UFRGS ———— Biblioteca ——__ 56 Eiz Kapczinski & Bassols (orgs.) que os pais estabelecem com ele. Em que momento, como e por que veio esse bebé? O que cada bebé representa para cada pai e para cada mie e o que represen- ta para cada profissional que faz contato com eles? Em situagdes diversas como essas, pode-se supor que tais padres de rela- cionamento tenham influéncia marcante sobre as relagGes interpessoais futuras. A expectativa, no momento, gira em torno da possibilidade de intervengiio pre- coce sempre que seja detectado sofrimento revelado pela interagdo da dupla bebé- cuidador principal, de maneira que se possa prevenir prejuizos psiquicos im- portantes. : - REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS AINSWORTH, M.D. Patterns of attachment: a psychological study of the strange situation, New Jersey: Erlbaun, 1978. BENEDECK, T.; ANTHONY, J. (1970) Parentalidad. Buenos Aires: ASSAPIA, AMORRURTU E., 1983. BOWLBY, J. Apego e perda. Sao Paulo: Martins Fontes, 1984. BRAZELTON, T.; CRAMER, B.G. The earliest relationship: parents, infants and the drama of early attachment. USA, Addison-Wesley Publishing Company Inc, 1989. BRONFENBRENNER, U. Ecology of the family as a context of human development: research perspective. Developmental Psychology, n.22, p.723-142, 1986. EMDE, R.N. 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Nossa escolha de dar mais atengiio As questes socio-_ econémicas e culturais deve-se ao fato de estarmos vivendo em uma época em qué 6 si Sor ontradi oa ¢ tais assuntos tém sido relativamente pouco abordados na literatura psicolégica. Sabemos que a familia e suas transformagées ocorrem:em condigées histéri- cas determinadas, que tém fundamental importancia para a compreensio profun- da dos fenémenos estudados. Este capitulo refere-se principalmente 4 classe média, mas procura também orientar quem precisa entender o que se passa com familias em outras situagdes de vida. Além das fases da familia tradicional, foram incluidos dois outros temas que, por sua relevancia na atualidade, nao poderiam deixar de tigurar: o divércia e 0 Tecasamento. A FAMILIA ATUAL Na prépria ceriménia do casamento, jé se revelam potencialmente a maioria das caracteristicas, dos conflitos e das complexidades da vida familiar ao longo do tempo. Quando dois adultos planejam seu casamento, nao so apenas individuos, | 60 Eizirik, Kapczinski & Bassols (orgs.) mas duas familias, com suas histérias, tradigdes, expectativas e rede sociais. Por exemplo, ja nos preparativos do casamento é comum surgirem impasses e busca de solugdes criativas: em familias divorciadas nas quais 0 pai se afastou, quem entrard com a noiva? Os rituais de passagem, e 0 casamento é um excelente exemplo, historicamente so utilizados para que a familia assuma e elabore suas crises de transi¢do de um para outro est4gio da vida (Imber-Black, 1998). Na atualidade, muitos desses rituais transformaram-se, principalmente a partir dos anos 60, pois eram muito rigidos e ajudavam a manter 0 status quo. Por exemplo, 0 noivado, que era uma ceriménia que dava mais liberdade aos jovens ao preco de um compromisso piiblico formal geralmente exigido pela familia, hoje ressurge de forma mais criativa e espontinea, com muitos casais montando suas préprias ceriménias tanto de noivado como de casamento. Nos pontos de transigdo da vida familiar, que coincidem com as crises de desenvolvimento do individuo (ver os outros capitulos do livro), surgem freqiiente- mente impasses e bloqueios, desencadeando sintomas emocionais ou mesmo qua- dros psiquiatricos. Nesses momentos criticos de transig4o, 0 individuo e a familia podem perder a nogdo do fluxo do tempo e passam a enxergar a situacio presente como eterna. Portanto, quando se auxilia a familia a perceber a relacio entre os sintomas dos individuos ea atual crise vital, introduzindo a nogio de transitoriedade e impermanéncia, vive-se uma experiéncia que ajuda a grande maioria a retomar 0 caminho natural do desenvolvimento. Por isso, é fundamental aos clinicos e a todos os interessados no comporta- mento humano 0 estudo do impacto do desenrolar do tempo na vida da familia e de seus membros, que denominamos 0 ciclo vital da familia (McGoldrick, 1994), Por exemplo, os acontecimentos na vida de um casal com problemas sio determinados nio sé pelos cénjuges, mas também pela concomitante doenga de um avé muito importante na constelagao familiar. Por razGes como essa, é neces- sdrio incluir pelo menos trés geragdes no estudo de casos e agora, com o aumento da longevidade, freqiientemente quatro. Hoje, portanto, é necessdrio compreender que as mudangas que se manifes- tam na vida dos individuos sao fortemente influenciadas pela histéria trigeracional e também pelo meio social, cultural e econdmico em que vive a familia. Historicamente, 0 processo de emancipagio feminista na segunda metade do século XX, por exemplo, com a luta por mais igualdade das mulheres, trouxe simultaneamente para dentro dos lares novas dificuldades matrimoniais, especial- mente na érea de distribuig&io do poder (Rampage, 1998). Mesmo com os homens ajudando mais nas lides domésticas, as mulheres continuam defrontando-se com a dupla jornada de trabalho e lutando por creches onde as criangas possam ser apropriadamente cuidadas. Ainda sao raras as sociedades que j se organizaram adequiadamente para resolver tais problemas. Observamos atualmente uma diversidade muito grande de constelagées fa- miliares: pais com seus filhos biolégicos, criangas com padrastos ¢ madrastas, avés morando junto com outras geragées, filhos adotivos, pais que nunca casaram O Ciclo da Vida Humana 61 e assim por diante. Sabe-se, por exemplo, que uma mie pode, sozinha, criar uma filha perfeitamente ajustada, mas é desejével que exista uma outra pessoa dispo- nivel, emocionalmente significativa, que, facilite a superag%io da simbiose entre ambas, que faz parte da evolugio normal da relagéo. Por tudo isso, evita-se falar atualmente em “familia normal” e presta-se atengdo especialmente as singulari- dades e recursos préprios de cada situagao, Essa diversidade deve-se, principalmente, ao fato de que, em muitos pafses, 30% dos casais separam-se ao longo da vida, sendo que nos Estados Unidos, para os que se casaram ap6s 1995. esse indice chega a 50% (Seibt, 1996). A maioria dos que se separam volta a casar, principalmente os homens, mas o percentual de = bes no segundo casamento £ oe 60%. “Nao esperava tantos problemas com os. filhos do primeiro casamento”, € o que comumente se escuta. Em uma pesquisa cle: io ‘trapassou 30% dos domicilins_eng ares havia criancas de casamentos.anteriores, Em Porto Alegre (RS), um estudo semelhante mostrou que s6 50% dos adolescentes viviam exclusivamente com ambos os pais em casa (Abreu, 1991). As pessoas estdio separando-se mais, mas continuam casando e recasando. Portanto, a familia estd ficando mais complexa, pois.o ser humano, buscando intimidade emocional e seguranga afetiva, ainda no encontrou uma melhor for- ma de conviver e de criar filhos. INFLUENCIAS HISTORICAS, CULTURAIS E ECONOMICAS ‘A familia mudou ao longo dos séculos e, mesmo hoje, encontramos realidades com- pletamente distintas, por exemplo, na China, na Arabia Saudita e na Nigéria. En- quanto, como parte da globalizaciio econémica e cultural, a classe média alta ame- ricana e a brasileira partilham diversos valores comuns, dentro de cada pais temos muitas diferencas, dependendo da geografia, da etnia, da localizagio urbana ou tural e da classe. social. A familia de classe pobre que vive em favela tem suas caracteristicas Proprias, porém também apresenta diversidade. As mies solteiras chefes de familia so co- muns, mas os moradores também constituem uma extensa rede social, consangiii- nea ou nao, que em um sistema de auto-ajuda forma uma verdadeira minicomunidade solidéria. Muitos jovens constroem cémodos e vivem nos patios da casa dos pais ou parentes, criando uma extensa rede familiar. Ocontexto socioeconédmico do agravamento da crise social nacional e mun- dial é outro parametro indispensdvel para a compreensio mais profunda do que se passa com a familia na atualidade. O desemprego, o subemprego, a corrupgio ¢ a violéncia que atingem todos os setores da sociedade, apesar de fendmenos com- plexos, jd siio vistos principalmente como reflexo da subcultura de extrema desi- ‘gualdade social. Toda a populaco, nas vilas ¢ nos bairros afluentes, convive com a ameaga & integridade fisica e também com a inseguranga econdmica, j4 que a 62__Eizirik, Kapezinski & Bassols (orgs.) instabilidade social retira qualquer fator de previsibilidade quanto ao futuro nao imediato. As chacinas de fim de semana, os pedintes em todos os sem4foros, as criangas nas ruas, os guardadores de carro em cada quadra, criam um constante e pesado clima psicolégico. Essa luta desenfreada pela sobrevivéncia tem sido equi- parada a uma disfargada mas verdadeira guerra civil. Tal realidade nao esté apenas nas Tuas, mas também instalada dentro das casas, pois hoje rara a familia que ainda nao se deparou com o desemprego ou a violéncia no seu cotidiano. Tudo isso agravado pela midia e pela intensa propaganda comercial, estimulando nas pessoas a expectativa de: que a felicidade esté sempre em um nivel de consumo acima do seu, enquanto na realidade a grande maioria precisa suportar a frustragao de que est piorando de vida ou de que mal consegue manter o que tem. Por outro lado, como fator positivo, tal clima faz com que comece a prevale- cer a compreensio sistémica de que é impossivel mudar a qualidade de vida de um setor isolado, sem de fato melhorar a do conjunto da sociedade, levando mui- tos cidadaios a participagdo em associagées profissionais, de bairro, em sindica- tos, em organizagdes naio-governamentais (ONGS) ou mesmo em partidos polit cos. Concomitantemente, no Ambito empresarial, muitas firmas comegam a reali- zar trabalhos sociais interna e externamente. Como partetambém dessas influéncias ¢ reagdes globais, as preocupacées ecolégicas comegam a fazer parte do cotidiano das pessoas, como no exemplo bem- sucedido da coleta seletiva do lixo. Amplos setores da sociedade cada vez mais se convencem da impossibilidade de uma melhor qualidade de vida para todos se no forem tomadas medidas radicais e urgentes para combater a gradativa degradacio ecolégica do planeta. Todos esses fatores complexos contribuem para o ambiente atual onde, além da presenga e da esperanga nos grandes beneficios do progresso tecnolégico, a ansiedade ¢ a incerteza j4 fazem parte intrinseca do contexto da familia, que en- contra cada vez menos Verdades prontas ¢ cada vez mais valores que em grande medida tm de ser construidos colaborativamente por todos. UNIDADE E DIVERSIDADE . Se, por um lado, precisamos ser sensiveis as singularidades de cada familia, tam- bém temos alguns dados bem-estabelecidos sobre o que é essencial para um bom. desenvolvimento psicolégico. O principal siio adultos que se responsabilizem pelas demandas bésicas dos filhos de cuidados, amor e limites, sem deixar de lado suas préprias necessidades. O relacionamento emocional deve ser consistente ¢ flexivel, conforme as etapas do ciclo vital e as peculiaridades da familia. Nos conflitos, evi- ta-se 0 autoritarismo e buscam-se solugdes negociadas. No casal que estd relacio- sando-se bem, a comunicagio é franca ¢ o poder é partilhado com ambos os cénju- ges valorizados, mesmo que exercam tarefas diferentes (Beavers, 1990). As mulheres esto conseguindo cada vez mais igualdade com os homens, mas, apesar da revolugio feminista, elas ainda ficam com o fardo principal da educagao O Ciclo da Vida Humana 63 dos filhos, dos cuidados dos idosos ¢ das lides domésticas. Os homens, por sua vez, continuam, em grande nimero, a assumir a principal responsabilidade pelo lado econémico, o que faz com que para eles o desemprego seja moralmente bem mais catastrdfico. Nas classes urbanas pobres, por ser mais facil que as mulheres consi- gam emprego como domésticas, isso até introduz um desequilibrio estrutural im- portante nas relagdes de género nessas familias (Falceto, 1994). Uma pesquisa de Dunn e colaboradores (2000) em artigo recente afirm: las, pesquisas sobre a associaco das transigdes familiares com mudangas no comporta- mento das criangas, uma li¢do geral sobressai: existe cada vez mais evidéncia para ahipotese de que muitos efeitos das transigSes familiares, pobreza, problemas sociais e outros fatores de risco para as criangas sfio provavelmente mediados pelos proces- sos mais intimos das relagdes emocionais dentro das familias, principalmente entre pais e filhos”. Enquanto todas as familias passam por situagdes de estresse como doengas, divércio, crises econémicas e acidentais, algumas delas saem relativamen- te ilesas, ao passo que outras desorganizam-se gravemente. Quando as questdes basicas de sobrevivéncia nao estao garantidas, como mostrou um estudo classico no Havaf (Walsh, 1996) que acompanhou ao longo de 20 anos a evolugio de todas as. criangas de um bairro extremamente pobre, constata-se que apenas 25% delas niio repetiram o ciclo tradicional da pobreza caracterizado por delinqliéncia, margina- lidade, gravidez precoce, alcoolismo e doenca mental. Para entender isso, tem-se utilizado o conceito de resiliéncia familiar, que é um termo emprestado da Fisica e que significa a capacidade de um material voltar ao estado inicial depois de sofrer pressdes ou deformagdes (por exemplo, uma mola tem alta resiliéncia; a argila, pouca). Parece que as familias com mais resiliéncia, que enfrentam melhor as difi- culdades da vida, conseguem manter um equilibrio dinamico entre dois grupos de caracteristicas psicolégicas complementares. O primeiro é formado por valores auto- afirmativos que incluem iniciativa, independéncia, criatividade, humor e flexibili- dade. O segundo engloba as necessidades integradoras tais como visio de mundo compartithada, cooperagao, altrufsmo ¢ espiritualidade. Além disso, os individuos que escaparam do ciclo da pobreza atribuiam sempre seu destino a uma mio amiga estendida por alguém (Walsh, 1996). Uma revisio recente (Wamboldt, 2000) das pesquisas dos iiltimos dez anos sobre familias traz evidéncias de como a organizagao e a dinamica familiar sio fundamentais para o desenvolvimento do individuo. Os estudos mostram que os cuidados parentais, incluindo aqui a disciplina doméstica, so importantes no surgimento de transtornos do comportatnento e que tratar os irmios diferentemente estd associado a transtornos de internalizagao (antes denominados neuroses). Esses estudos mostram também que atitudes criticas exageradas dentro da familia esto relacionadas ao mau prognéstico de muitas doencas fisicas e psiquidtricas na infan- cia e adolescéncia. Um outro dado importante é que, mesmo contando com recur- sos, a doenga crénica de um filho afeta a dindmica familiar, tornando o grupo menos carinhoso e comunicativo. Quando a familia nao possui amparo social, pode-se imaginar o impacto ainda mais devastador da doen¢a crénica. 64 Eizirik, Kapczinski & Bassols (orgs.) FASES DO CICLO VITAL DA FAMILIA — A estrutura e o funcionamento familiar modificam-se ao longo do ciclo vital para adequar-se 4s mudangas em seus membros e As vicissitudes da vida (McGoldrick, 1994), Existem momentos em que predominam as forgas centrfpetas, como no nasci- mento das criangas, com as familias tendendo a aglutinar-se, enquanto em outros prevalecem as centrifugas, como na adolescéncia dos filhos, quando as familias abrem- se para o exterior, facilitando entradas e safdas do sistema familiar (Combrinck- Graham, 1985). As fases da familia que mencionamos a seguir devem ser vistas como modelos (Minuchin, 1982), {4 que, na pratica, geralmente encontramos situ- agées mistas, como, por exemplo, os pais de adolescentes sendo os mesmos pais do bebé temporiio, que devem simultaneamente responder as necessidades de duas fases diferentes do desenvolvimento. O Casal sem Filhos Na classe média, os joyens esto permanecendo mais tempo na casa dos pais € casando mais tarde. Isso se deve a varios fatores. Em primeiro lugar, temos a necessidade de completar mais anos de pés-graduagio para 0 competitivo merca- do de trabalho. Depois, precisa-se ainda de tempo para conseguir um emprego que dé condigdes de manter uma independéncia econémica. Por tiltimo, as mu- dangas morais j4 nao obrigam mais os jovens a casar para comegar a manter rela- goes sexuais. Nessa fase, espera-se que as pessoas j4 tenham uma relativa separaciio emo- cional da familia de origem, até entdo o lugar onde se encontravam as pessoas mais importantes afetivamente. Isso facilitaria o processo basico pelo qual 0 cén- juge, ao longo do casamento, torna-se a pessoa emocionalmente mais significati- va. Como muitos jovens s6 conseguem comegar sua vida matrimonial com 0 apoio financeiro dos pais, o que é uma ajuda acaba também se tornando um problema, j4 que como um dos desafios principais dessa fase é a necessidade de se conseguir uma autonomia ampla da familia de origem, a continuagio da dependéncia eco- némica interfere nesse Processo (Severino, 1996). Outro aspecto fundamental dessa etapa é o aprofundamento do conhecimento miituo, com o estabelecimento de regras e rotinas para o funcionamento do casal. Muitos casais descobrem que morar juntos é bem diferente dos fins de semana e das férias que haviam partilhado. Precisam encaminhar, entre outras questdes, como, por exemple, se ha espago para amizades individuais, o manejo das finan- gas, a freqiiéncia sexual, as visitas aos sogros e a divisdo das tarefas domésticas. Se o casamento foi baseado em uma idealizagiio excessiva um do outro, as decep- des podem ser brutais, ¢ o divércio € muito provavel. E nessa fase justamente que se dé a maior proporeo de separacées em relaco A totalidade dos divércios, pois a auséncia de filhos favorece uma ruptura menos traumitica. O Ciclo da Vida Humana 65 O Casal com Filhos Pequenos \ O elemento organizador da vida familiar e seus ciclos é 0 cuidado dos filhos. A chegada do primogénito traz novas identidades: transforma o casal em familia, 0 marido em pai, a esposa em mie os pais em avés. De um lado, a celebragio familiar, do outro, as dificuldades e os medos comuns sobre como lidar com 0 bebé recém-chegado (Brazelton, 1988). As novas responsabilidades amadurecem 0 caré- ter, ea auto-estima fortalece-se com 0 orgulho muito especial da condigiio de pais. Quando a situago vai bem, o pai dé o suporte essencial para que a dupla mie- filho se fortalega (Prado, 1996). As condigdes para isso constroem-se desde a deci- sio de engravidar até 0 acompanhamento do pré-natal e do parto. O profissional dentro do sistema de satide deve incentivar a participagdo do pai em todas essas etapas, o que facilita a formagao do vinculo mie-bebé. As grandes demandas fisicas e emocionais geradas pela presenga do bebé podem desestabilizar o casal. Quando isso acontece, € nos novos papéis de pai e m&e que os problemas mal-resolvidos podem manifestar-se, repetindo os padrdes disfuncionais aprendidos na familia de origem de cada um, A mie passa por um perfodo de grande vulnerabilidade, pois precisa adaptar-se as mudangas relacionais e biolégicas em um momento em que, geralmente, também est4 investindo profissionalmente. Conciliar todas essas ne- cessidades requer muita maturidade, e s6 se constréi harmonia conjugal com muitas Tentincias pessoais, para 0 que nossa sociedade individualista nao prepara adequa- damente. Essa é uma das principais razdes do divércio precoce. A medida que 0 bebé cresce, as demandas modificam-se, mas continuam. intensas na idade pré-escolar. Todas as atividades da crianga precisam ser acom- panhadas, orientadas e supervisionadas com afeto e adequada colocagio de limi- tes. E uma etapa dé rapido desenvolvimento, com a crianga apresentando com- portamentos que freqiientemente s%io novos desafios para os pais. E dificil conciliar esses cuidados com a exigéncia de ambos trabalharem fora e, muitas vezes, terem de continuar estudando para desenvolver as respectivas car- teiras. Esse é um perfodo em que a definic&o das tarefas de mie e pai e a capacidade de colaboragiio do casal sio maximamente testadas. Quando hi problemas, é co- mum na nossa cultura que a mae queixe-se de que o pai é ausente ou autoritério, enquanto este reclama que ela é superprotetora e inconsistente na disciplina. Os Avés, nessa etapa, tornam-se especialmente importantes, pois podem auxi- liar os paisa cuidar dos netos, assumindo algumas tarefas. Para muitos aposentados, essa atividade passa a ser a mais significativa em suas vidas, j4 que tém bastante tempo livre. O perigo é que os avés infantilizem os pais, assumindo exageradamente espacos que devem ser dos mesmos, ou entio o contrdrio, sintam-se sobrecarre- gados com os netos. Um bom didlogo entre as geracdes supera esses problemas. Os pais envolvidos com 0 trabalho, com os filhos e com as lides domésticas precisam ter muito cuidado para manter 0 romance aceso no casamento e nao hipertrofiar os novos papéis. Freqtientemente, 0 inicio do desgaste do casal comega quando pai e mae esquecem-se de continuar sendo marido e mulher. O péndulo nfio 66 Eizirik, Kapczinski & Bassols (orgs.) deve também oscilar no sentido oposto, com pais tio dedicados um ao outro que deixam os filhos relativamente negligenciados. A medida que os filhos crescem, a familia gradativamente abre-se para 0 mundo externo, representado principalmente pela escola. Os cuidados de filhos em idade escolar exigem da familia grande coesio e organizacao. A escola funciona como uma verdadeira vitrina da familia, mostrarido 0 que esta indo bem e o que estd indo mal. Por isso, natural que seja a escola quem tome freqiientemente a iniciativa de encaminhar a crianga para atendimento (Fichtner, 1996). A Familia com Filhos Adolescentes ‘A adolescéncia é a fase de transigio da infancia para o mundo adulto. O adolescente reivindica os privilégios do adulto, que vém junto com as responsabilidades. Para isso, 0 adolescente necessita sentir que controla aspectos importantes da sua vida: aparéncia fisica, escolha de amigos, hordrios, dinheiro. Esses so temas tipicos de conflito com os pais, que precisam de muita flexibilidade e bom senso para responder ao adolescente. Ele os confunde, pois ora porta-se como crianga, ora como adulto. Os pais, em geral, sentem-se sem pardmetros sobre como agir. Os piores problemas ocorrem nas familias rigidas, quando oadolescente quer s6 os privilégios, e a fami- lia insiste principalmente nas responsabilidades. Apesar da tensio do conflito nor- mal das geragées, o adolescente que est bem tem bom desempenho escolar e con- vive com a familia em relativa harmonia. O adolescente que nessa fase apresenta graves sintomas j4 vem com uma longa historia de problemas psiquidtricos (Waldemar, 1983). O movimento das geragées faz com que seja freqiiente que, na adolescéncia dos filhos, o casal enfrente a crise da meia-idade, e os avés aposentados comecem a apresentar problemas de satide (Falceto, 1996). Para os pais, a crise da meia-idade 6 um momento de pausa e reflexdo em que se avaliam os rumos que a vida tomou. “Estou satisfeito na profissiio?”, “Quero continuar com o meu casamento deste jei- to?”, “Estou contribuindo para a melhoria da sociedade?” Nesse momento as pessoas sentem-se ainda suficientemente jovens para mudar, mas receiam que, se deixarem a oportunidade passar, pode ser tarde demais. Por isso, 4 um novo pico de divércio nessa etapa, daqueles casais que vinham mal e estavam deixando os filhos cresce- rem para tomar uma decisio. ‘Quando encaminha bem a situagio, o casal renova a relago conjugal com mais atividades criativas, espirituais ou de lazer, ficando emocionalmente em con- tato préximo com os avés, ajtidando-os em caso de necessidade. Isso libera os jovens para encontrar seu espaco de liberdade e experimentagao. Um dos mais instigantes desafios atuais as familias com adolescentes é a questiio da nova sexua- lidade dos jovens, que trazem seus namorados para dormir em seus quartos na casa dos pais, os quais, mesmo sendo da geracdo que iniciou a revolugao sexual, precisam junto com seus filhos criar suas proprias Tegras para responder a essa nova realidade cultural. O Ciclo da Vida Humana 67 A Saida dos Filhos de Casa e 0 “Ninho Vazio” Como resultado do prolongamento da estadia dos filhos na casa dos pais, essa fase pode comegar quando 0 casal ja esta além dos 60 anos. Mesmo assim, com a idade média da vida subindo, essa tornou-se a fase mais longa do ciclo vital da familia. A aposentadoria, além de perdas financeiras, traz comumente uma diininui- cio do prestigio pessoal. Idealmente, ela no deveria ser compulséria, mas levar em conta a satide da pessoa e a disposig&o para o trabalho, pois a maioria dos aposentados prefere-continuar com algum tipo de atividade produtiva. Nas em- presas familiares, é freqiiente que ocorra um perfodo prolongado de transicio, com a velha guarda passando com dificuldade o comando para a nova geracio. Nesse processo, problemas entre os irmaos so comuns. Essa fase tende a ser aquela em que mais “se colhe 0 que se plantou”, pois 0 tempo para novos investimentos emocionais est4 escasseando. O casal precisa reacostumar-se a viver apenas um com 0 outro, cuidar de sua satide e procurar novas formas de socializacdo. A universidade da terceira idade é uma idéia criativa, por exemplo. Muitos tém prazer em continuar ajudando os filhos, enquanto outros sentem isso como sobrecarga. Uma situagdo delicada para todos os envolvidos é a dos idosos, saudaveis ou nao, que precisam de muita ajuda financeira da familia. A FAMILIA E O DIVORCIO O ciclo vital da familia nao foi sempre igual. Ele hoje esté aumentado e tornando- se complexo por varios fatores: o aumento da longevidade, as mudangas no papel da mulher, a diminuigdo da natalidade. Existe também a aceitagio de diferentes padrdes de normalidade, as familias homossexuais, os casais que no querem filhos e as familias binucleares pés-divércio, Historicamente, a infancia como se conhece hoje foi construida ao longo do século XVII, entre outras razdes, com a criag&o da escola; a adolescéncia é um produto do século XIX, enquanto a mulher independente e valorizada surgiu ple- namente na segunda metade do século XX. . E possivel que 0 século XI presencie o surgimento de novas configuragdes familiares e sociais com 0 aumento das interconexées criadas pelos casamentos monogamicos seriais, conseqtiéncia do alto indice de divércios. Por que tantos divércios? (Waldemar, 1996) Incompatibilidades entre marido mulher sempre existiram, mas hoje as presses sociais para se continuar casado sio bem menores. As mulheres estiio mais independentes e tomando também a iniciativa do divércio. A sociedade moderna educa as pessoas para exigir 0 “maxi-. mo” da vida, nio aceitando os limites de uma relago emocional desvitalizada ou beligerante. No entanto, numa separagiio, os sentimentos de perda so muito gran- des e, quando hé filhos, é muito comum o casal viver mal por um longo tempo até que o desenlace final ocorra. No processo de divércio, so comuns os sentimentos fortes de fracasso, frustracao, raiva e desejos de vinganga. Se, por um lado, a carga 68 Eizirik, Kapczinski & Bassols (orgs.) maior fica com a mulher, que assume a principal responsabilidade com os filhos — nos Estados Unidos atualmente s6 um em cada dez pais fica com a guarda — 0 homem est4 mais predisposto depressio, especialmente se 0 seu contato com os filhos 6 pequeno. Em 10% dos casos 0 pai desaparece da vida dos filhos com 0 tempo, especialmente os que param de dar ajuda financeira. Por isso, 0 primeiro objetivo pés-separagdo é manter 0 contato estreito'dos filhos com o pai. Quando a separaciio é boa, o que ocorre em aproximadamente 25% dos casos (Ahrons, 1995), as conseqiiéncias para os filhos sio menores. Por sepafago boa en- tende-se aquela em que, principalmente, protege-se a satide mental dos filhos, com os ex-cénjuges colaborando cordialmente e deixando os filhos de fora dos muitos confli- tos do casal. Os pais separados tém cuidado cada vez mais dos filhos tanto quanto as mies. Levam-nos para suas casas, dio banho, limpam, cozinham e realizam todas as tarefas necessdrias. Muitos, se conseguissem, assumiriam a guarda deles. Essas mes- mas caracterfsticas t¢m muitos pais que nunca moraram com as mies de seus filhos, mas que sentem prazer em participar plenamente da educagio deles. ‘Nas separacées mais dificeis, principalmente nos casamentos de pessoas mui- to dependentes e regressivas, a perda do cénjuge desperta grandes temores infantis de inseguranca e desamparo. E comum, no auge do processo de divércio, que as pessoas se desequilibrem e se acusem mutuamente de ter enlouquecido, agindo de forma muito imprevisivel. Com o tempo, isso felizmente é atenuado. As reagdes da crianga ao divércio dependem da idade, do temperamento e da capacidade de lidar com a tensdo. Se havia violéncia familiar, a sensagao podet ser até de alivio. A maioria das criancas apresenta alguns sintomas nos dois pri: meiros anos apés 0 divércio, principalmente na escola. Ap6s esse tempo, existem divergéncias na literatura sobre as conseqiiéncias do divércio para os filhos. Wallerstein (2000) enfatiza os danos a longo prazo, mas outros autores discordam, assinalando a sua amostragem limitada. Seibt (1996), por exemplo, cita um estudo que mostra que apés dois anos 80% dos filhos estiio bem e que s6 20% continuam com problemas. Segundo Kelly (2000), o argumento dos pais de ficarem casados pelos filhos contradiz os estudos que mostram que as criangas que vivem em um ambiente de conflito marital crdnico sfo mais problemiticas do que aquelas cujos pais se separam relativamente bem. . ‘Durante 0 processo do divércio, observam-se minicrises previsiveis para as quais os adultos devem estar preparados (Seibt, 1996): no momento da decisio de separar-se; quando a decisio é comunicada A familia e aos amigos; quando se discutem dinheigo e visitas; quando a separaciio fisica acontece; quando 0 divércio legal é assinado; quando assuntos precisam ser renegociados, como, por exemplo, dinhei- ro e visitas e quando um dos pais comega a namorar; quando se comemoram aniversérios, formaturas e outros acontecimen- tos importantes (um dos dois casa novamente, por exemplo). ayPpeyr a . O Ciclo da Vida Humana 69 RECASAMENTO. No primeiro casamento, existe um importante perfodo inicial durante 0 qual o casal sem filhos passa por um processo intenso, miituo, de adaptagiio emocional. Isso nao. acontece no recasamento, e como cada vez mais criangas esto vivendo nessas fa- milias, a tentativa de solugio simultanea das dificuldades maritais e familiares pro- picia um envolvimento excessivo dos filhos no conflito conjugal. Essa é a principal razio de 60% dos segundos casamentos terminarem em divércio em menos de cin- co anos, : Os casais no recasamento, geralmente, reclamam que nao se sentiam prepa- rados para enfrentar tantos problemas. As seguintes recomendagdes sdo enderegadas a eles (Visher, 1982): 1. Deve-se aceitar que no recasamento as familias so diferentes da familia nuclear tradicional. Podem chamar-se binucleares, pois existe a da casa do paieadacasa da mie, cada uma com suas especificidades. No recasamento, © vinculo da crianga com o genitor antecede a formaciio do casal, e come- gam os novos relacionamentos j4 com importantes sentimentos de perda. 2. Para superar isso, deve-se estimular a comunicagio franca e direta, sen- do necessério, muitas vezes, encontros periédicos entre os membros da nova familia. 3. Padrastos e madrastas precisam participar da disciplina da casa, mas para se sentirem 4 vontade é importante que construam uma relacio afetiva positiva. Na situagio mais comum, por exemplo, o padrasto que mora com. amie e seus filhos, quando um dos enteados disser: “Vocé nio manda em. mim, pois nao é meu pai!”, pode responder: “Nao, nao sou seu pai, mas moro nesta casa e também mando aqui!”. No entanto, os problemas de disciplina mais sérios devem ficar inicialmente a cargo do genitor. Os adul- tos da casa precisam estar conscientes de que os filhos tém conflitos de lealdade em relagio a eles e no devem “esquentar a cabega” com a co- mum rejeigo inicial. 4, Onovo casal deve dar muita atencio um.ao outro, pois de outra forma nao estarao suficientemente coesos para enfrentar as muitas dificuldades iniciais. Hoje, no se recomenda pressa em morar juntos, mesmo que seja financei- ramente oneroso manter duas casas, j4 que preciso um longo perfodo de adaptagiio e duas casas facilitam esse proceso. 5. Por tiltimo, os pais, os filhos ¢ os enteados precisam compreender que no existe amor instantdneo e, como em qualquer familia, coexistem sentimentos positivos e negativos. E preciso paciéncia e muita flexibili- dade para se construir novas regras de convivéncia. Esse processo pode levar muitos anos, mas nao ha por que nao esperar das familias de re- casamentos relagGes gratificantes e filhos capazes de enfrentar os desafios da vida. 10 Eizirik, Kapczinski & Bassols (orgs.) COMENTARIOS FINAIS Conforme mencionamos na introdugiio, a familia de hoje vive em uma época de grandes paradoxos. Temos os meios tecnolégicos para acabar com a fome no mundo e nunca tantos estiveram na miséria, pois falta-nos uma nova organiza¢io social que maximize os frutos do progresso cientifico. Criamos clones de animais mas as doengas tradicionais e a AIDS dizimam populagées. Assistimos ao fim das verdades tinicas e, no tempo do chamado “pés-modernismo”, o fundamentalismo teligioso n&o para de crescer. Com o fim do “socialismo real”, intensificou-se 0 desenvolvimento da onda neoliberal em escala mundial, trazendo em alguns ca- sos mais democracia politica, mas aprofundando as diferencas sociais e econémi- cas, inclusive dentro dos préprios paises desenvolvidos. Presenciamos maiores oportunidades para as mulheres e menor intransigéncia com algumas minorias como os homossexuais, mas, simultanedmente, o crescimento do xenofobismo na Europa e também 0 racismo dos negros contra os brancos nos Estados Unidos. Tal descrigdo, sucinta é parcial, parece-nos necessdria como parte do contexto mais amplo da famflia. Se, por um lado, temos grandes apreensdes, continuam vi- vas igualmente muitas esperancas. Em relagio a essas, hd 0 dado de que as pessoas em muitos paises — veja-se, por exemplo, as manifestacGes antineoliberais — estio se organizando cada vez mais e entendendo que cidadania significa que ninguém é dispensdvel e cada um precisa assumir sua parte na luta por um futuro melhor. Nao se espera mais passivamente por mudangas-dé cima para baixo, mesmo que alguns governos comecem a introduzir modificagSes importantes: na Franga, instalou-se a semana de trabalho de 35 horas, que comeca a dar frutos no combate ao desempre- go; na China, a abertura econémica pode sero prentincio da democracia politica e, no Brasil, a experiéncia do orgamento participativo tem atraido a atengao mundial. Uma questo basica, com conseqiiéncias em muitos campos distintos, é ada atitude e preparagiio psicolégica das pessoas para lidar com a questo dos confli- tos sobre diferencas de opinides. Ainda hoje, por exemplo, os conflitos e as dife- rencas freqiientemente evocam questées atdvicas de territorialidade e podem des- pertar fortes antagonismos e criarincompatibilidades, nado poucas vezes levadas, no Ambito das nagées, ao extremo das guerras. Por isso, no campo das relagdes humanas, o principal ensinamento religioso, 0 “trata ao préximo como gostarias de ser tratado”, est4 sendo entendido como um chamamento humanista ao respei- to mUtuo, a tolerancia e 4 nio-violéncia. Queremos concluir com uma visio partilhada por muitos de que todos os processos naturais de mudanga, tanto politicos quanto associados ao ciclo vital, trazem consigo o temor do desconhecido e da desagregac’o, mas também apon- tam para novas e criativas possibilidades. Nesse sentido, nao sendo interpretadas como ameagas, as diferencas podem enriquecer-nos mutuamente, num processo de desenvolvimento dialético. O tempo urge, pois o desrespeito ainda esté em todas as partes e pode ser visto como elemento de um processo anticivilizatério. A violéncia e 0 retrocesso ocorrem quando nao ha espaco para alternativas e nao se criam oportunidades O Ciclo da Vida Humana 71 para o crescimento. Cabe a nés, portanto, olhar os processos de mudangas indivi- duais, do ciclo vital e globais com uma atitude que nos leve a construir um mundo mais harménico e equilibrado, que respeite a diversidade. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS ABREU, P, Distirbio emocional em adolescentes e sua relago coin disfungao familiar. Revista de Psiquiatria do RS, v.13, n.2, maio/ago. 1991. AHRONS, C. O bom divércio. Rio de Janeiro: Objetiva, 1995. BEAVERS, W.R.; HAMPSON, R.B. Successful families: assessment and intervention. New York: Norton & Company, 1990. BRAZELTON, T.B. O desenvolvimento do apego: uma familia em formacdo. Porto Ale- gre: Artes Médicas Sul (Artmed), 1988. COMBRINCK-GRAHAM, L. A developmental model for family systems. Family Process, v.24, n.2, p. 139-150, Jul. 1985. DUNN et al. Parents’ and partners’ life course and family experiences: links with parent- child relationships in different settings. Journal of Child Psychology and Psychiatry, 1.8, p. 955-968, 2000, FALCETO, O.G. 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Estudos demonstraram, por exemplo, um aumento extremo da atividade motora do feto indu- zido por traumatismo sibito vivido pela mie. Esses movimentos fetais sfio caracteri- zados como violentos, e na seqiiéncia os recém-nascidos mostraram-se hiperexcité- veis, apresentando uma atividade motora intensa. A vida imaginéria'da mie, durante a gravidez, representa uma base essencial das relagées posteriores que ela teré com a crianga. Essa vida imagindria esté relacionada com sua vida afetiva, suas relagdes com o pai do bebé, sua propria hist6ria e suas relagdes com suas imagens parentais. Muitas vezes, os pais imagi- nam seus filhos de acordo com seus desejos e fantasias. Em alguns casos, parece que, por diversos mecanismos inconscientes, esse filho j4 tem um destino marca- do pelos pais. Sabe-se que os bebés j4 possuem capacidades sensoriais antes do nascimen- to. A audig&io desempenha indiscutivelmente um papel essencial, pois € por meio os u 14 Eizirik, Kapezinski & Bassols (orgs.) dela que o feto se relaciona com o mundo exterior. Do ponto de vista anatémico, estd demonstrado que a audigdo é possivel a partir do quinto més de vida intra- uterina. Sabe-se que o feto escuta os ruidos de’fundo, que Ihe chegam do titero materno, os rufdos viscerais e os rufdos vasculares. O paladar é, provavelmente, o segundo canal sensorial do bebé. Ao nasci- mento, o bebé j4 apresenta uma série de preferéncias, principalmente pelo sabor doce. Tudo se passa como se a preferéncia pelo gosto doce seja geneticamente estabelecida, e quando se experimenta adogar o liquido amnidtico, constata-se que 0 feto mama e suga mais. Em relaciio ao olfato e a visio, sabe-se que 0 beb& chega ao nascimento muito bem equipado nessa drea. Desta forma, este capitulo tem como objetivo caracterizar os trés primeiros ‘anos de vida da crianga, desde os primeiros meses, com énfase nos aspectos neuropsicomotor, cognitivo, lingilfstico, emocional e social. O RECEM-NASCIDO E OS PRIMEIROS MESES DE VIDA Durante muito tempo, sustentou-se a idéia de que o bebé era passivo, desorgani- zadg e que agia essencialmente por reflexos. Acreditava-se, ainda, que, nas pri- meiras semanas de vida, o bebé nao era capaz de interagir com nenhuma informa- cdo do mundo externo. Até ent&o, pensava-se que tudo que o bebé podia fazer era 8 alimentar-se e dormir. Nos tiltimos 20 anos, a explosao da pesquisa, no que concerne Q ‘As capacidades do bebé, revolucionou os conceitos antigoss O bebé nao é mais visto como uma massa sem formas, prestes a ser modelada pelo seu ambiente, . mas sim como um ser complexo ¢ previsivel que interage’com os adultos que 0 oh ‘cercam. Ele os modela quase tanto quanto é influenciado por eles. B-um bebé Xt yativo, possuidor de uma capacidade intema de organizacio e integracio, que faz ‘dele um ser competente e que permite o contato com o ambiente cuidador. tt A partir do nascimento, o bebé necesita adaptar-se a um mundo novo, o qual deverd conhecer e compreender. A crianga traz, ao nascer, a expectativa de que tipo de mie vird ao seu encontro. A mile, por outro lado, espera um bebé cheio de vita- lidade, maior, com mais peso, cabelos secos e limpos, com olhos atentos e brilhan- tes. Imagina um bebé ideal, quase perfeito. A mae progressivamente deve adaptar- se a esse bebé real. Se a mie puder se eritregar ao seu filho, compreendendo suas necessidades fisicas e afetivas, desenvolve-se uma experiéncia de maternidade fe- liz. O mesmo ocorre com a paternidade, uma vez que no,quarto.més. de vida esta ~)- passa a ser vital para a separacdio mae-bebé, além de ser uma fonte de identificagiio. masculina. Uma paternidade e uma maternidade boas permitem que a crianga supe- re grande parte das dificuldades inerentes ao desenvolvimento. Desde muito cedo, o bebé pode perceber e comunicar-se de varias maneiras. | Ble acompanha com o olhar um objeto, desde o primeiro ou segundo dia de vida, \ sendo muito ativo na percepgio de informagdes visuaig, observandc 0 contorno | das formas que lhe so apresentadas, reconhecendo a voz de sua mie, virando a \cabeca em diregao a ela. ° pag AAA ashy ] WA owas 7 O Ciclo da Vida Humana 75 Numerosos estudos indicam que o recém-nascido tem percepgdes visuais desde o nascimento. A maioria dos bebés, durante_os quatro primeiros dias de vida, segue com os olhos um alvo visual adequado, tal como uma bola de cor viva deslocada diante de si. Parece que o recém-nascido é capaz, desde os minutos que se seguem ao nascimento, de fazer uma discriminagio entre diferentes figuras geométricas, tendo uma atencio visual maior para algumas delas. O recém-nasci- ; > do mostra uma nitida preferéncia visual pelo rosto humano. Ele age diferente- : mente quando analisa rostos vivos do que quando observa padrées inanimados. Vocaliza mais e seus padrées de movimento so mais suaves ¢ coordenados. Sabe- se que o olhar desempenha um importante papel no estabelecimento e fortalec’ mento do vinculo. A busca ou a evitagdo do olhar podem ser utilizadas para ava- liar a reciprocidade da dupla. O bebé é capaz, desde as primeiras horas depois do parto, de voltar os olhos e, As vezes, até a cabeca, em direcdo a um som..A voz.humana tem, no recém- nascido, efeitos diferentes de outros sons, mostrando que, no decurso da segunda semana de vida, a voz (da mae, de uma outra mulher, de um homem) é suscetivel de provocar sorrisos, mais freqiientemente do que outros estimulos sonoros. Evidencia- se, também, uma sintonia entre a.voz da mie e os movimentos observados no bebé. Parece que as capacidades de detecgio e discriminagio olfativa de um re- cém-nascido de quatro dias sdio quase idénticas as do adulto. Ele pode discriminar e mesmo buscar o odor do seio de sua mie, diferente de outra mae. O recém- nascido, no plano gustativo, sente os quatro sabores primérios (doce, salgado, Acido, amargo), manifestando desdéo set hascimento uma preferéncia por sabo- res agucarados, como jé foi descrito previamente. >, Seren QR a> OE Chet Embora o recém-nascido realmente possua a canes lidar com a estimulagdo proporcionada pelo mundo externo e possa tornar-se profundamente engajado e relacionado aos estimulos sociais, sua tolerancia € limitada. Durante 4 08 primeiros dois meses de vida, o bebé esté em um estado de alerta silencioso apenas por curtos perfodos de tempo. ‘As capacidades motoras do recém-nascido sio igualmente surpreendentes: ~» A motricidade mais conhecida é do tipo reflexo. Algumas dessas reagdes reflexas jf) intérvém diretamenté na interagao-pais-lactante. Assim é 0 reflexo de suotip, = WO desencadeado pelo estimulo da lingua. No reflexo dos pontos cardeais; oestifi cutaneo da regidio perioral provoca um movimento de orientacao em direciio ao estimulo. O reflexo de fechamento da mao é desencadeado pela estimulagao da palma, que produz uma flexdo dos dedos, com a mio do bebé fechando-se sobre 0 dedo do examinador. Os movimentos do recém-nascido sio geralmente de as- pecto incoerente, afetando 0 conjunto do corpo, sem coordenagio aparente. Por volta dos.dais meses de idade, as transformagées biocomportamentais afe- tando a natureza e a qualidade das relagdes sociais comecam a se desenvolver. Qs_ ciclos de sono e atividade estabilizam-se, os padrdes motores estiio mais maduros, ¢ (05 padres de visio mais expandidos permitem novas estratégias de interagai Tanto as capacidades motoras.como as. capacidades perceptivas sio depen- dentes dos estados de vigilia em que se encontra o recém-nascido. Diferentemen- ee = ws 16 Eiirik, Kapczinski & Bassols (orgs.) Videroe niente me. te do adulto, o recém-nascido nao dispée, ainda, de um ritmo alternado de vigilia- sono. Os estados de vigilancia sucedem-se rapidamente no correr das horas. Seis estados foram distinguidos e caracterizados: ol memo uGhwiaemoditned 3 pe one War he — Estado 1 (sono calmg): corresponde ao sono sem movimento ocular ré- ee € regular, nZjo se observando nenhum movi- mento corporal, exceto, ds vezes, alguns movimentos finos ¢ bruscos dos dedos, dos labios e das palpebras. — Estado 2 (sono REM); é um estado de sono com movimentos oculares rdpidos, perceptiveis pelas pélpebras, em que a respiragdo € irregular e mais répida, e de tempos em tempos se observam movimentos corporais, principalmente faciais. Estado 3 (sonoléneia): corresponde & sonoléncia, quando as pélpebras estdo fechadas ou semi-abertas, neste tiltimo caso com o olhar vago, nao fixado. — Estado 4 (alerta quieto): € caracterizado pelo olhar vivo e brilhante do bebé, traduzindo sua ‘atengdo acompanhada de uma suspensio da mo- tricidade; é umestado em que o recém-nascido estd calmo e atento ao seu ambiente. Estado 5 (alerta ativo): € um estado de alerta com grande atividade motora, no qual o bebé se agita e sua atengo nao esté fixada; ele pode, As vezes, gemer ou esbogar gritos. . — Estado 6 (chop); é caractérizado por gritos e choros, quando a atividade motora é intensa e o rosto estd contraido e vermelho. SS eg RETA HER CIT Osepisédios.de.estado.calmo e atento produzem-se durante os 30 a 60 minu- tos seguintes ao parto, mas diminuem, em seguida, geralmente na duragio e fre- qléncia, durante as 48 horas seguintes enquanto 0 bebé se “recupera”. A seguir, esses episddios aumentam, constituindo 8 a 16% do tempo de observagio total de um bebé durante o primeiro més pés-natal. O conhecimento desses estados é impor- tante, porque eles influenciam consideravelmente a qualidade e a natureza da interagdo dos pais com seu recém-nascido, Existem importantes diferengas entre um bebé e outro. Certos recém-nascidos so capazes de manter, durante varios mi- nutos, um estado calmo e atento, o que facilita a interagiio pais-bebé. Outros bebés, inversamente, tém- problemas de regulagio de seus estados de igilancia, o que dificulta uma interago tranqiiila para os pais. Mas, de maneira recfproca, a mie influencia profundamente a regulaciio dos estados de vigilancia do bebé. Uma mie Particularmente paciente e sensivel aos menores sinais enviados por seu recém- nascido, poderd progressivamente levar o bebé a um estado calmo e atento, por exemplo, falando-Ihe de uma maneira muito meiga durante um perfodo de sonolén- cia. Os estados de vigilincia do recém-nascid6 sao, assim, no somente realidades neurofisiol6gicas, mas também verdadeiras “mensagens” para os pais. Os recém-nascidos apresentam diferengas interindividuais em vérias caracte- 5 risticas do seu comportamento: ari idade, isto é, a facilidade-com que os es- Urn ale 785 wos lodasbe. Ia poy diGi- figun & — = 5 . Cal low (nregca Vers: BAe Kuga per WRAatnne RVR MLE SA ie eb, ' urges QO Rren\ ” CA ndK UIEOAS Be camper torment’ (vy NeiA es Acaht a cas oir ih sad wuotova, Ph codec Sages, YE IE OCiclo da Vida Humana 71 AOR HOSE OAS 37 CERO FRSA WOK tresses mais ou menos minimos, end6génos ou exdgenos, desencadeiam um episé: dio de choro; a consolabilidade, ou seja, a facilidade com a qual o bebé poderd ser ; acalmado por uma outra pessoa, a capacidade do bebé de.encontrar em si mesmo os meios para se acalmar; a intensidade da atividade motora e a atividade de suc¢io durante a mamada, entre outras Garacteristicas. Essas diferengas Comportamentais sid “agrapadas sob 0 conceito de temperamento.¢ podem ser classificadas como ~ niveis.de_atividade, responsividade, humor ¢ adaptabilidade. O temperamento do bebé parece ser biologicamente determinado-e é relativamente estavel durante os anos pré-escolares, podendo influenciar 0 desenvolvimento da crianga. Kagan e colaboradores (1988) descreveram um tipo de temperamento, que foi denominado de comportamento inibido, caracterizado pela presenga de irritabilidade em bebés, timidez e medos excessivos na crianga pré-escolar, e introversio, dificuldade e cons- trangimento ao enfrentar novas situacdes na crianga em idade escolar. O comporta- mento inibido caracterizado por componentes comportamentais, como 0 retrai- mento social ¢ a timidez, e componentes fisiolégicos, como o aumento dos niveis de cortisol salivar, dos niveis de catecolaminas urindrias, da freqiiéncia cardfaca e da dilatagdo pupilar. Estudos tém demonstrado que a presenca desse comportamen- to inibido esta associada a altas taxas de desenvolvimento de transtornos de ansie- dade na infancia, sendo que essas taxas aumentam com a idade. E essencial para o clinico estar familiarizado com a nogio das diferengas individuais, porque isso per- mite reconhecer o “perfil” particular do recém-nascido, identificar e, dentro do pos- sivel, mediante intervengdes precoces psevenir 0 desenvolvimento de formas mais graves de perturbagdes patoldgicas. Q interay «> ye cache cereus) ‘Também é importante que haja um contato de pele erfire mite e bebe, desde os, primeiros momentos, pois isso prepara o recém-nascido para um bom desenvolvi: mento ¢ 0 ajuda a elaborar a perda da experiéncia de estar no titero da mae. Alguns ‘ autores sustentam que os primeiros dias, talvez as primeiras horas depois do nasci- mento, representam um perfodo sensivel, em que a mie estd particularmente apta $ para constituir um elo de ligagdio como bebé. O aleitamento ao peito, principalmen- C5) te, oucom mamadeira, constitui uma das modalidades essenciais da interagdo mie-c. recém-nascido. 5 importante destacar que o bebé ndo é passivo nessa situagiio; ele’ intervém nao somente pela sucgo do mamilo; mas também porque se acomoda’ ; com movimentos ativos contra 0 corpo da mie. Quando o bebé tem entre dois e trés meses de idade, podem-se observar distingdes graduais entre suas expresses de’ prazer e desprazer, com experiéncias prazerosas centradas na suc¢io. Segundo Spitz (1965), o desenvolvimento nio ocorre de forma linear, mas em: “5 degraus. S40 0s organizadores psiquicos, conforme sua designago, que representam, os sinais indicadores de que o bebé atingiu um determinado grau de organizagio® __ interna. O primeiro é 0 gorrso social entre os dois e trés meses, no qual ja hé uma’ intencionalidade dirigida, Tgadwa0s afetos. A crianga sorri e provoca sorriso naj ©. f outro. O segundo organizador surge entre os sete e oito meses e & caracterizadee pela presenga de ansiedade diante de estranhos,.decorrente de uma angiistia liga; r da A auséncia da mie. O bebé parece canteloso e atento na presenca de.estranhos. Nessa fase, o bebé brinca de esconde-esconde e antecipa eventos pelo desenval- § & 3 eres a Ore _ (&, 2 9 26 Boga igs = den seg 8 = ey Ss § } i ae 78 Kizirik, Kapczinski & Bassols (orgs.) ; viento da capacidade de ir organizando na meméria os fatos e as pessoas do | ambiente, O terceiro organizador est representado pela aquisiciio da negacdo, do Sno!",-que ocorre entre os [1 ¢ os 13 meses. Essa é a fase da deambulacdos do aumento da autonomia. Os pais dizem mais “nos”, e a crianga repete com gestos de cabeca e com o dedo indicador, imitando a mie. Inicia-se entdo a simbolizaciio, a Tinguagem. @"erynefog> RED Rewr QobesheQ Entre o terceiro e 0 quarto més produzem-se mudangas fundamentais na men- te eno corpo do bebé, que jé conhece a mie, a ama e a rechaga, assim como se sente amado e rechagado por ela. Pode tocd-la e comecar a brincar com seu corpo. O objeto de seu amor e seu ddio é a mesma pessoa e, por meio dessa revelagao de totalidade, inicia um processo de desprendimento que 0 conduziré a busca do pai do mundo circundante. Ao redor dos quatro comega sua atividade hidica. eb comega a ser capaz de controlar seus movimentos, coordenar 0 movimento’ com os olhos e jd pode tocar nos objetos com as mis. Brinca com seu corpo e com 0s objetos, desaparece atrds do lengol e volta a aparecer, quando entiio o mundo se oculta momentaneamente para em seguida ser recuperado quando seus olhos se liberam do objeto atrds do qual estava escondido. Abre e fecha seus olhos, tem 0 mundo e o perde. Essas constituem as primeiras experiéncias de separagdo. . _O_bebé produz sons ¢ é capaz de repeti-los, as escuta ¢ sua express%io muda. E sua primeira tentativa de expresso verbal. O primeiro brinquedo que se da ao bebé é 0 chocalho, sendo esse um objeto universal e de uso antigiifssimo. Tam- bém com ele o som aparece e desaparece. O bebé descobre que, a0 golpear um objeto, iambém pode produzir sons que lhe interessam, assim como 0 sobressal- tam. O chocalho serve para repetir experiéncias de morder, chupar, explorar e reproduzir experiéncias que trangiiilizam. E algo fora do seu‘corpo que simboliza sua mie e que ele maneja com sua mio. Quando 0 bebé joga seus brinquedos no chao, espera e exige que lhes devol- vam. Esse jogo € necessdrio para que a crianca experimente que pode perder e recuperar 0 que ama. Com quatro a seis meses, o bebé é capaz de sentar, e muda sua relagiio com of os objetos que o cercam. Pode aposerarseo que necessita, levar A boca confor- me sua vontade. Nessa fase, tenta de diversas maneiras elaborar a ansiedade de separacao. Por meio das brincadeiras, experimenta.e.clabora que os objetos po- dem aparecer e desaparecer. Reclama cofii urgéncia incontrolavel'a presenga dos Seus-verdadeirOs Objetos: ais; Chora e enche-se de raiva se nao é atendido, se nao o compreendem. A mie é algo mais do que alguém que Ihe sacia a fome. B uma voz, um contato, um sorriso, e o bebé precisa saber que ela nao desapareceré, que pode té-la e contar com ela. O temor de separagio é a angiistia mais intensa dessa idade, e toda sua vida emocional est marcada por ela. Comega 0 doloroso processo de abandonar a relagdo tinica com a mie e aceitar de forma definitiva a presenca do pai. Nesse periodo, ele sofre verdadeiras depressées. Suas tendéncias _destuutivas incrementam-se quando aparecem os dentes,-instrumento que pode usar para morder e rasgar. Com o surgimento dos dentes, o,desprendimento, até agora fruto dafantasia, converte-se em realidade. i Pd oe ope Co am > OQ pos eee HE MDOP E OME reaches os RLLeroeolg a. = =—SOesSsSsSssh ak Lhe, wovdicsa Con tolo comm objeksk nose Bernie ene melon eorese MOV 8 COG 'Ciclo'da Vidil Phamana’ 79 ROVER EMER MAG WS Barer WENO bE Alongs : SinK® Winnicott (1971) considera o processo de desenvolvimento como um cami- nho que vai da ilusio 4 desilusiio, de uma ilusdo de onipoténcia que uma mie “suficientemente boa” permite que seu bebé viva plenamente, adaptando-se as suas necessidades, mas levando progressivamente A percepcio da realidade e, finalmente, 4 descoberta do objeto materno e da dependéncia a seu respeito. A perda’do vinculo Gnico com a mie e a necessidade de um terceiro fazem ‘com que o pai esteja presente. Enecessdrio que o pai encontre uma forma de comu- nicagiio com o bebé, respondendo as necessidades deste. Além de participar dos cuidados, banhar, alimentar, brincar, sair com o filho, é importante que o pai reforce sua unidio com a mie, oferecendo-se como uma fonte de identificagao. E de fundamental importancia para essa etapa as relages que o bebé tem com seus cuidadores e os vinculos estabelecidos com ele. Essas nogées so discu- idas no Capitulo’3 (O bebé e os pais). 3k = Accrianca de uma trés anos tem o dom de viver o momento e de maravilhar-se com © cotidiano. Ela é ousada e se aventura constantemente, mas ainda permanece o bebé que gosta de dar e receber afeiciio. Est se desenvolvendo para se tornar um individuo distinto com maneiras préprias de agir e expressar. Mas nem tudo é feli- >) cidade na vida-dessa crianga. Ela é caprichosa, imprevisivel e 0 seu comportamento pode ser dificil de compreender e complexo'de manejar, O segundo eo terceiro. anos de vida sao caracterizados pela aceleracdo do desenvolvimento motor e inte- lectual. E'uma fase critica para estabelecimento da confianga basica no “eu” e de > ums um senso de iniciativa. A crianga estd no processo de estabelecer fronteiras entre ela propria-e sua-mie,-Contudo, nesse processo de separacio mdividuagao, 4 CHaICE ada vez mais reconhece que os pais sio pessoas separadas dela e essa ‘vulnerabilidade” desencadeia, ent&o, uma certa ansiedade. "Os pafigos, COMO Séitipre, esto dos dois lados. Actianga ainda ndo pode realmente sef responsdvel por sié est4 longe de ser independente. De fato, a ousadia das-criangas nessa fase depende de terem por perio 6 abrigo dos bragos ¢ do colo dos pais, para onde podem correr quando vio além.do que podem fazer. Uma mie que julga as atividades'de seu filho como muito provocadoras de ansiedade pode exagerar nos limites ¢ cercar excessivamente a crianga com portas, grades e uma barreira de “ndos” que sufocam a iniciativa e a autoconfianga. Os pais que tém pouca confianga em suas capacidades para orientar e controlar seus filhos tendem a projetar tais sentimentos e aumentar a incapacidade da crianga em tomar conta de si mesma. Para Erikson (1963), o periodo da locomogio é 0 estdgio da autonomia x vergonha e diivida. Durante 0 segundo ¢ 0 terceiro anos de vida, a crianga adquire autonomia. Seu desafio consiste em tornar-se um ser separado e individual. Ela aprende a comer sozinha, a controlar o esfincter anal e a falar. 80 Eizirik, Kapczinski & Bassols (orgs.) Esse perfodo de vida corresponde, segundo a teoria psicanalitica, & fase anal do desenvolvimento psicossexual, em que 0 investimento da libido da crianga passa *) da zona oral para a regio anal. Com a aquisigao progressiva do dominio de seus esfincteres, durante-o segundo ao, a crianga descobre noyas fontes de prazer, como oda evacuacio, provocado pela excitacfio-da mucosa anal, que se duplica rapida- mente em prazer de retengfo. Esse novo prazer nao se deve somente ao aumento da excitaco obtida pela retengaio das fezes, mas, sobretudo, pelo controle que a crian- ¢a pode ento passar a exercer sobre os produtos saidos do seu corpo; produtos | pelos quais demonstra grande interesse, considerando-os como seu bem, tendo o \ valor simbélico de presente, aceito ou recusado pela mie. Dar ou reter, submissio I ou obstinagao e comportamentos correlatos tornam-se importantes ¢ influenciam a formagio do caréter. A fase anal é assim marcada por uma dupla oposic&io, um duplo conflito: por um lado, a qposi¢io passividade-atividade e, por outro, a oposi- ‘Gio submissiio-dominaciio, em que se encontram os pdlos passivos ¢ ativos, porém marca mais especificamente a relacio com 0 objeto. Essa relacio é, de fato, essen- cialmente conflituosa e ambivalente (coexisténcia de amor e de agressividade) em relagdo ao objeto materno. I _—— Embora uma passagem suave por esse perfodo nao seja impossivel, é impro- vavel. A situagdo do desenvolvimento da crianga nesse estégio, quase inevitavel- menté, cria dificuldades tanto para ela quanto para os pais. A extensdo e a nature- za dos problemas variam de acordo com a crianga, com a sensibilidade dos pais e com as préticas de criagio que usaram. Embora os problemas mais usuais envol- vain as dificuldades em controlar as expectativas de autocontrole de alguma for- ma de comportamento (treinamento intestinal, alimentagao ou iniciativa fisica) e as explosies reativas de temperamento da crianga, as ansiedades merios aparentes i arespeito da separagiio da pessoa materna também trazem complicagées. Os acontecimentos mais marcantes dessa fase estiio centrados no desenvol- vimento neuropsicomotor, no desenvolvimento cognitivo e lingiiistico e no de- senvolvimento emocional e social. DESENVOLVIMENTO NEUROPSICOMOTOR ‘ A caracteristica basica do perfodo entre um e trés anos de idade que a crianga aprende a gaminhar sem ajuda. A capacidade de caminhar que se desenvolve e se consolida entre os 1 Ses0mees éum passo fundamental tanto para os pais quané to para a crianga, que mantinha-uma posigao de extrema dependéncia no primeiro ano de vida. Essa nova autonomia revoluciona o conceito que a crianga tem de si mesma. Sua tarefa principal no campo afetivo é integrar a emogo-de explorar 0 mundo sem a ajuda de seus pais, com a sensagio de protegdo e seguranga que leriva da presenca deles. A tarefa dos pais €proteger a crianga com muito tato dos novos ¢ inesperados riscos que implicam sua locomogio, até que V4 aprendendo a se proteger de si mesma. . O Ciclo da Vida Humana 81 A grande atividade motora da crianga nessa idade acentua a necessidade de que Ihe oferecam uma boa quantidade de materiais adicionais para seus jogos e » brincadeiras, como baro, aril area secae gua Acrianga percebe esses mate- ~ (siaigcomo fascinantes, visto que proporcionam ricas experiéncias sensoriais, pos- sibilitam a exploracéio e podem ser manipulados com facilidade. Cabe ressaltar que se verificam diferencas entre as criangas de dois e de trés anos em termos psicomotores. Enquanto a crianca de dois anos manipula cubos, examina-os ¢ even- tualmente os pée na boca, a crianga de trés anos jé é capaz de empilhé-los e utiliza- ‘0s como carga para seus carrinhos. O mesmo pode ser exemplificado para o uso do triciclo: aos dois anos, a crianga empurra 0 triciclo e, aos trés, j4 o pedala. Outro fator muito importante e fonte de intiimeros conflitos que coincide com. uma maior maturago neuromuscular, nessa fase, é o processo do treinamento do > controle esfincteriano, Sao trés as exigéncias para o treinamento esfincterians. Pri- if, a crianga deve Ser capaz, fisiologicamente, de controlar seu esfincter anal ¢ uretral. A idade em que é adquirido esse controle difere entre as criangas. O contro- le vesical é conseguido antes do controle anal, que pode ser alcangado entre os 15 os 30 meses. Freqiientemente, ele coincide com a maturagio de sua competéncia para caminhar. Segundo, a crianca deve ser psicologicamente capaz de adiar a von- tade de urinar ou evacuar logo que sente o impulso. Por assim dizer, a crianga deve ter alguma capacidade de reconhecer ¢ adiar, bem como um desejo de agradar os pais. Terceiro, j4 que, no inicio, a crianca precisa de um auxilio para usar 0 banhei- To, deve-se fazé-la sentir que € preciso dar um sinal de aviso a um adulto preparado para ajudd-la. Majs tarde, naturalmente, a crianga sera capaz de ir ao banheiro por si mesma. Em geral, tudo o que um pai deve fazer é esperar até que a crianca esteja pronta, e entio estimul4-la, dando-Ihe 0 apoio necessario. Nessa fase, os conflitos entre pais e filhos tornam-se mais manifestos. O treinamento esfincteriano impée exigéncias paradoxais A crianca perplexa, que, as vezes, tem de ceder a fim de agradar e, outras vezes, tem de reter, também para agradar. Sao exigidos a continéncia e o controle exatamente quando os conflitos acerca de autocontrole esto ocorrendo. A luta sobre quem deve mandar, os pais ou acrianga, pode chegar a um impasse nesse campo de batalha. Pode-se levar a crianga até o banheiro, mas niio se pode fazé-la evacuar. Por outro lado, a crianga cujo relacionamento com os pais é satisfatério, em geral, tem fortes desejos de agradé-los, de se adaptar as suas expectativas ¢ corresponder ao prazer demons- jtrado por eles em relagdo ao progresso do treinamento. Algumas vezes, porém, a ferianga identificar-se-d com os pais em suas préprias formagGes reativas, tal como “na repugn4ncia pelas fezes. Na eadeegio h4 razio pela qual o treinamento do controle esfincteriano deva ser tentado dftes dos 24 meses. Muitos pais descobrem que, se puderem ser pacientes e nao se sentirem impelidos pela “propaganda” de vizinhos de que seus filhos foram perfeitamente treinados antes dos 18 meses, no fim, a crianga deseja- r4usar a privada como os demais membros da familia ou conforme a sugestio dos pais. A crianga treinada dessa maneira pode jamais ficar sabendo que ter ou no 82 Eizirik, Kapczinski & Bassols (orgs.) os movimentos intestinais pode dar origem a uma questdo importante ou até mes- mo que exista alguma coisa como a constipacio. Também é claro que, quando a crianga é treinada para o controle esfincteriano antes dos 18 meses, muitas vezes, hd recrudescéncia de se sujar mais tarde. Quando o treinamento é executado de maneira tranqiiila e ndo-compulsiva, a crianga passa a sentir que pode tomar conta por si mesma dessas necessidades essenciais, Ela adquire um senso de confianga em si prépria e em seu comporta- mento corporal. Os pais que nao confiam nas capacidades de seu filho para cuidar de si mesmo propendent a nao confiar nas fungdes corporais do filho para funcio- nar adequadamente sem auxilio, e os que se perturbam pela desordem que a crianga cria na casa tendem a se angustiar quando ela se suja, procurndo fazer o treinamen- to intestinal desde cedo. Os problemas que surgem da restrig&o paternal inicia- tiva da crianga e, como paradigma, do treinamento esfincteriano e da rentincia do erotismo anal transcendem essa fase do desenvolvimento e influenciam a forma- gio do carater. Varios grupamentos de tragos relacionados aos problemas que siio da mdxima importancia durante esse estgio critico do inicio da socializagio fo- ram designados como caracterfsticas anais. Por exemplo, j4 se notou repetida- mente que pessoas que sio constipadas também podem ser obstinadas, demons- trando hostilidade encoberta, afastando-se dos outros de um modo silencioso e determinado. Nao é infreqiiente que também haja varios graus de avareza, mes- quinhez a respeito de detalhes, meticulosidade e pedantismo. DESENVOLVIMENTO COGNITIVO E LINGUISTICO A aprendizagem da linguagem é uma tarefa crucial nesse perfodo. As vocalizagoes tornam-se distintas, e o bebé passa a ter capacidade de nomear alguns objetos e comunicar suas necessidades em uma ou duas palavras. Aos dois anos, a crianga j4 fala em torno de 200 palavras e, proximo ao final do segundo e no inicio do terceiro ano, ocasionalmente, usa frases curtas. Aos trés anos, a maioria das criangas fala razoavelmente bem. Ela pode falar usando sentengas, embora nem sempre empregue de modo correto os tempos verbais e freqiientemente omita os conectivos. Nao obstante, dentro dos limites do seu vocabulario e experiéncia, uma crianga de trés anos, em geral, é capaz de contar uma histéria simples. Ela pode também comunicar-se claramente utilizando a linguagem verbal. Normalmente, hd uma correlagao entre o desenvolvimento lingiiistico e o desenvolvimento psicomotor. Esses se alteram, de modo que o progresso em uma atividade implica a diminuigao temporaria da outra, Muitas vezes, o dominio da linguagem pode perturbar o sis- tema de comunicagio entre a crianga e a familia, especialmente a mae que esta- belecia com a crianga uma linguagem pré-verbal, isto 6, mais gestual e pela pos- tura corporal. Tendo adquirido a linguagem falada, a crianga experimenta um contato mais amplocom as pessoas de seu universo, ou seja, estende a comunicagiio amais pessoas da familia e chega mesmo a contaminé-la com seus “neologismos”. O Ciclo da Vida Humana 83 Piaget (1969) afirma que a linguagem leva & socializaciio das ages, ou seja, a linguagem conduz a crianca a passagem do pensamento individual para 0 vasto sistema do pensamento coletivo, uma vez que se constitui em um vefculo de con- ceitos e de nogdes que pertencem a todos. Nessa fase, a crianga esté adquirindo maior iniciativa e luta para fazer cada vez mais coisas por si prdpria, torna-se muito dependente da mie ou de alguma outra pessoa com quem esteja bastante familiarizada para compreensio verbal. ) Para que 0 bebé ganhe a facilidade de lineuagem essencial ao desenvolvimento da boa inteligéncia, éle precisa de alguém que esteja completamente familiariza- do com seu comportamento e que possa interpretar suas necessidades, gestos e uso das palavras primitivas com razoavel precisio. Esse trabalho é necessdrio para a construgio de sua linguagem. A coeréncia da interagdo de quem ensina para com a crianga é extremamente importante, assim como a capacidade que este tem para adequar o ensino as capacidades dela. Ha mais coisas envolvidas do que a rapidez e a fluéncia do desenvolvimento lingiiistico, uma vez que a crianga precisa desenvolver uma confianga nessa comunicaciio verbal e, dessa forma, no alor da racionalidade. a O desenvolvimento da linguagem depende muito dos pais, particularmente da mie, que pode compreender a comunicagiio nao-verbal do filho e que com ele \Ginterage téo constantemente. Todavia, nem todas as mies entendem intuitivamen- te e nem todas sao pacientes ou interessadas, sendo que algumas podem criar seus filhos em relativo siléncio. Parece que a escassez de intercambio afeta o desen- volvimento da linguagem e também o desenvolvimento intelectual das criangas. ‘A dependéncia que a crianga tem de sua mie para o entendimento verbal é gran- de, porque nenhuma outra pessoa tem a probabilidade de ser capaz de comunicar- se tao afetivamente com o bebé. O pensamento da crianga, nesse periodo, 6 egocéntrico, ¢ os efeitos desse egocentrismo fazem-se sentir no desenho das coisas no espaco. Nao h4 perspectiva, acrianga desenha o objeto em si, nado levando em conta o Angulo sob o qual est4 o observador. Ela representa as figuras no apenas como as vé, mas como as sente, isto é, como pensa que elas siio. As noges de “esquerda” e “direita” nao sio com- preendidas antes dos cinco anos. O egocentrismo'de pensamento reflete-se, dessa forma, na nogio de temporalidade, manifestando dificuldade de representar as duragdes ou os espacos de tempo que fogem da sua experiéncia direta. A crianga €egocéntrica enquanto considera seu proprio ponto de vista como 0 tnico possivel, nao percebendo que as outras pessoas tém um ponto de vista e, por essa razio, € incapaz de colocar-se no lugar de alguém. Nesse estagio, o pensamento da crian- ca também é marcado pela irreversibilidade, ou seja, ela é incapaz de compreen- der que certos fenémenos so reversiveis, podendo, portanto, uma vez feitos, se- rem desfeitos. Por volta dos dois anos, a crianga desenvolve um senso de identidade de género, ou seja, de ser “menino” ou “menina”, embora a identidade sexual nao seja adquiri- da até a adolescéncia. 84° Eizivik, Kapezinski & Bassols (orgs.) B nessa fase também que ela adquire um senso de individualidade e autono- mia. Torna-se consciente de suas préprias qualidades, estados e capacidades. A crianga indica essa autoconsciéncia pela descrigdo de seu préprio comportamento enquanto 0 esta executando, reconhecendo a si prépria no espelho e afirmando a sua posse de objetos. Ao mesmo tempo em que se reconhece no espelho, a crianga também incorpora em seu discurso palavras corho “eu” e “meu” e usa seu proprio nome para referir-se a si mesma. O surgimento da autoconsciéncia é acompanha- do por uma melhora na capacidade de apreciar as percepgées e os séntimentos dos outros. Também é evidenciada nessa época uma preocupagao com seu corpo, que passa também a ser reconhecido como algo proprio. Ela desenvolve também, por volta de um ano, a capacidade de tratar um objeto como se fosse algo diferente daquilo que ele é: ela agora é capaz de simbolismo. Evidéncias importantes para o desenvolvimento do simbolismo podem ser vistas em brincadeiras com objetos. Durante o segundo ano, a crianga manipula objetos de forma a reproduzir atos que foram observados em adultos. A crianga comega a substituir a si prépria por um brinquedo como o agente ativo na brincadeira e, as vezes, finge que é outra pessoa. Os desenhos infantis também se tornam simbélicos durante o segundo e 0 terceiro anos. A crianga se torna capaz de ver modelos como representagdes do mundo real. A medida que passa a brincar com objetos de forma simbélica, suas reagdes a outras criangas também podem mudar. Por volta dos 18 meses, ela se torna inibida diante de outras criangas, mas aos dois anos essa reagiio comega a desaparecer, e a crianga de trés anos jé consegue engajar-se em brincadei- ras reciprocas e usa outras criangas como modelos. A imitagdo é uma duplicagio seletiva de um modelo de comportamento. Ela comega por volta de oito meses e torna-se cada vez mais freqiiente e complexa. A imitagao tardia aparece antes do primeito ano de vida e é comum durante 0 segun- do ano. A crianga, muitas vezes, imita comportamentos, mas menos freqiientemente imita expressdes emocionais. E mais provavel que a crianga imite seus pais do que qualquer outra pessoa. A imitagdo é um fendmeno universal do amadureci- mento; ¢ aos dois anos a crianga usa a imitacdo para se sentir préxima de seus pais. Refletir-se e imitar sio processos que auxiliam o desenvolvimento psicolé- gicoe do self. A imitagao tem a capacidade de fazer com que a crianga internalize processos de identificagao. A crianga pode engajar-se em imitac&o para promover - interag6es sociais e para realgar a semelhanca com outra pessoa. A imitacdo pode ser uma tentativa autoconsciente de obter prazer, poder, propriedade ou outras metas desejadas. Nesse periodo, é cada vez mais provavel que a crianga fique interessada em explorar violagdes de regras adultas e eventos que provocam a desaprovaciio dos outros. comum ver uma crianga de dois anos explorar todas as variagdes possi- veis de comportamentos aceitdveis na presenca dos pais ou dos irmios. A crianga demonstra afligio quando é incapaz. de atingir padrdes impostos por outras pessoas, mas mostra. prazer quando atinge padrdes que estabeleceu para si propria. Eo comego de seu senso moral de certo ou errado. O Ciclo da Vida Humana 85 A medida que as capacidades lingitisticas e cognitivas da crianca melhoram e Ihe permitem comunicar-se mais satisfatoriamente com outras pessoas que nao os membros da familia e compreender a garantias parentais, bem como reter relacionamentos com pais ausentes, tanto sua ansiedade de separagdo como a insisténcia de suas exigéncias diminuem. DESENVOLVIMENTOS EMOCIONAL E SOCIAL O ganho mais importante para a crianga dessa idade é conciliar o impulso de ser competente e auto-suficiente com a intensa necessidade ‘de ser querida e protegida por seus pais, Observa-se isso quando a criangaaprende a camithat, aN dbs pais para explorar o ambiente ao seu redor, mas volta de imediato ao seu encontro para compartilhar seus descobrimentos e “‘recarregar as baterias” afetivas. Se os pais respondem s experiéncias da crianca com uma atitude compreensiva e estimu- ante, isso gera a autoconfianga necessdria para buscar horizontes mais amplos. A premissa basica da teoria vincular é que a crianga s6 poderd ser auténoma e competente se puder confiar em um adulto que a faga sentir-se segura e protegida. A partir desse sentimento basico de seguranga, ela pode tentar fazer coisas novas e aprender como funciona o mundo que a rodeia. Nesse perfodo, a crianca est se afastando da uniio simbidtica com a mie, ao mesmo tempo em que fica perto dela para que suas necessidades sejam atendidas. Para Margareth Mahler (1975), a crianca atinge paulatinamente a fase da “constancia do objeto”, na qual é capaz de manter a representacao mental da mie, por exemplo, mesmo estando longe dela. Esse fato justifica, mais uma vez, que a idade de trés anos, aproximadamente, seja adequada para o ingresso da crianga na escola maternal, j4 que nesse periodo a mie pode ser substituida sem grandes prejufzos.para 0 processo “‘separagio-individuagio”. Se- gundo essa autora, 0 processo envolve tanto a separacdo quanto a individuagao. A separaco diz respeito ao desengajamento e & diferenciago da mae. O bebé gradu- almente forma uma representa¢io do self intrapsiquico distinto e separado da repre- sentagiio de sua mie; isso no implica um distanciamento fisico e espacial dos pais ou uma dissolugao do relacionamento interpessoal, mas o desenvolvimento de um sentido intrapsfquico de ser capaz de funcionar independentemente da mie. A indi- viduagao refere-se as tentativas do bebé de formar uma identidade individual tnica para assumir suas préprias caracteristicas individuais. Ela acarreta o desenvolvi- mento de uma representagio interior da mie, uma nogiio do tempo, uma capacidade de testar a realidade e uma consciéncia de que os outros tém uma existéncia separa- daem relacio a da crianga. Mahler descreveu o processo de separagio-individuagio como tendo inicio no quarto ou quinto més e se estendendo até os 36 meses ou mais. Esse processo compreende quatro subfases observaveis e sobrepostas: diferencia- Gao, treinamento, reaproximagio e o caminho da constancia do objeto, que conduz acrianga a capacidade de viver relativamente s6 em um mundo interior e exterior unificado, onde ela se reconhece nfo somente separada dos outros, mas cada vez 86 Eizirik, Kapczinski & Bassols (orgs.) mais bem-definida em suas caracterfsticas sexuais préprias. Quando a crianga volta sua atencfio para o mundo exterior, inicia-se a etapa de diferenciagio, que é 0 ponto inicial para 0 processo de separaciio-individuago. Com a locomogio, a crianga comega a mover-se para longe da mii, o que caracteriza o periodo de treinamento. Com aproximadamente 18 a 36 meses, ocorre a reaproximagao, e a crianga conse- gue separar-se e alcangar sua individualidade definitiva e conquistar a constancia objetal. Com a conclusio dessa fase, a crianga aprende que os objetos nao deixam de existir porque foram tetirados do seu campo de visdo. Essa concepeao parece ser vital para o desenvolvimento do ego e da constdncia objetal emocional. Mahler nota a dificuldade de situar 0 momento em que a crianca consolida a constancia objetal, isto é, uma representago bem-diferenciada, permanente, mas também relativamen- te estavel da mie. Durante essa evolucao, intervém 0 que Winnicott (1971) descreveu sob onome de “fenémenos transicionais e objetos transicionais”. Segundo esse autor, ao final do primeiro ano, a maioria das criangas adquiriu um objeto transicional, muitas vezes, constituido por um pedago de pano, travesseiro ou cobertor, ao qual fica muito ligada e ao qual recorre quando precisa de algum consolo, como na hora de ir dormir ou em momentos de separagio. O objeto transicional parece representar um meio passo entre 0 apego consigo mesma e 0 apego com o mundo externo. Algumas criangas so timidas e retraidas por natureza e necessitam permane- cer mais tempo perto dos seus pais, antes de estarem preparadas para enfrentar 0 mundo de forma mais independente. Outras tm um comportamento mais ativo ¢ se sentem estimuladas por todo tipo de novidade. E importante qué as necessidades os desejos individuais dos pais ¢ dos filhos sejam equilibrados de forma que se encontre um balango satisfatério. Os pais nfo se encontram A disposigdo de seus filhos de maneira incondicional, embora, quando a crianca comece a caminhar, exi- ja atencdo imediata e constante. Mas, 4 medida que ela adquire maior autocontrole, geralmente entre os 18 e 24 meses, os pais sentem-se menos pressionados na aten- gio do seu filho e esperam que a crianga possa adequar-se aos planos paternos. Nesse momento, comegam a intensificar-se muitas das pressGes de sociabi- lizagiio da crianga. A medida que vai crescendo, exige-se que aprenda muitas coisas novas em um periodo relativamente curto. Supde-se que tenha de deixar de lado os prazeres de ser bebé e trocé-los por prazeres mais duvidosos, de crescer. E freqtiente que a crianca sinta que aprender a controlar os esfincteres, abandonar a mamadeira e adequar-se 4s normas domésticas tenha muito mais de problematico do que de prazeroso. Ela responde a essas exigéncias, negando-se a dar certos passos antes de estar preparada. Sem diivida, essas formas de protesto tm um custo emocional. A crianga tem medo de perder o amor de seus pais se nao faz 0 que eles pedem. Esse temor se expressa pelos problemas comuns dessa idade, tais como ansiedade de separagao, transtornos do sono e temores inexplicaveis. Ao responder as necessidades da crianga que j4 aprendeu a caminhar, a fun- Gio dos pais como protetores sofre uma transformacio. Eles tém que ensinar 0 seu filho por meio do didlogo a encontrar solugdes que lever em conta as necessida- des de ambas as partes. Essa nova relagio conduz a sentimentos de seguranga O Ciclo da Vida Humana 87 mais complexos, baseados na capacidade da crianga de resolver seus conflitos. Esse novo tipo de vinculo com os pais constitui o melhor aliado da crianga no momento de dor e frustragdo, porque a protege do desespero e do colapso-emocio- nal. A crianga aprende que pode viver momentos de dificuldade e superd-los. E por meio do vinculo afetivo entre os pais e a crianga, esta vai internalizando a fungiio de apoio daqueles, fazendo com que leve dentro de si mesma a protegio dos seus pais aonde quer que va. O vinculo afetivo entre pais e filhos nao é sempre harmonioso, jé que, muitas vezes, € dificil solucionar os desacordos de forma satisfat6ria para ambas as partes. Esse conflito de interesses expressa-se com inusitada intensidade no periodo que vai dos 12 meses aos trés anos de idade e s6 voltard a instalar-se com a mesma forga na adolescéncia. Gritos, atitudes desafiantes, agressiio fisica e mau-humor so partes habituais da vida familiar quando ha criangas dessa idade. O possivel e desejavel é cultivar uma relacdo de camaradagem, estar disposto a escutar, reconhecer que pais e filhos podem ter objetivos diferentes, procurando conciliar as diferengas, e quan- do nao for possivel, aceitar o desacordo. Mesmo conservando uma atitude compre- ensiva, o adulto precisa sentir-se bastante seguro para ficar com a tltima palavra, ja que a crianga tentar por todos os meios alcangar seus objetivos. A firmeza dos pais da a crianga a seguranga de que os adultos a quem ama sabem 0 que esto fazendo e que ela pode confiar que fardio o que é correto e adequado para ela. Cada aspecto do desenvolvimento da crianga é influenciado pela presenga ou auséncia de uma base segura ¢ pelo vinculo de camaradagem que se estabelece entre ela e seus pais. A crianga procura manter-se segura, ficando perto de sua mie, e quando se distancia desta, procura fazer contato visual com ela, a fim de averiguar se est fazendo uma exploragdo segura do ambiente. E essencial que os pais estejam prontos para agir, j4 que a seguranca da crianga depende da capacidade do adulto de prevenir qualquer risco. Os acidentes so a principal causa de morte na primei- ra infancia. Ha situagdes em que o adulto ter de prover a protegio necessaria de forma autoritaria porém sem violéncia fisica, apesar dos protestos da crianca. COMENTARIOS FINAIS. : Juntamente com as constantes tarefas evolutivas da crianga, hd tarefas sempre crescentes para os pais. Durante os primeiros meses de vida, as principais tarefas dos pais consistem em reconhecer, comunicar-se ¢ atender as necessidades do bebé de um modo consistente e sensivel, sem anteciparem e satisfazerem a todas. Desse modo, tenta-se evitar que a crianga experimente uma tensao extrema, j4 que um certo grau de tensio e ansiedade pode ser desejavel. A tarefa parental no estégio de locomogao exige firmeza acerca dos limites do comportamento aceitavel e encorajamento da emancipacao progressiva da crianca. Os pais devem ter cuidado para nao serem demasiadamente autoritarios, permitindo que a crianca opere por si mesma e seja capaz de aprender a partir de seus erros. Devem, ainda, ajudar e proteger seus filhos, quando os desafios esto além de suas Instituto de Psicologia - UFRGS Biblioteca 88 Bizirik, Kapczinski & Bassols (orgs.) capacidades. O controle esfincteriano, a locomogao, o desenvolvimento da linguagem ea capacidade de simbolizar estio entre as principais caracteristicas dessa fase. Talvez o ponto crucial desse periodo seja'constituido pelo passo da crianga rumo maior separagio, independéncia e autonomia, em um momento em que é passivel de ser exigente, intromissiva e negativista. O quanto a crianga emerge com éxito desse estigio depende de muitos fatores; dentre os quais, por um lado, o estado de preparago da crianga para as tarefas especificas j4 anteriormente mencionadas e, por outro, o grau em que os pais favorecem ou sustam 0 progresso dos seus filhos. ] As formas de relacionamento dos pais com os filhos e suas atitudes basicas a respeito de sua criag&o estendem-se ao longo dos anos, nao se limitando a uma * Gnica fase do desenvolvimento. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS ABERASTURY, A. El nifio y sus juegos. Buenos Aires: Editorial Atlantida, 1977 BRAZELTON, T. O bebé: parceiro na interaco. In: A dindmica do bebé. Porto Alegre: Artes Médicas Sul (Artmed), 1987. p. 9-12. ENDERLE, C. O perfodo pré-escolar. In: ENDERLE, C. Psicologia do desenvolvimento: 0 processo evolutivo da crianca. Porto Alegre: Artes Médicas Sul (Artmed), 1985. p. 51-63. ERIKSON, E.H. Childhood and society. New York: Norton, 1963. KAGAN, J.; REZNICK, J.S.; SNIDMAN, N. 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Rio de Janeiro: Imago, 1975. 6 F-S an A Crianga Pré-Escolar Ana Margareth Siqueira Bassols, Ana Liicia Dieder, Michele Dorneles Valenti O presente capitulo tem o objetivo de introduzir o leitor ao mundo fascinante da imaginagiio da crianga na idade pré-escolar, momento em que o desabrochar das miltiplas e complexas aquisigdes das fases anteriores torna a crianga muito rica em expressar sua personalidade, cada vez mais peculiar, tinica. ASPECTOS GERAIS A crianga em idade pré-escolar est4 em uma faixa etdria que vai dos trés aos seis anos de idade. Os aspectos mais marcantes do desenvolvimento entio observados so as mudangas fisicas, com crescimento e amadurecimento neurolégico e aqui- sigdo de habilidades, principalmente em relagdo & linguagem e socializacao, tor- nando-a mais independente e com maior capacidade de exploracio. No inicio do perfodo, a crianga jé é capaz de expressar sentimentos complexos como amor, infelicidade, citime e inveja, nos niveis nao-verbal e verbal, mas esses sentimentos esto muito relacionados a eventos somaticos, como cansago e fome, sendo ainda muito autocentrados. Preocupa-se intensamente em ter aprovagio e aceitagdo das pessoas queridas de quem depende, principalmente os pais ou seus substitutos. We EAL da SPMOWOIAS Ao final desse perfodo, a crianga deve estar pronta para ingressar na escola, uma vez que j4 domina as tarefas primérias de socializaciio, como controlar os esfincteres, vestir-se e alimentar-se sozinha, e até mesmo suas l4grimas e ataques de raiva, pelo menos na maipria das vezes. As emogdes tornam-se mais estaveis, sendo rade Controle p Weta dates GO0%" pea! 92 Bizirik, Kapczinski & Bassols (org desenvolvida a empatia, chamando a atengio o surgimentg de sentimentos de ver- gonha e humilhacio. Nessa faixa etéria, a crianga comega a ter consciéncia da genitélia e das di liferencas entre Os sexos, 0 que vai incrementar suas fantasias sexuais, que pode- rio ser dramatizadas nas brincadeiras de médico e enfermeira. Ela apresenta uma ansiedade perturbadora quanto a ferimentos corporais e doengas,.sendo essa fase também chamada de band-aid, uma vez que cada pequeno ferimento deve ser “muito bem tratado” pela mae ou pelo pai. Como ainda nao tem uma nogio mais realista do interior de seu corpo, reage a pequenos ferimentos como se fosse “es- vair-se” por aquele orificio, que deve ser cuidadosamente ocluido. A crianga de quatro anos é extremamente curiosa,.costuma perguntar tudo .sobre tudo, brinca com as palavras, pergunta sobre 0 seu significado, questions persistentemente, elabora longas respostas para perguntas simples, aprova alguns comportamentos e critica outros, comenta seus desenhos, caractérizando o “desa- brochar” da linguagem. Por volta dos cinco ou seis.anos, a crianga consegue_movimentar-se com cor —fianga em todas as direges..Ela ja pode lavar suas mfios e seu rosto e escovar.os etes, ;, Sobe escadas colocando um pé em cada degrau, anda em umtriciclee utiliza as mios para pequenos movimentos e ages, 0 que inclui.o pegar.objetos ou segitra- los e utilizagdo de pequenos utens‘lios como lépis ou tesouras. Ei importante salientar que a utilizagfio das capacidades motoras e a sua estimulag’o_estio relacionadas com a atitude dos pais, favorecendo que a crianga confie.em suas habilidades. Pais_ muito ansiosos, perfeccionistas ou exigentes poderdo interferir negativamente na crianga, que poderd reagir com inibigdo ou temores exagerados. A crianga dessa idade também possui a coordenagio visomotora para chutar e tebater bolas, por exemplo. E capaz de brincar cooperativa e construtivamente com outras criangas e gosta de construir estruturas com blocos. Essa crianga ja usa a linguagem eficientemente, sendo que jd adquiriu um senso de padrio social e limitagGes apropriadas relativamente ao seu uso. MOTRICIDADE . ‘Conhecer as capacidades motoras e os pequenos desvios da normalidade possibi- lita a detecgio precoce de distirbios neurolégicos, permitindo a prevencio de alteragdes mais graves e duradouras. O desenvolvimento motor é um processo continuo e pode ser categorizado como 0 desenvolvimento da locomogao, da pos- tura e da preensio, processando-se sempre no sentido céfalo-caudal e proximal- distal, do genérico para 0 especifico. Pelo fato de ser comum a criangas de todas as culturas e processar-se dentro de estreitas faixas etdrias, supde-se que sofra uma forte influéncia genética. A velocidade do desenvolvimento, contudo, varia em um mesmo individuo, podendo ser diminuida em fungio da falta de estimulo, mas nao acelerada significativamente pelo estimulo excessivo. Além disso, pau- sas tempordrias podem ocorrer em determinadas fungdes, como, por exemplo, a O Ciclo da Vida Humana 93 fala, O refinamento das capacidades motoras depende, em grande parte, do de- senvolvimento dos misculos e dos tratos neurais que os controlam, mas também de capacidades sensoriais e de percepgao. Na fase pré-escolar, o tempo de reagdo — perfodo entre a percepgiio do esti- mulo sensorial e a execugdo de uma resposta motora — melhora substancialmente mesmo para os movimentos mais simples. A crianca aprimora sua motricidade também pelo brinquedo, que envolve interagao fisica e social. Outros fatores atu- antes sao a inteligéncia inata (em geral, quanto maior a inteligéncia, mais rfpido 0 desenvolvimento), os:padrées familiares (atraso na aquisicao da fala, controle tardio dos esfincteres), o ambiente (falta de estimulagio adequada) e as condig6es fisicas (hipotonia ou surdez). : A habilidade crescente de agir sobre o mundo tem conseqiiéncias psicolégi- cas cruciais. A crianca ganha a experiéncia e os recursos cognitivos de que neces- sita para melhorar seu teste de realidade, da mesma forma que passa a crer nas capacidades verbais como uma maneira de solucionar problemas e colaborar com os outros. Ao conhecer as relag6es de espaco, distancia e altura em seu ambiente e ao elaborar cada vez mais a coordenagio e o equilibrio, a crianga dé um passo essencial no sentido de tornar-se um ser aut6nomo e auto-suficiente. CORTES TRANSVERSAIS No terceiro ano, a crianga mostra uma propensio para compreender seu ambiente e j4 nao é mais um simples bebé. Prefere estar com outras criancas, é generosa e mais independente dos pais. Quanto ao equilibrio estatico e dinamico, é capaz de subir escadas alternando os pés e permanecer em posicao ortostatica (em pé) com ‘os pésjuntos por 30 segundos, Realiza duas ou mais atividades ao mesmc tempo: chuta a bola enquanto corre, toma sorvete subindo escadas, come e fala ao telefo- ne. A coordenagio motora reflete-se na capacidade de construir uma torre com 10 cubos, copiar tragos verticais, horizontais e cruzes, além de segurar o lapis A ma- neira dos adultos. Quanto as habilidades sociais, espera-se que a-crianga esteja ‘totalmente treinada-para.o-banheito,-que-cot da a nogio de revezamento, brinque com outras criangas, lave e seque as maos. use hens colher¢ Coloque os Nessa idade, a crianga manifesta interesse por instrumentos musicais sim= ‘ples, como o tambor e a gaita, torna-se apta a distinguir notas, sons e instrumentos musicais diferentes (timbre). ; Aos quatro anos, a crianga est4 sempre disposta a mais uma brincadeira. Indica preferéncias por roupas e cortes de cabelo. Anda na ponta dos pés, alterna os pés para descer escadas e pode permanecer em posiciio ortosttica com os pés juntos € os olhos fechados (teste de Romberg). Instala-se a persisténcia motora, ou seja, a crianga pode manter a boca aberta por 40 segundos ou os olhos fecha- dos por 20 segundos. Fica em um pé, salta em um pé s6, desenha pessoas com duas partes e acrescenta trés partes a um homem incompleto. Dando seqiténcia 4 socializagio, mostra-se bastante independente nas rotinas da vida doméstica, co- 1 Lm 94 Eizirik, Kapczinski & Bassols (orgs.) opera com outras criangas, percorre sozinha pequenas-disténcias em sua casa, realiza pequenas missGes, lava e seca 0 rosto. A partir dos quatro anos, esta apta para o aprendizado de um novo idioma, capacidade que diminui apés os 12 anos. Acredita-se que quem estuda um novo idioma nessa fase tem quatro vezes mais chance de aprender do que um adulto ~Aos cinco anos, o controle motor esté bem-amadureride Accrianga fala sema articulagao infantil e sente orgulho de suas realizacSes, principalmente quando va- lorizadas pelos pais. E capaz de usar a tesoura, jd pode estar andand6 de bicicleta e gosta de brincadeiras com velocidade ¢ desafios, preferindo jogos associativos. Per- manece ém posi¢ao ortostatica, com um pé na frente do outro por 10 segundos. Anda alternando os pés e pula em um pé s6. Abre uma das mios, fechando a outra ao mesmo tempo, e toca o polegar com todos os outros dedos da mesma mio. A. persisténcia motora se intensifica. Acrescenta oito partes a um homem incompleto, copia quadrado e triingulo, conta 10 objetos e escreve o primeiro nome. A meméria se desenvolve ainda mais. Quanto as habilidades sociais, j4 tem aquelas necessérias para a pratica de esportes e para freqiientar a pré-escola. Além disso, faz. 0 lago no sapato, pode ser estimulada a fazer pequenas tarefas domésticas (lavar e enxugar a louga), tentando imitar e agradar os adultos de quem busca aprovaciio. Veste-se sozinha, pode contar uma longa hist6ria, nomeia e conhece todas as cores, brinca de vestir-se com roupas de adulto. Aos seis anos, instala-se a nogdo de direita e esquerda.-A crianga tem equil brid-suficiente para andar para tras. Quanto coordenagiio motora, alterna movi- mentos de mio e pé direitos com os esquerdos. A coordenagiio entre tronco e membros é passivel de avaliacdo: pode passar do dectibito dorsal para a posi¢o sentada sem a ajuda dos membros. DESENVOLVIMENTO COGNITIVO O pré-escolar encontra-se em um estégio de cognig&o denominado por Piaget como pré-operacional. Agora, a crianca utiliza plenamente a capacidade simbélica, dis- tinguindo a imagem daquilo que ela significa. Esse é um periodo de transigao entre uma inteligéncia sem linguagem e sem conceitos (periodo’sensério-motor) ea inte- > ligéncia representativa (operagGes concretas e formais). * A crianga ainda nao segue-um raciocfnio légico ¢ nao é capaz de compreen- der conceitos abstratos (no entende que seu pai nfo quer brincar porque est4 cansado, se ela propria nao esta). Nao aceita a idéia do acaso e tudo deve ter uma explicagio — € a fase dos “porqués”. Por exemplo, a filha de trés anos perguntou para i ‘a mie: “(Como Tazemos 0 suco de uva?”. A mae respondeu que era $6 mistu- rar égua e agiicar ao lquido da garrafinha, ao que ela perguntou: “Mas, mamie, de onde vem a uva que vem dentro da garrafinha?” Os conceitos sio guiados apenas pela percepcio, ¢ a atengao ndo en dois objetos de uma s6 vez: 6 a = incay dimensdes ao mesmo tempo: altura e comprimento, quantidade e dis} Naensoes.ao mesmo tempo: a é O Ciclo da Vida Humana 95 tram-se para a crianga duas bolinhas de massa iguais e d4-se a uma delas a forma de salsicha. A crianga nega que a quantidade de massa continue igual, pois as formas sio diferentes). O-pensamento pré-operacional é estético: a crianga capta estados momenténeos sem junté-los em um todo. Assim, os eventos nao so relacionados pela crianga por outro motivo que a concomitancia espacial ou temporal. Um exemplo disso é quando a crianga acha que o balango da drvore é que faz. ventar. Devido & irreversibilidade, a crianga parege incapaz. de compr = nos reversiveis, como, por exemplo, a 4gua que se transforma ém gelo e, ao ser aquecida, volta & forma original. Essa imaturidade também impede a compreensio do conceito de morte como um fenémeno irreversivel. Além disso, a nogiio de tem- poesté relacionada com_as atividades diérias, nio havendo a compreensio de hora ou minuto. O,egocentrismo é também um importante aspecto dessa fase. Isso nao signi- fica que a crianga seja egoista, mas que tende a estabelecer conexdes causais envolvendo a sua pessoa; tal propensio exerce um impacto psicoldgico, pois uma vez que a crianga se considera agente causal de todas as coisas, pode culpar-se por conflitos familisres on por outros eventos completamente fora do on al canoe ‘ambém, em funciio disso, ela nao € capaz de estabelecer fronteiras entre os seus pensamentos e os pensamentos alheios (pede A mie que alcance o brinquedo, assumindo que ela sabe qual é 0 escolhido entre diizias de brinquedos). O animismo, por sua vez, consis am exer que todas.2s.coisas sho vivas, sem entendér 0s procéssos naturais, atribuindo-lhes causas fantasticas, geralmente com participagdo humana (a crianga vé que o dia est nublado e pede ao pai que traga 0 sol de volta). Para-a crianga, tudo na natureza se compara com ela: as nuvens “‘cho- ram”, os pssaros voam “porque gostam” ¢ o sol tem “rosto”. Tudo isso se expressa no desenho e est relacionado a onipoténcia do pensamento da crianga nessa época. Ao final do periodo, no chamado subestagio de descentralizacio, principal- mente em resposta 4 Convivéncia‘com outras criangas, o pré-escolar aprende que a linguagem eficaz ¢-imprescindivel para o trato social e que seus conceitos nio so, necessariamente, comuns a todas as pessoas. LINGUAGEM Enquanto a comunicagio nas outras espécies envolve um ntimero reduzido de mensagens inatas que o animal pode emitir e reconhecer, os humanos produzém e compreendem um mimero infinito de frases, muitas delas, nunca ouvidas daquela exata maneira. Algumas evidéncias so contrérias 4 teoria de uma capacidade puramente inata para.a comunicagdo: nao.existe.uma lingua comum a todos os seres humanos e,.a despeito da linguagem falada por seus pais,.a.crianca sé falar centenderd aquela a que for exposta. Contudo, o fato de criangas muito pequenas, com desenvolvimento neuroldgico ainda incompleto, aprenderem a falar comvum minimo de dificuldade aponta para uma forte participago dos mecanismos bio- l6gicos. 96 Eizirik, Kapczinski & Bassols (orgs.) Todas as criangas_seguem.a mesma seqiiéncia_de desenvolvimento: da articulagao dos. fonemas para-o significado de-palavras e locugées, progredindo para as-categorias de palavras, como verbo_e.sentenga, e, por fim, para 0 uso social da linguagem. Em primeiro lugar, aparecem os substantivos, depois.os ver- bos, 0s adjetivos e os advérbios. O uso dos pronomes surge ao redor dos dois anos, quando a crianga refere-se a si propria como'“eu”. O emprego das conjun-_ 6es inicia ao redor de dois anos e meio. Entre os dois e quatro anos, a crianca" adquiriu ou aprendeu a maioria das regras fundamentais da gramitica. Sic come- tidos erros caracteristicos durante esse periodo, j4 que a crianga tenta generalizar regras. De modo andlogo, erros na articulagao sio tipicos durante o perfodo pré- escolar, ainda dentro da normalidade, mas nao devem ser estimulados. Pode ocor- rer que algumas familias estimulem a crianga a falar errado, infantilizando-a. Deve- se orientar que os adultos falem corretamente com ela,, pois assim estaraio favore- cendo um desenvolvimento mais adequado. Fisiologia da Linguagem Ao ser ouvida uma palavra, o estimulo é recebido pela drea auditiva primaria do cértex e transferido para a rea de Wernicke. Para que uma palavra seja pronunciada, © padrio € transmitido da area de Wernicke para a drea de Broca, onde a forma articular é despertada e transferida para a drea motora que controla os movimentos da fala. Supde-se que as dreas primarias da linguagem do cérebro humano estejam localizadas no hemisfério esquerdo, porque apenas raramente as lesdes do hemisfé- rio direito causam perturbacées de linguagem. Antes dos quatro anos, a lesio do hemisfério esquerdo pode resultar em afasia passageira. No entanto, o desenvolvi- mento da linguagem prosseguira no caso de o hemisfério direito estar intacto. As teorias da aquisicao da linguagem sao miiltiplas e antigas. Provavelmen- te, os quatro modelos principais sao todos elementos de uma explicagiio multifa- torial, isto €, em que miltiplos fatores se complementam. A teoria etoldgica postula a existéncia de mecanismos inatos que permitem. Acrianca a compreensio da estrutura gramatical e a formulagao de regras segundo as quais se pode gerar um ntimero infinito de frases: Uma evidéncia disso ocorre com 0s erros cometidos pela crianca ao flexionar, por exemplo, verbos irregulares na forma regular (‘“fazido” ao invés de feito, “eu cabo” ao invés de eu caibo). Jao modelo cognitivo explica a aquisicao da linguagem pela apreensio do significado das palavras e de sua funcio. Isso comecaria a ocorrer na transiciio do estagio sensério-motor para o pré-operacional, passando pela compreensio inata de con- ceitos como agente, paciente e ago. Uma evidéncia a favor dessa hipétese é a utilizago de palavras como “desapareceu”, “sumiu” ou “acabou” somente apés a aquisigio do conceito de permanéncia do objeto. No modelo ambiental/comportamental, é 0 ambiente que influencia a aqui- sigdo da linguagem por meio dos reforgos positivos e negativos dos pais. A lin- guagem simplificada e clara utilizada pela mie ao se dirigir A crianca pequena é diferente daquela utilizada com um interlocutor mais capaz. Acredita-se que a ' O Ciclo da Vida Humana 97 fala do pai, por sua vez, sirva como uma ponte entre o discurso claro da mie e 0 discurso confuso e impreciso do mundo exterior, na percepgdo da crianga. Os pais constantemente fornecem.estimulos a crianga ao ler livros infantis, brincar de nomear coisas ¢ cantar cangdes com gestos, além de fazer constantes corregdes € repetigdes. Por fim, o modelo funcionalista aborda a pragmitica, isto é, a necessi- dade de se comunicar estimulando a apreensio da linguagem falada. Para falar, é necessdrio que a crianca compreenda 0 que esta sendo dito. O discurso humano é uma torrente continua de sons, na qual o ouvinte deve reco- nhecer pausas, mudangas de entona¢io e flexdes, além de decompé-la em fonemas, silabas, palavras e frases. Isso inicia durante o perfodo pré-verbal e se refina ao longo dos anos, paralelamente a articulacio dos fonemas. No inicio do perfodo pré-escolar, admitem-se certas dislalias de troca, pois alguns sons como /r/ sur- gem mais tarde do que outros. A partir dos cinco anos, espera-se que a fala seja semelhante a do adulto. As primeiras tarefas semAnticas consistem em distinguir diferentes classes de palavras (coisas como “mamie” e “chapéu” e agdes como “falar” e “comer”) & expandir o vocabulério, a fim de compor uma classificago mais elaborada dos objetos (a palavra “gato” passa a denominar apenas os gatos, quando antes englo- bava tigres, ledes, gatos e bichos de peliicia). Todo esse processo sé encontra interligado A formulagio de conceitos pela crianga e, portanto, ao seu desenvolvi- mento cognitivo. Alguns erros préprios desse perfodo permitem inferir a existén- cia de regras adotadas pela crianca para comunicar-se: a generalizacéio (nomear varias coisas com a mesma palavra) ¢ a formaciio de neologismos (inventar uma palavra quando se desconhece 0 nome verdadeiro do objeto). Esses mecanismos diminuem & medida que a crianga aumenta o vocabulério, assim como diminui a utilizagio de gestos para substituir as palavras. Com o desenvolvimento dos con- ceitos, espera-se que, a partir dos quatro anos, a crianga passe a aceitar dois nomes para um mesmo objeto, contanto que representem n{veis diferentes de classifica- Gao (“ciio” e “spaniel”, mas niio “spaniel” e “poodle”). O pré-escolar tem a capacidade de aprender 0 significado de novas palavras por meio de uma exposigao tao curta como ao assistir a televisdo ou ao ouvir uma mitisica. Alguns estudos demonstram uma aquisico muito répida de palavras uti- lizadas por personagens de desenho animado. Sabe-se também que a aprendiza- gem é mais facil quando se processa dentro de “esquemas” conhecidos da crianca (0 jantar, uma ida ao supermercado, um passeio no parque). Uma vez feito 0 contato com a palavra nova dentro desse esquema, a crianga torna-se capaz de “descontextualiza-la” e emprega-la em novas situacées. A comunicago verbal progride do uso da palavra para os conjuntos de duas ou trés palavras acompanhadas de gestos indicativos (palavra-frase), dai para as frases.telegréficas (deixando de fora termos acessérios, silabas at6nicas e termina- es) e, por fim, para as frases completas. A crianga busca o aperfeigoamento cons- tante de suas capacidades de comunicagio em uma tentativa de ser entendida e atingir seus objetivos. Para isso, acredita-se que a frustragfio seja um componente importante, pois 0 uso de uma palavra ininteligivel recebe um feedback negativo { 98 Eizirik, Kapczinski & Bassols (orgs.) dos interlocutores, ainda que involuntério. E comum que mies superprotetoras nao favoregam a aquisicio da fala, na medida em que se esforgam por adivinhar os desejos da crianca, sem que ela precise expressar-se verbalmente. Para o discurso social, algumas regras essenciais devem ser internalizadas. No inicio da fase pré-escolar, a crianga j4 sabe quando é a sua vez de falar e quando é a vez do outro. Por volta dos cinco anos, compreende que certas pergun- tas siio, na verdade, assertivas (“Vocé pode me alcangar aquele copo?”). Aos seis ou sete anos, sabe que precisa responder alguma coisa relacionada ao assunto em questo, dizer algo relevante e nao repetir 0 que jé foi dito. No fim do perfodo pré- escolar, a crianga passa a diferenciar o tom de voz, o tamanho de suas mensagens eas palavras utilizadas de acordo com 0 ouvinte a quem se dirige (grita para quem. esta longe, nao usa gestos ao falar ao telefone, usa tratamento mais respeitoso com um padre ou com um idoso). O DESENHO: A FIGURA HUMANA No momento da transigdo entre a fase anal e o inicio da fase pré-escolar, a crianga desenha o corpo humano como um grande saco que contém os érgios, imaginando que esto soltos dentro do continente que a pele representa. Um menino de trés anos, por exemplo, desenhou um circulo enorme, cheio de tragos e pontinhos den- tro, referindo que aquele era “o corpo da mie, cheio de comidinhas, nenés, corago, xixi e coc6”. A paitir dessa época, o desenho da figura humana comega a ter forma mais completa, sendo que cabeca e olhos jé sio retratados, podendo nio aparecer ou- tras estruturas faciais. Aos quatro anos de idade, metade das criangas desenha pernas e pés ¢, ao iniciarem o desenho, ainda nao hé formula fixa em suas mentes sobre 0 que sera desenhado, podendo mudé-la a toda hora. ‘Aos cinco anos, a crianca inicia o desenho j4 com algum planejamento em mente, e 0 contetido é geralmente reconhecfvel. Os elementos sao simples, entre- tanto, aqueles considerados mais importantes podem ser representados em um tama- nho maior: uma flor pode ser maior do que uma casa,ou o filho maior que o pai em um desenho da familia. Ao final da fase, espera-se que a crianga jé desenhe uma figura humana bem completa, com boca, olhos, nariz, tronco, bragos, pemnas e pés, © que significa que j4 apresenta uma melhor nogiio de seu proprio corpo. O MUNDO DA FANTASIA ‘A capacidade de simbolizar, base sobre a qual se constréi a criatividade humana, estabelece-se antes do primeiro aniversdrio, mas € durante a idade pré-escolar que a crianga expres tasias com mais liberdade. A capacidade de brincar é um sina da satide mental da crianga, compardvel A capacidade de tral _ ~Ségundo Erikson, hd tres Tases ha evolugio dos jogos na crianga. A primeira ocorre O Ciclo da Vida Humana 99 Sma “auto-esfera”, quando a crianga explora sensagées relacionadas com seu corpo ‘ou com as pessoas que se ocupam de seus cuidados corporais. Na “microesfera”, a crianca faz uso de pequenos jogos representativos, mediante os quais exterioriza ¢ Nouas fantasias. J4 na “macroesfera”, a crianga utiliza suas relages com os adultos e = fens © processo de socializagiio. sd Durante a brincadeira, é importante observar o jogo das criangas ¢ ouvir as fantasias verbalizadas, pois ambos sio meios de comunicagio psicolégica, ou x3 -ja, expressam os conflitos contidos no mundo interno. Melanie Klein conside- rou 0 jogo como método essencial para o tratamento psicanalitico das criangas, ie ‘estabelecendo as bases de sua utilizacio nos tratamentos psicolégicos. Quando a Aferianga esté em tratamento psicoterdpico ou psicanalitico, o brinquedo deve ser pinterpretado pelo terapeuta. A interpretagao deve respeitar a capacidade cognitiva a crianga e fazer referéncia ao aspecto transferencial, isto é, explicitar os senti- Smentos que sdo desencadeados em relagio ao terapeuta e as fantasias externadas no brinquedo. A crianga responde de maneira direta nos seus jogos as interven- esis verbais do terapeuta. A brincadeira representa nfo s6 a satisfagdo dos desejos, mas também um triunfo e dominio sobre a realidade frustrante, gragas ao proceso de projegao dos perigos inteinés sobre o mundo externo. Assim, a crianga pode sentir-se um agente obre as situacées imagindrias, j4 que na realidade depende do seu meio externo. Em térno dos trés anos, os carros e as locomotivas sao a paixio de meninos ‘e meninas. Expressando a organizacao genital que vem se organizando pouco a ‘pouco, as criancas sentem-se impelidas a experiéncias genitais e as sublimam por cio do brinquedo. Assim, ao brincar, representam suas fantasias de vida amoro- 'sa dos pais e de si prdprios, o nascimento do filho. A garagem é usada para brin- cadeiras de penetracao ligadas & alimentaciio e reparagao; o brinquedo com bone- as e animais satisfaz As suas fantasias de paternidade e maternidade. Nessa idade, a crianca precisa ver que algumas coisas podem ser substituidas ye, nesse periodo, reencontrar um brinquedo que foi consertado pode ser mais prazeroso do que receber um novo, iniciando a luta contra as tendéncias destruidoras. ‘Como sua vida mental esté povoada de imagens que a acalmam e outras que ainquietam, teme perdé-las e, por isso, necessita éonserva-las, recuperé-las, revivé- las, enchendo de detalhes objetos reais e fantasmaticos que recria em seus desenhos. FE como se a imagem pudesse fugir e o desenho a imobilizasse; é uma forma de lutar contra a angtistia da perda. A elaboracao dessa angiistia é feita por meio da monotonia expressa pelo ntimero de vezes que a crianga dessa idade pede para que se repitam certas histérias ou para que assista ao mesmo filme. TEORIAS EVOLUTIVAS A compreensio do comportamento da crianga nessa fase do desenvolvimento deve- se principalmente As contribuigdes de Sigmund Freud, no inicio do século XX, quando ele propés que as criangas nao eram seres sem sexualidade, como a humani- 100 Eizirik, Kapczinski & Bassols (orgs.) dade parecia acreditar. A teoria freudiana compreende que o comportamento € go- vernado por processos conscientes e inconscientes, sendo que o mais elementar deles é a pulsiio sexual instintiva e inconsciente, a qual ele chamou de libido. A libido j4 est4 presente ao nascimento e nos acompanha ao longo de toda a vida. Outros materiais inconscientes, criados com 0 passar do tempo, so os mecanismos de defesa, estratégias automiticas e normais para redugao da ansiedade como a repressio, a negacio, a projegdo e outros. Freud também defendia que a personali- dade tinha uma estrutura que se desenvolve ao longo do tempo, dividida da seguinte forma: 0 id, onde a libido‘esta concentrada; 0 ego, elemento consciente e executor; eo superego, a instfincia moral que incorpora as normas e os limites da familia e da cultura. O ego se desenvolve dos dois aos cinco anos, & medida que a crianga apren- . dea adaptar suas estratégias de gratificago instanténea, O superego inicia seu de- senvolvimento um pouco antes da idade escolar, conforme a crianga incorpora os valores dos pais e os costumes da sociedade. Para Freud, a crianca em idade pré-escolar esta no estégio félico. Nessa ida- de, a erotizagio, ou seja, a concentracio da libido se localiza na regio genital, raziio pela qual as criancas de ambos os sexos, com toda a naturalidade, iniciam a masturbagio. FREUD E 0 COMPLEXO DE EDIPO eee “Bdipo Rei” é 0 titulo de uma tragédia grega escrita por Séfocles em 450 a.C. Laio e Jocasta, reis de Tebas, abandonam nos campos seu filho recém-nascido que, segundo uma profecia, estaria destinado a assassinar o proprio pai e desposar a mie. Recolhido por pastores e entregue aos reis de Corinto, Edipo, como é chamado, cresce como um jovem heréi. Em suas andangas, desentende-se com um desconhecido a beira de uma estrada e acaba por maté-lo. Chegando a Tebas, casa-se com Jocasta, a rainha vitiva, e vive com ela por muitos anos, até que uma peste terrivel assola a cidade. Consultando 0 ordculo, Edipo descobre que 0 assas- sino de seu pai esta na cidade e deve ser punido para que a peste acabe. O rei empreende uma minuciosa investigagio e termina por descobrir que 0 desconhe- cido que ele matara era o Rei Laio, e que ele mesmo era “irmio e pai das criangas que 0 acompanham, filho e marido da mulher que o gerou, herdeiro do leito do proprio pai, destruidor da vida desse pai”. Desesperado, orei castiga-se arrancan- do seus préprios olhos e se auto-exila. Freud utilizou-se dessa tragédia cléssica para nomear 0 conjunto de defesas inconscientes que a crianga em sua fase félica desenvolve pela figura parental do sexo oposto. Se considerarmos que as tragédias gregas sdo a expresso literdria dos mitos e que estes tém uma origem imemorial, talvez venhamos a descobrir que a historia de Edipo é apenas um reflexo de uma preocupagio muito antiga da humanidade. No Complexo de Edipo, a crianga tem impulsos sexuais com relago a0 genitor.do-sexo.opos' ja. eliminar aquele do mesmo s: erando puni-_ O Ciclo da Vida Humana 101 o por tais desejos. Entre 9s trés ¢ os cinco anos, a crianga encontra-se em uma “elacio tiangulat com os pais pores ous sles ear relagaoa dois, da qual esté excluida, Essa percepeao pera scntimentosderevolta— ciime_agmessividade,abandono; os quais Se expressam, por exeniplo, enranicndes— como querer dormi sedecque-seaproximiein Sica _Inente, sentando.no meio do casal ou separando.um abraco deles. menino manifesta um apego excessivo 4 mie, passando’A encarar o pai ee ee ee Gama e fertiliz4-la. Emi funciio de seus desejos pela mie, o menino teme o pai como uma figura poderosa e ameagadora, atribuindo-lhe o poder de castragiio. Esse temor leva a crianga a defender-se por meio da chamada reniincia edfpica. Apés desistir da mie, o menino se alia ao pai e se identifica com ele, de modo a reduzir a chance de ser castrado. Ao mesmo tempo, interioriza o poder do pai, seus valores ¢ julgamen- tos morais que servirio de base para a formagio do seu superego. Na menina, o Complexo de Edipo tem caracteristicas diferentes, pois a organi- zagao edipiana deriva do fato de que a rivalidade ocorre como progenitor do mesmo sexo, a mie, que é a cuidadofa priméria. A menina precisa manter uma relago com a mie/cuidadora, a0 mesmo tempo em que compete e se identifica com ela, o que eflete a complexidade das tarefas psicolégicas que encara ao atravessar o perfodo edipiano. Esse processo ocorre em duas fases: a primeira, em torno dos dois anos e meio aos trés anos, é semelhante 4 do menino, quando a mae também é 0 objeto da relagio félica-edipica e o pai, seu rival, apesar de amado. Essa fase é uma continua- ¢io da relagio pré-edfpica precoce com a mie que agora adquire as caracteristicas impostas pelo novo momento do desenvolvimento. Em torno de trés anos e meio a quatro anos, o desenvolvimento normal da menina é transferir sua energia e interes- se da mie para o pai. Quando isso acontece, a mie torna-se sua rival pela afeigo do pai. Temos como exemplo uma menina de quatro anos, muito enciumada pelo fato de que os pais esto planejando ir a uma festa no final da semana, que desenha, pinta e recorta uma linda maga e a oferece de presente para a mae, com um sorriso afetuoso. No momento em que a mie, agradecida e feliz, faz de conta que vai mor- der a maga, a menina a impede, assustada, gritando: “Nao come, t4 envenenada!” Segundo Freud, hd diferengas significativas nas forgas que guiam a resolu- gaio do Complexo de Edipo e na maneira como ela ocorre em meninos e meninas. Enquanto no menino o Complexo de Edipo é destrufdo pelo complexo de castra- ¢ao, na menina ele é possivel e mantido pelo proprio complexo de castraciio. Na visio de Freud, a menina responsabiliza sua mae pela auséncia de pénis e mais tarde 0 desejo da menina em ter um pénis é transferido para 0 desejo de dar um bebé para seu pai. Uma vez que esse desejo nfo pode ser realizado, a menina gradativamente desiste do ataque edipico ao pai e volta ao objeto ndo-incestuoso. A esses fatores Freud adicionou a influéncia da intimidagdo da educagiio e do exterior, que ameagam a menina coma perda do amor. A intensidade dessas manifestagdes comportamentais é muito varidvel, uma vez que depende de diversos fatores, como no caso de uma mie excessivamente sedutora, que ird exacerbar uma situacio que jé € por si s6 conflituosa. Um pai ee 102 Eizirik, Kapczinski & Bassols (orgs.) excessivamente severo, punitivo e pouco empatico terd efeito similar. A nao reso- lugio desta fase pode levar & fixacdo no estado félico-edipico, causando sintomas mais tarde como histeria e fobias. ‘Além da configuragao edipica classica (Complexo de Edipo Positivo), outra possibilidade menos perceptivel e significativa, o Complexo de Edipo Negativo, pode ocorrer devido ao papel fundamental que a bissexualidade exerce no com- plexo edipico. Assim, Freud comenta que devido a natureza bisexual do menino “ele também pode se comportar com uma atitude feminina e afetiva em relagao ao paie uma correspondente inveja e hostilidade em relagdo 4 mae”. ‘RIKSO) A INICIATIVA VERSUS CULPA Erikson no deu énfase a centralizagao do impulso sexual, focalizando, em seu Iugar, o surgimento gradativo de um senso de identidade. Em sua teoria, conside- ra que cada estagio do desenvolvimento humano esté ligado a uma determinada tarefa social e chamou esses est4gios de “psicossociais”. Para Erikson, o pré-escolar estd no estégio da “iniciativa versus culpa”. Esse estégio é caracterizado, inicialmente, pela aquisicao de novas habilidades ou capacida- des, pois aos quatro anos a crianga é capaz de planejar, tomar iniciativas na busca de determinadas metas e ter um dominio maior da linguagem. A crianga pratica suas novas habilidades cognitivas e tenta conquistar o mundo ao seu redor. Trata-se de um perfodo em que hé um incremento da energia para agir e para uma espécie de compor- tamento que os pais podem entender como agressivo, mas que Erikson caracteriza _ como o modo intrusivo de agir. Assim, ela pode quebrar um brinquedo, descobrir que nao consegue conserti-lo e jogd-lo na mie. Nesse momento, a crianga pode sentir-se envergonhada, imaginando que suas fantasias e desejos serdo descobertos, como se fosse automaticamente culpada por meros pensamentos e comportamentos que nin- guém sabe que teve. Hi o risco de a crianga ir longe demais em sua tentativa de poder, vindo os pais a fazer restrigGes ou a punir em demasia — quaisquer deles podendo aumentar a culpa. Alguma culpa é necesséfia, pois sem ela no haveria consciéncia ou autocontrole. A culpa em demasia, no entanto, & capaz de inibir a criatividade da crianga e suas livres interagdes com os outros. E 0 momento do desenvolvimento quando hé um pico da capacidade de aprender e do desejo de tornar-se grande. ‘Tanto Freud como Erikson afirmam que a chave para uma evolugao adequa- da nesse perfodo estd no equilfbrio entre as habilidades e as necessidades emer- gentes da crianca e a capacidade dos pais de protegé-la e de ter controle sobre seu comportamento. IDENTIDADE DE GENERO. O conceito de identidade de género nio faz parte da teoria de Freud sobre o desen- volvimento psicossexual, pois ele acreditava que o desenvolvimento psicolégico O Ciclo da Vida Humana 103 era essencialmente o mesmo para ambos os sexos até a fase félica, divergindo ape- nas coma descoberta das diferengas anatémicas pela crianga, 0 fato de que os meni- nos possuem um pénis e as meninas nao. Suas referéncias 4 masculinidade e a feminilidade est&o baseadas na sexualidade infantil e nao incluem as contribuigdes do desenvolvimento das relagdes de objeto, do sentido do self, do superego ¢ do ego. Para ele, a inveja do pénis ou complexo de masculinidade era o centro da psique feminina, ao passo que a ansiedade de castrago era central para o menino. O conceito de identidade de género, sendo mais amplo é multidimensional, refere-se a uma configuracio psicolégica que combina e integra a identidade pes- soal ¢ 0 sexo biolégico e para a qual as relagdes de objeto, os ideais do superego eas influéncias culturais fazem contribuigées significativas. As bases da diferenciagiio sexual sio evidentes desde o nascimento. A ma- neira como os pais vestem os bebés € os tratam so influenciadas por suas expec- - tativas em relagiio a cada sexo. Todas as atividades da crianga e sua permissao por parte dos pais esto ligadas ao papel sexual: a maneira como caminha, brinca, etc. Os jogos preferidos, todos diferentes para cada sexo, t¢m 0 objetivo de identificar a crianga como menino ou menina, para os outros e para si mesma. A identidade de género tem sido definida como a capacidade da crianga reconhecer que é membro de um sexo e nao de outro. Em 1964, Stoller cunhou 0 termo identidade de género nuclear referindo-se ao “senso fundamental de per- tencer a um sexo”, a “consciéncia” de que se € macho ou fémea, estando tipica- mente consolidada em torno dos trés a quatro anos. Em termos emocionais, esse senso de pertencer a um sexo é valorizado, de modo que a crianga experimenta confianca e seguranga de ser um menino ou uma menina. A identidade de género pode ser inferida das brincadeiras da crianga de acordo com seu-sexo, nas quais elas expressam sua identificago com o sexo masculino ou feminino, por marcadores culturalmente aceitos de masculinidade ou feminili- dade (papéis de género). Na maioria das criangas, a emergéncia desses comporta- mentos surge apds o desenvolvimento de sua capacidade de “se rotular” como menino ou menina. Em muitas criancas, em torno dos quatro a cinco anos, hé um aumento do comportamento estereotipado do papel do género, acompanhado por idéias culturalmente definidas sobre o papel de cada um deles. Esse processo evolui até a consolidagao da identidade sexual na vida adulta, quando o individuo poderd definir-se como heterossexual, homossexual ou bissexual. Essa autodefi- nigdo esté usualmente de acordo com o que é experimentado como eroticamente atrativo e tipicamente nao se consolida antes da adolescéncia. COMENTARIOS FINAIS A fase pré-escolar tem inicio com a crianga deixando de ser um bebé para se tornar menino ou menina, que necessita desempenhar um novo papel, passando por uma fase inicial de confusao entre passado presente. Sob a influéncia de organizadores internos e externos, a crianca evolui para’uma integracao-das ten- 104 Eizirik, Kapczinski & Bassols (orgs.) déncias conflituosas da fase genital, que vai representar uma base adequada para o desenvolvimento das fases seguintes. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS ABERASTURY, A. A crianga e seus jogos. Porto Alegre: Artes Médicas Sul (Artmed), 1992. . BEE, H. Q ciclo vital: Porto Alegre: Artes Médicas Sul (Artmed), 1997. p. 202-260. ERIKSON, E.H. (1959). Identy and the life cycle. New York: Norton. (Republished, 1980). ERIKSON, E.H. (1964). Insight and responsibility. New York: Norton. 1964. p.31 ERIKSON, E.H.; ERIKSON, J.M.; KIVNICK,H.Q. Vital involvement in old age. New York: W.W. Norton, 1986. p.48 FREUD, S. 0 ego ¢ 0 id (1923). In: Edigdo Standard Brasileira das Obras Psicoldgicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969. v.19. LEBOVICI, S.; DIATKINE, R. Significado e fungdo do brinquedo na crianga. 3.ed. 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A contribution to the Study of Gender Identity. International Journal Psychoanal., n. 45, p. 220-226, 1964 VASTA, R.; HAITH, M.; MILLER, S. Child psychology, the modern science. New York: Wiley, 1992. A taade Escolar: Laténcia (6 a 12 anos) Maria Helena Mariante Ferreira, Marlene Silveira Aratiio O periodo da laténcia vem sendo um dos menos estudados e, portanto, um dos menos compreendidos: Fi icterizado. co period i adolescéncia gio-do desenvolvin qua e- Pensava-se que nele tudo se encontrava em um estado de espera, sob o controle repressivo dos impul- Sos, até que a adolescéncia chegasse para que entio se manifestassem as pulsdes sexuais, Para Freud (1905), durante a laténcia, as defesas so postas em jogo para controlar a pulsao sexual, que, depois, retoma o seu curso na adolescéncia. Como diz Urribarri (1999), temos que entender o trabalho da laténcia como um esforgo que é realizado no sentido da organizacio, diferenciacio, sofisticacio € ampliagao do aparato psiquico. Ocorre nele uma reordenagio dindmica e estru- tural das pulsdes. A laténcia nao se caracteriza pela simples repressio, mas sim pela sua configuragao dindmica, reorganizagao operativa, peso relativo e balanco intersistémico. E, pois, esse atuar conjunto e subordinado de diversos mecanis- mos defensivos com fins sublimatdrios que caracteriza a laténcia normal. A evolugio do piibere nessa fase vai.depender de miltiplos aspectos: da maneira como vivenciou os primeiros anos; da interagiio mais complexa com 0 ambiente; da possibilidade de relaciio independente, nao mediada pelos pais, com pessoas de fora do circulo familiar primitivo e do desafio a filosofia seguida pelo grupo familiar. As mudancas significativas dessa fase apgiam-se em um substrato organico que se aprimora: a maturagio do cérebro completa-se até os 10 anos e a mielinizacao também esté praticamente pronta aos sete anos, restando apenas cerca de 10% 106 Eizirik, Kapezinski & Bassols (orgs.) para evolugao posterior. Os sistemas noradrenérgico e dopaminérgico, que regu- lam aatencio e a agressividade, evoluem mais lentamente, a partir de ento. Recentemente, passou-se a dar um lugar especial ao pubere e ao adolescente na clinica. Nao sendo mais crianga nem um adulto, paciente do pediatra ou do clinico, o latente situa-se em um hiato onde é dificil escolher um profissi: ara atendé-lo. Atualmente varios so os clinicos e psi itras que se dedicam a esse Grupo ctario, contribuindo, portanto, cada vez mais para que se conhega essa eta- pa do desenvolvimento, tanto fisica como psiquicamente. O objetivo deste capitulo, assim, é sistematizar, de uma forma resumida, os principais movimentos do perfodo de laténcia, fundamental para um desenvolvi- mento harménico na adolescéncia. CONDICOES PARA A ENTRADA NA LATENCIA A idade escolar exige a superagio de conflitos que vém sendo lentamente elabo- rados durante as fases anteriores. Ligagio, controle e identificago foram movi- mentos trabalhados, sucessivamente. Nelas, o manejo da frustragdo, a perda da onipoténcia e.a ligacao simbidtica com os pais dao lugar 40 intétesse pelo mundo © pelos seus iguai Na crianga normal, a frustragio conduz, superada a depressiio, 4 busca de novos conhecimentos. Isso possibilita uma agio mais efetiva sobre 0 meio e a restaurago de um prazer mais maduro. Estabelece-se 0 comprometimento coma tarefa quando a crianga comega a construir sua identidade, controlar a impulsi dade, adquirir crescente capacidade de socializacio. Pouco a pouco ela vai estabe- Jecendo maior contato com a realidade, tornando-se, progressivamente, mais obje- tiva e com um pensamento jé direcionado para fora de si. CARACTERISTICAS DA FASE O estado de laténcia é uma organizagiio funcional defensiva, que torna a crianga mais calma, manejavel e educdvel. A organizacio do estado de laténcia depende do desenvolvimento da fungdo simbélica, da eficdcia da repressio, da reestruturacio da mem6Gria e do estabelecimento da constncia comportamental. Aparecem res- postas mais adaptativas do que-a simples descarga impulsiva. Bom comporta- mento, conformidade e educabilidade resultam do equilibrio entre impulsos e defesas mais elaboradas. Nessa fase, ocorre uma reorganizacio complexa das defesas, apoiada em dois pilares: no plano afetivo, a utilizagdo de mecanismos obsessivos e, no cognitivo, 0 inicio do funcionamento das estruturas de operages concretas. Enquanto nas primeiras etapas da vida a crianga centra-se em torno das figu- ras dos pais, nessa etapa inicia-se um desligamento progressivo dos cuidadores. Tal mudanga intensifica os lagos com os amigos da vizinhanga ¢ da escola, sendo O Ciclo da Vida Humana 107 WRENS MEWS? Fares peek LES que meninos meninas agora se distanciam, reunindo-se em grupos, quase que antagénicos, do tipo “clube da Luluzinha e do Bolinha”. A comipeténcia € 0 sentimento principal,-que resulta de uma ago eficaz, e esta impulsiona a crianga pard a resolugao da crise basica da fase, estudada por Erikson (1963), em que a industriosidade (c idade (fracasso nas agdes) se instala. Esse periodo € marcado por grande sofrimento na crianga que, por qualquer motivo, se vé comprometida na sua capacidade de aprender tanto formalmente;-na escola, como informalmente, nos esportes, nas.competéncias sociais e de indepen- déncia. A evolugao da capacidade de diferenciar fantasia/sonho e realidade (idade da razio) permite uma percepcao distinta de corpo e mente, o que facilita 0 usoda — intelectualizacio e a formaciio da consciéncia de culpa, por agdo do superego. A maior correlagio entre o sistema somético e psiquico.do organismo permite a internalizacio da orientagio dos pais. Segundo Blos (1996), uma fonte de desorganizagdo do desenvolvimento é 0 fato de a laténcia ser uma fase incompleta. Por.um lado, o avango da autonomia do ego, durante a laténcia, resulta na habilidadé em distin tinguir entre realidade e fanta- sia, ¢, por outro, ainda sio observadas formas.infantis de expressio «manejo dos impulsos. yes ON Qaemaah eStvactenSh cas Toms peur, Um menino de oito anos troca de escola, onde se adapta com dificuldade. Ao final do ano escolar, em uma conversa sobre as duas escolas, comenta sorrind “Seria bom se pudéssemos deixar as meninas e os-meninos: chatos-e boiolas. na escola velha, e na escola nova, s6 os guris meus amigos”. Nesta.vinheta, vemos... claramente a fantasia ¢ a realidade, usadas de forma simbélica como expressiod resolugio magica das dificuldades, separando_o.bom e 0 mau. Por outro lado, vemos a repressio sexual separando meninos de meninas e “boiolas” de “mia- chos”. A magia é usada com consciéncia e juizo_de realidade, uma vez que 0 menino reconhece que tal artimanha permanece apenas no nivel de seus desejos € suas idéias e que pode brincar com conflitos. DESENVOLVIMENTO AFETIVO E SEXUAL O equilibrio da laténcia é concretizado quando forem dados os passos em diregao a resolugio do Complexn.de-Eaipo, estruturando dentro da crianca capacidades crescentes de empatia e intersubjetividade. A identificag&o com os pais torna-se parte da evolucdo da personalidade do latente. A crianga, na laténcia, estabelece com os pais um relacionamento em um grau étimo de neutralidade.“A imagem dos pais, no tio idealizada, vai sendo mais passfyel de identificagao. A proibiga0-G6 superego recat SOUTE OS UESEION THCESTUOSOS-c sobre a masturbagiio. Tal fendmeno dindmico, aliado a transformagio na ago motora — agora funcional —, faz com que o latente precise ocupar-se. Isso explica a necessi- ' 108 Eizirik, Kapczinski & Bassols (orgs.) dade do escolar de praticar atividades maniuais, esportes e competigdes, que apa- recem como um gonjunto de agdes e condutas com caracteristicas sublimatérias. fortalece ¢ flexibiliza o ego, ele- Diversas aprendizagens adquiridas nesse periodo contemplam as demandas sociais da cultura dos pais e da escola. Isso proporciona uma melhor insergao do ptibere no meio dos adultos por meio de sua ago competente. O conflito edipico é dramatizado por meio de uma conduta ora submissa, ora rebelde, em uma luta dolorosa entre 0 proibido e o permitido. A rentincia edipica provoca no latente uma sensagao de perda de referéncia até entdo representada pelos pais ou autoridades substitutas, resultando em uma vivéncia de vazio interior | *e estranhamento. B -comum, nessa fase, 0 rechaso pela figura mater, 0 desloca- mento da agress40 para a figura patema € a dificuldade de relatar suas experiéncias ales. E muito comum encontrar pais tristes porque os filhos nao relatam suas experiéncias na escola, na casa de amigos, sentindo-se agora preteridos. Essa crise, natural no desenvolvimento, pode ocasionar um retraimento no ptibere devido a fantasias de abandono, levando-o a refugiar-se em defesas mais regressivas. Ao contrério, pode também propiciar uma ampliagio dos recursos do ego, permitindo o manejo da angiistia por meio de uma melhor aceitago da realidade na determi- nagio da conduta. O fantasiar adquire maior preponderncia, ocasionando e facilitando um maior distanciamento dos cuidadores em busca de elementos fora do grupo familiar. Esse movimento em diregao ao mundo é fundamental para a elaboragao da ansie- dade de castragio, permitindo ao latente a experiéncia de obter reconhecimento pelo valor das suas agdes e o mérito de sua produgao pessoal. O temor ao incesto conduz o pré-adolescente a buscar outros modelos de identificagiio fora do Ambito familiar. Ele coloca em diivida seus valores, sua onipoténcia, retirando dos pais o investimento afetivo idealizado e redirecionando seus impulsos a outras pessoas, ampliando assim seu uniyersorelacionaletentan- do encontrar novos mdeins. com. os. quais se identficar Ore cho sie lo Fane ‘Na pratica didria com pacientes e familiares, esse € um perfodo muito dificil porque implica abandono de princfpios morais ¢ éticos até entao vigentes. A crianga esconde i nao bi i deixando os pais perdidos i (0 de impoténcia. A bi mo sentido de deixar a ligaciio j -inieial, fazendom ecaminhando em diregio a uma identid: ii i A possibilidade de resolugio edipica e a abertura para novos investimentos afetivos e identificagées siio enriquecedoras para o sujeito, favorecendo sua in- | dividuagio. BE protevede anus? O antigo interesse pelo préprio corpo se ditige agora para a curiosidade pelo, is . Assim, também surge a necessidade do conhecimento do mundo @ das leis que o regem. O pensamento concreto € substitufdo, pouco a pouco, pela capacidade de abstrair, apoiada pela capacidade de simbolizar, que constitui, nes- sa etapa, uma importante aquisigfo. O Ciclo da Vida Humana 109 ORGANIZACAO DEFENSIVA E CONFLITOS Durante o periodo de laténcia, as exigéncias instintivas nado se modificam, mas 0 ego torna-se pouco a pouco mais apto a lidar com elas. Dessa forma, ego e superego tornam-se mais capazes de estabelecer um controle conjugado. Surgem atitudes de natureza sublimat6ria, baseadas em identificagdes. O senso de auto-estima deriva agora das realizagGes. Hi resisténcia A regressio, ¢ a aciio do ego passa para uma esfera livre dos conflitos. O desenvolvimento do pensamento simbélico permite a evolugio de defesas como a intelectualizagio e a racionalizagio. A natureza das defesas fobicas se modifica. Os medos noturnos passam dos monstros para as-figuras humandides, perseguidoras, acompanhand volugao da fantasia e do pensamento que agora se centra em Objetos reais € fantasticos. Pode haver no perfodo uma intensificagdo de sintomas obsessivos e fantasias persecutérias, que esté relacionada com 0 controle dos.afetos associados ao dese- jo de fazer coisas proibidas: culpa de se rebelar. Aparecem também defesas de somatizacio com equivalentes como vémito, cefaléia e erupgdes cuténeas. A modificagio da diregio da agressiio permite sublimar e utilizar atividades obsessivo-compulsivas, formagao reativa e repressio como defesa. As historias, as Gramatizagbes eos herdis passam.a ser: representantes dos impulsos, permitin- do’ agora sua expresso por meio-da-identificagao passiva Essas defesas com- _pdem uma organizagao.necessdria_para_a substituigdo de_um_padrao neurético, tipico dessa fase, por defesas mais adaptativas, que conduzem a um funciona ‘to €sperado na maturid: 2 A passagem para o DESENVOLVIMENTO COGNITIVO O desenvolvimento cognitivo na laténcia, segundo Sarnoff (1976, 1987), passa por trés etapas, o inicio da laténcia, a maturagdo durante o estado de laténcia e a transigao final. Em cada uma dessas étapas, uma maturacio se processa e se orga- niza de forma seqitencial. A passagem para a laténcia (sei: é marcada pela capa- cidade de diferenciar & na realidade. No-desenho da figura humana, a diferenciagio entre oes € corpo, com a introdugao do pescogo, é prova concreta da percepciio crescente da distingio mente/corpo. Surge também a mudang¢a dos afetos que acionam o superego, e a conseqiiente consciéncia da culpa que passa a guiar as decis6es éticas. O segundo periodo, a maturagio no estado de laténcia (sete e meio a oito anos e meio de idade), é marcado pelo inicio do pensamento operacional concreto, pela organizagao conceitual da meméria e por uma mudanga na qualidade da fantasia 110 Bizirik, Kapczinski & Bassols (orgs.) que se centra em objetos da realidade e no em objetos fantasticos. Na organizacio do superego se processa a individuagio ética por meio da qual a crianga desenvolve seus proprios motivos e nao simplesmente aplica os padrées dos pais. O terceiro perfodo (10 a 12 anos de idade) envolve a percepgiio e 0 conheci- mento real do. mundo e a busca de-uma pessoa.na realidade para a expressio dos seus impulsos. A maturagfo somitica permite o aprimoramento da coordenagio, da aten- Gio, da pag regulaciio do tempo de elaboraciio das respostas. Segundo(Riaget 1958), nessa fase se instala period dasoperagdes coueeis.. Nele ocorre uma fransig&o do pensamento apoiado na ago para o estabelecimento de estruturas I6gicas mais gerais. Essa mudanga resulta na capacidade de poder ‘representar e exercitar aces agora dentro do pensamento, sob a forma de idéias. Isso influencia a percep¢iio da realidade sua compreensio e organizaciiona memoria. Os dois movimentos mais caracteristicos da fase Sio'o estabelecimento de nocéo de reversibilidade (1-+2 = 3, logo 3 —2.= 1),-que permite operagées de Serlagdo © clssificagio e da nogéo de invaridncia e conservagao de substéncia, peso e volume (O que pesa mais: um quilo de algodio ou um quilo de chumbo?). Tais estruturas maturacionais e seus correlatos no mundo cognitivo e de re- presentagées se configuram de forma especial nas diferentes reas de expresso da crianga. EXPRESSAO GRAFICA 1. O dominio do trago obliquo: a crianga vai mais além do desenho do quadrado, da cruz, do circulo e do tridingulo para o desenho do losango e do“x” 2. Odetalhamento ea coordenagao das estruturas no desenho da figura humana: surgem atributos como mos e olhos e posicionamento adequa- do do pescogo e dos diferentes segmentos do corpo. 3. O aparecimento no desenho do movimento e de interagées: a crianga se expressa mais pelo desenho do que pelo relato de fatos. 4. A nogdo de profundidade e de sombreado: nogées que surgem ao final da fase ¢ indicam mudanga no sentido da aquisi¢ao da perspectiva tri- dimensional. Pensamento Simbélico 1. Acapacidade de produgéo de sua propria simbologia inconsciente © homem, para viver em sociedade, precisa organizar uma forma derivada da expresso de seus impulsos. O simbolo serve a tal fungio, uma vez que transfor- maa idéia ou 0 afeto inicial em outro elemento. A producio dos préprios simbo- los, mascarando fantasias latentes, depende da capacidade de abstraco, da capa- O Ciclo da Vida Humana 111 cidade de espera e da repressiio. A simbolizagio passiva, ou seja, o uso de persona- gens de histéria para expressar os impulsos, inicia a fase. A participacao passiva da crianga na simbologia da televisiio ou de hist6rias diminui a culpa e a responsabilidade na produgio de um simbolo nao aceito.social- mente. Por nao ser elaborado pela crianga, ele pode ser apreciado e assim cumprir sua fungao catédrtica. 2: A capacidade, de entender e explicar os fendmenos naturais se modifica, coma instalagado do pensamento operacional concreto Antes da laténcia, a compreensio se apoiava em explicacées intuitivas e magicas. Por volta dos sete anos, instala-se o pensamento operacional concreto. E uma forma de pensamento abstrato que se apéia em caracteristicas concretas da experiéncia com base na consideragiio realistica do fenémeno natural. Ao final do perfodo, sur- ge 0 pensamento operacional abstrato que pode ser aplicado ja a outras experiéncias ¢ idéias na auséncia da representacio concreta — a generalizacio. 3. A linguagem ndo & mais afetivo-motora e se apéia no conceito verbal Ela encontra sua expressio no uso do simbolo verbal, da abstragao e dos contos mitos. 4. A mem6ria reorganiza-se com a inclusdo da representagao com palavras em seu arsenal As palavras ¢ as idéias que elas representam podem estar ligadas a ansiedade. As palavras substituem as sensacées e percepgées afetivo-motoras difusas iniciais e surgem os simbolos, com caracteristicas inconscientes, nos quais se distinguem contetidos manifestos e latentes. A crianga ainda desenha mais do que relata com palavras. O maior uso da linguagem como um recurso da meméria e a diminui¢io.da-meméria afetivo- motora fazem com que parte do registro mnémico anterior a laténcia se perca. A crianga deixa de perceber e recordar eventos globais que traziam consigo apenas a marca afetivo-motora. H4 uma substituigio da meméria real em palavras por simbolos e fantasias que representam o evento original. Essa mudanga da forma nio-verbal de recordagio para organizag4o verbal provoca perda de contetido, mas ganho em eficiéncia. A capacidade de lembrar os aspectos abstratos da experiéncia se desenvolve ¢ estes se tornam disponiveis para o uso relacional e criativo em outros eventos. O entendimento intrinseco da experiéncia pode ser expresso no nivel motor, plistico ou descritivo-verbal. Tam- bém surge a expressio abstrata pelo uso da metdfora. Isso torna os conceitos abs- tratos passiveis de registro, andlise, troca e reprodugio por formulas ou idéias gerais e permite a elaboragiio de combinagées. 112 _ Eizirik, Kapczinski & Bassols (orgs.) Nao sio as abstragdes que se desenvolvem; o que se refina é a capacidade de perceber a natureza abstrata intrinseca de um objeto e recordar este conceito es- pontaneamente depois. 5. O planejamento e a programagdo tornam-se posstveis, assim como o tempo para elaboragdo de resposta A produgo dos seus préprios simbolos permite & crianga nao miais questionar os porqués, mas buscar, por meio do uso dos seus proprios sistemas, satisfazer & sua curiosidade, de forma ‘ainda incipiente. Nesse proceso, deve haver respeito & capacidade crescente da criancé de usar de tempo na elaboragio de uma resposta. A crianga deverd passar de um momento em que suas respostas sao imediatas para uma etapa em que pensa e elabora suas respostas de forma propria, esquivando-se do imediatismo dos treinamentos e da obrigagao de saber tudo. HA possibilidade de tolerar a ignorancia temporéria. anksfos, WHO PS eMa nioKcads SOCIALIZACAO Os avangos citados anteriormente permitem maior mobilidade na aprendizagem © _ escolaridade. Os aspectos cognitivos da fasé das operagoes concretas, como a déScentragio ¢ a abstracio, permitem a crianga a aceitagio do convencional. A reor- ganizagao conceitual da meméria possibilita o desenvolvimento da organizagio e do planejamento, O processo de submissio a defesas obsessivas ¢ & formagio reativa permitem a incluso da crianga nos processos pedag6gicos e educativos mais siste- ‘matizados. A transformagio da empatia e do juizo moral permite um novo tipo de participagiio e colaboraciio que supée a aceitacdo de direg&o por um lider, 0 estabe- lecimento de regras ¢ leis ditadas pelo grupo e 0 trabalho de contribuigio ao esforgo miituo. O sentido de competéncia aumenta se existe congruéncia entre as xpectativas do grupo eas s aptiddes, os objetivos 0s ideais da cultura dominante, A congruéncia entre a familia ea escola é de grande it impacto na interag4o e.na aprendizagem. O envolvimento ea irifluéncia dos iguais sfio também potentes reguladores da compe- téncia académica. Compartilhar expectativas, objetivos educacionais, regras e o ni- vel de permissividade com a escola possibilita o monitoramento conjunto (crianga, pais, professores) progressivo da aprendizagem. O tamanho das escolas Condiciona diferentes oportunidades de identificagéo com papéis, possibilidades de participacio e vivéncias de reconhecimento social. Isso fica mais dificil em escolas muito grandes. . Aentrada na escola vai estabelecer uma mudanga importante no processo de socializagao. Embora, atualmente, as criangas jé freqiientem creches desde cedo, as caracteristicas da estruturagao do ensino fundamental e as transformagées da laténcia sio especiais para dar um colorido proprio a socializagdio nesse momen- to. A mudanga fundamental, no entanto, é que anteriormente, nas creches, as crian- as permaneciam fora do ambiente familiar por necessidade dos pais. Nesse perfo- O Ciclo da Vida Humana 113 do, ou seja, na laténcia, a escola responde a uma necessidade propria e real da crianga. Abre-se agora a possibilidade de uma formagio efetiva.de lacos de ami- zades ¢ a avaliagao.de-seu se/f'em relagio aos outros. A socializagao tia laténcia depende dos desenvolvimentos afetivos e cogni- tivos anteriormente citados, A resolugdo do conflito edfpico permite a internali- zagao da autoridade paterna, fazendo nascer a consciéncia ¢ o sentido de respon- sabilidade e culpa. Como o superego é agora parte de si, a crianga diferencia os maus pensamentos das més agdes. Sua consciéncia é mais sévera do que a dos -Pais, uma vez que projeta neles seus instintos. Isso resulta em uma atitude rigida e busca compulsiva de punicao, identificada que fica com o agressor. Conetetiza-se, entio, a passagem da constancia objetal, da fase anterior, para uma constancia comportamental. Esta nado consiste mais em reter as ima- gens parentais quando eles nao esto presentes, mas em reter as cdmoestagdes parentais e agir de acordo com elas quando eles esto ausentes. Os conhecimentos sobre padrées esperados de comportamento sao reunidos, integrados e gravaGos como parte do ego ideal. investimento afetivo estendido para outras figuras fora do grupo familiar permite o abandono do brinquedo paralelo ou do brinquedo reciproco apenas com um outro parceiro, caracterfsticos das fases anteriores. A crianga comega a apren- der como se relacionar de forma mais elaborada além_do-dar-e receber. Surge a parceria bilateral,.ou seja, em vez da assisténcia de uma via, a crianca passa a ter uma cooperagao consistente e uma troca consensual. Aparece o melhor amigo com o qual mantém periodos sustentados de brinquedos e a entrada de terceiros e das equipes. Estes sfio escolhidos pela capacidade de brincar ou por brincar de acordo com os préprios desejos, afinidade ¢ ligagdo. Novas aquisigdes intelectivas e emocionais viabilizam formas mais eficientes de competir, comprometer-se, aprender as regras do jogo, cuidar-se e proteger-se de agressdes, independentes de simples reages motoras. Também comega a critica 4 familia como estrutura. Com o intuito de reter uma parte de seu mundo para si, ela se utiliza de manobras de dissimulagao. Ela “enrola”, dando a impresstio de que est mentindo, o que quase sempre preocupa muitoa familia. Evolui a consideragdo pelas pessoas, passando.do “gosto delas porque me dio coisas” para um réconhecimento das habilidades e dos atributos pessoais dos outros. Finalmente, chega 4 valorizagio de atributos sociais — a justiga. A ansiedade caracteristica da fase é 0 medo de desapontar e nao ser aceita pelo grupo. Na fase anterior, a crianga temia perder o amor dos pais, caso nio obedecesse. Hi a aquisiciio de conceitos proprios, identificagdes e experiéncias com pessoas relacionadas ao seu futuro papel na sociedade. O ego ideal é subme- tido As exortagdes dos adultos, que a crianca percebe como superiores, aos quais deve obediéncia e que sio por ela imitados. Surge a chamada sublimagdo reformada: a aceitagiio do comportamento apro- vado pelo grupo. Nela, h4 uma avaliagiio do proprio comportamento no grupo e a critica da sua atuagdo. O grupo comega a assumir importéncia 4 medida que seus Thole d- Wale pe- Stele ne 114 _Eizirik, Kapezinski & Bassols (orgs.) | membros se distinguem e rotulam cada vez mais uns aos outros. A valorizag3o que i © grupo estabelece entre os seus membros classifica-os como populares, médios, tejeitados, ignorados ou controversos, 0 que influencia muito a auto-estima. HA uma subordinagio social que lhe permite aceitar a autoridade e observar como os pares so vistos por essa mesma autoridade. Aparece a acomodacio social, t que leva ao reconhecimento do ser diferente das pessoas, da diferenca entre as pes- soas ¢ a passagem da intolerdncia ao respeito. Ocorre uma lenta e progressiva subs- tituigdo dos padrées iniciais familiares pelos seus préprios padrées. Nesse momento, € muito importante o desenvolvimento cognitivo que, avangando (saindo do ego- centrismo e da magia), permite a compreensio de regras sociais e a cooperagaio no grupo. . Accrianga elabora um juizo moral que envolve consenso e negociagao social. No entanto, persiste a rigidez e a rejei¢ao de informagoes externas alheias. Em termos de empatia, chega a fase da empatia com sentimentos do outro. Trata-se da aquisigdo de uma perspectiva diferenciada e subjetiva. O outro tem vida prépria, tinica, subjetiva e privativa. Sentimentos miltiplos ainda nio so reconhecidos pela crianga, que confunde a amizade, o pertencer A mesma familia, grupo ou situago com a obrigatoriedade do mesmo ponto de vista. A Identidade de Género _Embora o processo de formagio de identidade.de_género_se.inicie aos.trés-anos, fiessa fase ele € muito influenciado ¢ modulado pela escolha de papéis, modelos, amigos e pela socializagiio. Ele é.um paditio estével em cada individuo. Os horménios. um aumento na modéstia, 1 Vi mas ligadosa ela. Nao sé sabe ao desejo- Y pc ou grupo do qué proprianienté séxual- Nos meninos, 98, desenvolve-se mais a fae ins- trumental (aco) da sexitalidade e, nas meninas, a fungaio expressiva (sentimento) dessa mesma sexualidade. < COMENTARIOS FINAIS A resolugio da crise da laténcia est ligada ao desenvolvimento de uma relagio com o mundo externo, com uma consciéncia maior de auto-regulaco, recompen- sae competéncia social, emocional e cognitiva. “. Nessa fase, um aspecto importante a ser lembrado é o do timing (espera do tempo oportuno para a atualizacao de-um comportamenito ou etapa do desenvolvi- t mento). Esse timing refere-se.a postura do ambiente que nao deve ai sionar, forcar ou invadir o desenvolvimento. s As tarefas dessa fase sfio as seguintes: O Ciclo da Vida Humana 115 1, Organizagiio crescente do self para acontinéncia de seu desenvolvimen- ___to, elaborando os,conflitos.internos ¢ estabelecendo a identidade de gé- nero: ~ 2._Aprimoramento-da interagio. interpessoal,_elaborando_a representagio da sua experiéncia e imagem.social, interdependéncia e cooperacao. 3. Motivacio para a eficiénciae a competéncia._ 4. Desenvolvimento de valores afetivos, morais e sociais que levam a civi- lizagio (humaniza¢io). REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS BLOS, P. Transigdo adolescente. Porto Alegre: Artes Médicas Sul (Artmed), 1996. ERIKSON, E. Childhood in society. New York: WW Norton, 1963. FREUD, S. Three essays on sexuality. In The Standard Edition of The Complete Psychological Works of Sigmund Freud v.14. London: The Hogart Press, 1953, Tra- balho original publicado em 1905. PIAGET, J. The growth of logical thinking. New York: Basic Books, 1958. SARNOFF, C.A. Latency. New York: Jason Aronson, 1976. SARNOFF, C.A. Psychotherapeutic strategies in latency years. London: Aronson Inc., 1987. ~ URRIBARRI, R. Descorriendo el velo sobre el trabajo de latencia. Revista Latino-Ame- ricana de Psicanalisis, vol 3-I, jul. 1999. A Puberdade i Liicia Helena Freitas Ceitlin, Akemi Scarlet Shiba, Michele Dorneles Valenti, Patricia Sanchez A puberdade (do latim puber = adulto) é uma fase do ciclo vital biolégico que abrange um conjunto de mudangas corporais causadas por horménios, tais como crescimento das mamas, mudanga de voz, primeira menstruagio, e que est inti- mamente relacionada com o processo de crescimento fisico, maturacional. E um processo de maturagio lento e progressivo, quando comparado com outras mu- dangas biolégicas que ocorrem durante a vida e também com caracteristicas mais dramiticas devido 4 sua magnitude. A adolescéncia (do latim adolescere = cres- cer), por sua vez, refere-se a um perfodo do desenvolvimento humano com dura- cio varidvel, situado entre a infincia e a idade adulta, Compreende complexos eventos psiquicos que direcionam a crianga para a transformacdio em um adulto jovem. O inicio da adolescéncia é fortemente influenciado pelas manifestagdes da puberdade. Assim, o impacto das mudangas fisicas e a expansiio das habilidades cognitivas desencadeiam as alteragGes psicoldgicas e sociais que sdo por sua vez influenciadas pelo contexto social, histérico, cultural e familiar no qual o adolescen- te esté inserido. Quanto’ao proceso puberal e adolescente, podem ocorrer variagdes dentro de uma mesma cultura, em diferentes épocas histéricas ou estratos sociais. Os adolescentes pobres tém, muitas vezes, esse perfodo abreviado pela necessida- de de trabalhar para sustentar a familia ou por uma gravidez precoce, ao passo que jovens mais abastados podem prolongar sua adolescéncia sensivelmente entrando no mercado de trabalho com, por exemplo, 23 ou 24 anos e assim alcangando sua independéncia mais tardiamente. Na puberdade, a maturagio cerebral e a hormonal determinam um conjunto abrupto de mudangas corporais. A menina que vinha ganhando aproximadamente 2 118 _ Eizirik, Kapczinski & Bassols (orgs.) a3 kg por ano, cerca de dois anos antes da chegada da puberdade comega a ganhar cerca de 5 kg por ano e crescer cerca de 7,5 a 10 cm por ano, enquanto que nos meninos hd uma aquisigao de 6 a 7 kg por and e crescem 10 a 12 cm por ano. A massa muscular e o vigor do menino dobram entre 12 e 17 anos, o que tem uma profunda influéncia sobre o seu comportamento e auto-imagem. A puberdade com- preende, também, a aceleragiio do crescimento esquelético, 0 chamado “estirio puberal”, com mudangas na quantidade e na distribuigdo de gordura, e desenvolvi- miento dos sistemas respiratério e circulatério, resultando em mais forga e resistén- cia, inicio da atividade das génadas e dos érgiios de reproducio ¢ surgimento dos caracteres sexuais secunddrios, como mamas e pélos. Todo o processo costuma durar de dois a quatro anos. As caracteristicas sexuais secundarias costumam apare- cer apés um ano do inicio da irrupgio de crescimento. Essas mudangas fisicas fo- ram classificadas pelo pediatra J.M. Tanner (Tabelas 8.1 e 8.2) em uma escala de TABELA 8.1 Estagios da Maturagao Genital Masculina Estdgio _ Pélos pubianos (P) Pénis Testiculos (G) 1 Nenhum Pré-adolescente Pré-adolescente 2 Levemente alongados Ligeiro alargamento Escroto aumenta, altera- bes da textura rosada y Mais esouros e uma pe- Pénis maior Maior quena quantidade come- gaa.encrespar 4 Lembram o tipo adutto,mas —-Malor, glande e largura Escroto maior e escuro ‘em menor quantidade, en- -_aumentadas de tamanho ctespamento ¢ espessura 5 Adistribuigao adulta se es- Adulto Adutto palha a superficie medial das coxas TABELA 8.2 Estagios da Maturacao Sexual Feminina Estagio Pélos pubianos (P) Mamas (M) - Pré-adolescente Pré-adolescente 2 Esparsos, levemente pigmentados, lisos Seio e bico do seio elevados como um. na borda medial dos labios pequeno monte, aumento do diémetro aureolar Mais escuros, comegando a encrespar, Auréola e seio aumentados, sem contor- maior quantidade no de separagao ‘Aumento na espessura, crespos, abun- dantes, mas em quantidade menor do que na idade adutta O triéngulo adutto feminino é espathado para a superficie medial das coxas Auréola e bico do selo formam um monte secundario Maduro, o mamilo se projeta, a auréola 6 parte do contomno geral do seio Daniel W. A. Jt. (197), Adolescents in health and disease. St Louis, The C.V. Mosby Co., 1977. Adaptadas de Tanner J.M. (1962), Growth at adolescence, 2 ed. Oxford, England, Blackwell Scientiic Publications. O Ciclo da Vida Humana 119 cinco estgios de maturidade puberal, a qual considera as mudangas nos pélos pubia- nos em ambos os sexos € 0 desenvolvimento mamério nas meninas e gonadal nos meninos. Os estdgios estabelecidos por Tanner tém permitido aos pesquisadores que investigam o processo puberal compararem as mudangas visuais como um indi- ce da condicao biolégica entre os diferentes estudos. Dois fatores nesse surto de crescimento sao importantes para mudar a natureza dos relacionamentos sociais da meninice e que se transportam para a puberdade: as. meninas maturam aproximadamente dois anos antes do que os meninos e hd conside- rdvel variacao entre os individuos na ocasiao do surto de crescimento. Nessa fase, muitas vezes, ocorrem rupturas de amizades intimas em decorréncia das diferengas maturacionais, havendo o reembaralhamento de grupos e a formaciio de novas ami- zades. A crianga menos madura pode-se sentir solitéria e negligenciada. Informa- g6es mais ou menos exatas sobre relagdes sexuais tornam-se comuns. O surto de crescimento inicia entre 10 a11 anos na maioria das meninas ¢ entre 12 a 13 anos na maioria dos meninos. Da sexta até a oitava série as meninas tendem a ser mais altas e desenvolvidas, comecando a ter aparéncia de “mogas”, ao contrdrio dos meninos, © que dificulta a aproximagio de ambos os sexos. Os sistemas hormonais existem desde o nascimento, mas tornam-se ativos na puberdade, atuando sobre 0 cérebro, estimulando as g6nadas a produzirem, por exemplo, a testosterona nos testiculos e o estrogénio nos ovarios. Durante a puberdade, amadurecem as caracteristicas sexuais primérias e surgem as caracteristicas sexuais secundarias. Esses fendmenos sio de- sencadeados pela troca de estimulos entre hipotdlamo, hip6fise, ovdrios ou testicu- los (Tabela 8.3). TABELA 8.3 Os Horménios da Puberdade Glandula Horm6nio produzido Efeito na maturacéo. Tiredide Tiroxina Desenvolvimento cerebral. Taxa geral de crescimento ‘Supra-renais Androgénio supra-renal Desenvolvimento das caracteristicas sexuais secun- darias nas meninas Testiculos _—_Testosterona Formago pré-natal dos genitais masculinos Na puberdade, responsavel pela seqdéncia de mu- dangas nas caracteristicas sexuais primérias ¢ se- cundérias masculinas varios Estradiol Desenvolvimento dos ciclos menstruais e das mamas Hipéfise Horménio do crescimento Taxa de maturagéo fisica e ativadores, Estimulo para secrego de outras glndulas envol- vidas no processo puberal Fonte: Helen Bee, (1997) p. 820. A PUBERDADE FEMININA O apatecimento do broto mamério (estdgio M2 de Tanner), chamado de telarca, 60 primeiro sinal da puberdade nas meninas e ocorre entre nove e dez anos. A papila . * Instituto de Psicologia - UFRGS : Biblioteca Oe ie } 120. Eizirik, Kapczinski & Bassols (orgs.) forma uma pequena saliéncia, a aréola aumenta de diametro e muda sua textura. No mesmo ano, porém mais tarde, surgem os pélos pubianos, que so longos e finos inicialmente se restringem a contornar os grandes labios (P2 de Tanner). Nessa mesma fase, tem inicio o estirdo puberal, que atingira seu maximo por volta dos 11 anos (10,8 + 1,4; média, desvio-padrao). Durante o pico de crescimento, as mamas passarao pelo est4gio M3 de Tanner, isto é, aumentarfio em volume. J4 os pélos pubianos, mais grossos ¢ escuros, estendem-se até a sinfise pibica (estdgio P3 de Tanner). O momento de desaceleracdo do crescimento coincide com a menarca ou primeira menstruagiio, ao redor dos 12 anos (12,2 + 1,2; média, desvio-padrao). ‘Nessa fase, os ciclos menstruais costumam ser irregulares e até mesmo anovulatorios, em fungdo da imaturidade do sistema. As mamas passam pelo estigio M4 de Tanner: continuam crescendo, ao passo que a aréola forma uma segunda saliéncia, destaca- da do contorno da mama. Os pélos pubianos jé tém padrao adulto, mas ainda nao chegam A superficie interna das coxas (estégio P4), Depois dessa idade, as meninas crescerao, em média, apenas 7 cm. Ao final da puberdade, a partir de 13 ou 14 anos, as mamas adquirem aspecto adulto, com a aréola reintegrada ao contorno da mama, e os pélos pubianos chegam 2 raiz das coxas. ‘A menarca é um momento critico na vida emocional de uma menina e de seus pais. As meninas esperam este momento como uma indicagao de que esto se desenvolvendo normalmente. Mesmo quando preparadas, muitas se sentem atetforizadas e perplexas com a possibilidade de reproduzir. A menarca pode le- var a uma nova proximidade entre a menina e a mie. A aceitagiio das mudangas fisicas e da menstruacaio depende da identidade sexual, da firmeza da colocagao do sexo pelos pais durante os primeiros anos da vida, da passagem pela meninice com uma identificagiio firme com a sua mie e das identidades grupais que conse- guiu durante o perfodo juvenil. O interesse pela transformagio continuada de seu corpo naturalmente preocupa a menina agora adolescente. Ela sente que a sua popularidade e oportunidade de atrair 0 sexo oposto serio marcadamente influen- ciadas pelas mudangas também de sua configuragio facial e pelos contornos emer- gentes de seu corpo. A PUBERDADE MASCULINA A primeira manifestagdo da puberdade no sexo masculino é a gonadarca — cresci- mento dos testiculos como resultado da proliferacio de tibulos seminiferos, bem como do aumento da vascularizagio. Um volume testicular maior que 4 ml cortesponde ao estdgio G2 de Tanner, em geral a partir dos 11 anos. A pele escrotal torna-se mais enrugada e avermelhada e quase nio se registra crescimento do pénis durante essa fase. Os pélos pubianos (estdgio P2 de Tanner) vém logo em seguida. A progressiio para os préximos estégios costuma ocorrer entre os 12 € os 13 anos: 0s testiculos seguem crescendo, o pénis aumenta em comprimento e os pélos pubianos se tornam mais espessos (G3, P3 de Tanner). Os valores maximos de crescimento situam-sé por volta-dos 14,5 anos nos meninos, de modo que, em O Ciclo da Vida Humana 121 turmas de sexta ou sétima séries, geralmente encontramos as meninas mais altas que os meninos, estes ainda com aspecto infantil. A situago s6 se inverteré por volta dos 15 anos. Durante todo 0 estirao, os testiculos seguem crescendo, 0 escroto se torna mais pigmentado ¢ o pénis aumenta em difmetro, com um desenvolvi- mento marcado da glande. A idade da espermarca (primeira ejaculacio) € muito varidvel e no se relaciona com a fase de maturagio. Alguns meninos podem apresentar uma ginecomastia (crescimento das mamas em homens) fisiol6gica entre os estégios G3 e G4, fase em que também se registra a mudanga de voz, gracas A ago da testosterona sobre as cartilagens laringeas. Durante esse perfodo, podem surgir as chamadas disfonias de muda, em que a mutagao dura mais do que os costumeiros seis meses, se prolonga para além dos quinze anos ou ocorre ape- nas no nivel organico, mantendo 0 rapaz uma.voz de falsete. A etiologia atribuida é quase sempre emocional, relacionada ao receio de assumir a vida adulta. A puberdade masculina termina, em geral, mais tarde, apenas por volta dos 16 anos. Pélos axilares e barba marcam os momentos finais. Os andrégenos, que provo- cam o crescimento dos pélos pubianos, axilares, faciais e corpéreos, também esti- mulam as: glandulas sudoriparas, resultando em um suor de odor mais forte. A acne é um outro aspecto muito caracteristico desse perfodo. ~ DESENVOLVIMENTO COGNITIVO Outro aspecto caracteristico também dessa fase da vida deriva das capacidades cognitivas recém-adquiridas, principalmente no que se refere ao pensamento abs- trato. Entre os 7 e 11 anos, ocorre 0 estégio das operagées concretas, segundo Piaget. A puberdade inicia nesse estdgio cognitivo. A crianca opera e age sobre 0 mundo concreto real e visivel. O pensamento é operatério, o que possibilita a atengZo e a manipulagao de uma vasta gama de informagées. A crianga j4 pode ver o mundo a partir da perspectiva de outros. Nesse estagio, também é utilizado © pensamento l6gico, ocorrendo a capacidade de serializar, ordenar e agrupar em classes com base em caracterfsticas comuns. A tarefa da crianga de 7 a 11 anos € organizar e remodelar o que ocorre no mundo real. Piaget chamou de “est4gio das operacdes formais” o que ocorre apartir dos 11 anos até o final da adolescéncia. Esse periodo do desenvolvimento cognitivo é caracterizado pela capacidade do jovemem pensar abstratamente, raciocinar dedutivamente e definir conceitos (pen- samento hipotético-dedutivo). O est4gio recebe esse nome em razio de o pensa- mento operar de maneira formal, altamente légica, sistemdtica e simbélica. As operagées formais também sio caracterizadas por habilidades em lidar com per- mutagdes e combinagGes. O jovem é capaz de compreender o conceito de proba- bilidade, tenta lidar com todas as relagdes e hipéteses possiveis, a fim de explicar fatos e eventos. Durante esse estagio a utilizagao da linguagem é complexa, segue as regras formais da légica e é gramaticalmente correta. O pensamento abstrato é demonstrado pelo interesse por uma ampla variedade de temas: filosofia, religido, ética e politica. O pensamento hipotético-dedutivo é a mais elevada organizacao 122 Eizirik, Kapczinski & Bassols (orgs.) da cognigiio, permitindo a formacio de uma hipstese ou proposta e sua testagem contra a realidade. O raciocinio dedutivo é caracterizado pela capacidade de ir do geral para o particular e trata-se de um processo mais complicado que 0 raciocinio indutivo, que é de ir do particular para o geral. Uma vez que os jovens conseguem refletir sobre seus préprios pensamentos e sobre os de outras pessoas, podem agora tender a se dar mais conta de seu comportamento. A medida que o jovem. tenta dominar novas tarefas cognitivas, pode haver um retorno do pensamento egocéntrico, mas em nfvel superior. Por exemplo, os adolescentes podem pensar que sio capazes de fazer qualquer coisa ou mudar o rumo dos acontecimentos somente com 0 seu pensamento. Eles tendem a superestimar 0 valor de suas solu- Ges cognitivas dos problemas. A essa supervalorizagdo do subjetivo sobre 0 ob- jetivo, Piaget chamou dé egocentrismo das operagées formais. Uma vez que 0s jovens conseguem refletir sobre seus préprios pensamentos e sobre os de outras pessoas, tendem a ser autoconscientes de seu comportamento. Nem todos entram_ no estdgio das operagées formais a0 mesmo tempo ou no mesmo grau. Dependen- do da capacidade individual, alguns podem simplesmente nao alcancar o estagio das operagées formais e continuarem na modalidade de operagSes coneretas por toda a vida. A EPOCA DA PUBERDADE O tempo que uma crianga demora para passar pela puberdade independe se a mes- ma comegou cedo ou tarde. Alguns estudos sugerem um inicio cada vez mais preco- ce da puberdade ao longo do século XX. Por exemplo, a menarca vem-se antecipan- do em trés a quatro meses por década na Europa nos tltimos cem anos. A época da puberdade tem sido considerada como fator de risco para doenga mental. A crianga pode sentir-se perturbada quando a chegada da puberdade ocorrer mais cedo ou mais tarde em comparagio com os seus pares. A menina que se desenvolve muito cedo teme tornar-se gigante e pode sentir-se constrangida por sua diferenga das amigas, bem como por seus sentimentos sexuais. Por outro lado, a menina com a puberdade tardia comega a pensar que jamais se tornaré-mulher e preocupa-se com © seu funcionamento endocrinolégico. Entre os meninos a maturagio precoce € usualmente mais agradavel do que o desenvolvimento tardio. Para eles, é um perio- do de interesse maximo por esportes competitivos: Existe uma hipétese de que a puberdade fora do tempo aumentaria as chances para o surgimento de sintomas psiquidtricos, Parece que meninas que amadurecem mais cedo tém uma taxa maior de sintomas depressivos, de transtornos alimentares e de comportamento. Os meni- nos com puberdade precoce ou tardia estariam mais propensos a serem abusadores de Alcool. Tem sido evidenciado por alguns estudos epidemiolégicos que meninas com maturagdo puberal precoce e meninos com puberdade mais tardia demonstram indices maiores de psicopatologia, indicando que esse padrio de crescimento re- quer mais atenciio por parte dos profissionais da drea da satide e pode representar um campo importante de oportunidade para a tomada de medidas preventivas. O Ciclo da Vida Humana 123 OS LUTOS DA PUBERDADE. A compreensiio dos fenémenos da puberdade ampliou-se 4 medida que 0 ponto de referéncia de estudo deixou de ser a comparacio com 0 adulto, sendo entio substi- tufda pela observagao do jovem pibere a partir de suas especificas situag6es vitais. A maturagdo puberal representa um momento de entrada no mundo adulto que, como um novo nascimento, desencadeia um processo adaptivo que inclui 0 Juto pela perda da identidade e do corpo infantil, bem como dos pais da infancia. As mudangas biolégicas da puberdade impdem a sexualidade genital ao individuo e Jevam ao luto pelo corpo da infincia agora perdido. O luto a ser elaborado pela perda do corpo infantil inclui o abandono desse corpo, pois os caracteres sexuais secundérios se impdem (menstruagiio e sémen) assim como 0 novo papel a ser assu- mido frente ao sexo oposto e a procriagio. Isso tem como conseqiiéncia também uma definig&o sexual e o abandono da fantasia de bissexualidade ou de poder per- tencer a ambos os sexos, pois a busca do parceiro do outro sexo significa elaborar a fantasia da existéncia de ambos os sexos em si mesmo. Durante o processo de luto, as defesas contra essas perdas podem surgir de formas mais ou menos adaptativas para lidar com as ansiedades frente as mudancas rdpidas do corpo versus as psiqui- cas mais vagorosas até que um equilibrio possa novamente ser estabelecido. Assim, 0 jovem piibere podera apresentar momentos de negacio, estados de estranheza cansigo mesmo como despersonalizagao, retraimento alternando com momentos de satisfagdo com seu novo corpo e novas atribuigdes sociais. Segundo Aberastury e colaboradores (1981), somente quando 0 adolescente consegue aceitar em si a existéncia de dois aspectos simultdneos — 0 de crianga e 0 de adulto — pode comegar a aceitar de maneira flutuante as mudangas do seu corpo e comega a surgi a sua nova identidade. A elaboracdo do luto pelo corpo infantil e pela fantasia do duplo sexo conduz a identidade sexual adulta, 4 busca de parceiro e a criatividade. O luto pelos pais da infancia ea relago infantil de dependéncia vio sendo abandonados progressivamente, e uma visio mais realistica dos pais como individuos deverd surgir. Isso representa a dificil tarefa de mais uma vez separar-se durante 0 ciclo vital tanto objetivamente, por meio do aumento da independéncia, como das fantasias em relagdo as figuras parentais como provedores de seguranca. ‘Muda assim a relacdo com os pais, que passa a apresentar caracteristicas de relagdes adultas de igual para igual e diminuigio das idealizagées, aceitacio de qualidades e defeitos simultaneamente em ambos os pais, por exemplo. A conquista da identida- de e a independéncia levam a integragio no mundo adulto'e a comportamentos coerentes no mesmo. A maior ou menos elaboragao desses lutos levard ao estabe- lecimento ou nao de pontos de fixago ¢ posteriores regressdes aos mesmos, com conseqiiente predisposicao maior ou menor A satide ou 2 doenca mental. Para que as mudangas possam ser absorvidas com maior tranqiiilidade nessa fase do desen- volvimento humano, é importante o fator tempo, ou seja, que as mudangas psiqui- cas ocorram gradualmente, pois s6 assim ocorrer4 uma elaboragiio verdadeira des- ses lutos, o que & necessfrio para a continuidade do amadurecimento rumo a uma vida adulta saudavel. _ 124 Eizirik, Kapezinski & Bassols (orgs.) OS RITUAIS DE PASSAGEM O ciclo vital humano caracteriza-se por um longo processo de maturagio e trans- formagio. Os ritos de passagem sao ceriménias e rituais que ocorrem nos pontos de transig&o, onde hd intensa mudanga de uma condigio a outra na vida de um individuo ou grupo social. A puberdade, uma vez definida como a idade ou o perfodo em que a pessoa é, pela primeira vez, capaz de execer atividade sexual reprodutiva, sempre foi marcada por ritos e‘celebragées nas diferentes culturas ao longo da histéria. No presente, as sociedades tribais ainda mantém tais ritos, mais marcadamente, pois, para a sociedade industrializada, a puberdade é vista como um evento mais com- plexo e parte de um aspecto da adolescéncia. No inicio do século XX, o psicdlogo americano G. Stanley Hall definiu, pela primeira vez, a adolescéncia como um estigio distinto do desenvolvimento huma- no, Isso afetou os ritos de passagem que focavam a tarefa de atravessar os limites entre a infancia e a idade adulta como a passagem por um portal. Dessa forma, na cultura ocidental, a transigio da meninice para o mundo adulto passou a ser vista como uma série de eventos que cobrem um longo perfodo de tempo, levando a uma atenuagao dos ritos de passagem. Porém, de uma forma ou de outra, os rituais de iniciagio social est&o presentes em todas as sociedades, sejam mais ou menos pro- nuncjados e com caracterfsticas préprias, uma vez que puberdade fisiolégica e pu- berdade social so eventos diferentes e nao necessariamente simultineos. Por exem- plo, observacées antropolégicas destacam que, curiosamente, quando inexistentes de maneira formal, 0s ritos so criados pelo préprio grupo de adolescentes na forma de provas para um novo membro ou para o grupo em geral, incluindo tarefas de risco ou deimonstragdes de coragem. Van Gennep descreveu os estdgios dos ritos de passagem: separaciio quando o individuo é privado ou afastado de suas fungdes normais por meio de diferentes costumes por um perfodo de tempo em que se dé a transigio, seguido pela incorporacio quando o individuo é trazido de volta para o convivio social por outros rituais ou ceriménias agora assumindo o seu novo papel ou status social. Em sociedades tribais e orientais, inicio da adolescéncia é clara- mente assinalado por esses ritos que, em geral, envolvem forca e bravura para 0 menino e isolamento para as meninas. Os ritos puberais sinalizam para a tribo que 0 jovem homem ou mulher atingiram a idade de responsabilidade, fertilidade e produ- tividade e causam uma impressao permanente em seus participantes. Os ritos puberais podem assumir uma grande variedade de formas. No inicio dos tempos, simboliza- vam a ligag%o do homem com a terra, saudando a sua importincia para a sobrevi- véncia. Assim, o jovem homem deveria correr grandes distincias territoriais e mos- trar suas habilidades, enquanto a menina, para se tornar mulher, deveria entrar terra a dentro, como em uma caverna ou uma grande escava¢io, Comum a todos os ritos dessa natureza, sio as pinturas ¢ as vestes especiais, os novos nomes, as instrugdes especiais dos mais velhos sobre as leis sagradas e as prdticas costumeiras de sua sociedade. Dessa forma, a crianga é introduzida no privilégio de ser adulto. Os ritos buscam também a acentuaciio das diferengas entre homens e mulheres ¢ 0 fortaleci- O Ciclo da Vida Humana 125 mento do tabu do incesto. Por exemplo, em algumas tribos, essa passagem significa proibi¢do para falar com membros do sexo oposto da mesma familia até que um deles se case com alguém de outra. Nas sociedades mais primitivas, esses rituais envolvem mutilagSes, enquanto nas modernas o final da meninice ¢ os requisitos para a idade adulta nao estiio claramente definidos, o que pode gerar um conflito mais prolongado, as vezes, confuso, para atingir uma situagao de adulto indepen- dente. Em geral, so ritos que simbolizam a separagio do mundo “asexual” da infancia para a incorporagao em um mundo adulto com atividade sexual. Os rituais tém varias fungGes tanto para o individuo que 0 atravessa como para o seu grupo social, como alivio das anguistias despertadas pela perda ou luto da situacdo anterior bem como pela introducio e adaptago & nova. : COMENTARIOS FINAIS A fase pré-puberal caracteriza-se pelo surto de crescimento, iniciando-se as trans- formagées corporais e, conseqlientemente, as psiquicas. Na puberdade, as mudancas de tamanhé e contornos impulsionam as criangas para a nova fase da vida que des- ponta, a adolescéncia. Ao ser desencadeada a metamorfose, ocorre uma promogao da diferenciagao entre os sexos e a capacidade para a reprodugiio. E a adolescéncia inicial que engloba a puberdade; as alterages desenvolvimentais so maiores em “Yodos os aspectos, evocando uma ampla gama de sentimentos ¢ reagdes que passam_ pela satisfaciio e a angiistia do crescimento bem como pelo temor da seqliéncia de eventos, nessa fase, inteiramente novos. O aspecto mais peculiar desse periodo é 0 inicio do abandono da identidade infantil com a conseqiiente separaciio e modifica- ao dos vinculos parentais antigos e conhecidos. Meninos e meninas voltam-se com mais vigor para a busca de lacos afetivos extrafamiliares. A progressao gradual da crianca para a maturidade e a independéncia é pertur- bada pela transformagiio répida da puberdade que muda o fisico, a forga dos impul- sos € as capacidades intelectuais, tudo isso requerendo profunda reorganizacao intrapsiquica. A crianca é impelida para o estado adulto devido as mudangas em seu tamanho e contornos, necessitando enfrentar uma nova pressao interior que cria sentimentos e anseios estranhos que acrescenta uma impuléividade e fora irracio- nal com a qual teve pouca experiéncia, mas que tem de enfrentar por si. Com tantas mudangas corporais, surge um estado emocional, muitas vezes, conturbado, pois o ptibere deve despedir-se de seu corpo infantil e modificar a sua auto-imagem corporal, adquirindo um novo conhecimento de si mesmo. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS ABERASTURY, A.; KNOBEL, M. Adolescéncia normal. 5.ed. Porto Alegre: Artes Médi- cas Sul (Artmed), 1986. p.13-24. BEE, H. O ciclo vital. Porto Alegre: Artes Médicas Sul (Artmed), 1997. 126 Eizirik, Kapcezinski & Bassols (orgs.) FREUD, S. (1905). Trés ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: Edigdo Standard das Obras Psicolégicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago GRABER, J. etal. Is psychopathology associated with the timing of pubertal development? Journal of Academy Child Adolescent Psychiatry, n.36, p. 1768-1776, 1997. GREENSPAN, S.I.; POLLOCK, G.H. The course of life. Adolescence. v. IV. International Universities Press, 1991. KALINA, E. Psicoterapia de adolescentes: teoria, técnica e casos clinicos. 3.ed. 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Dos desejos corporais, sexual é o que mais os arrebatae no que evidenciam a falta de autocontrole. So mutaveis e voliiveis em seus desejos que, enquanto duram, so vio- ‘Tehtos, mas que passam rapidamente. [...] Em seu mau-humor, com frequéncia, ex- pdem o melhor do que possuem, pois seu alto aprego pela honra faz com que no suportem ser menosprezados e que se indignem, se imaginam que se os trata injusta- mente. Mas, se bem amam a honra, amam mais ainda a vit6ria; pois os jovens anseiam ser superiores aos demais, e a vit6ria é uma das formas de superioridade. Sua vida nao transcorre na recordagao, mas sim na expectativa; j4 que a expectativa aponta ao futu- 10 e arecordagio ao pasado, e os jovens t@m um grande futuro & sua frente e um breve passado por trés. (...] Seu arrebatamento e sua predisposigdo & esperanga os tornam mais corajosos que os homens de mais idade; arrebatamento coloca os temores de 128 Eizirik, Kapczinski & Bassols (orgs.) lado ¢ a esperanga cria a confianga; ndo podemos sentir temor se 20 mesmo tempo sentimos cdlera, e toda a expectativa de que algo bom vird nos torna confiantes. [...] ‘Tem idéias exaltadas pois a vida ainda nao os humilhou, nem lhes ensinou suas neces- sérias limitages; ademais, sua predisposigdo A esperanga os faz sentirem-se equipara- dos as coisas magnas, e isto implica ter idéias exaltadas. Preferirao sempre participar em ages nobres a agbes titeis, j4 que sua vida est4 governada mais pelo sentido moral do que pela razdo. E enquanto a razio nos leva a escolher o titil, a bondade moral nos leva a escolher o nobre. Amam a seus amigos, conhecidos e companheiros, mais que 0s adultos, porque gostam de passar seu dia em companhia dos outros. Todos seus erros apontam na mesma diregio: cometem excessos e atuam com veeméncia, Amam demasiado e odeiam demasiado, e assim so com tudo. Créem que saber tudo e sen- tem-se muito seguros com isto; este é, em verdade, o motivo de que tudo fagam em excesso, Se causam danos aos outros, é porque querem rebaixé-los ¢ nio causar-Ihes dano real. [...] Adoram a diversio e, por conseguinte, 0 gracioso engenho que é a insoléncia bem educada. (Aristételes, Ret6rica, séc. IV a.C. apud Blos, 1979) Como se vé, existem algumas invariantes, mantidas ao longo dos séculos, que repousam na tiecessidade da nova geracao, visando A aquisig&io de uma iden- tidade prépria e discriminada da geragao que a antecede, a contestar o mundo adulto e suas regras. Essa atitude baseia-se em um sentimento imprescindivel de auto-suficiéncia e grandiosidade. Se, por um lado, essa contestacao gera uma si- tuagio de conflito, de outro, tem como subproduto uma renovagio cultural indis- pensavel. : O adolescente, do ponto de vista da psicandlise, é um sujeito em vias de transformagio, imerso em um processo profundo de revisdo de seu mundo inter- noe de suas herangas infantis, visando 4 adaptagiio ao nov corpo, as novas pulsées, decorrentes da puberdade. A fim de ilustrar isso, serd utilizada uma imagem cria- da por um jovem adolescente, em pleno processo puberal (Figura 9.1). O vulcdo, de forma evidentemente falica, ilustra, de um lado, a perplexidade i com 0 desenvolvimento dos genitais e com suas novas secregées e, de outro, o quanto a puberdade é sentida como uma erupgao vulcdnica interna de forcas des- conhecidas, temidas, mas ao mesmo tempo renovadoras. O curioso nesse desenho Figura 9.1 O Ciclo da Vida Humana 129 € 0 que o jovem paciente de quase 11 anos comentou a respeito do que se passava na base vulcdo: “O problema é que perto do vulcio tinha criangas jogando bola e elas nio estavam se dando conta do perigo que corriam”. Parece que 0 nosso adolescente inicial, com esse comentétio, expressava o quanto sentia que a erupciio da puberdade o langava na adolescéncia e ameacava a sua infancia, ou seja, estava deixando de ser crianga e pressentia que perderia, ou deixaria para tris, uma série de caracteristicas e padrdes de comportamento e relacionamento préprios da mes- ma. Evidencia-se 0 caréter de fratura, de cesura, que adquire a puberdade. O PROCESSO ADOLESCENTE Era uma vez uma linda princesa que, ao picar seu dedo no fuso de uma roca, mergulhou em um sono profundo... Era a maldigio da bruxa malvada. Seria preci- so que seu grande amor — o belo principe — chegasse até ela, a beijasse, para que ela despertasse. Ele precisou superar diversos obstculos: a bruxa mde seus varia- dos meios de bloquear seu acesso até a princesa. Lutou contra dragdes, barreiras de espinhos até que, finalmente, chegando até a princesa, a beijou, ela despertou ©, entéo, casaram e foram felizes para sempre. Parece que esse classico da literatura infantil ilustra magistralmente o pro- cgsso e as'vicissitudes do desenvolvimento desde a puberdade, ou seja, de todo o processo de transformagées corporais, até a vida genital heterossexual. Confron- tado com 0 novo corpo advindo das transformagées da puberdade — no conto, a menarca representada pelo sangue da picada -, com as novas pulsdes e com as novas posturas exigidas pelo desenvolvimento, 0 jovem se volta para o mundo interno (0 sono profundo), a fim de superar as proibigdes dos objetos internos introjetados ao longo do desenvolvimento infantil. Esse profundo mergulho para dentro do mundo interno permitiré que se realize uma revisio radical das relagdes do sujeito com os objetos internos, com os pais da infincia e suas proibicdes. O Jovem, tal como o principe do conto de fadas, deverd embrenhar-se em uma ver- dadeira luta contra esses objetos arcaicos, enfrentar as barreiras por eles erigidas para impedir 0 seu acesso a genitalidade e superd-las. A diferenga é que essa luta se trava no mundo interno e é possibilitada por essa virada rumo ao interior. Tal “recolhimento” ao mundo interno apresenta-se de diversas maneiras: os devaneios, os momentos de isolamento em seu quarto, os didrios, os sentimentos de irrealidade. Mas € importante destacar que esse fendmeno evidencia o incre- mento do narcisismo prdprio dos primeiros momentos da adolescéncia. O piibere volta-se para dentro de si. Preocupa-se com 0 que se passa no seu interior, seja no sentido corporal, seja nas suas relagées de objeto internalizadas e nas identifica- ges realizadas na resolugio do Complexo de Edipo e consolidadas na laténcia, seja com as proibigdes herdadas da infancia no tocante & masturbago e as mani~ pulagGes corporais. E apenas em um momento posterior que conseguiré voltar-se para 0 outro. Nesse sentido, acredito que se pode dizer que a evolugio das rela- 6es amorosas na adolescéncia (Levy, 1995) se dd no sentido do narcisismo para 130 _Eizirik, Kapezinski & Bassols (orgs.) adescoberta do outro. De certo modo, esse novo “nascimento”, ou o nascimento desse novo sujeito, repete os primeiros passos do desenvolvimento: evolui do narcisismo ao amor objetal, do auto-erotismo a genitalidade. E importante frisar que, do ponto de vista da teoria das relagdes de objeto, esse narcisismo, pode ser entendido como 0 relacionamento com os objetos do mundo interno e nao a ausén- cia de relacio objetal. Tentarei, rapidamente, abordar algumas das vicissitudes do narcisismo na adolescéncia haja vista sua relevancia nesse momento da vida. Se- ria poss{vel, talvez, ilustrar graficamente as trajetérias do narcisismo (0 amor a si préprio) e do amor objetal (a capacidade de amar 0 outro), ao longo da adolescén- cia, da seguinte maneira: ‘Adol. Inicial " Adol. Média“ Adol. Final Figura 9.2 Como se pode observar no grafico, tanto o amor objetal como o narcisista, em nenhum momento, estio no nivel zero, porque sempre hé algum grau de amor asi ou aos outros, a nfo ser, talvez, em estados muito patolégicos que nao interes- sam no momento. Ao entrar na adolescéncia, ou — se preferivel — ao final da laténcia, a curva do amor objetal esta em um valor elevado, pois 0 investimento afetivo e a valorizagio dos pais nesse momento da vida sao elevados. A crianga, ao longo da laténcia, idealiza seus pais, imaginando.ndo s6 que sfio grandes fortes, mas também que sabem tudo que é preciso saber. Para Meltzer (1978), a adolescéncia inicia-se justamente quando ocorre uma fratura na crenga da oniscién- cia dos pais, o que, somando-se ao préprio aumento de estatura do jovem, fazcom que passe a enxergar os pais de outra perspectiva, de cima para baixo. Com esse passo evolutivo, o jovem é langado a um estado mental em que sio proeminentes as ansiedades confusionais que poderfamos sintetizar e imaginar da seguinte for- ma: Se meus pais néo sabem tudo, quem sabe? Eu devo saber. Ent&o, quem sou? Sou grande ou pequeno? Sou homem ou mulher? Adulto ou crianca? Boa parte da adolescéncia consistir4 na tentativa de resolver essas quest6es, bem como nas defesas que sio erigidas contra a dor psiquica resultante desse estado. Uma das defesas contra os sentimentos confusionais e depressivos (solidio ¢ desamparo), decorrentes do afastamento dos pais, passa a ser a idealizagdo de si proprio. O O Ciclo da Vida Humana 131 pico desse processo ocorre na adolescéncia média, quando o amor e a idealizagao de si préprio chegam ao seu maximo. Entretanto, espera-se que, ao aproximar-se o final da adolescéncia, 0 narcisismo possa decrescer para dar lugar novamente a0 amor objetal, mas agora no tanto aos pais, e sim a objetos exogamicos, visando inclusive 4 formagdo de novos nticleos familiares. Pode-se entender o incremento do narcisismo a partir da puberdade sob di- versos angulos: como o aumento da preocupacio consigo mesmo, antes referido; como a retirada de catexias dos objetos infantis e seu direcionamento para o ego, conforme comenta Blos (1962, 1965); entretanto, de todas as formas, ele se cons- titui em um elemento fundamental no sentido de capacitar o adolescente a enfren- tar a solidao que decorre da autonomia crescente e de fortalecer a frgil identida- de desse “novo” sujeito. A valorizacio riarcisica do self passa a ser uma forma importante de lidar com as ansiedades depressivas que advém da perda da condi- ¢4o infantil e dos “pais da infancia” (Aberastury, 1978), comas-aisieunaey confusionais decorrentes.da perda na crenga da onisciénci is (Meltzer, 1978) e das ansiedades parandides mobilizadas pela luta que se trava no mundo interno. Tal intensificagdo do narcisismo, longe de constituir-se em algo patolégi- co, é uma reordenago psiquica imprescindivel que ocorre a servigo do desenvol- vimento e deixard sua marca de diversos modos na transi¢ao adolescente. Tenta-se agora, sinteticamente, comentar a trajetéria de cada um dos perso- snagens dessa histéria: 0 menino, a menina e os pais, segundo a ética escolhida para fazer os comentirios. A ADOLESCENCIA NO MENINO O jovem rapaz, assolado pela irrupgao puberal, além de ver-se inundado por um aumento indiscriminado das pulsées (de nivel oral, anal e genital) (Blos, 1985), assiste ao desmonte da estrutura da laténcia, o que leva a um incremento impor- tante de ansiedades paranides, depressivas e confusionais. Além de sentir-se frdgil do ponto de vista de sua masculinidade emergente, tem presente em sua mente a figura feminina equacionada com a mie filica e onipotente da infancia que, no conto de fadas antes referido, é representada pela mae/bruxa, toda pode- rosa e gigantesca, Isso faz com que as mulheres, de modo geral, sejam muito temidas e evitadas nos primérdios da adolescéncia. Em troca, as figuras masculinas, o pai, a “‘ganguezinha” homossexual com todas as suas provas de poténcia e de forca, tormam-se importantes elementos de reforgo narcfsico e de consolidagdo da identidade masculina. E preciso que se esclarega que, quando se fala em gangue homossexual, no se est4 referirido a estados psicopatolégicos, mas apenas 4 referéncia de que o investimento libidinal amoroso'e a idealizagio dirigem-se a pessoas do mesmo sexo. A aproximacio com figuras masculinas idealizadas tem a finalidade de permitir 0 fortalecimento, por meio da introjegao, do sentimento de ser masculino. No conto de fadas men- cionado, isso € aludido por meio da espada/pénis que é dada ao principe para 132 Kizirik, Kapczinski & Bassols (orgs.) equip4-lo em sua luta contra a mie-bruxa-filica. As relagdes amorosas nesse mo- mento sao de cunho homossexual, narcisista, de modo eminentemente sublimado, embora possam, em alguns momentos, ocorrer atuagdes homossexuais. Este € um dos riscos que observamos nesse momento do desenvolvimento: de que o jovem tenha A sua volta adultos problemiticos que, vendo-se “‘amados” pelo adolescente inicial, abusem dele sexualmente. O grupo de pares vai, gradualmente, assumin- do importéncia crescente, tanto no sentido recém aludido, como também no sen- tido de “socializagdo da culpa”, na medida em que as “transgressdes” —e ai h4 um deslocamento das transgressées feitas no territério das fantasias masturbatorias — deixam de ser apenas do individuo e passam a ser coletivas, com a responsabili- dade compartilhada. Isso ter4 o importante efeito de atenuar a rigidez superegdica herdada da infancia, o que, juntamente com as-novas identificagdes, capacitaré o sujeito a lidar com as tarefas do seu novo momento evolutivo e, posteriormente, animar-se a se aproximar das meninas. Uma vez tendo o jovem atenuado a rigidez superegéica herdada da infancia, ou seja, superado as proibigées infantis no tocante 4 masturbagao, 4 exploragao do corpo e aos jogos sexuais, e também A medida que se sente mais afirmado em sua incipiente identidade masculina, inicia-se a aproximagao com 0 sexo oposto. As primeiras aproximagdes, em momentos posteriores da adolescéncia — a inter- minvel lista de meninas com quem jé ficou ~, tém também um objetivo basica- mente narcisista de reforgo da auto-estima e do sentimento de masculinidade, além de constituirem-se em experimentacées que ajudariio na tarefa de conheci- mento do corpo. Nao ha ainda, nessas experiéncias, a ternura ¢ a consideragaio pelo outro enquanto objeto de amor. Talvez seja esse o momento maximo de in- cremento do narcisismo, de modo que, agora, nos deparamos com 0 adolescente onipotente, arrogante e portador da onisciéncia que na laténcia era atribuida aos pais. Esse estado de narcisismo maximo, se é que se pode chamé-lo assim, permitiré ao jovem nfo sé lidar com o medo, a solidio e a ansiedade decorrente da desi- dealizagio e do afastamento dos pais da infancia, como também realizar as expe- rimentagdes imprescind{veis do processo de amadurecimento. Sentindo-se mais potente ¢ podendo tolerar a aproximagio feminina, e, ao mesmo tempo, necessitando dessa aproximagao a fim de ter um continente para projetar os seus aspectos femininos, 0 adolescente subitamente surpreende-se com um novo sentimento, que é 0 de amor, desejo e ternura por uma mulher. O afastamento da “gangue” homossexual e a aproximagao heterosexual é um momento marcante da evolugao adolescente e gera reagdes de censura ao que se afasta, por parte dos remanescentes. Essas primeiras relagdes amorosas heterossexuais da adolescéncia, além de evidenciar a queda progressiva do narcisismo e do incremento do amor ao outro, dio inicio a uma sucesso de tentativas de elaboracio da reativaciio dos dese- jos e das fantasias edipianas, sendo que as primeiras escolhas relacionam-se segui- damente de modo bastante direto com as figuras parentais do sujeito. Ciro, um jovem de 16 anos, buscou tratamento em fungio de intensas ansie- dades hipocondriacas, sentimentos de irrealidade e uma importante ansiedade de separaco que praticamente o incapacitava de freqiientar a escola e de conviver O Ciclo da Vida Humana 133 com seus pares, apesar de ser ttm jovem vivaz, inteligente e de fécil relaciona- mento. A intensificagao'de sua sintomatologia ocorreu quando foi confrontado com 0 segundo processo de separacio e individuagdo (Blos, 1965). No decorrer de sua psicoterapia, foram analisadas suas ansiedades de separagiio como estando vinculadas a um desejo e um temor de fundir-se com a mie, bem como com seu sadismo e controle para com ela e com 0 pai. Evoluiu relativamente bem, voltou a freqiientar a escola, retomou o convivio com os amigos e recuperou a possibili- dade de separar-se dos pais, inclusive em viagens mais prolongadas. No entanto, iniciou aproximagdes com meninas de um modo bem peculiar. Comegou a culti- var varias “amigas” fntimas com as quais tinha muita convivéncia. Passavam as tafdesjuntos, permitiam-se alguma intimidade, como deitarem-se um no colo do outro, abragos ternos, mas ele dizia nao sentir “tesio” por elas. Elas apaixona- vam-se por ele, ele desenvolvia um sentimento de posse sobre elas, mas nao che- gavam sequer a “ficar”. Parecia que a necessidade de passar as tardes com a mie € ter a certeza de seu amor, bem como de dominé-la, estava sendo atuada nessas outras relagdes. Depois de algum tempo, apaixonou-se por Raquel, e comegaram a namorar. Desenvolveu uma verdadeira obsessio pela nova namorada. Consu- mia-se em pensamentos obsessivos sobre se era amado por ela ou n&o, embora 0 terjha aceito em namoro e conviver com ele, etc. Entretanto, por caracteristicas Prpprias, Raquel nao era muito calorosa,tnantendo, efetivamente, alguma distan- ~cia afetiva, o que corroborava os temores de Ciro. Ele passou a viver em fungiio dela, afastou-se novamente de.seus amigos e de qualquer outro interesse para mergulhar jntegralmente nesse relacionamento quase fusional e nas cavilacdes a respeito dos'sentimentos‘de Raquel por ele, bem como se seria abandonado por ela ou nao, Essa rdpida vinheta ilustra o quanto as primeiras relagées amorosas da adoleseéncia-servem para a reelaboragdo tanto de ansiedades muito primitivas como de vivéncias edipianas, Nesse sentido, so relagdes amorosas ainda tingidas pelo narcisismo, na medida em que 0 sujeito ainda se relaciona muito com objetos de seu mundo interno. A ADOLESCENCIA NA MENINA 2 Como sera visto agora, a trajetéria seguida pela menina em seu desenvolvimento psicossexual adolescente € significativamente diferente. A adolescente, mobilizada pela menarca e pelas novas sensagSes pélvicas advindas das génadas em funciona- mento, sente-se ainda mais atraida a voltar-se para seu interior. Pela primeira vez em seu desenvolvimento, pode formar-uma imagem mais nitida de seu coipo femi- nino, “sentir”, de alguma forma, os 6rgiios internos. O menino, pelo fato de a genitélia ser externa, desde o inicio do desenvolvimento pode manipulé-la e, assim, formar uma representagao mental da mesma. E somente a partir da puberdade, em fungaio dessas sensacGes cenestésicas, que a menina poderd formar representagdes mentais de sua genitélia interna, o que serd ainda mais facilitado pelo desenvolvimento da capacidade para pensamento abstrato que a habilita a formar uma representaciio a 134 Eicirik, Kapezinski & Bassols (orgs.) partir de sensages internas (Pault, 1986). Em fungao de tudo isso, sente-se, finalmen- te, iniciada no “mistério” do interior do corpo feminino, o que € motivo de muito orgulho e de sentimentos de superioridade sobre os meninos, que ficam—e sentem- se muitas vezes — excluidos de tal “segredo”. Assim como na Bela Adormecida, a jovem volta-se, entdo, com mais intensidade para 0 mundo interno, torna-se muito ‘mais introspectiva e dedica-se intensamente aos devaneios. Entretanto, no caso dos ‘meninos, se a aproximagio com o pai é vista como uma forma de reforgo da identidade masculina, no caso das meninas, embora exista uma aproximagio com a mie, ela é muito mais temida pelos receios de fusao primitiva. Tal diferenca fundamenta-se conforme segue. Habitualmente, no desenvolvimento normal, a mie é o primeiro objeto de relacionamento libidinal e 0 pai é 0 segundo. No inicio da infancia, a partir “do desmame e do processo de separaciio e individuagao (Mahler, 1979), a crianga individua-se da mie e aproxima-se do pai, tendo esse movimento um forte significado evolutivo. Por ocasiiio da puberdade e do inicio da adolescéncia, aproximar-se da mie assume o significado de retorno ao primeiro objeto, despertando uma angistia de estar regredindo’A relagio mais primitiva da vida. A menina volta-se, entio, antes, e de modo mais decisivo, para a heterossexualidade. Oreforgo da feminilida- de incipiente ocorrerd, portanto, por meio de uma acentuagao de caracteristicas fe- mininas e da aproximacao sedutora de'figuras masculinas. Assistimos a jovens pi- beres goquetes, pequenas “mulheres”, interessadas em rapazes ¢ homens mais velhos. - Se, no caso dos meninos, vemos a idealizagao de atletas como modelos de identificagfio e encontramos em seus quartos, por exemplo, pOsteres de grandes jogadores de basquete ou futebol, no caso das meninas, veremos pésteres de ato- res, gals, que facilmente transformam-se em paixées plat6nicas. Também no caso das adolescentes iniciais, hé o risco de envolverem-se em relagGes sexuais prema- turas, ou serem vitimas de abusos sexuais por parte de homens adultos que se aproveitam da facilidade com que elas se enamoram de homens mais velhos, des- Jocamentos e sublimagdes de suas fantasias edipicas. ‘Também para elas, as primeiras relagdes amorosas terdio um carter mais narcisico de afirmagao de sua ferninilidade e de elaboraco das relagdes primitivas tanto coma mie quanto com o pai. O filme O amante, de Jean Jacques Annaud— um verdadeiro estudo da psicopatologia da sexualidade femninina na adolescéncia —, parece ilustrar bem o que se est comentando. A personagem principal, confrontada com a solidio, a tristeza e os sentimentos de abandono, primeiramente conforta-se numa relagio homossexual, de matizes maternais, com sua colega de internato, mas — até pelo carter regressivo dessa relagao — volta-se com muita decisdo para a heterossexua- Tidade com 0 amante, em uma relacio proibida, de cunho incestuoso. Poder-se-ia dizer que hé uma atuagio das fantasias edipicas, em vez de sua elaboraco por meio do deslocamento ou da sublimagao, o que com freqiiéncia ocorre em adolescentes com dificuldades emocionais mais intensas. Em ambos os sexos, hd uma evolugao que vai das primeiras experimentagées (0 ficar), em que o que é buscado € mais uma afirmagio narcfsica e o conhecimento corporal, até o aparecimento dos namoros propriamente ditos, dominados por um sentimento de ternura e de posse sobre 0 outro. Mas é interessante observar como se O Ciclo da Vida Humana 135 dé um outro tipo de evolugao na qualidade desses namoros. Inicialmente, os namo- ros so revivescéncias muito préximas da relagao do adolescente com seus objetos originais. So marcados por uma intensa dependéncia, idealizagao, vividos em meio a.uma grande paixdo ¢ acompanhados, inicialmente, pelo sentimento de haver des- coberto — ou redescoberto, poder-se-ia dizer — 0 grande amor de sua vida. Essas relagGes, ainda tao préximas dos vinculos comos objetos originais, tanto podem ser Por substituigdes diretas — 0 novo objeto sendo dotado das mesmas caracteristicas do objeto original —, como pelo seu oposto — 0 novo objeto contrariando todas as expectativas do objeto original, Isso denota que ainda predomina a luta (ou a rela- ¢40) interna com o mesmo. Nara, uma adolescente de 15 anos, que fora uma menina com fobia escolar e intensa ansiedade de separagio da mie, tendo tido uma relagao de muita depen- déncia passiva da mesma, veio a tratamento trazida por seus Pais, pois estes esta- vam surpresos e estupefatos com o modo como ela vinha se comportando ultima- mente. Tornara-se irreverente e rebelde. Arrumara um namorado, “um Joao-Nin- guém”, no dizer do pai (era, na verdade, um estudante boliviano um tanto perdido na vida, usudrio de drogas, o que aumentava ainda mais a preocupago dos pais). Contudo, o precipitante da procura foi um acting de Nara. Ela pedira para retornar antes de um fino balneérioem que passavam uma temporada de veraneio, alegan- do uma festa de aniversdrio de uma amiga. Os pais acederam. Mas ao chegarem, surpreenderam-se quando a governanta lhes contou que, nos quatro dias que fica- ra em Porto Alegre, Nara trouxera o boliviano para dormir em casa com ela, na suite dos seus pais, ¢ quando foi confrontada pela governanta de que nfio deveria fazer aquilo, dissera-lhe: “a vagina é minha e eu fago com ela o que eu bem entendo”. Era evidente que tanto o namorado quanto a sua genitélia estavam sen- do usados em sua luta para tentar negar os sentimentos de dependéncia e de soli- dao em relagio aos pais. A relaciio com o namorado tinha um cardter eminente- mente edipico: sob o olhar da governanta/mie, tomara conta da camara nupcial para manter relagdes com um objeto que era 0 oposto do pai. Uma vez tendo chegado ao estabelecimento de relacionamentos heterosse- xuais, os adolescentes evoluem em um ciclo que oscila entre a paixo e o luto. Apaixonam-se, pois o novo objeto, no inicio um representante muito proximo dos objetos originais (pai e mie), é idealizado. E sentido como tendo os atributos de perfeigdio maxima que, na laténcia, eram atribuidos aos pais. Entretanto, a seg € desidealizado, sendo vivido um novo luto. Essa sucessio de paixdes e lutos permite que 0 sujeito va elaborando, progressivamente, o luto maior decorrente da rentincia aos pais da infancia. A cada passo dessa evolucio, os novos objetos estdo progressivamente mais distantes dos objetos originais incestuosos. Espera- se que, ao final da adolescéncia, a pessoa amada, embora ainda se relacione de alguma forma aos pais na fantasia inconsciente, j4 esteja bem distanciada destes e seja amada também por suas préprias qualidades e caracteristicas. Vé-se, até este momento, as caracteristicas da evolucao psicossexual do ado- lescente, com a evolugao de seus investimentos libidinais entendidos na trajet6ria evolutiva que parte do narcisismo para chegar ao amor objetal, e das atividades 136 Eizirik, Kapczinski & Bassols (orgs.) auto-eréticas (masturbagio) até as prdticas heterossexuais. Ha outras questdes centrais no processo adolescente que, de certa forma, jd esto sendo abordadas implicitamente, as quais dizem respeito A formagao da identidade e A importancia das relagdes grupais ¢ familiares. O GRUPO Frente ao sentimento de desamparo oriundo da desilusdo com os pais, a necessidade e ao desejo de adquirir maior autonomia e identidade propria, & solidao decorrente de sua nova posigao, & perplexidade e As ansiedades relativas ao novo corpo ¢ 4 nova forga das pulsées, o adolescente, na visto de Meltzer (1978), passard a oscilar entre quatro comunidades. De um lado, esses “ambientes”’ em que 0 jovem circula funcionam como refiigios psiquicos e, de outro, siio uma forma de organizar a con- fusio e evitar os sentimentos de solid’o e.abandono que novamente emergem. Sio eles, a familia, o mundo adulto, os adolescentes ¢ 0 isolamento. A normalidade seria a possibilidade de oscilar entre éssas quatro comunidades de um modo flexivel, enquanto a psicopatologia adolescente seria a fixagdo rigida em uma dessas comu- nidades. O adolescente na famflia segue o padrao da laténcia, aceitando o modelo dos pais como o seu modelo de vida, com experiéncias sexuais minimas, reprodu- zindo o-esquema familiar que os pais Ihe apresentaram. O adolescente no mundo adulto seriam as incurs6es pseudomaduras em que 0 jovem age “‘como se” fosse um adulto, sendo que a forga motivadora nao seria o amadurecimento ¢ a definicdo de objetivos, mas a entrada répida e forgada na condi¢do adulta para mostrar aos pais como se é um adulto. A comunidade adolescente, inicialmente com o grupo homos- sexual de piiberes, depois com o grupo misto ¢ posteriormente com o grupo de casais, serd o gontinente adequado para as ansiedades depressivas, parandides e confusionais do adolescente. O isolamento—refigio habitualmente utilizado pelos adolescentes gomo forma de realizar todo o trabalho de reflexdo e elaboragao da adolescéncia +, quando se fixa como o modo predominante de funcionamento, se-- gundo Meltzer (1978), constitui-se no tipo psicopatolégico mais grave. Essas sio situagdes em que a desidealizagdo dos pais foi muito'intensa e abrupta, sem as condigées de transferir a idealizagao a outro sistema (a politica, a comunidade de adolescentes), levando o adolescente a refugiar-se em uma organizagio narcisista, na qual imagina-se auto-suficiente, capaz de construir-se a si préprio como se fosse pai e mie de si mesmo. Desenvolve uma megalomania tranqiila e o sentimento de ter uma missdo a cumprir no mundo. A comunidade de adolescentes, o grupo, passaré a ter uma fungdo primordial na vida mental do adolescente. De um lado, por meio de um complexo jogo de identifi- cages projetivas, sero “encenadas” diversas fantasias genitais ou pré-genitais. Por exemplo, a formagao de casais, com toda a triangularidade e rivalidade possivel, ou aatuacdo de um sadismo anal incomum. De outro lado, a “socializag&o” do narcisismo na adolescéncia por meio do grupo, ou, dito de outra forma, a projegdo no grupo da O Ciclo da Vida Humana 137 onipoténcia, onisciéncia e grandiosidade do objeto idealizado, tem a fungao de ofe- Tecer um novo continente ao jovem para enfrentar as ansiedades do periodo. O grupo também terd uma fungdo de continéncia de aspectos parciais do self que momentaneamente, ficando fora do mesmo, dio ao sujeito a sensagio de estar livre de tais aspectos, permitindo identificagées transitérias que asseguram ao jo- vem uma certa tranqiiilidade. Ser4 natural encontrarmos nos grupos de adolescentes situages em que, por exemplo, os aspectos frégeis ou desvalorizados dos membros encontram-se projetados em um membro que é hostilizado e maltratado. E, da mes- ma forma, com intimeros outros sentimentos indesejaveis, como aspectos femininos nos rapazes, e assim por diante. Do mesmo modo, caracterfsticas idealizadas que 0 jovem, em um determinado momento, sente nfo possuir ainda podem ser identificadas em algum membro do grupo, o lider, que é sentido como tendo todos os atributos de forca, poténcia, beleza ou inteligéncia. Claro que sabemos que esse tipo de funciona- mento grupal ocorre em todos os grupos humanos, mas na adolescéncia, em fungaio das caracteristicas comentadas, assume uma intensidade maior. A psicopatologia, entio, instala-se quando o individuo fixa-se em solugdes narcisicas, em que a comunidade adolescente, enquanto continente, ocupa um lugar secundério ou inexistente: 0 sujeito entio refugia-se no isolamento ou em outros refigios psiquicos nos quais a onipoténcia e a idealizacaio— muitas vezes da propria destruigdo - ocupam o papel central (drogas, perversdes sexuais, disturbios alimen- tates, destrutividade em geral). A partir daf, tem-se uma série de quadros nosogrificos cujo pano de fundo so organizagGes narcisistas complexas. Cria-se uma “continén- cia” espiria da ansiedade: o refiigio transforma-se em prisio, ¢ a onipoténcia deixa de ser uma forma transitéria de lidar com os sentimentos de impoténcia, tornando- se um modo de negar permanentemente a realidade, como jé ilustrado em outro trabalho (Levy, 1996). No adolescente mais proximo & normalidade, observa-se, entio, a utilizagio de reftigios psiquicos de um modo mais adaptativo, servindo como um espago mental protetor ao qual poderd recorrer sempre que a ansiedade sobrepujar sua capacidade de tolerancia. No individuo que internalizou objetos muito perturba- dos ou com problemas no manejo de sua destrutividade, a personalidade toda fica capturada no funcionamento dessas organizagdés patoldgicas. A FAMILIA Nesse momento evolutivo, nao serd apenas 0 jovem,’o individuo adolescente, que passard por transformagées estruturais. A familia também deverd alterar sua estru- tura interna e seus padrdes de relacionamento entre os membros, modificar os papéis em sua intimidade, a fim de acolher as exigéncias evolutivas do momento. Familias muito rigidds, sem a capacidade de realizar essa adaptagao estrutural, tenderfio a produzir psicopatologias na adolescéncia ou a sofrer graves fraturas internas. Como foi comentado anteriormente, a familia é um dos “ambientes” ou uma das comunidades em que o adolescente normal circula ao longo de seu processo 138 Bizirik, Kapczinski & Bassols (orgs.) evolutivo. Ser fundamental que ele possa contar com esse refiigio ao qual possa recorrer apés suas incursdes explorat6rias no mundo extrafamiliar. E o momento do retorno para um reabastecimento (Mahler, 1979), para certificar-se de que nio houve uma perda e uma ruptura real com os pais, que ele ainda os tem, embora de uma nova forma nesse novo momento da vida. Os pais precisam ter a flexibilidade de aceitar esse retorno apés terem sido desprezados e, em alguns momentos, até depreciados pelo adolescente. Deverio — para isso também precisarao de um perfodo de adaptagao — relacionar-se com 0 filho adolescente aceitando e respeitando os momentos de afastamento e os momentos de reaproximagao. As familias que nao tiverem a maleabilidade de adaptarem-se a esta nova configuragiio familiar e forma de relacionamento com 0s filhos estardo fadadas a conflitos totmentosos nesse momento da vida. Além disso, os pais, envolvidos com a crise da meia-idade, confrontam-se com filho jovem, dono de um corpo e uma satide exuberante e coma vida inteira ainda pela frente. Os adultos, a essa altura do ciclo vital, enfrentam a situagio de jd terem passado da metade de sua vida e realizam uma inevitdvel reavaliagaio de seus projetos ¢ de suas realizagGes, muitas vezes, redundando em frustracéio por constatarem que se afastaram ou ndo realizaram o que haviam desejado. Outras vezes, vivem um sentimento de plenitude e realizado pelo construido até o mo- mento. Ao mesmo tempo, constatam que o corpo nao é mais aquele da juventude e que se‘uproxima um periodo de envelhecimento inevitdvel. Por tudo isso, vivern sentimentos ambivalentes em relagiio aos filhos: admiram-nos e orgulham-se de- les ao mesmo tempo em que invejam sua beleza e sua juventude e sentem citimes de seus novos relacionamentos. Felizmente, a maioria dos pais tem a suficiente maturidade para poder elaborar adequadamente esse conflito. Os pais de adolescentes enfrentam outro desafio que diz respeito ao floresci mento da sexualidade em seus filhos. E necessdrio que a deixem seguir seu proprio curso de amadurecimento, sem pressiond-la em diregiio a praticas precoces, muitas vezes, superestimuladas pelo culto 4 sexualidade de nossa cultura, mas tampouco devem obstaculizd-la, uma vez que é natural e desejada. Caso os pais no tenham resolvido adequadamente seus prdprios conflitos em relaco A perda da juventude ou em relago a sa sexualidade — para citar apenas dois‘exemplos —, podero com- petir com os filhos ou trav4-los em suas experiéncias. Uma situacdo comum, a titulo ‘de ilustragiio, é a do pai que, problematizado com aspectos de sua prépria sexuali- dade, perturba-se com a emergéncia da sexualidade em sua filha adolescente. Ator- menta-se ao perceber o olhar de desejo de outros homens e, a partir disso, tenta sufocar a sexualidade na jovem e tiranizé-la de modo a certificar-se de que no haverd nenhum vestigio de erotizagao. Foi realizado um estudo em um ambulatério destinado a adolescentes (Cornut-Janin, 1988), a partir da procura motivada por crises familiares, com agressées fugas de domicflio, provocadas pelo uso do pri- meiro batom pelas filhas adolescentes. Mas ha caracterfsticas do processo adolescente e das interagées familiares pré- prias do nosso tempo. Em épocas anteriores, a diferenca entre as geragdes era pro- O Ciclo da Vida Humana 139 fundamente marcada. Atualmente, vivemos um momento singular, pelo menos em nossa cultura. Uma ampla pesquisa sobre a adolescéncia brasileira, realizada para a MTV (Rocca, 1999), mostra que a linha que separa a juventude da adolescéncia est sendo redesenhada. Os adultos maduros de hoje encontram-se plenamente ati- ~ vos e, mais do que isso, mergulhados em uma busca pelo rejuvenescimento. Estiio movidos pelo aforismo de que “a vida comega aos 40 anos”. Um exemplo disso é encontrarem,se nas maternidades mulheres da faixa dos 40 anos tendo seus filhos, ao lado de jovens da faixa dos 20. Paralelamente a esse desafio a biologia, estimu- lado também pelos avancos na drea médica e pela maior consciéncia da importéncia da prevenciio de doengas fatais, h4 outro fendmeno em andamento. Essa mesma pesquisa mostra como no universo jovem coexistem fdolos atuais (Raimundos, por exemplo), com {dolos da geragio de seus pais (Caetano Veloso, Gilberto Gil e Rita Lee, por exemplo). Pois esse novo fenémeno tem diversas facetas: aproxima pais e filhos, criando interesses, valores e linguagens comuns a tal ponto que, nessa pes- quisa, foi constatado que, em grandes segmentos dos jovens brasileiros de classe média e média alta, hd um sentimento de bem-estar e seguranga na casa dos pais, nao havendo uma vontade de sair dela. Entretanto, essa quase superposi¢iio de inte- resses e valores simultaneamente cria uma dificuldade maior na diferenciagao entre as geragées, necessiria ao processo de separacio e diferenciagao do adolescente. Isso tem forgado os jovens a encontrar novas formas de diferenciago, por exemplo, cutituando novos fdolos e ritmos (reggae, rap, etc.). _ Hé outro fendmeno tipico dos pais dos adolescentes de hoje. Eles constituem. a geragid que foi adolescente no final dos anos 60 ¢ inicio dos anos 70, €poca em que a juventude efervescia em lutas pela liberdade sexual, pela liberdade de expres- so e contra uma cultura que mantinha estruturas autoritdrias em muitas institui- oes, especialmente as educacionais. Havia protestos‘na Europa, na América La- tina e nos Estados Unidos, estes envolvidos com a contestagao 4 guerra do Vietna. Pois esses jovens cresceram sob a égide da contestag%io ao mundo adulto, apre- sentando, muitos deles, hoje em dia, dificuldades em assumir uma atitude adulta ¢ uma defesa dos valores vigentes. Associam-se, de modo assumido ou velado, as transgressdes que os adolescentes normalmente fazem das leis, das regras e dos valores. Perdem assim a condigo educativa com seus filhos. Meltzer (1989) de- nomina esses adultos de “jé crescidos”, uma vez que j4 cresceram, porém nio se tornaram adultos. Espera-se, entiio, que os pais de adolescentes n‘io abdiquem da sua codigo de adultos e mantenham o seu papel de pais que educam seus filhos, mesmo que ainda possam ter pontos de contato nos interesses com seus filhos. COMENTARIOS FINAIS Como vimos, 0 processo adolescente é rico e complexo. Envolve pais, filhos, socieda- dee cultura, e se, de um lado, traz em seu bojo conflitos e tensGes em muitas situagdes, 140 _Eizirik, Kapezinski & Bassols (orgs.) de outro, é a garantia que a sociedade tem de uma renovagio constante de valores. Os jovens, com seu vigor e sua coragem, questionam costumes e vicios aos quais os adultos com sua prudéncia, muitas vezes, j4 se acomodaram. Assim, 0 processo adolescente tem uma dupla importAncia: é, por um lado, um momento do ciclo vital que permite ao individuo amadurecer, revisar e reelaborar situagGes de sua infancia e preparar-se para a vida adulta; e, por outro, um elemento renovador do proceso cultural. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS ABERASTURY, A. 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Essa etapa, por estar entre as crises ¢ os tumultos da adolescéncia e a impor- tante crise da meia-idade, pode dar uma enganosa impresso de “laténcia”, trangili- lidade ou relativa estabilidade. Ou de desenvolvimento “acabado”, “fechado”, sem as singularidades humanas, como nesta frase a respeito do adulto jovem: “O longo processo de desenvolvimento e ao mesmo tempo de aprendizagem de viver chega ao fim na medida em que o individuo obtém uma identidade propria e atinge a capacidade de viver intinmamente com um membro do sexo oposto, propondo-se a formar uma familia prépria” (Lidz, 1983; p. 378). Qutra concepgao errénea, talvez relacionada com a ideologia da “adaptagio” (e daf ao conformismo), € percebida em outfa frase desse mesmo autor: “Os adultos também devem ser capazes de acei- tara compreensio de que muitas das maneiras e regras da sociedade so arbitrérias, mas que as pessoas necessitam de tais regulamentos para que vivam em conjunto, sem se sentirem enganadas e fraudadas pela arbitrariedade das regras” (p. 390-1). No entanto, é 0 mesmo Lidz quem, em uma pagina anterior (p. 382), ao destacar as tarefas e dificuldades dos jovens adultos, declarava que estes precisam transcender amoralidade convencional (grifo do autor] e até a [moralidade] pés-convencional do contrato social, a fim de ser obtida uma justica universal superior a respeito da qual os individuos possam e devam formar seus préprios jutzos. Dai a importancia do pensamento e da leitura com critica, uma conquista cognitiva do adulto jovem, que se torna capaz de lidar com a incerteza, a inconsisténcia, a contradicao, os paradoxos e a imperfeigao do conhecimento, além do compromisso, em um pensa- 142 _ Eizirik, Kapczinski & Bassols (orgs.) mento relativista, p6s-formal ou construido, de acordo com pesquisas citadas por Papalia ¢ Olds (2000). Os mesmos Papalia e Olds também assinalam o mal-entendido da estabilidade, dizendo que estudiosos do desenvolvimento consideravam 0 periodo adulto “como um platé relativamente destituido de acontecimentos” (p. 370). A crenga na “tranqiti- lidade” do perfodo pode ser questionada de varias maneiras. Uma delas é assinalando que é justamente entre os 20 e 40 anos, quando muitas pessoas buscam tratamento psicoldgico. Outra é examinando as estatisticas de mortalidade, que revelam que as mortes violentas ocupam o primeiro plano. E verdade também que as causas exter- nas de mortes podem ocupar o primeiro lugar porque muitos jovens adultos nunca ficariam gravemente doentes ou incapacitados, tendo geralmente doengas benig- nas, Pelo menos essa pode ser a situacdio em paises desenvolvidos como os Estados Unidos, onde mais de 93% dos americanos entre 15 ¢ 44 anos consideram sua satide boa, muito boa ou excelente, segundo dados do Departamento de Satide de 1995, citados por Papalia e Olds. De qualquer forma, o fenémeno das mortes violentas (suicidio, homicidio ¢ acidentes), ocupando o primeiro plano nao é um fendmeno exclusivo do Brasil na atualidade. Embora 0 contato com o “mundo real” tenha-se iniciado na infancia e au- mentado na adolescéncia, € nessa etapa que as pessoas vio de fato se inserir no, mundo do trabalho e das outras responsabilidades individuais (atinge-se a maiori- dade completa). Esse fato pode, também, questionar a “estabilidade emocional” desse periodo. E alguém que tenha conquistado uma identidade, que tenha com- pletado a terceira individuagio, que seja um sujeito constituido, mantém com a realidade externa uma relagio ativa e nao passiva, conformista ou conformada. Este capitulo pretende, portanto, contribuir para a desmitificagdo dessa etapa da vida, ajudando a compreender as inter-relagGes entre desenvolvimento emocional, estruturas intrapsiquicas e processos mentais e 0 continuum satide-doenca. Uma con- cepcao central é a de que cada um de nés possui scripts delineados por fatores genét cos e ambientais, dai a necessidade de modelos biolégicos e psicolégicos (principal- mente psicanaliticos) dentro da psiquiatria e da medicina. Os referidos cendrios inclu- em o mundo interno das representagdes de objetos e de si mesmo (self os “papéis” € as fantasias de que falam Martin (1990) e Person (1997). Esse “cendrio” interno, com 0s seus scripts, interage permanentemente com os cenérios externos, méveis, dinami- os, das relaces interpessoais, da sociedade e da cultura. Os cendrios externos princi- Pais parecem ser os do mundo do amor e da sexualidade, do trabalho e da ética. PAPEIS E CENARIOS DO ADULTO JOVEM. Realidade, 0 que vocé estd fazendo aqui? Esté tudo bem. Eu emamde ndo precisamos de ti, (Bolas, 1999) O que se passa com 0s adultos jovens? Que idade é essa marcada por belezas, tragédias, encantos, desencantos, intimidades e isolamentos, compromissos e O Ciclo da Vida Humana 143 infidelidades, realizagdes e desisténcias de sonhos, criagdes e destruigdes? Por que tantas pessoas entre os 20 e 40 anos parecem viver em “cavernas” (Saramago, 2000), em “histérias” (Bollas, 2000), ou vivendo vidas que no sao as suas (Martin, 1990; Person, 1997) e nao na realidade? Uma coisa é viver a vida de um persona; gem que se pensa ser; outra, bem diferente, é viver a vida da pessoa que se é. E claro que em alguma medida todos temos “personagens” dentro de nés. O grau de distancia entre “personagem” e pessoa pode dar uma medida da satide ou da do- enca mental. E de todos conhecida a anedota que serviria para diferenciar neur6- ticos de psicdticos e de “psicopatas” (ou sociopatas)... Passemos dos “‘castelos” da antiga anedota para as contemporaneas “caver- nas”. Em entrevista recente, 0 escritor José Saramago disse, respondendo a uma pergunta, que “o que hd fora da caverna é precisamente a realidade. Nosso modo de viver atenta mais as imagens das coisas do que’a realidade das préprias-coisas (...) [As imagens] deveriam servir para mostrar a realidade e acabam por basta- ~rem-se a 8i proprias e a levar-nos a esquecer a realidade”. Em outras palavras, as pessoas vivem ficcdes. Partindo de outro vértice, o psicanalista Christopher Bollas contribui para 0 entendimento do tumulto emocional dessa fase ao se referir, ainda que indireta- mente, a necesséria ruptura, mais intema do que extema (€ claro), do adulto jovem “sorh seus pais, permitindo a consolidacio de uma verdadeira ou mais completa ‘autonomia: a terceira individuagao (Colarusso, 1999). Por isso a epigrafe escolhida, na qual o autor mostra as tentagdes de fugir do contato com a realidade, nao renun- ciando a ilusces da infancia. Um fenémeno psicossocial é a desidealizagio dos pais na fase anterior — adolescéncia —, que pode incluir discussées, brigas, rompimentos externos, etc. Fenémeno muito diferente é a independéncia emocional (e socioe- conémica, muitas vezes) em relacio aos pais. Essa pode permitir, em alguns casos, uma proximidade geogréfica relativamente saudavel: adultos jovens que se mantém trabalhando e/ou morando com os seus pais, enquanto no definem uma escolha amorosa compromissada, com um companheiro ou companheira (hetero ou homos- sexual). Ou, ainda, como tem sido comum, completando os estudos ou a iniciagao profissional (caso dos mestrados e doutorados, dos jovens empresdrios em empre- sas familiares, filhos e filhas de agricultores, opetrios aprendizes, etc.), Em outros casos, essa proximidade, independentemente da condig&o socioeconémica, pode ser patogénica ou patolégica. ~ Dados 08 limites de espaco/tempo, nao se investigaré neste capitulo a impor- tante questo da realidade virtual. Quando ela é um modo de aproximagao ou de distanciamento coma realidade? Quando ela é uma nova forma de “caverna”, onde a pessoa se esconde da realidade? O QUE SE ENTENDE POR SCRIPTS E “CENARIOS INTERNOS”? Jay Martin e Ethel Person, j4 citados, escreveram dois livros titeis para o entendi- mento dos papéis e personagens nos adultos jovens: Quem eu vou ser desta vez?, | | | J 144 Eizirik, Kapczinski & Bassols (orgs.) do primeiro, e O poder da fantasia: como construimos nossas vidas, da segunda, que € psicanalista da Columbia University. Ambos contribuem para o entendi- mento do papel crucial — na satide e na doenca - desempenhado pelo mundo interior, pela subjetividade, pelas fantasias. O reconhecimento desse mundo emo- cional ¢ o contato com 0. mesmo — nos profissionais da drea da satide e nos pacien- tes—tém um valor inestimavel. Especialmente quando se considera que esse é um mundo ou uma realidade que uma propaganda enganosa e perversa da cultura contemporanea insiste em dizer que “nao existe, ou, se existe, nao é importante, ou, mesmo sendo importante, nao é cientifico, por nao poder ser medido, contado ou quantificado” (Osério, 2000b). Um exemplo de Martin é bastante ilustrativo para compreender a forca eo papel desempenhado por nossos eus-interiores, capazes de matar outras pessoas. Foi ocaso bem conhecido de Mark David Chapman, adulto jovem. Nele “habitavam” Holden Caufield, 0 personagem de Salinger (do romance O apanhador no campo de centeio), e ainda John Lennon. Mark assassinou John Lennon por considerar-se 0 “legitimo”, sendo o compositor de Imagine “um impostor” (Martin, p. 27-44). Outro exemplo, também dramaticamente ilustrativo, é dado por Ethel Person, que examinou o triste e famoso caso de “Diane”, adulta jovem que desenvolveu uma leucemia aguda, ja sendo portadora de depressio e alcoolismo. O tratamento proposto pata a paciente era doloroso: quimio ¢ radioterapia. Por isso, Diane disse ao seu médico, Timothy Quill, que ia desistir [de viver]. Quill, professor de Medicina, considerava que a vida da sua paciente, de quem tratava hd cinco anos, era “insupor- tavel”. Por isso, ele concordou com 0 que lhe pareceu razodvel: suicidio assistido — e prescreveu uma dose letal de barbitiricos. Quando Diane foi se despedir de Quill, ela lhe prometeu um “futuro encontro”, no lugar predileto do médico, & margem do Lago Genebra, com dragées brithando em um lindo p6r-do-sol. Eo médico teria tido ressondncia ou eco em relagio A fantasia de sua paciente, em vez de encarar a tealidade da morte. Curiosamente, o fator determinante do suicidio assistido — a fantasia compartilhada pela paciente e pelo médico ~ foi omitido por Zisook e Downs na segio do Kaplan e Sadock (2000) que aborda esse tema (Osorio, 2000b). Ethel Person termina seu livro com a seguinte frase: “a fantasia é para a evolugao cultural o que a mutagao [genética] é para a evolucao bioldgica, e muta- Ges culturais podem nos beneficiar, mas também podem nos matar” (p. 312). Por isso, nao acredite quando lhe disserem que sonhos e fantasias sio bobagens, “via- gens” de psiquiatras, psicélogos e psicanalistas. A fantasia tem também, e principalmente, aspectos sauddveis e um grande poder criador tanto na arte como na ciéncia, as duas muito mais préximas do que se costuma admitir. Ambas tém como base o brincar, o imaginar, o inventar e 0 descobrir. Goldim (2000) escolheu como epigrafe do seu capitulo sobre a investi- gagio cientifica uma excelente frase de Jacob Bronowski: “A Ciéncia, tal como a Arte, no é uma cépia da natureza, mas uma recriaciio da mesma” (p. 11). Ou, como tantos jé assinalarami, um mapa nfo é a reprodugiio de uma cidade, de uma regiao ou de um pais: é-apenas uma representagao. O Ciclo da Vida Humana 145 Em época na qual as distingdes entre ciéncia e arte eram talvez mais agudas, Freud, em entrevista pouco conhecida (1934), segundo citagdo de Martin (1990), declarou ao escritor Giovanni Papini que: “Sou cientista por necessidade, nio por vocagdo. Na verdade, minha natureza é de artista. Desde a infancia, 6 meu heréi secreto é Goethe. Gostaria de ter sido poeta e a vida inteira tive vontade de escrever romances”. Teria admitido também, junto a Papini, que enquanto esteve em Paris (1885-1886) seus interesses estariam voltados para os maiores movimentos literarios do seu tempo: simbolismo, naturalismo e romantismo (Martin, p. 173). Nao por acaso Freud recebera o Prémio Goethe em 1930, e entio redigiu uma comunicagio na qual articulou as relagGes entre a ciéncia da psicandlise e os estudos de Goethe. Harold Bloom (2000) considera William Shakespeare o “inventor do humano”, no sentido do que hoje entendemos por humano, “ao inventar a forma mais corrente de representagio de personagem e personalidade... também modificando, radicalmen- te, nossas idéias sobre sexualidade, particularmente com a assombrosa consciéncia [do poeta] quanto a bissexualidade e as suas manifestagées...” (p. 861). Antecipou- Se, portanto, a Freud em cerca de 300 anos! Além disso, segundo Bloom (p. 879), Shakespeare expande a nossa visdo dos enigmas da natureza humana, diferente- mente de Freud, segundo o qual seriamos predeterminados de modo bem mais pre- visivel do que na obra do poeta. Voltar-se-4 a este ponto mais adiante. * Oque ambos ~ na Arte e na Ciéncia — nos indicaram, antes de Martin, Person e tanto’s outros, é que nossas vidas sfio representaces ou encenagoes de dramas/ scripts de certa forma inscritos, inconscientemente, nos nossos mundos interiores ou, nas palavras do escritor Chateaubriand (1768-1848): “Cada. Pessoa carrega den- tro de si um mundo feito de tudo 0 que viu e amou —e é para este mundo que ela tetorna, incessantemente, embora possa percorré-lo e viver em um mundo bem es- tranho a ele”. Foi essa a epigrafe escolhida por Greenberg ¢ Mitchell (1994) para o capitulo “Relagdes de objeto e modelos psicanaliticos”. Infelizmente, por razdes desconhecidas, alguns estudiosos do desenvolvimento humano podem nao ter cap- tado bem 0 conceito psicanalitico de objeto interno/representaciio/mundo interno, apesar das contribuigdes de Shakespeare e Freud, de 400 e 100 anos atrés. Por exemplo, Lewis e Volkmar (1990) consideram o termo objeto “infeliz, pseudocien- tifico, geralmente significando coisa e que obscurece a natureza do relacionamento entre duas pessoas” (p. 139 na edigio brasileira, p. 134 na edicZo original). Uma leitura critica mostra que o pardgrafo é infeliz, por trés razdes: em primei- ro lugar, Freud nao empregava os termos objeto e relagdo de objeto apenas no campo da relagiio amorosa, externa, interpessoal (como esses autores dizem) e sim, obviamente, mais no sentido de representagio interna, inconsciente, dos objetos externos e de suas relagdes com as representagdes também internas do sujeito (0 self). Objeto é um conceito intimamente articulado com 0 conceito de pulsdo, cen- tralna psicandlise (Moore e Fine, 1992). Além disso, ao questionar a cientificidade da psicandlise ¢ dos seus conceitos, Lewis ¢ Volkmar niio esclarecem que esse questio- namento parte do seu préprio modelo de ciéncia, no caso positivista (do behaviorismo de Skinner e seus herdeiros contemporaneos: ciéncias cognitivas e comportamentais), talvez nem melhor nem pior do que os modelos cientfficos da psicandlise. Além. disso, em segundo lugar, a palavra objeto, mais do que se referir 4 coisa, faz parte do par sujeito/objeto. Sera que ao se perder a nogio de objeto nao se perde também. anogio de sujeito? Voltar-se-4 a esse pontona questiio da individuagao, da intimidade e do narcisismo na cultura contempordanea da sociedade de massas ou globalizada. Por tiltimo, longe de obscurecer, a nogio de relagdes de objeto ilumina o entendi- mento do mundo interno e das suas repercuss6es no mundo externo das relagdes interpessoais. Por tudo isso, sem querer, Lewis e Volkmar juntam-se ao coro dos que consideram a psicandlise “um embuste superado”. Aproveitando ainda Greenberg e Mitchell, é bom esclarecer aqui mesmo, dada a importincia do conceito, que “o termo ‘teoria das relagdes objetais’ (ou, mais corretamente, relagdes de objeto) refere-se, no seu sentido mais amplo, as tentativas, dentro da psicandlise, de responder a (...) perguntas/questdes, isto 6, de confrontar a observacdo potencialmente desconcertante de que as pessoas vivem simultanea- mente em um mundo interno e em um [mundo] externo, e que a relagdo entre ambos varia da mistura mais fluida até a separacio mais rigida” (p. 7). E este um tema central neste capitulo: a relagaio entre os cendrios interno ¢ externo. Vejamos algumas das perguntas ou questdes pertinentes para Greenberg € Mitchell: “Como as caracteristicas dos objetos internos se relacionam com aquelas das pessoas “reais” do passado e do presente? Eo objeto interno uma representagio (mental) da percepgio do individuo de uma relagio total com outra pessoa ou de aspectos ¢ caracteristicas especfficas (parciais) do outro? Como funcionam os obje- tos internos dentro da vida mental? Existem diferentes tipos de objetos internos?” E por isso que Freud (em carta a Fliess, em1899) e Luis Fernando Verissimo (em uma de suas belas crénicas) puderam escrever que em uma relagio sexual estariam sempre presentes muitas pessoas: além das duas, o “pai” ea “mae” de cada um dos amantes... O entendimento desse fenémeno — das relagdes de objeto - ilumina muitos dos problemas da relagdo médico-paciente, em que ambos, 0 profissional e a pes- soa pedindo cuidados, trazem para 0 novo cenirio todos os seus cenérios internos com os seus scripts ¢ personagens (os objetos internalizados ¢ os seus também internalizados padres de relagGes). Esclarecido 0 conceito de objeto, o que se pode entender por “estruturas psiquicas e processos mentais”, conceitos que foram referidos ao enunciar os ob- jetivos deste capitulo? Ebem possivel que algumas das dificuldades que enfrentamos — alunos e profes- sores — no processo ensino-aprendizagem das disciplinas de desenvolvimento pos- sam ser creditadas ao nao-esclarecimento desses dois conceitos ou dessas duas abor- dagens que coexistem, articulam-se, mas nio integradas/fundidas, para no ficarem con-fundidas (Os6rio, 2000). Processo esté ligado & psicologia do desenvolvimento: refere-se As transformages psicoldgicas ao longo do tempo, as mudangas das ca- racterfsticas normais na infancia, na adolescéncia, na vida adulta e na velhice. Asso- cia-se, portanto, ao tempo linear. Colarusso (1995, 2000), cujas idéias sobre o adul- to jovem sero resumidas mais adiante, entende que a nogio freudiana de fases ou O Ciclo da Vida Humana 147 estégios evolutivos é problemética para descrever o desenvolvimento adulto. Para cle, a proposta de Erikson, apesar de algumas modificagdes em relagio a Freud, 6 também insatisfat6ria. E por isso, ainda segundo Colarusso, alguns autores estariam preferindo 0 conceito de processo evolutivo, abandonando a teoria dos estégios (oral, anal, félico]. Essa seria, talvez, biologizante e muito determinista, quem sabe pelo anseio de Freud de tornar a psicandlise “cientifica” segundo os modelos do seu fempo. A nogo de processo compreende uma seqtiéncia de desafios evolutivos, com tensdes, conflitos e interagdes ao longo do ciclo vital, internalizagées e identi- ficagdes, novos valores, formacao de niveis de organizagio ou configuragées [es- truturas] sucessivamente mais altos/maduros, novos desafios, etc., ¢ o ciclo conti nua, podendo-se imaginar um movimento em espiral ascendente, aberta progressi- vamente, como um esquema visual (uma imagem para ser mantida na mente). Estrutura & um conceito psicanalitico “puro”, referindo-se as transforma- 96es [organizadas e auto-reguladas] dentro do espaco psiquico ou mental. E uma nogo ligada ao tempo dito circular, dada a atemporalidade do inconsciente, onde passado, presente e futuro niio esto unidos Por setas unidirecionais, como no tempo linear (Osério, 2000a; p. 129), Talvez uma outra metéfora possa ajudar: imagine um trem, composto de varios vagdes, percorrendo a via férrea na diregéo A-Z, em movimento linear. A paisagem/cendrio vai se transformando ao longo da viagem, como na vida. E este o processo evolutivo. Agora considere um passagei- To que esté no primeiro vagiio, o mais préximo da locomotiva. Ele pode, por exemplo, se deslocar — no sentido contrario ao do movimento do trem — na dire- ¢4o do ultimo vagao. Pode, se houver uma parada em uma estagdo intermedidria entre os pontos A e Z, descer da composigao, dar uma caminhada e voltar para 0 trem, até com alguma “bagagem’” a mais (lembrangas de uma pessoa que acaba de conhecer, uma revista comprada na estago, por exemplo). Estas so a estrutura (0 mesmo passageiro) e suas transformagées dentro do espaco mental, que interagem com as mudaneas processuais ~ a viagem de A aZ. Os dois movimen. tos poderiam ser comparados com os de rotaco e translagio, que também se articulam, mas nao se confundem. . Pode-se entio, aproveitando a metéfora, voltar no tempo e no espago e tentar entender por que Harold Bloom péde dizer, sem nenhum desrespeito a Freud, que Shakespeare, primeiro psicdlogo, expandiu, melhor do que o criador da psicandlise, @ compreensiio dos enigmas da natureza humana. Para Bloom, “Freud, querendo Ser cientista, equivocadamente, reduziu a propria genialidade. Shakespeare no re- duz os personagens as suas supostas patologias ou romances familiares.” Em uma €poca da psiquiatria orgulhosamente remedicalizada, pode ficar mais ffcil ainda reduzir uma pessoa a um diagnéstico e perder a dimensio humana do outro e de si mesmo. Voltando a frase de Bronowski selecionada por Goldim, pode-se agora dizer que os indispensdveis diagndsticos so apenas representagdes e nao as pesso- as, como os indispensdveis mapas nio sio as praias ou as cidades, Todavia, reto- mando Harold Bloom: “Em Shakespeare, conforme demonstra Nuttall (um critico do poeta), somos predeterminados de tantas maneiras diferentes que a prépria di- versidade da predeterminagio se torna liberdade” (Bloom, p. 879). Mais cedo, em 148 Bizirik, Kapczinski & Bassols (orgs.) palavras dirigidas ao leitor, Bloom esclarecia melhor essa passagem, ao destacar a capacidade dos personagens criados pelo bardo de escutarem asi mesmos (escutan- do) suas préprias vozes, garantindo sua individuagio, com um desenvolvimento re- criador (p. 19). Lembram-se ainda da imagem visual da espiral aberta do processo evolutivo, articulada com as transformag6es das estruturas psfquicas, como na dan- ga dos movimentos de rotagio ¢ translagio? E disso que precisamos ao buscar as histérias pessoais, singulares, dos adultos jovens. 5 isso que autoriza Ogden, citado por Osério (2000a), a entender que a concepgao dialética de Melanie Klein da estru- tura psiquica e do seu desenvolvimento incorpora totalmente a nogao de Freud da atemporalidade do inconsciente. Essa noco concebe o individuo existindo simulta- neamente em duas formas de tempo: um tempo diacrnico (linear, seqiiencial) e um "tempo sincrénico (“circular”, psicanalitico). E so essas concepgées que autorizam as criticas de Pierre Kaufmann, citadas e endossadas por Osrio (2000a), que apon- tam’os impasses da nogdo de desenvolvimento epigenético com o conceito de in- consciente. Aquela nocao foi superenfatizada no que se poderia chamaf de “psica- nélise norte-americana”. O conceito de inconsciente convive melhor com 0 concei- to de historia. Na medida em que se considere um desenvolvimento determinado, preestabelecido, como um programa biol6gico, seria menor a margem para mudan- a, pois af se elimina a nog de hist6ria aberta as singularidades. Esta, relembrando, foi a critica de Bloom a um possivel reducionismo de Freud, na comparagao com Shakespeare: Entretanto, retomando Monah Vinograd (citada por Osério, 2000a), os conceitos freudianos de pulsio e de inconsciente dao ao‘pensamento a possibili- dade de inventar e, ao sujeito a liberdade de tornar-se sempre outro, ou seja, de recriar-se, como em Shakespeare (grifos meus, na transcrigio). QUE ETAPA E ESTA, DE BELEZAS E TRAGEDIAS? O inicio da idade adulta € a €poca em que a maioria das pessoas esté no.auge.da forga, da energia e da resisténcia (Papalia e Olds, 2000): & 0 caso, por exemplo, da grande maioria dos atletas competitivos, nas mais variadas modalidades esportivas. E também uma etapa de conquistas no campo intelectual: Freud tinha 35 anos quando lancou A interpretacdo dos sonhos. William Shakespeare (1564-1616) estava com aproximadamente 37 anos quando produziu Hamlet (1600 ou 1602). Seu préprio filho, Hamnet, teria morrido ainda na infincia. E John, o pai do poeta, morreu pouco depois, em 1601. E este um ponto interessante: como o jovem adulto William Shakespeare lidou com os seus lutos e o papel psicoterapéutico desempenhado pela peca e, quem sabe, pelo préprio personagem Hamlet. Steven Spielberg tinha 35-anos quando dirigiu Os cagadores da aréa perdi- da. Muitos atores recebem seus Oscars nessa etapa da vida. Vincent Van Gogh pintou sua primeira obra-pritna, Os comedores de batatas, aos 32 anos. Michelangelo produziu David aos 29 anos, e a decoragio do teto da Capela Sistina, aos 37 anos. Nessa mesma idade, Dante Allighieri, exilado de Florenga, O Ciclo.da Vida Humana 149 comeg¢ou a escrever a Divina comédia, que, presumivelmente, pode ter servido, também, para 0 autor elaborar suas crises vitais, evolutiva (a idade) e acidental (0 exilio). Esta é uma das hipéteses de Elliot Jaques (1980) em seu estudo de pessoas criativas, das suas transformagGes na vida adulta inicial e crise da meia-idade e das suas relagdes com a morte. Este autor diz que nessas pessoas os fenémenos psicolégicos so mais salientes (além de, obviamente, mais visiveis e passiveis de estudo, pelos dados biograficos disponfveis), daf a vantagem do seu estudo. Os Beatles estouraram no mundo nessa fase. Muitos lideres de bandas (Kurt Cobain, etc.) chegam ao auge de suas carreiras e morrem nessa idade, repetindo os poetas do século XIX. Eric Clapton, originalmente da banda Cream, € sobrevi- vente de uma geragfio em que varios misicos morreram ainda jovens. Kay Redfield Jamison (1995), nascida em 1946, atualmente professora de psiquiatria na Johns Hopkins e destacada pesquisadora no campo dos transtornos do humor, concluiu seu doutorado, ingressou como docente na UCLA, teve um. surto psictico e grave tentativa de suicfdio por volta dos 30 anos (talvez tudo isso em apenas cinco anos!), Por qué? Que cenérios internos e externos contribu- fram para tanto? Sua biografia, além de esclarecer essas questdes, é também um exemplo da interagdo dos fatores genéticos e ambientais, na determinagiio do seu transtorno afetivo bipolar. Por que Silvia Plath, poetisa, e Alvarez (1990), critico de literatura e seu amigo, tentaram suicidio perto dos 30 anos, ela morrendo e ele se salvando, am- bos por detalhes? : Tanto o estudo psicanalitico de Elliot Jaques quanto o neurobiolégico de Kay Jamison (Touched with fire, 1993) trazem hipoteses para essas relagdes entre a ctiatividade e a morte (ou alto risco, como nos casos de Eric Clapton, da prépria Kay Jamison e Alvarez) ainda na idade de adulto jovem. Le Feu follet (fogo fa- tuo), nome original do filme Trinta anos esta noite, é uma quase perfeita alusio A hipdtese de Elliot Jaques para explicar a correlago alta criatividade ou importan- tes mudangas (como em J.S. Bach) e morte prematura em artistas (e outras pessoas criativas). O periodo dos 35 aos 39 anos, segundo o autor, seria uma idade tipica para os dois fendmenos: auge (gloria) e/ou morte. Nesse periodo, morreram Mozart, Chopin, Rimbaud, Baudelaire e outros. Jaques entende que “ha um paradoxo nes- ta etapa de adulto jovem: a pessoa chega ao seu apogeu, plenitude, mas, ao mes- mo tempo, o auge tem data marcada para terminar — a morte estd do outro lado”, isto 6, as conquistas psicolégicas do adulto jovem se acompanham de uma maior consciéncia da mortalidade (Jaques, 1980; p. 214). Kay Jamison (1993), em seu estudo sobre a doenga manfaco-depressiva e o _temperamento artistico, investiga as biografias e/ou outros dados (internagdes psiquidtricas, suicidios e tentativas de suicidio) de escritores, artistas e composi- tores com provavel ciclotimia, depressio maior ou doenca manfaco-depressiva. A lista € de aproximadamente duas centenas de pessoas criativas, entre elas Antonin Artaud, William Blake, T.S. Eliot, Hélderlin, Victor Hugo, Keats, Mayakovsky, Hans Christian Andersen, Honoré de Balzac, Sylvia Plath, Charles Dickens, | | | 180. Eizirik, Kapezinski & Bassols (orgs.) Herman Hesse, Emile Zola, Mahler, Rachmaninoff, Charles Parker, Cole Porter, Gauguin, Van Gogh, Michelangelo e tantos outros. Como é amplamente documentado na literatura, 0 risco de suicidio é maior no caso de bipolares do que em unipolares. Considerando a hipétese de Jaques e os dados de Kay Jamison, vale citar a hipdtese de um paciente (nao bipolar, mas preocupado tanto com a criatividade quanto com a doenca mental grave): a defa- sagem, muitas vezes abrupta, entre o estado manfaco (euforia) e a depressio seria arazo para o maior numero de suicidios nos bipolares. A hipétese é interessante porque, sem con-fundir, ela permite articular dois modelos explicativos: 0 psica~ nalitico de Jaques e 0 neurobioldégico de Jamison. Dentro deste tema — a freqiiéncia dos transtornos afetivos ou do humor nesse periodo da vida — é importante lembrar que os transtornos esquizofrénicos também costumam surgir nos primeiros anos do adulto jovem, especialmente no caso de. homens, conforme dados de Hifner e colaboradores (1998 e 1999): o primeiro sinal da doenga aparece aos 22,5 anos em homens, e aos 25,4 em mulheres; o primeiro episédio (maximo de sintomas positivos), aos 27,8 (homens) e 32,1 (mulheres); a primeira internagio, aos 28,2 (homens) e 32,2 (mulheres). Uma pesquisa interessante seria verificar se as modificagdes socioculturais nas questdes de género tém influ- éncia nesses ntimeros: os estresses dos homens jovens sao (ainda) maiores do que no caso das mulheres? Estas t¢m melhores fatores protetores? F tambérh a idade de inicio ou de agravamento do abuso e dependéncia de drogas, comecado na adolescéncia, as vezes com substituigdo de drogas, conforme _ dados de Vaillant (1997). Ampliando o campo, idade de mortes violentas, como j4 foi dito no inicio deste capitulo: suicidios, homicidios (brigas, assaltos) e aciden- tes de transito. Ocasiao e motivo, portanto, de pensar em medidas preventivas, pessoais, comunitérias e institucionais, quando, por exemplo, considerarmos a freqiiéncia de mortes em festas ¢ recepgdo de calouros ¢ festas de encerramento de cursos universitarios. E como se, em tempos de paz, os jovens — principalmen- te os de sexo masculino — morressem nas cidades e estradas, transformadas em verdadeiros “campos de batalha”. Vejam-se alguns dados a seguir. Pesquisando dados recentes (1999) do Sistema de Informagiio sobre Mortali- dade (SIM) da Secretaria Municipal de Satide, as mortes por agressdo (arma de fogo) ocupam o primeiro lugar nos ébitos entre 20 e 40 anos, em Porto Alegre: 164 homens e 8 mulheres. Em quarto lugar, estiio os acidentes de transito: 58 homens e 7 mulheres. Os dados de Sao Paulo, relativos a 1996, nao séo muito diferentes: homicidios, em primeiro lugar, dos 15 aos 24 anos (734 homens e 65 mulheres) e dos 25 aos 34 anos (694 homens e 37 mulheres), passando para segundo lugar dos 35 aos 49 anos (382 homenis e 37 mulheres), quando a AIDS passa para o primeiro lugar. Os suicidios esto em quarto lugar dos 15 aos 24 anos (31 homens e 12 mulheres). Os acidentes de transito estavam em primeiro lugar dos 5 aos 14 anos, indo para segundo dos 15 aos 24 anos (118 homens e 29 mulheres) e para terceiro na faixa dos 25 aos 34 anos. O Ciclo da Vida Humana 151 Nos Estados Unidos, tendo como fonte secundaria Papalia e Olds: segundo dados de 1993, os acidentes ocupam o segundo lugar entre zs principais causas de morte entre 25 ¢ 44 anos. Suictdios e homicidios ocupariam o quinto lugar, depois do cfncer e das doengas cardfacas. Mas, citando Fingerhut e Kleinman (JAMA, 1990), os autores antes citados escrevem que “trés quartos (75%!) das mortes nos Estados Unidos (no caso de jovens) envolvem armas, comparadas com apenas um quarto daquelas em pafses com controle de armas mais rigoroso”. Ampliando ainda mais o campo, esta é a idade da AIDS e de outras DSTs. Usando a mesma fonte, SIM 1999, temos doenga por HIV ocupando o segundo e 0 terceiro lugar nas causas de bitos entre 20 e 40 anos: 118 homens e 40 mulhe- tes e 80 homens e 25 mulheres. Nos dados de So Paulo (1996), a AIDS aparece em terceiro lugar dos 15 aos 24 anos (45 homens e 28 mulheres), sobe para segundo dos 25 aos 34 anos (384 homens ¢ 122 mulheres) e chega ao primeiro na faixa dos 35 aos 49 anos. Nos Estados Unidos, segundo os dados de 1993, a AIDS éa principal causa de morte das pessoas entre 25 e 44 anos, com os homens tendo cinco vezes mais chance de serem infectados. Os dados so por demais impressionantes quanto aos riscos que rondam os adultos jovens, especialmente do sexo masculino, merecendo um estudo & parte. No entanto, esta segio nao pode ser encerrada sem lembrar que as doengas coronarianas e cerebrovasculares, principais causas de morte na populagdo maior de 50 anos, so doengas crénicas, que comegaram antes dos 50 anos. O mesmo vale para as doengas pulmonares, bronquite, enfisema ¢ asma, segunda causa de morte na etapa seguinte 4 do adulto jovem. O CENARIO DA SEXUALIDADE, DA INTIMIDADE E DO AMOR Eu sou o que sou; a vida é 0 que é. O que isso tem a ver com felicidade? {uma pessoa que ignora o que é amar] (Freire Costa, 1999) Essa é a idade de amizades e de namoros diferentes dos da adolescéncia. Nela, muitas pessoas vao casar, conceber, gestar, parir e amamentar filhos. Cabe destacar que, dados os avangos na reproducio humana, hoje, cada uma dessas etapas pode ser feita por uma mulher diferente e, na clonagem, mesmo sem uma mulher, provo- cando profundas repercussées no cenério da sexualidade, da intimidade e do amor. Muitas dessas repercussées s6 serio conhecidas mais adiante. Contudo, na seqiién- cia mais comum, as pessoas, ainda na condigao de adultos jovens, vao acompanhar seus filhos na infancia ¢ pelo menos em uma parte da adolescéncia (por exemplo, tendo o primeiro filho aos 22 anos, seus pais estardo com 37 anos quando ele tiver 15 anos). E também a idade de, eventualmente, perder os pais, vé-los aposentados, por idade ou doenga incapacitante (adulto jovem com 37 anos, seguindo o exemplo anterior, com pai/mée aos 60 anos, portanto 35 anos ou mais de profiss%o; 60 anos dos pais do adulto jovem: idade de doengas cardiovasculares, pulmonares, neoplasias, 152 Eizirik, Kapczinski & Bassols (orgs.) colagenoses ou mentais crdnicas). Isso também contribui para o paradoxo apontado por Elliot Jaques, na questiio auge/morte das pessoas criativas. Ea idade de se _ eparar dos pais (terceira individuagao, ruptura), indo morar sozinho, com colegas, migos, companheiro, nova familia. : Examinemos, entio, as dificuldades de amar do adulto jovem. O tema do adulto jovem aparece na literatura do século XIX, por exemplo, em A mulher de trinta anos, de Balzac. A leitura de alguns capitulos é instigante, por sugerir algumas supostas ou reais diferencas de género na época e para com- parar 0 que é ter trinta anos hoje - homem e mulher —e trinta anos naquele século ou em outras épocas. Sugere também que alguns dos problemas apontados hoje na cultura contempornea jé estavam sendo indicados por Balzac, apesar das » mudangas de cendrios. Esses problemas so relativos a intimidade, & sexualidade, ao erotismo e ao amor e As suas transformag@es, dentro do cenario da cultura contemporanea. Esta parece favorecer 0 narcisismo, como jé apontado por Christopher Lasch em A cultura do narcisismo e, recentemente, em uma bela pesquisa de Ménica do Amaral (1997). O narcisismo dificulta a individuagio ea intimidade, favorecendo 0 isolamento e daf os obstéculos para o amor. A autora citada mostra que a modalidade de narcisismo contempordneo favorece o indivi- dualismo, “privando o narcisismo — concebido essencialmente por Freud como um processo universal e necessdrio a constituigdio e formacio do ego — do seu objeto primordial de investimento” (Amaral, p. 18). Com as ressalvas j4 feitas quanto ao enfoque biologizante da psicologia do Ego de Erikson, seus conceitos continuam validos e titeis para a compreensio nao 86 do adulto jovem, mas particularmente da sua crise evolutiva especffica: intimida- _de versus isolamento, Nas suas palavras, 0 individuo seguro da sua identidade pode agora arriscar-se nas relag6es de intimidade, que Erikson define como “a capacida- de de se confiar a filiagSes e associagdes concretas [reais] e de desenvolver a forga _ética necessdria para ser fiel a essas ligag6es [ou vinculos] mesmo que elas imponham ‘sactificios e compromissos significativos...”. A pessoa pode ser capaz de “enfrentar © temor da perda do ego em situagdes que exigem auto-abandono: na solidariedade. das filiagdes intimas, nos orgasmos e unides sexuais, na amizade intima” e outras situagdes.Um tipo comum de “caverna” pode entio résultar da “evitagao de tais experiéncias, devida ao temor da perda do ego [que] pode conduzir a uma profunda sensaco de isolamento e uma conseqliente auto-absorgiio” (Erikson; 1976; p. 242- 3). O isolamento pode ser fSbico (medo de se expor), parandide (medo de ser ataca- do), esquizdide (retraimento excessivo social e emocional), narcfsico (“eu me amo”, “eu me basto”, “o outro nao existe”), depressivo (baixa auto-estima, como na frase do Groucho Marx, popularizada por Woody Allen, “eu ndo seria sécio de um clube que me aceitasse como sécio”), compulsivo (énfase na perfei¢ao e no trabalho, em detrimento das relagdes afetivas) e histérico (sedugdo, superficialidade, viver fanta- sias ou ilusdes). E Sbvio, pensando na variabilidade e singularidade humanas, que este € apenas um esquema pratico, servindo, talvez, para dar uma idéia - ainda que superficial - de que no existe sé uma maneira de um adulto jovem isolar-se do outro e da realidade. : ee — O Ciclo da Vida Humana 153 Uma observacao muito interessante — ¢ importante ~ de Erikson é quando. ele se refere ao isolamento a deux, em que ambos os membros do par amoroso se protegem do envolvimento emocional, criando obstdculos para superar a préxima crise generatividade versus estagnagao. A discussio quanto a genitalidade ficou comprometida, nesse texto de Erikson, pelo fato de 0 autor nao considerar a hipétese de uma relacio amorosa que nao seja heterossexual e pelo seu enfoque epigenético, como ja escrevi em outro lugar (Os6rio, 2000a). O personagem de Bruce Willis no filme Duas vidas pode ilustrar as nossas questdes: um sujeito bem do ponto de vista de status econdmico e financeiro (as aparéncias), mas mal do ponto de vista da intimidade: um workaholic, sem amigos, sem amor, as vésperas de completar 40 anos e que desistira dos seus sonhos da infancia e adolescéncia. O filme mostra alguém que “perdeu 0 contato”, “isolou-se” em relagao a si mesmo, a sua prépria “crianga”. Nao tinha intimidade consigo mes- mo. E, por falar em sonhos, jd que se falou tanto em realidade e no poder das fanta- sias, pode ter surgido uma contradig&o ou paradoxo. E um bom momento para es- clarecer que uma pessoa saudavel vive na realidade e tem sonhos e fantasias. A patologia estard em viver sonhos e fantasias ouem viver nos sonhos e nas fantasias. Neste campo, da intimidade, da sexualidade, do amor e do erotistno e das suas transformagées na cultura e sociedade contemporaneas, um autor que mere- ce ser lido e’estudado é Anthony ‘Giddens (1992), que examina também as ques- tes de género e de hetero e homossexualidade. : No que ele chama de relacionamentos “viciados” (patolégicos, compulsivos) hé uma obsessdo de encontrar “alguém para amar” e necessidade de uma gratifi- cacao imediata, ao passo que nos relacionamentos intimos (saudéveis) encontrare- mos @ desenvolvimento do eu (da subjetividade e suas re-criagdes: lembre-se de Shakespeare e Freud) “comoa principal prioridade, além de um desejo de satisfaciio_ a longo prazo, com o relacionamento desenvolvido passo a passo e com liberdade de escolha” (Giddens, p. 107). Esta tiltima questio seré examinada em mais detalhes, a partir de Jurandir Freire Costa (1999), com seus estudos sobre o amor romintico, parte de uma pesquisa sobre sexualidade realizada no Instituto de Medicina Social da UERJ, na década de 90. Nela, 0 autor esclarece que, no-amor, “a dificuldade, entretanto, emerge, porque um dos principais pleitos (ou requisitos) amorosos — a liberdade de escolha —é internamente contraditério. Queremos que a pessoa amada seja livre para nos desejar, mas, sendo livre, pode escolher outro parceiro. A liberdade do outro se-toma fonte de desafio, citime e vontade de dominio. Se o outro, no entanto, abre mio de sua autonomia, perde o atributo, por exceléncia, da deseja- bilidade, a livre decisio de nos amar. O ciclo é infindavel”. (Freire Costa, p.145, baseado em OtAvio Paz). Sendo ambos 0s autores homens, seria importante ver essa questio do ponto de vista da mulher. A vontade dé dominio referida anteriormente pode ser relacionada com 0 que escreveu Anthony Giddens (1993) sobre as reagdes masculinas diante dos novos papéis femininos, da sua autonomia e da sua liberdade. Nas suas palavras, “2 medida que este controle [dos homens] comeca a falhar, observamos mais cla~ ramente 0 cardter compulsivo da sexualidade masculina — e este controle em declinio gera também um fluxo crescente da violéncia masculina sobre as mulheres. No momento, abriu-se um abismo emocional entre os sexos, e ndo se pode dizer com qualquer certeza quanto tempo ele levard a ser transposto” (Giddens, p.11). Outra regio masculina tem sido uma maior procura de psicoterapia e psicandlise por parte dos homens, observavel pelo menos em alguns consultérios e em publi- cagées sobre a masculinidade. | 154 Eizirik, Kapczinski & Bassols (orgs.) , O CENARIO DO MUNDO DO TRABALHO . : : Meu quadro (Os comedores de batatas) exalta assim 0 trabalho manual e 0 alimento que eles proprios ganharam honestamente (Van Gogh, 1885). » Oadulto jovem é a idade de consolidar passos na profissao talvez escolhida ainda na adolescéncia, tantas vezes inscrita no mundo interno, intrapsiquico, a partir dos “cendrios” da infancia. E 0 tempo dos primeiros empregos, de ganhar dinheiro, As vezes colaborando, também, no sustento de outros. Citando a drea da satide, & ‘a época da graduacio em Medicina, Psicologia, Odontologia, Enfermagem e ou- tros cursos, com tempo ainda para mestrado e doutorado e, em alguns casos, até mesmo 0 pés-doutorado. Serd que a nova economia afeta a satide mental dos adultos? Ou, como anda a vida adulta na economia neoliberal? Em participagio sobre o tema do ciclo vital (Osério, 1999), tentei responder a tais perguntas, valendo-me do cinema e de um livro de Richard Sennett: No tltimo filme de Stanley Kubrick, hi um didlogo entre o médico bem- sucedido, Bill Hartford (Tom Cruise), e Nick Nightingale, o pianista que trabalha de olhos vendados e s6 sabe se e onde vai trabalhar uma hora antes. Este vive no que se chama eufemisticamente de “economia informal” (que pode incluir, em portugués claro, “bicos” e subemprego). Nick fora colega de Bill na faculdade e abandonou 0 curso. Segundo alguns espectadores, a cena éa inicaem que oator * principal muda realmente a sua expressio facial. No diglogo entre ambos, 0 mé co realmente ndo consegue entender a situacio do seu amigo na economia neoliberal ou no novo capitalismo, para usar a expressio de Sennett. Neste atual cendrio — seja brasileiro, norte-americano, etc. —, com suas co- nhecidas diferengas os modernos locais de trabalho promovem.o comportamento > a curto prazo, 0 enfraquecimento da lealdade e os valores de camaleao. Estes incluem os dois ou trés discursos, conforme as audiéncias, os critérios e as deci- ses “éticas” varidveis de acordo com os indices da inflagao e da maior ou menor flexibilidade das bandas cambiais. A familia, pelo contrario, enfatiza a obrigagio formal, a confianga, o compromisso mituo e o senso de objetivo, todos, segundo o autor citado, virtudes a longo prazo (Sennett, 1999). Note a semelhanga dessas questdes da drea “’9 trabalho com as do outro cenfrio, do amor e da sexualidade: a busca da satisfagio a curto prazo, o fracasco O Ciclo da Vida Humana 155 na lealdade amorosa e as dissimulagdes (que Balzac apontara jé por volta de 1830) ou os fingimentos ou vidas de ficgio da cultura contemporanea. Pode-se aproveitar um erro (intimidade versus estagnagdo) do capitulo “Idade adulta” de Calvin Colarusso (Sadock e Sadock, 2000), onde ficaram imbricadas as crises do adulto jovem (intimidade versus isolamento) coma crise da idade seguinte (generatividade versus estagnago): ele também serve para mostrar, ainda que involuntariamente, que os dois cendrios se imbricam, que o fracasso em alcancar a intimidade nao se reflete apenas no campo do amor e da amizade. COMENTARIOS FINAIS Este capitulo no pretende substituir o estudo nas suas referéncias ou fontes pri- miérias, particularmente os capitulos de Erikson, Lidz, Papalia e Olds e Colarusso, além dos livros de Giddens, Sennett, Freire Costa ¢ Harold Bloom. Nao obstante, como foi antecipado em varios momentos, vale aqui, como conclusio e reconhe- cimento, uma breve sintese de Colarusso, responsvel pelo capitulo da idade adulta nas duas tiltimas edigdes do conhecido Kaplan e Sadock. Para este autor, nem o conceito de fases ou est4gios (Freud, Erikson), nemo de processos evolutivos, seriam’satisfatorios para definir as experiéncias que modelam a mente em evolugdo na vida adulta. Recordemos a metéfora da viagem de trem e dos movimentos do passageiro (estrutura com transformag6es e proces- 80). Colarusso propde a inclusio do conceito de tarefas evolutivas do adulto jo- vem e maduro, para se referir As maiores ou principais experiéncias da vida nessa etapa, que produzem mudangas intrapsiquicas em todas as pessoas desse grupo. Sio elas o trabalho, a paternidade/maternidade e a aposentadoria (esta no caso do adulto maduro). Mas, antes de enunciar as tarefas, é fundamental que 0 leitor nao pense nelas como tarefas comportamentais, externas. TAREFAS EVOLUTIVAS DO ADULTO JOVEM (20 A 40 ANOS)* 1. Desenvolvimento de um sentido do self e do outro — a terceira indivi- duagdio, com busca do preenchimento das lacunas deixadas pelas duas outras (infincia e adolescéncia). Ele permite uma separagio psicolgica_ dos pais da infancia ¢ uma (relativa) auto-suficiéncia no mundo adulto;_ facilita a relagdo de reciprocidade com os pais. 2. Desenvolvimento de amizades adultas, mais dificeis de serem mantidas, diferentes daquelas da adolescéncia. Amizades com pessoas de diferentes idades, e de diferentes backgrounds, (“Nao vale” sé pessoas da mesma idade, da mesma profissio, do mesmo nivel sécio-econdmico-cultural, étc.) *Colarusso, 1995, 2000, com modificagées « 156 Eizirik, Kapczinski & Bassols (orgs.) 3. Desenvolvimento da capacidade para a intimidade emocional e sexual. Rever a crise conforme Erikson: intimidade versus isolamento (resulta- do: amore filiagio). 4, Tornar-se pai ou mae em termos biolégicos e psicolégicos, capacidade esta baseada em antecedentes ou conquistas desenvolvimentais prévias: identidade de género nuclear na infancia, consciéncia da diferenga entre 08 sexos, resolugio saudével do Edipo, integracio, na fase da laténcia, de atitudes pessoais, familiares e sociais em relagio 4 masculinidade e feminilidade, evolugio da vida sexual na adolescéncia e experiéncias evolutivas de sexo ¢ intimidade na fase de adulto jovem. (Engravidar pode até ser facil; dificil é ser pai ou mae.) 5. Formacio de uma identidade profissional adulta, encontrando um lugar gratificante no mundo do trabalho. (Atengdo para as diferencas entre tra- balho, emprego e subemprego na nova economia. Rever Sennett, jd cita- do, e outros autores.) 6. Desenvolvimento de formas adultas de brincar. Manter-se em contato com “a crianga de cada um de nés”; no esquecer que o brincar é a base do inyentar, do criar, do descobrir, essenciais na atividade artistica e cien- tifica. : 7. Tomada de consciéncia da limitago do tempo e da morte pessoal, de forma integrada. (Rever a hipétese de Elliot Jaques: auge versus morte” nas pessoas criativas entre os 35 e 39 anos.) AGRADECIMENTOS Agradeco a Débora Gongalves da Silva, Deise Marcela Piovesan, Denise G. da Silva Machado, Livia Smidt e Thais Milldn, académicas de Medicina, alunas de DAT em 2000/1, pelas suas sugestdes e, principalmente, pelo seu entusiasmo e dis- posiciio. Agradeco também aos alunos de sucessivas turmas de DAI, pelas criticas aos contetidos ou forma de alguns textos ou indicagdes bibliogrdficas para esta disciplina. E a Ticiano e Marilia Borges Osério, meus filhos, pelas valiosas colaboragées. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS ALVAREZ, A. O Deus selvagem: um estudo do suicidio. 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Liade Adulta: Meia-Idade Regina Margi, Aristides Volpato Cordioli A meia-idade é uma fase do ciclo vital que se estende aproximadamente dos 40 aos 60 anos. A transigdo do adulto jovem para o de meia-idade é lenta e gradual, sem modificagdes abruptas fisicas oui psicoldgicas. Resumir e reavaliar so caracteristi cas marcantes do perfodo, mesmo quando no levam a quaisquer mudangas naté- nao as metas, mas também as SatisfagGes interiores, em considerar se o queapessoa conseguiu é compativel com os seus sonhos ¢ idéias anteriores. Nestes anos, adultos intermedidrios, a maioria das pessoas progride na carreira profissional, na vida conjugal e familiar, nas 4reas civico e socioeconémica, tenden- do a ocorrer a consolidagiio dos ganhos anteriores. De acordo com a concepgio de Erikson dos oito est4gios do ciclo vital, na meia-idade 0 individuo encontra-se no estagio psicossocial: generatividade versus estagnagdo. O termo generatividade aplica-se nao tanto a Criar € ensinar a propria “prole; mas 4 preocupagiio protetora por todas as geracées ¢ instituigdes sociais. Segundo Erikson, generatividade designa principalmente a preocupagao em estabe- lecer e orientar a geracio seguinte. A partir de um comportamento generativo a pessoa é capaz de passar adiante conhecimentos e habilidades. A virtude associada nesse est4gio é 0 cuidado. Os aspectos duradouros da formaciio de identidade sao: “Tideranga e partidarismo versus abdicacao da responsabilidade, Considerando'o proposto por Erikson, uma falha na generatividade pode significar uma estagnacao pessoal. A estagnacao pode estar mascarada em dife- 160 _Eizirik, Kapezinski & Bassols (orgs.) rentes comportamentos da pessoa. Pode ocorrer uma crise na meia-idade, e as conseqiiéncias sfo percebidas nos proprios individuos, nos que os cercam e nas diferentes organizagdes que deles dependem. AS TAREFAS EVOLUTIVAS DA MEIA-IDADE As tarefas evolutivas da meia-idade sao: : — aceitagio do corpo que envelhece; ~ aceitagiio da limitagao do tempo e da morte pessoal; “ — manutengio da intimidade; — teavaliagio dés relacionamentos; “ —_ relacionamento com os filhos: deixar ir, atingir igualdade, integrar novos membros; ¢~ — relagiio com seus pais: inversio de papéis, morte e individuagdo; —_exercicio do poder e posigao: trabalho e papel de instrutor; ~~ ~~ novos significados, habilidades e objetivos dos jogos na meia-idade; ~ — preparago para a velhice. TRANSICAO E CRISE NA MEIA-IDADE A transi¢ao na meia-idade é um fendmeno evolutivo normal quase universal. A crise na meia-idade é um estad& patologioo vivenctado por poucgs. Colarusko gico_vivenciado por poucos. Colarusso (2000) cita que a “transigo consiste numa avalago intrapsiquica de todos os ‘aspectos da vida, precipitada pelo reconhecimento crescente de que ela é finita. Essa transigGo passa pela reavaliagao de diversos aspectos da vida, pela necessi- dade de tomar decisées para a manutengao de estruturas como 0 casamento, a Tamilia, as amizades ¢ a carreira, que foram construida: Na meia-idade, também pode ocorrer um perfodo de crise ou de ruptura. O conflito se estabelece entre manter tais estruturas, abdicar de sonhos mais ambicio- sos ou fantasias, satisfa 3 ue foi ob! ua ruptura, para novas tentativas seja na vida profissional, amorosa ou familiar, A crenca subjacente pode “serade que esta éa ultima oportunidade: adiar serd tarde demais”. Para aqueles que entram na meia-idade com uma patologia significativa e um sentimento de frustra- do com suas realizagGes, enfrentar a tarefa evolutiva de perceber a limitag’o do tempo e a prdépria morte pode precipitar sintomas que configuram uma verdadeira iss peso natureza psicoldgica e existencial: a crise da meia-idade. egundo Elliott Jacques (1966), a crise em relagdo A capacidade criadora pode expressar-se de trés formas diferentes: a carreira criadora pode acabar; pode mostrar- se pela primeira vez ou pode produzir-se uma mudanga decisiva na qualidade e no contetido da criatividade. O trabalho criador no adulto maduro, algumas vezes, pode O Ciclo da Vida Humana 161 parecer niio elaborado externamente, no entanto, o que parece uma criagio répida e no elaborada é geralmente uma reelaboragdo de temas que jé haviam sido trabalha- dos anteriormente ou que foram emergindo lentamente ao longo dos anos de trabalho. No désfecho da crise; pesarir diferentes fatores, como o grau de satisfagdo ou insatisfagdo com o que foi obtido; o grau de confianga em si mesmo eas expectativas de sucesso; a auto-estiia; a capacidade de correr riscos e conviver com incertezas. Em resumo: a solidez das estruturas de ego, estabelecidas ao longo das etapas anteria: tes. Hé 0 predominio de defesas mais maduras, o estabelecimento de uma identidade propria, autonomia, ter completado ou niio de forma satisfat6ria o processo de separa- Gdofindividuagio, a integridade pessoal, o predomiinio de formas mais ou menos adap- tativas de lidar com os desafios e medos proprios de cada fase, etc. Pesam ainda o grau « de exigéncia consigo mesmo, a coeréncia éntre pensar/sentir/agir e a intolerncia com a discrepncia ou incoeréncia entre esses diferentes niveis. Individuos com déficits em-tais estruturas, mesmo em altos niveis de insatisfagao, por desacreditarem em suas capacidades e seus potenciais, podem preferir a estagnagiio, a acomodacio a situag6es insatisfatérias cdmo forma de fuga de conflitos e evitar um aumento da ansiedade, solugdo que acarreta uma reducio da auto-estima, insatisfaco, desespe- ranga e quadros depressivos. Podem recorrer ainda a solugées paliativas como rela- cionamentos paralelos, abandonos intempestivos de carreiras profissionais promis- soras, rupturas com antigos relacionamentos e amizades, muitas vezes, de forma impensada ou até mesmo desadaptativa e, em outras, de forma criativa e renovadora. Elliott Jacques (1966) ressalta que o cendrio psiquico entie a realidade e a inevitabi- lidade da propria morte € ponto centrale Basico dessa fase, que caracteriza a nalureza “GHitica desse perfodo. Segundo omesmo autor, areagao de cada um frente ao entrenta mento da metade da vida com a realidade da propria morte a qualquer momento, seja a capacidade para enfrentar esta realidade ou a negacao da mesma, encontra-se inten- samente influenciada pela relagao inconsciente infantil que se ii com a morte, Telagdo que depende da etapa e da natureza da elaboragao da po: depressiva. A aceitagao da limitagao do tempo pode estimular uma Maior apreciagao de valor de relacionamentos, uma reavaliacdo dos objetivos e um ordenamento de prioridades. LL RR Cc — ~ ALTERACOES FisICAS As mudaneas fisicas, nessa fase, provocam um efeito significativo do ponto de vista psicolégico. Com o envelhecimento, pensamentos, sentimentos a respeito da idade corporal, falhas de meméria e da capacidade de raciocinio sao mais freqiientes Preocupagées com o disfargar/esconder a idade podem ser observadas e, muitas vezes, provocar uma busca de cirurgias plasticas ou de longos perfodos em acade- mias, qué pode ser excessiva. O envelhecimento, o declinio de capacidades fisicas como déficits visuais, a diminuigao da forga fisica e da agilidade, o evidente aumen- to do aparecimento de doengas na prépria pessoa e nos contempordneos e a ocor- Instituto de Psicologia ~ UFRGS Biblioteca 162 Eizirik, Kapczinski & Bassols (orgs.) réncia de mortes devido a estas comecam a fazer parte das vivéncias dessa fase da ‘vida e, muitas vezes, sio acompanhados de intensa ansiedade. As taxas de mortalidade e morbidade permanecem baixas até aproximada- mente os 50 anos, quando passa a s¢ observar uma aceleragdo progressiva. As principais causas de morte modificam-se com a idade. As mortes violentas por acidentes ou suicfdio so a causa principal de morte nas fases anteriores. A partir dessa idade, as doengas degenerativas, as cardiopatias e o cancer (de mama e préstata) tornam-se mais proeminentes, bem como as mortes que causam. Além desses aspectos, também é um periodo de elevada ocorréncia de trans- tomnos psiquidtricos, como depressio, transtornos mentais organicos, alcoolismo e diminuiciio do interesse sexual. ALTERACOES HORMONAIS As alteragdes ocorrem tanto na aparéncia, com mudangas facilmente identificdveis como a cor do cabelo e alteragio no aspecto da pele, como internamente, como, por exemplo, as alteragdes hormonais nas mulheres. : Os aspectos que envolvem 0 perfodo do climatério receberam atengio cres- cente nas tiltimas décadas. O climatério é uma fase de transic&io da vida reprodutiva para a ndo-reprodutiva. A menopausa é o tltimo perfodo menstrual identificado retrospectivamente apés 12 meses de amenorréia. Wender e colaboradores (1996) citam que esse é um perfodo de modificagées hormonais. Inicialmente, h4 uma redugdo da resposta ovariana as gonadotrofinas, processo que énvolve deplegao dos oscitos e diminuig&o da produgdo da inibina. Os niveis de FSH, inicialmente, elevam-se de maneira ciclica. Geralmente, a duragiio dos ciclos se reduz para 21 a 24 dias, o que se relaciona 4 diminuicao da fase folicular do ciclo menstrual. A maioria dos ciclo’ é anovulatéria, a produgao de progesterona cai © a secrecao de estradiol é erratica; os ciclos anovulatérios podem durar de 14 dias até varios meses. Assim, ocorre uma instabilidade da mulher a respeito do momento da sua préxima menstruagdo, Hé im aumento da secregdo de gonadotrofinas no clima- térionos dois ou trés anos apés 1 menopausa; apés, ocorre um declinio gradual nos 20 a 30 anos seguintes. O ovario pés-menopdusico permanece com sua produgio de androstenediona e testosterona; a adrenal também mantém a producao desses hor- minios. O estrogénio circulante mais importante na mulher pés-menopdusica é a es- trona, cuja principal fonte provém da conversio periférica da androstenediona. Tendo em mente toda essa alterago hormonal, é esperado que ocorram manifestag6es clinicas caracteristicas desse perfodo. Na pré-menopausa a irregu- laridade menstrual ja é freqiiente. O sintoma mais tipico da mulher climatérica é 0 fogacho, ujna alteragdo vasomotora que ocorre em até 80% das mulheres e j4 pode ser observado em mulheres na pré-menopausa. Partes dos epitélios vesical e uretral sio estrogénio-dependerites, assim ocorrem alteragdes como atrofia urogenital provocando queixas como ressecamento vaginal, dispareunia, vaginites O Ciclo da Vida Humana 163 € uretrites atr6ficas e agravamento da incontinéncia urindria ao esforgo. Também € observada uma perda acelerada de coldgeno provocando ressecamento e redu- go da espessura da pele. Além desses achados, também se observam patologias relacionadas & deficiéncia estrogénica prolongada como doengas cardiovasculares e osteoporose pés-menopdusica. Nos homens, essa transigdo da meia-idade nio é tio claramente percebida. No entanto, também ocorrem alteragGes em relagio ao funcionamento prévio. De acordo com o que é citado por Presti ¢ colaboradores (1998), aproximadamente 50% dos homens sofrém algum grau de impoténcia a partir dos 40 anos de idade; no entanto, a prevaléncia niio é bem estabelecida. Segundo o National Center for Health Statistics (1985), a disfungo erétil estd intimamente ligada 4 idade, com uma incidéncia de impoténcia moderada/severa de 1,9% dos homens aos 40 anos e cerca de 25% aos 65 anos de idade. FAMILIA Como mencionado anteriormente, a meia-idade é um momento em que sio feitas teavaliagSes; nestas, se incluem particularmente os relacionamentos. Por exemplo, quanto ao casamento, dtividas se devem continuar ou nao com os relacionamentos que possuem ou buscar um novo parceiro. Em alguns, esse conflito é ocultado; em outros, se expressa pela agdo, como tentativas de separagdo, casos extraconjugais. Essa decisio geralmente provoca conseqiténcias nao sé para as duas pessoas envol- vidas, mas também para os filhos, os pais e os parentes mais proximos. Essa fase pode significar um teste para o casamento, uma vez que os filhos j4 no mais constituem o principal foco de atengao e o casal esté novamente entregue asi s6, Para Erik Erikson e Harry Stack Sullivan (1953), a capacidade para intimidade € parte importante do desenvolvimento. Um bom casamento proporciona seguranca, pois os parceiros estiio certos da afeigdo da pessoa mais importante para ele ou ela. Para que a intimidade sexual continue, os parceiros devem aceitar a aparéncia do outro e continuar a ach4-la sexualmente excitante, aceitar as mudangas na sua propria aparéncia e aceitar as mudangas que ocorrem no funcionamento sexual. Para muitos casais, o ajustamento sexual é mais satisfat6rio do que quando eram jovens, pois j4 conhecem as necessidades miituas e as formas de satisfazé-las, Nos relacionamentos que se iniciam na meia-idade, além das preocupagdes reais e imaginérias sobre a diminuigao da capacidade sexual e o retraimento emocio- nal, hé um aumento das presses relacionadas ao trabalho, com o sustento de filhos dependentes e, por vezes, de pais idosos, com a manutengio da intimidade que pode ser comprometida pela auséncia de um passado em comum ou pelas diferencas que foram-se acumulando ao longo dos anos em fungio de diferentes progressos nas respectivas carreiras, circulos de amizades, conquistas pessoais, etc. Os individuos com problemas com a sexualidade podem fazer uso do enve- lhecimento, do trabalho e do relacionamento com 05 filhos ¢ com os pais idosos | i i : I i | -164 Eizirik, Kapczinski & Bassols (orgs.) como forma de justificar seu desinteresse, evitando, com 0 uso da racionalizagio, o enfrentamento de seus conflitos. Com 0 passar dos anos, os filhos passam a ser adolescentes e adultos jovens. Hé uma mudanga no equilibrio do poder entre pais e filhos que tende a ser gradu- al. No entanto, so freqiientes os conflitos nessa fase: dificuldades de separagio (sobretudo por parte dos filhos), conflitos de poder e autoridade (competigio), dificuldades dos pais em confiar e delegar poderes. Muitos podem sentir inveja da vitalidade dos filhos e reviver de forma ressenti- da ou deprimida oportunidades perdidas. Os pais devem reconhecer a individuagao de seus filhos, propiciando assim a consecucao de identidades firmes de ego. Pikunas (1979) cita que, com o crescimento e a independéncia dos filhos, a mie pode sentir-se aliviada pela diminuig&o da carga do trabalho doméstico ¢ da responsabilidade, mas também lamenta e sente um vazio na sua vida —a sindrome do ninho vazio. Ela pode perceber os filhos como ingratos e negligentes em relagdo a ela que tanto fez por eles. Com o crescimento dos filhos, muitos tendem a se deparar com a promissora sexualidade dos adolescentes e o declinio da sua. Pais saudaveis lutam com a sua inveja e preocupagdes conscierites e inconscientes e gradualmente aceitam que seus filhos passarao a ter uma vida sexual ativa. ‘Aos sogros cabe renunciar & pretensao de estarem na posigao de principal objeto de amor na vida dos seus filhos, aceitar 0 novo parceiro e cultivar sua amizade. Como 0 cénjuge e 0 progenitor do mesmo sexo amam a mesma pessoa, forma-se um tridngulo semelhante ao triangulo edfpico infantil. O nascimento dos netos pode desencadear em alguns a sensagdo de estarem velhos. Fiske (1981) reforga que a condi¢do de avé é recebida com prazer por muitos, pois os netos podem servir como substitutos parciais dos filhos “‘perdidos”. Como os netos possibilitam uma ligagio entre o desenvolvimento da meia-idade e os temas da infancia, muitos encaram a condigdo de avé como uma confirmagao da renovaciio ou continuidade bioldgica. Para alguns, a atragiio pelos netos nao substitui em importancia outros interesses extrafamiliares e isso pode ser mal compreendido, surgindo uma fonte de conflitos entre geracdes. O cuidado dos pais é uma tarefa evolutiva dificil, tanto pelos aspectos finan- ceiros e administrativos como pelo fato de forgar, de certa forma, um reexame dos temas da infancia, concentrando a atengao nas limitagdes do tempo e na prépria morte. Com essa inversio de papéis, os filhos passam a antever o falecimento dos pais e isso pode estimular uma separagio psicolégica. ‘A doenga de um dos pais pode constituir a maior fonte de tensio na meia- idade. Hé ainda um aumento da ansiedade em face da perspectiva da inversiio que ir ocorrer com seus préprios filhos. A esquiva dessa tarefa evolutiva pode levar a conseqiiéncias psicolégicas, incluindo uma depressio de inicio tardio. Enfim, se considerarmos que os filhos esto saindo da casa dos seus pais cada vez mais tarde, por diferentes motivos, como dificuldades de trabalho, con- digdo financeira, perspectivas de diminuig&o do nivel de vida, pode-se considerar que os individuos de meia-idade tém tido uma sobrecarga por precisarem ainda cuidar dos filhos (25-35 anos) e dos seus prdprios pais (70-90 anos). O Ciclo da Vida Humana 165 PROFISSAO, O trabalho é um organizador psiquico. A meia-idade tende a ser uma época de realizag6es do exercicio do poder, resultado de anos de trabalho. Muitas vezes, as gratificagdes narcisistas em relagio ao trabalho podem ser consideraveis, com- pensando a realidade didria, podendo acontecer de o trabalho transformar-se na principal fonte de gratificagdio. Com o progresso na posigiio ocupacional, o avan- ¢o econémico também tende a nivelar-se. 7 Segundo Lidz (1983), com 9 passar dos anos, na meia-idade, muitas pessoas, sejam executivos ou trabalhadores bracais, preocupam-se mais em manter a posi- Gao © a seguranca atingidas em vez de procurar outras oportunidades, mesmo que melhores. Geralmente, com 0 aumento da idade, a seguranga do futuro progressiva- mente vai tendo precedéncia sobre a oportunidade, mas nem todos sao assim. Outro aspecto em relagao ao trabalho nessa etapa da vida consiste em reconhe- cer a justaposig&o da realizagio e do poder ¢ a aceitag&io do eventual deslocamento pela préxima geracdo: 0 conflito do instrutor que passa o conhecimento para a pré- xima geracdo enquanto reconhece que isso levard ao seu eventual deslocamento. Nas pessoas saudaveis, a raiva e a inveja geradas por essa compreensio no so atuadas, so. sublimadas no sentido da generatividade. Em alguns individuos, podem ocorrer ataques verbais ou atitudes com a intengdo de impedir o desenvolvimento e a progressdiodo outro. Existem carreiras que chegam ao fim na meia-idade e os que as seguem podem ter dificuldades, se nao estiverem preparados. Alguns individuos nessa faixa etdria perdem o emprego por diferentes razdes: a acelerada mudanca que se verifica no mercado de trabalho, no qual a atividade em si tem precedéncia sobre o emprego; as exigéricias cada vez maiores no que diz respeito a qualificagdo profissional (dominio de linguas estrangeiras, familiaridade com o uso de computadores), decorrentes das novas tecnologias de produgao, como a da automaciio, por exemplo; a concorréncia gerada pela globalizagio, que obriga a uma diminuigao de custos e as proprias mu- dangas aceleradas do mercado. As pessoas na meia-idade nao sio bem-vindas em campos nos quais no esto treinadas; j4 os trabalhadores especializados, muitas vezes, tendem a resistir ao treinamento. 7 APOSENTADORIA Umacontecimento relevante dessa fase de vida, pelos seus intimeros significados, 6 a aposentadoria. Aguardada, muitas vezes, como uma solugio magica quando a. nsatisfagdo ou os conflitos no trabalho so muito intensos ou como a ocasifio de. realizar os sonhos que ndo puderam ser realizados nas etapas anteriores, a aposenta- doria pode ser vivenciada como uma perda tanto nos aspectos financeiros, como no poder e nas relacGes sociais vinculadas ao trabalho e, nao raro, traz grandes desi sdes, sendo desencadeante de desadaptagies, crises emocionais ou transtornos psi- quidtricos como a depressio, 0 abuso de dlcool ¢ 0 isolamento social. 166 Eizirik, Kapczinski & Bassols (orgs.) Em conseqiiéncia da aposentadoria, ocorre uma mudanga nos papéis que pode ser acompanhada por sentimentos de inutilidade,,improdutividade e dimi- nuico da auto-estima, também por caracteristica de nossa sociedade, que tende a valorizar o poder e a produtividade. Na Constituigdio da Republica Federativa do Brasil, promulgada em 1988, consta do seu Capitulo II, Artigo 7°, inciso XXIV, que a aposentadoria é um direi- to dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem a melhoria da sua condigao social. Na Constitui¢ao, nos seus Artigos 40 e 201, so expostos aspec- tos referentes 4 aposentadoria e seus proventos. No entanto, observa-se que a vasta maioria das pessoas, apesar do direito assegurado na Constituigdo, tem difi- culdade de se manter com os proventos da aposentadoria, ocorrendo, muitas ve- zes, inclusive um declinio financeiro. MEDIDAS PREVENTIVAS ‘Uma das tarefas importantes da meia-idade € a preparagdo para.a cl mada tercei: 1a idade ou velhice (fala-se jd na quarta idade). Algumas providéncias sao essen- ciais para compensar as perdas ocorridas no perfodo, que podemos denominar de decdlogo da meia-idade: 1. Manter a satide fisica com a prevencao das doengas degenerativas. Alguns cuidados sao criticos nesse sentido, Nas mulheres, a detecgiio pre- coce do cancer de mama e do colo do titero; nos homens, o exame periddi- co do PSA e da préstata. Tanto nos homens como nas mulheres a preven- go das doengas cardiocirculatérias: exame periddico da pressio arterial, niveis séricos do colesterol, glicemia (detec¢do do diabetes), abolic¢ao do fumo e do abuso de bebidas alcodlicas; prevengdo da osteoporose (exerci- cios, reposig&o hormonal e ingesta adequada de cAlcio em mulheres). Si fundamentais ainda o exercicio fisico, a redugio do estresse, os hdbitos saudaveis de alimentago (abolig&o de comidas gordurosas) e 0 sono. 2. Independéncia econémica: chegar ao final dessa fase de vida com reservas ou com uma aposentadoria ou aposentadorias complementares que permitam manter um nivel minimo de qualidade de vida e no de- pender dos filhos. 3. Ter seu préprio espaco fisico ou moradia, para no ter que morar com 8 filhos ou necessitar do apoio da assisténcia social publica e eventual- mente nao ter outra alternativa que a institucionalizagio. 4. Ter lacos de amizade e vinculos fortes com a familia: 0 isolamento social é um risco para a depressio e 0 suicidio, além de comprometer a alegria de viver, Poder ser ttil aos filhos auxiliando no cuidado dos netos e em outras necessidades. 5. Manter um relacionamento intimo com um(a) companheiro(a), pos- sibilitando uma vida sexual ativa ao longo da velhice: refazer um casa- O Ciclo da Vida Humana 167 mento desfeito ou conseguir um novo relacionamento, se ocorreu uma viuvez. 6. Ter um vinculo com a comunidade, seja em atividades voluntirias, “ organizagées nfio-governamentais ou hobbies ou grupos de lazer. 7. Manter-se sempre ocupado e com planos para o futuro: lazer, empre- endimentos, viagens. 4 8. Se possivel, manter um vinculo com seu antigo trabalho ou profissio (como consultor) ou reduzindo a um nivel compativel com suas energias e interesses, 9. Buscar ajuda na comunidade para os problemas fisicos (grupos de auto-ajuda) e emocionais (depresso, quadros demenciais, etc.) 10. Praticar exercicios, manter uma atividade fisica regular (caminha- das, hidroginAstica, etc). . REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS COLARUSSO, C.A. Adulthood. In: SADOCK, B.; Sadock, V. Comprehensive textbook of psychiatry, 7th ed. 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Nos Estados Unidos, a expectativa média de vida passard de 72,1 anos, em 1990, para 76,4 anos em 2050, para os homens, e de 79 anos para 83,3 anos, para as mulheres. A expectativa de vida aos 65 anos passard de 15 para 17,7 anos, no mesmo periodo, para os homens, e de 19,4 para 22,7 anos para as mulheres (Jarvik e Small, 1995). Quanto & América Latina, a previstio era de que a expectativa de vida passaria de 64,1 anos, encontrada entre 1980 e 1985, para 71,8 anos, em 2025. No Brasil, esses dados projetavam que o ntimero de idosos passaria de 6 milhdes (em 1975) para 31 milhdes, em 2025 (OMS, 1992). Embora dados mais recentes confirmem o continuo crescimento do néimero de idosos, também revelam a diminuigao da natalidade, o que caracteriza a situagao de “o pais que mais envelhece” (Jornal do Brasil, 09/06/96), ou “Brasil pode-se tomar um pafs de idosos” (Zero Hora, 18/07/97). Em 1996, jé havia 8,35% de brasileiros com mais de 60 anos, correspondendo a 12 milhdes ¢ 700 mil pessoas, dados que passaro, respectivamente, a 15%, ou seja, 33 milhdes em 2020, conforme as previ- soes atuais. Enquanto a populagao brasileira total terd crescido cinco vezes de 1950 170 Eizirik, Kapezinski & Bassols (orgs.) a 2020, ade velhos cresceré 16 vezes, em contraste com o que ocorrer4 na China, no Japiio (cinco vezes) e nos Estados Unidos (quatro vezes). Assim, verifica-se que 0 Brasil 6, atualmente, « pais com maior concentra- iio de idosos, proporcionalmente. O aumento do némero de pessoas com mais de 60 anos, de 1950 a 2025 (Jornal do Brasil, 1996, apud‘OMS), sera de 1.514,3%, 0 maior de todos os paises, seguido do México, da Nigéria, da Indonésia e da Chi- na. Segundo estimativas da OMS (Jornal do Brasil, 10/08/97), em 2020, o Brasil serd o quinto pais com maior néimero de idosos do mundo, em néimeros absolutos, atrds apenas da China, da India, dos Estados Unidos e do Japio. Esses dados expressam a mudanga do perfil da piramide demogréfica do pais, aproximando-a da dos paises desenvolvidos; a base, onde estiio os jovens, . estreita-se, enquanto 0 corpo e o cume, locais dos adultos e idosos, alargam-se (Folha de Séo Paulo, 09/06/97). A distribuicdo regional da populagio-de idosos revela que as maiores propor- ges destes encontram-se no sudeste do pais, correspondendo a 5,14% da popula- Gio. No Rio Grande do Sul, 0 terceiro Estado em populacio de idosos (apés 0 Rio de Janeiro e a Paraiba), existiam 9.637.682 pessoas em 1991 (IBGE, 1996), das quais 10,04% tinham 60 anos ou mais. Destes, 56,85% eram mulheres e 43,14%, homens. Assim, verifica-se um progressivo envelhecimento da populagiio, produzido pela coexisténcia dos progressos da medicina com a crescente redugiio das taxas de natalidade. Em termos histéricos, tal fato pode ser evidenciado pela constatagio de que 0 classico livro sobre a velhice, De senectude, foi escrito por Cicero em 44 a.C., aos 62 anos, um ano antes de sua morte. E hd um recente, sob o mesmo titulo, que apareceu em traducio brasileira como O tempo da meméria (Bobbio, 1997), cujo autor estava com 87 anos, em pleno vigor intelectual. A obra de Cicero consiste em um didlogo entre Cato, de 84 anos, e dois homens mais jovens, ao redor de 30 anos, em que o primeiro apresenta alguns dos aspectos positivos da velhice. A edicio latina original, De senectude, 6 considera- da a primeira obra impressa dedicada exclusivamente a velhice (Norman, 1994). Dentre as varias passagens dignas de atengao, podem-se destacar as seguintes: “Devemos preparar-nos para a velhice... devemos utilizar precaugGes, como faze- mos contra as doengas; grande cuidado deve ser tomado, em primeiro lugar, com nossa satide; todos os exercicios fisicos devem ser moderados, em especial nossa dieta; esta deve ser de tal tipo e em tais proporges que reforce a Natureza, sem oprimi-la. Mas nosso cuidado nao deve limitar-se apenas a nossos corpos; pois a mente requer muito mais, porque sem isto nao s6 decaird, mas nossa compreensio certamente feneceré na velhice como uma lampada nio suficientemente provida de dleo. O corpo, como sabemos, quando excessivamente sobrecarregado, torna- se pesado... mas é 0 exercicio apenas que suporta 0 espirito e mantém a mente em. vigor” (Cicero, 44 a.C.; p. 75-76). Mais adiante, afirma: “A velhice é sempre honrosa, quando toma o cuidado de proteger seus préprios direitos, deles nao desistindo facilmente, mas mantendo-os até o final. Pois assim como elogiamos os jovens, que mostram a solidez da idade, da mesma forma fazemos com os ' O Ciclo da Vida Humana 171 velhos, que expressam a vivacidade da juventude. E quem quer que siga este método, pode ficar velho e decaido no corpo, mas nunca decaird na mente, nem o fard em sua compreensio” (idem, p. 77-78). Além disso, Cicero enfatiza que os idosos podem manter sua presenga e utilidade social e concentrar-se na promogio da razio e da virtude, dessa forma, compensando a perda ou a redugdo do prazer sexual; ¢ por fim considera a morte como uma béngio, pois liberta o individuo e sua alma imortal da prisio do corpo e de suas limitagdes, Bobbio critica a visdo otimista de Cicero sobre a velhice, calcada nos elogios as capacidades e & sabedoria dos idosos. Destaca, por sua vez, que “a velhice se transformou em um grande e pendente problema social, dificil de solucionar nao apenas porque o ntimero de velhos cresceu, mas também porque aumentou o nii- mero de anos que vivemos como velhos. Mais velhos e mais anos de velhice: multipliquemos os dois ntimeros e obteremos a cifra que revela a excepcional gravidade do problema” (Bobbio, 1997; p. 25). Dessa forma, o pensador italiano enfatiza a relevancia social e econémica da velhice no momento presente e no futuro. Além dessa constatagio, abre caminho para pensar-se na “construgao do ser velho na sociedade moderna” (Vasconcellos, 1996; p. 39), que inclui toda uma série de medidas e atividades que levam ao “surgimento do cidadio velho no Brasil” (idem, p. 56), materializada na lei n° 8.842, da Presidéncia da Repiblica, de 4 de janeiro de 1994, que dispoe sobre a Politica Nacionaldo Idoso. Seguindo as diretrizes dessa lei, observa-se uma “oficializagio” do idoso na cena social, bem como “a mobilizacao de setores da sociedade no sen- tido de compreender quem é este idoso e quais so as suas verdadeiras necessida- des” (ibid, p. 63). No minucioso painel em que reconstr6i a trajet6ria historica da velhice, Minois (1987) transcreve o que é considerado o texto mais antigo em que um idoso fala de si mesmo. Trata-se de um egipcio que viveu ha quatro mil e quinhentos anos, e no qual o autor sugere estar presente o drama da velhice, em uma ponte entre milhares de gerages: “Que triste € 0 fim de um velho! Vai-se debilitando dia a dia; sua visio diminui, seus ouvidos tomam-se surdos; sua forga declina; seu coraciio jé nfo des- cansa; sua boca torna-se silenciosa e nao fala. Suas faculdades intelectuais diminuem, ¢ j4 nao consegue lembrar-se hoje do que Ihe ocorreu ontem. Todos os seus ossos doem. As ocupagées a que se dedicava até hé pouco tempo com prazer s6 consegue desempenhar com dificuldade, e o sentido do gosto desaparece. A velhice é a pior das desgragas que pode afligir a um homem” (Minois, 1987; p. 31). Essas so as palavras de Ptah-Hotep, vizir do Faraé Tzezi, da dinastia V, por volta de 2450 a.C. Minois (1987) descreve os sucessivos momentos da evolucao histérica da velhice: do patriarca ao idoso no mundo hebreu; a “triste velhice” no mundo grego; a grandeza e a decadéncia do ancido no mundo romano; 0 idoso como simbolo na literatura crist’ da Idade Média, bem como a indiferenga em relacio a idade nesse periodo; a diversidade social e cultural da velhice dos séculos XI. a XIII; a afirmagio do idoso nos séculos XTV e XV; a luta dos humanistas’e dos cortes&os contra a velhice no século XVI e a importancia real dos idosos a partir deste tiltimo. Conclui afirmando que cada civilizagao tem seu modelo de idoso e julga-o conforme esse ik, Kapczinski & Bassols (orgs.) padro. Quanto mais idealizado o modelo, mais exigente e cruel é a sociedade com 0 idoso, As varias descrigées feitas por Minois expressam jutzos de valor; a partir da constatagio da realidade, da velhice vivida, com o surgimento das ciéncias sociais, da psicologia, da psicandlise, da medicina moderna, passa-se a ter um conhecimento mais objetivo dessa etapa da vida. Oconhecimento das caracteristicas de vida e do estado mental dos idosos — assim definidas, segundo a OMS, as pessoas com idade igual ou superior a 60 anos — fez parte dos esforgos atuais em busca de intervengées preveitivas e cura- tivas mais eficientes (OMS, 1990). A partir dessas constatagées, 0 presente capitulo abordaré os seguintes as- pectos relevantes para a compreensdo da velhice como etapa do ciclo vital: as ‘perdas, a rede social, o estado mental na velhice, os avs ¢ os netos e a contratrans- feréncia ante os idosos. AS PERDAS NA VELHICE Uma vivéncia bisica e psicodinamicamente significativa no proccsso de envelhe- cimento siio as perdas, j4 mencionadas por Ptah-Hotep (Minois, 1987). Muitos acreditam que uma das tarefas evolutivas principais do individuo em processo de envelhecimento seja encontrar reparagio para as perdas biopsicossociais inevité- veis, associadas com esse estdgio do ciclo vital. Algumas das perdas mais fre- giientes nessa faixa etdria sdo a da satide fisica, a diminuigao das capacidades, a perda da companhia (sentimento de solid’o) e a perda do cénjuge. A perda do trabalho, o declinio do padrao de vida e a diminuigao das responsabilidades tam- bém sio sentidos por alguns pacientes como importantes (Eizirik, 1980). Para muitas pessoas idosas, é 0 efeito cumulativo de repetidas perdas, o qual impede a elaboragio do luto e sua resolugio, que é um fato tao devastador. Outra caracteristica dessa faixa etdria € a de que, ao contrdrio das etapas evolutivas precedentes, cujas perdas principais se referem a objetos externos, na velhice, elas tendem a centrar-se no proprio individuo. Trechos de entrevistas com idosos ilustram a maneira como se apresenta a temética das perdas: a perda da satide fisica, segundo um homem aposentado, “dé “uma sensagao de angustia, porque a gente tenta fazer as coisas endo consegue, 0 corpo nao ajuda mais”. Um homem institucionalizado, referindo-se 4 sua situa- Gao, relata que “hd dias em que fico pensando no meu estado de agora, nao sirvo mais para nada, eu que gostava tanto do servigo e agora nao posso mais fazer”. A perda das capacidades é aludida por uma senhora aposentada: “estou ficando que é um pesseguinho passado, miudinha, nao tenho coragem de fazer grandes coisas”. Aqui temos, pot meio da comparagio com a fruta passada, uma compa- ragdo plastica da perda de capacidades do ego, traduzida pela diminuigio das habilidades operacionais. O sentimento de solidao, resultante da perda de companhia, foi assim descrito por uma paciente: “sinto este vécuo por dentro. Me sinto sé, porque ndo tenho O Ciclo da Vida Humana 173 ninguém da minha familia, embora ndo me falte nada de material”. Quanto ao sentimento decorrente da perda do c6njuge, disse um homem aposentado: “parece que ela levou a minha alegria de viver, deixou minha vida empobrecida”. E uma mulher que se afastara do trabalho desde a morte do marido: “Perdi minha iniciati- va; sem ele me sinto pela metade, niio sei como fazer as coisas direito”. Essas frases expressam o sentido da perda conforme mencionou Freud (1917, p. 277), a0 dizer que “a pessoa sabe a quem perdeu, mas ndo o que perdeu com ele”, Utilizan- do oconceito de identificagdo projetiva, pode-se compreender que ambos os entre- vistados referiam-se ao fato de terem partes suas —a alegria de viver, a iniciativa — colocadas projetivamente nos conjuges com quem se identificavam. Morrendo es- tes, perderam tais partes, ficando provisoriamente empobrecidos. A perda é vivida como a retirada de um pedago, deixando um vazio, um vacuo interno (Eizirik, 1980). Em um grupo de psicoterapia breve psicodinamica de 10 pacientes do sexo feminino com idade média de 70 anos atendidas semanalmente no Hospital de Clinicas de Porto Alegre (Knijnik et al., 1999), os temas que constituem a base das interpretagdes na maioria das sessdes (0 foco) sfio as perdas ao longo da vida (morte do cénjuge, safda dos filhos de casa) e a ansiedade antecipatéria em rela- ao ao dia-a-dia dos seus familiares (medo de assalto, acidentes e doenga). A REDE SOCIAL NA VELHICE A teoria-das redes sociais descreve transagdes entre as pessoas. Cada individuo é um né da rede e cada troca é uma ligacdo. Virias caracteristicas das redes parecem relevantes em termos de suporte, particularmente nas populagdes de idosos. Uma rede social é geralmente definida pelos sociélogos como o conjunto de ligagdes dentro de um grupo especffico de pessoas, ligagGes essas cujas caracteristicas tém algum poder explanatério para o comportamento social das pessoas envolvidas. 6.0 conjunto.de individuos com quem se mantém contato e se tem alguma forma de laco social. O contato é necessdrio para se definir uma rede. Os contatos e as relacées sociais so meios importantes para que uma pessoa influencie o ambiente e fornecem ‘os caminhos pelos quais o individuo é influenciado pelo meio. As redes sociais referem-se, pois, aos papéis e lacos que ligam as pessoas por vias definidas de parentesco, amizade ou conhecimento, tais como cénjuges, pais, amigos intimos ou vizinhos. Assim, a rede social pode ser vista como a estrutura por meio da qual o suporte social é fornecido. As redes sociais podem ser operdcionalmente definidas em termos do tamanho, da composigiio (amigos, parentes), da localizagio geogréfica, da homogeneidade dos membros, da intensidade dos lagos e da densidade e inte- gracio. As redes e suas caracteristicas constituem-se em lagos importantes na medi- da em que preenchem as necessidades dos seus membros. Suas fungdes podem ser caracterizadas como 0 conjunto de contatos pessoais por meio dos quais o indivi- duo mantém a identidade social, recebe reforgos para a auto-avaliacao, suporte emocional (ser amado), ajuda material, instrumental (servigos), informages (sobre © meio).e novos contatos sociais (Bowling e Browne, 1991; Steinbach, 1992). ; 174 Eizirik, Kapczinski & Bassols (orgs.) Em pesquisas sobre necessidades de cuidados com a satide, a falta de suporte social tem sido associada com risco aumentado de mortalidade e demora na recupe- ragio de doencas. Dentre esses estudos, 0 de Steinbach (1992) oferece dados parti- cularmente relevantes. Sua pesquisa examinou 0 efeito das redes sociais sobre a institucionalizagiio e a mortalidade de idosos nos Estados Unidos. Seus dados pro- vieram do Estudo Longitudinal sobre o Envelhecimento, utilizando a base de dados de entrevistas realizadas em 1984, com uma entrevista de acompanhamento dois anos apés, incluindo 5.151 pessoas nao-institucionalizadas com idadés entre 70 e 99 anos (em 1984), das quais 61% eram mulheres, 90,4% brancos, 37% viviam sés e 43,8% com um cénjuge. Para avaliar a rede social, era verificado se 0 entrevista- do, nas tiltimas duas semanas, tinha realizado as seguintes atividades: falado ao telefone com amigos ou vizinhos; falado ao telefone com familiares; ter-se encontrado com amigos ou vizinhos; ter-se encontrado com familiares; ter ido a algum centro de idosos; ter ido a alguma igreja ou templo; ter ido ao cinema, a um evento esportivo ou semelhante, e ter tido alguma atividade como voluntério nos tltimos 12 meses. Code) Sd helt) ae Verificou-se que as redes sociais tm uma relagio negativa com a probabilida- de de institucionalizagao e de mortalidade. Os idosos que participaram de alguma forma de atividade social diminufam pela metade o risco de institucionalizagao, ao passo que viver 86 aumenta a probabilidade de institucionalizacao. A participagio em atividades sociais e visitar ou falar com amigos ou familiares mostrou uma telagdo negativa com o risco de mortalidade. Mais recentemente, Ljungquist e Sundstrom (1996), relatando o acompanha- mento de uma amostra de 1.062 idosos suecos nao-institucionalizados, a partir de 1954, concluiram que o estado de satide fisica e a atividade tinham os efeitos gerais mais significativos sobre a longevidade; entre os menos idosos, porém, a satide mental foi o preditor mais importante de sobrevivéncia. O impacto das redes sociais foi de menor magnitude, tanto quanto a situagio social. A relagao positiva entre élasse social e longevidade, segundo os autores, sugere que a primeira atue sobre a segunda indiretamente, na medida em que propicia uma boa satide. Ha um crescente corpo de pesquisas que examina a quantidade de ajuda prati- cae suporte emocional recebidos por idosos de seus familiares. Um papel critico, segundo esses estudos, é desempenhado pela natureza das redes de familiares e amigos (Seeman et al., 1987; Bowling e Browne, 1991), embora haja menos evi- déncias acerca da estrutura real das redes sociais em relagdo ao impacto sobre o estado de satide, o bem-estar emocional a proviso de ajuda e suporte. Alguns estudos confirmam que os cénjuges e os familiares mais préximos provéem o prin- cipal apoio em tempos de crise, e que particularmente as filhas s4o mais efetivas do que os vizinhos em proporcionar auxilio a longo prazo. A literatura indica que a O Ciclo da Vida Humana 175 existéncia de uma relaco intima e proxima é essencial para que o suporte seja dado erecebido. A existéncia de um confidente pode ser essencial para o desenvolvimen- to de uma adaptagio efetiva em pessoas com 85 anos ou mais. Como os confidentes so, com freqiiéncia, companheiros da mesma idade, quanto mais idosos, maior 0 isco dé perdé-los, por morte ou incapacitagao (Bowling e Browne, 1991). Bowling e Browne (1991) investigaram o estado de satide eas circunstancias sociais de 662 pessoas com 85 anos ou mais, que moravam em casa, em Londres. Entre os achados relevantes, destaca-se que havia mais mulhéres vitivas, e que essas eram vitivas ha mais tempo que os homens. Quanto a rede social, 61% viviam s6s e 85% eram solteiros, vitivos ou divorciados. Noventa e cinco por cento dos respondentes declararam ter, pelo menos, um confidente. Setenta e oito por cento afirmaram encontrar os filhos com freqiiéncia satisfatéria. Nio houve diferengas de género quanto A rede social. Confirmando a impressao geral de que as pessoas com 85 ou mais anos sio diferentes dos idosos mais jovens, j4 que sao “sobreviventes”, altos niveis de suporte social e ajuda informal eram dados 3 maioria dos respondentes. Embora tenham sido encontradas associag6es entre a rede social ¢ a provisao de ajuda informal, a andlise mUltifatorial mostrou que o estado de satide era o preditor mais poderoso para explicar 0 bem-estar emocional. Silberman e colaboradores (1995) examinaram a rede social de uma amostra aleatéria Constituida por 62 pessoas, de uma populagiio de 30.000 habitantes aten- didos por uma unidade comunitdria de baixa classe média, de Porto Alegre. Quanto a rede social, 58% viviam com companheiro, 55% tinham algum filho vivo, 35% irmios vivos e apenas 11% algum genitor vivo. Noventa e trés por cento dos entrevistados afirmaram ter algum confidente, e 76% encontravam- no pelo menos semanalmente. Em pesquisa realizada com uma amostra de idosos da regidio urbana de Por- to Alegre (Eizirik, 1997), foram entrevistadas 344 pessoas com idade igual ou superior a 60 anos, sendo 102 (29,7%) homens e 242 (70,3%) mulheres. A média de idade da amostra é de 70,3 anos, e a idade maxima 92 anos. A amostra apresenta uma escolaridade média de 9,6, verificando-se que os homens estudaram em média 11,4 anos e as mulheres, 8,07 anos. No que diz respeito ao estado civil, verifica-se que, na amostra geral, encon- tram-se 45,9% de casados, 42,4% vitivos, 7,8% solteiros, e 3,8% separados ou di- vorciados. Dos homens, 87,3% sao casados e apenas 6,9% declararam-se vitivos. Dentre as mulheres, 57,4% sao vitivas e 28,5% casadas; 9,5% delas sao solteiras, o que contrasta com os 3,9% dos homens que se encontram nessa mesma condi¢io. Apenas 1,9% dos homens sio separados, em contraste com 4,6% das mulheres. Considerando-se as varias categorias, € possivel constatar que 71,5% das mulheres nao tém companheiro, o que ocorre com apenas 12,7% dos homens. Do total da populagio estudada, 21,8% (77) afirmam nao ter confidente, sendo que 31,4% (34) dos homens informam no ter confidente, e apenas 17,8% (43) das mulheres esto na mesma situagdo. A presenga de um confidente é refe- rida por 28,5% (98) da amostra geral, que corresponde a 22,5% (23) dos homens 1 116 Eizirik, Kapezinski & Bassols (orgs.) ea 31% (75) das mulheres. Considerando-se agora o reconhecimento de até trés confidentes, verifica-se que tal mimero corresponde a 45,1% (46) dos homens e a 63,7% (154) das mulheres. No todo, portanto,-78,2% dos entrevistados (68,6% dos homens e 82,2% das mulheres) afirmam ter algum confidente. Quanto & fre- qliéncia dos encontros com os confidentes, 61% dos entrevistados informam que 0s encontram uma vez ou mais por semana; 9%, duas a trés vezes por més, e | 4,7%, mensalmente. ‘ Na amostra total, predomina o tamanho de rede “satisfat6rio” (66,27%). Comparando homens e mulheres, verifica-se que 77,27% destas tém um tamanho de rede satisfatério, o que corresponde a 40,19% daqueles, Isso caracteriza uma freqiiéncia diferente entre homens e mulheres. ‘Chama a atengdo quem sio os confidentes de homens e mulheres. Os pri- meiros mencionam esposa, filho(a) e irmao(4). J4 entre as mulheres, 0(a) filho(a) € o(@) confidente mais freqiiente, seguido(a) por irmio(&) e cénjuge. Observa-se diferenga estatisticamente significativa da freqiiéncia do cénjuge como confiden- te, evidenciando que os homens tém nas companheiras seu principal confidente, enquanto as mulheres tém primariamente os filhos. Em relagdo A questo sobre sentir-se s6, 63,2% das mulheres responderam que isso raramente ou nunca lhes ocorre, enquanto 78,4% dos homens apresenta- ram a mesma resposta. S6 se observa a diferenga geral, significativa (p=0,0030). Por outro lado, 27,7% das mulheres e apenas 8,8% dos homens responderam que algumas vezes sentem-se sés. Somente 10,7% dos homens e 9,1% das mulheres informaram que freqiientemente ou sempre sentem-se sés. Todos esses dados caracterizam que a velhice é vivida de forma diferente por homens e mulheres, cabendo levar em conta fatores culturais, emocionais e socioecon6micos para explicar tais diferengas. O ESTADO MENTAL NA VELHICE: DEPRESSAO E DEFICIT COGNITIVO. A depressao na velhice é um transtorno extremamente heterogéneo, e ndo uma sindrome clinica monolitica. As pesquisas atuais enfrentam o desafio de determi- nar em que medida as depressées na velhice diferem das que ocorrem nas etapas anteriores, bem como reconhecer, caracterizar e documentar as implicagdes dessa heterogeneidade para os idosos deprimidos (Blazer et al., 1996). | Os principais quadros clinicos depressivos podem ser diagnosticados pelos | critérios estabelecidos pelo DSM-IV (1995). A detecgao de sintomas depressivos i pode ser realizada clinicamente ou mediante a utilizagao de varias escalas, testadas e validadas para o nosso meio, dentre as quais a de Montgomery-Asberg (Montgomery-Asberg, 1979), extraida do CPRS (Comprehensive Psychiatric Rating Scale), que é um instrumento de avaliacio de sintomatologia psiquidtrica geral. Contrariando a expectativa usual de que os idosos teriam indices mais eleva- dos de transtomos depressivos do que os jovens, devido As circunstancias médi- cas, sociais ¢ intrapsiquicas que enfrentam, os dados epidemioldgicos evidenciam O Ciclo da Vida Humana 177 que a depressao maior € significativamente menos predominante nos idosos do que nos outros grupos etérios. Em estudos sobre a prevaléncia de sintomas psi- quidtricos na comunidade, os sintomas depressivos so os mais encontrados entre 0 idosos, com taxas que sucessivos estudos coincidem em apontar como de 15% Glazer e Williams, 1980; Huntley et al., 1986; NIH, 1992). Revendo os dados da literatura, Blazer (1994a) concluiu que a prevaléncia de sintomas depressivos cli- nicamente significativos, na comunidade, situa-se entre 8 e 15%. No Brasil, Aguiar e Dunningham (1993) encontraram uma prevaléncia de 15% de sintomas depres- sivos em idosos vivendo na comunidade, na Bahia. Veras e Murphy (1994) avalia- ram a satide mental de pessoas com 60 anos ou mais que viviam em trés distri do Rio de Janeiro, encontrando indices de 22,62%, 19,67% e 35,12% para idosos de alto, médio e baixo poder aquisitivo, respectivamente. Os estudos sobre os quadros clinicos depressivos, contudo, revelam dados diferentes. De 1.300 adultos vivendo na comunidade, com 60 anos ou mais, apenas 2% apresentavam distimia e 0,8% depressio maior (Blazer et al., 1987). Dados provenientes do gigantesco estudo americano intitulado National Institute of Men- tal Health Epidemiologic Catchment Area (ECA) revelam a prevaléncia de 0,9% de depressaio maior e 0,2% de transtonos bipolares em pessoas acima de 65 anos. Essa prevaléncia foi de 2,9% e de 3,9% para a depressiio maior nas faixas de 18 a 29 anos ede 30 a 44 anos, respectivamente (Blazer et al., 1994a), caracterizando uma redu- Gao nos’indices observados na velhice. Em pesquisa realizada com uma amostra de 10 pacientes do sexo feminino e idade média de 70 anos em psicoterapia psicodinamica de grupo semanal no Hospital de Clinicas de Porto Alegre (Knijnik ef al., 1999), evidenciou-se que os sentimen- tos predominantes em relagdo 4 morte foram: medo (22%), desejo (22%) e indife- renga (10%). Essas pacientes nao possufam o diagnéstico de depressio maior, po- rém os principais sintomas encontrados foram alteragdes do sono, falta de interesse pelas atividades didrias ¢ diminuigdo de apetite ocasionais. De forma geral, verifica-se uma prevaléncia de sintomas depressivos'em ido- sos que vivem na comunidade de valor equivalente a outras faixas etdrias, e uma prevaléncia significativamente menor de depressio maior. Jé os idosos em atendi- mento médico ou institucionalizados apresentam ‘indices significativamente altos de sintomas depressivos e depresstio maior (Stoppe Junior e Louzi Neto, 1996) Dessa forma, caracterizada a prevaléncia dos sintomas e dos quadros clit cos depressivos, cabe indagar acerca da possivel correlagio entre rede social e depressio na velhice. Pfifer e Murrell (1986, apud Blazer, 1989) examinaram os papéis desempe- nhados por seis fatores sociodemograficos, trés deles recursos sociais e trés na categoria de eventos da vida, no desenvolvimento de sintomas depressivos. Em uma amostra de 1.200 pessoas com 55 anos ou mais, 66 desenvolveram sintomas depressivos significativos seis meses apés a avaliagio inicial. A satide e 0 apoio social desempenhavam um papel tanto de somatério como interativo no inicio dos sintomas; os eventos da vida tinham um efeito fraco e-os fatores sociodemo- graficos nao contribufam para o inicio da depresstio. Uma rede de suporte fraca, 118 Eizirik, Kapczinski & Bassols (orgs.) na presenca de mi satide fisica, produzia um risco significativo para o inicio dos sintomas depressivos. Contudo, embora uma série de estudos transversais tenha demonstrado a relagdo entre eventos vitais estréssantes e€ 0 inicio de um episédio de depressiio maior, ao longo do ciclo vital, essa relagiio enfraquece quando as pessoas sao estudadas longitudinalmente, como foi observado por Pfifer e Murrel. A interacao entre o suporte social e a depressao é mais complexa. O suporte social pode contribuir para o inicio da depresstio maior, para a sua evolugio ou, inversa- mente, pode ser afetado pelos sintomas depressivos (Blazer, 1983, 1989). Visando a examinar a relagio entre sintomas depressivos, redes sociais e suporte social, Goldberg e colaboradores (1985) entrevistaram 1.144 mulheres casadas, de 65 a 75 anos, residentes em Maryland (BUA). O estado socioeconémico mostrou associagao significativa com a sintomatologia depressiva. Quando o ma- rido nao era o confidente, a mulher tinha trés vezes mais chances de ter alto nivel de sintomas depressivos. As mulheres sem confidentes e as que revelaram menor nivel de intimidade na rede mostraram maiores nfveis de sintomatologia depressiva. Outro dado significativo foi a associag&o entre redes heterogéneas quanto a idade, a0 sexo e A religiio com sintomas depressivos. A homogeneidade da rede, mesmo quando pequena, pode prover um sentimento de pertinéncia, em especial se inclui membros da mesma igreja, e relaciona-se com menos sintomas depressivos. A associagio entre o tamanho e a estiutura das redes sociais e a prevaléncia de sintomas depressivos foi examinada em um estudo de base populacional de 1.615 pessoas de 65 anos ou mais (Palinkas et al., 1990). Algumas caracteristicas das redes sociais identificadas chamam a atengio: os indices da rede social declina- vam com a idade para as mulheres, mas nio para os homens; mais mulheres eram vitivas do que homens; enquanto os homens mencionavam a esposa como confi- dente, as mulheres citavam amigas, filhos ou familiares. As amigas eram a principal fonte de apoio para as mulheres, independentemente do estado conjugal. Os homens relatavam significativamente mais amigos e familiares intimos e mais alta freqiién- cia de contatos face a face com estes do que as mulheres. As mulheres tinham mais doengas crénicas e participavam mais de instituigGes religiosas e comunitarias, enquanto os homens, de grupos relacionados a ocupagées. Sintomas depressivos foram identificados em 6,6% dessa amostra, com indicés significativamente maio- res nas mulheres. Essa pesquisa concluiu que o niimero ¢ a freqiiéncia de lagos sociais relacio- na-se inversamente & sintomatologia depressiva na velhice, em uma associagio independente da idade e do sexo. Em contextos culturais diferentes, também foram evidenciadas relagdes en- tre arede social e os sintomas depressivos. Biegel ef al. (1991) estudaram a influén- cia moderadora potencial do tamanho da rede social na relagio entre estresses da vida e sintomas depressivos em uma amostra de 191 idosos, brancos € negros, com 75 anos ou mais. Os resultados indicaram que, para os brancos, ter maior Suporte social e uma rede social maior reduz a associacio entre estresse e sinto- mas depressivos. Para os idosos negros, por outro lado, receber suporte social de uma rede social com mais membros est4 associado com uma maior relagio entre t | ‘ | ; O Ciclo da Vida Humana 179 as duas varidveis examinadas. Nao havia diferencas significativas entre as redes dos negros e dos brancos, que tinham em média trés membros, em geral dois familiares e um amigo, e a maioria dos entrevistados estava satisfeita com a rede. Na discussdo, os autores supdem que a rede dos idosos negros poderia estar sen- tindo-se mais sobrecarregada e, dessa forma, além de dar apoio, sobrecarregava de tensio.0s idosos. Diferengas no estado socioeconémico ¢ na atitude quanto & procura de servigos de satide também poderiam explicar esses resultados. Lee ¢ colaboradores (1996) examinaram 200 imigrantes coreanos nos Estados Unidos, visando a investigar os efeitos dos fatores quantitativos, estruturais e funcionais das relagées sociais sobre 0 nivel de depressio, levando em conta o nivel de aculturagiio ¢ os estresses da vida. Os velhos que tinharh maior mimero de pesso- as préximas e contatos mais freqiientes com elas apresentavam menos sintomas depressivos. As redes que proviam apoio instrumental eram constituidas princi- palmente de lacos familiares; 0 suporte emocional inclufa diversas relag6es, além das familiares. O suporte emocional foi considerado como moderador do efeito danoso dos estresses da vida e mais relevante do que o apoio instrumental para a satide mental dos idosos coreanos. A relagio entre o funcionamento fisico, o suporte social, os sintomas depressivos © a satisfacdio com a vida, em uma amostra nacional de 4.734 adultos com 65 anos ‘ou mais, foi estudada por Newson e Schulz (1996). A diminuigao das capacidades fisicas éstava associada a menos contatos com amigos, menor contato coma familia menor percepeao de suporte e de ajuda tangivel, mias apenas as medidas de per- cepgiio de suporte prediziam sintomas depressivos. Os autores concluiram que 0 suporte social relatado como mais baixo é uma importante razo para o decréscimo da satisfacdio com a vida e para o aumento dos sintomas depressivos em idosos. Em pesquisa realizada em Porto Alegre com uma amostra de idosos, Eizirik (1997) constatou que nao havia associacio entre depressio e os varios parametros de rede social estudados. Contudo, ter companheiro mostrou-se associado a menores niveis de depressio, medidos pela escala de Montgomery-Asberg, controlando-se as varidveis idade, escolaridade e renda. Tal aspecto est de acordo coma constatagaio de que uma relagdo intima e préxima é esseneial para que o suporte seja dado e recebido. a No que se refere ao déficit cognitivo e a deméncia, estudos de prevaléncia tém sido realizados na maioria dos pafses desenvolvidos, sendo baseados na ava- liago de idosos que vivem na comunidade por meio de entrevistas feitas por clinicos ou entrevistadores treinados. O diagnéstico clinico das principais formas de deméncia pode ser feito pelos critérios especificados no DSM-IV (1995). A detecciio de déficit cognitivo em amostras populacionais tem sido realizada pre- dominantemente pelo uso do Mini-Mental State (Folstein et al., 1995). Nao sur- preendentemente, os estudos epidemioldgicos variam muito em seus métodos, por exemplo, na proporcdo de pessoas muito idosas na amostra, na inclusdo ou exclusio de pessoas institucionalizadas, na definigaio de casos de deméncia e no método para determinar o grau de déficit cognitivo. As dificuldades aumentam quando sao feitas tentativas de diagnosticar deméncias do tipo Alzheimer ou de- 180 Eizirik, Kapezinski & Bassols (orgs.) méncia vascular em estudos na comunidade. A confiabilidade e a validade desses diagnésticos especificos, dadas as condigées de sua afericfo, nao costumam ser elevadas. Por todas essas razées, as estimativas de prevaléncia tém variado consi- deravelmente (Henderson, 1995). Assim, em amostras em trés comunidades ame- ticanas, utilizando 0 Mini-Mental State, Robins e colaboradores (1984) encontra- ram déficit severo em 5%, 5,1% e 4% das pessoas com mais de 65 anos. Com 0 uso do SPMSQ (Short Portable Mental Status Questionaire), Huntley e colabora- dores (1986), em amostras populacionais maiores, encontraram indices de 5,3%, 1,3% e 6,0% de déficit severo. Em uma comunidade rural da Suécia, Essen-Miller ecolaboradores (1956), por meio de entrevistas psiquidtricas, detectaram sindromes cerebrais orgdnicas moderadas em 10,8% dos idosos e severds em 5,0%. Em uma . amostra comunitaria inglesa, Kay e colaboradores (1970) relataram uma prevalén- cia de 6,2% de sindrome cerebral organica severa, também com entrevistas psi- quidatricas. O uso combinado destas com estudos laboratoriais permitiu a Folstein e colaboradores (1975) identificar 2% de doenga de Alzheimer, 2,8% de demén- cia multiinfarto e 1,3% de deméncia mista ou nio-especificada em uma comuni- dade de Baltimore. Todos os estudos até aqui referidos incluiam apenas entrevis- tados com 65 anos ou mais. Considerando agora os idosos institucionalizados, os indices aumentam con- sideravelmente. Goldbarb (1962), em Nova York, encontrou 87% de déficit seve- ro. Blazer (1980) identificou 47% de casos de déficit severo. Teeter e colaborado- res (1976) encontraram 59,4% de pacientes com déficit moderado ou severo. Rovner e colaboradores (1986), em um grupo de 50 pacientes, dos quais 96% tinham 66 ou mais anos, usando entrevistas padronizados, identificaram 56% de deméncia degenerativa primdria, 22% de deméncia multiinfarto e 4% de demén- cia por Parkinson (apud Blazer, 1989). Uma anflise integrada de 47 levantamentos, realizados em 17 paises, evi- denciou indices aproximados de menos de 1% para deméncias de qualquer causa, em pessoas de 60 a 69 anos, subindo esta cifra para 39% para os idosos de 90. a 95 anos. A prevaléncia duplica a cada cinco anos, portanto. Os dados do ECA, nos Estados Unidos, demonstraram que 4,9% das pessoas com 65 anos ou mais ti- nham déficit cognitivo severo, evidenciado por um escore de 17 ou menos pontos no Mini-Mental State. A incidéncia anual de transtorno cognitivo, conforme o “ECA, foi de 4,6% para pessoas com 65 anos ou mais, ao passo que de apenas 0,4% para adultos jovens. Todos esses dados caracterizam os transtornos demenciais como as causas mais freqiientes de psicopatologia em idosos. O diagndstico de Alzheimer correspon- dea cerca de 50% das deméncias na velhice, chegando a atingir 5 a 10% das pesso- as com 65 anos ou mais e 47% das acima de 85 anos. Um dos maiores fatores de risco para a deméncia é a idade e, A medida que a denominada geracio do baby boom americano (nascidos nos anos 50 e 60) aproxima-se dos 60 anos, a doenga de Alzheimer passa a tornar-se um crescente problema de satide (Jarvik, 1995). No Brasil, Almeida-Filho e colaboradores (1994) encontraram uma preva- léncia de 6,8% de casos-de deméncia e 36,4% de algum transtorno mental em fp apt | O Ciclo da Vida Humana 181 idosos da Bahia. No Rio de Janeiro, Veras e Coutinho (1994) identificaram prevaléncias de 5,9% a 29,7% em trés diferentes distritos. Blay e colaboradores (1989), utilizando o teste face-mio, encontraram 5,5% de sindromes cerebrais organicas, em Sao Paulo. Em levantamento anterior, Ramos (1986) havia identi- ficado 25% de algum tipo de transtorno mental em idosos de Sao Paulo. No Rio | Grande do Sul, Silberman e colaboradores (1995) referem ter encontrado uma prevaléncia de 29% de déficit cognitivo na amostra comunitéria estudada. | Em um estudo de 269 pessoas de 60 a 97 anos, vivendo na comunidade, em Cruz Alta (RS), Loureiro Chaves (1996) identificou uma prevaléncia de 21,9% de entrevistados com déficit cognitivo, observando também que essa percentagem aumentava de 13,7% em pessoas de 60 a 65 para 39,6% nos de 76 anos ou mais. ‘A prevaléncia geral de deméncia é a mesma para homens e mulheres, embo- ra Alzheimer seja mais predominante em mulheres; isso é explicdvel porque a longevidade das mulheres é maior. E incerto se fatores socioeconémicos desem- penham algum papel na deméncia. Hé diferengas, contudo, conforme alguns gru- pos étnicos. Fatores de risco estabelecidos, além da idade, foram identificados em. um estudo da Comunidade Européia: histéria de deméncia em um familiar de primeiro grau, tanto para os casos de inicio precoce quanto de inicio tardio de Alzheimer, risco maior se mais de um familiar de primeiro grau teve deméncia; familiar de primeiro grau com sindrome de Down ou Parkinson; idade materna igual ou superior a 40 anos; para os homens, trauma cerebral, hipotireoidismo e transtorno depressivo prévios (Henderson, 1995). * 7 ‘Na pesquisa j4 mencionada, Eizirik (1997) encontrou prevaléncia de 24,7% de déficit cognitive na amostra de idosos da regido urbana de Porto Alegre. OS AVOS E OS NETOS Uma das primeiras referéncias acerca da importéncia do papel e da fungio psico- légica dos avés é atribufda a Karl Abraham (1913), que destacou o papel modera- | dor dos avés na resolugiio do conflito edfpico e relacionou a linguagem como expressdo desta percepgiio subjetiva por meio dos termos usados para designar avés em diferentes idiomas (grandfather, grossmutter, grand-pere). Embora nao necessariamente vinculada a velhice, a condig&o de avd/avé € freqiientemente associada a esta. Das pessoas com mais de 65 anos de idade, apro- ximadamente 94% das que possuem filhos também so avés e, destas, a metade siio bisavés. Essa situagio modifica a configuragio familiar, na medida em que novos lagos de parentesco e relacionamento interpessoal ocorrem, sem que os papéis a serem desempenhados, tanto por avés quanto por netos, estejam para estes definidos. ‘A partir do reconhecimento de que o ser av6/avé compreende um conjunto de papéis relacionais especificos, chama a atengio a nao existéncia de uma palavra que os defina, assim como paternidade e maternidade nas relag6es entre pais.¢ filhos. A dificuldade para uma melhor compreensio do papel dos avés dentro do nticleo fa- miliar pode dever-se tanto a aspectos socioculturais quanto psicodinamicos. Na so- - Instituto de Psicologia - UFRGS Biblioteca 182 Bizirik, Kapczinski & Bassols (orgs.) ciedade industrial atual, as familias multigeracionais se desmembram, e é exigido de cada individuo um papel especffico. Junto com as varias perdas inerentes A velhi- ce, citadas anteriormente, o idoso deixa de ter um papel de importancia, 4 medida que no faz mais parte do processo produtivo. O ser idoso hoje, principalmente nas comunidades urbanas, traz consigo a idéia de degradagiio e morte. O nascimento do neto coloca 0 individuo frente a uma realidade do crescimento dos filhos, de passar para a terceira geragiio e, portanto, estar mais perto da morte. Por outro lado, essa crise vital que fere 0 narcisismo do individuo, se elaborada adequadamente, pode significar um novo crescimento pessoal, trazendo satisfagdes. Erikson designou como tarefa critica da velhice a aquisigdo de integridade, no sentido de aceitagiio do ciclo de vida tinico de cada pessoa, que inclui a sabedoria de aceitar‘a realidade, os fatos sda vida, como foram e como sao. O oposto A integridade seria o desespero, a sensa- g&o de que uma vida tinica foi desperdicada, acompanhando-se tal sensagio de amargura para com os outros ou ddio para consigo. Existem influéncias reciprocas que se estabelecem a partir da relagdo avés/ netos. As lembrangas da prépria infancia, da condigdo de neto, associadas as per- cepgdes dos seus netos sobre o seu papel de avé, auxiliam-no a exercer melhor essa nova fungio dentro da familia. Com a experiéncia adquirida, aliada 4 sua posigdo de no estarem comprometidos diretamente na educagdo dos netos, faci- litam o desempenho dos filhos como pais, servindo, muitas vezes, como modelo de identificacdio e também no relacionamento destes com os filhos, podendo atuar como amortizadores de crises. Nas situagSes de ruptura familiar, na medida em que 0 vinculo avé/neto pode fazer-se independente do seu relacionamento com o filho, 0 av6 pode servir como substituto da propria fungdo paternal e fornecer um sentido de estabilidade emocional em meio A crise. Como referido anteriormente, quanto A propria experiéncia adquirida, cabe salientar que os avés so elementos intermedidrios entre cinco geragées, ou seja, 4 foram netos e so avés. Funcionam, dessa forma, como transmissores da tradigo do grupo social e da meméria da familia, fornecendo a esta uma hist6ria prépria, uma identidade, um senso de unio, o que permite um sentido de continuidade e estabilidade para os netos. Ao mesmo tempo, tal fun¢io permite um desejo de permanéncia e/ou perpetuagiio para 0 idoso. Uma outra forma de influéncia, sendo esta nio-verbal, é a presenga do avé. ‘como modelo de identificagao. A maneira como 0 avé lida com as experiéncias de vida, elabora os seus lutos e vive os seus tiltimos anos proporciona aos descenden- tes a visualizagio de sua prépria situacaio futura, como pais e avés. A possibilidade de receber de uma forma menos ambivalente estes bens simbélicos (meméria, ex- periéncias de vida) possibilita aos netos a capacidade de estabelecer vinculos afetivos mais tranqiiilos, por meio da internalizago de figuras objetais fortes. Um exemplo elogiiente da relagdo entre uma avé e seus netos e de varios desses aspectos pode ser observada no filme Rapsdédia em agosto, de Akira Kurosawa. A capacidade de desempenhar adequadamente esses papéis esté sujeita a in- terferéncias de fatores externos e internos ao avd, os quais podem fortalecer ou prejudicar o vinculo: Defitre os fatores externos, podemos identificar a idade de O Ciclo da Vida Humana 183 ambos, a proximidade geogréfica e as relagdes pai/crianga e av6/pai. Quanto ao pr6prio individuo, o ser av6 nao é livre de conflitos. Essa fase do ciclo vital coloca © individuo frente nao s6 ao declinio de fungées vitais, mas também sociais, bem como A proximidade da morte, o que pode ser vivenciado como uma ferida narcisica. O individuo est4 agora novamente em uma encruzilhada, para a qual necessitaré valer-se de recursos que provéem, dentre outros, da elaboragdo de situagio de vida prévia. A resolucio desse conflito pode seguir dois caminhos: 0 primeiro deles € 0 reinvestimento das catexias na figura do neto, vivenciando por meio do amor a este a satisfacio de receber o amor da familia e de encontrar um papel dentro desta, resgatando, dessa forma, o seu amor-prdprio. Por outro lado, ao enfrentar esta rea- lidade, a do fim inevit4vel, o individuo se depara com um impasse, provocador de ansiedade, ambivaléncia e ataque aos vinculos internos e externos, impossibilitan- do ou dificultando-lhe vivenciar de forma tranqiila essa fase da vida. Nessa segunda alternativa, encontramos situagdes em que os avés podem assumir posigdes de antagonismo aos filhos, aliando-se aos netos para combater os primeiros. Dessa forma, expressam o repidio A sua propria juventude, revelando aincapacidade de vivenciar vicariamente as conquistas ¢ os progressos dos netos, como prolongamento ¢ reedig&o de seus préprios, o que caracteriza um aspecto essencial da velhice sadia. (Hizirik et al., 1993) VELHICE E CONTRATRANSFERENCIA, As reagdes emocionais dos médicos e dos membros das equipes de satide apre- sentam caracteristicas especfficas em relagdo aos idosos. Varios estudos revelam a importancia das atitudes e reagdes emocionais em relag&o aos idosos como elementos determinantes de uma rela¢do médico-pacien- te ou equipe-paciente de maior ou menor efetividade. Ao referir-se pela primeira vez A contratransferéncia, Freud (1910) alertava que a reagdio emocional incons- ciente do médico a transferéncia do paciente poderia constituir-se em um obsté- culo ao tratamento. Assim, segundo ele, era necessdrio manter controlada a contratransferéncia, estabelecendo 0 conceito classico. Nos anos 50, Racker (1949) e Heimann (1950) propuseram um novo concei- to, 0 totalistico, significando 0 conjunto das reagdes emocionais do analista ao paciente. Com isso, uma atengio mais detida aos seus préprios sentimentos forne- ceria informagées sobre os do paciente, na medida em que este, pelo uso do meca- nismo da identificagao projetiva, colocava na mente daquele algo de si e tentava aciond-lo a pensar, sentir ou agir de acordo com tal projeciio. Nessa nova visualizacio, a contratransferéncia passou a ser considerada uma valiosa fonte de informagées sobre o mundo interno ¢ as reagdes emocionais do paciente. Oconceito totalfstico, contudo, tornou-se muito amplo, pois inclufa o conjun- to das reagdes emocionais do analista, desconsiderando que parte delas era oriunda de si mesmo, de sua prdpria personalidade. Isso deu origem a um terceiro conceito, o especifico (Sandler, 1976; Thomii e Kiichele, 1985), que visa a identificar quais 184 Eizirik, Kapczinski & Bassols (orgs.) so as reagSes emocionais do terapeuta As qualidades especificas de seu paciente, naquele momento da relaco terapéutica. Tansey & Burke (1989) propuseram crité- rios para validar hipéteses sobre a contratransferéncia, ou seja, tentar determinar a fonte do sentimento contratransferencial, se do paciente ou do analista, o que € feito por uma série de perguntas que o analista se faz, seguida de outra série, que visa a entender o significado e o propésito do que est4 ocorrendo na relagdo com o paciente. Na tltima década, aproximadamente, a compreensio da contratransferéricia tornou-se uma area emergente ou solo comum entre analistas de diferentes orien- tages tedricas, sendo entendida como uma “criagao conjunta” de médico e pacien- te. Essa 4rea de interesse comum pode ser visualizada como um gradiente ou continuum, no qual em uma das extremidades é dado mais peso as contribuigdes ‘do analista, e na outra enfatiza-se a contribuig&o do paciente (Gabbard, 1995). As reagées contratransferenciais aos velhos estiio relacionadas com as caracte- risticas emocionais dessa etapa da vida. As vivéncias basicas e dinamicamente sig nificativas no processo de envelhecimento sio as perdas, jé descritas anteriormente. As expectativas sociais, traduzidas em termos familiares, dos cuidadores, médi- cos, assistentes sociais, enfermeiras, enfim, daqueles que lidam de maneira direta com 0 idoso, podem exercer um papel importante, entre outros temas, na possibilidade de o idoso manifestar a sua sexualidade. Um exemplo disso é a abordagem utilizada quando surgem aspectos relativos a sexualidade em idosos institucionalizados. Essas manifestacées so, muitas vezes, entendidas como sinais de deméncia ou inadequa- cdo, sendo manejadas de maneira repressora por meio de’sedagdo ou punicdes. A propria inexisténcia de espagos reservados para a atividade sexual j4 € uma mani- festacdio ness¢ sentido, Considerando que as instituigdes carcerdrias dispdem de espacos reservados para esse fim, questiona-se por que a velhice nao é da mesma forma contemplada. Na familia, pode-se identificar situago semelhante, uma vez que nfo & contemplado um espaco para a sexualidade do idoso. Os préprios filhos, embora pertencam a uma geragdio mais permissiva, tém dificuldade em aceitar o continuo interesse sexual dos pais. A estes nao é destinada uma privacidade nesse sentido, nio sé mediante espaco fisico dentro de casa, mas também por meio de momentos em que 0 idoso possa sentir-se mais 4 vontade. Em imuitos casos, até mesmo a | expressiio de desejos é tida como atitude inadequada do idoso, sendo reprimida ouaté ridicularizada. Isso parece decorrer de uma reatualizacio da situagiio edipica, em que os papéis sociais e familiares se inverteram e os filhos atuam como censo- res, vingando-se assim do que viveram ou fantasiaram como interdigdes superegdicas dos pais no passado. Ainda como fator de interferéncia na expressfio da sexualidade na velhice, encontra-se a confusio entre o que se refere A sexualidade do idoso e as caracte- risticas relativas 4 geragdio. A geracio atual de idosos vem de uma experiéncia histérica na qual a sexualidade, como um todo, foi reprimida, cabendo-lhes uma série de mitos de ausén¢ia de desejo, de impoténcia, da falta de atratividade na estética corporal, o que redundaria em uma auséncia de sexualidade. Esse fator de 4 % 4 seine cml O Ciclo da Vida Humana 185 confusiio deve ser mais bem analisado, pois o que pode estar sendo atribufdo ao envelhecimento talvez seja expressio de caracteristicas culturais e hist6ricas de uma geragdo (Eizirik et al., 1993; Vasconcellos, 1996). A relevancia desses aspectos para 0 atendimento dos idosos reside na aten- Gao que o médico ea equipe darao a sexualidade deles, baseando-se na expectati- va de uma no-sexualidade. Uma fonte comum de dificuldades no atendimento de idosos € 0 fato de que 0s sinais fisicos de envelhecimento e a proximidade da morte podem produzir 0 distanciamento do médico ou do estudante de medicina, preocupado com 0 seu préprio futuro. A evidéncia das limitagGes fisicas do paciente pode servir como uma forma de confrontacio com o seu préprio medo do envelhecimento e da morte. Esse confronto pode ser suficientemente doloroso para que o profissional se abstenha de um contato mais préximo com o paciente. O trabalho com os idosos pode evocar sentimentos ligados ao envelhecimento eA morte dos pais do terapeuta ou cuidador. Quando esto bem resolvidos ¢ en- tendidos, é possivel esforgar-se para lidar com a situa¢o:de maneira eficaz. En- tretanto, se ocorre que 0 terapeuta no se dé conta desses sentimentos, a tendéncia € o distanciamento na relacio terapéutica. A idade avancada e a limitago nos anos de vida do paciente podem produzir também o medo da perda no terapeuta, dificultando 0 investimento afetivo no pacienté idoso. Uma outra situagio freqiiente é a de que esses pacientes despertem no terapeuta sentimentos dependentes e infantilizad6s, que nunca estariio de todo ausentes independentemente do nivel de sua maturidade. J&o idoso pode identificar a figura do terapeuta com a de um filho, fendme- no conhecido como transferéncia reversa. Por outro lado, o aumento na depen- déncia, muitas vezes, predispde 0 idoso a visualizar o terapeuta como uma figura paterna ou materna. Isso freqiientemente se choca com uma idéia preconcebida do terapeuta, que esperaria ser visto como filho pelo paciente mais velho (Lewis & Johansen, 1982). “ Entretanto, a transferéncia é, por. definigio, inconsciente, além de ser atem- poral e regida pela fantasia (Berezin, 1972), a realidade cronol6gica é secundé- ria na sua determinagao. Na situagdo da transferéncia reversa, 0 terapeuta pode ser acionado pelo idoso para ocupar o lugar do filho que ele sente té-lo abandonado ou negligenciado. A conduta manifesta, usualmente de cordialidade ou indulgéncia, como se estivesse. tratando com um filho, pode dar lugar a reagGes transferenciais negativas, sob a forma de queixas, acusagées e recriminagées. E importante atentar ao fato de que tais manifestagdes em geral no sio diretas, mas predominantemente aludidas, deslocadas para outros objetos da vida atual ou do passado do paciente. Além disso, os idosos, conforme destacado, podem estabelecer uma relagio transferencial infantil, em que 0 terapeuta representa © pai ou a mie, mas também relagGes transferenciais de outtas etapas da vida, como a adolescéncia ou a idade. adulta, e af o terapeuta representa o reviver de conflitos e desejos com irmios;.cénjuge, etc. i 186 Eizirik, Kapczinski & Bassols (orgs.) Como em qualquer outra psicoterapia, mas nesta com a complexidade de- corrente do actimulo de experiéncias e vivéncias afetivas, o terapeuta deve estar permanentemente atento para a sucesso de papéis que pode representar no mun- do interno do paciente (Eizirik et al., 1997; Eizirik, 1996). Com énfase crescente nos tiltimos anos, a visio da velhice como um conflito emocional entre desespero e integridade, conforme props Erikson (1963), vem privilegiando a criatividade (Limentani, 1995; Settlage, 1996; Segal, 1958) e a capacidade de enfrentar as perdas inevit4veis com mecanismos adaptativos eficien- tes (Billig, 1993). Um exemplo disso é fornecido pela coletinea de depoimentos editada por Pollock (1992, 1994), na qual 34 psiquiatras relatam suas experiéncias com o envelhecimento, tanto em suas vidas pessoais como profissionais, com énfase nas capacidades criativas e em varias formas encontradas para enfrentar as perdas, os lutos ¢ a proximidade do fim da vida. Isso posto, pode-se considerar que: 1. existem caracteristicas emocionais peculiares A velhice e problemas intrapsiquicos e sociais que se manifestam nesse perfodo; 2. as reagdes emocionais produzidas por essas caracteristicas e problemas na mente dos médicos e dos membros da equipe de satide podem ser itei8 ou prejudiciais para o adequado atendimento dos idosos; 3. a identificagio dessas reagdes emocionais e stia correta compreensio podem contribuir para ampliar o conhecimento sobre essa etapa da vida. COMENTARIOS FINAIS A velhice é uma etapa do ciclo vital com caracterfsticas prdprias e necessidades especificas, como descrevemos ao longo deste capitulo. Os varios estudos mencio- nados so uma amostra da quantidade e da qualidade das pesquisas em desenvolvi- mento, que ampliam o nosso conhecimento sobre a velhice, ilustrando os aspectos psicolégicos, sociais e psiquidtricos dessa etapa, aqui: privilegiados pela propria natureza deste livro. O crescente conhecimento desses varios aspectos permitiré ao estudante, ao médico e aos profissionais da sade intervencdes mais eficientes que dependem também do reconhecimento das préprias manifestagdes emocionais cons- cientes e inconscientes, despertadas no convivio com os idosos. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS ABRAHAM, K. La aplicabilidad del tratamiento psicanalitico a los pacientes de edad avanzada. In: Abraham, K. Psicoandlisis clinico. Buenos Aires: Paidés, 1959. 395 p. ALMEIDA FILHO, N. et al. Estudo epidemiolégico dos transtornos mentais em uma popu- ago de idosos: rea urbana de Salvador-BA. J. Bras. Psiquiatr., n.33, p. 114-120, 1984. 188 Eizirik, Kapezinski & Bassols (orgs.) FREUD, S. (1910) As perspectivas futuras da terapéutica analitica. In: Edigéo Standard Brasileira das Obras Psicolégicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1970. v.lL. . (1917) Luto e melancolia. In: Edigdo Standard Brasileira das Obras Psicolé- gicas Completas de Sigmund Freud. 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