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voquynena Oh FKAUCGSCO CAKKAKA PREFACIO A QUINTA EDICAO Porque PROGRAMA Quando eu, em 1859, quindado ao ensino do Ate- neu de Pisa, resolvi, finalmente, entregar aos riscos da imprensa 0 curso de direito criminal por mim professado, durante 12 anos, em cdtedra mais humil- de, aprouve-me dar ao meu trabalho o titulo de Pro- grama, Esse batismo pareceu wma novidade: alguém 0 julgou muito modesto; outrem, por demais acanha- do e desproporcionado & obra que vinha a luz. Mas eu, ao invés, havia hesitado em adotar o titulo por temer pudesse parecer mui pretensioso ¢ demasia- damente amplo. O programa de wma ciéncia, no meu entendimen- to, ndo indica o livro onde ela vem exposta, mas, sim, o principio fundamental e a formula em que o autor sintetizou a férga motriz de todos os preceitos que a mesma ciéncia (de acérdo com o sew pensamento) é chamada a desenvoluer e a demonstrar. (© programa do direito criminal devia, segundo a minka opinido, resumir na formula mais simples a squladora de téda @ ciéncia; e confer em si o da soluedo de todos os problemas que o criminalista dave estudar, bem como todos os precei tos que governam a vida pratica da mesma ciéncia nos trés-grandes-fatos-que-the constituem o objeto, enquanto tem ela por missio enfrear as aberracdes da autoridade social, na proibigéo, na repressao € no juizo, para que tal autoridade se mantenha nos cami- nhos da justica e nao degenere em tirania. A ciénoia penal tem por juned lerar_os dousos da autori- tue dhe Sweote Crimivek D dade no exercicio daqueles trés grandes jatos; ¢ esté nessa obra, que constitui a atividade substancial € a razdo de ser da organizacéo social, 9 complemento da ordem, quando os mesmos fatos sto devidamente: reguicdos, ou wma perene fonte de desordens ¢ ini- quidades, quando permanecem entregues ao capricho @.as paisdes do legislador, Os preceitos destinados a ‘moderar por essa forma o poder legislative devem remontar awn principio comum @ fundamental; ¢ a formula que ewprime tal principio € 0 programa da ciéncia criminal. Téda a imensa teia de regras que, com o definir a supreme raztio de proibir, de reprimir e de julgar as agées dos cidaddos, circunscreve aos devidos li- mites 0 poderio legislativo o judicidrio deve filiar-se (segundo 0 meu modo de entender), como d raiz-mes- tra da drvore, a uma verdade fundamental. Tratava-se de encontrar a formula que expres- sasse ésse principio; ¢ a ela unir, ¢ dela deduzir, os preceitos particulares que deveriam servir de guia Constante nesta importante matéria. Uma formula devia conter em. sio germe de tédas as verdades em que a ciéneia do direito criminal viria compendiar-se ‘nos seus desenvolvimentos ¢ aplicagdes peculiares. ‘Acreditei ter achado essa formula sacramental; ¢ pa- receu-me que dela emanavam, uma a uma, tédas as grandes verdades que o direito penal dos povos cultos ji reconheceu e proclamou nas cdtedras, nas acade- ‘mias ¢ no foro. Epressei-a dizendo que o delito nao é um ente de fato, mas um ente juridico. Com tal asserto, tive a impressao de que se abriam as portas & espontiinea evolugdo de todo o direito criminal, em virtude de uma ordem ldgica ¢ impreterivel. B ésse foi o meu programa. O Programa para mim nio era nem o livro, nem o tratado, mas a idéia que devia vi- vificdlo, por inteiro, para o conduzir aos seus fins, ‘por caminhos miiitiplos ¢ variados, mas sempre coe- ventes, convergentes, entre si concatenados, ¢ con- formes a verdade. is — 0 delito é um ente juridico, porque a sua esséncia deve forgosamente consistir na violagéo de um direito, Bas 0 direito é,congénito ao homem, por- que Ine foi dado por Deus, desde o momento de sua Criagdo, para que possa cumprir os seus deveres nesta vida; deve, pois, o direito ter existéncia e critérios an- teriores ds inctinagées dos legisladores terrenos: cri- térios absolutos, constantes, ¢ independentes dos seus caprichos ¢ da utilidade avidamente anelada por éles. ‘Assim, como primeiro postulado, a ciéncia do direito criminal vem a ser reconhecida como uma ordem ra- cional que emana da lei morat-juridica, ¢ preewiste a tédas as leis humanas, tendo antoridade sdbre os pré- prios legisladores. O direito é a liberdade. Bem entendida, a cién- cia penal é, pois, 0 cddigo supremo da liberdade, que tem por escopo subtrair o homem @ tirania dos de- mais, ¢ ajudd-lo a subtrair-se & sua propria, bem como & de suas paivoes. Definido 0 delito como um ente juridico, estava estabelecido, de uma vex para sempre, 0 perpétuo li- mite da proibicio, néo se podendo entrever delito fora daquelas agées que ofendem ou ameacam os direitos dos consécios. B desde que o direito nao pode ser atingido, a ndo ser por atos exteriores procedentes de uma vontade livre e inteligente, ésse primeiro con- ceito vinha determinar a constante necessidade, em cada delito, das suas duas féreas essenciais: vontade inteligente e livre; fato exterior lesivo do direito, ow a dle ameagador, Iss0 leva a definir com seguros cri- térios a subjetividade e a objetividade dos delitos. Com o conceituar 0 delito como um ente juridi co, submete-se a ciéncia penal ao dominio de wm im- perativo absoluto; e se Tivra, definitivamente, do ris- £0 de se tornar instrumento do ascetismo ou de velei- RURTATTATACTATATTTAAATALAAAAAD FPHOUOFHOTFTEFFIFFFFSHSSFSIISEREFITITITED FRANCESCO CARRARA 2 dades politicas, adquirido um critério perene para Gistinguir, dos cédigos penais de justica, os estatu- tos da tirania. ‘Reconhecida no direito violado a objetividade in- dispensdvel para se configurar o delito, a natural va- edade daquele oferecia facil indicagao para discer- nnir e classificar as mds agdes segundo sua diferente qualidade e quantidade, subordinadamente @ varid- vel espécie e importdncia do direito visado. A inde- clindvel necessidade de se constituir o ente juridico das duas forcas concorrentes, fisica e moral, forne- cia, pelas possiveis modificagées de tais fércas, um indice racional e seguro do grau do proprio detito, ‘Assim, téda a teoria relativa & proibic&o encon- trava o sew eixo na formula definidora da essencia- lidade do crime. 2° — Dessa mesma formula decorrem a legiti- midade da repressdo e os limites que a ela se devem impor. Se 0 delito tem sua esséncia na violagéo do di- reito, segue-se a legitimidade da repressiio pelo con- curso de duas verdades superiores que convergem a tal fim. A primeira verdade me certifica, no plano da tazao, que cada direito deve encerrar, como con- teiido nevessdrio, a faculdade da propria defesa; de outra maneira, ndo seria direito mas irrisio. Por isso, a proibi¢do seria vamente proferida se nao a se cuhiasse uma forca capaz de gerar a sua observan- cia, A segunda verdade, no plano dos fatos, consiste ne impoténcia para éxercitar constantemente uma defesa coativa direta, suficiente para impedir a vio~ lagdo do direito. Essas duas verdades incontrastdveis levam, combinadas, 4 necessidade de uma coagio moral que, mediante 4 ameaca de um mat a ser infli gido aos violadores do direito, seja habil a dissuadi los da transgressdo, bem como represente a protectio daquele. E cis que, afastadas as idéias utépicas ow PROGRAMA DO CURSO DE DIRETTO CRIMINAL 3 EE veatérias do correcionalismo ou do ascetismo, ¢ a formula arbitrdria e prepéstera da defesa social, também se encontra, no terreno da repressdo, como no da proibigéo, o fulcro do direito criminal na tute- la juridica. E por isso que @ pena, assim justificada, nio é mais que uma emanagio do direito, segue-se, dat, nio poder ela auferir os seus critérios de medida no ar- bitrio do legislador, devendo submeter-se aos impre- teriveis cridérios juridicos que The regulam a quali- dade e quantidade, proporcionadamente ao dano so- frido pelo direito ou ao perigo que éste correu. 'E uma vee que @ repressio tutelar do direito de~ seja que se exercite @ agdo da pena sobre todos os ‘consécios a fim de que seja aquéle defendido por to- dos e contra todos, dai nasce a contemplago, na pena, de duas féreas (fisica e moral), correlativas ds andlogas, encontradas no delito; as quais, estudadas sob 0 prisma abstrato, nos ditam a teoria da quali- dade e quantidade nas penas; ¢, estudadas concreta- mente em relacdo ao individuo a que devem ser apli- cadas, regem a doutrina do grau. ‘Assim, atingindo 0 Direito Penal os direitos dos culpados, em consegiiéncia do seu maleficio, niio con- suma desrespeito mas protegdo ao mundo juridico, desde que no mal que inflige no exceda as necessi- dades da tutela. Qualquer excesso nao é guarda, mas violagdo do direito; é prepoténcia, tirania. Qualquer Geficiéncia é traigdo ao dever impésto & autoridade. E eis como, depois de ter descoberto, em a na- tureza de ente juridico configiradora do delito, os limites que coarctam o legislador quando estatui t proibigio, por iogica e indeclindvel conexéo se encon- tram os que o detém ao presorever a repressao. Limi- tes que se desejam fizar nio sd pela relagdo da qua- Hidade e quantidade do mal, mas também pelas condi- aes de lugar, tempo e pessoa. 3. — Finalmente, também 0 terceiro fato do le- gislador penal (refiro-me ao juizo criminal), — gra- Gas co qual os dois primeiros wém a colocar-se em contacto prdtico ¢ sensivel, ¢ a defesa do direito su- cede & sua violagao, convertendo-the a previsiio em realidade, como em realidade se convertex a previsio daquele — recede os seus critérios e as suas normas do mencionado primeiro postulado. Porque também 0 juizo penal deve obedecer ao direito, de cuja tutela é instrumento necessério. Deve atender aos direitos dos homens honestos que reclamam a represséo; ¢ ao direito dos préprios inculpados, que desejam nao ser condenados sendo quando se haja esctarecido a sua culpa, como também néo ser alcancados por um mal maior que o exigido pela necessidade da tutela juridica, calowlado com base na apuracéo exata do fato criminoso. E tém mesmo éstes evidente rasio em pleited-lo, porque 0 ‘magistério penal deve ser protetor e nao violador do direito, tornando-se violador tanto se fizesse recair @ pena sobre pessoa que se néo averiguasse culpada, péios legitimos tramites processuais, quanto se, a0 reconkecido culpado, fizesse pesar uma punigdo su- perior & proporcionada aos seus deméritos, Dessa ‘maneira 0 rito processual serve aos honestos, nao apenas enquanto os ajuda na descoberta dos delin- qqiente: ‘om. o preservd-los de serem vitimas de erros judiciérios; e, ainda, favorece devidamente os proprios culpados, enquanto impede que se Ihes irro- gue castigo que, ultrapassando a justa medida, vies- Se a constituir um Jato antijuridico. Dai a conseqiiéncia de que todos os preceitos re- lativos ao processo penal, & competéncia, és formas, ao direito de defesa, & liberdade ¢ amplitude de dis- cussdo, ¢, numa palavra, d regularidade das provas ¢ dos pronunciamentos, pertencem a ordem publica, porque interessam a todos os cidadéos € sdo instru ProcaMa D9 CURSO DE DINE mentos da protegdo do direito. Protegéo em que se resumem, como fim, ndo ja primdrio mas tnico, a ra~ zdo de ser da autoridade social ¢ a legitimidade do govern que uns poucos exercem sébre muitos. Assim, a ciéncia do direito criminal condensa mum conceito tizice ¢ soberano a propria missio € 0 caminio que deve continuamente percorrer. Sub- traindo, com indefectivel cuidado, os seus preceitos, tanto as veleidades utilitdrias como a jascinagdo da moral pura (politica e ascetismo), deve cla velar in- fatigivelmente pela consolidacdo, na ordem civil, da supremacia do direito. O direito criminal é 0 comple- ‘mento da lei moral-juridica. Com a proibigao éle a confirma; com a pena, dé-The aquela sangdo eficaz que, de outro modo, néo teria neste mundo; com o juizo, diligencia quanto possivel a sua observéncia pratica, His a idéia que me pareceu constituir o Programa do direito penal; ¢ foi o que tentei esclare- cer ¢ demonstrar através do mew ensino e do livro que sob ésse titulo publiquei. aunntatirrettterenensaaaeeeeaeeeed DUFFFECVFFFIVVFFVISSP SPER IIITITILG PROLEGOMENOS, Prevaleceu, em certo tempo, a concepedio de que os homens tivessem, durante um periodo indetermi- nado, levado vida desagregada e selvagem. Désse es- tado extra-social, acreditou-se tivessem, em dada época, passado ao de sociedade, em que hoje téda a raga humana prospera e cresce. Tal mudanga, pre- tenderam alguns explicd-la pela lenda de uma divin- dade descida a Terra, para organizar os homens em vida comum; outros, pela aceitacdo de uma violéncia sdbre os homens fracos, de modo que os mais fortes tivessem subjugado seus semelhantes, 2 maneira por que se domam as feras; outros ainda, pela hipotese imaginéria de uma convengio estipulada entre os ho- mens pela vontade comum, ‘Todos ésses diferentes sistemas tiveram um pon- to de partida tinico: a suposigéo de que a raca adémi- ca tivesse passado, sdbre a Terra, por dois estédios de vida diversos. Um (que se denominou primitivo, de natureza, e de liberdade), no isolamento e sem fir- meza de relagdo entre os individuos — estadio de de- sagregacéo e selvagem; o outro, de miitua associa- Go, que por um meio qualquer submetia os homens a uma autoridade e a uma lei terrena — estddio de associacéo civil. Désse conceito nasceu a formula de que 0 homem tinha renunciado a uma parte dos direitos a éle atribuidos pela sua liberdade natural, que se"supunha ilimitada, para melhor conservar € tutelar os demais direitos. Tudo isso é um érro, E falso que o género huma- * no tenha vivido, durante certo periodo de tempo, li- 38 FRANCESCO CARRARA yre de qualquer vinculo associative. & falsa a tran- Sicdo de um estado primitivo, de ebsoluto isolamento, para outro, modificado e artificial, Sem divida, de- Yese admitir um lapso primitivo de associacao pa- triareal, ou, como se costuma dizer, natural, a que pouco @ pouco se acrescentou a constituicdo de leis permanentes, e de uma autoridade fiscalizadora da Sua observareia; e, assim, a organizacao da sociedade que se denomincu civil. Mas qualquer periodo de de- sagregacao e de vida selvagem é inadmissivel, como Jouca visdo. O estado de associacéo é 0 tinico primi- tivo do homem; néle a propria lei natural o colocou desde o instante de sua criacao. Quando as tradigdes de todos os povos nao con- tradiSsessem aquele suposicao, bastariam para apon- té-la como absolutamente impossivel as condigoes especiais da raga humana. ‘Assim a mostram as particularidades fisicas da humanidade, que Ihe nao teriam permitido sobrevi- ver, sem que a reciproca assisténcia dos homens fosse continua e atenta As necessidades de cada um. E a natureza revelou por claros sinais tal destinagao do hhomem a uma forma de sociedade permanente, nao precaria e fugaz como a dos animais: reveloura, quer pelas necessidades a que na primeira idade e nas mo- Jéstias 0 submeteu, quer com o negar-lhe, perante as feras, aguéles meics de salvac&o ou de defesa que 20s jrracionais havia fornecido, e que os homens deviam encontrar nas relacdes entre si, quer, ainda, tornan- co continua na mulher a aptidao & uniao sexual, que ‘as fameas de todos os animais apenas tinham por intervalos e passageira, quer, finalmente, com a ne- cessidade de inumaggo dos cadaveres, sem 0 que os homens se exterminariam pelo contagio. Assim a mostram as condigSes intelectuais dos homens, pelas quais Thes foi aberto um caminho de indefinida progressividade nos conhecimentos wi PROGRAMA DO CURSO DE DIRZITO CRIMINAL. 20) — caminho que nao teriam podido percorrer sem 0 uso da palavra, e sem a ajuda das tradicées de seus maiores. ‘Assim a representam a condicéo de ser moral, tOda peculiar ao homem, e o fim para o qual Deus o criou, Nao podia Hie ter feito surgir uma obra in- completa, para depois, como que informado pela ex- periéncia, volver 2 aperfeicod-la. ‘A lei eterna da ordem impele o homem socle- dade. E 0 Criador, que @ essa let o conformou, a ela © guia, gracas as tendéncias, como guia téda a cria~ cdo a seus fins. Atragio: fora tmica, imensa, pela Gual se exercita 0 poder divino sdbre tudo o que foi criado, A tendéneia fisica operou a primeira conjun- co dos corpos; a tendéncia moral protraiu e perpe- fuou a unigo reciproca dos pais, a déstes para com 0s filhos, e isso em tédas as geracdes que sobrevie- ram, como em quantas ainda advirdo. Assim, a so- ciedade estava nos destinos do homem, nfo s6 como meio indispensdvel & sua conservacdo fisica e pro- gresso intelectual, mas ainda como complemento da Tei moral a que o proprio homem devia estar sujeito. Deus dispds tudo o que foi criado para uma eter- na harmonia. E quando, no sexto dia, éz 0 homem A Sua semelhanea (isto 6, dotado de uma alma espi- ritual, rica pela inteligéncia e vontade livre), essa obra, @ mais bela da divina sabedoria, lancou & Terra a semente de uma série de entes dirigiveis e respon- sdveis pelas proprias agées. Tais séres ndo pociam, como os meros corps, submeter-se apenas as leis fisicas; uma lei moral nasceu com éles: a lei natural. Quem nega essa lei renega a Deus. ‘Assim, ao mundo fisico, de que também partici- pam os homens, acrescentot-se, desde que apareceu 6 primeiro, um mundo moral, a éles inteiramente pe- culiar, e que se compoe das suas relacdes morais con- Sigo mesmos, com o Criador e com os semelhantes. LRERERDATTEP EERE HTATARA ARTA ‘As leis fisicas possuiam em si uma férga de coa- ‘e uma sangdo, que tornavam indefectivel o seu mento. A harmonia do mundo material, bas- gio, cumpr} tavam tais forcas. . "As leis morais, a0 contrério, néo traziam consi- go forea de coupto, a ndo ser no sentido moral: nao Sesuiam sangdo sobre a Terra, senio no remorso- Mas as paixdes, alids indispensaveis ae homem como elemento de acéo, pervertem muitas vézes 0 senso moral, assim como sufocam a voz do remorso. ‘A lei natural teria sido, pois, impotente para manter a ordem no mundo moral, porque mais fraca Go que a lei eterna reguladora do mundo fisico. Bsta é sempre obedecida; aquela, com demasiada freqtién- cia, conculeada e negligenciada. ‘Tal abandono da lei moral ao arbitrio humano, sob a sangio tinica de um bem e de um mal supra-sen- Siveis, se poderia nao acarretar perturbagdo & harmo- hia universal enquanto a lei moral atingisse 0 homem em suas relacdes para com Deus e para consigo mes: mo, nao seria tolerdvel quando se tratasse das rela- goes do homem para com os seus semelhantes. A Gespeito da lei moral, os homens teriam ficado a mer- 3 daquele dentre élés que, preferindo ao bem supra- ssensivel o bem sensivel, tivesse logrado, por meio de Yorea ou astiicia, violar-thes os direitos. Sob ésse prisma a desordem no mundo moral teria causado também desordem no mundo fisico. Para completar a atuacdo da lei da ordem na vida terrena, era mister, portanto, um fato ulterior, em razio do qual a lei moral fosse fortalecida, na ‘Terra, por uma coacdo e uma sangao sensiveis, a tim de que o preceito moral, que impunha 20 homem res peitar os direitos do préximo, néo fésse palavra V3, eo mundo moral, présa de continua desordem, no estabelecesse feio contraste com a ordem que impera no mundo fisico. Eee ld PROCRAMA DO CURSO DE DIREITO CRIMINAL 2t Essa forca coatora e repressiva, que a lei moral nao possuia em si mesma, ndo podia ser encontrada senao no proprio braco do homem. Deus o poderia ter criado impecdvel, tirando-lhe a faculdade de transgredir os Seus preceitos, como tirou aos corpos o poder de resistir A férca da gravidade; nfo teriam enifio existido deveres nen! direitos. Tudo teria sido necessidade, Mas isso aniquilaria o livre arbitrio, tornando o homem insuscetivel de méritos ou demé- ritos, Consegiientemente, suposto o livre arbitrio, ou bem Seria necessério enviar Terra uma permanen- te legiao de espiritos superiores, como guardas e vin- gadores da lei moral, ou se chegaria a éste inevitavel Gilema: deixar sem observancia o preceito moral ou confiar a sua tutela ao brago do homem. ‘Assim, pela lei eterna da ordem, o homem foi des- tinado a ser, 20 mesmo tempo, stidito e mantenedor do preceito moral. Mas tal miss&o no podia ser executada pelo in- dividuo desagregado, e nem mesmo pelos homens reu- nidos em w'a mera associagéo fraterna constituida sob 0 principio da igualdade absoluta. Ainda aqui, a diversidade de vontades e a paridade do poder tor- nariam impossivel a proibicéo, a sangéo e o julga- mento dos fatos humanos; e, por outro lado, a sancéo ¢ 0 julgamento constituem 0 complemento indispen- savel da lei moral na parte em que esta regula os de- veres do homem para com a coletividade. Esse com- plemento, apenas a sociedade civit poderia dé-lo. Para o género humano a sociedade é uma_ne- cessidade natural, indispensavel & sua conservacao e 4 indefinida perfectibilidade a que é destinado. Mas, desde que satisfeitas, convenientemente, por meio de uma simples associacao fraterna, as necessidades fisicas, para as quais se requer a assisténcia mitua, e as necessidades intelectuais, que demandam a ins- trugéo reciproca da humanidade, nao bastam, tais FRANCESCO CARRARA necessidades, para justificar a sociedade civil, e erra quem confunde a génese desta com.a de uma asso- ciaeao natural. Foi gravissima iluséo de Rousseau, e de seus seguidores, supor, no primeiro periodo da humanidade, uma vida ferina; mas foi igualmente jlusao de seus adversdrios admitir a sociedade civil ‘como nascida com 0 homem. Quando as verdades re~ veladas no refutassem também ésse segundo con- ceito, a mera razio mostraria a impossibilidade da existéncia de principes e magistrados no berco de uma humanidade composta de algumas familias. O esta- do de associacéo foi contemporaneo do nascimento do género humano; o de sociedade civil, um primeiro progresso da humanidade que se desenvolvia, estado fa que ela era conduzida por uma lei de ordem primi- tiva, por forea de necessidades distintas daquelas que a haviam impelido ao seu imediato consércio. Havia, de feito, outra necessidade nfo menos importante para os destinos da humanidade: a da observancia e respeito 2queles direitos que a lei na- tural havia outorgado ao homem, antes de qualquer lei politica, a fim de que lhe servissem de meio para cumprir seus préprios deveres ¢ alcangar a sua des- tinaeao terrena. Pelo impulso das paixdes indivi- duais, tais direitos teriam sido inevitavel ¢ irrepara- velmente espezinhados e destruidos, tanto no estado de isolamento como no de sociedade natural. Els a iinica, a verdadeira rezio de ser da sociedade civil. Razéo eterna e absoluta, porque é absoluta e primi- tiva a lei da observancia efetiva dos direitos huma- nos, Desde que a sociedade civil era a tinica forma capaz de fazer valer a ordem juridica, e desde que a Jei natural prescrevia a observancia desta, essa mes- ma lei deve ter querido e impésto que 2 humanidade se acomodasse Aquela forma tinica de associagio que ia atender a tais fins. A razio de ser da socieda- po Ge civil é, pois, primitiva e absoluta‘ mas reside, tao- -36, na necessidade da tutela juridica. PROGRAMA DO CURSO DE DIREITO CRIMINAL 2a Ora, se 0 estado de sociedade civil era necessario & raga humana para o fim do cumprimento do pre- ceito moral, a sociedade que devia exprimir a forma, especial da ordem imposta ao homer pela Suprema Inteligéneia, desde-o-instante-mesmo da sua criacdo, ndo podia ser senéo uma sociedade cuja direcéo se unificasse num centro comum de autoridade. E essa autoridade ndo péde deixar de ser munida do po- der de proibir certas acées, e de reprimir quem, nao obstante a proibicio, ousasse cometé-las. A socieda- ce civil, a autoridade que a preside, o direito de vedar e de reprimir que a ela se atribui, no sio mais que uma cadeia de instrumentos da lei da ordem. Logo, 0 direito penal tem sua génese e seu fundamento ra- cional na lei eterna da harmonia universal. O preceito, a proibigao e a retribuico do bem e do mal, enquanto permanecem nas méos de Deus tém por tinico fundamento ¢ medida a justica. Abso- luta, no Absoluto, infalivel, no Infalivel, ela, nesse estado, alcanca o homem tanto nas suas relacdes com Deus e consigo mesmo, quanto nas relagdes com as demais criaturas. Aqui a justica opera sempre como principio tinico. Deus nao pune 0 ladrao, e 0 homi- cida, para defender o homem, mas porque 0 homici- dio e 0 furto so males; e quer a justica que quem pratica o mal sofra outro tanto. Mas o preceito, a proibigéo e a retribuicdo, en- quanto se aplicam as relagGes do homem com a. pré- pria humanidade, separam-se de Deus; ¢ uma parte da seu exercicio por Ble devolvida, sObre a Terra, & autoridade social, porque, acarretando a violacio de tais relacdes um dano presente ao inocente, é ne- cessirio seja éste protegido contra essas transgres- sdes por uma forca atual e sensivel. Assim, 2 defesa da humanidade nao é a primiti- va razo de proibir e de punir; é a raz&o por que 0 direito de proibir e cestizar é exercido, na face da LTRUVATUTTTT TTT TATA TAAL TAT a ae FOUSTTTFT FF FHFSSESSITSSSERRESIITIVED. FRANCESCO CARAARA a _ Terra, pelo homem sobre 0 proprio homem, seu se- melhante, Eno é essa uma necessidade politica, mas da lei natural. Logo, considerado em abstrato o direito de pu- nir, o seu fundamento é, nicamente, a justica; mas quando se toma como ato do homem, 0 seu funda- mento é 2 defesa da humanidade. Erra quem aponta a origem do direito de punir na mera necessidade da defesa, desconhecendo-lhe a primeira génese na justiga. Erra quem vé o fundamento do direito de punir no principio mesmo da justiga, sem o restringir aos limites da necessidade da defesa. O direito de punir, nes m&os de Deus, nao possui outra norma senao a justica. Nas mos do homem, nao se legitima senao pelo imperativo da de- fesa; poraue a éle é concedido apenas enquanto ocor- re & conservacdo dos direitos da humanidade. ‘Mas, ainda que a defesa seja a tnica razdo de tal delegacdo, o direito conferido fica sempre subme- tido &s normas da justiga, pois nao pode perder a pri- mitiva indole de sua esséncia, com a passagem para as méos do homem. Dada a justige como tinico fundamento da puni- cdo dos horzens, autorizar-se-ia um contréle moral mesmo onde nfo tivesse havido prejuizo sensivel; € @ autoridade social usurparia o papel da divindade, tornando-se soberana dos pensamentos, sob 0 pretex- to de perseguir o vicio e o pecado. ‘Atribuido & puni¢o dos homens o mero funda~ mento da defesa, permitir-se-ia a coerc&o de atos no perversos, sob color da utilidade piblica, outorgan- do-se & autoridade social ztirania-do-arbitrio— Se essa autoridade, por uma reveréncia & justi- ca, pune quando no o reclama 2 necessidade da de~ fesa, peca formalmente contra a justiga, porque, em- EASA BO CURSO DE DIREITO CRINESAL 3 ta e abusivamente & bora merecida a punigio, in; indrio de punir existe, por ela imposta. O direito or mas nao Ihe foi delegado. Se a mesma autoridade, por uma consideragio Ge utilidade publica, impée castigo que nao foi me- recido, peca substancialntente contra a justica, pois, onde ro ha infracao, nao existe 0 direito primitivo de punir, no lhe podendo éste, portanto, ter sido de- -legado. fisses dois principios remontam & lei eterna da ordem, de que deriva a sociedade, a autoridade e, nesta, 0 direito de vedar e de punir. A lei da ordem externa, isto é, a necessidade da defesa, investe a autoridade terrena de um poder sObre os homens; masa lei da ordem interna, ou seja, a justica, domina, indefectivel, 0 seu exercicio, como medida modera- dora. O limite interno do direito penal se reduz & mais simples e & mais exata expresséo através desta formula: deve éle intervir sempre que se faca neces- sario a tutela do préprio direito; e nao pode interfe~ Tir onde o direito no foi violado ou pésto em imi- nente perigo. & éle defeituoso se falta ao primeiro cinon; exorbifante e injusto se desatende ao segun- do, embora em razo de ato imoral ou intrinsecamen- te maléfico. Conseqiientemente, nao é verdade que o direito penal seja restritivo da liberdade humana. Nao é li- mitacdo de liberdade o impedimento que se interpde entre o assassino ea vitima, porque a liberdade huma- é mais que a faculdade de exercitar a prépria ividade sem lesio aos direitos alheios. A liberdade de um deve coexistir com igual liberdade de todos. ‘A restrigéo nasce da lei natural, que concedeu direi- tos & humanidade, e impés a esta respeitd-los. A lei humana nao diminui a liberdade com o conté-la den- tro dos limites de sua natureza.' Legum (disse ClceRo) servi sumus ut iiberi esse possimus, FRANCESCO CARRARA 0 direito penal é, a0 contrério, protetor da liber- dade humana, tanto externa quanto interna, Da in- tena, porque confere ao homem uma forca a mais para vencer o seu pior tirano, as proprias paixdes; e, como bem dizia Dacuesszav, jamais o homem é to liyre como ao subordinar as paixGes a razio, ¢ a ra- zo & justica. Da liberdade externa, por proteger, contra’o forte, 0 fraco, no gézo de seus direitos, den- tro dos limites do justo; e nisso consiste a verdad ra liberdade. Essa verdade procede tanto em relacio & pr bigdo © repressdo dos fatos que lesam 0 individuo, como em referéncia aos que ofendem o corpo social ea autoridade. Desde que se reconhece que a socie- dade e a autoridade nfo so criagées da politica hu- mana, mas tém sua origem na lei natural, dessa mes- ma lei 6 necessario inferir o direito da autoridade & propria conservacdo, isto 6, 0 seu direito de se ver respeitada, e 0 dever dos cidadaos de respeita-la en- quanto age nos limites da legitimidade. ‘De modo diverso foram os publicistas levados a pensar, ou por errarem ao conceber a origem da so- ciedade, ou por confundirem a disciplina penal com a fungo de bom govérno. Mas entre as duas coisas medeia um abismo, O poder de policia nao decorre sendo de um prin- cipio de utitidade. A sua legitimidade se encontra inteiramente nisso; néo aguarda um fato pernicioso para agir, nem coordena sempre os seus gestos & es- trita justica. E dai decorre que, permitindo-se-lhe agir por meio de médica coere&o, pode éle realmente chegar a modificar a liberdade humana, o que se to- Jera pela consideragao de um bem maior. Mas o poder de policia nada tem de comum com a disciplina. penal, nao obstante sejam ambos exerci- Gos pela autoridace predisposta a governar o pov Esta inicia a propria fun¢&o quando aquéle ja indtil- mente esgotou a sua; seu objeto é diverso, @ sao di- PROGRAMA DO CURSO DE DIREITO CRIMONAL n versas as suas normas e limites. Que se ambos pa- recem conglobar-se pelo fato de ser una a autoridade social que os exerce, a um e a outro, nao se fundem, porém, em si mesmos, nem tampouco perante a cién~ cia, Da mesma maneira que duas artes nao podem ser consideradas como formadoras de um corpo tini- co de regras porque sejam exercitadas, acaso, por um mesmo homem, assim também nao se pode dizer que, se um sé govérno previne e pune, a prevencéo @ a punicao se unifiquem na causa, nos limites, nos processos, nos efeitos e no fim. Foi um érro o acreditar-se que o poder de policia pertencesse A nossa ciéncia, Néo é éle uma parte do direito penal, mas antes integra 0 direito econdmico, quando éste se_considere nao como mero fator de rigueza, mas como fator de civilizagio. —— Incluindo-o no direito penal, gerou-se confuséo nos conceitos e abriu-se caminho ao arbitrio, por mo- tivo do empréstimo reciproco de suas normas, que nfo eram comunicaveis entre si, Ora, dai decorreu que o poder de policia, por influéncia dos principios do direito penal, se cingiu com tais lagos que se tor- nou inepto e, no terreno do direito penal, foi atri- buido um imoderado valor & idéia da prevencio, alar- gando-se o arbitrio em detrimento da justiga. Sao duas forcas que alternadamente se estendem as mos, visando 0 fim ultimo da ordem, que tém em comum, como alvo supremo de tédas as leis impostas pelo Criador & criature. Sao duas fércas que se nao deve contrapor; duas fércas enfeixadas no mesmo pulso da autoridade social. Mas duas fércas essen cialmente distintas. Se a primeira se mede com as normas da segunda, enfraquece-se até & impoténcia; se.a-segunda se afere com as normas da primeira, exagera-se até a ferocidade.' ' Veja-se Pains ENT, Réforme de préparatoive, pags. 1 4 RRGRRRRATATLCTLLLCTTTTATATTATIE SEL FFF FFF VIFFISOVOSSSSSSVEPEERESIRTABRE B Foi um fenémeno constante na constituicio das nagdes amalgamar-se 0 poder de policia ao direito Tepressivo, Sob os governos despéticos, conservando- ve ales ciosemente separados sob os estatutos libe- yais. Racionalmente, pelo menos, devia ser assim. Se, porem, isso no ocorre sob governos que se jactam oe um regime livre, tal fato significa que aquela ati- fude é mera hipocrisia. E quem deseje entender essa Verdade deve francamente confessd-la. Assim, na Roma livre foram alheias & justica penal a funcéo e a jurisdicéo censéria. O Imperio transmudou em ver- Gadeiros delitos muitissimos fatos de que, sob a Re- pliblica, apenas os censores se ocupavam.' Para co- Snestar tal confusdo, buscaram-se pretextos, confor- me as épocas, em trés idéias diversas. Ora em idéias desenfreadas a respeito da autoridade do Principe ou dos direitos do Estado; ora no prevalecimento do fa- natismo religioso; ora num excessivo zélo pela mo- ral. Cada uma dessas idéias, por sua vez, desviou 0 direito punitivo e, encobrindo o seu genuino concei- to, tornou-o indefinido e injusto. Mas a autoridade soeial que ceseja legitimamente exercer os diversos poderes que Ihe so conferidos deve atué-los segundo as regras dé-razio absoluta—que—regem_a cada uM_ déles. Na autoridade que superintende 0 corpo social, existe uma quantidade de poderes em que, mais que verdadelros direitos, se configuram outros tantos de- veres, que a ligam aos cidadaos e Ihe tornam obriga- torio 0 exercicio, dentro de certos limites. Deve ela proteger as transacées privadas, a fim de que nas relacées patrimoniais ndo domine a frau- de ou a forga, mas a justiga, A isso prové com as leis civis, e com a instituigio de magistrados que dirimam, conforme aquelas, as controvérsias pecunia- * Koswreswarrer, Diss, mullum delictum sine lege, pag. 12, Amsterda, 1835. se 2 rias entre os cidad privado. Mas éste, enquanto regula bens adquiridos @ aliendveis, no é, em si, absoluto; porque o indivi- duo pode, com o seu assentimento, tornar justo aqui- fo que pela lei seria injusto, e a auteridade pode, por razées do bem piiblico, tomar ineficaz 0 consentimen- 10 20 direito dos particulares. Ela deve manter nos justos limites as relagdes que medeiam entre governantes e governados, de modo que aquéles nAo ultrapassem o circulo das suas atribuigdes e éstes nao iludam a obediéncia por éles devida. A isto provém os estatutos organicos do Es- tado, que dizem respeito ao direito piiblico particular, ou direito constitucional. Mas éste nao é, em si mes- mo, absolute, porque as condigoes diversas dos po- vos modificatn 0 direito pablico, que é sempre legiti- mo quando de acérdo com o desejo da maioria inte- ligente e enderecado ao fim wltimo do bem geral. ‘Atende aquela & mantenca das boas relacées e1 tre o Estado e as outras nagées, a fim de que os ci dados se vejam protegidos mesmo em territério es- trangeiro, e para que da contiguidade dos paises, em vez de surgirem causas de perigo, emerjam recipro- cos elementos de seguranca externa e riqueza inter- na. A isto ela acode por meio de congressos, trata- Gos, consulados, embaixadas e, em caso de necessida- de, através da guerra. E isso respeita ao direito das gentes, ou internacional. Mas também éste 6 varia- ¥el segundo as condicdes dos diferentes povos. Deve a autoridade prover as necessidades das despesas piblicas; fomentar 0 progresso moral do povo, ou seja, a verdadeira civilizacao (que nao con- siste na cortesia de atitudes, mas.na honestidade de costumes) ; diligenciar a fim de que os essociados n&o 6 ndo carecam do necessario, mas também dispo- nham do que mais sirva a uma vida préspera. A tal fim se enderecam as leis sdbre 0 culto, os bons cos- 30 6 tumes, o comércio, as finangas, os géneros de neces- sidade, os impostos e as obras piiblicas. Isso corres- ponde ‘20 direito administrative, ou & economia po- Htiea. Mas também esta ndo pode formar um corpo Juridico absoluto e constante, pois a sua regra é @ uutilidade, apesar de estar sempre subordinada ao aca- tamento da liberdade das ciéncias e das indiistrias. ‘Ora, em todas essas disposigées, que em seu con- junto pertencem a ciéncia do bom, govérno, ocorre treglientemente que, para reforcar determinacao sua, deva a autoridade, com 0 fito do bem comum, infli- gir algum mal ao cidadao que, com seu modo de agir, contrarie tais preceitos. Seria, porém, um érro acreditar que toda vez que a autoridade imp6e um dano a determinado cidadao, ém razao de um fato seu, exercite aquela o direito penal. As leis financeiras, as relativas aos monon6- fios, a0 comeércio, encerram, freqilentemente, penali- dades; os proprio diplomas de processo civil con- Signain cominacies; a policia adverte, corrige © chega a encarcerar; e, muitas vézes, sem que em-nada Se haja turbado 2 ordem externa, mas apenas por- que razoavelmente se teme uma, agitagao ou porque se viu diminuida a prosperidade do pais. "Todas essas sangées, que nao podem deixar de ser leves, no dizem respeito & esfera penal. Os fatos provocadores de tais medidas podem denominar-se transgressdes, mas nE0 detitos. Também nesse particular errava Rovsseav, quando, aums de stias brilhantes frases, afirmou néo coro direito penal uma lei subsistente por si mesma, porém a sancao de todas as demais. Com essa formula Fiea redtizido 0 objeto do direito criminal & mera pu- nicso, sem se levar em conta a proibicao, que déle & tambem parte integrante; é éle atirado & mereé do indefinido; e se torna impossivel construi-lo como yerdadeira ciéneia, unificando-lhe o principio mode- rador. PROGRAMA DO CURSO DE DIREITO Ci © critério que separa a fungdo penal da funcéo do bom govérno, e que dessa forma distingue os deli- tos das fransgressGes, nao pode ser senao éste: a Di meira deve alcancar apenas os fatos a que se possa atribuir o carater de moralmente reprovaveis, por ter a medida do seu direito na justica absoluta; ao passo que a segunda pode abranger também fatos mor mente inocentes, pois o fundamento do seu direito é a piiblica utilidade. Se em alguns Cédigos foram desprezadas esas regras, ao se fazer a classificagio, e, ora na lei penal foram introduzidas transgressces, ora nas leis de po- licia se consignaram auténticos detitos, isso ndo con- tradiz a verdade dos principios, mas apenas prova 0 érro e a imprecisao dos legisladores. A ciéncia do direito penal s6 se pode ocupar dos primeiros fatos. Sébre os demais, ndo lanca sendo um olhar fugaz, para advertir os legisladores de que sejam brandos ¢ humanos. Mas nao pode ternar suas teorias comuns &s transgresses, sem gerar inextri- céyel confusio.' (© ordenamento penal se destina a protecao da liberdade individual. As outras regulamentagoes a restringem, Aquéle pressupde sempre um fato vio- lador da lei moral, bem como uma intencao reprova- vel. Os-demais-estatutos ora.néo cuidam da intencio 1 Feurrasce definiu a oféneia criminal: ciéncia dos direl- tos que o Estado pode exercer sdbre os cidadaos, em razdo das violagdes de let que cometem. Essa definicao, embora exprima fem parte o conceito filoséfic de nossa ciéncia, é demasiada- mente ampla, porque, estencendo-se a qualquer sangao e a qual- Quer desrespeito a lel, compreende mais do que o definide, A Gmissio de registo de um ato civil, e a sua lavratura em papel no selado, seriam igualmente de alteda do direito penal! A Ciéncia criminal a procura dos limites internos e externos Centro nos quais apenas 0 Estado pode tutelar os direitos hume- hos, despojando de um direito seu o individuo que os tenha Atacado, e das maneiras mals convenientes cle exereitar, por tal melo, essa tutela, EEETETUUTTET CLC TA AT AT VAT ATA AAAS h! yoo RRS FEFFFFSSSSSSSSSSESEESASTAELS e da moralidade, mas apenas do fato material, ora © so atendem sequer 20 fato, para castigar a ent per- Persidade do homem. A funcao de born govérno fica bem atribuida, como fundamento de direito, a neces: sidade publica, ou mesmo a ‘utilidade; a fungao penal ido se pode dar como origem ‘um ato de yontade do homem, se nao 0 preceito de Deus, revelado aquele pemaves da Tei natural. As disposicdes da primeira foncdo so relativas e variaveis; & segunda é absolu- ta, em todos os seus principios fundamentais. , em verdade, se o direito de punir, nas mos do homem, procede da eterna lei da ordem, 2 ciéncia ue noveito’panal deve-ser-independente-de-qualdues —.___ SSeposigao legal humana, e dirigida apenas Por 7° gras de razio absoluta. ‘Se o direito penal tivesse sua raiz e sua norms na ventade dos legisladores, 0 estudo dessa ciencia na wonetrito ao arido comentario do Cédigo, da ok: Serie e og seus preceitos variariam com o variar dos qotpos, dos lugares, das necessidades e das opinioes. Ms a elasticidade perpétua do direito peril fol tum gonho de FILANOBRL, Que aceitou os erros dos legis san or oagtos como exemplos de verdade racional, Een idéia @ atualmente rejeitada pela ciéncia, que © Esse Joria, aceitando-a, O direito penal tem a sta g@ fese ¢ sua norma numa lei que é absoluta, porae® nese tiva da tinica ordem possivel & humanidade, Segundo as previsdes e a, vontade do Criador/ Tqambim a doutrina penal tem seus qteus: tals sio, os que, seguindo as pogadas de Montesquieu @ de BENTHST tem due, eer origem do. cizsito a let do, Estado. Eos denomect aoe no seatido figurado e relative como no TECTOS Gteus tanto no Seto relativo, porque o diretio é 0 deus 6 absolute, Migs correlatas, e quem The nega uma existeeee todas as Cfforior a lel humana, nega também, na. ordem 1” absolute, Sogade que a faz nascer. Em sentido absolute, Pore Glee, ® icitamente nega um Deus ou uma Providéntis todo Gusale que nao recotiece que © mundo moral est ‘submetido, PROGRAMA DO CURSO DE DIRETTO CRINANAS a aplicagao, & tutela im- ciéncia penal ndo procura seni juridica, désses principios racionais que nos postos pela Suprema Inteligéncia. ‘As suas demonstracoes nao derivam da palavre do homem, mas devem ser deducbes logicas da razio Sterna, da qual Deus, por admirével inspiracéo, re- Volou 20s homens 0 quanté era necessario para regu Jarthes a conduta perante seus semelhantes na Ter- Ta, Subordinadas, assim, a uma norma absoluta, as leis penais so absolutas nos seus principios cardiais; ¢ ngo se podem tornar relafivas senao na forma da sua aplicagio. iis a ciéncia penal que devemos estudar, fazen- do sempre abstracao daquilo que se tena visado s- fetuir nas diferentes legislacdes terrenas, e investi- gando a verdade no Codigo, imutével da razio. Eomparacio dos direitos constituidos ndo é mais que Cir fomplemento da nossa ciéncia. Nessas pesquisas Sreundatias, deveros decidir qual seja, dentre os di- ferentes Cédigos, o que mais se adapte ao arquetipo fh verdade absoluta; endo, por caminho inverso, de- emir do direito positive a exatidao dos principios. "As leis humanas tém sido, com demasiada tre- aiiéncia, iniquas e irracionais, porque produzidas pe- ths paixdes, ou pelas alucinagées da mente. Se se de sejasse tirar désse critério o tipo da lei natural, 98 selessria em receoso ceticismo ou se legitimaria toda sorte de injusticas. Jest on primeiros alvéres da humanidade, a uma lel suprema, desde O° Fel segundo a vontade do homem. Pelo que, o direito ao Vg verdadeira cigncia, que mantém inconcussas as Verda: Ben or cla professadas através das ondas dos caprichos une: des Por anm (repetirel com GurxEzo, em seu Thiresios so 105 meters et supientize cognatione, pag. 36) ext scienisa de coecrnum de quitus dubitari potest; aut circa en versa sane iter se habere possunt; sed notitiam. Solum scientia ¢t sue tous cards et necessariis quate im consultationem non cor hunt, cut ullo modo mutari possunt. FRANCESCO CARRARA Trés fatos oferecem argumento A nossa ciéncia: a infracdo da lei pelo homem; o desejo da lei de ver punido tal homem; a verificacao de tal violagio pelo magistrado, que em seguida lhe irroga o castigo. Delito — pena — juizo. A ordem das matérias no di- reito penal decorre da natureza das coisas. E inal- teravel. Esta 6a parte geral da nossa disciplina. A parte especial desce 2o exame dos fatos particulares pelos quais se viola a lei, e os examina também segundo os principios da raz4o, com um critério todé ontolégico, para definir-lhes os respectivos caracteres, distin- guir-lhes as fisionomias, medir-Ihes os grails. Até entao tudo é feoria; parte especulativa. Exa- minar, relativamente aos juizos, quais os processos por qule se organizam em nosso pais; e, acérca dos de- litos em espécie, quais as nogdes e respectivas rela- Ges, segundo as quais sfio definidos e medidos pela lei que nos rege: eis a parte puramente pritica e po- sitiva, Na parte tedrica se interpreta uma lei eterna e indefectivel, como modélo supremo a que se devem conformar as opinides de todos os sdbios, e a que ha de obedecer 0 préprio legislador. Na parte pratica, interpreta-se uma lei humana e variével, como a auto- ridade a que todos nés, siiditos e magistrados, deve- mos sujeitar-nos enquanto vigorar, sejam quais forem nossas opinides. ‘A razao da obedigncia & primeira é a verdade; a razdo da obediéncia A segunda é 0 preceito. ‘A parte pratica do direito penal corresponde as cadeiras de aperfeicodmento, que, como orientadoras dos jurisperitos na atuacao do direito no féro, tém por texto a lei escrita e por guia a hermenéutica e as construcées da jurisprudéncia. Com a ajuda da criti- ca, devem coordend-las em sistema; com o auxilio da razio tedrica, elidir os defeitos da primeira e propor PROGRAMA DO CURSO DE DIREITO eRRUNAL, 5 suas melhorias titeis. Mas a cétedra considera o direito penal apenas sob 0 ponto de vista filoséfico, porque nfo ensina a ciéncia italiana e, sim, os prin- cipios comuns a téda a humanidade Esse o caminho que devemos percorrer. E 0 per- correremos seguindo com amor e com £é os princi- pios que distinguiram, dentre tédas, a escola italiana, Essa escola que, abeberando-se, em matéria pe- nal, nos sumos prineipios da filosofia latina, soube, esteiada no Cristianismo, depuré-los da névoa paga e reivindicé-los do estrago das barbies orientais e preconceitos nérdicos, que os tinham subjugado ¢ corrompido, numa contenda ininterrupta. A escola italiana, que tanto trabelhou na longa luta entre o direito e a forea, que antes de qualquer outra proclamou, pela béca de Vico, existir na dis- tribui¢do das penalidades uma lei que se sobrepde 20 legislador; e que, elaborando-se na dupla forja da academia e do féro, conservou-se igualmente inconta- minada do fascinio das visdes transcendentais ¢ do materialismo brutal do século dezoito. Essa mesma escola ja teve nesta cétedra o seu mais espléndido altar; em CarMicNaNt, 0 seu. apos- tolo; na magistrature toscana os seus sacerdotes; e, se bem que parecesse tripartir-se no presente século, permaneceu unificada em seu espirito e tendéncias. Se em nossos dias ouvimos a Fiorrarn,' ésse belo espirito, advertir a Franca de que os italianos, senda das reformas penais, se tinham avantajado de muito a todas as nagdes da Europa, seja a nossa gléria continuar o caminho corajosamente balizado pelos nossos maiores, 20 invés de, seduzidos por no- vidades estéreis, movermos contra éles uma guerra impotente. —* De Pétat nit pénat en Ttalie, na Revue cviti- que de jurispr 3 , pag. 373. — TRUDTTITTITTEPEEH TATA

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