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A ERA pos DIREITOS “O reconhecimento € a protegao dos direitos do homem esto na base das Constituigées democraticas modernas. A paz, por sua vez, €0 pressuposto necessario para Teconhecimento ¢ a efetiva protegZo dos direitos do homem em cada Estado € no sistema internacional. Ao mesmo tempo, 0 processo de democratizagio do sistema internacional, que € 0 caminho ‘obrigatério para a busca do ideal da “paz perpétua’, no sentido kantiano da expressio, no pode avangar sem uma gradativa ampliacdo do reconhecimento e da protegio dos direitos do homem, acima de cada Estado. Direitos do homem, democracia € paz sio trés momentos necessarios do mesmo movimento hist6rico: sem direitos do homem reconhecidos € protegidos, nao ha democracia; sem democracia, n3o existem as condig6es minimas para a solugio pacifica dos conflitos. Em ‘outras palavras, a democracia € a sociedade dos cidadaos, € 0s stiditos se tornam cidadios quando thes so reconhecidos alguns direitos fundamentais; haverd paz estavel, uma paz que ndo tenha a guerra como alternativa, somente quando existitem cidadaos nao mais apenas deste ou daquele Estado, mas do mundo” ERA DOS DIREITOS True NORBERTO BOBBIO Carlos Nelson Coutinho Ae aS ~ E RA [EDITORA AFILIADA Preencha a ficha de cadastro no final deste livro @ receba gratuitamente informagées sobre os langamentos e promogées. 13" Tiragem da Editora Campus. Consulte também nosso catélogo ‘completo e uitimos langamentos em wwww.campus.com, br Do ctgnat Ceara “Facute aulorends do ms tata a og putes Gulia haus Eta Cony Sooty Gul Enaus eae (©1082, toa Campus Li, “Todos datos eserves «pede pola Ll sss 11378, ‘Nanna part esa oo, enews prov po ees ca wales. pods. {errprsiat au tram am cite oe mene onpregnce ‘Seon. macteioy, etooon orto ou tune ees apa Gre scan Copisoaue Fekete Conee de taco Estoapdo Ebdnca Fores Devito Grbice Emil Ase Aros Liarolenoee Berascaty rj Goo Eos Canpes ce ‘Aaiatdade ao rtormeat, fan Soo se Setobra 111 — "6% andar Dotepate Re dodanie Al Bras ‘alannah 305 e340 FAX (OTST 1081 \sanas-70017108 (Edit ania ISN 88-08-2774X- by ule Brava tor Sp, Torna a) Feta Cuogition OP gras Cataoguet-n-e ‘Sines Nba dos Ede ves, Botta, Noon, 1089- Bere Ania dor seieeNesete Sesh; uadto do Caos Neen conta Re aera amp 0, “Treupe aoa go Die (eeNes Toon |. Dimtornumanae —Diosusoe, contra Th vores coo aa Soy 27100) ot «2 03 OF “8 SUMARIO Introdugio . Primeira parte Sobre os fundamentos dos direitos do homem ... . Presence e futuro dos direitos do homem A eta dos direitos Bo Diteitos do homem ¢ sociedade | Segunda parte ‘A Revolugdo Francesa ¢ os direitos do homem ... ‘A heranca da Grande Revolugio . . Kant ¢ a Revolucdo Francesa .....-. 62. Tetceira parte A esisténcia & opressio, hoje. Contra a pena de morte : O debate acual sobre a pena de morte . As raz6es da tolerincia 243 15 25 49 o7 85 431 - 143 161 179 «203 INTRODUCAO Jor suggestdo e com a ajuda de Luigi Bonanate e Michelangelo Bovero, recolho neste volume os artigos principais, ou que considero ptincipais, que escrevi ao longo de muitos anos sobre © tema dos direitos do homem. O problema é estreitamente ligado aos da democracia e da paz, aos quais dediquei a maior parte de meus escritos polfticos. O reconhecimento e a protecao dos direitos do homem esto na base das Constituicées demo- criticas modernas. A paz, por suia vez, é 0 pressuposto neces- sitio para o reconhecimento ¢ a efetiva protesio dos direitos do homem em cada Estado ¢ no sistema internacional. Ao mesmo tempo, 0 processo de democratizagio do sistema in- ternacional, que € 0 caminho obrigat6rio para a busca do ideal da “paz perpétua”, no sentido kantiano da expresséo, nao pode avangar sem uma gradativa ampliagio do reconhecimento e da protecdo dos direitos do homem, acima de cada Estado. Di- reitos do homem, democtacia ¢ paz sfio trés momentos neces- sitios do mesmo movimento histérico: sem direitos do homem reconhecidos e protegidos, nio hé democracia; sem democracia, nngo existem as condicoes minimas para a solugdo pacifica dos conflitos. Em outras palavras, a democracia é a sociedade dos Cidadaos, e os stiditos se tornam cidadaos quando lhes so re~ conhecidos alguns direitos fundamentais; haver paz estével, uma paz que no tenha a guerra como alternativa, somente quando existirem cidadaos nao mais apenas deste ou daquele Estado, mas do mundo. ‘Meu primeiro escrito sobre 0 assunto remonta a 1951: nasceu de uma aula sobre a Declaragao Universal dos Direitos do Homem, ministrada em 4 de maio, em Turim, a convite da Scuola di applicazione d'arma.' Relendo-a agora, apés tantos anos, percebo que nela esto contidas, ainda que somente men- cionadas, algumas teses das quais no mais me afastei: 1. os direitos naturais sio direitos hist6ricos; 2. nuscerm no infcio da era moderna, juntamente com 2 concepgio individualista da sociedade; 3. tomnam-se um dos principais indicadores do progresso histérico. O primeiro ensaio da coletinea é uma das duas comuni- cag6es de abertura (a outra fora confiada a Perelman) do Sim- pOsio sobre os Fundamentos dos Direitos do Homem, que teve lugar em L'Aquila, em secembro de 1964, promovido pelo Instituto Internacional de Filosofia, sob a presidéncia de Guido Calogero; confirmo ¢ aprofundo nele a tese da historicidade, com base na qual contesto nao apenas a legitimidade, mas twnbéus a eficdcia pritica da busca do fandamento absolute. Segue-se, com o titulo “Presente e fururo nos direitos do ho- mem”, a conferéncia que pronunciei em Turim, em dezembro de 1967, por ocasiiio do Simpésio Nacional sobre os Direitos do Homem, promovido pela Sociedade Italiana para a Orga- nizagio Internacional, por ocasiéo do vigésimo aniversdrio da Declaracio Universal; nela esboco, em suas grandes linhas, as varias fases da hist6ria dos direitos do homem, desde sua pro- clamagio até sua transformacao em direito positivo, desde’sua transformagio em direito positivo no interior de cada Estado até a que tem lugar no sistema internacional, por enquanto apenas no infcio; e, retomando o tema da historicidade desses direitos, retiro uma nova confirmagto dessa sua continua ex- pansio, O terceiro escrito, que da titulo a coletanea em seu conjunto, “A era dos direitos", é — com diferente titulo — 0 discurso que pronunciei na Universidade de Madri, em se- tembro de 1987, a convite do professor Gregorio Peces-Barba “Martinez, diretor do Instituto de Derechos Humanos de Madri. Abordo nele‘o tema, jé aflorado nos escritos anteriores, do 2 significado hist6rico — ou ‘melhor, filos6fico-histésico — da inversfo, caracterfstica da formacio do Estado moderno, ocor- rida na relago entre Estado e cidadiios: passou-se da prioridade dos deveres dos siditos a prioridade dos direitos.do cidadao, emergindo um modo diferente de encarar a relagio politica, no mais predominancemente do Angulo do soberano, e sim daquele do cidaddo, em cotrespondéncia com a afirmagio da teotia individualiste da sociedade em contraposi¢ao a concepgao organicista tradicional. Ponho particulazmente em evidéncia, pela primeira vez, como ocorreu a ampliagéo do ambito dos direitos do homem na passagem do homem abstrato ao homem concreto, através de um proceso de gradativa diferenciacio ou especificagéo dos carecimentos € dos interesses, dos quais se solicita 0 reconhecimento e a protecdo. Uma ulterior (e, por enquanto, conclusiva) reformulagio dos temas da historicidade e da especificagao dos direitos do homem é aptesentada no ensaio “Direitos do homem e sociedade", que escrevi para ser a comunicagio de abertura do Congreso Internacional de So- ciologia do Direito, realizado em Bolonha no final de maio de TORR; esce rexta cansritui o Gltima capitulo da primeita parte desta coleténea, dedicada & discussio de problemas gerais de tcoria ¢ de histéria dos direitos do homem. Hé algumas paginas dessa parte dedicadas ao debate — te6rico por exce- Iéncia, tortuostssimo — acerca do conceito de direito aplicado aos direitos do homem, Voltarei daqui a pouco a esse tema. Na segunda parte, recolhi crés discursos sobre os diteitos do homem e a Revolugio Francesa: o primeito foi pronunciado em 14 de dezembro de 1988, em Roma, por ocasiéo da inau- guragio da nova Biblioteca da Camara de Deputados, a convite do seu presidente, a depurada Nilde Joti; 0 segundo, em se- tembro de 1989, na Fundacdo Giorgio Cini de Veneza, inau- gurando um curso sobre a Revolucdo Francesa; o terceizo, como abertura da ceriménia em que me foi conferida a aurea ad onorem na Universidade de Bolonha, em 6 de abril de 1989. Esse ltimo discurso, partindo das obras de filosofia do direito e da hist6ria de Kant, termina dando énfase particular a teoria kantiana do direito cosmopolita, que pode ser considerada como a conclusio da argumentagio até aqui desenvolvida sobre 3 © tema dos direitos do homem e, a0 mesmo tempo, como o ponto de partida para novas reflexées.? ‘A terceira parte compreende estudos sobre temas patti- culares, que se relacionam mais ou menos diretamente com 0 tema ptincipal: “A resisténcia A opressio, hoje” foi lido como comunicagio a0 semindrio de estudos sobre “Autonomia e Di- reito de Resisténcia", realizado em Sassari, em maio de 1971, promovido pelo professor Pierangelo Catalano; os dois escritos sobre a pena de morte foram compostos, 0 primeiro para a 1V ‘Assembléia Nacional de Amnesty International, realizado em Ri- mini, em abril de 1981, 0 segundo para o semindrio interna- cional “A pena de morte no mundo”, ocorrido-em Bolonha, em outubro de 1982; finalmente, o ensaio sobre a tolerincia foi lido no simpésio “A intolerincia: iguais ¢ diversos na his- t6ria", realizado em Bolonha, em dezembro de 1985.* Nesses esctitos, so discutidos problemas tanto histéricos como teéricos. No plano histérico, sustento que a afirmagio dos direitos do homem deriva de uma radical inversio de perspectiva, caractesistica da formagio do Estado moderno, na representasio da relagio politica, ou seja, na relagio Escado/ci- dadio ou soberano/stiditos: relagio que é encarada, cada vez mais, do ponto de vista dos direitos dos cidadaos nfo mais stiditos, e nfo do ponto de vista dos direitos do soberano, em correspondéncia com a visio individualista da sociedade,' se- gundo a qual, para compreender a sociedade, € preciso partit de baixo, ou seja, dos individuos que a compoem, em oposico A concepgio organica tradicional, segundo a qual a sociedade como um todo vem antes dos individuos. A inversio de pers- pectiva, que a partir de entio se torna irreversivel, é provocada, no infcio da era moderna, principalmente pelas guerras de re~ ligiao, através das quais se vai afirmando 0 direito de resistencia a opressio, o qual pressupée um direico ainda mais substancial @ originstio, o direito do individuo a nao ser oprimido, ou seja, a gozar de algumas liberdades fundamentais: fandamentais por- ‘que naturais, e naturais porque cabem ao homem enquanto al e no dependem do beneplacito do soberano (entre as quais, em primeiro lugar, a liberdade religiosa). Essa inversio € estrei- tamente ligada & aficmagio do que chamei de modelo jusnatu- 4 ralista, contraposto ao seu eterno adversério, que sempre renasce ¢ jamais foi definicivamente derrotado, 0 modelo aristotélico.? © caminho continuo, ainda que varias vezes interrompido, da concepgio individualista da sociedade procede lentamence, indo do reconhecimento dos diteitos do cidadao de cada Estado até © reconhecimento dos direitos do cidadao do mundo, cujo pri- meito antincio foi a Declaragéio universal das direitos do homer, a partir do direito interno de cada Bstado. através do direito entre os outros Estados, até 0 direito cosmopolita, para usat uma ‘expresso kantiana, que ainda nao teve 0 acolhimento que me- rece na teoria do direito, “A Declaragio favoreceu — assim escreve um autorizado internacionalista num recente escrito so- bre os direicos do homem — a emergéncia, embora débil, ténue € obstaculizada, do individuo, no interior de um espaco ances reservado exclusivamente aos Estados sobecanos, Ela pos em movimento um processo irreversivel, com o qual todos deveriam se alegrar.”6 Do ponto de vista teérico, sempre defendi — ¢ continuo a defender, fortalecido pot novos argumentos — que os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, sio direitos hist6ricos, ou seja, nascidos em certas circunstancias, caracte- rizadas por Iutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, no todos de uma vez nem de uma vez por todas.’ O problema — sobre 0 qual, 40 que parece, os fil6sofos sio convocados a dar seu parecer — do fandamento, até mesmo do fundamento absoluto, irre- sistivel, inquestiondvel, dos direitos do homem é um problema mal formulados* a liberdade religiosa € um efeito das guerras de religiao; as liberdades civis, da Iuta dos parlamentos contra 08 soberanos absolutos; a liberdade politica e as liberdades so- iais, dev nascimento, crescimento ¢ amadurccimento do mo- vimento dos trabalhadores assalariados, dos camponeses com pouca ou nenhuma terra, dos pobres que exigem dos poderes pablicos no s6 0 reconhecimento da liberdade pessoal e das liberdades negativas, mas também a protecdo do trabalho con- tra 0 desemprego, os primeiros rudimentos de instrugio contra © analfabetismo, depois a assisténcia para a invalidez e a velhice, todas elas carecimentos que os ricos proprietérios podiam sa- 3 tisfazer por si mesmos. Ao lado dos direitos sociais, que foram chamados de direitos de segunda geracio, emergiram hoje os chamados direitos de terceira geracdo, que constituem uma categoria, para dizer a verdade, ainda excessivamente herero- génea € vaga, 0 que nos impede de compreender do que efe- tivamente se trata.’ O mais importante deles é 0 reivindicado pelos movimentos ecolégicos: o direito de viver num ambiente nia polufdo. Mas jé se apresentam novas exigéncias que s6 poderiam chamar-se de direitos de quarta geracio, references aos efeitos cada vez mais trauméticos da pesquisa biolégica, que permitiré manipulagées do patrimdnio genético de cada individuo.'® Quais sio os limites dessa possfvel (¢ cada vex mais certa no futuro) manipulagéo? Mais uma prova, se isso ainda fosse necessétio, de que os direitos nfo nascem todos de uma vez. Nascem quando devem ou podem nascer. Nascem quando 0 aumento do poder do homem sobre o homem — que acompanha inevitavelmente 0 progresso técnico, isto €, 0 progresso da capacidade do homem de dominar a natureza e ‘0s outros homens — ou cria novas ameagas a liberdade do individuo, ou permite novos remédios para as suas indigéncias: ameagas que sio enfrentadas através de demandas de limnicagoes do poder; remédios que sao providenciados através da exigéncia de que o mesmo poder intervenha de modo protetor. As pri- ‘meiras, correspondem 05 direitos de liberdade, ou um néo-agic do Estado; aos segundos, os direitos sociais, ou uma ago po- sitiva do Estado. Embora as exigéncias de direitos possam estar dispostas cronologicamente em diversas fases ou geragies, suas espécies so sempre — com relagdo aos poderes consticufdos — apenas duas: ou impedir os maleficios de tais poderes ou obter seus beneffcios. Nos direitos de terceira e de quarta ge- Aireiros ranto de uma quanto de outra ragio, podem exis espécie, Em um dos ensaios, “Direitos do homem e sociedade”, destaco particularmente a proliferagdo, obstaculizada por al- guns, das exigéncias de novos reconhecimentos ¢ de novas pro- tecdes na passagem da consideragio do homem ‘abstrato para aquela do homem em suas diversas fases de vida e em seus diversos estdgios. Os direicos de terceira getas#o, como o de 6 viver num ambience nao poluido, nfo poderiam ter sido sequet imaginados quando foram propostos os de segunda geracio, do mesmo modo como estes tltimos (por exemplo, © direito A instrugdo ou & assisténcia) nao exam sequer concebiveis quan- do foram promulgadas as primeiras Declaragées setecentistas, Essas exigéncias nascem somente quando nascem deverminados carecimentos. Novos carecimentos nascem em fangao da mu- danga das condigdes sociais e quando 0 desenvolvimento técnico permite satisfazé-los. Falar de direitos naturais ou fundamen- tais, inalienéveis ou invioléveis, € usar f6rmulas de uma lin- guagem persuasiva, que podem ter uma fungio prética num documento politico, a de dar maior forga a exigencia, mas ndo tém nenhum valor tedrico, sendo portanto completamente it~ relevantes numa discussio de teoria do direito. No que se refere ao significado da palavra “dircito” na expressiio “direitos do homem”, o debate € permanente e con- faso.' Contribuiu, para aumentar a confusio, 0 encontro cada vex mais frequente entre juristas de tradigio e culeura conti- nental e juristas de tradigio anglo-saxénica, que usam freqiien- temente palavras diversas para dizer a mesma coisa e, por vezes, acreditam dizer coisas diversas usando as mesmas palavras. A distingao classica na linguagem dos juristas da Europa conti- nental € entre “direitos naturais” ¢ “direitos positives”. Da Inglaretta e dos Estados Unidos — por influéncia, creio, so- bretudo de Dworkin —, chega-nos a distingio entre moral rights e legal rights, que € incraduzivel e, 0 que € pior, uma tradi¢io onde direito € moral sdo duas esferas bem diferenciadas da vida pratica, incompreensfvel: em italiano, a expresso “di- reicos legais” ou “jurfdicos” soa redundante, enquanto a ex- pressio “direicos morais” soa contraditéria. Nao tenho diividas de que um jurista francés teria a mesma relucancia em falar de droits moraux e um alemio, de moralische Rechte. E entio? Devemos renunciar a nos entender? O dinico modo para nos entender € reconhecer a comparabilidade entre as duas distin- ‘ges, em fungio da qual “direitos morais” enquanto algo con- traposto a “direitos legais” ocupa 0 mesmo espago ocupado por “direitos naturais” enquanto algo contraposto a “dircicos positivos”. Trata-se, em ambos os casos, de uma coneraposicio 7 entre dois diversos sistemas normativos, onde o que muda é © critério de distincéo, Na distingio entre moral rights e legal rights, 0 ctitério € 0 fundamento; ‘na distingao entre “direitos naturais” € “direitos positivos”, € a origem. Mas, em codos os quatro casos, a palavra “direito”, no sentido de direito subjetivo (uma preciso supérflua em inglés, porque right cem somente © sentido de direito subjetivo) faz referéncia a um sistema normativo, seja ele chamado de moral ou natural, juridico ou positivo. Assim como nfo 6 concebfvel um direito natural tora do sistema das leis naturais, também nao h4 outro modo de conceber 0 significado de moral rights a nao ser referindo-os a um conjunto ou sistema de leis que costumam ser chamadas de morais, ainda que nunca fique claro qual é o seu estatuto (do mesmo modo como, de resto, nunca ficou claro qual € 0 estatuto das leis naturais). Eston de acordo com os que consideram o “direito” como uma figura deéntica, que tem um sentido preciso somente na linguagem normativa. Nao hé direito sem obrigagao; e ndo ha nem direito nem obrigagdo sem uma norma de conduca. A no usual expressio “direitos morais” torna se menos estranha quando é relacionada com a usadissima expresséo “obrigacBes morais”. A velha objecio segundo a qual ndo podem ocorrer direitos sem as obrigagbes correspondentes, mas podem ocorrer obrigagées sem direitos, deriva da confusio entre dois sistemas normativos diversos. Decerto, nfo se pode pretender que a uma obrigacio moral corresponda um direito legal, jé que a uma obrigacdo moral pode corresponder apenas um. direito moral. O costumeiro exemplo de que a obrigagio moral de dar esmolas nao faz nascer 0 direito de pedi-las € impréprio, porque esse exemplo mostra apenas que de uma obrigagdo mo- ral ndo nasce uma obrigagio juridica. Mas pode-se dizer 0 mesmo do direito moral? Que sentido pode ter a expresso “direito moral” se nfo a de direito que corresponde a uma obrigacio moral? O que, para os juriscas & um ins imperfectum pode ser um ixs perfectum do ponto de vista moral. Sei muito bem que uma tradicio milenar nos habicuou a um uso restrito do termo ius, limitado a um sistema normativo que tem forca de obrigatoriedade maior do que todos os demais sistemas, 8 morais ou sociais; mas, quando se introduz a nogio de “direito moral”, introduz-se também, necessariamente, a cortesponden- te “obrigacio moral". ‘Ter direito moral em face de alguém significa que ha um outro individuo que tem obtigagao moral pata comigo. Nao se quer dizer, com isso, que a linguagem moral deva se servir das duas figuras de6nticas do direito & da obrigagio, que so mais adequadas & linguagem jurfdica; mas, no momento mesmo em que nos servimos delas, a afir- magi de um direito implica a afirmagio de um dever ¢ vice versa, Se a afirmagdo do direito precede temporalmente a do dever ou se ocorre 0 contrério, cis um puro evento histérico, ou seja, uma questdo de faco: para dar um exemplo, um tema bastante discutido hoje € 0 de nossas obrigagdes, de nés con- tempordneos, em face das futuras geragdes. Mas o mesmo tema pode ser considerado do ponto de vista dos direitos das futuras geragdes em relacio a nds. F absolutamente indiferente, com relagdo & substéncia do problema, que comecemos pelas obri- gacdes de uns ou pelos direitos dos outros. Os pésteros tém direitos em relagio a nés porque temos obrigagées em relacao a eles ou vice-versa? Basta colocar a questo nesses termos para compreendermos que a l6gica da linguagem mostra a absoluca inconsisténcia do problema, Apesar das intimeras tentativas de andlise definitéri: linguagem dos direitos permanece bastante ambfgua, pouco rigorosa e freqiientemence usada de modo retérico. Nada im- pede que se use © mesmo termo pata indicar direitos apenas proclamados numa declaragio, até mesmo solene, e direitos efetivamente protegidos num ordenamento juridico inspirado nos principios do constitucionalismo, onde baja juizes impar- ciais e varias formas de poder executivo das decisdes dos jufzes. ‘Mas entre uns e outros hé uma bela diferenga! Ja a maior parte dos dizcitos sociais, os chamados diseitus de segunda geracao, que so exibidos brilhantemente em todas as declaracées na- cionais € internacionais, permaneceu no papel. O que dizer dos dizeitos de terceira e-de quarta geracio? A nica coisa que até agora se pode dizer € que sio expressio de aspicagées ideais, as quais 0 nome de “direitos” serve unicamente para atribuir um titulo de nobreza. Proclamar o direito dos individuos, nio 9 importa em que parte do mundo se encontrem (0s direitos do homem sio por si mesmos universais), de viver num mundo no poluido nio significa mais do que expressar a aspiragao a obter uma fucura legislagdo que imponha limites ao uso de substincias poluentes. Mas uma coisa ¢ proclamar esse dizeito, outra é desfruté-lo efetivamente. A linguagem dos direitos tem indubitavelmente uma grande fungio pratica, que € emprestar uma forca particular as seivindicagoes dos movimentos que demandam para si € para os outros @ sauisfaygu de uuyur ca~ recimentos materiais e morais; mas ela se torna enganadora se ‘obscurecer ou ocultar a diferenca entre 0 direito teivindicado € 0 direito reconhecido € protegido. Nao se poderia explicar a contradigao entre a literatura que faz a apologia da era dos direitos"? e aquela que denuncia a massa dos “sem-direitos”.? ‘Mas os direitos de que fala a primeira so somente 0s pro- clamados nas instituicdes internacionais € nos congressos, en quanto os direitos de que fala a segunda sto aqueles que a esmagadora maioria da humanidade nfo possui de fato (ainda que sejam solene e repetidamente proclamados).'* Norberto Bobbio Tarim, outubro de 1990 Noras 1. “La dichiarazione universale dei diritti dell'omo”, in Varios au- ores, La Dichiarazione universale dei diritti delluomo, Tatim, Atti Grafiche Plinio Castello, 1951, pp. 53-70. J4 me havia ocupado do problema, embora marginalmence, no “Prefécio” & eradugio ica- liana de Georges Gucvitch, La Dicbiarazione dei diritti socal, Milo, Edizioni di Comunita, 1949, pp. 13-27 2. Cf, também minha “Introdugéo” a E. Kant, Per la pace perpetua, ed. de N. Merker, Roma, Editori Riuniti, 1985, pp. VU-XX1 3, Outros escritos meus sobre os direitos do homem estio inseridos 10 livro I! Terzo asiente. Saggi e discorsi sulla guerra e ba pare, ed. de Pietro Polito, Milio, Edizioni Sonda, 1989. Nao estao incluidos, nem nesse volume nem na presente coletinea, os seguintes textos: “IL preambolo della Convezione europes dei diricei dell'uomo” in Rivista di dirisrointernazionalle, INU (1973), pp. 437-455; “Vi sono 10 diritei fondamencali?”, in Rivisia di filomfia, LXXI (1980), n° 18, pp. 460-464; “Diritti dell'uomo e dieitti del citeadino nel secolo XIX in Europa’, in Vivios aucores, Grundrechte im 19. Jabrbundert, Frankfart-do-Meno, Peter Lang, 1982, pp. 11-15; “Dalla prioriea dei doveri alla prioriea dei dirieei", in Mondoperaio, XLI (1988), n° 3, pp. 97-60. Sobre esse tema, hé uma imensa literatura, Mas gostaria de citar aqui, pois € menos conhecido, 0 livro de Celso Lafer, A reconstragao dos direitos hurmanas, Um didlogo com 0 pensamento de Hannab Arendt, Sao Paulo. Companhia das Letras. 19R8, qe cantém algnmas ginas notveis sobre o individualismo ¢ sua hise6ria, também com referéncia ao pensamento de H. Arendt. Refiro-me, em particular, a0 meu ensaio sobre “O modelo jusnacu- ralista”, in N. Bobbio-M. Bovero, Sociesa e stato nella filesafta politica moderna, Milio, Il Seggiatore, 1979, pp. 17-109 fed. brisileira Sociedade e Estado na flosfia pobtica moderna, S40 Paulo, Brasiliense, 1986, pp. 13-100}. ‘A. Cassese, T diritti unani nel mondo consemporaneo, Bici, Lacerza, 1988, p. 143, . Que 0s direitos do homem sejam direitos hiseéricos, surgidos na dade moderna a partir das lntas conera o Estado absolueo, € uma das teses centrais do ensaio — historicamente bem documentado — de G. Peces-Barba Martinez, "Sobre el puesto de la Historia fen el concepto de los derechos fundamentales", in Anuario de derechos Jumanes, publicado pelo Inscieuto de Derechos Humanos da Uni- versidacle Complutense de Madri, vol. IV, 1986-1987, pp. 219-258, Para a histéria dos diseitos do homem do ponto de vista de seu reconhecimento — que 6, de resto, o tinico ponto de vista pert rnente —, remeto ao ensaio de G. Pugliese, “Appunti per una storia della protezione dei diritei dell'uomo", in Rin trim, din ¢ pro. cin", XLII (1989), n° 3, pp. 619-659. Sobre 0 tema, também com freqitentes referéncias & minha posigio, cf. 0 recente volume que recolhe 0 debate ocorrido em Madri, em 19 ¢ 20 de abril de 1988, publicado com o efeulo E/ fundamento de Ios derecbos bumanas, ec. de G. Peces-Batba Martinez, Madi, Editorial Debate, 1989. Do mesmo autor, nesse volume, cf. “Sobre €l fundamento de los derechos hamanos. Un problema de moral y derecho”, pp. 265-277, que contém a expresso mais recente clas feflexbes que 0 autor vem desenvolvendo hi anos sabre o problema fos direitos do homem, a comegar pelo livro Derechos fundamentales, 1976, vatias vezes reeditado. . A figura dos direitos de cerceira geracio foi incroduzida na literatura cada vez mais ampla sobre os “novos direitos”. No actigo "Sobre la eyolucién contemporinea de la tcoria de los derechos del hom- 1 10. au bre”, Jean Rivera inclui entre esses direitos os diceitos de solidae riedade, o direito ao desenvolvimento, & pax internacional, a um ambiente protegido, & comunicagéo. Depois dessa enumeracio, & natural que 0 autor pergunte se € ainda possivel falar de diceitos em sentido prdprio ou se nao se erata de simples aspiracbes € desejos Corrientes y problemas en filosofia del derecho”, in Anales de la cdtadra Francisco Sudrer, 1985, 0° 25, p. 193). No livro jd citado, Celso Lalee fila dos direicos de cerceira geragio como se tratando sobretudo de direitos cujo sujeito nfo sio os individuos mas os ‘grupos humanos, como a familia, 0 povo, @ nacio € a propria hu- manidade (p. 131). Sobre 0 dircico 2 paz, cf. as reflexdes de A. Ruiz Miguel, “Tenemos derecho a la paz?", in Anuario de derechos ‘umanos, publicado pelo Insticuco de Derechos Humanos de Madri, ed, de G, Peces-Barba Martinez, n” 3, 1984-1985, pp. 387-434, © autor voltou depois ao tema no livro La justicia de la guerra y de lea paz, Madti, Cenero de Estudios Constitucionales, 1988, pp. 271 e ss. Ainda sobre os direitos de terceira geragio, cf. A. E, Pérez, "Concepto y concepeién de los derechos hurmanos”, in Cua- dernos de filosofa del dereho, 1987, 0° 4, pp. 56 ¢ 5,5 0 autor inclui entre esses diceitos 0 diceito & paz, os do consumidor, & qualidade de vida, & liberdade de informasao, ligando o surgimento dos mes- mos ao desenvolvimento de novas cecnologias Sobre esse cema, jf existe uma literacura significativa, particular- mente anglo-saxbnica, da qual dé noticia Bartha Maria Knoppers, “Liineegriea del parcimonio generico: diritto soggettivo 0 diriero dell'umanita?”, in Politica del divittc, XXXI, n° 2, junho de 1990, pp. 341-361. Para essa parte, extraf muitas idéias do debate sobre “El concepto de derechos humanos", in Cuadernos de filosfia del derecho, n° 4, 1987, pp. 23-84, com vérias intervengées que tomam como base a comunicagio de Francisco la Porta, e também com as conclustes, de Eugenio Bulygin, "Sobre el status ontol6gico de los derechos humanos”, pp. 79-84, com as quais estou substancialmente de acor- do. No debate, foi amplamente discutido se 0 conceito de direito deve set entendido como conceito normative ou no, bem como se é aceicivel 2 expressio “direitos morais” ¢, evencualmente, que senticio se Ihe possa dar. Para a critica do conceito de “direito moral” e outras consideragdes com as quais concordo, cf. R. Ver- rnengo, “Dos ensayos sobre problemas de fundamentacién de los, derechos humanos”, in Cuadernas de Investigaciones del Instituto de Investigaciones Juridicas y Sociales Ambrogio L. Gioia, Facultad de De- echo y Ciencias Sociales, Buenos Aires, 1986, parcicularmente 0 primeiro ensaio, “Fundamentaciones morales de los derechos hu- manos”, pp. 4-29. Anteriormence, j@ havia eratado do assunto G. Peces-Barba Martinez no ensaio, jf citado, “Sobre el puesto de la Historia en ef concepto dle los derechos fundamentales”, p, 222. ‘Também na Itdlia, travou-se recentemente um debate sobre esses temas: refiro-me, em pacticular, a E Fagiani, “Etica e ceoria dei ditieti", e a L. Gianformaggio, “Rapporto fia etica ¢ diitvo", in Vicios autores, Teorie etche contemporanee, Tatim, Bollaci-Botinghieri, 1990, pp. 86-107 e 149-161. Um eratamento mais geral esta no livro de B, Viola, Diritsi delluoma diritto naturale etica conteporanea, ‘Tarim, Giappichelli, 1989. 12. Sobre @ importincia do reconhecimento dos direitos humanos na acual fase da humanidade, incerveio com compet@acia, num de seus Sileimos escritos, Norbert Blias, “Pianeea dei dirieei", in Rinascita, 1, 1° 17, junho de 1990. 13. Na mesma revista, L. Bertozzi, “Uomioni senza diieei", in Rinas- «ita, 1, 9° 27, agosto de 1990, pp. 72-74, que relara as dentincias de violagdes dos direitos humanos no mundo feieas por Amnesty International ern seu tiltimo relae6rio anual, Para uma documentagio italiana, cf. G. Ricordy, Serzadiritt. Storie dell'alira Italia, Mildo, Feltrinelli, 1990. Dos escritos publicados neste volume, “Sobre o fundamento dos dixeitos do homem', apresentado como comunicaglo no simpésio rea lizado em L'Aquila entre 14 ¢ 19 de setembro de 1964, foi publicado com o titulo “Lillusion du fondement absolu” no volume Le fondonens des droits de Vhomme, era tradugio italiana, in Rivista internazionale di filerofia del dirist, XIN (1965), pp. 302-309, e no volume I! problema della guerra ¢ le vie della pace, Bolonha, 11 Mulino, 1979, pp. 119-130. “Presente ¢ futuco dos direitos do homem’ foi publicado em Lat conunita internazionale, XXT (1968), pp. 3-18; depois, no volume I problema della guerra ¢ ls vie dlla pace, cit, pp. 131-157, traduzido em castelhano com 0 titulo "Peesente y parvenie rie los derachos bumanoe”, in Avaric de derechos bumanat, Instituto de Derechos Humanos, Universidade Com- plucense de Madi, 1982, pp. 7-28. “A eta dos direitos”, discurso pro- aunciado em Madri no més de setembro de 1987, foi publicado em N. Bobbio, If Terzo assent: Sagei e dicorsi sulla pace e sulla guerra, Tutimn, Sonda, 1989, pp. 112-125, € com 0 titulo “Derechos del hombre y Filosofia de la historia”, in Anwario de derechos humana, cit., 0° 5, 1988- 1989, pp. 27-39. "Diteitos do homem e sociedade” apareceu em Secio- logia del diritto, XXNI (1989), pp. 15-27. A Revolugio Francesa ¢ 08 13 dircieos de homem"” foi publicado, como opiisculo independente, pela Camara dos Deputados, Roma, 1988, e depois, com 0 titulo “La di- chiarazione dei diritti dell’uomo”, in Nuova Aniologia, n° 2.169, janei- ro-margo de 1989, pp. 290-309. “A heranga da Grande Revolusao” foi também publicado em Nuova Antologia, n° 2.172, oucubro-dezembro de 1989, pp. 87-100. A mesma revista publicou também “Kant e a Revolugio Francesa”, n° 2.175, julho-setembro de 1990, pp. 53-60. "A tesisténcia & opressao, hoje” foi extraido de Studi sassaresi. IIT, Autonomia < diritto di resisterza, Milao, Giufra, 1973, pp. 15-31. “Contra a pena de morte” foi publicado. sob 0 patrocinio de Amnesty International. seco italiana, Bolonha, Tipostampa bolognese, 1981, como opdsculo inde- pendente, enquanto “O debate atual sobre a pena de morte” foi incluido no volume La pena di morte nel mondo, que cecolhe as acas do Seminécio Internacional de Bolosha, 28-30 de outubro de 1983, Casale Monfer~ rato, Mariecti, 1983, pp. 15-32. “As razdes da tolerincia” apareceu no volume L'intolleranza: uguali ¢ diversi nella storia, org. pot C. Boni, que recolhe as atas do Simpésio Internacional de Bolonha, 12-14 de de- zembro de 1986, Bolonba, Il Mulino, 1986, pp. 243-257 14 PRIMEIRA PARTE SOBRE OS FUNDAMENTOS DOS DIREITOS DO HOMEM 1. Neste ensaio, proponho-me a discutir crés temas: a) qual é 0 sentido do problema que nos pusemos acerca do fundamento absoluto dos direitos do homem; b) se um fundamento absoluto € possivel; ©) se, caso seja possivel, € também desejével. 2. O problema do fundamento de um direito apresenta-se diferentemente conforme se trate de buscar 0 fundamento de uum direito que se tem ow de um direito que se gostaria de ter. No primeiro caso, investigo no ordenamento juridico positivo, do qual fago parte como titular de direitos e de deveres, se ha uma norma vilida que o reconheca e qual é essa norma; no segundo caso, tentarei buscar boas raz6es para defender a le- gitimidade do direito em questio e para convencer 0 maior nntimero possivel de pessoas (sobretudo as que decém o poder direto ou indireto de produzir normas validas naquele orde- namento) a reconhecé-lo. Nao ha diivida de que, quando, num seminério de fil6- sofos € nifo de juristas (como é 0 nosso), colocamos o problema do fundamento dos direitos do homem, pretendemos enfrentar um problema do segundo tipo, ow seja, ndo um problema de direito positive, mas de direito racional ou critico (ou, se se guiser, de direito natural, no sentido restrito, que é para mim © tinico aceitével, da palavra). Partimos do pressuposto de que 15 05 direitos humanos sio coisas desejaveis, isto é, fins qué me- recem ser perseguidos, e de que, apesar de sua desejabilidade, no foram ainda todos eles (por toda a parte e em igual medida) reconhecidos; € estamos convencidos de que Ihes encontrar um fandamento, ov seja, aduzir motives para justificar a escolha que fizemos e que gostarfamos fosse feita também pelos outros, € um meio adequado para obter para eles um mais amplo reconhecimento. 3. Da finalidade visada pela busca do fandamento, nasce 2 ilusio do fundamento absoluto, ou seja, a ilusio de que — de tanto acumular ¢ claborar razbes ¢ argumentos — termi- naremos por encontrar a razio e o argumento irresistivel, 20 qual ninguém podera tecusar a prépria adesio. O fandamento absoluto é 0 fundamento irresistivel no mundo de nossas idéias, do mesmo modo como o poder absoluco € o poder irresistivel (que se pense em Hobbes) no mundo de nossas ages. Diante do fundamento irresistivel, a mente se dobra necessariamente, tal como o faz a vontade diante do poder irresistivel. O funda- iueuty Gltime ny pode mais ser quescionade, assiaa como o poder tiltimo deve ser obedecido sem questionamentos. Quem resiste ao primeiro se poe fora da comunidade das pessoas ra- cionais, assim como quem se rebela contra o segundo se pée fora da comunidade das pessoas justas ou boas. Essa ilusio foi comum durante séculos aos jusnaturalistas, que supunham ter colocado certos direitos (mas nem sempre 05 mesmios) acima da possibilidade de qualquer refutagio, de- tivando-os diretamente da nacureza do homem. Mas a natureza do homem revelou-se muito frdgil como fandamento absoluro de direitos irtesistiveis. Nao é 0 caso de repetir as infinitas criticas ditigidas A dontrina dos direitos naturais, nem de- monstrar mais uma vez 0 carater capcioso dos argumentos em- pregados para provar o seu valor absoluto. Bastar recordar que muitos direitos, acé mesmo os mais diversos entre si, até mesmo os menos fundamentais — fundamentais somence na opiniao de quem os defendia —, foram subordinados a generosa © complacente natureza do homem, Para dar um exemplo: ardeu por muito tempo entre os jusnaturalistas a disputa acerca 16 de qual das trés solugdes possiveis quanto a sucesso dos bens (© retorno & comunidade, a transmissio familiar de pai para filho ou a livre disposi¢ao pelo proprietério) era a mais natural ¢, portanto, devia ser preferida num sistema que aceitava como justo tudo o que se fundava na natureza, Podiam disputar por muito rempo: com efeito, todas as trés solugbes so perfeita- mente compativeis com a natureza do homem, conforme se considere este diltimo como membro de uma comunidade (da quai, em ultima instancia, sua vida depende), como pai de familia (voltado por instinto natural paca a continuagio da espécie) ou como pessoa livre e auténoma (énica responsével pelas proprias agdes e pelos préprios bens). Kant havia racionalmente reduzido os direitos irresistiveis (que ele chamava de “inatos") a apenas um: a liberdade. Mas o que € a liberdade? 4, Essa ilusio jd nfo € possivel hoje; toda busca do fun- damento absoluto é, por sua ver, infundada, Contra essa ilusio, evanto quatro dificuldades (e passo assim ao segundo tema). ‘A primeira deriva da consideragio de que “direitos da homem” é uma expresso muito vaga. Jé tentamos alguma vez defini-los? E, se tentamos, qual foi o resultado? A maioria das definigdes sto tautolégicas: “Direitos do homem so os que cabem a0 homem enquanto homem.” Ou nos dizem algo ape- nas sobre 0 estatuto desejado ou proposto para esses direitos, e no sobre o seu contetido: “Direitos do homem sio aqueles que pertencem, ou deveriam pertencer, a todos os homens, ou dos quais nenhum homem pode ser despojado.” Finalmente, quando se acrescenta alguma referéncia ao contetido, no se pode deixar de ineroduzir termos avaliativos: “Direitos do ho- mem sio aqueles cujo reconhecimento € condi¢ao necesséria para o aperfeicoamenco da pessoa humana, ou para o desen- volvimenco da civilizagio, etc., etc.” B aqui nasce uma nova dificuldade: os termos avaliativos so interpretados de modo diverso conforme a ideologia assumida pelo intésprete; com feito, € objeco de muitas polémicas apaixonantes, mas inso- laveis, saber 0 que se entende por aperfeigoamento da pessoa humana ou por desenvolvimento da civilizagao. O acordo é 17 obtido, em geral, quando os polemistas — depois de muitas concessées recfprocas — consentem em aceitar uma f6rmula genérica, que oculta e niio resolve a contradicao: essa formula genérica conserva a definigio no mesmo nivel de generalidade em que aparece nas duas definigdes precedentes. Mas as con- tradig6es que so assim afastadas renascem quando se passa do momento da enunciagio puramente verbal para o da aplicagio. © fandamento de direitos — dos quais se sabe apenas que séo condigdes para a reaijzagao de vaiores ditimos — € © apelo a esses valores tiltimos. Mas os valores tiltimos, por sua vez, no se justificam; o que se faz € assumi-los. O que € tiltimo, precisamente por ser dltimo, nfo tem nenhum fun- damento, De resto, os valores tiltimos sio antinémicos: nao podem ser todos realizados globalmente e ao mesmo tempo. Para realizé-los, sio necessérias concessdes de ambas as partes: nessa obra de conciliagio, que requer rentincias recfprocas, en- tram em jogo as preferncias pessoais, as opgdes politicas, as orientacées ideolégicas. Portanto, permanece o fato'de que nenhum dos trés tipos de definico permite elaborar uma ca~ tegoria de direitos do hamem que tenha contornos nitidos. Pergunta-se, entZo, como 6 possivel pér 0 problema do fun- damento, absoluto ou nfo, de direitos dos quais ¢ impossfvel dar uma nogio precisa. 5. Em segundo lugar, os direitos do homem constituem uma classe varidvel, como a hist6ria destes tiltimos séculos demonstra suficientemente. O elenco dos direitos do homem se modificou, e continua a se modificar, com a mudanga das condigées histéricas, ou seja, dos carecimentos e dos interesses, das classes no poder, dos meios disponiveis para a realizagio dos mesmos, das transformagbes técnicas, etc. Direitos que fo- ram declarados absolutos no final do século XVIII, como a propriedade sacre et inviolable, foram submetidos # radicais li mitagGes nas declaracdes contemporaneas; direitos que as de- claragdes do século XVIII nem sequer mencionavam, como os direitos sociais, so agora proclamados com grande ostentasio nas recentes declaragbes. Nao € dificil prever que, no facuro, poderiio emergir novas pretensdes que no momento nem sequer 18 podemos imaginar, como o direito a nao portar armas contra @ pr6pria vontade, ou o direito de respeitar a vida também dos animais e nao s6 dos homens. O que prova que no existem. direitos fundamentais por natureza. O que parece fundamental numa €poca histérica e numa determinada civilizagio nao & fandamental em outras épocas ¢ em outras culturas. Nio se concebe como seja possivel atribuir um fanda- mento absoluto a direitos historicamente relativos. De resto, uiv hd por que ter medo do reiativismo, A constatada plura- lidade das concepsées religiosas e morais € um fato bist6rico, também ele sujeito a modificagio. O relativismo que deriva dessa pluralidade também relativo. B, além do mais, é pre- cisamente esse relativismo 0 mais forte argumento em favor de alguns direitos do homem, dos mais celebrados, como a liberdade de religiao e, em geral, a liberdade de pensamento. Se nio estivéssemos convencidos da irresistivel pluralidade das concepgGes tiltimas, e se, a0 contrario, estivéssemos convencidos de que assergdes religiosas, éticas e politicas sao demonstrdveis como teoremas (e essa era, mais uma vez, a ilusio dos jusna- turalistas, de um Hobbes, por exemplo, que chamava as leis naturais de “teoremas”), entio os direitos & liberdade religiosa ou a liberdade de pensamento politico perderiam sua razio de ser, 08, pelo menos, adquiririam um outro significado: seria no 0 direito de tex a pr6ptia religiao pessoal ou de expressar © préprio pensamenco politico, mas sim o direito de nao ser dissuadido pela forca de empreender a busca da tinica verdade teligiosa e do nico bem politico. Reflita-se sobre a profunda diferenca que existe entre o direito a liberdade religiosa e 0 direito A liberdade cientifica. O direito a liberdade religiosa consiste no direito a professar qualquer religiao ou a nfo pro- fessar nenhuma, O direito a liberdade cientifica consiste nao no direito a professar qualquer verdade cientifica ou a nio professar nenhuma, mas essencialmente no direito a nao softer empecilhos no processo da investigacio cientifica. 6. Além de mal definivel (item 4) e vacivel (item 5), a classe dos diteitos do homem € também heterogénea. Entre 0 direitos compreendidos na propria Declaragio, ha pretensdes 19 muito diversas entre si e, 0 que é pior, até mesmo incompa- tiveis. Portanto, as raz6es que valem para sustentar umas nfo valem para sustentar outras. Nesse caso, nao se deveria falar de fandamento, mas de fundamentos dos direitos do homem, de diversos fandamentos conforme 0 direito cujas boas razdes se deseja defender. Inicialmente, cabe dizer que, entre os direitos humanos, como jd se observou varias vezes, hd direitos com estatutos muito diversos entre si. Ha aiguns que vaiew eur qualques situagiio e para todos os homens indistintamente: so os di- reitos acerca dos quais ba a exig@ncia de no serem limitados nem diante de casos excepcionais, nem com relagdo a esta ou aquela categoria, mesmo restrita, de membros do género humano (é 0 caso, por exemplo, do direito de nao ser escra~ vizado e de nao sofrer tortura). Esses direitos so privilegiados porque nfo sf postos em concorréncia com outros direitos, ainda que também fandamentais. Porém, até entre os cha- mados direitos fundamentais, os que niio sio suspensos em nenhuma circunsténcia, nem negados para determinada cate- goria de pessoas, «30 bem poucos: em outras palavras, sio bem poucos os direitos considerados fundamentais que nao entram em concorréncia com outros direitos também consi- derados fundamentais, e que, portanto, nfo imponham, em cercas situacées e em relagio a determinadas categorias de su- jeitos, uma opcao. Nao se pode afirmar um novo direito em. favor de uma categoria de pessoas sem suprimir algum velho direito, do qual se beneficiavam outras categorias de pessoas: © reconhecimento do direito de nao set escravizado implica a climinagio do direito de possuir escravos; 0 reconhecimento do direito de nao ser torturado implica a supressiio do direito de torturar. Nesses casos, a escolha parece facil; e é evidente que ficarfamos maravilhados se alguém nos pedisse para jus- tificar tal escolha (consideramos evidente em moral o que nado necessita ser justificado). ‘Mas, na maioria dos casos, a escolha € duvidosa e exige ser motivada. Isso depende do fato de que tanto o direito que se afirma como 0 que € negado tém suas boas razdes: na Iedlia, por exemplo, pede-se a aboligao da censura prévia dos espetd- 20 culos cinematogréficos; a escolha é simples se se puser num prato da balanca a liberdade do artista e no outro 0 direito de alguns 6rgiios administrativos, habitualmente incompeten- tes e medfocres, de sufocé-la; mas parece mais dificil se se contrapuser 0 direito de expresso do produtor do filme ao direito do pablico de nao ser escandalizado, ou chocado, ou excitado. A dificuldade da escolha se resolve com a introdugio dos limites a extensio de um dos dois direitos, de modo que coja em parte salvaguardade também o outse: com sclagtio hos espetdculos, para continuarmos com nosso exemplo, a Consti- tuigdo italiana prevé o limite posto pelo resguardo dos bons costumes. Portanto, sobre esse ponto, parece que temos de concluir que direitos que tém eficdcia tio diversa no podem ter 0 mesmo fundamento e, sobretudo, que os direitos do segundo tipo ~~ fundamentais, sim, mas sujeitos a restrigdes — nao podem ter um fundamento absoluto, que no permitisse dar uma justificagio valida para a sua restrigio. 7. Do caso até agora exposto, no qual se revela um con- traste entre 0 direito fundamental de uma categoria de pessoas € 0 dircito igualmente fundamental de uma outra categoria, € preciso distinguir um caso que p6e ainda mais gravemente em perigo a busca do fundamento absoluto: aquele no qual se revela uma antinomia entre os direitos invocados pelas mes- mas pessoas. Todas as declaracées recentes dos direitos do ho- mem compreendem, além dos direitos individuais tradicionais, que consistem em /iberdades, também os chamados direitos so- ciais, que consistem em paderes. Os primeiros exigem da parte dos outros (inclufdos aqui os érgios piiblicos) obrigagées pu- ramente negativas, que implicam a abscengio de determinados comportamentos; 0s segundos s6 podem ser realizados se for imposto a outros (incluides aqui os érgaos ptiblicos) um certo ntimero de obrigagdes positivas. Sdo antinémicos no sentido de que o desenvolvimento deles ndo pode proceder paralela~ mente: a realizacao integral de uns impede a realizacao integral dos outros. Quanto mais aumentam os poderes dos individuos, tanto mais diminuem as liberdades dos mesmos individuos. 21 ‘Trata-se de duas sicuagbes jusidicas tio diversas que os argu- mentos utilizados para defender a primeira no valem para defender a segunda. Os dois principais argumentos para in- troduzir algumas liberdades entre os direitos fundamentais sfo: a) a irredutibilidade das crencas tiltimas; b) a crenga de que, quanto mais livre for o individuo, tanto mais poderd ele pto- gredir moralmente ¢ promover também 0 progresso material da sociedade. Ora, desses dois argumentos, o primeiro € irre- levanea para jnctificar a eigancia de nawne paderes, enqnanta ‘© segundo se revelou historicamente falso. Pois bem: dois direitos fundamentais, mas antin6micos, ‘no podem ter, um e outro, um fundamento absoluto, ou seja, um fandamento que torne um direito € 0 seu oposto, ambos, inquestionéveis ¢ ircesistiveis. Alids, vale a pena recordar que, historicamente, a ilusio do fundamento absoluto de alguns direitos estabelecidos foi um obstaculo a introdugéo de novos direitos, coral ou parcialmente incompativeis com aqueles. Bas- ta pensar nos empecilhos colocados ao progresso da legislagzo social pela teoria jusnaturalista do fundamento absoluto da propriedade: a oposiga0 quase secular contra a introdugao dos direitos sociais foi feita em nome do fandamento absoluco dos direitos de liberdade. O fundamento absoluto no € apenas uma ilusfo; em alguns casos, € também um pretexto para de~ fender posigées conservadoras. 8. Bxpus até aqui algumas razdes pelas quais creio que no se possa propor a busca do fandamento absoluto dos di- reitos do homem. Mas hé um outro aspecto da questo que emergiu destas tiltimas consideragdes. B, com isso, passo 3 terceira questio que me coloquei no inicio. Trata-se de saber se a busca do fundamento absoluto, ainda que coroada de su- cesso, € capaz de obter o resultado esperady, ou seja, o de conseguir do modo mais répido e eficaz 0 reconhecimento e a realizacio dos direitos do homem. Entra aqui em discussio © segundo dogma do racionalismo ético, que é, de resto, a segunda ilusio do jusnaturalismo: o de que os valores tltimos nao s6 podem ser demonstrados como teoremas, mas de que basta demonseri-los (ou seja, tornd-los em certo sentido in- 22 questiondveis e irresistiveis) para que seja assegurada sua rea- lizagao. Ao lado do dogma da demonstrabilidade dos valores Gltimos, cuja auséncia de fundamento tentamos demonstrat nos itens anteriores, 0 racionalismo ético — em sua forma mais radical e antiga — sustenta também que a racionalidade demonstrada de um valor € condigdo nfo 6 necesséria, mas também suficiente, de sua realizasio. O primeiro dogma as- segura a poténcia da razi0; 0 segundo wma do turalismo, que é a expressiio histérica mais respeitavel do racio- nalismo ético) é desmentido pela experiéncia hist6rica. Aduzo sobre esse ponto trés argumencos. Em primeiro lugar, nfio se pode dizer que os direitos do homem tenham sido mais respeitados nas épocas em que ‘os eruditos estavam de acordo em considerar que haviam en- contrado um argumento irrefatavel para defendé-los, ou seja, um fundamento absoluto: o de que tais direitos derivavam da ess@ncia ou da natureza do homem. Em segundo lugar, apesat da crise dos fundamentos, a maior parte dos governos existentes proclamou pela primeira vez, nessas décadas, uma Declaragéo Universal dos Direitos do Homem. Por conseguin- te, depois dessa declaragio, o problema dos fundamentos per- deu grande parte do seu interesse. Se a maioria dos governos existentes concordou com uma declaragio comum, isso é sinal de que encontraram boas razdes para faz8-lo, Por isso, agora, no se trata tanto de buscar outras razSes, ou mesmo (como quetem os jusnacuralistas redivivos) a razio das razdes, mas de pér as condigdes para uma mais ampla e escrupulosa tea- lizagao dos direitos proclamados. Decerto, para empenhar-se na criagdo dessas condigies, é preciso que se esteja convencido de que a realizagdo dos direitos do homem € uma meta de- sejavel; mas nao’ basta essa conviccao para que aquelas con- digdes se efetivem. Muitas dessas condigdes (e passo assim a0 terceiro tema) nfo dependem da boa vontade nem mesmo dos governantes, e dependem menos ainda das boas razdes adotadas para demonstrar a bondade absoluta desses direitos: somente a transformacao industrial num pais, por exemplo, torna possivel a proteco dos direitos ligados as relagdes de 23 trabalho. Deve-se recordar que o mais force argumento adotado pelos reaciondrios de todos os pafses contra os direitos do homem, particularmente contra os direitos sociais, nio € a sua falta de fundamento, mas a sua inexequibilidade. Quando se trata de enuncié-los, 0 acordo é obtido com relativa faci- lidade, independentemente do maior ou menor poder de con- vicgio de seu fandamento absoluto; quando se trata de passar A acdo, ainda que o fundamento seja inquestionavel, comecam. problema fundamental em relagio aos direitos do ho- mem, hoje, ndo € tanto o de justificd-los, mas 0 de protegé-ls. Trata-se de um problema nio filosdfico, mas politico. 9. E inegavel que existe uma crise dos fundamentos. Deve-se reconhecé-la, mas nfo tentar superé-la buscando outro fandamento absoluto para servir como substituto para o que se perdeu. Nossa tarefa, hoje, € muito mais modesta, embora também mais dificil. Nao se traca de encontrar 0 fundamenco absoluto — empreendimento sublime, porém desesperado —, mas de buscar, em cada caso concreto, 06 virios fundamentos possiveis. Mas cambém essa busca dos fundamentos possiveis — empreendimento legitimo € no destinado, como 0 outro, ao fracasso — nfo teré nenhuma importancia histérica se nio for acompanhada pelo estudo das condigées, dos meios ¢ das situagdes nas quais este ou aquele direito pode ser realizado, Esse estudo € tarefa das ciéncias histéricas e sociais. O problema filoséfico dos direitos do homem no pode ser dissociado do estudo dos problemas histéricos, sociais, econémicos, psicolé- gicos, inerentes & sua realizagio: o problema dos fins nao pode ser dissociado do problema dos meios, Isso significa que 0 filésofo j4 ndo esté sozinho. O fildsofo que se obstinar em permanecer so termina por condenar a filosofia a esterilidade. Essa crise dos fandamentos é também um aspecto da crise da filosofia, 24 PRESENTE E FUTURO DOS DIREITOS DO HOMEM ‘dé tr@s anos, no simpésio promovido pelo Institut Inter ational de Philosophie sobre o “Fundamento dos Direitos do Homem”, tive oportunidade de dizer, num tom um pouco peremptério, no final de minha comunicagio,' que o problema grave de nosso tempo. com relacdo aos direitos do homem. nao era mais o de fundamenté-los, e sim o de protegé-los. Desde entdo, nfo tive razdes para mudar de idéia. Mais que isso: essa frase que, dirigida a um piblico de fildsofos, podia ter uma intengio polémica — péde servir, quando me ocorreu repeti-la no simpésio predominantemente juidico promovido pelo Comité Consultivo Italiano para os Direitos do Homem,? como introdugio, por assim dizer, quase obrigatéria. Com efeito, o problema que temos diante de nds nao é filos6fico, mas juridico e, num sentido mais amplo, politico. Nao se trata de saber quais e quantos so esses direitos, qual é sua natureza e seu fundamento, se sio direitos naturais ou hist6ricos, absolutos ou relativos, mas sim qual € 0 modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declaragGes, eles sejam continuamente violados. De resto, quan- do a Assembléia Geral da ONU, em sua tiltima sessio, acolheu a proposta de que a Conferéncia Internacional dos Direitos do Homem, decidida na sessio do ano anterior, fosse sealizada em ‘Teer na primavera de 1968, fazia votos de que a conferéncia 25 assinalasse “um notével passo & frente na agiio empreendida no sentido de encorajar e ampliar o respeito aos direitos humanos ¢ as liberdades fundamentais”.> Entende-se que a exigéncia do “respeito” aos direitos humanos ¢ as liberdades fundamentais nasce da convicgio, partilhada universalmente, de que eles pos- suem fandamento: 0 problema do fundamento € ineludfvel. Mas, quando digo que o problema mais urgente que temos de enfrentar néo € 0 problema do fundamento, mas o das garantias, quero dizer yue Lousideranus y problena do fan damento nao como inexistente, mas como — em certo sentido — tesolvido, ou seja, como um problema com cuja solugio j4 nao devemos mais nos preocupar. Com efeito, pode-se dizer que o problema do fundamento dos direitos humanos teve sua solugao atual na Declaracdo Universal dos Direitos do Homem aprovada pela Assembléia-Geral das Nagdes Unidas, em 10 de dezembro de 1848. ‘A Declaragio Universal dos Diteitos do Homem repre- senta a manifestacio da tnica prova através da qual um sistema de valores pode ser considerado humanamente fundado e, por- tanto, reconhecido: ¢ essa prova é 9 consenso geral acerca da sua validade. Os jusnaturalistas teriam falado de consensus om- nium gentium ou humani generis. Ha trés modos de fundar os valores: deduzi-los de um dado objetivo constante, como, por exemplo, a narureza hu- mana; considerd-los como verdades evidentes em si mesmas; e, finalmente, a descoberta de que, num dado perfodo his- r6rico, eles sko geralmence aceitos (precisamente a prova do consenso). O primeiro modo nos ofereceria a maior garancia de sua validade universal, se verdadeiramente existisse a na- tureza humana e, admitindo-se que existisse como dado cons- tante e imutdvel, tivéssemos a possibilidade de conhecé-la em sua esséncia: a julgarmos pela histéria do jusnaturalismo, a natureza humana foi interpretada dos mais diferentes modos, 0 apelo A natureza serviu para justificar sistemas de valores até mesmo diversos entre si. Qual é o direito fundamental do homem segundo a sua natureza? O direito do mais forte, como queria Spinoza, ou © direito & liberdade, como queria Kant? O segundo modo — o apelo a evidéncia — tem o 26 defeico de se situar para além de qualquer prova e de se recusar a qualquer argumentacio possivel de cardter racional: na rea- lidade, to logo submetemos valores, proclamados evidentes, a verificagéo hist6rica, percebemos que aquilo que foi consi derado como evidente por alguns, num dado momento, nio € mais considerado como evidente por outros, em outro: mo- mento. Deve provavelmente ter aparecido como evidente, aos autores da Declaragdo de 1789, que a propriedade era “sagrada de propriedade como direito do homem desapareceu nos docu- mentos mais recentes das Nages Unidas.’ Atualmente, quem nao pensa que é evidente que nfio se deve torturar os pri- sioneiros? Todavia, durante séculos, a cortura foi aceita e de- fendida como um procedimento judiciério normal. Desde que ‘0s homens comegaram a refletir sobre a justificagdo do uso da violéncia, foi sempre evidente que vim vi repellere licet; atual- mente, ao contrério, difundem-se cada vez mais teorias da ndo-viol€ncia, que se fundam. precisamente na recusa desse conceito, © texceiro modo de justificar os valores cansisre em mas. tar que so apoiados no consenso, 0 que significa que um valor € tanto mais fundado quanto mais é aceito. Com 0 ar- gumento do consenso, substitui-se pela prova da intersubje- tividade a prova da objetividade, considerada impossivel ou extremamente incerta. Trata-se, certamente, de um fundamen- t0 histérico e, como tal, nfo absoluco: mas esse fundamento histérico do consenso € 0 tinico que pode ser factualmente comprovado. A Declaraciio Universal dos Direitos do Homem pode ser acolhida como a maior prova histérica até hoje dada do consensus omninm gentiun sobre um detetminado sistema de valores. Os velhos jusnaturalistas desconfiavam — e nfo es- tavam inteiramente errados — do consenso geral como funda- mento do direito, ja que esse consenso era dificil de comprovar. Seria necessirio buscar sua expressio documental através da inquieta ¢ obscura histéria das nag6es, como tentaria fazé-lo Giambattista Vico. Mas agora esse documento existe: foi apro- vado por 48 Estados, em 10 de dezembro de 1948, na As- sembléia Geral das Nag&es Unidas; e, a partit de entio, foi 27 acothido como inspiragio e orientagio no processo de cresci- mento de toda a comunidade internacional no sentido de uma comunidade no s6 de Estados, mas de individuos livres ¢ iguais. Nao sei se se tem consciéncia de até que ponto a Declarago Universal representa um fato novo na hist6ria, na medida em que, pela primeira vez, um sistema de principios fandamentais da conduca humana foi livre e expressamente aceito, através de seus respectivos governos, pela maioria dos de valores € — pela primeira vez na histéria — universal, no em principio, mas de fato, na medida em que o consenso sobre sua validade e sua capacidade para reger os destinos da comunidade futura de todos os homens foi explicitamente declarado. (Os valores de que foram portadoras as religides eas Igrejas, até mesmo a mais universal das religides, a crise, envolveram de fato, isto 6, historicamente, até hoje, apenas uma parte da humanidade.) Somente depois da Declaragio Universal € que podemos ter a certeza histérica de que a hu- manidade — toda a humanidade — partilha alguns valores comuns: ¢ podemos, finalmente, crer na universalidade dos valores, no Unico sentido em que tal crenga € historicamente legitima, ou seja, no sentido em que universal significa nao algo dado objetivamente, mas algo subjecivamente acolhido pelo universo dos homens. Esse universalismo foi uma lenta conquista. Na historia da formagio das declaragées de direitos podem-se distinguir, pelo menos, trés fases. As declaragdes nascem como teorias filos6ficas. Sua primeira fase deve ser buscada na obra dos fi- I6sofos. Se no quisermos remontar até a idéia estdica da so- ciedade universal dos homens racionais — 0 sibio € cidadao hao desta ou daquela patria, mas do mundo —,'a idéia de que 0 homem enquanto tal tem direitos, por natureza, que ninguém (nem mesmo o Estado) the pode subtrair, e que ele mesmo nfo pode alicnar (mesmo que, em caso de necessidade, ele os aliene, a transferéncia ndo € vilida), essa idéia foi ela- borada pelo jusnaturalismo moderno, Seu pai € John Locke. Segundo Locke, 0 verdadeiso estado do homem nio € 0 estado civil, mas 0 natural, ou seja, o estado de natureza no qual os 28 homens sio livres iguais, sendo o estado civil uma criagio artificial, que nfo tem outra meta além da de permicir a mais ampla explicitacdo da liberdade e da igualdade naturais, Ainda que a hipotese do estado de natureza tenha sido abandonada, as primeiras palavras com as quais se abre a Declaragio Uni- versal dos Direitos do Homem conservam um claro eco de tal hipétese: “Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade € direitos.” O que € uma maneita diferente de dizer que os co Livees © iguain pur meiurcea, B couiy ui recordar as primeiras célebres palavras com que se inicia 0 Contrato social de Rousseay, ou seja: “O homem nasceu livre e pot toda @ parte encontra-se a ferros”? A Declaragio conserva apenas um eco porque os homens, de fato, nfio nascem nem livres nem iguais.’ Sao livtes e iguais com relagio a um nascimento ou natureza ideais, que era precisamente a que tinham em mente 6s jusnaturalistas quando falavam em estado de natureza. A liberdade e a igualdade dos homens nao sio um dado de fato, mas um ideal a perseguir; nfo so uma existéncia, mas um valor; no so um ser, mas um dever ses, Enquanto teorias filos6ficas. as primeiras afirmacties dos direitas da homem sto pura e simplesmente a expresso de um pensamento individual: sio universais em relagio ao contetido, na medida em que se dirigem a um homem tacional fora do espaco e do tempo, mas sao extremamente limitadas em relagdo A sua eficdcia, na medida em que sio (na melhor das hipSteses) propostas para um fucuro legislador. _ No momento em que essas teorias so acolhidas pela pri- meira vez por um legislador, 0 que ocorre com as Declaracées de Diteitos dos Estados Norte-americanos ¢ da Revolugio Fran- cesa (um pouco depois), e postas na base de uma nova con- cepgao do Estado — que nao é mais absoluto e sim limitado, que ndo é mais fim em si mesmo e sim meio para alcancat fins que sio postos antes e fora de sua prOpria existéncia —, a afirmagio dos direitos do homem nio € mais expressto de uma nobre exigéncia, mas o ponto de partida pata a instituigio de um auténtico sistema de direitos no sentido estrito da pa- lavra, isto é, enquanto direitos positivos ou efetivos. O segundo momento da histéria da Declaragio dos Direitos do Homem 29 consiste, portanto, na passagem da teoria & pratica, do direito somente. pensado para o direito realizado. Nessa passagem, a afiemagio dos direitos do homem ganha em concreticidade, mas perde em universalidade. Os direitos sfio doravante pro- tegidos (ou seja, so auténcicos direitos positives), mas valem somente no Ambiro do Estado que os reconhece. Embora se ‘mantenha, nas férmulas solenes, a distingao entre direitos do homem e direitos do cidado, no sio mais direitos do homem e sim apenas du cidadau, uu, pelu mcuvs, 90 mem somente enquanto sio direitos do cidadao deste ou da- quele Estado particular. ‘Com a Declaragio de 1948, tem infcio uma terceira € Ultima fase, na qual a afirmagdo dos direitos 6 ao mesmo tempo, aniversal ¢ positiva: universal no sentido de que os destinacérios dos princfpios nela contidos no sio mais apenas os cidadios deste ou daquele Estado, mas todos os homens; positiva no sentido de que pde em movimento um processo em cujo final 0s direitos do homem deverio ser niio mais apenas proclamados ou apenas idealmente reconhecidos, porém efetivamente pro- tegidos até mecma contra a préprio Estado que os tenha vio lado. No final desse proceso, os direitos do cidadéio terio se transformado, realmente, positivamente, em direitos do ho- mem. Ou, pelo menos, serio os direitos do cidadao daquela cidade que nio tem fronteiras, porque compreende toda a hu- manidade; ou, em outras palavras, serdo os direitos do homem enquanto direitos do cidadio do mundo. Somos tentados a descrever 0 processo de desenvolvimento que culmina da De- claragéo Universal também de um outro modo, servindo-nos das categotias tradicionais do direito natural e do direito po- sitivo: os direitos do homem nascem como direitos naturais universais, desenvolvem-se como direitos positivos particula- res, para finalmente encontrarem sua plena realizagio como direitos positivos universais. A Declaragio Universal contém em germe a sintese de um movimento dialético, que comega pela universalidade abstraca dos direitos naturais, transfigu- ra-se na particularidade concreta dos direitos positives, e rer- mina na universalidade nio mais abstrata, mas também ela concreta, dos direitos positives universais. 30 Quando digo “contém em germe”, quero chamar a aten- so para 0 fato de que a Declaragio Universal € apenas 0 inicio de um longo processo, cuja realizagao final ainda no somos capazes de ver. A Declaragio € algo mais do que um sistema doutrindrio, porém algo menos do que um sistema de normas juridicas. De resto, como jé varias vezes foi observado, a propria Declaragéo proclama os principios de que se faz pregocira niio como normas juridicas, mas como “ideal comum a ser alcan- gato por ilus us purus © pur wudus as ages”. Uma remissao as normas juridicas existe, mas esté contida num ju‘zo hipo- tético. Com efeito, lé-se no Preambulo que “é indispensavel que os direitos do homem sejam protegidos por normas jurf- dicas, Je se quer evitar que 0 homem seja obrigado a recorrer, como tiltima instancia, a rebelio contra a tirania e a opressiio” Essa proposigio se limita a estabelecer uma conexo necessdria entre determinado meio e determinado fim, ou, se quisermos, aptesenta uma opgio entre duas alternativas: ou a protecio juridica ou a rebeliio. Mas nao pée em ago 0 meio. Indica qual das duas alternativas foi escolhida, mas ainda no € capaz de realizé-la. Sd0 coisas diversas mostrar 0 caminho © percor- ré-lo até o fim. Quando os direitos do homem eram considerados uni- camente como direitos naturais, a nica defesa possivel contra a sua violagio pelo Estado era um direito igualmente natural, © chamado direito de resisténcia. Mais tarde, nas Constituigoes que reconheceram a protecio juridica de alguns desses direitos, © direito natural de resisténcia transformou-se no direito po- sitivo de promover uma acto judicial contra os préprios érgios do Estado. Mas o que podem fazer os cidadaos de um Estado que nao tenha reconhecido os direitos do homem como direitos dignos de protegio? Mais uma vez, s6 lhes resta aberco 0 camino do chamado diteito de resisténcia. Somente a extensio dessa protegio de alguns Estados para codos os Estados ¢, a0 mesmo tempo, a protegio desses mesmos direitos num degrau mais alto do que o Estado, ou seja, o degrau da comunidade internacional, total ou parcial, poderé cornar cada vez menos provavel a altemnativa entre opressdo ¢ resisténcia. Portanto, € claro que, com aquele juizo hipotético (ou, 0 que € 0 mesmo, 31 ‘com aquela alternativa), os aucores da Declaragio demonstra~ ram estar perfeitamente conscientes do meio que leva ao fim desejado. Mas uma coisa é a consciéncia do meio, outra a sua realizacio. Quando se diz que a Declaragdo Universal representou apenas 0 momento inicial da fase final de um proceso, o da conversao universal em direito positivo dos direitos do homem, pensa-se habitualmence na dificuldade de implementar medidas eficientes pata a sua garantia numa comunidade como a inter- nacional, na qual ainda nao ocorreu 0 processo de monopolizag3o da forca que caracterizou o nascimento do Estado moderno. Mas hhé também problemas de desenvolvimento, que dizem respeito ao proprio contetido da Declaragio. Com telacio 20 contetido, ow seja, A quantidade € & qualidade dos direitos elencados, a Declaragdo nao pode apresentar nenhuma pretenso de ser de- finitiva. Também os direitos do homem sao direitos histéricos, que emergem gradualmente das lutas que 0 homem trava por sua propria emancipacio e das transformagées das condig&es de vida que esas lutas produzem. A expressio “direitos do ho- iuem”, que & cectamente cafética — ainda que oportunamente enfética —, pode provocar equfvocos, jé que faz pensar na exis- téncia de direitos que pertencem a um homem abstrato ¢, como tal, subtraidos ao fluxo da hist6ria, a um homem essencial € eterno, de cuja contemplacio derivarfamos o conhecimento in falivel dos seus direitos e deveres. Sabemos hoje que também 08 direitos ditos humanos sto o produto nao da natureza, mas da civilizagdo humana; enquanto direitos histéricos, eles so mutéveis, ou seja, suscetiveis de cransformagio e de ampliagéo. Basta examinar os escritos dos primeiros jusnaturalistas para ver quanto se ampliou a lista dos direitos: Hobbes conhecia apenas tim deles, 0 direito & vida. Como todos sabem, o desen- volvimento dos direitos do homem passou por crés fases: num, primeiro momento, aficmaram-se os direitos de liberdade, isto &, todos aqueles direitos que tendem a limitar 0 poder do Estado € a reservar para 0 individuo, ou pata os grupos particulares, uma esfera de liberdade em relagdo ao Estado; num segundo momento, foram propugnados os direitos politicos, os quais — concebendo a liberdade no apenas negativamente, como nio- 32 impedimento, mas positivamente, como autonomia — tiveram como conseqiiéncia a participacio cada vez mais ampla, gene- ralizada ¢ freqitente dos membros de uma comunidade no poder politico (ou liberdade no Estado); finalmente, foram proclama- dos os direitos sociais, que expressam o amadurecimento de novas exigéacias — podemos mesmo dizer, de novos valores —, como os do bem-estar ¢ da igualdade nao apenas formal, ¢ que poderfamos chamar de liberdade atravé ou por meio do Estado. Se tivessem dito a Lockc, campeio dos direitos de li berdade, que todos os cidadios deveriam participar do poder politico e, pior ainda, obter um trabalho remunerado, ele teria respondido que isso ndo passava de loucura. E, ndo obstante, Locke tinha examinado a fundo a natureza humana; mas a na~ cureza humana que ele examinara era a do burgués ou do co- merciante do século XVII, e nao lera nela, porque nao podia lé-lo daquele Angulo, as exigéncias e demandas de quem tinha uma outra natureza ou, mais precisamente, ndo tinha nenhuma nacureza humana (j4 que a natureza humana se identificava como a dos pertencentes a uma classe determinada), Ora, a Declaracio Universal dos Direitos do Homem — que € certamente, com relagio ao processo de protecio global dos direitos do homem, um ponto de partida para uma meta Progressiva, como dissemos até aqui — representa, ao con- tritio, com telagio a0 contetido, isto é, com relagio aos direitos proclamados, um ponto de parada num proceso de modo algum concluido. Os direitos elencados na Declaragio nio sto 08 tinicos © possiveis direitos do bomem: séo 0s direitos do homem histérico, tal como este se configurava na mente dos redatores da Declaragio apés a tragédia da Segunda Guerra Mundial, numa época que tivera inicio com a Revolugio Fran- cesa e desembocara na Revolucao Soviética. Nao é preciso mui- ta imaginacao para prever que o desenvolvimento da técnica, a transformagio das condig6es econdmicas sociais, a amplia~ gio dos conhecimentos ¢ a intensificacéo dos meios de co- municagéo poderdo produzir tais mudancas na organizacdo da vida humana e das relagdes sociais que se criem ocasides fa~ vordveis para 0 nascimento de novos carecimentos e, portanto, para novas demandas de liberdade ¢ de poderes. Para dar ape- 33 nas alguns exemplos, lembro que a crescente quantidade € intensidade das informagdes a que 0 homem de hoje esté sub- metido faz surgit, com forca cada vez maior, a necessidade de nfo se ser enganado, excitado ou perturbado por uma pro- paganda maciga € deformadora; comeca a se esbogar, contra 0 direito de expressar as pr6prias opinides, 0 direito a verdade das informagies. No campo do direito & participagao no poder, fan-se sentir na medida em que o poder econdmico se torna cada vez mais determinante nas decisoes politicas e cada vez mais decisivo nas escolhas que condicionam a vida de cada homem — a exigéncia de participacio no poder econémico, ao lado e para além do direito (j4 por toda parte reconhecido, ainda que nem sempre aplicado) de participagio no poder politico. O campo dos direitos sociais, finalmente, esté em continuo movimento: assim como as demandas de protecéo social nasceram com a revolugdo industrial, & provavel que 0 rapido desenvolvimento técnico e econémico traga consigo novas demandas, que hoje ndo somos capazes nem de prever. A Declaragdo Universal representa a consciéncia histérica que ‘a humanidade tem dos préprios valores fundamentais na se- gunda metade do século XX. £ uma sintese do passado € uma inspiragdo para o futuro: mas suas tébuas nao foram gra- vadas de uma vez para sempre. Quero dizer, com isso, que a comunidade internacional se encontra hoje diante nao s6 do problema de fornecer ga~ rantias vilidas para aqueles direitos, mas também de aperfei- oar continuamente contetido da Declaragio, articulando-o, especificando-o, atualizando-o, de modo a nao deixé-lo crisra~ lizar-se e enrijecer-se em f6rmulas tanto mais solenes quanto mais vazias. Esse problema foi enfrentado pelos organismos inrernacionais nos ultimos anos, mediante uma série de atos que mostram quanto € grande, por parte desses organismos, a consciéncia da historicidade do documento inicial e da ne- cessidade de manté-lo vivo fazendo-o crescer a partir de si mesmo, Trata-se de um verdadeiro desenvolvimento (ou talvez, mesmo, de um gradual amadurecimento) da Declaragao Uni- versal, que gerou e esté para gerar outros documentos inter- pretativos, ou mesmo complementares, do documento inicial. 34 Limito-me a alguns exemplos. A Declaragdo dos Direitos da Crianga, adotada pela Assembiéia Geral em 20 de novembro de 1959, refere-se em seu preimbulo a Declaracio Universal; mas, logo apés essa referéncia, apresenta o problema dos di- reitos da crianga como uma especificagio da solugdo dada 20 problema dos direitos do homem. Se se diz que “a crianga, por causa de sua imaturidade fisica e intelectual, necessita de uma protecao particular e de cuidados especiais”, deixa-se assim claro que os direitos da crianca so consideradas como um ins Singuilare com relagio a um ins commune; o destaque que se da a essa especificidade, através do novo documento, deriva de tum processo de especificacio do genérico, no qual se realiza 0 respeito & maxima suum cuique iribuere, Recordemos 0 art. 2° da Declaraco Universal, que condena toda discriminagéo fan- dada nao s6 sobre a religiao, a lingua, etc., mas também sobre © sexo ¢ a raga, No que se refere & discriminagio fundada na diferenga de sexo, a Declaragio nfo vai e nio pode ir além dessa enunciagao genética, j4 que se deve entender que, quando © texto fala de “individuos”, refere-se indiferentemente a ho- mens c mulheres, Mas, ci 20 de dezembro de 1952, a Assem- bléia Geral aprovou uma Convencio sobre os Direitos Politicos da Mulher, que — nos primeiros erés artigos — prevé a nao- disctiminacao tanto em relagio ao diteito de votar e de ser votado quanto A possibilidade de acesso a todos 0s cargos pii- blicos. Quanto a discriminagio racial, basta recordar que, em 20 de novembro de 1963, a Assembléia Geral aprovou uma Declaragio (seguida, dois anos depois, por uma Convengio) sobre a eliminagao de todas as formas de discriminagio racial, que especifica, em onze artigos, algumas espécies tipicas de ago discriminat6ria, e contempla também praticas especfficas bem delimitadas de discriminagio, particularmente 0 apart- heid (art. 5°): priticas especificas que nao podiam evidente- mente estar previstas numa declaragio geral. ‘Talvez um dos fendmenos mais interessantes e evidentes do crescimento do problema dos direitos do homem seja aquele relacionado com 0 processo de descolonizagio, 0 qual teve lugar de modo mais decisivo — é bom recordar — depois da De- claragiio Universal. Pois bem: na Declaragdo sobre a Concessdo da 35 Independéncia aos Pafwes ¢ Pows Coloniais (aprovada em 14 de dezembro de 1960), vemos a habitual referéncia genérica aos direitos do homem globalmente considerados, mas temos tam- bém algo mais: a afirmacio — desde o primeiro artigo — de que “a sujeigio dos povos a0 dominio estrangeiro é uma ne- ‘gacdo dos direitos fundamentais do homem”, Trata-se de uma auténtica complementacio, cujo cardter explosivo nao é dificil de imaginar, ao texto da Declaragio Universal. Com efeito, tuma coisa € dizer, como o faz a Declaragdo Universai no art 2° § 2, que “nenhuma distingdo seré estabelecida com base no estatuto politico, juridico ou internacional do pais ou do ter- ritério a que uma pessoa pertence”; outra é considerar como contrdria aos direitos do homem, como o faz a Declaragao da Independéncia, “a sujeigto dos povos ao dominio estrangeiro”. ‘A primeira afitmacio refere-se & pessoa individual; a segunda, ‘a todo um povo. Uma chega até a niio-discriminagio indivi- dual; a outra prossegue até a autonomia coletiva. B liga-se, com efeito, ao principio — j& proclamado desde os tempos da Revolugo Francesa, e que se tornou depois um dos motivos inspiradores dus muvisucntos nacionais dos séculos XIX e XX — do diteito de todo povo & autodeterminacio: principio que faz sen reaparecimento precisamente no art, 2° da mesma De- claragio de Independéncia, Portanto, torna-se evidente que, a0 lado da afirmagio dos direitos de cada homem, aos quais se refere de modo exclusive a Declaragio Universal, tornou-se agora madura — através do processo de descolonizagao € da tomada de consciéncia dos novos valores que ele expressa — a exigéncia de afirmar direitos fandamentais dos povos, que rio esto necessariamente inclufdos nos primeiros. Chegou-se a0 ponto de acolher o principio de autodeterminagiio dos poves como primeirn principio, ou princfpio dos principios, nos al- timos e mais importantes documentos relatives aos direitos do homem, aprovados pelas Nagdes Unidas. O Pacto sobre os direitos econimicos, sociais e culturais € 0 Pacto sobre os direites civis e politicos, ambos adotados pela Assembléia Geral das Nag&es Unidas, em 16 de dezembro de 1966, comecam assim: “Todos os povos tém o direito & autodererminacio"; e prosseguem: “Em virtude desse direito, eles decidem livremente sobre seu estatuto po- 36 litico e perseguem livremente seu desenvolvimento econdmico, social e cultural.” © art. 3° de ambos os pactos, reiterando, afitma que “os Estados (...) devem promover a realizacio do direito 3 aucodeterminacdo dos povos" Nao tenho a pretensio de elencar todos os casos em que a atividade de promogio dos direitos humanos, realizada pelos organismos das Nagées Unidas — e penso, particularmente, as convengdes sobre o trabalho e a liberdade sindical, adotadas pela Orguuiizagao Internacionai do irabaino —, representou um desenvolvimento e uma determinacao mais precisa da De- claragio Universal. Mas nio posso deixar de recordar ainda a Convengao para a Prevengar e Represdo do Genncidio, aprovada pela Assembléia Geral em 9 de dezembro de 1958, que estende um grupo humano, considerado em seu conjunto, os artigos 3.5 da Declaracio Universal, os quais attibuem ao individuo 0s direitos & vida, & seguranca pessoal, a ndo ser escravizado 00 tratado de maneira cruel, desumana ou degradane. Mais uma vez, para além dos direitos do homem como individuo, desenham-se novos direitos de grapes humaros,powos€ nagées, Lim caco interessante, @ bastante desconcercante, dessa Mugine tharta dos povos, em processo de elaboracio, é 0 att, 47 do Pacto sobre os divctas civis e polices, que fala de “um dizeito inerente a todos os povos de desfrutar e de dispor plenamente dle suas riquezas e recursos naturais". Nao & dificil entender us razBes dessa afirmacio; bem mais dificil é prever suas con- neqiiéncias, caso ela seja aplicada literalmente.) _ Afirmei, no inicio, que o importante no é fandamentar os diteitos do homem, mas protegé-los. Nao preciso aduzi aqui «que, para protegé-los, ndo basta proclamé-los. Falei até agora somente das varias enunciagées, mais ou menos articuladas. O problema real que temos de enfrencat, contudo, €0 das medidas niginadas e imagindveis para a efeviva provesaio desses direitos. ft inticil dizer que nos encontramos aqui numa estrada desco- nnhecida; e, além do mais, numa estrada pela qual trafegam, aa ioria dos casos, dois tipos de caminhantes, os que enxergam vom clazeza mas tém os pés presos, ¢ os que poderiam tet os Inés livres mas tm os olhos vendados. Parece-me, antes de mais ir duas ordens de dificuldades: uma 37 de nacureza mais propriamente jur(dico-politica, outra substan- cial, ov seja, inerente 20 contetido dos direitos em pauca. ‘A primeira dificuldade depende da prépria natureza da comunidade internacional, ou, mais precisamente, do tipo de relacdes existentes entre os Estados singulares, e entre cada um dos Estados singulares e a comunidade internacional tomada ‘em seu conjunto. Para retomar uma velha distingio, empregada outrora para descrever as relagdes entre Estado e Igreja, poder- se-ia dizer — com 0 geau de aproximagao que € incvisdvel as distingdes muito nitidas — que os organismos incernacionais possuem, em relacio aos Estados que 0s compdem, uma vis directiva ¢ no coactiva, Ora, quando falamos de protesao juridica fe queremos distingui-la de outras formas de controle social, pensamos na protegio que tem o cidado (quando a tem no interior do Estado, ou seja, numa protecio que fundada na vis diretiva e da vis coactiva quanto A eficécia, € um problema complexo, que no pode ser abordado aqui. Limito-me & se- guinte observasio: para que a vis directiva alcance seu proprio fim, sio necessérias, em geral, uma ou outra destas duas con- digdec, melhor sendo quando as dias acorrem em. conjunto: a) ‘0 que a exerce deve ter muita autoridade, ou seja, deve incutir, se nio temor reverencial, pelo menos respeito; b) aquele sobre (© qual ela se exerce deve ser muito razodvel, ou seja, deve ter uma disposigio genérica a considerar como vilidos no s6 os argumentos da forca, mas também os da razio. Ainda que toda ‘generalizacéo seja indébita ¢ as relagdes entre os Estados € os organismos internacionais possam ser de natureza muito diver~ sa, € preciso admicir que existem casos nos quais faltam uma ‘ou outta das duas condigdes, quando nfo faltam ambas. B é precisamente nesses casos que se pode verificar mais facilmente a situagio de insuficience, e até mesmo de inexistente, protesio dos direitos do homem, situagio que deveria ser remediada pela comunidade internacional. O desprezo pelos direitos do homem no plano interno e 0 escasso respeito 2 autoridade internacional no plano externo marcham juntos. Quanto mais um governo for autoritério em relagao & liberdade dos seus cidadaos, tanto mais serd libertitio (que me seja permitido usar essa expresso) em face da antoridade internacional. 38 Repetindo a velha distingao, ainda que de modo mais preciso, a teoria politica distingue hoje, substancialmente, duas formas de controle social, a influéncia e 0 poder (entendendo-se por “influéncia” 0 modo de controle que determina a agao do outro incidindo sobre sua escolha, e por “poder” 0 modo de controle que determina 0 comportamento do outro pondo-o ‘na impossibilidade de agir diferentemente). Mesmo partindo-se dessa distingio, resulta claro que existe uma diferenca encre a pentose jurtdica o es ais: a primeira serve-se da forma de controle social que é 0 poder; as segundas so fundadas exclusivamente na influéncia, Tomemos a teoria de Felix Oppenheim, que distingue trés formas de influéncia (a dissuasio, 0 desencorajamento ¢ 0 con- dicionamento) e trés formas de poder (a violéncia fisica, 0 im- pedimento legal e a ameaca de sangdes graves). O controle dos organismos intetnacionais corresponde bastante bem as trés formas de influéncia, mas estanca diante da primeira forma de poder, Contudo, é precisamente com a primeira forma de poder que comeca aquele tipo de protegio a que estamos habituados, por uma longa tradicio, a chamar de jusidica. Longe de mim a idéia de promover uma iniitil questo de palavras: craca-se de saber, substantivamente, quais so as possiveis formas de controle social e, com base nessa tipologia, estabelecer quais sio as empregadas € empregaveis atualmente pela comunidade internacional; e depois, distinguindo formas mais ou menos eficazes com relagao ao fim, que é 0 de impedir ou reduzir 20 mfnimo os comportamentos desviantes, perguntar qual seria — com relagio & tutela dos direitos do homem — o grau de eficécia das medidas atwalmente aplicadas ou aplicéveis no pla- no internacional. As atividades até aqui implementadas pelos organismos inecenacionais, tendo em vista 4 tutela dus diteitus do homem, podem ser consideradas sob trés aspectos: promogdo, controle € karantia.” Por promogio, entende-se 0 conjunto de ades que so orientadas para este duplo objetivo: a) induzit os Estados que ao tém uma disciplina especifica para a tutela dos direitos do homem a introduzi-la; b) induzir os que jé a tém a aper- feigos-la, seja com telagdo 20 direito substancial (nimero ¢ 39 qualidade dos direitos a tutelar), seja com relagio aos pro- cedimentos (ntimero e qualidade dos controles jurisdicionais). Por atividades de controle, entende-se o conjunto de medidas que os vérios organismos internacionais poem em movimento para verificar se e em que grau as recomendacdes foram aco- Ihidas, se € em que grau as conveng6es foram respeitadas. Dois modos tipicos para exercer esse controle — ambos pre- vistos, por exemplo, nos dois Pactos de 1966 j4 mencionados Baceto ta comrense7] — so os relitirias Gus costa Baad sl se compromete a apresentar sobre as medidas adotadas para tutelar 0s direitos do homem de acordo com o préprio pacto (cf. art. 40), bem como os comunicades com os quais um Estado membro denuncia que um outro Estado membro nfo cumpriu as obrigacdes decorrentes do pacto (cf. art. 41).* Finalmente, por atividades de garancia (talvez fosse melhor dizer de “ga- rantia em sentido escrito"), entende-se a organizagio de uma aucéntica tutela jurisdicional de nivel internacional, que subs- titua a nacional. A separacZo entre as duas primeiras formas de tutela dos direitos do homem e a terceira € bastante nitida: enquanto a promogio e 0 controle se dirigem exclusivamente para as garantias existentes ou a insticuir no interior do Estado, ‘ou seja, tendem a reforgar ou a aperfeigoar o sistema juris- dicional nacional, a terceira tem como meta a criagio de uma nova € mais alta jusisdi¢ao, a substituigio da garantia nacional pela internacional, quando aquela for insuficiente ou mesmo inexistente. Como se sabe, esse tipo de garantia foi previsto pela Convengao Exropéia dos Direitos do Homem (fitmada em Roma, em 4 de novembro de 1950, ¢ que entrou em vigor em 3 de setembro de 1953), através do procedimento — saudado como profundamente inovador — das demandas individuais & Comissio Européia dos Direitos do Homem (cf. art. 25). E uma inovagdo que representa, até agora, apenas uma ponta avangada no sistema atual da protecio internacional dos di- reitos do homem. Mas s6 seré possivel falar legitimamente de tutela internacional dos direitos do homem quando uma jutisdig&o internacional conseguir impor-se ¢ superpor-se As jurisdigdes nacionais, e quando se realizar a passagem da ga- 40 tantia dentro do Estado — que € ainda a caracteristica pre- dominante da atual fase — para a garantia contra o Estado, Deve-se recordar que a luta pela afitmagio dos direitos do homem no interior de cada Estado foi acompanhada pela instaurago dos regimes representativos, ou seja, pela disso- lugio dos Estados de poder concentrado. Embora toda analogia histérica deva ser feita com muita cautela, € provavel que a luta pela afirmagio dos direitos do homem também contra Yes aarp ae alert andamento, ainda que lento, sobre a concepgao do poder ex- terno do Estado em relagio aos outros Estados, bem como um aumento do caréter representative dos organismos incer- nacionais. O exemplo da Convengio Européia ensina que as formas de garantia internacional sao mais evoluidas hoje nos casos em que so mais evolufdas as garantias nacionais, ou seja, a tigor, nos casos em que sio menos necessirias. Cha- mamos de “Estados de direito” os Estados onde funciona re- gularmente um sistema de garantias dos direitos do homem: no mundo, existem Estados de direito e Estados no de direito, Nao ha davida de que os cidadios que tém mais necessidade da provegzo internacional sio os cidadaos dos Estados nao de direito. Mas tais Estados so, precisamente, os menos incli- nados a aceitar as transformagées da comunidade incernacional que deveriam abrir caminho para a instituigio e 0 bom fan- cionamento de uma plena protege juridica dos direitos do homem, Dito de modo dréstico: encontramo-nos hoje numa fase em que, com relacio a tutela internacional dos direitos do homem, onde essa € possivel talvez no seja necesséria, e onde € necesséria 6 bem menos posstvel. Além das dificuldades juridico-politicas, a eutela dos di- reitos do homem vai de encontro a dificuldades inerentes a0 pidpriv couteddo desses direitos. Causa espanto que, de modo getal, haja pouca preocupacdo com esse tipo de dil Dado que a maior parte desses direitos so agora aceitos pelo senso moral comum, cré-se que o seu exercicio seja igualmence simples. Mas, a0 contrério, € terrivelmente complicado, Por um lado, 0 consenso geral quanto a eles induz a crer que tenham um valor absoluto; por outro, a expresso genérica AL Gnica “direitos do homem’” faz pensar numa categoria homo- génea. Mas, ao contrério, os direitos do homem, em sua maio- tia, no si0 absolutes, nem constituem de modo algum uma categoria homogénea. Entendo por “valor absoluto” 0 estatuto que cabe a pou- quissimos direitos do homem, vélidos em todas as situagées ¢ para todos os homens sem distingao, Trata-se de um estaturo privilegiado, que depende de uma situacio que se verifica muito rurunente, € 4 situayiv oa qual cas que no esto em concorréncia com outros direitos igualmence fundamentais. E preciso partir da afirmagio ébvia de que néo se pode instituir um direito em favor de uma categoria de pessoas scm suprimir um direito de outras categorias de pessoas. O direito a nao ser escravizado implica a eliminacio do direito de possuir escravos, assim como o direito de nfo ser rorturado implica a eliminagio do direito de torturar. Esses dois direitos podem ser considerados absolutos, jé que a ago que é conside- rada ilfcita em conseqiiéncia de sua insticuigio e protegio € universalmente condenada. Prova disso € que, na Convencio Européia dos Direitos do Homem, ambos esses direitos sio explicitamente exclufdos da suspensio da rutela que atinge co- dos os demais direitos em caso de guerra ou de outro perig piiblico (cf. art, 15 § 2). Na maioria das situagdes em que esta em causa um direito do homem, ao contrério, ocorre que dois direitos igualmente fundamentais se enfrentem, € no se pode proteger incondicionalmente um deles sem tornar 0 outro ino- perante, Basta pensar, para ficarmos num exemplo, no direito a liberdade de expresso, por um lado, € no direito de no ser enganado, excitado, escandalizado, injuriado, difamado, vili- pendiado, por outro. Nesses casos, que so a maioria, deve-se falar de direitos fundamentais nao absolutos, mas relativos, 00 sentido de que a tutela deles encontra, em certo pouty, wit limite insuperével na cutela de um direito igualmente funda- mental, mas concorrente. E, dado que é sempre uma questo de opinido estabelecer qual 0 ponto em que um termina ¢ 0 outro comeca, a delimitaggo do ambito de um direito funda- mental do homem € extremamente varidvel ¢ nfio pode ser estabelecida de uma vez por todas. 42 Alguns artigos da Convengio Européia dos Direitos do Homem sio, como se sabe, divididos em dois parégrafos, primeiro dos quais enuncia 0 direito, enquanto 0 outro enu- mera as restricGes, freqlientemente numerosas, Além disso, hi sicuagdes em que até mesmo um direito que alguns grupos consideram fundamental nfo consegue fazer-se reconhecer, pois continua a predominar o direito fundamental que the é con- traposto, como € 0 caso da objegio de consciéncia. O que é 2 © dircite de ‘nde mata vu o direico da coletividade em seu conjunto de ser defendida contra uma agressio externa? Com base em que critério de valor uma tal questo pode ser resolvida? Minha consciéncia, 0 sistema de valores do grupo a que pertengo, ou a consciéncia moral da humanidade num dado momento hist6rico? E quem nio per- cebe que cada um desses critérios € extremamente vago, de- masiado vago para a concretizagio daquele principio de cerceza de que parece ter necessidade um sistema jurfdico para poder diseribuir imparcialmente a razio e a nfio-razio? Quando digo que os direitos do homem consticuem uma categoria heterogénea, refiro-me ao fato de que — desde quando passaram a ser considerados como diteitos do homem, além dos dizeitos de liberdade, também os diseitos sociais — a categoria em seu conjunto passou a conter direitos entre si incompatfveis, ou seja, direitos cuja protegdo ndo pode ser concedida sem que seja restringida ou suspensa a proteco de outros. Pode-se fan- tasiar sobre uma sociedade 20 mesmo tempo livre e justa, na qual sio global e simultaneamence realizados os direitos de liberdade € os direitos sociais; as sociedades reais, que remos diance de nés, sio mais livres na medida em que menos justas e mais justas na medida em que menos livres. Esclarego dizendo que chamo de “liberdades” os direitos que sio garancidos quan- do o Estatlo nao inceavein; € de “poderes” os direitos que exigem uma intervengio do Estado para sua efetivagio. Pois bem: |i berdades e poderes, com freqiiéncia, nio so — como se cré — complementares, mas incompativeis. Para dar um exemplo ba- nal, 0 aumento do poder de comprar auroméveis diminuiu, até quase paralisar, a liberdade de citculagio. Outro exempio, um pouco menos banal: a extensio do dircito social de ir a escola 43 até os catorze anos suprimiu, na Icélia, a liberdade de escolher um tipo de escola € nao outro. Mas talvez nao haja necessidade de dar exemplos: a sociedade hist6rica em que vivemos, carac- terizada por uma organizacdo cada vez maior em vista da efi- ciéncia, € uma sociedade em que a cada dia adquirimos uma fatia de poder em troca de uma falta de liberdade. Essa distingao entre dois tipos de direitos humanos, cuja realizagio total simultanea € impossivel, € consagrada, de resto, pelo fato de que tambem no piano teorico se encontram frente a frente € se opdem duas concepsées diversas dos direitos do homem, a li- beral a socialisea, A diferenca entre as suas concepgdes consiste precisamente na convicgio de ambas de que, entre os dois tipos de direito, € preciso escolher ou, pelo menos, estabelecer uma ordem de prioridade, com @ conseqtiente diversidade do cricétio da es- colha ¢ da ordem de prioridade. Embora cada uma delas tenha pretendido fazer uma sfntese, a hist6ria submeteu a uma dura prova os regimes que as representavam. O que podemos esperar do desenvolvimento dos dois tipos de regime ndo é uma sfncese definitiva, mas, no méximo, um compromisso (on seja, uma sfotese, mas provis6ria). Mais uma vez, porém, coloca-se a ques- to: quais sero os critécios de avaliago com base nos quais se tentard 0 compromisso? Também a essa questio ninguém € capaz de dar uma resposta que permita 2 humanidade evitar © perigo de incorrer em erros trégicos. Através da proclamagio dos direitos do homem, fizemos emergit os valores fundamen- tais da civilizagfo humana até o presente. Isso é verdade. Mas os valores tiltimos so antinémicos: e esse é 0 problema. Uma tiltima consideragao. Falei das dificuldades que sux- gem no préprio seio da categoria dos direitos do homem con- siderada em sua complexidade. Cabe ainda mencionar uma dificuldade que se refere as condigdes de realizacio desses di- reitos. Nem tudo 0 que € desejavel e merecedor de ser perse- guido é realizavel. Para a sealizacio dos direitos do homem, so freqiientemente necessérias condigdes objetivas que no depen- dem da boa vontade dos que os proclamam, nem das boas disposigdes dos que possuem os meios para protegé-los. Mesmo (© mais liberal dos Estados se encontra na necessidade de sus- 44 pender alguns direitos de liberdade em tempos de guerra; do mesmo modo, o mais socialista dos Estados nao tera condigoes de garantit 0 direito a uma retribuigao justa em épocas de carestia, Sabe-se que 0 tremendo problema diante do qual estio hoje 0s pafses em desenvolvimento € 0 de se encontrarem em condigées econdmicas que, apesar dos programas ideais, nao permitem desenvolver a protecio da maioria dos direitos so- ciais. O direito ao trabalho nasceu com a Revoluggo Industrial we ligady & sua cousecucao. Quanto a esse direito, nao basta fundamenté-lo ou proclamé-lo, Nem tampouco basta provegé-lo. O problema da sua realizagdo nao é nem filosofico fem moral. Mas tampouco € um problema juridico. E um problema cuja solugto depende de um certo desenvolvimento da sociedade e, como tal, desafia até mesmo a Constituigio mais evoluida ¢ p5e em crise até mesmo o mais perfeico mecanismo de garantia jurfdica. Creio que uma discussio sobre os direitos humanos deve hoje levar em conta, para nfo correr o risco de se tornar aca- démica, todas as dificuldades procedimentais e substantivas, As quais me referi hrevemente. A efetivagio de uma maior protecio dos direitos do homem esté ligada ao desenvolvimento global da civilizaggo humana, B um problema que nfo pode ser isolado, sob pena, no digo de nao resolvé-lo, mas de sequer compreendé-lo em sua real dimensio. Quem o isola jé 0 perdeu. Nio se pode pdr 0 problema dos direitos do homem abscraindo- © dos dois grandes problemas de nosso tempo, que sao os problemas da guerra ¢ da miséria, do absurdo contraste entre © excesso de poténcia que criou as condigées para uma guerra exterminadora e 0 excesso de impoténcia que condena grandes massas humanas a fome. Sé nese contexto € que podemos nos aproximar do problema dos direitos com senso de realismo, Nio devemos ser pessimistas a ponto de nos abandonarmos 20 desespero, mas também nao devemos ser to otimistas que nos tornemos presungosos. ‘A quem pretenda fazer um exame despreconceituoso do desenvolvimento dos direitos humanos depois da Segunda Guerra Mundial, aconselharia este salucar exerc{cio: ler a De- claragéo Universal € depois olhar em torno de si. Sera obrigado 45 a reconhecer que, apesar das antecipagoes iluminadas dos filé- ma di discriminazione cazziale", in Rivista di dirittointernacionalle, sofos, das corajosas formulages dos juristas, dos esforgos dos L (1967), pp. 270-336, bem como & bibliografia nele citada. 8. Esses problemas so tratados com maior amplitude no artigo de politicos de boa vontade, o caminho a percorrer é ainda longo. Cae ee eS rend com Zpaice tmplicade oe wee E ele terd a impressio de que a hist6ria humana, embora velha ddo catatuto de OIF c para o art, VIII do estatuto de UNESCO, de milénios, quando comparada as enormes tarefas que esté 9. Do “Prefécio” de G. Sperduci a La Convenzione exrapea dei diritti diante de nés, calvez tenba apenas comecado. dill uomo, Bstrasburgo, Consiglio d'Europe, 1962. Notas 1. CE "Sobre os fandamentos dos direitos do homem", supra, pp. 19-20, 2. Trata-se do discurso de abercura que pronunciei no Simpésio In- ternacional dos Direitos do Homem, realizado entre 1° ¢ 3 de de- zembro de 1967, em Turim, por iniciativa da Sociedade Iealiana para a Organizacio Internacional 3. Retiro a citagio de La Comunita Internazionale, XXII (1967), p. 337. Para essa e outras informacées, vali-me do artigo de F Ca- potorti, “Le Nazioni Unite per il progresso dei dirieti dell'uomo. Risultati € prospettive", in La Gomunita Internazuionale, XXUL G96), pp. 11-39. 4, Refiro-me a0 Pacto Internacional sobre as Direitas Econimico, Sociais ¢ Culsurais, aprovado, juncamente com o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Politica, pela Assembléia Geral das Nagées Unidas, em 16 de dezembro de 1966. 5. Sobre esse ponto, detive-me em outro local: “Eguaglianza e dignica degli uomini", in Diritti dell'uomo e Nezioni Unite, Pédwa, Celam, 1963, pp. 29-42 6. E Oppenheim, Dimension’ della libers2, Milo, Reltrinelli, 1964, pp. Bless. 7, Bsa classificagdo deve ser tomada cum grano salis: vem sempre € facil distinguir onde termina a promogio ¢ onde comega 0 controle, onde termina o controle e onde comeca a garantia, Trata-se de um continuum, 00 qual, por comodidade didética, podem-se distinguir trés momentos. Para um maior aprofundamento do problema, re- meto aos dois estuclos de A. Cassese, “Il controllo internazionale sul rispetto della liberra sindicale nel quadro delle ateuali cendenze in materia di protezione internazionale dei diritti dell'uomo", in Comuicazioni e studi, Istituco di dirieto internazionale e seraniero del Universita di Milano, 1966, pp, 293-418; ¢ “Il sistema di sgaranzia della Convenzione dell'ONU sull’eliminazione di ogni for- i 46 au A ERA DOS DIREITOS ‘do faz muico tempo, um entrevistador — ap6s uma longa Nieccversa sobce at concteritien de note tempo que des- pertam viva preocupacio para o futuro da humanidade, sobre- tudo trés, 0 aumento cada vez maior e até agora incontrolado da populagio, 0 aumento cada vez mais sipido ¢ até agora incontrolado da degradagio do ambiente. 0 aumento cada vez mais répido, incontrolado e insensato do poder destrutivo dos armamentos — pezguntou-me, no final, se, em meio a tancas ptevisiveis causas de infelicidade, eu via algum sinal positivo. Respondi que sim, que via pelo menos um desses sinais: a ctescente importancia atribufda, nos debates internacionais, en- tre homens de cultura € politicos, em semindrios de estudo ¢ em conferéncias governamentais, a0 problema do reconheci- mento dos direitos do homem. problema, bem entendido, no nasceu hoje, Pelo menos desde 0 inicio da era moderna, através da difusio das doutrinas jusnaturalistas, primeiro, e das Declaragées dos Direitos do Homem, incluidas nas Constituigdes dos Estados liberais, de- pois, © problema acompanha 0 nascimento, 0 desenvolvimento, a afirmacio, numa parte cada vez mais ampla do mundo, do Estado de direito, Mas € também verdade que somente depois da Segunda Guerra Mundial € que esse problema passou da esfera nacional para a internacional, envolvendo — pela pri- meira vez na histéria — todos os povos. 49 Reforgaram-se cada vez mais 0s trés processos de evolucdo na histéria dos direitos do homem, apresentados ¢ comentados na “Introducio geral” a antologia de documentos, editada por Gregorio Peces Barba, Derecho psitivo de los derechos bumanos:! conversio em diteito positivo, generalizacio, internacionalizagio. 1, Sao varias as perspectivas que se podem assumir para tratar do tema dos direitos do homem. Indico algumas delas: tilosotica, historica, écica, yusidica, politica, Cada uma dessas perspectivas liga-se @ todas as outras, mas pode também ser assumida separadamente. Para o discurso de hoje, escolhi uma perspectiva diversa, que reconhego ser arriscada, e talvez até pretensiosa, na medida em que deveria englobar e superar todas as outras: a perspectiva que eu s6 saberia chamar de filosofia da historia. Sei que a filosofia da histéria est4 hoje desacreditada, par- ticulaemente no ambiente cultural italiano, depois que Bene- detto Croce Ihe decretou a morte. Hoje, a filosofia da hist6ria 6 considerada uma forma de saber tipica da cultura do século XIX, algo jé supcrado, Talvez a tltima grande tentativa de filosofia da histéria tenha sido a obra de Karl Jaspers, Vom Ursprung und Ziel der Geschichte (1949),’ que — apesar do fas- cinio que emana da representaco do curso hist6rico da huma- nidade através de grandes épocas — foi rapidamente esquecida € no provocou nenhum debate sério. Mas, diante de um grande tema, como o dos direitos do homem, é dificil resistir 4 tentagao de ir além da histéria meramente narrativa. De acordo com a opiniio comum dos historiadores, tanto dos que a acolheram como dos que a recusaram, fazer filosofia da histéria significa, diance de um evento ou de uma série de eventos, pér 0 problema do “sentido”, segundo uma concepgio finalistica (ou teleol6gica) da hist6ria (¢ isso vale ndo apenas para a histéria bumana, mas também para a hist6ria natural), consi- derando 0 decusso histérico em seu conjunto, desde sua origem até sua consumacdo, como algo orientado para um fim, para um 1dlos, Paza quem se situa desse ponto de vista, os eventos deixam de ser dados de fato a descrever, a natrar, a alinhar no tempo, evencualmente a explicar segundo as técnicas e procedimentos 50 de investigagao, consolidados ¢ habitualmente seguidos pelos historiadores, mas se tornam sinais ou indivios reveladores de um rocesso, no necessariamente intencional, no sentido de uma diregdo preestabelecida. Apesar da desconfianca, ou até mesmo da aversio, que o historiador experimenta diante da filosofia da histéria, serd que podemos excluir inteiramente que, na narrativa histérica de grandes eventos, oculta-se uma perspectiva finalista, influenciar quando narra os eventos do seu desenlace final na Grande Revolugio? Como pode subtrair-se & tentagio de in- terpreté-los como sinais premonitérios de uma meta preesta- belecida e ja implicita neles? © homem é um animal celeolégico, que atua geralmente ‘em fungao de finalidades projecadas no futuro. Somente quando se leva em conta a finalidade de uma acio € que se pode com- preender o seu “sentido”. A perspectiva da filosofia da histéria representa a transposicao dessa interpretagio finalista da acéo de cada individuo para a humanidade em seu conjunto, como se a humanidade fosse um individuo ampliado, 20 qual atribuimos as caracceristicas do individuo reduzido. O que torna a filosofia da hist6ria problematica € precisamente essa transposicao, da qual nao podemos fornecer nenhuma prova convincente. O im- portante é que quem cré oportuno operat essa transposigao, seja ela legitima ou nao do ponto de vista do historiador profissional, deve estar consciente de que passa a se mover num terreno que, com Kant, podemos chamar de histéria profética, ou seja, de uma histéria cuja fungio no é cognoscitiva, mas aconselhadora, exortativa ou apenas sugestiva, 2. Num de seus iiltimos escritos, Kant pés a seguinte questio: "Se 0 género humano esté em constante progresso Para o melhor.” A essa pergunta, que ele considerava como pertencendo a uma concepeio profética da histéria, julgou ser possfvel dar uma resposta afirmativa, ainda que com alguma hesitacao. Buscando identificar um evento que pudesse ser consi derado como um “sinal” da disposigio do homem a progredis, 51 ele 0 indicou no entusiasmo que despertara na opinio péblica mundial a Revolugio Francesa, cuja causa s6 podia ser “uma disposigo mosal da humanidade". O verdadeiro entusiasmo —comentava ele — refere-se sempre ao que é ideal, ao que € puramente moral (...), € ndo pode residir no interesse in- dividual.” A causa desse entusiasmo — e, portanto, o sinal premonitério (signum prognosticum) da disposigao moral da hu- manidade — era, segundo Kant, o aparecimento, no cenério da historia, do “direito que tem um povo de ni ser impedide, por outras forcas, de dar a si mesmo uma Constituicao civil que julga bo”. Por “Constieui¢ao civil” Kant entende uma Constituigéo em harmonia com os direitos naturais dos ho- mens, ou seja, uma Constituigao segundo a qual “os que obe- decem a Iei deverm também, reunidos, legisla”? Definindo 0 direito natural como 0 direito que todo ho- mem tem de obedecer apenas & lei de que ele mesmo é legis- lador, Kane dava uma definicio da liberdade como autonomia, como poder de legisla para si mesmo, De resto, no inicio da Metafisica dos costumes, escrita na mesma €poca, afirmara sole- nemente, de modo apeditico — coma se a afirmagia nao pn- desse ser submetida a discussio —, que, uma vez. entendido 0 direito como a faculdade moral de obrigar outros, o homem tem direitos inatos e adquiridos; ¢ 0 tinico diceito inato, ov seja, transmicido ao homem pela natureza e no por uma au- toridade constituida, € a liberdade, isto é a independéncia em face de qualquer constrangimento imposto pela vontade do outro, ou, mais uma vez, a liberdade como autonomia. Inspirando-me nessa extraordinéria passagem de Kant, ex- ponho a minha ese: do ponto de vista da filosofia da hist6ria, © atual debate sobre os dircitos do homem — cada vez mais, amplo, cada vez mais intenso, tio amplo que agora envolveu todos os poves da Terra, tio intenso que foi posto na ordem do dia pelas mais autorizadas assembléias incernacionais — pode ser interpretado como um “sinal premonit6rio” (sigaum prognosticum) do progresso moral da humanidade. ‘Nido me considero um cego defensor do progresso. A idéia do progresso foi uma idéia central da filosofia da histéria nos séculos passados, depois do crepiisculo, embora nao definitivo, 52 da idéia da regressio (que Kant chameva de terrorista) e dos ciclos, predominantes na época clissica e pré-cristd. E, a0 dizer “definitivo”, j4 sugiro a idéia de que 0 renascimento continuo de idéias do passado, que em determinada época eram consi- deradas mortas para sempre, € jd por si mesmo um argumento contra a idéia do progresso indefinido e irreversivel. Contudo, mesmo nao sendo um defensor dogmético do progresso irre- sistivel, campouco sou um defensor igualmente dogmitico da idgia Wuudiia. A Guita afiungiu que cumsideru poder facer com certa seguranga € que a hist6ria humana é ambigua, dando respostas diversas segundo quem a interroga e segundo 0 ponto de vista adotado por quem a interroga. Apesar disso, no po- demos deixar de nos interrogar sobre 0 destino do homem, assim como nfo podemos deixar de nos interrogar sobre sua origem, 0 que s6 podemos fazer — repito mais uma vez — escrutando os sinais que os eventos nos oferecem, tal como Kant 0 fez quando propés a questio de saber se 0 género humano estava em constante progeesso para o melhor, Decerto, uma coisa € 0 progresso cientifico e técnico, ‘outta é © progressa moral. Nao se trata de reromar a antiga controvérsia sobre a relagio entre um e outro. Limito-me a dizer que, enquanto parece indubitével que 0 progresso técnico e cientifico é efetivo, tendo mostrado até agora as duas carac- terfsticas da continuidade ¢ da irreversibilidade, bem mais di- ficil — se nfo mesmo arriscado — enfrentar 0 problema da efetividade do progresso moral, pelo menos por duas raz6es 1. O préprio conceito de moral € problemético. 2. Ainda que todos estivéssemos de acordo sobre 0 modo de entender a moral, ninguém até agora encontrou “indicado- res” para medir 0 progresso moral de uma nagio, ou mesmo de toda a humanidade, tio claros quanto 0 sio os indicadores que servem para medir 0 progresso cientifico e técnico. 3. O conceito de moral é problematico. Nao pretendo, certamente, propor uma solugio. Posso simplesmente dizer qual é, em minha opinigo, 0 modo mais dtil para nos apro- ximarmos do problema, qual € 0 modo, também pedagogi- camente mais eficaz, para fazer compreender a natureza do 33 problema, dando assim um sentido aquele conceito obscuris- simo, salvo para uma visio religiosa do mundo (mas aqui busco encontrar uma resposta do ponto de vista de uma ética racio- nal), que € habitualmente designado com a expresso “cons- ciéncia moral”. Na verdade, Kant dizia que, juntamente com ‘0 céu estrelado, a consciéncia moral era uma das duas coisas que o deixavam maravilhado; mas a maravilha nio s6 no uma explicagio, mas pode até derivar de uma ilusio e gerar, por sua vez, outsas ulusdes. U que nos chamamos de “cons ciéncia moral”, sobretudo em fungio da grande (para nfio dizer exclusiva) influéncia que ceve a educagio crist na formacio do homem europeu, é algo relacionado com a formacio ¢ 0 crescimento da consciéncia do estado de sofrimento, de indi- géncia, de pentiria, de miséria, ou, mais geralmente, de infe- licidade, em que se encontra 0 homem no mundo, bem como ao sentimento da insuportabilidade de cal estado. Como disse antes, a histéria humana é ambfgua para quem se pde o problema de attibuir-lhe um “sentido”. Nela, o bem € 0 mal se misturam, se contrapdem, se confundem, Mas quem ovsaria negar que mal sempze prevaleceu sobre 0 bem, a doz sobre a alegria, a infelicidade sobre a felicidade, a morte sobre a vida? Sei muito bem que uma coisa constatar, outa é explicar ¢ justificar. De minha parte, nfo hesito em afismar que as explicacGes ou justificacSes teolégicas nio me convencem, que as racionais so parciais, e que elas esto freqiientemente em tal contradigio reciproca que nfo se pode acolher uma sem excluir a outra (mas os critérios de escolha sfo frageis e cada um deles suporta bons argumentos), Apesar de minha incapa- cidade de oferecer uma explicagio ou justificagéo convincente, sinto-me bastance tranqiiilo em aficmar que a parte obscura da histéria do homem (e, com maior razo, da natureza) é bem mais ampla do que a parte clara Mas nfo posso negar que uma face clara apareceu de tem- pos em tempos, ainda que com breve duracio. Mesmo hoje, quando o inteiro decurso hist6rico da humanidade parece amea- gado de morte, ha zonas de luz que até 0 mais convicto dos pessimistas nao pode ignorar: a aboligio da escravidao, a su- pressio em muitos paises dos suplicios que outrora acompa- 34 nhavam a pena de morte ¢ da propria pena de morte. E nessa zona de luz que coloco, em primeiro lugar, juntamente com ‘os movimentos ecolégicos e pacifistas, o interesse crescente de movimentos, partidos e governos pela afirmagio, reconheci- mento e protecio dos direitos do homem. ‘Todos esses esforgos para o bem (ou, pelo menos, para a corregao, limitagao e superagao do mal), que sio uma ca- racteristica essencial do mundo humano, em contraste com Johd pouco falei, do estado de softimento e de infelicidade em que o homem vive, do que resulca a exigéncia de sair de tal estado. O homem sempre buscou superar a consciéncia da morte, que gera angiistia, seja através da integragdo do individuo, do ser que morre, no grupo a que pertence e que & considerado imor- ral, seja através da crenga eeligiosa na imortalidade ou na ren carnagio. A esse conjunco de esforcos que 0 homem faz para transformar o mundo que o circunda e torn4-lo menos hostil, pertencem tanto as técnicas produtoras de instrumentos, que se voltam para a transformacio do mundo material, quanto ‘as regras de conduta, que se volram para a modificacan das telagdes interindividuais, no sentido de cornar possivel uma convivéncia pacifica e a prdpria sobrevivéncia do grupo. Ins- trumentos e regtas de conduta formam o mundo da “cultura”, contraposto ao da “natureza”. Encontrando-se num mundo hostil, tanto em face da na- cureza quanto em relagio a seus semelhantes, segundo a hipétese hobbesiana do bomo homini lupus, 0 homem buscou reagir a essa dupla hostilidade inventando técnicas de sobrevivéncia com relagdo A primeira, e de defesa com relagdo & segunda. Estas Ultimas sfo representadas pelos sistemas de regras que reduzem os impulsos agressivos mediante penas, ou estimulam os im- pulsos de colaboragio e de solidariedade através de prémios. No infcio, as regras sio essencialmente imperativas, ne- gativas ou positivas, € visam a obter comportamentos desejados ou a evitar os no desejados, recorrendo a sancées celestes ou terrenas. Logo nos vém 4 mente os Dez mandamentos, para das- mos o exemplo que nos € mais familiar: eles foram durante séculos, € ainda o so, 0 cédigo moral por exceléncia do mundo © und animal, uascem de cousigucia, da gus 35 cristo, a ponto de serem identificados com a lei inscrita no coracio dos homens ou com a lei conforme 3 natureza. Mas podem-se aduzir outros intimeros exemplos, desde 0 Cédigo de Hamurabi até a Lei das doze tébuas. O mundo moral, tal como aqui 0 entendemos — como 0 remédio 20 mal que o homem, pode causar ao outro —, nasce com a formulacdo, a imposi @ a aplicagio de mandamentos ou de proibigées, e, portanto, do ponto de vista daqueles a quem sio dirigidos os manda- 15 si figura de6ntica origindtia € o dever, nao o direito. ‘Ao longo da histéria da moral entendida como conjunto de regras de conduta, sucedem-se por séculos cédigos de leis Gejam estas consuecudindrias, propostas por sébios ou impostas pelos detentores do poder) ou, entdo, de proposigdes que con- cém mandamentos e proibig6es. O heréi do mundo cléssico é © grande legislador: Minos, Licurgo, Sdlon. Mas a admiracio pelo legislador — por aquele que, “assumindo a iniciativa de fundar uma nacho, deve sentir-se capaz de mudar a natureza humana”! — chega até Rousseau. As grandes obras de moral so tratados sobre as leis, desde os Némoi TAs leis} de Platéo € © De legibus [Das leis] de Cicero até 0 Exprit des lois de Mon- tesquieu. A obra de Platio comega com as seguintes palavras: “Quem € que vocés consideram como © autor da instituigio das leis, um deus ou um homem?", pergunta o ateniense a Clinias; ¢ este responde: “Um deus, héspede, um deus." Quan- do Cicero define a lei natural, que caracteristicas Ihe atribui? Vetare et jubere: proibir e ordenar. Para Montesquieu, 0 homem — mesmo tendo sido feito para viver em sociedade — pode esquecer que existem também os outros. “Com as leis politicas e civis, os legisladores 0 restituiram aos seus deveres.”° De todas essas citagdes (mas infinitas oucras poderiam ser aduzi- das), resulta que a fancio primria da lei é a de comprimir, no a de liberar; a de restringir, néo a de ampliar, os espacos de liberdade; a de corrigir @ arvore torta, ndo a de deixé-la crescer selvagemente. ‘Com uma metéfora usual, pode-se dizer que direito e dever sfio como © verso € o reverso de uma mesma moeda. Mas qual é verso e qual € 0 reverso? Depende da posigo com que olhamos wucnios < as prvi: 56 ‘| moeda. Pois bem: a moeda da moral foi tradicionalmente olhada mais pelo lado dos deveres do que pelo lado dos direitos. Nio € dificil compreender as razdes. O problema da moral foi originariamente considerado mais do Angulo da sociedade do que daquele do individuo. E no podia ser de outro modo: aos cédigos de regras de conduta foi atribuida a fungio de proteger mais 0 grupo em seu conjunto do que o individu singular. Originariamente, a fungio do preceito “ni matat” mas a de impedir uma das razdes fandamentais da desagregagio do proprio grupo. A melhor prova disso é 0 fato de que esse preceito, considerado justamente como um dos fundamentos de moral, s6 vale no interior do grupo: no vale em relacio aos membros dos outros grupos. Para que pudesse ocorrer (expressando-me figurativamen- te, mas de um modo, que me parece suficientemente claro) 1 passagem do cédigo dos deveres para o cédigo dos direitos, era necessdtio invertet a moeda: o problema da moral devia ser considerado nfo mais do ponto de vista apenas da socie- dade, mas também daquele do individuo, Era necesséria uma verdadeira revolucio copernicana, se nfo no modo, pelo menos nos efeitos. Nao é verdade que uma revolucdo radical 6 possa ocorrer necessariamente de modo revolucionaério. Pode ocorrer também gradativamente. Falo aqui de revolugdo copernicana precisamente no sentido kantiano, como inversio do ponto de observacio. Para tornar compreensfvel essa inflexio, ainda que limi- tadamente a esfera politica (mas a politica € um capitulo da moral em geral), ocorreu-me utilizar esta outra contraposi¢ao: a relagdo politica por exceléncia é a relagdo entre governantes € governados, entre quem tem o poder de obrigar com suas decisoes os membros do grupo e os que estdo submetidos a essas decisdes. Ora, essa relago pode ser considerada do aingulo dos governantes ou do angulo dos governados. No curso do pensamento politico, predominou durance séculos o primeiro Angulo. Eo primeio angulo € 0 dos governantes. O objeto da politica foi sempre 0 governo, 0 bom governo ou o mau governo, ou como se conquista o poder e como ele € exercido, 37 quais so as fungées dos magistrados, quais sto os poderes atribufdos 20 governo e como se distinguem e interagem entre si, como se fazem as leis e como se faz para que sejam respei- tadas, como se declaram as guerras e se pactua a paz, como se nomeiam os ministros e os embaixadores. Basta pensar nas grandes metaforas mediante as quais, ao longo dos séculos, buscou-se tornar compreensivel a natureza da arte politica: 0 pastor, 0 cimoneiro, 0 condutor, o teceldo, o médico. ‘Todas se referem a atividades tfpicas da gawrrnante: a fangan de guia, da qual deve dispor para poder conduzir a sua prépria meta 0s individiuos que Ihe so confiados, tem necessidade de meios de comando; ou a organizago de um universo fracionado ne~ cessita de uma mio firme para ser estvel ou s6lida; os cuidados ia sobre um devem por vezes ser enérgicos para terem efic corpo doente. O individuo singular é essencialmente um objeto do poder ou, no méximo, um sujeito passivo. Mais do que de seus direi- tos, a tratadistica politica fala dos seus deveres, entre os quais ressalta, como principal, o de obedecer as leis. Ao tema do poder de comando, corresponde — do outro lado da relagio — o tema da obrigacio politica, que & precisamente a obrigacdo, conside- rada primédria para 0 cidadio, de observar as leis. Se se reconhece um sujeito ativo nessa relacio, ele nio € 0 individuo singular com seus direitos origindrios, vélidos também contra 0 poder de governo, mas € 0 povo em sua totalidade, na qual o individuo singular desaparece enquanto sujeito de direitos 4. A grande reviravolta teve inicio no Ocidente a paccir da concepgio crista da vida, segundo a qual todos os homens so irmaos enquanto filhos de Deus. Mas, na realidade, a fra- ternidade no tem, por si mesma, um valor moral. Tanto a histdtie sagiada quay profaia iis prOxinna de uGs uascent ambas — por um motivo sobre 0 qual especularam todos os intérpretes — de um fratricidio. A doutrina filoséfica que fez do individuo, e nao mais da sociedade, o ponto de partida para a construgéo de uma doutrina da moral e do direito foi o jus- naturalismo, que pode ser considerado, sob muitos aspectos (€ © foi certamente nas intengées dos seus criadores), a seculari- 58 zacgdo da ética crista (etsi daremus non esse deum). No estado de natureza, para Lucrécio, os homens viviam more ferarum (como animais); para Cicero, in agris bestiarum modo vagabantur (vaga- vam pelos campos como animais); e, ainda para Hobbes, com- portavam-se, nesse estado natural, uns contra os outros, como lobos. Ao contrétio, Locke — que foi o principal inspirador dos primeiros legisladores dos direitos do homem — comesa © capitulo sobre 0 estado de natureza com as seins palavras: “Dara entender ham 9 poder paliticn od y deve-se considera em que estado se encontram nacuralmente todos os homens; ¢ esse é um estado da perfeita liberdade de regular as ptéprias agdes e de dispor das préprias posses e das prOprias pessoas como se acreditar melhor, nos limites da lei de natureza, sem pedit permissao ou depender da vontade de nenhum outro."” Portanto, no principio, segundo Locke, nao estava 0 sofrimento, a miséria, a danagio do “estado ferino”, como 0 diria Vico, mas um estado de liberdade, ainda que nos limites das leis. Precisamente partindo de Locke, pode-se compreender como a doutrina dos direitos naturais pressupde uma concep¢io individualista da sociedade e, portanto, do Bstado, continu: mente combatida pela bem mais sdlida e antiga concepgio organicista, segundo a qual a sociedade € um todo, e o todo estd acima das partes. A concepgio individualista custou a abrie caminho, jé que foi geralmente considerada como fomentadora de desuniio, de discérdia, de ruptura da ordem constituida. Em Hobbes, surpreende 0 contraste entre o ponto de partida individualista (n0 estado de natureza, hd somente individuos sem ligagdes teciprocas, cada qual fechado em sua prépria esfera de interesses ¢ em contradicao com os interesses de todos os outros) © a persistente figuracao do Estado como um corpo ampliado, um. “homem artificial”, no qual o soberano é a alma, os magistrados so as articulagdes, as penas e os prémios so 0s nervos, etc. A concepgio organica € t&o persistente que, ainda nas vésperas da Revolugio Francesa, que proclama os direitos do individuo diante do Estado, Edmund Burke escreve: “Os individuos pas- sam como sombras, mas 0 Estado € fixo e estivel,”* E, depoi 59 da Revolugéo, no pesiodo da Restauragiio, Lamennais acusa 0 individualismo de “destruir a verdadeira idéia da obediéncia e do dever, destruindo com isso 0 poder e o direito”. E, depois, pergunta: “E 0 que resta, entio, senfio uma tersfvel confusio de interesses, paixdes ¢ opinides diversas?” Concepgio individualista significa que primeiro vem o individuo (0 individuo singular, deve-se observar), que cem valor em si mesmo, € depois vem o Estado, e no vice-versa, jé que o Fstada feira pelo individuo e este nao € feito pelo Estado; ou melhor, para citar 0 famoso artigo 2° da Declaragiio de 1789, a conservacéo dos direitos naturais e imprescritiveis do homem “é o objetivo de toda associagdo politica”, Nessa inversio da relagio entre individuo e Estado, é invertida tam- bém a relacio tradicional entre direito e dever. Em relacio aos indivéduos, doravante, primeiro vém os direitos, depois os de- veres; em relagéo ao Estado, primeiro os deveres, depois os diseitos. A mesma inversao ocorre com relagao a finalidade do Estado, a qual, para 0 organicismo, € a concordia ciceroniana (a oménoia dos gregos), ou seja, a luta contra as facgBes que, dila~ cerando 0 corpo politico, 0 matam; e, para 0 individualismo, ¢ © crescimento do individuo, tanto quanto possivel livre de con- dicionamentos externos. © mesmo ocorre com relagio ao tema da justica: numa concepgio organica, definigéo mais apropria- da do justo é a platénica, para a qual cada uma das partes de que é composto 0 corpo social deve desempenhar a fungi Ihe € propria; na concepcio individualista, ao contrério, justo 6 que cada um seja tratado de modo que possa satisfazer as préprias necessidades e atingir os proprios fins, antes de mais nada a felicidade, que € um fim individual por exceléncia. E hoje dominante nas ciéncias sociais a orientag&o de es- tudos chamada de “individualismo metodolégico”, segundo a qual v estulu da suciedade deve partir do estudo das agdes do in- dividuo. Nao se trata aqui de discutir quais sto os limites dessa orientagao; mas ha duas outras formas de individualismo sem as quais 0 ponto de vista dos direitos do homem se torna incompreensfvel: 0 individualismo ontolégico, que patte do pres- suposto (que eu nao saberia dizer se é mais metafisico ou teo- I6gico) da autonomia de cada individuo com relacio 2 todos 60 0s outros ¢ da igual dignidade de cada um deles; ¢ indivi- dualismo éio, segundo 0 qual todo individuo € uma pessoa moral. Todas essas trés vers6es do individualismo contribuem para dar conotagio positiva a um cermo que foi conotado ne- gativamente, quer pelas correntes de pensamento conservador @ reacionério, quer pelas revoluciondrias, O individualismo é a base filoséfica da democracia: uma cabeca, um voto, Como tal, sempre se contrapés (e sempre se contrapora) as concep¢des hoiisticas da sociedade e da histora, qualquer que seja a proce- déncia das mesmas, concepgdes que tém em comum 0 desprezo pela democracia, entendida como aquela forma de governo na qual todos sio livres para tomar as decisdes sobre 0 que Ihes diz respeito, ¢ tém o poder de faz8-lo. Liberdade ¢ poder que detivam do reconhecimento de alguns direitos fundamentais, inaliendveis e invioléveis, como é 0 caso dos direitos do homem Estou seguro de que me podem objetar que o reconhe- cimento do individuo como sujeito de direitos nao esperou pela revolugdo copernicana dos jusnaturalistas. O primado do direito Gus) sobre a obrigagio € um traco caracteristico do direito romano, tal como este foi claborado pelos juristas da época clssica, Mas trata-se, como qualquer um pode compro- vat por si, de direitos que competem ao individuo como sujeito econdmico, como titular de direitos sobre as coisas e como capaz de intercambiar bens com outros sujeitos econémicos dotados da mesma capacidade. A inflexio a que me referi, e que serve como fundamento pata 0 reconhecimento dos direitos do homem, ocotre quando esse reconhecimento se amplia da esfera das relagdes econdmicas interpessoais para as celagdes de poder entre principe e stiditos, quando nascem os chamados dizeitos ptiblicos subjetivos, que caracterizam 0 Estado de di- reito. E com o nascimento do Estado de direito que ocorre a passagem final do ponto de vista do principe para o ponto de vista dos cidadaos. No Estado despético, os individuos singu- lates s6 tém deveres e no direitos. No Estado absoluto, os individuos possuem, em relagio a0 soberano, diteitos privados. No Estado de direito, o individu cem, em face do Estado, no 36 direitos privados, mas também direitos ptiblicos. O Estado de direito € o Estado dos cidadaos. 61 5. Desde seu primeiro aparecimento no pensamento po- Litico dos séculos XVII e XVII, a doutrina dos direitos do homem jé evoluiu muito, ainda que entre contradigées, cefi- tages, limitagBes. Embora a meta final de uma sociedade de livres e iguais, que reproduza na realidade 0 hipotético estado de natureza, precisamente por ser ut6pica, nao tenha sido al- cangada, foram percorridas varias etapas, das quais no se po- deré facilmente voltar atrés. . . . ‘Além de processos de conversao em direito positivo, de generalizagio ¢ de internacionalizagio, aos quais me referi no inicio, manifestou-se nestes Gltimos anos uma nova linha de tendéncia, que se pode chamar de especificagay; ela consiste fna passagem gradual, porém cada vez mais acentuada, para uma ulterior determinagdo dos sujeitos titulares de direitos. ‘Ocorreu, com relagao 20s sujeitos, o que desde o infcio ocorrera com ‘elagio & idéia abstrata de liberdade, que se foi pro- _gressivamente determinando em liberdades singulates e con- creas (de consciéncia, de opinido, de imprensa, de reuniio, de associagéo), numa progress ininterrupta que prossegue até hoje: basta penzar na tutela da prdpria imagem diante da invasio dos meios de teprodugio ¢ difusto de coisas do mundo exterior, ou na tutela da privacidade diante do aumento da capacidade dos poderes ptiblicos de memorizar nos préprios arquivos os dados privados da vida de cada pessoa. Assim, com telagio ao abstrato sujeito “homem”, que jd encontrara uma primeira especificagéo no “cidadao” (no sentido de que podiam ser atribufdos 20 cidadio novos direitos com relagao 20 homem em geral), fez-se valer 2 exigéncia de responder com nova especificagdo A seguinte questo: que homem, que cidadaio? Essa especificacio ocorreu com relagao seja ao género, seja as varias fases da vida, seja 2 diferenca entre estado normal ¢ estados excepcionais na existéncia humana. Com telagio ao géneto, foram cada vez mais reconhecidas as diferengas espe- Cfficas entre a mulher ¢ 0 homem. Com relagéo as varias fases da vida, foram-se progressivamente diferenciando os diccitos da infancia e da velhice, por um lado, e os do homem adulto, por outro. Com relagio aos estados notmais e excepcionais, 62 fez-se valer a exigéncia de reconhecer direitos especiais aos doentes, aos deficientes, aos doentes mentais, etc, Basta folhear os documentos aprovados nestes tltimos anos pelos organismos internacionais para perceber essa ino- vaio. Refiro-me, por exemplo, a Declarapdo dos Direitos da Crianga (1959), & Declaragio sobre a Eliminagao da Diseriminagao @ Mulber (1967), & Declaragdo dos Direitos do Deficiente Mental (1971). No que se refere aos direitos do velho, hé varios do- als, quc sc succdcian: apie @ Asscu mundial ocortida em Viena, de 26 de julho a 6 de agosto de 1982, a qual pés na ordem do dia o tema de novos pro- gramas internacionais para garantir seguranga econémica ¢ so- cial aos velhos, cujo nimero esté em continuo aumento. Olhando para o futuro, jé podemos entrever a extensio da esfera do direito a vida das geragdes fucuras, cuja sobrevi véncia € ameacada pelo crescimento desmesurado de armas cada vez mais destrutivas, assim como a novos sujeitos, como os animais, que a moralidade comum sempre considerou apenas como objetos, ou, n0 maximo, como sujeitos passivos, sem direitos. Decerto. todas essas novas perspectivas fazem parte do que eu chamei, inicialmente, de hist6ria profética da hu- manidade, que a hist6ria dos historiadores — os quais se per- mitem apenas uma ou outra previsio puramente conjuncural, ‘mas recusam, como algo estranho a sua tarefa, fazer profecias — nio aceita tomar em consideragao. Finalmente, descendo do plano ideal 20 plano real, uma coisa € falar dos direitos do homeni, direitos sempre novos € cada vez mais extensos, e justificé-los com argumentos con- vincentes; outta coisa é garantis-lhes uma protecdo efetiva. So- bre isso, é oportuna ainda a seguinte consideracéo: 4 medida que as pretensdes aumentam, a satisfagio delas torna-se cada vez mais diticil, Os direitos sociais, como se sabe, sio mais dificeis de proteger do que os dircitos de liberdade. Mas sa- bemos todos, igualmente, que a protecio internacional € mais, dificil do que a protecio no interior de um Estado, particu- larmente no interior de um Estado de diteito, Poder-se-iam multiplicar os exemplos de contraste entre as declaragées sole- nes € sua consecucio, entre a grandiosidade das promessas ¢ a 63 miséria das realizagdes. Jé que interpretei a amplitude que assumiu atualmente o debate sobre os direitos do homem mo um sinal do progresso moral da humanidade, nfo seré inoportuno repetir que esse crescimento moral nfo se men- sura pelas palavras, mas pelos fatos. De boas intengSes, 0 in- ferno esté cheio. Concluo: disse, no infcio, que assumir o ponto de vista da filosofia da hist6ria significa levantar 0 problema do sentido da hist6ria. Mas a hist6ria, em si mesma, tem um sentido, a histéria enquanto sucesso de eventos, tais como sio narrados pelos historiadores? A hist6ria tem apenas o sentido que nés, ‘em cada ocasiao concreta, de acordo com a oportunidade, com nossos desejos € nossas esperancas, atribufmos a ela. E, por- tanto, nfo tem um tinico sentido, Refletindo sobre o tema dos direitos do homem, pareceu-me poder dizer que ele indica um sinal do progresso moral da humanidade. Mas é esse 0 tinico sentido? Quando reflico sobre outros aspectos de nosso tempo — por exemplo, sobre a vertiginosa corrida armamentisca, que poe em perigo a propria vida na Terra —, sinto-me obrigado ‘a dac uma resposta completamente diversa. Comiecei com Kant, Concluo com Kant. O progresso, para ele, no era necessdrio, Era apenas possivel. Ele criticava ‘os “politicos” por nao terem confianca na virtude e na forca da motivagio moral, bem como por viverem repetindo que “o mundo foi sempre assim como o vemos hoje”. Kant co- mentava que, com essa atitude, tais “politicos” faziam com que 0 objeto de sua previsio — ou seja, a imobilidade e a monétona repetitividade da hist6ria — se realizasse efetiva- mente, Desse modo, retardavam propositalmente os meios que poderiam assegurar 0 progresso para o melhor. Com relacdo as grandes aspiracbes dos homens de boa vontade, jd estamos demasiadamente atrasados. Busquemos ado aumentar esse atraso com nossa incredulidade, com nossa indoléncia, com nosso ceticismo, Nao temos muito tempo a perder. Notas 1. G, Peces-Barba (org.), Derecho postive de lor derechos bumanat, Madi Editorial Debate, 1987, pp. 13-14. 2. K. Jaspers, Origine ¢ senso della storia, Milfo, Edixioni ci Comunita, 1965 (ed. de bolso, 1982). 3. 1. Kane, "Se il genere umano sia in costante progresso verso il meglio” (1798), in Id., Seritti politici di filoyfia della storia e de! dirisvo, Tasim, Utet, 1965, pp. 219-220 € 225 Tel. Rousseau. 0 contrato social. 17 5. Platiio, Leis, 624 a. Montesquieu, O epérito dat his, Livro I, cap. 1 J. Locke, Segundo tratado sobre 0 governo, Ul, 4. . E, Burke, “Speeche on the Economic Reform” (1780), in Works, yol. Ul, Londres, 1906, p. 357. Ef, Lamennais, "Des progeés de la révolution et de la guerre contre 1église” (1829), in Eurres complter, IX, Patis, 1836-1837, pp. 17-18, Excraf essa citacio, bem como a ancerios, de 8. Lukes, Individualism, Oxford, Blackwell, 1985, pp. 3 € 7. ev esas 65 DIREITOS DO HOMEM E SOCIEDADE N” discurso geral sobre os direitos do homem, deve-se ter a preocupagio inicial de manter a distingio entre teoria e ptitica, ou melhor, deve-se ter em mente, antes de mais nada, que teoria e prética percorrem duas estradas diversas a velocidades mnico designais, Quero dizer que, nestes Gleimos anos, falou-se e continua a se falar de direitos do homem, entre eruditos, filésofos, juristas, socidlogos e politicos, muito mais do que se conseguiu fazer até agora para que eles sejam reco- nhecidos e protegidos efetivamente, ou seja, pata transformar aspirages (nobres, mas vagas), exigéncias (justas, mas débeis), em direitos propriamente ditos (isto é, no sentido em que os juristas falam de “direito”). Tendo sempre presente essa distinggo, a fim de nifo con- fandir dois planos que devem se manter bem distintos, pode-se afitmar, em geral, que o desenvolvimento da teoria e da prética (mais da teoria do que da prética) dos direitos do homem ocorreu, a partir do final da guerra, essencialmente em duas diregoes: na diregdo de sua universalizagao ¢ naquela de sua multiplicagio. Nao irei me deter aqui no processo de universalizacio, antes de mais nada porque me parece menos relevance para a sociologia do diteito, e depois porque o tema foi amplamente tratado na doutrina do direito internacional, que vé corteta- 67 mente, nesse processo, 0 ponte de partida de uma profunda transformagio do direito das “gentes”, como foi chamado du- rante séculos, em direito também dos “individuos”, dos in- divéduos singulares, os quais; adquirindo pelo menos potencialmente 0 direito de questionarem o seu proprio Es- tado, vao se transformando, de cidadaos de um Estado par- ticular, em cidadios do mundo. Tei me derer em particular no segundo processo, o da multiplicagio, pois ele se presta melhor a algumas considera Ses sobre as relacdes entre direitos do homem e sociedade, sobre a origem social dos direitos do homem, sobre a estreita conexo exisrente entre mudanga social ¢ nascimento de novos direitos, sobre temas que, em minha opinido, podem ser mais inceressantes para uma reunido de socidlogos do direito, de estudiosos cuja carefa especifica € refletir sobte 0 dircito como fendmeno social ‘Também os direitos do homem séo, indubitavelmente, um fendmeno social. Ou, pelo menos, sfo também um fend- meno social: e, entre os vérios pontos de vista de onde podem ser examinados (tilos6tico, juridico, economico, etc.), ha lugar para o sociolégico, precisamente o da sociologia juridice. Essa multiplicaco (ia dizendo “proliferagio”) ocorreu de trés modos: a) porque aumentou a quantidade de bens consi- derados merecedores de turela; b) porque foi estendida a titu- latidade de alguns direitos tfpicos a sujeitos diversos do homem; ©) porque 0 préprio homem nao é mais considerado como ente genérico, ou homem em abstrato, mas é visto na especificidade ou na concreticidade de suas diversas maneiras de ser em so- ciedade, como crianga, velho, doente, etc. Em substancia: mais bens, mais sujeitos, mais status do individuo. E supérfluo notar que, entic esses «8s processos, cxistcm rclagdes de interdepen- déncia: o reconhecimento de novos direitos de (onde “de” indica © sujeito) implica quase sempre o aumento de dizeitos a (onde “a” indica objeto). Ainda mais supérfluo é observar, 0 que importa para nossos fins, que todas as tr@s causas dessa multi plicacio cada vez mais acelerada dos direitos do homem revelam, de modo cada vez mais evidente e explicito, a necessidade de fazer referéncia a um contexto social determinado, 68 Com relagio a0 primeiro processo, ocorreu a passagem dos direitos de liberdade — das chamadas liberdades nese, tivas, de religiio, de opinifio, de imprensa, etc. — para os direitos politicos e sociais, que requerem uma intervengio di- reta do Estado. Com relagio ao segundo, ocorreu a passagem a consideragio do individuo humano xsi singulzs, que foi o primeiro sujeito ao qual se atribuiram direitos naturais (ou morais) =m onees palavas, da “pessoa” —, para sujeios € religiosas, toda a humanidade em seu conjunto (como no atual debare, enere filésofos da moral, sobre o direito dos p6s. teros A sobrevivéncia); e, além dos individues humanos con- siderados singularmente ou nas diversas comunidades reais 01 ideais que os kepresentam, até mesmo para sujeitos diferentes dos homens, como os animais, Nos movimentos ecolégicos, esté emergindo quase que um diceito da nacureza a ser res. peitada ou no explorada, onde as palaveas “eespeito” ¢ “ex. ploracdo” so exatamente as mesmas usadas ttadicionalmente tna definigio e justificagio dos direitos do homem. Com relacio a0 verceizo processo. 2 paseagem centre da homem genético — do homem enquanto homem — para 0 homem especifico, ou tomado na diversidade de seus diversos status sociais, com base em diferentes critérios de difecenciagio (@ sexo, a idade, as condigées fsicas), cada um dos quais revela diferengas especificas, que no permitem igual cratamento ¢ igual procecdo. A mulher é diferente do homem; a crianca do adulto; © adulto, do velho; o sadio, do doente; 0 doente temporério, do doente crénico; 0 doente mental, dos outros doentes; os fisicamente normais, dos deficientes, ete. Basta examinar as cartas de direitos que se sucederam no ambito internacional, nestes liltimos quarenta anos, para perceber esse fenémeno: em 1992, a Convengao sobre os Direitos Politicos da Mulher; em 1959, a Declaragio da Crianca; em 1971, a Declaragio dos Dizeitos do Deficiente Mental; em 1975, a Declaracio dos Direitos dos Deficientes Fisicos; em 1982, a primeira Assembiéia Mundial, em Viena, sobre os direitos dos ancifos, que propés um plano de ago aprovado por uma re solugio da Assembléia da ONU, em 3 de dezembro, 69 Bem entendido, esse processo de multiplicagZo por es- pecificagéo ocorreu principalmente no ambito dos direitos so- ciais. Os direitos de liberdade negativa, os primeitos direitos reconhecidos ¢ protegidos, valem para o homem abstrato. Nao por acaso foram apresentados, quando do seu surgimento, como direitos do Homem. A liberdade religiosa, uma vez afir- mada, foi se estendendo a todos, embora no infcio nao tenha sido reconhecida para cercas confissbes Ou para os ateus; mas essas eram excegées que deviam ser justificadas. O mesmo vale para a liberdade de opinifio. Os direitos de liberdade evoluem paralelamente ao princpio do tratamento igual. Com relagdo aos direitos de liberdade, vale o principio de que os homens so iguais, No estado de natureza de Locke, que foi 6 grande inspirador das Declaragdes de Direitos do Homem, ‘os homens sio todos iguais, onde por “igualdade” se entende que so iguais no goz0 da liberdade, no sentido de que ne- nhum individuo pode er mais liberdade do que outro. Esse tipo de igualdade é 0 que aparece enunciado, por exemplo, no art. 1° da Declaragio Universal, na afirmacio de que “todos oy homens nascem iguais cm liberdade e direitos”, afirmagio cujo significado € que todos os homens nascem iguais na li- berdade, no duplo sentido da expresso: “os homens rém igual direito & liberdade”, “os homens tém direito a uma igual li berdade”. Sio todas formulacées do mesmo princfpio, segundo ‘© qual deve ser excluida toda discriminagio fundada em di- ferengas especificas entre homem e homem, entre grupos ¢ ‘grapos, como se 1é no art. 3° da Constituigio italiana, o qual = depois de cer dito que os homens tém “igual dignidade social” — acrescenta, especificando e precisando, que so iguais “diance da lei, sem distingdo de sexo, de raga, de lingua, de religiao, de opiniiio politica, de condig6es pessoais ou so- ciais”. O mesmo principio é ainda mais explicito no acc. 2°, 1, da Declaragio Universal, no qual se diz que “cabe 2 cada individuo todos 0s direitos e todas as liberdades enunciadas na presente Declaragao, sem nenhuma distingio por razdes de cor, sexo, lingua, religiéo, opiniao politica ou de outro tipo, por origem nacional ou social, riqueza, nascimento ou outra consideragio”. 70 Essa universalidade (ou indistingfo, ou nfo-discriminagio) na atribuicdo e no eventual gozo dos direitos de liberdade no vale para os direitos sociais, e nem mesmo para os direitos politicos, diante dos quais os individuos sio iguais s6 generi- camente, mas no especificamente. Com relagio aos discitos politicos e aos direitos sociais, existem diferencas de individuo para individuo, ou melhor, de grupos de individuos para gru- pos de individuos, diferencas que so até agora (e 0 so in- do sexo masculino — e nem todos — tiveram o direito de votar; ainda hoje no tém esse direito os menores, e niio & razoavel pensar que o obtenham num futuro préximo, Isso quer dizer que, na afirmagio € no reconhecimento dos direitos politicos, nfo se podem deixar de levar em conta determinadas diferencas, que justificam um tratamento nfo igual. Do mesmo modo, e com maior evidéncia, isso ocorre no campo dos direitos sociais. $6 de modo genético e retérico se pode afirmar que todos so iguais com relagio aos trés direitos sociais funda- mentais (ao trabalho, & instrugdo ¢ A sattde); ao contrario, é possfvel dizer, realisticamente, que todos sia ignais no gaz das liberdades negativas. E nfo é possivel afirmar aquela pri- meira igualdade porque, na atribuicio dos direitos sociais, no se podem deixar de levar em conta as diferencas especificas, que so relevantes para distinguir um individuo de outro, ou melhor, um grupo de individuos de outro grupo. O que se 1é no art. 3° da Constituigio italiana, antes citado — ou seja, que todos os cidadaos so iguais sem distingio de “condigées pessoais ou sociais” —, ndo € verdade em relacao aos direitos sociais, jf que certas condicGes pessoais ou sociais so relevantes precisamente na atribuigio desses direitos. Com relag&o ao tra- balho, so relevantes as diferencas de idade ¢ de sexo; com relacdo & instrugio, so relevantes diferencas entre criangas nor- mais € criangas que no sfo normais; com relacéo & sade, s televantes diferencas entre adultos e velhos. ‘No pretendo levar esse raciocinio até as extremas conse- incias. Pretendo apenas observar que igualdade e diferenca tém uma relevncia diversa conforme estejam em questio di- reitos de liberdade ou direitos sociais. Essa, entre outras, € uma nm das razdes pelas quais, no campo dos direitos sociais, mais do que naquele dos direitos de liberdade, ocorreu a proliferacio dos direitos a que antes me referi; através do reconhecimento dos direitos sociais, surgiram — ao lado do homem abstraro ou genérico, do cidadao sem outras qualificagées — novos per- sonagens como sujeitos de direito, personagens antes desconhe- cidos nas Declaragdes dos direitos de liberdade: a mulher ¢ @ crianga, © velho € 6 muito velho, o doente e o demente, etc. sociais suscita, além do problema da proliferacdo dos direitos do homem, problemas bem mais dificeis de resolver no que concerne Aquela “prética” de que falei no inicio: é que a pro- tego destes dleimos requer uma intervengao ativa do Estado, que nfo é requerida pela protec dos direitos de liberdade, produzindo aquela organizagéo dos servigos publicos de onde nasceu até mesmo uma nova forma de Estado, o Estado social. Enquanto os direitos de liberdade nascem contra o superpoder do Estado — e, portanto, com o objetivo de limitar 0 poder —, 0s direitos sociais exigem, para sua realizacio prética, ou seja, para a passagem da declaracio puramente verbal & sua protecio efetiva, precisamente o contrdrio, isto é, a ampliacio dos poderes do Estado, Também “poder” — como, de resto, qualquer outro termo da linguagem politica, a comecar por “liberdade” — tem, conforme 0 contexto, uma conotacéo po- sitiva e outra negativa. O exercicio do poder pode ser consi- derado benéfico ou maléfico segundo os contextos histéricos € segundo os diversos pontos de vista a partir dos quais esses contextos sio considerados. Nao é verdade que o aumento da liberdade seja sempre um bem ou 0 aumento do poder seja sempre um mal. Insisti até agora no fendmeno da proliferagio dos direitos do homem como caracteristica da atual fase de desenvolvimento da teoria e da prdtica desses direitos; ¢ 0 fiz porque, em minha opinido, nada serve para mostrar melhor o nexo entre mudanga na teoria € na pritica dos direitos do homem, por um lado, € mudanga social, por outro, €, portanto, para iluminar 0 aspecto mais interessante e fecundo a partir do qual pode ser estudado © tema dos direitos do homem pelos socidlogos do direito. 2 Parto da distingao, introduzida por Renato Treves, entre as duas tarefas essenciais da sociologia do dircito: a de in- vestigar qual a fungdo do direito (e, portanto, também dos direitos do homem em toda a gama de suas especificacées) na mudanga social, tarefa que pode ser sintetizada na formula “o direito na sociedade"; e a de analisar a maior ou menor aplicagéo das normas jurfdicas numa determinada sociedade, incluindo a maior ou menor aplicagio das normas dos Estados particulares, ou do sistema internacional em seu conjunto, telativas aos direitos do homem, tarefa que se resume na f6z- mula “a sociedade no direito”. Ambas as tarefas tem uma particular e atualissima aplicagéo precisamente naquela esfera de todo ordenamento juridico que compreende o reconheci- mento € a protecdo dos direitos do homem. Se se pode falar de uma tarefa propria da sociologia do direito em relagio ao problema dos direitos do homem, ou seja, de uma tarefa que distinga a sociologia do direiro da filosofia do direito, da teoria geral do direito, da ciéncia ju dica, ela deriva precisamente da constatagio de que 0 nasci- mento, ¢ agora também o crescimento, dus divcitus do hoc sio estreitamente ligados 4 transformagio da sociedade, como a relacio entre a proliferagdo dos direitos do homem eo de- senvolvimento social o mostra claramente. Porcanto, a socio- logia em geral, e a sociologia do direito em particular, estio na melhor condi¢io possivel para dar uma contribuigio espe- cifica 20 aprofundamento do problema. A doutrina dos direitos do homem nasceu da filosofia jusnaturalista, a qual — para justificar a existéncia de direitos pertencentes ao homem enquanto tal, independencemente do Estado — partira da hipécese de um estado de nacureza, onde 05 direitos do homem sio poucos ¢ essenciais: 0 direita 3 vida € a sobrevivéncia, que inclui também o direito & propriedade; € 0 direito a liberdade, que compreende algumas liberdades essencialmente negativas. Para a teoria de Kant — quie pode- ‘mos considerar como a conclusio dessa primeira fase da hist6tia dos direitos do homem, que culmina nas primeiras Declaracées dos Direitos nZo mais enunciadas por fildsofos, e portanto sine imperio, mas por detentores do poder de governo, ¢ portanto 73 == cum imperio —, 0 bomem natural tem um tinico direito, 0 direito de liberdade, entendida a liberdade como “indepen- déncia em face de todo constrangimento imposto pela vontade de outro”, jf que todos os demais direitos, incluido o direito a igualdade, esto compreendidos nele. ‘A hipétese do estado de natureza — enquanto estado pré-estatal e, em alguns escritores, até mesmo pré-social — eta uma tentativa de justificar racionalmente, ou de raciona- lizar, determinadas exigencias que se 1am ampliando cada vez mais; num primeiro momento, durante as guerras de religio, surgiu a exigéncia da liberdade de consciéncia contra coda for. ma de imposigéo de uma crenga (imposigio freqiientemente seguida de sangdes no s6 espirituais, mas também temporais); e, num segundo momento, na época que vai da Revolugdo Inglesa a Norte-Americana e 4 Francesa, houve a demanda de liberdades civis contra toda forma de despotismo. O estado de atureza era uma mera ficgo doutrindria, que devia servie para justificar, como direitos inerentes & propria nacureza do homem (, como tais, inviolaveis por parte dos detentores do poder pablico, inaliendvei iprios tivulases ¢ impreseri tiveis por mais longa que fosse a duragdo de sua violagio ou alienagao), exigéncias de liberdade proveniences dos que luta~ vam contra o dogmatismo das Igrejas e contra o autoritarismo dos Estados. A realidade de onde nasceram as exigéncias desses direitos era constituida pelas lutas e pelos movimentos que Jhes deram vida e as alimentaram: lutas e movimentos cujas razbes, se quisermos compreendé-las, devem ser buscadas no mais na hipétese do estado de natureza, mas na realidade social da época, nas suas contradigées, nas mudangas que tais con- tradigdes foram produzindo em cada oportunidade concreta. Tssa exigéncia de passar da hipétese racional para a ané- lise da sociedade real e de sua hist6ria vale com maior raziio hoje, quando as exigéncias, provenientes de baixo em favor de uma maior protegéo de individuos e de grupos (e se trata de exigéncias que vio bem além da liberdade em relagio a ¢ da liberdade de) aumentaram enormemente € continuam a aumentar; ora, para justificd-las, a hipétese abstrata de um estado de natureza simples, primitivo, onde 0 homem vive 74 com poucos carecimentos essenciais, no teria mais nenhuma forca de persuasio e, portanto, nenhuma utilidade tedrica ou pritica. O fato mesmo de que a lista desses direitos esteja em continua ampliagio nfo s6 demonstra que o ponto de Partida do hipotético estado de natureza perdeu toda plau- sibilidade, mas nos deveria tornar consciences de que o mundo das relagdes sociais de onde essas exigéncias derivam € muito mais complexo, e de que, para a vida e para a sobrevivéncia dos homens, nessa nova sociedade, no bastam os chamados direitos fandamentais, como os direitos a vida, & liberdade € A propriedade, ‘Nao existe atualmente nenhuma carta de direitos, para darmos um exemplo convincente, que aio reconhega o dizeito a inserugio — crescente, de resto, de sociedade para sociedade —, primeiro elementar, depois secundéria, e pouco a pouco até mesmo universitéria. Nao me consta que, nas mais conhe- cidas descrigées do estado de natureza, esse direito fosse men- cionado, A verdade € que esse direito nio fora posto no estado de natureza porque nfo emergira na sociedade da época em que nasceram az doutrinas jus 225, quando as exigeacias fandamentais que partiam daquelas sociedades para chegarem aos poderosos da Terra eram principalmente exigéncias de li- berdade em face das Igrejas e dos Estados, e nio ainda de ‘outros bens, como o da instruc, que somente uma sociedade mais evoluida econdmica e socialmente poderia expressar. Tra- tava-se de exigéncias cuja finalidade era principalmente por limites aos poderes opressivos; e, sendo assim, a hipétese de um estado pré-estatal, ou de um estado liberto de poderes supra-individuais, como os das Igrejas e dos governos politicos, correspondia perfeitamente a finalidade de justificar a reducdo, aos seus minimos termos, do espaco ocupado por tais paderes, e de ampliar os espacos de liberdade dos individuos. Ao contré- tio, a hip6tese do homem como animal politico, que remonta @ Aristételes, permitira justificar durante séculos 0 Estado pa- ternalista (e, em sua expresso mais crua, despético), no qual © individuo no possui por natureza nenhum dos direitos de liberdade, direitos dos quais, como uma crianga, nao estaria em condigées de se servis, nio s6 para © bem comum, mas 75 i i i q nem mesmo para seu préprio bem. Nao € casual que o adver- sério mais direto de Locke tenha sido o mais sigido defensor do Estado patriarcal; ou que o defensor do direito de liberdade como direito fundamental, de onde todos os outros decorrem, tenha sido 20 mesmo tempo o mais coerente adversério do patriarcalismo, ou seja, daquela forma de governo na qual os stiditos so tratados como eternos menores. Enquanto a relagao entre mudanga social e nascimento dos direitos de liberdade era menos evidente, podendo assim dar vida a hipétese de que a exigéncia de liberdades civis era fundada na existéncia de direitos naturais, pertencentes ao ho- mem enquanto tal, independentemente de qualquer conside- ragio hist6rica, a relagao entre o nascimento e crescimento dos direitos sociais, por um lado, e a transformagao da sociedade, pot outro, é inteiramente evidente. Prova disso € que as ex! géncias de direicos sociais tornaram-se tanto mais numerosas quanto mais répida e profunda foi a transformagio da socie- dade. Cabe considerar, de resto, que as exigéncias que se con- cretizam na demanda de uma intervengio piblica e de uma prestagdo de setvigos sociais pur parte du Bsuado 36 podens ser satisfeitas num determinado nivel de desenvolvimento econd- mico e tecnolégico; e que, com relacéo & prépria teoria, sio ptecisamente certas transformacoes sociais e certas inovacées técnicas que fazem surgir novas exigéncias, imprevisiveis e ine- xeqiifveis antes que essas transformagdes e inovagdes tivessem ocorrido. Isso nos eraz uma ulterior confirmacio da socialidade, ou da nio-naturalidade, desses direitos, Para darmos um exemplo de grande atualidade, a exi- géncia de uma maior protegio dos velhos jamais teria podido nascer se nao tivesse ocorrido o aumento nao sé do némero de velhos, mas também de sna longevidade, dois efeitos de modificagées ocorridas nas relagSes sociais e resultantes dos progressos da medicina, E 0 que dizer dos movimentos eco- logicos ¢ das exigéncias de uma maior protegio da narureza, protegio que implica a proibigio do abuso ou do mau uso dos recursos naturais, ainda que os homens nao possam deixar de usi-los? De resto, também a esfera dos direitos de liberdade foi se modificando e se ampliando, em fangio de inovagées 76 técnicas no campo da transmissio € difusio das idéias e das imagens e do possivel abuso que se pode fazer dessas inovagbes, algo inconcebivel quando 0 prdprio uso nfo era possivel ou era tecnicamente dificil. Isso significa que a conexdo entre mu- danga social e mudanga na teoria e na pratica dos direitos fundamentais sempre existiu; 0 nascimento dos direitos sociais apenas tornou essa conexiio mais evidente, tio evidente que agora jé nfo pode ser negligenciada. Numa sociedade em que 86 08 proprieréring tinham cidadania ariva, ara dhwin que a direito de propriedade fosse levado a direito fundamental; do mesmo modo, também foi algo Sbvio que, na sociedade dos pafses da primeira revolugio industrial, quando entraram em cena os movimentos operitios, 0 direito 20 trabalho tivesse sido elevado a direito fundamental. A reivindicacéo do direito a0 trabalho como direito fundamental — co fundamental que passou a fazer parte de todas as Declaracées de Direitos con- temporineas — teve as mesmas boas razBes da anterior reivin- dicagao do direito de propriedade como direito natural, Bram boas raz6es que tinham suas rafzes na natureza das relagées de poder caracteristicas das sociedades que haviam gerado tais teivindicagdes e, por conseguinte, na natureza especifica — historicamente determinada — daquelas sociedades. Ainda mais importante ¢ amplissima é a tarefa dos so- cidlogos do direito no que se refere ao outro tema fundamental, © da aplicagdo das notmas juridicas, ou do fendmeno que é cada vez mais estudado sob 0 nome, por enquanto intraduzivel {para o italiano] de implementation. Q campo dos direitos do homem — ou, mais precisamente, das normas que declaram, reconhecem, definem, atribuem direitos ao homem — aparece, certamente, como aquele onde € maior a defasagem entre a da norma e sua efetiva aplicasio. B essa defasagem € ainda mais incensa precisamente no campo dos direitos so- iais. Tanto € assim que, na Constituigio italiana, as normas que se referem a direitos sociais foram chamadas pudicamente de “programaticas”. Seed que jé nos perguntamos alguma vez que género de normas sio essas que nao ordenam, profbem ‘ou permitem hic et nunc, mas ordenam, profbem e permitem num futuro indefinido e sem um prazo de caréncia claramente 7 delimitado? B, sobretudo, ja nos perguntamos alguma vez que género de direitos sio esses que tais normas definem? Um direito cajo reconhecimento e cuja efetiva protesio sio adiados sine die, além de confiados & vontade de sujeitos cuja obrigacdo de executar 0 “programa” é apenas uma obrigagdo moral ou, no maximo, politica, pode ainda ser chamado corretamente de “direito”? A diferenga entre esses auto-intitulados dizeivos € 0s direitos propriamence ditos nfo seré eo grande que torn me para designar uns ¢ outros? E, além do mais, a cuncuadore maioria de normas sobre os direitos do homem, tais como ‘as que emanam de 6rgios internacionais, nfo sio sequer nor- ‘mas progtaméticas, como o so as normas de uma Constituicéo nacional telativas aos direitos sociais. Ou, pelo menos, nao © so enquanto nao forem ratificadas por Estados particulares. £ muito instrutiva, a esse tespeito, a pesquisa realizada pelo professor Evan sobre o ntimero de ratificagdes das duas Con- vengGes internacionais sobre os direitos do homem por parte dos Estados-membros das NagGes Unidas: ela indica que so- mente dois quintos dos Estados as ratificaram, ¢ que existem grandes diferengas, quanto a isso, entre os Estados do Primeito, do Segundo e do Terceito Mundos. As cartas de direitos, en- quanto permanecerem no ambito do sistema internacional do qual promanam, so mais do que cartas de direitos no sentido préprio da palavra: sio expressdes de boas intengGes, ou, quan- do muito, diretivas gerais de ago orientadas para um facuro indeterminado e incerto, sem nenhuma garantia de realizacao além da boa vontade dos Estados, ¢ sem outra base de sus- tentagao além da pressio da opinizo pablica internacional ou de agéncias nao estatais, como a Amnesty International. Decerto, nao € aqui o local adequado para enfrentar 0 pro- blema dos varios significados do termo “direito” ¢ das querelas (em grande parte verbais)a que essa busca de definigo deu lugar, um problema do qual nfo se pode fugir quando o tema em discussio é, precisamente, o dos direitos do homem. Nao importa que o problema seja enfrentado através da distingao classica entre direitos naturais e direitos positivos, ou através da distingao entre moral rights e legal rights (mais comum na linguagem da filosofia 78 anglo-sax6nica); em ambos 0s casos, nao se pode deixar imedia- tamente de perceber que o termo “direito” muda de significado na passagem do primeiro para 0 segundo termo da distingéo. Se Econveniente ou nfo usar o termo “direito” nao s6 para o segundo, mas também para o primeiro termo, é uma questo de oportu- nidade. Partilho a preocupagio dos que pensam que chamar de ‘direitos” exigéncias (na melhor das hipéteses) de direitos furucos significa criar expectacives, que podem ndo set jamais sais corrente, ou seja, no significado de expectativas que podem ser satisfeitas porque si protegidas. Por prudéncia, sempre usei, no transcorrer desta minha comunicagio, a palavra “exigéncias” em vez de “direitos”, sem- pre que me referi a direitos no consticucionalizados, ou seja, a meras aspiragées, ainda que justificadas com argumentos plausfveis, no sentido de direitos (positivos) futuros. Poderia também ter usado a palavra “pretensio (claim), que pertence a Linguagem juridica, e que é frequentemente usada nos de- bates sobre a natureza dos direitos do homem; mas, em minha opinido, esse termo € ainda demasiadamente forte. Natural- mente, nada tenho contra chamar de "direitos" também essas exigéncias de direitos fururos, contanto que se evite a confusdo entre uma exigéncia (mesmo que bem motivada) de protecao facura de um certo bem, por um lado, e, por outro, a protecao efetiva desse bem que posso obter recorrendo a uma corte de justica capaz de reparar 0 erro e, eventualmente, de punir © culpado. Pode-se sugerir, aos que no querem renunciar a0 uso da palavra “direito” mesmo no caso de exigéncias na- ruralmente motivadas de uma provego futura, que distingam entre um direito em sentido fraco e um direito em sentido forte, sempre que nao quiserem atribuir a palavra “direito” somente as exigéncias ou pretensbes efetivamente protegicas. “Direito” € uma figura deGntica e, portanto, € um termo da lingvagem normativa, ou seja, de uma linguagem na qual se fala de normas e sobre normas. A existéncia de um direito, seja em sentido forte ou fraco, implica sempre a existéncia de um sistema normativo, onde por “existéncia” deve entender-se tanto o mero fato exterior de um direito histérico ou vigente 79 quanto o reconhecimento de um conjunto de normas como guia da propria ado. A figura do direito tem como correlato a figura da obrigagio. Assim como nao existe pai sem filho e vice-versa, também nfo existe direito sem obrigagio e vice- versa. A velha idéia de que existem obrigagdes sem direitos correspondentes, como as obrigagdes de beneficéncia, derivava da negacao de que o beneficidrio fosse titular de um direito. Isso ndo anulava 0 fato de que a obrigacio da beneficencia conseitncia, que eram ——e nfo o beneficiéio — os verdadeivos + tinicos titulares de um direito em face do benfeitor. Pode-se falar de direitos morais s6 no Ambito de um sistema normativo moral, onde haja obrigagdes cuja fonte nio é a autoridade mu- ida de forga coativa, mas Deus, a propria consci€ncia, a pressio social, a depender das vérias ceorias da moral. Pode-se falar de direitos naturais pressupondo, como o fazem os jusnaturalistas, um sistema de leis da natureza, que atribuem, como todas as leis, direitos e deveres; esse sistema pode ser derivado da ob- setvagdo da natureza do homem, do cédigo da natureza, assim como os direitos positivos sio derivaveis do estudo de um cédigo de leis positivas, validados por uma autoridade capaz de fazer respeitar os pr6prios mandamentos. Obrigagées morais, obrigacdes nacurais e obrigagdes positivas, bem como os res- pectivos direitos relativos, pertencem a sistemas normativos di versos. Para dar sentido a cermos como obrigagio e direito, é preciso inseri-los num contexto de normas, independentemente de qual seja a natureza desse contexto. Mas, com relagio aos, direitos positives, os direitos naturais so apenas exigéncias (morivadas com argumentos histéricos e racionais) de seu aco- Jhimento num sistema de direito eficientemente provegido. Do ponto de vista de um ordenamento juridico, os chamados direitos naturais ou morais nao sao propriamente direitos: sao apenas exigéncias que buscam validade a fim de se tornarem eventualmente direitos num novo ordenamento normativo, ca- racterizado por um diferente modo de protecio dos mesmos. ‘Também a passagem de um ordenamento para outro é uma passagem que ocorre num determinado contexto social, nao sendo de nenhum modo predererminada. 80 O jusnaturalista objecaré que existem direitos naturais ov morais absolutos, direitos que — enquanto tais — so direitos também em relacio a qualquer outro sistema notmativo, hi t6tico ou positive. Mas uma afirmacao desse tipo contraditada pela variedade dos cédigos naturais e morais propostos, bem como pelo préprio uso corrente da linguagem, que no permite chamar de “direitos” a maior parte das exigéncias ow pretensdes validadas doutrinariamente, ou até mesmo apoiadas por uma forte e autorizada opinido ptblica, enquanto elas nfo forem acolhidas num ordenamento jurfdico positivo. Para dar alguns ‘exemplos: antes que as mulheres obtivessem, nas varias legis- lag&es positivas, o direito de votar, ser que se podia correra- mente falar de um direito natural ou moral das mulheres a votar, quando as razées pelas quais nfo se reconhecia esse di- feito seja nacurais (as mulheres nfo sfo, por natureza, inde- pendentes), seja morais (as mulheres sio muito passionais para poderem expressar sua opiniio sobre uma lei que deve ser motivada racionalmente)? Seré que se pode dizer que existia um dizeito & objegio de consciéncia antes que esta fosse reco- nbecida? Nas leyislayGes onde cla ude € recunhecida, yuc set tido tem afirmar que existe, apesar de cudo, um direito natural ‘ou moral a objecao de consciéncia? O que se pode dizer, apenas, 6 que ha boas razdes para que essa exigéncia seja reconhecida, Que sentido tem afiemar que existia um direito a liberdade de abortar antes que essa aspiragio das mulheres fosse acolhida e reconhecida por uma legislagio civil, com razGes fundadas, de resto, em argumentos hist6ricos € sociais (e, portanto, que nfo tém validade absoluta), rais como o crescente ntimero de mulheres que trabalham ou 0 perigo de um excesso popula- cional que ameaca a humanidade? Poderfamos prosseguir. Risse clisenren aq particular quando se pensa nos direitos do homem que expe- rimentaram historicamente a passagem de um sistema de di- reicos em sentido fraco, na medida em que estavam inseridos em cédigos de normas naturais ou morais, para um sistema de direitos em sentido forte, como o slo os sistemas juridicos dos Estados nacionais. E hoje, através das virias cartas de di reitos promulgadas em fSruns internacionais, ocorreu a passa- 81 ‘gem inversa, ou seja, de um sistema mais forte, como 0 nacional nfo desp6tico, para um sistema mais fraco, como o interna- cional, onde os direitos proclamados sio sustentados, quase que exclusivamente, pela pressdo social, como ocorre habitual- mente no caso dos cédigos morais, ¢ sio repetidamente viola- dos, sem que as violagSes sejam, na maioria dos casos, punidas, sofrendo uma outra sangdo que nfo a condenacio moral. No. sistema internacional, tal como ele existe atualmente, inexis- tem aigumas condigdes necessarias para Gue possa ocorrer a passagem dos direitos em sentido fraco para direitos em sentido forte: a) a de que o reconhecimento e a protesio de pretensbes ou exigéncias contidas nas Declaragdes provenientes de érgios ¢ agéncias do sistema internacional sejam considerados condi- Bes necessdrias para que um Estado possa pertencer & comu- nidade internacional); 4) a existéncia,no sistema internacional, de um poder comum suficientemente forte para prevenir ou reprimir a violagio dos direitos declarados. ‘Nao ha melhor ocasiio do que este congresso internacional de estudiosos — em particular, de sociélogos do direito, que se ocnpam profissionalmente com observagio da inter-relagZo entre sistema juridico e sistema social — para denunciar abuso (oir melhor, 0 uso enganoso) que se faz do termo “direito” nas declaragées deste ou daquele direito do homem na socie~ dade internacional. Nao sem cerca hipocrisia, jd que aqueles que se sentam A mesa de um f6rum internacional — sejam politicos, diplomatas, juristas ou especialistas em geral — nao podem ignorar que o objeto de suas discussdes sio pura e simplesmente, propostas ou diretivas para uma futura legisla~ fo e que as cartas, enunciadas ao término desses foruns, no so propriamente cartas de direitos, como as que servem de premissa as Constituigées nacionais a partir do final do século XVIII (ou, para usar a primeira expressio com que os direitos do homem fizeram seu aparecimento na cena da histéria, ndo so Bill of Rights), mas so documentos que tratam do que deverio ou-deveriam ser direitos num futuro préximo, se ¢ quando os Estados particulares os reconhecerem, ou se e quando © sistema internacional houver implantado os érgfos € 0s po- deres necessétios para fazé-los valer sempre que forem violados. 82 ‘Uma coisa € um direito; outra, a promessa de um direito fa- taro. Uma coisa € um direito atual; outra, um direito potencial. Uma coisa € cer um direito que €, enquanto reconhecido ¢ protegido; outra € ter um direito que deve ser, mas que, para ser, ou para que passe do dever ser ao ser, precisa transformar-se, de objeto de discussio de uma assembléia de especialistas, em objeco de decisio de um érgio legislative dorado de poder de plitude do debate te6rico sobre os direitos do homem ¢ os limites dentro dos quais se processa a efetiva protegdo dos mesmos nos Estados particulares e no sistema internacional. Essa defasagem s6 pode ser superada pelas forcas politicas. Mas ‘08 soci6logos do direito sio, entre os cultores de disciplinas juridicas, os que esto em melhores condig&es para documentar éssa defasagem, explicar suas razbes ¢, gracas a isso, reduzix suas dimensdes. 83 SEGUNDA PARTE A REVOLUGAO FRANCESA E OS DIREITOS DO HOMEM Areas, dos Direitos do Homem e do Cidadio foi apro- vada pela Assembléia Nacional, em 26 de agosto de 1789. A discussio que levou a aprovagao se processou em dois tempos. De 1° a 4 de agosto, discutiu-se se se devia proceder a uma declaragio de direitos antes da emanagio de uma Constituigio. Contra os que a consideravam inttil e contra os que a consi deravam siti], mas devendo ser adiada, on titi] somente se acom~ panhada de uma declaragao dos deveres, a Assembléia decidiu, quase por unanimidade, que uma declaragio dos direitos — a ser considerada, segundo as palavras de um membro da As- sembléia inspiradas em Rousseau, como o ato da constituigo de um povo — devia ser proclamada imediatamente e, por- tanto, preceder a Constituigio. De 20 a 26 de agosto, 0 texto pré-selecionado pela Assembléia foi discutido e aprovado. Os testemunhos da época e os historiadores esto de acor- do em considerar que esse ato representou um daqueles mo- mentos decisivos, pelo menos simbolicamente, que assinalam © fim de uma época ¢ 0 inicio de outra, e, portanto, indicam uma virada na histéria do género humano. Um grande histo- tiador da Revolugio, Georges Lefebvre, escreveu: “Proclamando a liberdade, a igualdade e a soberania popular, a Declaragao foi o atestado de ébito do Antigo Regime, destrufdo pela Re- volugio.” Entre os milhares de restemunhos sobre o significado ideal desse texto que nos foram deixados pelos historiadores do século passado, escolho 0 de um escritor politico, ainda 85 que ele tenha sido 0 primeizo a pér em discussio a imagem que a revolugio fizera de si mesma: Alexis de ‘Tocqueville. Referindo-se & primeira fase do 1789, descreve-a como “o tem- po de juvenil entusiasmo, de orgulho, de paixées generasas ¢ sinceras, tempo do qual, apesar de todos os erros, os homens iriam conservar eterna meméria, e que, por muito tempo ainda, perturbaré © sono dos que querem subjugar ov cosromper os homens”.* lava que o racionalista Voltaire detestava)’ fora usada por Kant; embora condenando o regicidio como uma abominacio, Kant escreveu que “essa revolucgdo de um povo rico de es~ piritualidade” (ainda que esse povo tivesse podido acumular “miséria e crueldade") encontrara “uma participagio de aspi- rages que sabe a entusiasmo”, s6 podendo ter como causa “uma disposicdo moral da espécie humana”. Definindo o en- tusiasmo como a “participacZo no bem com paixio”, explicava logo apés que “o verdadeiro entusiasmo se refere s6 e sempre a0 que é ideal, 20 que é puramente moral”, e que a causa moral desse entusiasmo era “o dircito que tem um povo de nfo ser impedido por outras forcas de dar a si mesmo uma Constituigao civil que ele cré boa”.4 Desse modo, Kant ligava diretamente 0 aspecto que considerava positivo da revolugio com 0 direito de um povo a decidir seu préprio destino. Esse diceito, segundo Kane, revelara-se pela primeira vez na Re- volugio Francesa. E esse eta o direito de liberdade num dos dois sentidos principais do termo, ou seja, como autodeter- minagio, como auconomia, como capacidade de legistar para si mesmo, como a antitese de toda forma de poder paterno on patriarcal, que caracterizara os governos despéticos tradi- cionais. Quando Kant define a liberdade numa passagem da Paz perpétua, detine-a do seguinte modo: “A liberdade jusidica € a faculdade de s6 obedecer a leis externas as quais pude dar o meu assentimento.”> Nessa definigio, era clarissima a inspiragdo de Rousseau, que definira a liberdade como “a obe- diéncia 4 lei que nés mesmos nos prescrevemos."6 Nao obstante a discordancia vérias vezes expressa em re- lagio a0 idealismo abstrato kantiano, bem como a ostentagdo 86 2 mesma palavia “cotusiasie” (usa par de uma certa superioridade dos alemaes, que julgavam nfo tex necessidade da Revolucdo porque haviam feito a Reforma, He- gel — quando se refere, em suas ligGes de filosofia da histéria, 4 Revolugio Francesa — no pode ocultar sua admiracio; ¢ fala também, mais uma vez, do “entusiasmo do espirito” (Ent- busiasmus des Geistes) pelo qual 0 mundo foi percorrido e agi- tado, “como se entio tivesse finalmente ocorrido a verdadeira conciliagdo do divino com o mundo,”’ Chamando-a de uma ") pelo que 3 pes braram em unfssono essa época”, expressa com essa metéfora a sua convicgao de que, com a Revolucio, iniciara-se uma nova época da histéria, com uma explicita refecéncia 4 Declaracéo, cuja finalidade era, a seu ver, a meta inteiramente politica de firmar os direitos naturais, 0 principal dos quais é a liberdade, seguido pela igualdade diante da lei, enquanto uma sua ulterior determinacio, A primeira defesa ampla, historicamente documentada @ filosoficamente argumentada, da Declaragio foi a contida ‘nas duas partes de Os direitos do homem, de Thomas Paine, que foram publicadas respectivamente em 1791 e em 1792." A obra é, em geande parte, um panfleto contra Edmund Bur- ke, que — em defesa da Constituigao inglesa — atacara com actim@nia a Revolugdo Francesa desde sua primeira fase, afir- mando 0 seguinte sobre os direitos do homem: “Nés nio nos deixamos esvaziar de nossos sentimentos para nos encher ar- tificialmente, como péssaros embalsamados num museu, de palha, de cinzas e de insfpidos fragmentos de papel exaleando 05 direitos do homem."® Nacurais, para Burke, so sencimentos como 0 temor a Deus, o respeito ao rei, 0 afeto pelo parla- mento; nao naturais, aliés “falsos e esptirios”, sio — ao con- tririo — os sentimentos que (a alusZo aos direitos naturais € evidente) nos ensinam “uma servil, licenciosa e degradada insoléncia, uma espécie de liberdade que dura apenas poucos dias de festa, € que nos torna justamente dignos de uma eterna € miserdvel escravidao”."° Especificava que os ingleses stio ho- mens ligados aos sentimentos mais naturais, embora esses se- jam preconceitos: “Evitamos cuidadosamente que seres humanos vivam e ajam segundo as luzes da propria raciona- 87 lidade individual (..., porque consideramos que é melhor para cada um valer-se do patriménio de experincia acumulado pe- los povos a0 longo dos século: Para fundar os direitos do homem, Paine oferece uma justificagzo — e no podia entdo ser de outro modo — reli giosa. Segundo ele, para encontrar o fundamento dos direitos do homem, é preciso nao permanecer na hist6ria, como fizera Burke, mas transcender a hist6ria e chegar a0 momento da origem, quandy o Lowen surgiu das mds de Criador. A his- t6ria nada prova salvo 0s nossos erros, dos quais devemos nos libertar. O tinico ponto de partida para escapar dela € reafirmar aunidade do género humano, que a histéria dividiu. $6 assim se descobre que o homem, antes de ter direitos civis que sio © produto da histéria, tem direitos naturais que os precedem; € esses direitos naturais sio 0 fundamento de todos os direitos civis. Mais precisamenre: “So direitos naturais os que cabem 20 homem em virtude de sua existéncia, A esse género per- tencem todos os direitos intelectuais, ou direitos da mente, ¢ também todos os direitos de agir como individuo para 0 pré- prin hem-ecrar @ para a préptia falicidade que nfo cejam lesivos aos direitos naturais dos outros.”"* Distinguia txés formas de governo: 0 fandado na superstigio, 0 fundado na forca, e um tetceiro, fundado no interesse comum, que ele chamava de governo da razio. Paine, antes de chegar & Franga, parcicipara ativamence da revolugdo norte-americana, com varios escritos e, em par- ticular, com 0 ensaio Common sense (1776), no qual — embora fosse siidito britanico — criticava asperamente 0 poder do rei, reclamando 0 direito dos estados americanos A sua indepen- déncia, a partir da cese, muito caracteristica do mais genuino liberalismo, segundo a qual chegara a hora de a sociedade civil se emancipar do poder politico, jd que, enquanto a sociedade € uma béngio, o governo, tal como as roupas que cobrem nossa nudez, 6 0 emblema da inocéncia perdida."? Com sua agi e com sua obra, Paine representou a con- tinuidade entre as duas revolugées. Nao tinha dividas de que uma fosse o desenvolvimento da outra e de que, em geral, a Revolugdo Americana abrira a porta para as revolugées da Eu- 88 ropa: idénticos eram os principios inspiradores, bem como seu fandamento, 0 diteito natural; idéntico era 0 desfecho, 0 go- verno fundado no contrato social, a repiiblica como governo que rechaca para sempre a lei da hereditariedade, a democracia como governo de todos. ‘A relagiio entre as duas revoluges, bem mais complexa do que Paine supunha, foi continuamente reexaminada e de- batida nos tiltimos dois séculos. Os problemas sao dois: qual foi o influxo, e se foi determinante, da mais antiga na mais recente; qual das duas, consideradas em si mesmas, é politica ou eticamente superior & outra. Com relagio ao primeiro problema, o debate foi particu- larmente intenso no final do século pasado, quando Jellinek — numa conhecida obra publicada em 1896 — negou, através de um exame ponto por ponto, a originalidade da Declaragio francesa, provocando vivas séplicas dos que defendiam que a semelhanga se devia a inspiragtio comum; estes, além disso, alegavam que a inspitagio direta era improvavel, tendo em vista 0 escasso conhecimento dos varios Bill of Rights ameri- canos pelos constituintes franceses." Observando-se bem, ha algumas diferengas de principio: na Declaragao de 1/89, 120 aparece entre as metas a alcancar a “felicidade” (a expressio “felicidade de todos” aparece apenas no preimbulo) e, por con- seguinte, essa nfo é mais uma palavra-chave desse documento, como era 0 caso, ao contrario, nas cartas americanas, a comecar pela da Virginia (1776), conhecida dos constituinees franceses, onde alguns direitos inberenr (craduzido, de modo um pouco forcado, como “inata”) so protegidos porque permite a busca da “felicidade” ¢ da “seguranga”. O que era “felicidade”, e qual a relagio entre a felicidade e 0 bem piiblico, fora um dos temas debatidos pelos philosopbes; mas, A medida que tomou corpo a Agura do Estado libeeal de dircito, foi completamente aban- donada a idéia de que fosse tarefa do Estado assegurar a feli- cidade dos stiditos. Também nesse caso, a palavra mais clara ¢ iluminadora foi dita por Kant, o qual — em defesa do Estado liberal puro, cuja meta 6 permitie que a liberdade de cada um, possa expressar-se com base numa lei universal racional — rechacou 0 Estado eudemonoldgico, um Estado que pretendia 89 incluir encre suas carefas a de fazer os stiditos felizes, jé que a verdadeira finalidade do Estado deve ser apenas dar aos st- ditos tanta liberdade que lhes permica buscar, cada um deles, a seu modo, a sua prépria felicidade.!? Em segundo lugar, a Declaragio francesa — como foi varias vezes notado — € ainda mais intransigentemente in- dividualista do que a americana. Nao hé necessidade de insistie particularmente — ainda mais porque voltaremos ao assunto — nn fate de qne a cancepcia da cociedade qne esed na base das duas Declaragdes & aquela que, no século seguinte, seré chamada (quase sempre com uma conotagéo negativa) de in- dividualisca. Para a formagdo dessa concepsio (segundo a qual 0 individuo isolado, independentemente de todos os outtos, embora juntamente com todos os outros, mas cada um por si, € 0 fandamento da sociedade, em oposigdo a idéia, que atravessou séculos, do homem como animal politico e, como tal, social desde as origens), haviam contribuido quer a idéia de um estado de natureza, tal como este fora reconstruido por Hobbes e Rousseau, ou seja, como estado pré-social; quer a construgao artificial do homo oeconomicus, realizada pelos pri- meiros economistas; quer a idéia cristi do individuo como pessoa moral, que tem valor em si mesmo enquanto criatura de Deus. Ambas as Declaracdes partem dos homens consi- derados singularmente; os direitos que elas proclamam per- tencem aos individuos considerados um a um, que 0s possuem antes de ingressarem em qualquer sociedade. Mas, enquanto a “utilidade comum” é invocada pelo documento francés uni~ camente para justificar eventuais “distingbes sociais”, quase todas as carcas americanas fazem referéncia direta & finalidade da associagio politica, que € a do common benefit (Virginia), do goad of whole (Maryland) ov do common good (Massachussets). Os consticuintes americauus relacivuaun os diseitos do in- dividuo ao bem comum da sociedade. Os consticuintes fran- ceses pretendiam afirmar primdria e exclusivamente os direitos dos individuos. Bem diversa seré a idéia na qual se inspirard a Constituiggo jacobina, que é encabegada pelo art. 1°, no qual se diz: “Finalidade da sociedade é a felicidade comum”; essa Constituigéo pée em primeiro plano o que € de todos 90 em relago ao que pertence aos individuos, 0 bem do todo em rela¢io a0 direito das partes Quanto ao segundo tema — o de saber qual das duas revolugées foi ética e politigamente superior —, a controvérsia € bem antiga. Ja durante a discussaio na Assembléia Nacional, um de seus membros, Pierre Victor Malouet, intendente de finangas, candidato da Baixa Auvergne, expressara seu proprio parecer contrétio & proclamagio dos diteitos, afirmando que 0 que fora bum para os americanos, que “haviam tomado 0 no- mem no seio da natureza e 0 tinham apsesentado em sua so- berania primitiva”, estando assim “prepacados para receber a Jiberdade em toda a sua energia”, nfo seria tio bom para os franceses, uma “imensa multidio” dos quais era composta de homens sem propriedade, que esperavam do governo mais a seguranga do trabalho (a qual, por outro lado, os torna depen- dentes) do que a liberdade.'* ‘Também nesse caso, entre os muitos testemunhos dessa controvérsia, escolho um que deveria ser particularmente fa- miliar ao piblico italiano, embora eu cenha a impressiio de que foi inteiramente ecqnecido. No ensaio sobre A Revelucio Prancesa de 1789 ¢ a Revolue&o Italiana de 1859, Alessandro Manzoni aborda o tema da comparacio entre a Revolugio Ame- ricana € a Revolugio Francesa partindo de uma comparacio entre a Constituicio americana de 1787 e a Declaragao de 1789; € no hesita em dar a palia & primeira, com argumentos que lembram aqueles do intendente francés. Ele observa que, além do fato de a Constituigio americana de 1787 nao se ter feito preceder por nenhuma declaragio, as Declaragées dos con- gressos anteriores referiam-se apenas a “alguns direitos positi- vos ¢ especiais das Coldnias diante do Governo e do Parlamento da Inglaterra; limitavam-se, portanto, a proclamar ¢ a reivin- dicar direitos que haviam sido violados por aquele Governo ¢ que aquele Parlamento tencara invalidar, contra uma posse an- tiga e pacifica’.” Conclufa que a semelhanca que se quisera estabelecer entre as duas Declaracées era apenas verbal e verbal era sua enunciagio, tanto que, ao paso que as cartas dos ame- ricanos tinham produzido os efeitos desejados, da solene pro- clamagio dos constituintes de 1789 podia-se dizer apenas que a1 SS SS SS precedera “de pouco 0 tempo em que o desprezo e a violagio de todo direito chegaram a um grau que permite duvidar que haja um termo de comparagdo em toda a histéria”."* Deixemos aos historiadores a disputa sobre a relagio entre as duas declaragées. Apesar da influéncia até mesmo imediata que a revoluco das treze colOnias teve na Europa, bem como da répida formacao no Velho Continente do mito americano, © fato 6 que foi a Revolugio Francesa que constituiu, pot cerca waicly ikleal pata todvs vs gue < pela prépria emancipagio e pela libertagao do préprio povo. Foram os princfpios de 1789 que constituftam, no bem como no mal, um ponto de referencia obrigatério para os amigos ¢ ‘pata os inimigos da liberdade, principios invocados pelos pri- meiros € execrados pelos segundos. Da subterrinea e imediata forca de expansio que a Revolugéo Francesa teve na Europa, permitam-me recordar a espléndida imagem de Heine, que comparava 0 frémito dos alemies ao ouvirem as noticias do que ocorria na Franca com 0 rumor que emerge das grandes conchas que ornamentam as lareiras, mesmo quando jé estéo dictantes do mar hé mniro tempo: “Quando em Paris, no gran- de oceano humano, as ondas da revolugio subiam, agitavam-se ¢ se enfureciam tempestuosamente, para além do Reno os co- rag6es alema@es murmuravam e fremiam.”!? Quaneas vezes ecoou 0 apelo aos principios de 1789 nos momentos cruciais de nossa histéria! Limico-me a recordar dois deles, 0 Risorgimento ¢ a oposicao ao fascismo. Embora preconi- zando uma nova época, a que chamou de “social”, Mazzini reco- nheceu que, na Declaracao dos Direitos de 1789, haviam sido resumidos “os resultados da era crist, pondo acima de qualquer divida e elevando a dogma politico a liberdade conquistada na esfera da idéia pelo mundo greco-romano, a igualdade conquis- tada pelo mundo cristo, e a fraternidade, que é conseqiiéncia imediata dos dois termos”.® Carlo Rosselli, no livro programatico Socialismo liberal (escrito no desterro € publicado na Franga em 1930), disse que o princfpio da liberdade, estendido a vida cul- tural durante os séculos XVI e XVIII, atingira seu apogeu com a Enciclopédia, “terminando por triunfar politicamente com a Revolugéo de 1789 e sua Declaragao de Direitos”.” 92 __ Disse antes: no bem como no mal.* A condenagio dos princfpios de 1789 foi um dos motivos habituais de todo mo- vimento reacionétio, a comecar por De Maistre ¢ chegando a Action Frangaise, Mas basta citar uma passagem do principe dos escritores reacionétios, Friedrich Nietzsche (com 0 qual uma nova esquerda sem biissola maneém hé algum tempo certo namoro), 0 qual — num de seus iiltimos fragmentos publicados Postumamente — escreveu: “A nossa hostilidade 4 Révolution nu ve wefere & farsa cruenta, a imoralidade com que ela se desenvolveu, mas a sua moralidade de rebanho, as ‘verdades’ com que sempre ¢ ainda continua a operat, a sta imagem contagiosa de ‘justia e liberdade’, a qual se enredam todas as almas medfocres, 4 subversio da autoridade das classes supe- riores.”?? Nao muitos anos depois, faziam-lhe eco alguns dos seus (calvez inconscientes) netos italianos, que ironizavam “a apoteose das retumbantes blagues da Revolugdo Francesa: Jus- tiga, Fraternidade, Igualdade, Liberdade”.* . O niicleo doutrindrio da Declaragao esté contido nos trés artigos iniciais: o primeiro refere-se 4 condigio natural dos individuos que precede a formacio da sociedade civil; 0 se- gundo, a finalidade da sociedade politica, que vem depois (se ho cronologicamente, pelo menos axiologicamente) do estado de natureza; o te:ceizo, ao princfpio de legitimidade do poder que cabe & nacio, A fécmula do primeito — “os homens nascem e perma- necem livres e iguais em direitos” — foi retomada quase lite- talmente pelo art. 1° da Declarag&o Universal dos Direitos do Homem: “Todos os seres humanos nascem livres € iguais em dignidade e direitos.” Rousseau escrevera, no infcio do Contrato social: “O homem nasceu livre, mas por toda parte se encontra a fertos.” Tratava-se, como se disse vatias vezes, de um nasci- mento no navural, mas ideal. Desde 0 momento em que a crenga numa mitica idade de ouro, que remontava aos antigos ¢ fora retomada durante o Renascimento, foi suplantada pela teoria — que de Lucrécio chegara a Vico — da origem ferina do homem e da barbétie primitiva, cornou-se doutrina corrente que os homens nao nascem nem livres nem iguais, Que os 93 homens fossem livres € iguais no estado de natureza, tal como descrito por Locke no Segundo tratado do governo, era uma hip6tese racional: nao era nem uma constatagéo empfrica nem um dado histérico, mas uma exigéncia da razio, tinica que poderia in- verter radicalmente a concepsio secular segundo a qual o poder politico, o poder sobre os homens, o imperium, procede de cima para baixo e nao vice-versa. Essa hipdtese devia servir, segundo © préprio Locke, “para entender bem o poder politico e derivé-lo Bra precisanence essa a nueus a que se havias Proposto os constituintes, os quais — logo apés, no art. 2° — declaravam que “o objetivo de toda associagao politica € a con- servacao dos direitos nacurais e imprescritiveis do homem”, tais como a liberdade, a propriedade, a seguranca e a resisténcia & opressio, No artigo, nfo est presente a expresso “contrato social”, mas a idéia do conteato esta implicica na palavra “as- sociagdo”. Por associagio, entende-se —~ € impossivel no en- tender — uma sociedade baseada no contrato. A ligacdo entre os dois artigos é dada pelo fato de que o primeiro fala de igualdade nos direitos, enquanto o segundo especifica quais sto esses diraitns, entre as qiiais nia comparece mais a ignaldade, a qual reaparece, porém, no art. 6°, que prevé a igualdade diante da lei, bem como no art. 13, que prevé a igualdade fiscal. Dos quatro direitos elencados, somente a liberdade é de- finida (art. 4°); € € definida como o direito de “poder fazer tudo o que niio prejudique os outros”, que € uma definigao diversa da que se cornou corrente de Hobbes a Montesquieu, segundo a qual a liberdade consiste em fazer tudo 0 que as leis permitam, bem como da definigzo de Kant, segundo a qual a minha liberdade se estende até 0 ponto da compatibi- lidade com a liberdade dos outros. A seguranga seré definida, no art. 8° da Constituicio de 1793, como “a protegio concedida pela sociedade a cada um dos seus membros para a conservacio de sua pessoa, de seus direitos e de suas propriedades”. Quanto & propriedade, que o tiltimo artigo da Declaragio considera "um direito inviolavel € sagrado”, ela se tornaré o alvo das criticas dos socialistas e ira caracterizar historicamente a Revolugao de 1789 como revolugao burguesa. Sua inclusio entre os dixeitos naturais remontava a uma antiga cradi¢io 94 juridica, bem anterior 4 afirmagio das doutrinas jusnaruralistas. Era uma consegiiéncia da autonomia que, no diteito romano classico, era desfrutada pelo direito privado em relagio a0 di- reito pablico, da doutrina dos modos originérios de aquisigio da propriedade (através da ocupagio e do trabalho) e dos modos derivados (através do contrato e da sucesso), modos — tanto luns como outros — que pertenciam a esfera das relacées pri- vadas, que se desenvolviam fora da esfera piblica. Para no remiumat a um passady muito disvante, era bem conhecida a teoria de Locke, um dos principais inspicadores da liberdade dos modernos, segundo a qual a propriedade deriva do trabalho individual, ou seja, de uma atividade que se desenvolve antes € fora do Estado. Ao contrétio do que hoje se poderia pensar, depois das histéricas reivindicagdes dos ndo-proprietarios con- tra 0s proprietérios, guiadas pelos movimentos socialistas do século XIX, 0 direito de propriedade foi durante séculos con- siderado como um dique — o mais forte dos diques — contra © poder arbitrétio do soberano, Foi Thomas Hobbes, talvez 0 mais tigoroso teérico do absolutismo, que teve 2 audicia de considerar cama nima teoria cediciosa (e, porcanto, merecedora de condenagio num Estado fundado nos principios da razio) a que afirma “que 0s cidadios tém a propriedade absoluta das coisas que esto sob sua posse”.26 & ponto pacifico que, também por erés da afirmagio do direico de resisténcia, estava o pensamento de Locke, embora essa afirmacdo fosse muito antiga. Tendo dito que a razéo pela qual os homens entram em sociedade € a conservacio de suas propriedades, bem como de suas liberdades, Locke deduzia disso que, quando o governo viola esses direitos, péem-se em estado de guerra contra seu povo, o qual, a partir desse momento, esté desvinculado de qualquer dever de obe- digncia, ndo the restando mais do que “o refiigio comum que Deus ofereceu a todos os homens contra a forca e a violéncia””, isto 6, 0 retorno a liberdade originéria e a resisténcia, Juti- dicamente, 0 direito de resisténcia é um direito secundério, do mesmo modo como so normas secundatias as que servem para proteger as normas primérias: € um direito secunddrio que intervém num segundo momento, quando so violados 95 os direitos de liberdade, de propriedade ¢ de seguranga, que sio direitos primérios. E também € diverso porque o direito de resisténcia intervém para tutelar os outros direitos, mas nao pode, por sua vez, ser tutelado, devendo portanto ser exercido com todos os riscos e perigos. Num plano rigoro- samente l6gico, nenhum governo pode garantit 0 exercicio do direito de resisténcia, que se manifesta precisamente quan- do o cidadiio j4 nfo reconhece a autoridade do governo, ¢ 0 governo, por seu turno, nao tem mais nenhuma obrigayao para com cle. Com uma possivel alusio a esse artigo, Kant diré que, “para que um povo seja autorizado a resisténcia, deveria haver uma lei ptiblica que a permicisse”;* mas uma tal disposicao seria contraditéria, j que — no momento em que 0 soberano admitisse a resist@ncia contra si mesmo — renunciaria & sua prOpria soberania e 0 stidito tornar-se-ia so- berano em seu lugar, E impossivel que os constituintes nao tivessem percebido a contradigio, Mas, como explica Georges Lefebvre, a insercao do diceito de resisténcia entre os direitos narurais devia-se a recordacao imediata do 14 de julho € a0 temor de um novo assalto aristocrético; tratava-ce, portanto, de uma justificagdo péstuma da luta contra o Antigo Regi- me.” Na Declaragio Universal dos Direitos do Homem, de 1948, no aparece o direito de resisténcia; mas, no preambulo, lé-se que os direitos do homem, que seriam sucessivamente enumerados, devern ser protegidos, “se se quer evitar que 0 homem seja obrigado, como tiltima instancia, a rebeligo contra a ticania e a opressio”. B como dizer que a resisténcia nao um direito, mas — em determinadas circunsténcias — uma necessidade (como o indica a palavra “obrigado”) © terceito artigo, segundo 0 qual “o principio de toda soberania reside essencialmente na nacao”, reflete fielmente 0 debate que se travara no més de junho, quando havia sido rechagada a proposta do conde de Mirabeau no sentido de adorar a palavra “povo", que assinalava a diferenga com relacao as duas ‘outeas ordens, em vez de “nagio", mais abrangente, unificadora ¢ compreensiva, defendida pelo abade Sieyés, de onde nascera o nome de Assembigia Nacional. Esse artigo expressa também © conceito, destinado a rornar-se um dos fundamentos de todo 96 governo democrético futuro, de que a representagio € una ¢ indivisivel, ou seja, nfo pode ser dividida com base nas ordens ou nos estamentos em que se dividia a sociedade da época; e de que sua indivisibilidade e unidade € composta nio por corpos separados, mas pot individuos singulares, que contam cada um por um, de acordo com um principio que, a partir de entio, justifica a desconfianga de todo governo democritico diante da reptesencagio dos interesses.” No conceito da soberania una € indivisivel da uagao, estava também implicito o principio da proibigao do mandato imperativo, principio firmemente defen- dido por Sieyés, jé anunciado no art. 6° (segundo 0 qual a lei € expresso da vontade geral) e explicitamente formulado no art. 8° do preambulo da lei de 22 de dezembro de 1789, que diz: “Os representantes indicados para a Assembléia Nacional pelos departamentos deverdo ser considerados nao como repre- sentantes de um departamento, mas como representantes da totalidade dos departamentos, ou seja, de toda a nagio.” Re- presentagZo individual e niio por corpos sepatados, bem como proibicio de mandato imperativo, eis duas instituigdes gue con- corriam para a destrnicin da sociedade por ordens, na qual dado em cada ordem tinha um seu ordenamento juridico sepa- rado — 05 individuos no eram iguais nem nos direitos nem diance da lei. Desse ponto de vista, a Declaragao podia corre- tamente ser considerada, como o fez um grande historiador da Revolucao, Alphonse Aulard, como o atestado de 6bito do An- tigo Regime,” ainda que o tiro de miseric6rdia $6 viesse a ser dado no preambulo da Constituicao de 1791, quando foi seca- mente proclamado que “nao existe mais nobreza, nem pariato, ném distingdes hereditérias, nem distinges de ordem ou de regime feudal; no ha mais, para nenhuma parte da Nacio para nenhum individuo, nenhum privilégio ou excecdo em face do direito comum de todos os franceses”.*? A Declaragio, desde entdo até hoje, foi submetida a duas criticas tecotrentes e opostas: foi acusada de excessiva abstra- tividade pelos reaciondrios ¢ conservadores em getal; e de ex- 97 cessiva ligagdo com os interesses de uma classe particular, por Marx e pela esquerda em geral. ‘A acusagio de abstratividade foi repetida infinitas vezes: de resto, a abstratividade do pensamento iluminista é um dos motivos clissicos de todas as correntes antiiluministas. Nuo preciso repetir a célebre afirmagio de De Maistre, que dizia ‘ver inglescs, alemies, franceses e, gragas a Montesquieu, saber também que existiam os persas, mas 0 homem, 0 homem em geral, esse eie nunca vira e, se é que exiscia, eie o ignorava, ‘Mas basta citar — menos conhecido, mas nao menos drastico — um jufzo de Taine, segundo 0 qual a maior parte dos artigos da Declaragio “nao sio mais do que dogmas abstratos, defini~ Ses metafisicas, axiomas mais ou menos literdrios, ou seja, mais ou menos falsos, ora vagos, ora contraditérios, suscetiveis de mais de um significado e de significados opostos (...), uma espécie de insignia pomposa, intitil e pesada, que (...) corre 0 risco de cair na cabega dos eranseuntes, jf que todo dia é sacudida por mios violentas”.” Quem nio se contentar com essas deprecacées (ou talvez sejam mais imprecagdes) € quiser buscar uma crftica filos6fica, deverd ler 0 adenda an § 539 da Enciclopédia de Hegel, onde — além de muitas consideragées impoctantes — esté dito que liberdade e igualdade sio tio pouco algo “por natureza” que, ao contrario, sfo “um produto e um resultado da consciéncia histérica”, a qual, de resto, se diferencia de nacéo para nagao." ‘Mas sera mesmo verdade que os constituintes franceses eram_ assim tio pouco atentos, com a cabeca nas nuvens e os pés bem Ionge do chao? A essa pergunta, respondeu-se com a observacio de que aqueles diceitos aparentemente abstratos eram realmente, na intengao dos constituintes, instrumentos de polémica polftica, cada um deles devendo ser interpretado como a antftese de um abuso do poder que se queria combater, jf que os revolucionarios, como dissera Mirabeau, mais que uma Declaragio abstrata de direitos, tinham querido fazer um ato de guerra contra 0s rira- nos. Se esses direitos foram depois proclamados como se esti- vessem inscritos numa tébua das leis fora do tempo e da histéria, isso resultara — como explicaré Tocqueville — do fato de que a Revolugdo Francesa havia sido uma revolucio politica que ope- 98 rara como as revolugdes religiosas, que consideram o homem em si mesmo, sem se deterem nos cracos peculiares que as leis, os costumes e as tradig6es de um povo podiam ter inserido naquele fando comum; e operara como as revolugGes religiosas porque “parecia ter como objetivo, mais do que a reforma da Franca, a regeneracdo de todo o género humano”.®* De resto, foi por essa razdo, segundo Tocqueville, que a Revolugio péde acender pai- xBes que, até ento, nem mesmo as revolugées politicas mais violenias Gahan: pudidy puntucis A critica oposta — segundo a qual a Declaragio, em vez de ser demasiadamente abstrata, era tio concreta ¢ historica- mente determinada que, na verdade, no era a defesa do homem em geral, que teria existido sem que o auror das Noites de Sao Petersburgo 0 soubesse, mas do burgués, que existia em carne € 0550 € lutava pela propria emancipagio de classe contra a aristocracia, sem se preocupar muito com os direitos do que seria chamado de Quarto Estado — foi feita pelo joverm Marx no artigo sobre A questdo judaica, suficientemente conhecido para que nfo seja preciso nos ocuparmos de novo dele, e re- petida depois, rirmmalmente, par diversas geraciies de marvistas. De nenhum modo se tratava do homem abstrato, universal! © bomem de que falava a Declaragio era, na verdade, 0 bur- gués; os direitos cutelados pela Declaracio eram os direitos do burgués, do homem (explicava Marx) egoista, do homem se- parado dos outros homens ¢ da comunidade, do homem en- quanto “ménada isolada ¢ fechada em si mesma”. Quais tenham sido as conseqliéncias (que considero fu- nestas) dessa interpretaciio — que confundia uma questo de fato, ou seja, a ocasiao histérica da qual nascera a eivindicagéo desses direitos, que era certamente a luta do Terceiro Estado contra a aristocracia, com uma questio de principio, e via no homem apenas 0 cidadio, ¢ no cidadio, apenas o burgués —, esse € um tema sobre 0 qual, com o discernimento que 0 passar dos anos nos proporciona, talvez tenhamos idéias mais claras do que nossos pais. Mas ainda estamos demasiadamente imersos na corrente dessa hist6ria para sermos capazes de ver onde ela terminaré. Parece-me dificil negar que a afirmagio dos direitos do homem, in primis os de liberdade (ou melhor, 99 de liberdades individuais), € um dos pontos firmes do pensa- mento politico universal, do qual nao mais se pode voltar atras. A acusagao feita por Marx & Declarag&o era a de ser ins- pirada numa concepgio individualista da sociedade. A acusagio era justfssima. Mas é aceitvel? Decetto, 0 ponto de vista no qual se situa a Declaragio para dar uma solugdo 20 eterno problema das relacdes entre governantes ¢ governados é o do individuo, do individuo sin- gular, considerado como o titular do poder soberano, na me- dida em que, no hipotético estado de nacureza pré-social, ainda ‘nfo existe nenhum poder acima dele. O poder politico, ou © poder dos individuos associados, vem depois. B um poder que nasce de uma convengao; € 0 produto de uma invengio humana, como uma maquina, mas se trata, conforme a de- finigdo de Hobbes (cuja reconstrugao racional do Estado parte, com absoluto rigor, dos individuos considerados singularmen- te), da mais engenhosa e também da mais benéfica das mé- quinas, a machina machinarum, Esse ponto de vista representa a inversio radical do ponto de vista tradicional do pensamento politico, seja do pensamento cléssico, no qual as duas metaforas predominantes para representar 0 poder sio a do pastor (e 0 povo é 0 rebanho) e a do timoneiro, do gubernator (e 0 povo € a chusma), seja do pensamento medieval (omnis potestas nisi @ Deo). Dessa inversio nasce o Estado moderno: primeiro li- beral, no qual os individuos que reivindicam o poder soberano so apenas uma parte da sociedade; depois democratico, no qual séo potencialmente todos a fazer tal reivindicagao; e, fi- nalmente, social, no qual os individuos, todos transformados em soberanos sem distingdes de classe, reivindicam — além dos direitos de liberdade — também os diteitos sociais, que so igualmente direitos do individuo: 0 Estado dos cidadaos, que nfo so mais somente os burgueses, nem os cidadios de que fala Arist6teles no inicio do Livro III da Politica, definidos como aqueles que podem ter acesso aos cargos publicos, e que, quando exclufdos os escravos ¢ esttangeiros, mesmo numa democracia, sio uma minoria.** ‘© ponto de vista tradicional cinha por efeito a atribuigao aos individuos nao de direitos, mas sobretudo de obrigacées, 100 a comegar pela obrigagdo da obediéncia as leis, isto é, as ordens do soberano. Os cédigos.morais e juridicos foram, 20 longo dos séculos, desde os Dez Mandamentos até as Doze ‘Tibuas, conjuntos de regras imperativas que estabelecem obrigacdes para os indivfduos, nao direitos. Ao contratio, observemos mais uma vez os dois primeiros artigos da Declaragio, Primeiro, hé a afirmacéo de que os individuos tém direitos; depois, a de que 0 governo, precisamente em conseqiiéncia desses direitos, obriga-se a garanti-los. A relacio tradicional entre direitos dos Bovernantes e obrigages dos stiditos € invertida completamen- te, Até mesmo nas chamadas cartas de direitos que precederam as de 1776 na América e a de 1789 na Franca, desde a Magna Chatta até o Bill of Rights de 1689, os direitos ou as liberdades no eram reconhecidos como existentes antes do poder do so- berano, mas eram concedidos ou concertados, devendo aparecer — mesmo que fossem resultado de um pacto entre stiditos € soberano — como um ato unilateral deste tiltimo. O que equi- vale a dizer que, sem a concessfo do soberano, 0 stidito jamais teria tido qualquer direito.” Nao é diferente 0 que ocorreré no século MIX: quando suegem as monarquias constitucionais, afirma-se que as Constituigdes foram octroyéer pelos soberanos. © fato de que essas Constituicdes fossem a conseqliéncia de um conflito entre rei e stiditos, concluido com um pacto, nao devia cancelar a imagem sacralizada do poder, para a qual o que 0s cidadaos obtém é sempre o resultado de uma graciosa concessio do principe. As Declaragées de Direito estavam destinadas a inverter essa imagem, F, com efeito, pouco a pouco lograram inverté-la. Hoje, 0 préprio conceito de democracia € inseparével do con- ceito de direitos do homem. Se se elimina uma concepcio individualista da sociedade, nao se pode mais justificar a de- mocracia do que aquela segundo a qual, na democracia, os individuos, todos os individuos, detém uma parte da sobe- tania. E como foi possivel firmar de modo itreversivel esse conceito senio através da inversio da relagio entre poder € liberdade, fazendo-se com que a liberdade precedesse o poder? Tenho dito freqtientemente que, quando nos referimos a uma democracia, seria mais corseto falar de soberania dos cidadaos 101 € niio de soberania popular. “Povo” & um conceito ambiguo, do qual se serviram também todas as ditaduras modernas. B uma abstracio por vezes enganosa: nfo fica claro que parcela dos individuos que vivem num territério é compreendida pelo termo “povo". As decisdes coletivas nio so tomadas pelo povo, mas pelos individuos, muitos ou poucos, que 0 compéem. Numa democracia, quem toma as decisées coletivas, direta ou indireramente, so sempre e apenas individuos singulares, no momento em que depositam seu voto na urna. Isso pode soat mal para quem s6 consegue pensar a sociedade como um organismo; mas, quer isso agrade ou no, a sociedade democritica no 6 um corpo orginico, mas uma soma de in- dividuos. Se nio fosse assim, no teria nenhuma justificagio © principio da maioria, o qual, nfo obstante, é a regea fan- damental de decisio democtatica, E a maioria € 0 resultado de uma simples soma aritmética, onde 0 que se soma sio 0s votos dos individuos, um por um. Concepgio individualista € concepsio organica da sociedade escio em irremedifvel con- tradigao. E absurdo perguntar qual é a mais verdadeira em sentido abzoluto. Mas nio € absurdo sim absolutamente razoével — afirmar que a Gnica verdadeira para compreender ¢ faze compreender o que & a democracia € a segunda con- cepgio, nfo a primeira.” # preciso desconfiar de quem defende uma concepgio an- tiindividualista da sociedade. Através do antiindividualismo, passaram mais ou menos todas as doutrinas reacionérias, Burke dizia: “Os individuos desaparecem como sombras; s6 a comu- nidade é fixa e estével.” De Maistre dizia: “Submeter 0 governo & discussio individual significa destrui-lo.” Lammenais dizia: “O individualismno, destruindo a idéia de obediéncia e de dever, destr6i o poder e a lei.”" Nao seria muito dificil encontrar citagdes andlogas na esquerda antidemocratica. Ao contririo, no existe nenhuma Constituigzo democratica, a comegar pela Constituicio republicana da Itdlia, que no pressuponha a exis- téncia de individuos singulares que tém direicos enquanto tais. E como seria possfvel dizer que eles sto “inviolaveis” se nao houvesse o pressuposto de que, axiologicamente, 0 individuo & superior & sociedade de que faz parte? 102 ‘A concepgio individualista da sociedade j4 conquistou muito espaco. Os direitos do homem, que tinham sido e con- tinuam a ser afirmados nas Constituig&es dos Estados parti- culares, so hoje reconhecidos ¢ solenemente proclamados no Ambico da comunidade internacional, com uma conseqliéncia que abalou literalmente a doutrina e a pritica do direico in- ternacional: todo individuo foi elevado a sujeito porencial da comunidade internacional, cujos sujeitos até agora considera- dus eram, eininencemente os Escados soberanos."* Desse modo, © direito das gentes foi transformado em direito das gentes ¢ dos individuos; ¢, 20 lado do diteico internacional como direito piblico excerno, o ius publioum europaeum, esté crescendo um novo direito, que poderemos chamar, com as palavras de Kant, de “cosmopolita”, embora Kant 0 limitasse a0 direito de todo homem a ser tratado como amigo, e no como ini- migo, qualquer que fosse 0 lugar onde estivesse, ou seja, a0 direito (como ele dizia) de “hospitalidade”. Contudo, mesmo. com essa limitagio, Kant via no direito cosmopolita nfo “uma representacdo fantastica de mentes exaltadas”, mas uma das condicées neceesétine para a bnsea da par perpécaa, numa época da histéria em que “a violagio do direito ocorrida num ponto da terra 6 sentida em todos os outros”. O mesmo Kant que, como disse no inicio, vira no entu- siasmo com que fora acolhida a Revolugo Francesa um sinal da disposicio moral da humanidade inseria esse evento extraor- dingrio numa histéria profética da humanidade, ou seja, numa historia da qual nfo se tem dados seguros, mas da qual s6 se pode apreender sinais premonitérios. Um desses sinais ptemo- nitdrios, segundo ele, era precisamente o nascimento de uma “Constituigio fundada no direito natural”, que permitia dar uma resposta afirmativa a questi de “se 0 género humano estava em constante progresso para 0 melhor”. Dizia também que o evento tivera cal efeito nos espiritos que nfo mais podia ser esquecido, j4 que “revelara, na natureza humana, uma tal disposicao e potencialidade para o melhor que nenhum politico poderia doravante cancelar”."" Nés, tendo chegado quase ao fim do século que conhecea duas guerras mundiais e a era das tiranias, bem como a ameaga de uma guerra de excerminio, 103 podemos até sorrir diante do otimismo de um. filésofo que viveu numa era em que a crenca na irresistibilidade do pro- gresso era quase universal. Mas podemos sustentar seriamente que a idéia da Constituiggo fundada no direito natural foi esquecida? O tema dos direitos do homem, que foi imposto & atengdo dos soberanos pela Declaragao de 1789, nao ser hoje mais atual do que nunca? Nao € um dos grandes temas, jun- tamente com o da paz ¢ o da justiga internacional, para os ‘quais so arrastados ixresistivelmencte, queriam-no ou nfo, po- ‘vos € governos? Assim como as Declaracées nacionais foram 0 pressuposto necessério para o nascimento das democracias mo- dernas, a Declaracio Universal dos Direitos do Homem no seré talvez o pressuposto daquela democratizagio do sistema internacional da qual dependem o fim do sistema tradicional de equilibrio, no qual a paz é sempre uma trégua entre duas guerras, € 0 infcio de uma era de paz estével que nfo tenha mais a guerra como alternativa? Reconhego que afirmagdes desse género s6 podem ser fei- tas no ambiro da hist6ria profética de que falava Kant e, por- tanto, de uma histéria cnjas antecipagéies nin tm a certezn das previsbes cientificas (mas seré que so possiveis previsdes cientificas na histéria humana?). Reconheco também que, des- gragadamente, os profetas da desventura, na maioria dos casos, niio foram ouvidos, e os eventos por eles anunciados se reali- zaram, enquanto os proferas dos tempos felizes foram logo ouvidos, mas os eventos que anunciaram nio se verificaram. Por que nio poderia ocorrer um momento propicio no qual o profeta da desventura esteja errado e 0 que prevé tempos felizes. tenha razio? .NOTAS 1. G, Lefebvre, La rivoluzione francese, vrad, de P. Serini, Tarim, Ei- naudi, 1958, p. 162 (ed. brasileira: A Rewlupao Francesa, Séo Paulo, Ibrasa, 1989}. Um dos maiores historiaclores vivos da Revolugio Francesa, Francois Furet, depois de ter reconhecido que “a referencia a 1789 desapareceu da politica francesa”, admite que isso depende do faro de que o debate se deslocou da revolugio do passado para 104 a8 . Cf. 0 verbere Envbousiasme no Dictionnaire philomphique, onde oe a revolugio do futuro, “pelo que a Revolugto Francesa nfo é apenas @ Repiblica, mas cambém uma ilimicada promessa de igualdade; ©, para restituir-the o encanto, basta consideré-la, nfo como us institui¢éo nacional, mas como uma matriz da hist6ria universal” (Critica della rivoluzione francese, Bési, Laterza, 1980, p. 9). A. de Tocqueville, L’ancien régime et la révolution in Gxores completes, Paris, 1952, tomo Il, p. 72. fed. brasileira: 0 Antigo Regime e a Revolugdo, Brasilia, Editora da UnB, 1979}. susinomo & contraposto & saxo: enquanto a radio seiipie fae ver ‘a8 coisas como elas so, 0 entusiasmo € como o vinho “qui peut ‘exciter tant de tumultes dans les vaisseaux sanguins et de si vio- lentes vibrations dans les nerfs, que la raison en ext cout a fait détruite’. Mas Voltaire fora precedido, como se sabe, por Locke, que dedica a erftica do encusiasmo um capfeulo do Ensaio sobre a inteligencia bumana, W, 19. A hist6ria do conceito de entusiasmo ‘merecetia um tratamento bem mais amplo, mas basta aqui chamar ‘a atengio para o verbete Entuiasme, no Dixionario di filosofia de N. ‘Abbagnano, Tutim, Utet, 1961, virias vezes reedicado. I. Kant, “Se ill genero umano sia in costante progresso verso il meglio” (1798), in Soritti politic edi flosfia della storie del divitto trad, de G. Solari ¢ G. Vidari, Tarim, Urer, 1956, p. 219. Sobre 6 complexa tema da relacin antes Kant # a rovahagio em geral, 1 Revolucao Francesa em particular, remeto a0 meu Diritto e stato ane pensiero di Emanuele Kant, Tarim, Giappichelli, 2* ed., 1969, pp. 255 ¢ ss. fed. brasileira: Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant, Brasilia, Editora da UnB, 1984, pp. 147 e ss.}. Para uma andlise documentada e uma interprecagio original do pensamenco de Kant em face da Revolugio Francesa, ef. D. Losucdo, Autocensura « compromesso nel pensiero politico di Kant, Napoles, Bibliopolis, 1983. . I, Kane, “Per la pace perpetua” (1795), in Scristi politic, cie., p. 152 fed. brasileira: A paz perpétua, Porto Alegre, L&PM Bdiores, 1989}. Sobre a teoria da liberdade em Kane, remeto a0 meu ensaio “Kane e le due liberea”, in N. Bobbio, Da Hobbes a Marx, Napoles, Morano, 1965, pp. 147-163 fed. brasileira: "Kane e as das liber dades”, in N. Bobbio, Ensaios exvlbidos, So Paulo, C. H. Carcim Editora, s.d., pp. 21-34.) J.J. Rousseau, Do contrato social, 1, 8. . Essas celebécrimas expresses encontram-se no dltimo capitulo das Ligdes sobre a filosofia da historia, intivalado "A Revolugio Francesa «suas conseqiiéncias”. Sobre 0 tema, cf. 0 coahecido ensaio de J Ritter, "Hegel und die franzisische Revolution” (1956), in Metap- ‘ysik und Politi, Studien 2u Avitoteles und Hegel, Frankkturt-do-Meno, Surkhamp, 1969, pp. 183-233. Existe uma traduglo italiana do 105 censaio, Hegel ¢ la rivoluzione francese, com preficio de G. Calabro, Napoles, Guida, 1970. CE. também R. Racinaro, Rivoluzione esocierd ‘vile in Hegel, Népoles, Guida, 1972. 8, Exisce hoje uma tradugio italiana dessa obra sob a responsabilidade de. Magri, Th. Paine, I diritti dell'vamo, Roma, Editori Riunici, 1978 fed. brasileira: Or divetar do bomem, PeteOpolis, Vozes, 1989} 9. B. Burke, Reflections on the Revolution in France (1790), que cito da ed. italiana, organizada por A. Martelloni, Turim, Uter, 1963, p. 256 [ed. brasileira: Reflexies sobre a Revolugdo em Franga, Brasilia, ®: aR, 1997]. Rerentemente, com srangin partinlar Be Reflexies, foi publicado 0 livro de G. Tamagnini, Un giusmaturalismo ineguale. Studio su Edmund Burke, Milio, Giufft®, 1988. 10, Burke, Reflections, cie., p. 257 1, Ibid. 12. Paine, I diritti dell'uomo, cit., p. 145. A passagem dos direitos na- turais para os direitos civis € explicada por Paine do seguinte modo j@ que os homens néo sto capazes de conservar todos os direitos que eém por natureza, por néo serem capazes de fazé-lo, renunciam Aqueles direitos que $6 a constitui¢io de um poder comum thes permice conservar, Literalmente: “Os direitos nacurais que no si0 conservaclos s30 todos aqueles em relagio aos quais, embors o direivo seja perfeito no individuo, 0 poder de colocé-lo em execugio é insuficiente” (p. 146). A inspiracio lockiana dessa passagem é evi- dente: a passagem do estado de nacureza para 0 estado civil ocorre, segundo Locke, através da rentincia que 0s individuos fazem (si0 dos a fazer) de alguns dieeitos nacurais. A rentincia pode ser ‘mais ou menos ampla: no modelo lockiano, € muito limitada, j4 que o tinico direito natural ao qual se tem de renunciar para ingressat no estado civil € o direito A aucodefesa. Paine nfo pensa diferente- mente: depois de ter dito que o homem vem, ao estado de nacureza, © poder de julgar, reconhece que, nio rendo 0 poder de fazer vales individualmente esse direieo, “coloca-o no fundo comum da socie- dade, e serve-se do braco desta tiltima, da qual € parte, como subs- tituto e complement do seu préprio brago” (p. 146). 13, No inicio da obra anterior, Coromon sense (1776), Paine expressara de modo incisivo 0 coneraste entre a boa sociedade e 0 mau Estado, com uma contraposigio que iria tornar-se depois um tema bésico da concepgio do “Estado minimo": “A sociedade produzida pelos nossos carecimentos; 0 governo, pela nossa malvadez. A primeica promove a nossa felicidade positivamente, unindo em conjunto os nossos aferos; o segundo, negativamente, freando nossos vicios” (cito dda trad. italiana, contida no mesmo volume cit. acima, I divitsi dell'uomo, ofg. por T. Magri, p. 69 fed. brasileira: O senso comum ¢ a crise, Brasilia, Editora da UnB, 1982). 106 nea ee 14, Trata-se da obra Die Erilirung der Menschen — und Bitrgerrchs (2896), que provocou um amplo debate, sobre o qual cf. G. Le- febvee, La rivoluaione francese, cit. p. 758, Na cealidade, os textos americanos eram bastante conhecidos, sobretudo actavés de La Fayetce, 15. Entre as intimeras passagens de Kant que poderiam ser citadas ara mostrar sua aversio ao Estado paternalista, que se atribui a farefa de tornar os stiditos felizes, escolho a seguinte, pelo seu caréter preciso e peremptério: “Um governo fandado no princfpio da henevolincia para com 0 pow, tum pai em face dos filhos, ou seja, um governo paternalista (im ‘erius paternale), 90 qual 0s stiditos, como fillhos menores que no podem distinguir entre 0 que thes Geil ou prejudicial, so obri- gados a se comportar passivamente, para esperar que 0 chefe do Estado julgue de que modo eles devem ser felizes, esse governo é © pior despotismo que se possa imaginae” ("Sopra il devto comune, Quesio pud essere ginseo in ceoria ma non vale per la peatica (1973), in Soriti politci, cit, p. 255), Sobre o tema, é fundamental o liveo de G. J. Schochet, Patriarchalism in Political Thought, Oxford, Oxford University Press, 1975. Do mesmo aueor, cf. "Patriarcha- lism, Nacuralism and Rise of the Conventional Stace”, in Materiali per sna storia dla eubtura giuridica, XIV (984), 2, pp. 223-231, save conclui com as seguintes palaveas: "O desanacecimenta da fi. milia do pensamento politico anglo-americano, hd mais de dois séculos, deve ser indubitavelmente relacionado com 0 triunfo da rigida ¢ supostamente liberal distingfo enere o que é chamado de piiblico ¢ 0 privado, e com a conseqiiente exclusio da esfera privada, inclufda a familia, do discurso politico” (p, 335). Cf. também E. Diciotti, “Pacernalismo", in Materiali per una storia della cultura sinridica, SNL (2986), 2, pp. 557-586, que cita a definigio de paternalismo dada por R. Dworkin, que cecorda a de Kant: tenderei aproximacivamente por ‘paternalismo’ a interferéncia na liberdade de agir de uma pessoa, justificada por motivos references uunicamente ao bem-estar, 2 felicidade, 208 carecimentos, inceresses ‘ou valores da pessoa submetida a coergao” (p. 560). 16. Citado de A. Saicta, Costitzenti e constituzion’ della Francia moderna, Tarim, Einaudi, 1952, p. 39. 17. A. Manzoni, “La rivoluzione francese del 1789 ¢ Ia tivoluzione italiana del 1859", in Tutte le oper di Alessandro Manzoni, Flotenga, Barbera, 1928, p. 1110 b. A comparagio, de resto, nao é inceira” mente correta porque — como ja foi observado por G. Del Vecchio, "La Dichiarazione dei diriti dell’uomo e del cittadino (1903), in Contributi alla storia del pensiero giuridien ¢ filoofico, Milio, Giufite, 1963, pp. 141-216 — Manzoni conhecia somente o texto da Cons. 107 tieuigio nore-americana, mas ao 0: textos das Declaragbes de di- reitos dos estados americanos, que @ haviam precedido (p. 188). A ‘mesma observacio foi repetida alguns anos mais tarde por F. Ruf- fini, I diritei di liborta, Tacizn, Gobewi, 1926, pp. 84-85, que con- clui bruscamente: “A sua {de Manzoni] contraposicio nto se sustenta.” Sobre o cema cf. L. Mannoti, "Manzoni e il fenomeno rivoluzionario”, in Quaderni fiorentini, XV (1986), pp. 7-106. 18. A. Manzoni, “La sivoluzione francese”, cie., p. 1114. 19. O rtecho € extrafdo da obra Zur Gaichichte der Religion und Philesophie "Lea Divalaine fonrate ni di Filosofia, 1969, 3. 20. G. Mazzini, “Deliniziativa rivoluzionaria in Furopa” (1834), in Soritti editi ¢ inediti, Milio, 1863, V, p. 67. Essa inovagiio percence a um esctito juvenil. Mezzini, como se sabe, considerava que a Revolugio Francesa havia descrufdo justamence uma sociedade ve- Jha e injusta, mas devia see uleeapassada por uma nova revolugio, que teria contraposto & era do individuo a era da associagao, 3 Declacagio dos direitos, a Declaragio dos deveres 21. C, Rosselli, Secialismo liberale, Tatira, Einaudi, 1979, p. 90 fed brasileira: Socialitms literal, $80 Paulo, C. H. Catdien Ediora, 1988}. © nicleo da doutrina do socialismo Liberal consistia na conviesio de que a faeura revolucio socialista seria ndo a antfeese, mas 0 desenvolvimento necessario da Revolugio de 1789. Rossetti inspirara-se nas idéias de um dos seus mestzes, Rodolfo Mondolto, © qual — no inicio do século — escrevera um ensaio intieulaco “Dalla Dichiarazione dei diritti al Manifesco dei Comunisti”, no qual moserara nfo a descontinuidade, mas a continuidade entre 05 dois textos (in Critica sociale, XVI [1906}, pp. 232-235, 329-332 © 347-350). 22. Enquanto estava escrevendo estas péginas, recebi o livro de G, Tamagnini, Rivoluzione francere ¢ diritto del'uomo: aleuni pore alcani contro, Médena, Macchi, 1988. Os adversérios aos quais 0 autor se refere so essencialmente Burke e Bentham. Mas, a0 contritio da cxitica de Burke, que era principalmente politica, a de Bentham foi principalmente filos6fica, na medida em que negava — de um ponto de vista que seria depois chamado de positivismo Juridica = que 0 individuo pudesse ter diceitos que nio the fossem con. ferides pelo Estado; e, portanto, acusava of consticuintes franceses de erro. A violencissima diatribe benthamiana contra as Declaragdes de direitos ese contida nas Anarcbical Fallacies, que foram conhe- cidas na Europa atcavés da traducio francesa de B. Dumont (1816). Para 0 exame e etftica desse texto, ef. M. A. Cattaneo, I! positivisme sinridice inglie, Milo, Give, 1962, pp. 150 e ss. 108 24. G. Papi 25. J. Locke, The Second Treatise of Government, I, 1 (ed. critica 23. B Nietasche, Prammenti postuni (1880-1888), vol. VIII, tomo Ii das Opere di Friedrich Nietziche, Mili, Adelphi, 1971, p. 59. Besa invectiva contra os princfpios de 1789 procede pari passe, er toda 4 obra de Nietzsche, com a ceitica ao pensamento de Rousseau por see igualtarsmo, e com o desprezo pela democrciae pelo socia G., Prezzolini, Vacbio ¢ nuovo nazionalismo, Milo, Studio Editoriale Lombacdo, 1914, p. 9. Para outras edificantes passagens dessa natureza, temeto a0 meu escrito "Lideologia del fascimo” Aviebogi dé ris? ersité, osg, pot C. Cases, Bolonba, Edizioni del Mulino, 1982, pp. 598-624 ppor P. Leslect, Cambridge University Press, p, 287), nos 26, Th, Hobbes, XII, 7. f preciso cambém sublinhar que a defesa da ropriedace como direito individual tinha por alvo bem preciso a propriedade feudal, cuja condenacao foi proclamada solenemence fa noite de 4 de agosto, no mesmo dia em que fora aprovada ¢ proposta de Declaragio. Sobre a relagio enere aficmacéo da pro- priedade burguesa © condenacéo da propriedade feudal, charna atengio G. Solari, Individualirmo e diritto private (1911), Giappichelli, 1959, p. 141 Tacim, 27. J. Locke, The Second Treative, § 222 (ed, cit., p. 430). 28 T Kane, “La doutrina del dieieto, I: Il dirieco pubblico” (1786), in Seritté politici, cit., p. 508, 29. G. Lefebvie, L’Ostansanove, Tarim, Binauudi, 1949, p. 191, fed. bra- sileira: 1789, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1989} 30, Para uma cuidadosa narragio desses debaces, cf P. Violante, Lo Spazio della rappresentanza, I: Francia (1788-1789), Palecmo, lla Pal ma, 1981. 31, Citado por Lefebvre, L/Ottantanove, ed. it, cit p. 187. 32. Sobre a sociedade de ordens e seus vétios tipos, cf. R. Mousnier, Le gerarchie socialiy dal 1450 ai giorni muri, trad, de BE. Rotel Milio, Viea e Pensiero, 1971 , 33, H. A. Taine, Les origines de La France contemporaine, La Revolution, Vanarchie, p, 273, cit. por G. Del Vecchio, La Dicbiarazione dei diriai, cit,» 180. A obra do Del Vecchio concéen uma aupia resenha de jufzos sobre a Declaragio, ainda hoje de consulea Gel. 34, Hegel escreve que, enquanto essas duas categorias(liberdade e igual. ace) forem mantidas na forma da abstratividade, como € 0 taco quando so consideradas como diteitos nacurais anteriores a0 Estado, “slo precisamente elas que no deixam surgir ou entdo destroem 4 concretitude, ou seja, a orgenizagio do Estado, uma Constituigig «, de modo geral, um governo”. Note-se que essas afirmacbes apa, log tecem como adendo 20 parigrafo no qual Hegel define © Estado como “totalidade organizada”, e a Constituicéo como “organizacio do poder do Estado”. ‘Trara-se, como se pode ver, de uma concepsao nieidemence antiindividualista (e, por isso mesmo, cambém anci- contratualista) do Bstado. Sobre isso, detive-me mais detalhada. mente no ensaio “La costituzione in Hegel”, in Studi begeliani, ‘Tarim, Binaudi, 1981, pp. 69-83 (ed. brasileira: “A Consticuicio em Hegel”, in Estudos tobre Hegel, Sio Paulo, Editora da Unesp/Bra- siliense, 1989, pp. 93-110} Basa ifthe 2 siftioa 4 jf awie cide fina poor P Janet, na Introducio & 3° edigSo de sua célebre Histoire de la science Politique dans ss rapports avec la morale, Patis, 1887, intitulada "Les Déclarations de droits en Amérique et en France”, tendo sido re- tomada virias vezes. Entre outros, por G. De Ruggiero, Storia del Liberatismo eurapeo, 2 e., Bai, Lacerza, p. 72: “O tom da Declaracio € aparencemente absteato; mas quem examinar com olhos de his- totlador as liberdades singulares elencadas perceberd facilmence que cada uma delas representa uma ancitese polemica contra um aspecto determinado da sociedade € do Estado daquela época.” 36. A. de Tocqueville, L’Ancion Régine et la révolutin, cit., p. 89. Essa afirmagio de Tocqueville parece fazer eco ao hino que Paine elevara 4 Revolugio quando excreveu que 0 cenirio surgide no mundo corn a Revolucto Francesa era “tio novo € inigualavel” que o nome de fevolugio parecia diminut-lo; ele mereceria, bem mais, 0 nome de “tegeneragio do homem” (I diritti dell uomo, cit. p. 189) 37. K. Marx, “La questione ebraica”, in Scvitti plirici giowanilz, Tasirn Einaudi, 1970, p. 377 fed. brasileira: A questio judaica, Rio de Janeiro, Laemmert, 1972}. A critica a0 individualismo (encendido ‘num sentido negativo) da Declaragio nfo € s6 de Marx, mas é um Tugar-comum da historiografia de esquerda (c, de um poneo de vvista oposto, mas com igual resultado, também da excrema-direita). Em La gauche et la révolution an milieu du XIX" sacle Paris, Hlacette, 1986), F Furee recorda que, para Buchez (autor cle uma Histoire parlamentaire de la Révolution francaise, 1854-1848), 08 diteieos do hhomem foram o grande crro da Revolugio, ja que esses principios seriam ineptos para construir uma comunidade, na medida em que se referem a0s individuos delinidos em suas ‘esferas parciculares (pp. 16 € 19). 38. Arise6teles, Politica, 1275 a 39. Para uma ampla antologia das cartas de direitos anteriores ¢ pos- teriores & Revolugio Francesa, cf. Derecho pasitivo de lor derechos na- jurales, ed. pot G. Peces-Barba, diretor de los derechos nacucales, ted: por G. Peces-Bucba, dizetor do Insticuto de Derechos Humanos de Madr, Madsi, Editorial Debare, 1987. 110 40. AL 42, 43. 44, Detive-me mais amplamente sobre esse tema em “La democrazia dei moderni paragonata a quella degli antichi (e a quella del pos- teri", ia Teoria politica, WM, n° 3, pp. 3-17 Extraio esas cieagées de S. Lukes, Individualiom, Oxford, Blackwell 1985, pp. 3-5. Esse liveo € uma stil coleténea de materiais para quem deseja cer uma informagio geral sobre o tema do individua- lismo, do qual 0 autor distingue diversos aspectos (politico, eco- némico, rligiozo, ético, etc), enquanto contraposto a0 holism. Sobre 0 tema dos direitos humenos do ponto de vista internacio- faliera ef n revonre wane se AC ceramic, Bais Tae 1988, ant, Per la pace perpecna, ed. por N. Merker, com incroduci de N. Bobbio, Roma, Baicod Riuniti, 1985, p. 19. CEM. Senn, Etica« csmepaitizmo in Kant, Népoles, Parallelo 38, 1976, que cha. tm x cng pc una page da Amplified Kane na qual 0 cosmopolitismo € considerado como o supremo principio tepulador do género humano (p. 270), Sob ese aspectoy 0 texto fandamencal de Kane € “Idea di una storia universale dal panto i visea cosmopolitico" (1874), in Seriti politic, cit, pp. 129-139. Sobre esse tema, remeto as consideragées de D. Archibugiy “Le utopie della pace perpecua”, in Leora internaxionale,V, ° 22, 0 ono de 1989, pp. 35-60, que resalram particularmente a novidade do “dizeito cosmopolits” de Kant. 1. Kane, “Se il genece umano sia in costante progresso verso il meglio”, in Soviet politi, city p. 222. in A HERANGA DA GRANDE REVOLUCAO Cn @ Revolugéo Francesa, entrou Prepotentemente na ima- ginacdo dos homens a idéia de um evento politico extraot dinatio que, rompendo a continuidade do curso histérico, assinala o fim tiltimo de uma época e o principio primeiro de contra, Das datas, muito peéximas cntre si, pode sec eleyadas a simbolos desses dois momentos: 4 de agosto de 1789, quando a rentincia dos nobres aos seus privilégios assinala o fim do regime feudal; 26 de agosto, quando a aprovagio da Declaragio dos Direitos do Homem marca o principio de uma nova e:2. Nio vale a pena sublinhar, por ser muito evidente, 0 faro dé que uma coisa € 0 simbolo e outra € a realidade dos eventos gradativamente examinados por histotiadores cada vez mals exigentes. Mas a forca do simbolo ~ e refito-me, em particulat, ao tema do meu discurso — no desapareceu com 0 passat dos anos. Com efeito, 2 declaraséo de 26 de agosto fon precedida, alguns anos antes, pelas declaracées de direitos, pelos Bill of Rights, de algumas colénias norte-americanas em luta contra metrOpole. A comparacio entre as duas revolucdes € as res- pectivas enunciagdes de direitos € um tema ritual, que com- preende tanto um juizo de fato sobre a telagao entre os dois eventos, quanto um jufzo de valor sobre a superioridade moral € politica de um em rela¢o a0 outro. No que se refere as duas 113 revolugées, a diversidade é de tal ordem que muitas argumen- tagdes sobre as afinidades e diferencas entre elas aparecem fre~ qientemente como meros exercicios académicos; e, pior ainda, as disputas sobre a superioridade de uma sobre a outra revelam, um condicionamento demasiadamente ideolégico para que pos- sam ser levadas muito a sério. Ndo se pode comparar com proveito uma guerta de independéncia (uma guerra de liber- tagdo, como diziamos hoje) de um povo que se propde ter uma Constituigéo politica construida a imagem e semethanga da- quela da metrépole (a reptiblica presidencialista, como se sabe, tem como exemplo o modelo da monarquia consticucional), por um lado, e, por outro, a derrubada de um regime politico ¢ de uma ordem social que se queria ver substitufda por uma ‘ordem completamente diferente, seja no que se refere & relagio entre governantes € governados, seja no que se refere a domi- nagio de classe. Mais sensaca, ou menos arbitrdtia, € — a0 contrério — a comparagéo entre as duas declaragdes, contanto que essa comparacdo no thais seja posta em termos peremp- t6rios, como ocorreu no fim do século, no confroneo entre © grande jurista Georg Jellinek, que afirmava com riqueza de detalhes que a declaracio francesa derivava das americanas, € Emile Boutmy, que de modo igualmente detalhado contestou Jellinek, afirmando, entre outras coisas, que 0s constituintes franceses tinham um escasso conhecimento dos precedentes de além-mar, fazendo assim uma afirmacio desmentida pelos fatos. Que “o exemplo americano tenha desempenhado um papel decisivo na elaboracdo da declaracio francesa” foi algo recente- mente afirmado, mais uma vez, pelo autor do amplo verbete sobre 0s “Direitos do homem” do Dictionnaire critique de la Révolution frangaise, publicado bé pouco tempo. Mas é necessai preliminarmente, distinguir entre 0 conteddo da declarasio, por um lado, e a propria idéia de uma declaragio como algo que devia preceder a Constituiggo, por outro. Quanto ao con- tetido, pode-se discutir; quanto & idéia, a influéncia determi- nante da declaragio americana é algo indiscutivel. O primeiro a apresentar um projeto de declaragio foi La Fayette, heréi da independéncia americana, com um texto elaborado “sob o olhar e com os conselhos” de Jefferson, ento embaixador dos Estados 14 Unidos em Paris. Os constituintes no s6 conhecem 0 modelo americano, mas também — como observa Gouchet — posicio- nam-se em face do projero de declaracio segundo o que pensam das declaragées anteriores. Um “monarchien”, intendente de finangas da Baixa Auvergne, Pierre Viccor Malouet, justifica 0 seu parecer contrério dizendo que, enquanto um povo novo (como 0 americano) estava disposto a receber “a liberdade em toda a sua energia”, um povo come o francés, composto por uma muitidao imense de siiditos sem propriedade, esperava do governo “mais a seguranca do trabalho, que os torna indepen- dentes, do que a liberdade’ Com relagio ao conteddo dos dois textos, apesar das di- ferengas muitas vezes assinaladas — a mais evidente das quais € a referéncia da declaracio francesa “vontade geral” como titular do poder legislativo (art. 6°), de nitida derivacéo rous- seaufsta —, no se pode deixar de reconhecer que ambos tém sua origem comum na tradigio do diteito natural, a qual, em minha opinitio, € bem mais dererminante, mesmo na declaragao francesa, do que a tradigo do autor do Contrato social, O ponto de partida comnm 6 afiemagia de que o homem tem direitos naturais que, enquanto naturais, sfo anteriores a instituigao do poder civil e, por conseguinte, devem ser reconhecidos, respeitados e protegidos por esse poder. O art, 2° os define como “imprescritfveis", querendo com isso dizer que — a di- ferenga dos diteitos surgidos hiscoricamente e reconhecidos pe~ las leis civis — no foram perdidos nem mesmo pelos povos que nfo os exerceram durante um longo perfodo de tempo, ab imemorabili. O primeico critico severo da Revolugdo Francesa, Edmund Burke, afirmaré — tio logo chegam a Inglaterra as noticias da sublevacio parisiense — a célebre tese da prescrigio histérica, segundo a qual os direitos dos ingleses recebem sua forca niio do fato de serem naturais, mas de se cerem afirmado através de um habito de liberdade, desconhecido pela maior parte dos demais povos. Ao contrétio da teoria da prescrigao hhiseérica, a tese da impresctitibilidade tem — consciente ¢ intencionalmente — um valor revolucionério. De modo geral, a afirmacio de que 0 homem enquanto tal, fora ¢ antes da formacio de qualquer grapo social, tem 11s direitos origindrios representa uma verdadeira reviravolta canto na teoria quanto na pritica politicas, reviravolta que merece ser brevemente comentada. A celagio politica — ou a relagio entre governantes € governados, entre dominantes e dominados, entre principe ¢ Povo, entre soberano e siiditos, entre Estado e cidadios — € uma relagio de poder que pode assumir erés direcdes, con- forme seja considerada como relacao de poder reciproco, como poder do primeiro dos dois sujeitos sobre 0 segundo, ou como poder do segundo sobre 0 primeiro. Tradicionalmente, tanto no pensamento politico clissico quanto naquele que predo- minou na Idade Média, a relac&o polftica foi considerada como uma relagio desigual, na qual um dos dois sujeitos da relacio estd no alto enquanto 0 outro esté embaixo; e na qual o que esté no alto € 0 governante em relacdo 20 governado, o do- minante em relagio ao dominado, o principe em relagio 20 Povo, 0 soberano em relagio aos stidieos, o Estado em relagio 40s cidadaos. Nos termos da linguagem politica, a potestas vem antes da libertas, no sentido de que a esfera da liberdade re- servada aos individuos & concedida magnanimamente pelos detentores do poder. Em termos hobbesianos, a lex — en- tendida como 0 mandamento do soberano — vem antes do jus, no sentido de que o ius, ou 0 diteito do individuo, coincide pura e simplesmente com 0 silentium legis. E doutrina jusidica tradicional a de que o direito piblico pode regular o direito privado, ao passo que direito privado nao pode derrogar © direito piblico. A figuracio do poder politico ocorreu através de metéforas que iluminam bem esse ponto de vista: se o governance é 0 pastor (que se recorde a polémica entre Sécrates ¢ Trasimaco sobre esse tema), os governados so 0 rebanho (a oposi¢ao entre a moral dos senhores e a moral do rebanho chega até Nietzs- che); se o governante € 0 timoneiro, ou gubernator, 0 povo é a chusma que deve obedecer, e que, quando nao obedece ¢ se rebela, acreditando poder dispensar a experiente diego do comandante (como se lé numa passagem de A repiblica de Plato), faz com que a nave v4 necessariamente a pique; se 0 governante € 0 pai (a figuragio do Estado como uma familia 116 ampliada, e, portanto, do soberano como pai do seu povo, € uma das mais comuns em toda a literatura politica, antiga e moderna), os stiditos sio comparados aos filhos que devem obedecer as ordens do pai, porque ainda no alcangaram a idade da razo e nfo podem regular por si mesmos suas agbes. Das trés metaforas, a tiltima € a mais dificil de morrer. Re- cordemos a dura critica de Locke contra 0 Patriareha de Filmer, para quem o poder de governar deriva diretamente dos antigos utiurcas, assim como a critica de iongo aicance que Kant dirigiu contra o Estado paternalista, 0 qual considera os stiditos como menores que devem ser guiados, independentemente de sua vontade, para uma vida sadia, prdspera, boa e feliz. Mas tanto Locke quanto Kant sio jusnaturalistas, ou seja, ambos so pensadores que ja haviam efecuado aquela inversio de pers- pectiva, para usar uma famosa expresso do proprio Kant, ainda que usada por ele num outro contexto, aquela “revolugéo co- pernicana” que faz com que a relagio politica seja considerada do mais ex parte principis, mas sim ex parte civiun, Para que pudesse ocorrer essa inversio de ponto de vista, da qual nasce 0 pensamento politico modemno, era nececedsio que se abandonasse a teoria tradicional, que em outro local chamei de “modelo aristotélico”, segundo a qual 0 homem € um animal politico que nasce num grupo social, a familia, ¢ aperfeigoa sua propria nacureza naquele grupo social maior, auto-suficiente por si mesmo, que é a pélis, e, a0 mesmo tempo, era necessitio que se considerasse (embora através de uma hi- pOtese racional que no levava em conta, intencionalmente, a origem histética das sociedades humanas) 0 individuo em si mesmo, fora de qualquer vinculo social e (com maior razio) politico, num estado, como 0 estado de nacureza, no qual nao se constitui ainda nenhum poder superior aos individuos e nao existem leis positivas que imponham esta ou aquela ago, sendo portanto um estado de liberdade e igualdade perfeitas, ainda que hipotéticas. Era necessitio que se tomasse como pressu- posto a existéncia de um estado anterior a toda forma organi- zada de sociedade, um estado originario, o qual, precisamente por esse seu carter origindrio, devia ser considerado como 0 lugar de nascimento e o fundamento do estado civil, nio mais nN? tum estado natural (como a famflia ou outro grupo social), mas artificial, consciente e intencionalmente construfdo pela unio voluntétia dos individuos naturais. Em sfntese: enquanto os individuos eram considerados como sendo originariamente membros de um grupo social na- tural, como a familia (que era um grupo organizado hierar- quicamente), no nasciam nem livres, jf que ezam submetidos & autoridade parerna, nem iguais, jé que a relagio entre pai ¢ tilho € a relagao de um superior com um inferior, Somence formulando a hipétese de um estado originério sem sociedade nem Estado, no qual os homens vivern sem outras leis além das leis naturais, (que nao sfo impostas por uma autoridade externa, mas obedecidas em consciéncia), € que se pode sus- tentar 0 corajoso princfpio contra-intuitivo e claramente anti- hist6rico de que os homens nascem livres ¢ iguais, como se Ié nas palavras que abrem solenemente a declaracao: “Os homens nascem e permanecem livres iguais em direitos.” Essas pa- lavras serio repetidas tais quais, literalmente, um século ¢ meio depois, no art. 1° da Declaracio Universal dos Direitos do Homem: “Todor 02 homens nascem livres ¢ iguais em dig- nidade e direitos.” Na realidade, os homens niio nascem nem livres nem iguais. Que os homens nasgam livres ¢ iguais é uma exigéncia da razo, nfo uma constatagio de fato ou um dado histérico. E uma hipétese que permite inverter radical- mente a concep¢io tradicional, segundo a qual o poder politico — 0 poder sobre os homens chamado de imperium — procede de cima para baixo e nfo vice-versa. De acordo com o préprio Locke, essa hipétese devia servir para “entender bem o poder politico e deriva-lo de sua origem”, E tratava-se, claramente, de uma origem nio histérica € sim ideal. © modo pelo qual se chegou a essa inversio de perspective € algo que pode ser indicado apenas em linhas muito gerais, e sobre 0 qual, talvez, possamos mais conjeturar do que ilustrar de modo exaustivo. Tratar-se-ia de nada menos do que de dar conta do nascimento da concep¢io individualista da sociedade e da historia, que é a ancftese radical da concepgéo organicista, segundo a qual — para repetir uma afirmacio de Aristételes que sera reromada por Hege! — o todo (a sociedade) & anterior 11s. Ais suas partes. Invertendo essa relagio entre 0 todo e as partes, a concepgio individualista da sociedade e da histéria afirma que primeiro vem 0 individuo, no 0 individuo para a socie- dade. Também esse principio se encontra solenemente afitmado na Declaragio, em seu art. 2°, onde se enunciam os quatro direitos naturais que 0 homem possui originatiamente, € se afirma textualmente que “a finalidade de toda associagao poli- tica € a conservacio” desses direitos. Numa concepgio orginica da suricdude, u finalidade da organrzagao politica é a conser- vagio do todo. Nela nio haveria lugar para direitos que nfo 86 a precederiam, mas que até mesmo pretenderiam mancer-se fora dela, ou melhor, submeté-la as suas préprias exigéncias A propria expressdo “associacao politica” € totalmente estranha a linguagem do organicismo: diz-se “associagio” de uma for- magio social voluntdria, derivada de uma convengéo. Embora 1 expresso “contrato social” nfo apareca na Declaragio, a pa- lavra “associagio" 0 pressupde. Numa concepsio orginica da sociedade, as partes estiio em fungio do todo; numa concepcio individualista, o todo € o resultado da livre vontade das partes inca ser snficientemente eublinhada a imporeincia his. térica dessa inversio, Da concepcio individualista da sociedacle, nasce a democracia moderna (a democracia no sentido moderno da palavra), que deve ser corretamente definida nfo como 0 faziam os antigos, isto é, como o “poder do povo”, e sim como © poder dos individuos tomados um a um, de todos os indi- viduos que compdem uma sociedade regida por algumas regras essenciais, entre as quais uma fundamental, a que atribui a cada um, do mesmo modo como a todos os outtos, o dircito de participar livremente na tomada das decisdes coletivas, ou seja, das decisdes que obrigam toda a coletividade. A democracia moderna tepousa na soberania no do povo, mas dos cidadios. O povo uma absttacio, que foi freqiien temente utilizada para encobrir realidades muito diversas. Eoi dico que, depois do nazismo, a palavra Vole tornou-se impro- nuncidvel. E quem no se lembra que o érgio oficial do regime fascista se chama I! Popolo d'Italia? Nio gostaria de ser mal- enténdido, mas até mesmo a palavra “peuple”, depois do abuso que dela se fez durante a Revolucao Francesa, rornou-se sus- 119 peita: 0 povo de Paris derruba a Bastilha, promove os massacres de setembro, julga e executa 0 rei. Mas 0 que esse “povo” tem a ver com 05 cidadaos de uma democtacia contemporinea? O mesmo equivoco se ocultava no conceito de popalus romanus, ou de povo das cidades medievais, que impunha, entre outras coisas, a distingZo entre povo gratido e povo mitido. A medida que a democracia real se foi desenvolvendo, a palavra “povo! tornou-se cada vez mais vazia € ret6rica, embora também a Constituicéo italiana enuncie 0 principio de que “a soberania pertence ao povo”. Numa democracia moderna, quem tome as decisées coletivas, direta ou indiretamente, sio sempre € so- mente 0s cidadios sti singuli, n0 momento em que depositam © seu voto na urna. Nao € um corpo coletivo. Se nao fosse assim, nao teria nenhuma justificagto a regra da maioria, que € a regsa fundamental do governo democrético. A maioria é © resultado da soma aritmética, onde o que se somam sio os votos de individuos singulares, precisamente daqueles indivs duos que a ficcio de um estado de nacureza pré-politico per- mitiu conceber como dotados de direitos originérios, entre os quais o de detcrminar — mediante cua livre vontade prépria — as leis que lhe dizem respeito. ‘Se a concepsio individualista da sociedade for eliminada, nio seré mais possfvel justificar a democracia como uma boa forma de governo. Todas as doutrinas reaciondtias passaram atra~ vés das virias concepgées antiindividualistas. Pode-se ler em Edmundo Burke: “Os individuos desaparecem como sombras; somente a comunidade é fixa e estavel.” De Maistre declarou peremptoriamente: "Submeter 0 governo & discussio individual ifica destrui-lo.” O primeito Lamennais reafirmava: “O in- dividualismo, destruindo a idéia do dever eda obediéncia, deseréi a poder ea lei.” Ao contrério, nfo hé neahuma Constituicio democritica que no pressuponha a existéncia de direitos indi- viduais, oa seja, que nao parta da idéia de que primeiro vem & liberdade dos cidadaos singularmente considerados, e s6 depois 0 poder do governo, que os cidadios constituem e controlam através de suas liberdades. . O debate para a elaboracao da Declaracao, na Assembléia nacional, durou quinze dias, de 11 a 26 de agosto, Foram 120 mene apresentados varios projetos, um depois do outro; para coor dené-los, foi nomeada, em 12 de agosto, uma comissio de cinco membros. Depois de trés dias, Mirabeax — em nome da comissio — apresentou uma redacdo com dezenove artigos, a partir de vince projetos diferentes, Em 18 de agosto, teve lugar uma forte contestacdo, Esse primeiro texto foi deixado de lado, sendo adorado o projeto andnimo elaborado pelo Sexto Grupo da Assembléia. Depois de outros incidentes de percutso, x discussau diffil © adtica, o debate sobre os artigos singulares travou-se entre 20 e 26 de agosto. Os 24 artigos foram paulatinamente reduzidos a 17, 0 dltimo dos quais — 0 que fala da propriedade sagtada e inviolével — foi aprovado no dia 26. Os problemas a resolver previamente eram trés: 1) se era ou nfo oportuna uma Declaraso; 2) se, reconhecida sua oportu- nidade, ela devia ser promulgada isoladamente ou como pream- bulo 2 Constituicao, caso em que deveria ser adiada; 3) se, uma vez acolhida a idéia de sua promulgacio independence, ela deveria ou no ser acompanhada, como 0 proprio Abbé Gregoire exigia, por uma declaraciin das deveres. Predominow @ opiniio intermediéria. E foi a escolha justa. A Declacacio, aprovada como texto independence, deseacado da futura cons. tituigo, ter sua vida auténoma e — apesar de tudo, € preciso reconhecé-lo — gloriosa. Passaré a histéria com a denominagio rerumbante (no bem como no mal) de “princfpios de 1780" Os constituintes estavam bem conscientes de realizarem um ato historicamente relevance, como resulta do preambulo que precede a enunciag&o dos artigos. Nele, a necessidade da declaragZo ¢ fundamentada com 0 argumento de que “o es- quecimento € 0 desprezo dos direitos do homem so as tinicas causas das desgragas piblicas e da corrupgio dos governos”. O artigo fundamental é 0 segundo, no qual sio enunciados os seguintes direitos: a liberdade, @ propriedade, 2 seguranca ¢ 4 resisténcia 4 opressio. A Declaracio foi repetidamente submetida a criticas for- mais e substanciais. Quanto as primeiras, nao lhes foi dificil descobrit coneradigdes e lacunas. Logo de infcio, podemos ver que, dos quatro direitos enunciados, somente 0 primeiro, 0 121 direito & liberdade, € definido, mas s6 no art. 3°, como “o poder de fazer tudo 0 que nio prejudique os outros”, de onde deriva a regra do artigo seguinte, segundo a qual “a lei tem 0 direito de proibir somente as ages nocivas a sociedade". No art. 5°, a0 contrério, a liberdade é definida implicicamente como 0 direito de fazer tudo o que nio é nem proibido nem ordenado, definiggo bem mais cléssica, na qual a liberdade entendida negativa como “silentium legis", ou seja, como o espaco deixado livre pela ausencia de ieis imperativas, ucyarivas ou positivas. Essa seguoda definigéo, diferencemente da pri- meira, € implicita, j4 que 0 cexto se limita a dizer, de modo tortuoso, que “tudo o que nfo é proibido pela lei néo pode ser impedido ¢ ninguém pode ser obrigado a fazer 0 que a lei no ordena”. As duas definigées divergem: enquanto a primeira define a liberdade de um individuo em relacio aos outros in- dividuos, a segunda define a liberdade dos individuos em re- lago ao poder do Estado. A primeira é limitada pelo direito dos outros a nao serem prejudicados, refletindo o clissico “prin~ cipium iuris” do “neminem laedere”; a segunda tem em vista, exclusivamente, 0 pozsfvel excesso de poder por parre do F tado, Na realidade, a primeira — mais do que uma definicio da liberdade — é uma definigio da violagio do direitos a se gunda € uma definigio da liberdade, mas somente da liberdade negativa. A liberdade positiva, ou a liberdade como auconomia, 6 definida impliciramente no art. 6°, onde se diz que, sendo a lei expressio da vontade geral, “todos 0s cidados tém 0 dircito de concorrer, pessoalmente ou através de seus represen tantes, para a formacio da lei ‘A propriedade nao precisava ser definida: a ela se refere apenas 0 iilcimo artigo, que estabelece um prinefpio geral de diceito absolutamence Sbvio, o de que a propriedade, sendo tum direito sagrado ¢ inviolével, nd pode ser limitada a nao ser por razdes de utilidade pablica. A seguranca nao é definida, mas seré definida no art. 8° da Constituigio de 1793. Os temas relativos & seguranga sfo enfrentados nos artigos 7°, 8°, 9 © 102 que resumem os princfpios gerais relativos & li- berdade pessoal, ou habeas corpus. A libetdade pessoal é, his- roticamente, 0 primeiro dos direitos a ser reclamado pelos 122 ems stiditos de um Estado a obter protecio, 0 que ocorre desde a Magna Charta, considerada geralmente como 0 antepassado dos Bill of Rights. Mas € preciso distinguir entre a liberdade pessoal ¢ os outros direitos naturais: a primeira € o fundamento do Estado de direito, que se baseia no principio da “rule of law", ao passo que os segundos so o pressuposto do Estado liberal, ov seja, do Estado limitado, O alvo da primeira € 0 cardter absoluto nao significa que um e outro ponham o mes- mo problema quando se trata de escolher os meios para com- baté-los. O reconhecimento gradual das liberdades civis, para nao falar da liberdade politica, € uma conquista posterior a protecéo da liberdade pessoal. Quando muito, pode-se dizer que a protesio da liberdade pessoal veio depois do direico de propriedade. A esfera da propriedade foi sempre mais pro- tegida do que a esfera da pessoa, Nao seria necesséria uma norma da Declaracio para proclamar a proptiedade como di- reito sagrado ¢ inviolével. Mesmo nos Estados absolutos, a seguranca da propriedade foi sempre maior do que a seguranca das pessoas. Um dos grandes temas dos “philosophes” foi a reforma do direito penal, ou seja, do direico do qual depende a maior ou menor liberdade da’ pessoa. ‘Além da libecdade pessoal, a Declaracéo contempla, no arc. 9°, muito contestado, a liberdade religiosa, e, no art, 10°, a liberdade de opiniao e de imprensa. Nao so previstas nem 4 liberdade de reunio, nem menos ainda a de associacZo, que 6 a Giltima liberdade a ser conquistada, aquela de onde nasceu 2 sociedade pluralista das modernas democracias. Dois artigos se referem aos discivos e deveres fiscais. O art. 16 proclama 0 estranho principio segundo © qual uma sociedade que no as- segura a gatancia dus direitos ¢ na qual a separacao de poderes ndo € determinada nao tem uma Constituigao: aqui, a inspi- racio do célebre capitulo do Esprit des lois sobre a liberdade dos ingleses é evidente. Isso nfo anula o fato de que a afirmacao 6, te6rica e historicamente, insensata: confunde “Constituigio” com “boa Constienicio”, ou melhor, com a Constituiggo con- siderada boa em determinado contexto hist6rico. (Mas também 123 Arist6teles chamara de “policeia”, ou seja, de “Constituisao", a melhor forma de governo.) Cabe ainda dizer algo sobre o dixeito de resisténcia, que havia sido apresentado, em muitos dos projetos de declaracao, como uma coiss dbvia. Mas era t¥0 pouco dbvia, de resto, que © art. 7° afirma que todo cidadio “appelé ou saisi” com base na lei deve obedecer imediatamente ou se torna culpado de “resisténcia”. Na realidade, o direito de resisténcia é€ um direito en ba In de dizer — diferente dos demais: é um direito nfo primério, mas secundé- tio, cujo exercfcio ocorre apenas quando os direitos primérios (ou seja, os direitos de liberdade, de propriedade e de seguranca) forem violados. O individuo recorre 20 direito de resisténcia como extrema ratio, em iiltima instancia, para se proteger contra a falta de protecio dos direitos primérios; portanto, ele nao pode, por sua vez, ser tutelado, mas deve ser exercido com riscos © perigos para quem o reivindica. Falando rigorosamente, ne- nhum governo pode garantir o exercicio de um direito que se manifesta precisamente no momento em que a autoridade do governo desaparece, e se instaura, entre Estado e cidado, nao mais uma relagio de direito, e sim uma relagdo de fato, na qual vigora 0 direito do mais forte. Os constituintes haviam tomado plena consciéncia da contradig&o. Mas, como explica Georges Leftbvre, a insergao do direito de resisténcia entre os direitos naturais devia-se a0 temor de um novo assalto aristocratico ¢, portanto, no era mais do que a justificagao péstuma da derru- bada do Antigo Regime. As ceiticas substanciais a que foram submetidos os direitos naturais sfo bem mais graves do que as formais. Essas crfticas so de dois tipos. Umas se referem a insignificdncia, ou va- cuidade, ou superficialidade desses direitos, por causa de sua abstratividade e pretensa universalidade, Uma das mais duras sentencas de condenacéo veio imediatamente do primeiro ad- versdrio da Revolugio, Edmund Burke: “Nés nio nos deixamos esvaziar de nossos sentimentos para nos encher artificial mente, como péssaros embalsamados num museu, de palha, de cinzas e de insfpidos fragmentos de papel exaltando os direitos do homem.” Taine lhe faré eco um século depois: os artigos da ainda ca pada enreetamente chamé-l 124 oe Declaraco “nao so mais do que dogmas abstratos, definigoes metafisicas, axiomas mais ou menos litesérios, ou seja, mais ou menos falsos, ora vagos, ora contraditérios, suscetiveis de varios significados opostos.” Paradoxalmente, a critica que foi dirigida a Declaragio por Marx ¢ por toda a tradicdo do marxismo teérico foi de caracterfstica exatamente inversa: os artigos que elevam certas. liberdades (e nao outras) a direitos naturais, além de exaltar a propriedade como sagrada e inviolével, no siio excessivamente abstratos, ¢ sim excessivamente concretos, expresséo claramente ideol6gica no de princfpios universais, mas dos interesses de uma determinada classe, a burguesia, que se preparava para substituir a classe feudal no dominio da sociedade e do Estado. Ambas as crfticas nfo foram e niio podiam ir muito long: Aqueles direitos podem parecer abstratos em sua formulacio; ‘mas, na realidade, como desde o inicio disse Micabeau, deviam ser interpretados, cada um deles, como um concretfssimo ato de guerra contra antigos, ¢ agora no mais colerdveis, abusos de poder. Suas observagdes ecoaram, mais de um século depois, em Salvemini: “Decerto, abstrata e metafisica € a primeica das Declaraydes; ¢ € bastante discutivel que se possa falar de ‘direitos naturais' do homem (...). Mas é preciso observar bem e nfo perder de vista o espirito da Declaragio, se se quer evitar uma critica pedante e limitada & sua letra. Cada um daqueles direitos (...) significava, naquele momento, a aboligio de uma série de abusos intolerdveis, correspondendo a uma urgente necessidade da nacio." ‘Também a crftica marxista aio captava 0 aspecto essencial da proclamagio dos direitos: eles eram expressio da exigéncia de limites ao superpoder do Es- tado, uma exigéncia que, se no momento em que foi feita podia beneficiar a classe burguesa, conservava um valor uni- versal. Rasta ler o primeiro dos artigos que se ceferem a li berdade pessoal: “Ninguém pode ser acusado, preso e detido seno nos casos determinados pela lei, etc.” (€ 0 artigo que consagra 0 principio do “garantismo”, “nulla poena sine lege”); depois, pode-se medicar sobre 0 que ocorreu nos paises em que sio (ou ainda sio) evidentes as funestas conseqiiéncias do desprezo por tais principios, j4 que 0 questionamento de 125 sua universalidade atinge indiscriminadamente tanto 05 bur- gueses quanto os proletirios. A outra critica — bem mais radical, e também mais séria — refere-se ao fundamento filos6fico daquele documento, que parte da premissa de que existem direitos naturais. Mas ser que existem esses direitos? A afirmacao dos mesmos é a direca conseqiiéncia do dominio do pensamento jusnaturalista, que durou dois séculos, de Grécio a Kant. Contudo, todas as prin- cipais correntes filos6ficas do século XIX. ainda que a partir de diferentes pontos de vista e com diversas motivagées, em- preenderam um ataque contra 0 jusnaturalismo; elas tm, como ponto de partida, a refutagdo do direico natural, e, como ponto de chegada, a busca de um fandamento para o diteito diverso daquele que o pée na natureza origindria do homem. A primeira dura crftica filoséfica (€ nao mais apenas politica) dos direitos naturais, tal como brotaram da cabeca dos consti tuinres franceses, foi feita em nome do utilitarismo e pode ser lida nas Anarchical Fallacies, de Bentham: traca-se de uma feroz demoligio dessa fantasiosa invencio de direitos que jamais exis- tiram, ja que o direito — para Bentham — é produto da auto- ridade do Estado, "Non veritas sed auctoritas tacit legem”. Mas a autoridade de que fala Bentham nfo € um poder arbitcésio; existe um critério objetivo para limitar (e, portanco, controlar) a autoridade, a saber, 0 principio da utilidade, que ja Beccaria, a quem Bentham apela, expressara na {6rmula “a felicidade do maior ntimero”. Ndo menos contrario a admitir direitos naturais € 0 historicismo, seja na versio mais estritamente juridica da Escola Hist6rica do Direito, que deriva 0 direito do Espirito do Povo, de cada povo, razdo por que cada povo teria 0 seu direito, sendoa idéia de um direito universal uma contradigio em termos; ou seja na versio filos6fica de Hegel (que era, contudo, adversétio da Escola Histética no que se referia & necessidade de uma co- dificagdo na Alemanha), para quem liberdade ¢ igualdade ndo so algo dado por natureza, mas so, ao contrério, “um produto eum resultado da consciéncia hist6rica”, que nao devem perma- necer sob formas abstratas, jd que “sio precisamente esses que no deixam surgi ou destroem a concreticidade, ou seja, a or- ganizacio do Estado, uma Constituicao e um governo em geral”. 126 A negacio do direito natural, finalmente, encontra sua mais radical expresso no positivismo juridico, que é a dou- trina dominante entre os juristas desde a primeira metade do século pasado até o fim da Segunda Guerra Mundial; concordam com essa doutrina, diga-se de passagem, os dois maiores juristas alemfes da primeira metade do século, embora eles sejam habitualmente considerados como representantes de duas visdes antitéticas do direito e da polftica, Hans Kelsen € Carl Schmice, Para 0 positivisma juridica, ae enpoerne aie reiros naturais nfo sfo mais do que direitos piblicos subjeti- vos, “direitos reflexos” do poder do Estado, que ndo constituem um limite a0 poder do Estado, anterior ao nascimento do préprio Estado, mas so uma conseqiiéncia — pelo menos na conhecida e célebre doutrina de Jellinek — da limitagio que o Estado impée a si mesmo, Nao ha dévida de que o antijusnaruralismo prolongado, pluriargumentado e repetido deixou marcas. Dificilmente se poderia hoje sustentar, sem revisdes tedricas ou concessées pré- ticas, a doutrina dos direitos naturais tal como foi sustentada nos séculos passados. Pode-se muito bem afirmar que nio existe outro direito além do direito positive, sem por isso rechagar a exig@ncia da qual nasceram as doutrinas dos direitos naturais, que expressam de modo variado exigéncias de corresio, de complementacio ¢ de mudanca do diteito positivo, Essas exi- géncias ganbam uma forca particular quando so aptesencadas como “direitos”, embora no sejam direitos no sentido proprio da palavra, ou seja, no sentido em que, por “direito”, os juristas entendem uma pretensio garantida pela existéncia de um poder superior, capaz de obrigar pela forca os recalcitrantes, ov s¢ja, daquele poder comum que nfo existe no estado de nacureza que os jusnaturalistas comam como hipétese. Por outro lado, apesar da critica autijusnacuralista, as pro- clamagées dos direitos do homem e do cidadio nao s6 no desapareceram, mesmo na era do positivismo juridico, como ainda continuaram a se enriquecer com exigéncias sempre no- vvas, até chegarem a englobar os direitos sociais ¢ a fragmentar ‘© homem abstrato em todas as suas possiveis especificacdes, de homem e mulher, criange e velho, sadio e doente, dando 127 lugar a uma proliferacdo de cartas de direitos que fazem parecer estreita e inteiramente inadequada a afirmagio dos quatro di- reitos da Declaracio de 1789. Finalmente, as cartas de direito ampliaram o seu campo de validade dos Estados particulares para o sistema interna- cional. No Preambulo ao Estatuto das Nagées Unidas, emanado depois da tragédia da Segunda Guerra Mundial, aficma-se que doravante deverdo ser protegidos os direitos do homem fora ¢ acima dos Estados particulares, “se se quer evitar que 0 homem seja obrigado, como diltima instincia, a rebelar-se contra a ti- rania e a opressio”. Trés anos depois, foi solenemente aprovada a Declaragao Universal dos Direitos do Homem, através da qual codos os homens da Terra, tornando-se idealmente sujeitos do direito internacional, adquiriram uma nova cidadania, a cidadania mundial, e, enquanto tais, tornaram-se potencial~ mente titulares do direito de exigir 0 respeito aos direitos fandamentais contra 0 seu prdprio Estado. Naquele luminoso opéisculo que € A paz perpétua, Kant craga as linhas de um diteito que vai além do direito publico interno e do direito plblico. externo, chamando-o de “diteito cosmopolita”. 6 0 di reito do futuro, que deveria regular no mais 0 direito entre Estados e stiditos, nfo mais aquele entre os Estados particulares, mas o direito entre os cidadaos dos diversos Estados entre si, um direito que, para Kant, ndo é “uma representagio fantéstica de mentes exaltadas", mas uma das condi¢ées necessérias para a busca da paz perpétua, numa época da histéria em que “a violagio do direito ocorrida num ponto da ‘Terra é percebida em todos os outros pontos”” ‘A Revolugao Francesa foi exaltada e execrada, julgada ora como uma obra divina, ora como uma obra diabélica. Foi jus- tificada ou nio justificada de diferentes modos: justificada por- que, apesar da violéucia yue # acompanhou, ceria cransformado profundamente a sociedade européia; no justificada porque um fim, mesmo bom, nao santifica todos os meios, ou pior ainda, porque o ptdprio fim nao era bom, ou finalmente, por- que o fim teria sido bom, mas nio foi alcangado. Mas, qualquer que seja 0 jufzo sobre aqueles eventos, a Decleragio dos Direitos continua a ser um marco fundamental. O préprio Furet — 128 embora tenha contribuido, com seus estudos € com sua inter- Pretagio, para sugerir a idéia de que a Revolugio jé se esgotou ‘hd muito tempo — admite que “a manifestagio mais espeta- cular da restituiggo do contrato social foi a Declaracio dos Direitos do Homem”, jé que constieui “a base de um novo viver associado”. Disso, de resto, tinham consciéncia os préprios Protagonistas e os préprios contempordneos, Em 8 de agosto, Dupont de Nemours disse: “Nao se trata de uma Declaracio dos Direitos destinada a durar um dia.Trata-se da lei sobre a qual se fundam as leis de nossa nagio e das outras nagées, de algo que deve durar até 0 fim dos séculos.” No final de 1789, Pietro Versi escrevia na Gazzeta di Milano: “As idéias francesas servem de modelo para os ouittos homens. Enquanto os direitos dos homens estavam estabelecidos entre as montanhas dos Al- es, entre os plntanos dos Pafses Baixos e na ilha da Gra-Bre- tanha, esses sistemas pouca influéncia tiveram na maioria dos ‘outros reins. Agora, a luz foi colocada no coragéo da Europa; ela nao pode (...) deixar de se espraiar sobre os outros governos.” Dissemos, no inicio, que a Declaragio de 1789 foi pre- cedida pela notte-americana. (Ima indiscutivel verdade. Mas foram os principios de 1789 que constitufcam, durante um século ou mais, a fonte ininterrupta de inspiragio"ideal para 08 povos que lucavam por sua liberdade e, ao mesmo tempo, © principal objeto de irrisio e desprezo por patte dos reacio- nétios de todos os credos e faces, que escarneciam “a apologia das recumbantes blagues da Revolucao Francesa; Justiga, Fra- ternidade, Igualdade, Liberdade”. © significado ‘histérico de 1789 nao escapou a Tocqueville, embora ele tenha sido o pri- meiro grande historiador a refutar a imagem que a Revolugio tivera de si mesma; “O tempo em que foi concebida a Decla~ ragio foi o tempo de juvenil entusiasmo, de orgulho, de paixdes generosas e sinceras, tempo do qual, apesat de todos os erros, os homens iriam conservat eterna memdéria e que, por muito tempo ainda, perturbaré 0 sono dos que querem subjugar ou corromper os homens.” Num dos muitos documentos contra-revolucionétios de Pio VI, contemporiineo dos eventos, chama-se de “direito mons- truoso” o direito de liberdade de pensamento e de imprensa, 129 “deduzido da igualdade e da liberdade de todos os homens”, € se comenta: “Nao se pode imaginar nada mais insensato do que estabelecer uma tal igualdade e uma tal liberdade entre nés Cerca de dois séculos depois, numa mensagem ao secrettio das ‘Nagées Unidas por ocasiio do trigésimo aniversério da Decla- taco Universal, Joo Paulo II aproveitava a oportunidade para demonstrat “o seu constante inceresse e solicitude ‘pelos diseitos humanos fundamentais, cuja expresso encontramos claramente formulada na mensagem do peéprio Evangelho”. Que melhor prova poderfamos ter do caminho vitorioso realizado por aquele texto em sua secular hist6ria? No final desse caminho, parece agora ter ocorrido, para além dos insensatos ¢ estéreis facciosis~ mos, a reconciliagéo do pensamento cristio com uma das mais alas expresses do pensamento racionalista ¢ laico, 130 KANT E A REVOLUGAO FRANCESA 721 tempos de hoje, quando a cega vontade de poder que dominou a histéria do mundo tem a seu servigo meios extraordindrios para se impor, menos do que nunca a honra do douto pode ser separada de um renovado senso de respon- sabilidade, no duplo signifiadu da palavra, para 0 qual ser responsdvel quer dizer, por um lado, levar em conta as conse- qiiéncias da propria acdo, e, por outro, responder pelas propria ages diante de nosso préximo, Em outras palaveas: trata-se de evitar tanto a fuga ma pura ética das boas intencdes (“faga © que deve © que ocorra 0 que tiver de ocorzes") quanto 0 fechamento num espléndido isolamento (“desprezo 0 som de tua harpa, que me impede de escutar a voz da justia”). A medida que nossos conhecimentos se ampliaram (e con- tinuam a se ampliar) com velocidade vertiginosa, a compreen- sdo de quem somos e para onde vamos tornou-se cada vez mais dificil. Contudo, 20 mesma tempo, pela insélita magnicude das ameacas que pesam sobre nés, essa compreensio € cada vez mais necessdria. Esse contraste entre a exigéncia incontor- navel de captar em sua globalidade o conjunto dos problemas que devem ser resolvidos para evitar cardstrofes sem preceden- tes, por um lado, e, por outro, a crescente dificuldade de dar respostas sensatas a todas as questées que nos permitiriam al- cangar aquela visdo global, iinica a permitir um pacifico e feliz 131 desenvolvimento da humanidade, esse contraste € um dos mui- tos paradoxos de nosso cempo, e, a0 mesmo tempo, uma das razBes das angtistias em que se encontra o estudioso, a0 qual & confiado, de modo eminente, 0 exercicio da inteligéncia es- clarecedora, bem como o empenho em nio deixar irrealizada nenhuma tentativa para acolher 0 desafio posto & razdo pelas paixdes incontroladas e pelo mortal conflito dos interesses. ‘No final dos meus iltimos discursos, acreditei poder ex- pressar esse “mal-estar” do homem de razio (permitam-me no usar a palavra “intelectual”, agora desgastada pelo longo uso nem sempre correto, que lhe atribui excessivas vezes tarefa presungosa e inexeqilfvel de encontrar o fio de Ariadne para sair do labirinto) referindo-me & ambigtiidade da his- t6ria.’ A hist6ria foi sempre ambigua, apesar das apar€ncias, id que deu sempre respostas diversas conforme quem a in- tertogava e as circunstdncias em que o fazia. Mas hoje, depois do esgotamento da idéia de progresso — 0 crepiisculo de uum mito, como foi dito —, 2 ambigitidade ¢ maior do que nunca, Duas interpretagdes opostas dominaram no século pas- sado: a interprerac#o triunfal heyelian, seguumlo a qual a his téria é 2 realizagio progressiva da idéia de liberdade (hegeliana mas, podemos trangiiilamente acrescentar, também marxiana: a hist6ria como passagem do reino da necessidade ao reino da liberdade); ¢ a interpretagio nietzschiana, segundo a qual a humanidade se dirige para a era do niilismo. Pois bem: ninguém gostaria hoje, nem mesmo consideraria de alguma utilidade, de se avencurar a prever, ou mesmo de tex de apostar, em qual das duas est destinada a se verificar. O mundo dos homens dirige-se para a paz universal, como Kant havia pre- visto, o2 para a guerra exterminadora, para a qual foi cunhada, em oposigio a pacifiemo, um dos ideais da sérnlo que acre- ditava no progresso, a palavra “exterminismo”? Dirige-se para © reino da liberdade, através de um movimento constante € cada vez mais amplo de emancipagio (dos individuos, das clas- ses, dos povos), ou para o reino do Grande Irmio, descrito por Orwell? ; De modo mais geral: tem ainda algum sentido propor 0 problema do sentido da hist6ria? Propor o problema do sentido 132 da hist6ria significa considerar que existe uma intencionalidade no movimento da hist6ria, entendida precisamente como di- rego consciente para um objetivo. E sé é possivel dar uma resposta a essa questo do objetivo da histéria buscando um projeto preestabelecido, a ser atribufdo a um sujeito coletivo, seja ele a Providéncia, a Razio, a Natureza, o Espirito Uni- versal. Mas seré que hoje, no ambito de um pensamento frag- mentado como 0 que caracteriza a filosofia contempordnea, tio desconfiada diante das idéias gerais, eo temerosa (a meu ver, corretamente) de se comprometer com visées excessivamente gerais, alguém pode crer ainda num sujeito universal? Essa crenga, por outro lado, nfo passaria de uma das varias formas possiveis de antropomorfizagio da histéria, ou seja, de attrib io de faculdades ou poderes préprios do homem a um sujeico, (nese caso, a Humanidade, a Razio Universal) diverso do ho- mem singular, através de uma extrapolacio, de tipo analégico, que nio oferece nenhuma garantia de vericidade e que permi- tiria apenas uma reconstrugdo puramente conjecural (para usar- mos uma expresso kanciana) do decurso histérico. Mas fazer uma histéria compleamence conjectural, derivada inteitamente de indicios € ndo de fatos comprovados, equivaleria — como adverte 0 proprio Kant — a “tragar a trama de um romance” ou de “um simples jogo da imaginago”. O que nfo exclui que se possam fazer conjeturas sobre © curso de uma histéria; contudo, é preciso que se tenha plena consciéncia de que, me- diante conjeturas, pode-se preencher uma lacuna de nossa do cumentagio entre uma causa longinqua e um efeito préximo, mas seria absolutamente ilus6rio (e, portanto, intitil) recons- truir assim toda a hist6ria global da humanidade.? Diversa da historia conjetural é, para Kant, a histéria pro fética, que tem talvez im fim mais ambicioso — 0 de descobrir a tendéncia de desenvolvimento da histéria humana, se essa é estaciondria, ou se vai do mal ao pior, ou do bem ao melhor (e, para Kane, como se sabe, a resposca justa € a tiltima) —, mas no cem a menor pretensto de verdade, a0 contrério do que ocorte com a histéria conjetural. Diferentemente da histéria empfrica, (que € a hiseéria dos historiadores), a histéria profé- tica, (que é a historia dos filésofos) no procede por causas — 133 de uma causa a seu efeito, numa cadeia ininterrupta, salvo no caso em que algumas lacunas sfo preenchidas através de con- jeturas —, mas busca descobrir num evento extraordindrio, nfo tanto a causa de um evento sucessivo, mas antes um indfcio, um signo (signum rememorativumm, demonstrativum, prognosticium) de uma tendéncia da humanidade considerada em sua totalide- de. Somente a histéria profética (ou filoséfica), nao a histéria empirica (mesmo que enriquecida pela histéria conjetural), pode desafiar — ou mesmo resolver — a ambigiiidade do movimento histérico, dando uma resposta & questo de se a humanidade esté ou ndo em constante progresso para o melhor. © que a historia profética pode fazer é pressagiar 0 que poderé ocorrer, nao prevé-lo. A previsdéo é tarefa de uma his- téria hipotética, de uma hist6ria que enuncia suas proposig&es na forma do “se isto, ento aquilo”, numa relacio entre condi~ Ges € conseqiiéncias; mas ela néo € capaz de estabelecer com certeza se ito ou nio se verificar as condigoes das quais de- veriam necessariamente derivar certas conseqiténcias. Ao con- trério, 0 evento extraordindrio, que € 0 ponto de partida da historia proférica, € algo que ocorreu efetivamente. O que torna problemético esse tipo de histéria € o cardter signifi- cativo ou nao do evento pré-selecionado, que pode influir sobre a credibilidade da predicao. A questo de saber se Kant reve ou no raz%o ao indicar o evento revelador da tendéncia da bumanidade para o melhor, é uma questo que podemos deixar sem resposta. O que pode hoje, no perfodo do bicentendtio da Revolugio — e do grande rumor que foi continuamence crescendo, até o acurdimento (e estamos apenas no principio), em corno do evento ccorride hé duzentos anos —, suscitar (© nosso interesse de pésteros 6 0 fato de o grande fildsofo da época ter captado na Revalicin Francesa o evento extraor~ dindtio, 0 signum prognosticum, de onde extrain o seu pressdgio sobre 0 fururo da humanidade. ‘As conhecidissimas paginas de Kant sobre a Revolugio Francesa encontram-se numa de suas dltimas obtas, publicada em 1798, quando os anos da tempestade que abalara 0 mundo, e durante os quais rolara a cabega do rei (crime que Kant ‘execrava), jd estavam distances. O escrito, intitulado “Se o 134 género humano esté em constante progresso para o melhor”, estd inclufdo na obra O conflito das faculdader, do qual constitui a segunda parte, dedicada a0 conilito da faculdade filos6fica, na qual Kant via representado 0 espirito critico; apesar disso, porém, ele constatava estar essa faculdade dominada pela rea- So e servir de ninho para os complacentes inimigos da Re- volugio. Um autorizado comentador escreveu: “A fé de Kant no progresso indefinido da humanidade, na racionalidade ima- nente 4 histéria, no triunfo final da liberdade da paz com justica, (...) nfo foi abalada nem mesmo pelas desordens ocor- ridas na Franca, pelas continuas guerras que tiveram lugar naquele tempo, pelo pessimismo difundido e alimentado pelos juristas ¢ pelos homens de Estado, Pareceu-lhe que somence © fil6sofo (...) fosse capaz de entender as vozes ocultas da hist6ria, de medi o grau de desenvolvimento a que chegara a humanidade, de entrever o curso futuro dos eventos, de indicat as diretivas para as reformas civis e politicas.” O ensaio fora proibido precisamente porque nele se fazia a apologia da revolugéo. E foi publicado somente depois da morte de Frederico Guilherme I, ocorrida em 1797, quando foram anu- ladas algumas testrigdes 2 liberdade de imprensa. Um dos seus parigrafos inticulase “De um evento de fosso tempo que revela a tendéncia moral da humanidade”. O evento é “a revoluco de um povo rico espiritualmente”, 0 qual — embora tenha acumulado misérias e crueldades capazes de induzic um homem bem-pensante a aio tentar a experiéncia uma segunda vez — encontrou nos espiritos de todos os es- pectadores uma participacao de aspitagécs que se aproximava do entusiasmo, definido este ditimo como “participaggo no bem com paixio, que se refere sempre e apenas ao que € ideal, ao que € puramente moral” e que nao pode ter ontra causa seno “uma disposicao moral da espécie humana.”> © ponto central da tese kantiana para o qual eu gostaria de chamar a atengao € que tal disposigio moral se manifesta na afirmacdo do direito — um direito natural — que tem um povo a nfo ser impedido por ourras forcas de se dar a Cons- tituigdo civil que creia ser boa. Para Kant, essa Constituigio 86 pode ser republicana, ou seja, uma Constieuigéo cuja bon- 135 dade consiste em ser ela a tinica capaz de evitar por principio a guerra. Para Kant, a forca ¢ a moralidade da Revolugio re- sidem na afirmagio desse direito do povo a se dar livremente uma Constituigdo em harmonia com os direitos naturais dos individuos singulares, de modo tal que aqueles que obedecem as leis devem também se reunir para legislar. O conceito mes- mo de honta, préprio da antiga nobreza guerreita, esvai-se diante das armas dos gue tinham em vista 0 direito do povo a que pertenciam. ‘Algumas das idéias aqui expressas tinham sido ancecipa- das (¢ expostas de modo mais amplo) em dois escritos ante- riotes, Idéia de uma histbria universal do ponto de vista cosmopolita e Para a paz perptina, O primeiro, redigido em 1784 (alguns ‘anos, portanto, antes da Revolugio), no despertou interesse ‘entre seus contemporineos, embora esses tenham conhecido comentado, como 0 fizeram Fichte e Hegel, 0 segundo; mais tarde, juntamente com todos os escritos kantianos de filosofia da hist6ria, foi malquisto no ambiente do historicismo, de Dilthey a Meinecke, que vitam na histéria teleol6gica, na con- cepgio finalista da hist6ria, uma heranga da filosofia anci-his- toticista do Juminismo. S6 foi finalmente revalorizado 90 inicio de nosso século, por alguns socialistas de inspiragio kan- tiana.S A ctftica — por se deter principalmente no problema da legitimidade da filosofia da histéria, nas aporias préprias desta ultima em Kant, e na maior ou menor coeréacia dela com relacao as outras obras do proprio Kant — terminou por dar menor importéncia ao tema central da obra, que fora i nizado por Hegel, mas que € hoje mais atual do que nunca, ou seja, o tema da tendéncia da histéria humana para uma ordem juridica mundial. Esse tema, tio bem resumido no uso du teuuo-chave Welrbitrgertum © 10 de “ordenamento cosmo- polita”, era de origem estéica, mas fora transferido por Kant de uma concepcio finalista da historia, Kant sabia muito bem que a mola do progresso nao € a calmatia, mas 0 conflito. Todavia, compreendeta que existe um limite para além do qual o antagonismo se faz demasia- damente destrutivo, cornando-se necessdrio um autodisciplina- mento do conflito, que possa chegar até a constituigio de um 136 ordenamento civil universal. Numa época tes entre Estas soberanos, ele abseem lnchierane ee liberdade selvagem” dos Estados j& constituidos, "por cause do emprego de todas as forcas da comunidade nos armamentos, das devastaydes que decorrem das guerras e, mais ainda, de necessidade de manter-se continuamente em armas, impede por um lado, o pleno e progeessivo desenvolvimento das dis, posig&es naturals, e, por outro, em fungao dos males que dai Aerivam, obrigard @ nossa espécie a buscar uma lei de equilfbrio cote mics Eridor qu, pola sun prpsia berdade,sf0an- tagonistas, bem como a estabelecer um m eee le safes as etsy mopolita de seguranga paiblica”.” " Os criticos da filosofia da histéria kantiana vieam ainda menos 0 fato de que essa idéia da “cosmépolis” — segundo a gual cada homem é potencialmente cidadio nfo s6de wen Estado particular, mas sim do mundo — seria desenvolvida no escrito Para a paz perpéiua (1795). Um dos aspectos menos estudados desse escrito € a inerodugdo, por parce de Kens, lado do direito pablico interno e do externa, de uma aetcein espécie de direito, que ele chama de ins cosmopolisicam. Como se sabe, dos trés artigos definitivos do tratado imagindrio para uma paz perpétua, 0 primeiro (que afirma que a Constituiezo de todo Estado deve ser republicana) pertence ao diteito pi. blico interno; o segundo (pata o gual o direito internacicnal deve se fundar numa federagio de Estados livees), pertence ao diteito paiblico externo, Mas Kant acrescenta um terceito ac, tigo, que diz o seguinte: “O diteito cosmopolita deve set lis mitado as condigdes de uma hospitalidade universal” ® Por que Kant julga dever acrescentar aos dois, generos de diteito pablico tradicionais, 0 interno € 9 externo, wea terceiro género? Porque, além das relagGes entre o Estado ¢ 05 seus cidadiios e daquelas entre 0 Estado e os otttos Estados ele considera que devam ser consideradas também as relagdee entre cada Estado particular e os cidadios dos outios Estatlos, ou, inversamente, entze 0 cidadio de um Estado e uim Estado que no € 0 seu com os outros Estados. Disso derivam duas méximas: no que se refere & primeia relagio, o dever de hos. 137 pitalidade, ou o direito (Kant sublinha que se trata de um direio endo apenas de um dever meramente filantrépico) de um estrangeiro que chega ao territério de um outro Estado a nio ser tratado com hostilidade; no que se refere A segunda relagio, “o direito de visita que cabe a todos os homens, ou seja, de passar a fazer parte da sociedade universal, em virtude do direito comum 2 posse da superficie da Terra, sobre a qual, sendo ela esférica, 05 homens nZo podem se dispersar isolan- do-se ao infinito, mas devem finalmente se encontrar € coe xistit”. Desses dois direitos dos cidadios do mundo derivam dois deveres dos Estados: do primeiro, 0 dever de permicir ao cidadao estrangeiro o ingresso no seu préprio territério, do que resulta a condenagio dos habitantes das costas dos Estados bérbaros, que se apoderam das naves que nelas apor- tam e escravizam os néufragos; do segundo, o dever do héspede de no se aproveitar da hospitalidade para transformar a visita ‘em conguista, do que resulta a condenagio dos Estados co- merciais europeus que, sob 0 pretexto de estabelecerem re- lagdes comerciais, introduzem tropas que oprimem os nativos. (Nao seed indeil recordar que Hegel, que ironizou ae fantasias kantianas da paz perpétua, justificou a expansio colonial.) Nessa relagio de reciprocidade entre o direito de visita do cidadio estrangeiro e 0 dever de hospitalidade do Estado visicado, Kant tinba originariamente prefigurado o diteito de todo homem a ser cidadio no s6 do seu préprio Estado, mas do mundo inteiro; além disso, havia representado toda a Terra como uma potencial cidade do mundo, precisamente como uma cosmépolis.? E é somente com esse tipo de relagio — no entre individuos, néo entre Estado e individuos no interior, néo entre Estado e Estado, mas entre Estados ¢ in- dividuos dos outros Estados — que Kant conclufa 0 sistema geral do diteito ¢ representava de modo integral o desenvol- vimento histérico do direito, no qual o ordenamento juridico universal, a cidade do mundo ou cosmépolis, representa a ‘quarta ¢ Ultima fase do sistema jusidico geral, depois do estado de nacureza (onde nao hé outro direito além do direito privado, © direito entre individuos), depois do estado civil (regulado pelo diteito piblico interno), depois da ordem internacional 138 (egulada pelo direito pitblico externo). Concebido como a liltima fase de um proceso, o direito cosmopolita nao €, para Kant, “uma representagio de mentes exaltadas”, j4 que, num mundo onde “se chegou progressivamente, no que se refere 2 associagdo dos povos da Terra (...), a um tal nivel que a violagéo do diteito ocorrida num ponto da ‘Terra é percebida em todos 0s outros pontos”, 0 diteito cosmopolita é “o ne- cessdtio coroamento do cédigo nfo escrito, tanto do direito ppublico interno como do direito internacional, para a fundacio de um diteito p6blico geral e, portanto, para a realizacio da paz perpétua”.!” B fato hoje inquestiondvel que a Declaragio Universal dos Direitos do Homem, de 10 de dezembro de 1948, colocou as premissas para transformar também os individuos singulares, € no mais apenas os Estados, em sujeitos juridicos do direito internacional, tendo assim, por conseguinte, iniciado a passa~ gem para uma nova fase do direito internacional, a que torna esse direito nfo apenas o direito de todas as gentes, mas 0 direico de todos os individuos. Essa nova fase do direito in- ternacional no poderia ser chamada, em nome de Kant, de direito cosmopolita? No escrito sobre a paz perpétua, Kant nfo fez nenhuma referéncia & Revolucio Francesa. Somente no seu tiltimo escrito, de que falei no inicio, onde retoma mais uma vez 0 tema da Constituicdo civil fundada no direito de um povo a legislar (énica Constituigto que poderia dar vida 2 um sistema de Estados que eliminatia para sempre a guerra), foi que Kant reconheceu, no grande movimento da Franga, o evento que podia ser interpretado, numa visio profética da hist6ria, como © sinal premonitério de uma nova ordem mundial. Entre as muitas celebtacdes desse evento, pode encontrar dignamente o seu lugar a incerpretagdo que dele formulou o maior filésofo da época; interpretagio que, de resto, é a tinica capaz de salvar o valor perene desse evento, para além de todas, as controvérsias dos historiadores, os quais, othando para as dzvores isoladas, fteqiientemente deixam de ver 2 floresta. Diante da ambigtlidade da hist6ria, também eu creio que um dos poucos, talvez 0 tinico, sinal de um confiével movi- 139 mento histérico para o melhor seja o crescente interesse dos eruditos e das préprias instncias internacionais por um reco- nhecimento cada vez maior, e por uma garantia cada vex mais segura, dos direitos do homem. Um sinal premonitério nao € ainda uma prova. E apenas um motivo para que no petmanecamos espectadores passivos @ para que nfo encorajemos, com nossa passividade, os que dizem que “o mundo vai ser sempre como foi até hoje”; estes iltimos — e torno a repetir Kant — “concribuem para fazer ‘com que sua previsio se realize”,"' ou seja, para que 0 mundo permanega assim como sempre foi. Que nao triunfem os inertes! Notas “La pace ha un faturo?”, discurso pronunciado oo Simpésio Incer- nacional sobre “I fururo della pace ¢ la violenza del futuco” (Cietd di Lugano, 18-20 de novembro de 1987), publicado in I! Terzo sassente, Tutim, Sonda, 1989, pp. 188-194, 2.1, Kant, Mutmasslicher Anfang. der Menschengeschichte, 1786 ("Con- geccure sull’origine della seoria”, in I. Kane, Sevitti polivci e di fi- Ioiofia del divitto e della storia, Taximn, Utet, 1956, p. 196) 3. 1 Kant, 0b das menschliche Gewblechs im bestndigen Fortwhreiten 2am Besseren sei, 1797 ("Se it genere umano sia in costante progresso verso il meglio", in Seritti politi, cie., p. 218). 4, V, Mathieu, “Nota storica”, premissa a Sertti politic, cit, p. 87. 5. 1. Kant, Scritti politici,cit., p. 219. 6. Extraio essis noticias sobre a fortuna dos escritos kantianos de fi- losofia da hist6ria do ensaio de M. Mori, “Stadi sulla fitosofia kan tana della storia”, in Rivista di filosofia, LXX (1979), pp. 115-146. 7. 1 Kant, Ieee zu einer allgemeinen Geschichte in weltbirgerlicher Absiht, 1784 ("Idea di una storia universale dal punto di visea cosmopo- licico”, in Scvitsi politci, cit, p. 133); fed. brasileira: Idéia de ama bistirsa unsversal de umm ponte de vista cormopolita, So Paulo, Beasi- liense, 1986, pp. 9-244 8, I. Kant, Zum ewigen Prieden, 1795 ("Per la pace perpetua’, in Soritti politic, cit., p. 302); fed. brasileira: A paz perpétua, Porto Alegee, L&PM Editores, 1989, pp. 25-57]. 9. Minha acengio para o tema do diteito cosmopolita em Kant, como prefiguragio de uma nova fase do desenvolvimento juridico do ge- nero humano, foi despereada por D. Archibugi, “La democrazia nei 140 10. u progerci di pace perpesua”, in Teoria politica, VI (1990), 0° 1, p. 122 ess.; "Le utopie della pace perpetua”, in Lettera internazionale, V, n° 22, outono de 1989, pp. 58-59, 1. Kant, Zim ewigen Frieden, cit. (trad. italiana cit., p. 305). L. Kane, Worin besteht der Fortschrite zum Besseron im Menwhenges- chlechte?’ ln che cosa consiste il progresso del genere uimano verso il meglio?”. in Scrtti plitici, cit, p. 234). Sobre 0 tema da relacéo entre Kant ¢ a Revolugio Francesa, cf.0 recente ensaio de C. Rosso, “Kant e la rivoluzione francese. Molee rivoluzioni in una”, in Alma Mater Studiorum, Rivista sientifica dell" Universita di Bologna, Vi (1989), 2, pp. 65-76. De particular interesse € 0 livro de D. Lo- surdo, Autacensura e compromesso nel pensiero politico di Kant, Napoles, Bibliopotis, 1984. 141 TERCEIRA PARTE A RESISTENCIA A OPRESSAO, HOJE 1. O alfa e o Omega da teoria politica 6 0 problema do poder: como o poder € adquirido, como € conservado e perdido, como é exercido, como € defendido ¢ como € possivel defen- der-se contra ele. Mas o mesmo problema pade ser considerado de dois pontos de vista diferentes, ou mesmo opostos: ex parte brincipis ow ex parte pepali. Maquiavel ox Rousseau, para indicar dois sfmbolos, A tcoria da razio de Estado ov a teoria dos direitos naturais € 0 constitucionalismo, A teoria do Estado- poréncia, de Ranke a Meinecke e ao primeiro Weber, ov a teoria da soberania popular. A teoria do inevitével dominio de uma restrita classe politica, minoria organizada, om a teoria da ditadura do prolecariado, de Marx a Lenin. O primeiro ponto de vista € 0 de quem se posiciona como conselheito do principe, Presume ou finge set 0 porta-voz dos interesses nacionais, fala em nome do Estado presente; o segundo ponto de vista € 0 de quem se erige em defensor do povo, ou da massa, seja ela concebida como uma nagio oprimida ou como uma classe ex- plorada, de quem fala em name do anti-Estado ou do Estado que seré. Toda a histéria do pensamento politico pode ser dis- tinguida conforme se tenha posto 0 acento, como os primeiros, no dever da obediéncia, ou, como os segundos, no direito & resist€acia (ou A revolucéo). Essa premissa serve apenas pata situar 0 nosso discurso: © ponto de vista no qual colocamos, quando abordamos o tema da resisténcia a opressio, nfo é 0 primeizo, mas o segundo. 143, Nao ha diivida de que o velho problema da resisténcia a opressfo voltou a se tornar atual gracas A imprevista ¢ geral explosio do movimento de “contestacéo”. Mas ignoro se foi tentada uma anilise das diferengas entre os dois. fendmenos. Num recente artigo, Georges Lavau faz. um exame muito in- teressante do fenémeno da contestagio, buscando apontar seus tragos distintivos, particularmente em face da oposicao legal ¢ da revolucio.' Mas no toca no problema da diferenga entre contestagao € resisténcia. Penso, concudo, que a questo merece estudo, quando menos, porque tanto a contestagdo quanto a resisténcia pertencem as formas de oposi¢io extralegal (com relasio ao modo como € exercida) € deslegitimadora (com re~ Jago ao objetivo final). Creio que, também nesse caso, como primeiro expedience para destacar a diferenca entre os dois fendmenos, vale a refe- réncia ao seu respectivo contrario: 0 conerario da resisténcia € a obediéncia, 0 contrério da contestaco € a aceitacdo. A teoria eral do direico deteve-se muitas vezes ¢ com prazer (ultima- mente, em Hart) na diferenca entre a obediéncia a uma norma ou a0 ordenamento em seu Conjunto, que € uine atitude pessiva (e pode ser também mecinica, puramente habitual, instintiva), ea aceitagZo de uma norma on do ordenamento em set con- junto, que é uma atitude ativa, que implica, se no um juizo de aprovagio, pelo menos uma inclinagio favordvel a se servir da norma ou das normas para guiar a prépria condura e para condenar a conduta de quem nio se conforma com els ou elas, Enquanto contrdria & obediéncia, a resisténcia compreende todo comportamento de ruptura contra a ordem constitufda, que ponha em crise o sistema pelo simples fato de produzit-se, como ocorre num tumulto, num motim, numa rebelido, numa incurreigio, até 0 caso limite da revolugio; que ponha 0 sistema em crise, mas no necessariamente em questao. Enquanto contréria 4 aceitacio, a contestacdo se refere, ‘mais do que a um comportamento de ruptura, a uma atitude de critica, que pée em questo a ordem constituida sem neces- sariamente pé-la em crise. Lavau observa, corretamente, que a contestacio “supera 0 mbico do subsistema politico para atingir io s6 sua ordem normativa, mas também os modelos culturais 144 gerais (0 sistema cultural) que asseguram a legitimidade profunda do subsistema politico."? E, com efeito, se a tesisténcia culmina essencialmente num ato prético, numa aco ainda que apenas demonstrativa (como a do negro que se senta a mesa de um restaurante reservado aos brancos), a contestacao, por seu turno, expressa-se através de um discurso crftico, num protesto verbal, ssa enunciagdo de um slogan. (Nao por acaso 0 lugar prOptio em que se manifesta a atitude cantestadora é a assembléia, ou seja, um lugar onde nao se age, mas se fala.) Decerto, na prética, a distingo nfo é assim tao nftida: numa situagdo concreta, é dificil estabelecer onde termina a contestacio e onde comeca a resisténcia. O importante é que se podem verificar os dois ca- sos-limite, o de uma resiscéncia sem contestagao (a ocupacio de terras por camponeses famintos) e o de uma contestagio que io se faz acompanhar por ato subversivo que possa ser chamado de resisténcia (a ocupacio de salas de aula na Universidade, que € certamente um ato de resisténcia, nem sempre caracterizou necessariamente a concestagdo do movimento estudantil). En- quanto a resisténcia, ainda que nfo necessaciamente violenta, pode chegar até 0 uso da violéncia c, de qualyuer modo, udu € incompativel com 0 uso da violéncia, a violéncia do contestador, ao contrério, é sempre apenas ideolégica, Pattindo do renovado interesse pelo problema da resis- réncia — do qual, de resto, nasceu o atual simpésio —, pre- tendo nesta minha comunicacio: a) destacar as razGes hist6ricas dessa revivescéncia (itens 2, 3 ¢ 4); b) indicar alguns elementos distintivos entre 0 modo como se punha ontem e 0 modo como se poe hoje o problema da resisténcia (itens 5 € 6). Referindo-me ao titulo que dei & comunicagio, trata-se de res- ponder a duas questées: a) a resistencia, hoje, por qué?; b) a resisténcia, hoje, como? Concluo a comnnicagin com algumas observagdes sobre os vérios tipos de resist@ncia (item 7). 2. Excinta a eficécia da literatura politica suscitada pela Revolugio Francesa, o problema do direito de resisténcia per- deu — ao longo do século XIX — grande parte do seu in- teresse, Podem-se indicar duas razdes para esse declinio, uma ideolégica, outra instieucional. 145 Uma das caracteristicas marcantes das ideologias politicas do século XIX, que deixou de merecer a devida atengio, foi a crenga no fenecimento natural do Estado. ‘Tendo chegado com Hegel a sua méxima expresso a idéia, cara aos grandes filésofos politicos da época moderna (a Hobbes, a Rousseau, a Kant), de que 0 Bstado era a realizagio do dom{nio da razio na histéria, o “racional em si e para si”, todas as grandes corren- tes politicas do século passado inverteram o caminho, passando 2 contrapor a sociedade a0 Estado, descobrindo na sociedade (€ ndo no Estado) as forcas que se orientam no sentido da libertagéo e do progresso histérico, ¢ vendo no Estado uma forma residual arcaica, em via de extingfo, do poder do homem sobre 0 homem. Dessa desvalorizagio — que foi uma tipica expresso da profunda transformagio produzida na sociedade, e, por reflexo, na concepgio geral da sociedade e do progresso histérico, pelo crescimento da sociedade industrial e pela idéia de que os homens deviam agora se deixar guiar mais pelas leis naturais da economia do que pelas leis artificiais da polftica —, sio conhecidas essencialmente trés versées: a liberal- libe- tista* & Spencer, segundo a qual o Dstado, nascide ¢ fortalccide: nas sociedades militares, itia perder grande parce de suas fun- Ges A medida que fosse crescendo a sociedade industrial; @ socialista marx-engelsiana, segundo a qual, depois do Estado burgués, haveria certamente uma ditadura, mas cuja finalidade era suprimir no futuro qualquer forma de Estado; a libertéria, de Godwin a Proudhon e Bakunin, segundo a qual as insti- tuigbes politicas, caracterizadas pelo exercicio da forga, a0 con- tririo do que haviam suposco Hobbes ¢ Hegel (os grandes te6ricos do Estado moderno), nfo s6 no eram indispensiveis para salvar o homem da barbérie do estado de natureza ou da insensatez da sociedade civil, mas eram intiteis, ou melhor. danosas, podendo trangiiilamente desaparecer sem deixar trago ou saudade. + Em italiano, hi termos diversos pars caracteriar o defensor do libetalismo no certeno politico (liberal) eo defensor de uma irrestritalibeedade de mercado iberista) (N. do T) 146 A maxima concentragio de poder ocorre quando os que detém 0 monopélio do poder coercitivo, no qual consiste pro- priamente o poder politico, detém ao mesmo tempo o mono- Pélio do poder econdmico ¢ do poder ideoldgico (através da alianga com a Igreja tinica elevada a Igreja de Estado, ou, modernamente, com o partido tinico; em outras palavras, ocorre quando 0 soberano tem, como na teoria também aqui para- digmatica de Hobbes, ao lado do imperium e do dominixen, tam- bém a potsctat thivitualis, que 6, dex de prcieude: obediéncia dos préprios stiditos por forga de sangées nao sé terrenas, mas também ultcacerrenas, A ilusio oitocentista sobre o fenecimento gradual do Es- tado derivava da concepgio de que — através da Reforma ¢ da revolugio cientifica, primeiro, ¢ através da revolucio indus- trial, depois, ou seja, através de um processo de fragmencacio da unidade religiosa e de secularizacio da cultura, por um lado © por outro, através da formacio de uma camada de empre- sitios independences (fossem ou no os dois fendmenos ligados entre si) — haviam se iniciado dois processos paralelos de desconcentracio do poder, com a conseqiiente desmonopoliza- a0 do poder ideolégico-religioso, que encontraria sua garantia jusfdica na proclamagao da liberdade religiosa e, em geral, da liberdade de pensamento, ¢ com a nao menos conseqilente desmonopolizasio do poder econdmico, que encontraria sua expresso formal no reconhecimento da liberdade de iniciativa econdmica. Teria restado a0 Estado apenas 0 monopélio do poder coercitivo, a ser usado em defesa (mas s6 em dltima insténcia, como extrema ratio) do antagonismo das idéias ¢ da concorréncia dos interesses. A desforra da sociedade civil contra 0 Estado foi uma idéia comum, ainda que interpretada e orien- tada de diferentes modos, tanto aos liberais quanto aos li- bervirios, tanto aus sucialistas ut6picos quanto 20s socialistas clentificos. 3. Do ponto de vista institucional, o Estado liberal ¢ (posteriormente) democratic, que se instaurou progressiva- mente ao longo de todo 0 arco do século passado, foi carac- tetizado por um processo de acolhimento e regulamencacao 147 das varias exigéncias provenientes da burguesia em ascensio, no sentido de conter e delimitar 0 poder tradicional. Dado que tais exigéncias tinham sido feitas em nome ou sob a espécie do direito & resisténcia ou & revolugio, 0 proceso que deu lugar ao Estado liberal e democrdético pode ser correta- mente chamado de processo de “constitucionalizagio” do di- reito de resisténcia e de revolugio. Os institutos através dos quais se obteve esse resultado podem ser diferenciados com hase nog dais modae tradicionais mediante os quais se supunha que ocorresse a degeneragio do poder: 0 abuso no exercicio do poder (0 syrannus quoad exercitium) e 0 déficit de legicimago (0 tyrannus absque titulo). Como tive ocasiio de esclarecer me- Ihor em outro local, essa diferenca pode se tornar ainda mais, clara se recorrermos & distingao entre dois conceitos (que, ha- bitualmente, nao so devidamente distinguidos): 0 de legali- dade e o de legitimidade.” A constitucionalizacio dos remédios contra 0 abuso do poder ocorreu através de dois institutes tipicos: o da separagao dos poderes e 0 da subordinagio de todo poder estatal (e, no limite, também do poder dos préprios érgaos legislativos) ao direito (0 chamado “constitucionalismo"). Por separagio dos poderes, entendo — em sentido lato — no apenas a separagio vertical das principais fangdes do Estado entre os Srgios si- tuados no vértice da administragdo estatal, mas também a se- paragio horizontal entre Grgos centrais ¢ drgios periféricos ‘nas varias formas de autogoverno, que vio da descentralizagao polftico-administrativa até 0 federalismo. O segundo proceso foi o que deu lugar & figura — verdadeiramente dominante em todas as tcorias politicas do século passado — do Estado de direito, ou seja, do Bstado no qual todo poder € exercido no ambico de regras jur{dicas que delimiram sua compecéncia e orientam (ainda que frequentemente com certa margem de scricionariedade) suas decisées. Ele cortesponde aquele pro- cesso de transformagio do poder tradicional, fundado em re- ages pessoais e patrimoniais, num poder legal e racional, essencialmente impessoal, processo que foi descrito com muita penetracio por Max Weber, Penso que nao se deu atencio 20 fato de que a teorizagio mais completa desse tipo de Estado 148 € a doutrina kelseniana do ordenamento juridico por graus. Apesar de sua ptetensio de ser valida para qualquer época ou lugar, a concepgéo dinamica do ordenamento juridico, tal como foi exposta por Kelsen € por sua escola, € 0 reflexo daquele proceso de legalizacdo dos poderes estatais, que Max Weber, enquanto historiador, descreveu como passagem do poder tra- dicional para o poder legal. Também com relagio as exigéncias que visavam a dar alguma garantia contra as vérias formas de usurpacio do po- dez legitimo — ou, como se diria hoje, contra a sua des- legitimagio —, parece-me que a maioria dos remédios pode ser compreendida nos dois principais instirutos que caracte- rizam a concepgio democrética do Estado (os dois remédios antetiores, os relativos a0 abuso de podes, so mais caracte- risticos da concepgio liberal). O primeito € a constitucionali- zacko da oposigao, que permite (isto é, torna licita) a formacao de um poder alternativo, ainda que nos limites das chamadas regtas do jogo, ou seja, a formagio de um verdadeiro con- trapoder, que pode ser considerado, embora de modo um can- fo ou quanto paradoxal, como uma forma de usurpacao legalizada. © segundo ¢ a investidura popular dos governan- tes e a verificagio periédica dessa investidura por parte do povo, através da gradual ampliagio do sufrégio, até o limite, no ulteriormente superdvel, do sufrdgio universal masculino e feminino: o instituto do suftégio universal pode ser con- siderado 0 meio através do qual ocorre a constitucionalizacio do poder do povo de derrubar os governantes, embora tam- bém aqui nos s de regras. preestabelecidas, um poder que estava anteriormente reservado apenas a0 fato revolucio- ndrio (também aqui, trata-se de um facto que se corna direito ou, segundo 0 modelo jusnaruralista, de um direito natural que ¢@ toma diseito positive). 4, Nosso renovado interesse pelo problema da resisténcia depende do fato de que, tanto no plano ideolégico quanto no institucional, ocorreu uma inversio de cendéncia com relagéo a concepgio e A préxis politica através das quais se foi formando © Estado liberal e democrético do século XIX, 149 ‘Agora sabemos com certeza algumas coisas: a) 0 desen- volvimento da sociedade industrial nfo diminuiu as fangées do Estado, como acreditavam os liberais que juravam sobre a validade absoluta das leis da evolugio, mas aumentou-as des- mesuradamente; b) nos pafses onde ocorreu a revolugio socia~ lista, a idéia do desaparecimento do Estado foi por enquanto posta de lado; c) as idéias libertérias continuam a alimentar pequenos grupos de utopistas sociais, no se transformando nm real movimento politico. QO enorme interesse suscitado estes tiltimos anos pela obra de Max Weber depende também do fato de que ele, como bom conservador e como realista desencantado (como costumam ser os conservadores com ins- piragio religiosa), viu 0 avango ameacador mas inelucével, que se di conjuntamente com o desenvolvimento da sociedade in- dustrial (tivesse essa sido promovida por uma camada empre- sarial ou por uma classe de funcionérios do Estado coletivista), da era do dominio dos aparelhos burocrdticos; ou seja, nao 0 enfraquecimento, mas o fortalecimento do Estado. Do ponto de vista institucional, a situacio de nosso cem- po caracteriza-se ndo s6 (como € natural) nos paises de eco- omia coletivisea, mas também nos paises capitalistas — por lum processo inverso a0 que designamos como desmonopali- zagio do poder econmico e ideolégico, ou seja, por um pro- ‘cesio que se orienta tanto para a remonopolizagio do poder econdmico, através da progressiva concentragio das empresas e dos bancos, quanto para a remonopolizacio do poder ideo- logico, através da formacio de grandes partidos de massa, che- gando ao limite do partido nico, que detém o direito, em medida maior do que 0 soberano absoluto de outrora (um verdadeizo “novo Principe”), de estabelecer 0 que é bom e © que é mau para a salvac30 dos préprios stiditos, bem como através du controle yue us detentoies do poder econémico exercem, nos pafses capitalistas, sobre os meios de formacao dz opiniio publica ‘A ilusio juridico-insticucional do século passado consistia em cter que 0 sistema politico fosse ou auto-suficiente (e, por- tanto, gozasse de certa independéncia em face do sistema social global), ou fosse ele mesmo o sistema dominante (e, portanto, 150 gue bastasse buscar remédios aptos a controlar o sistema po- Iitico para controlar, com isso, o sistema de poder da sociedede como um todo). Hoje, ao contririo, estamos cada ver mais conscientes de que o sistema politico € um subsiseema do sis. tema global, ¢ de que o controle do primeito nio implica absolutamente o controle do segundo. Dos quatro remédios de que falamos no item anterior, 0 que parecia mais decisivo, 9 quarto (ou o controle a partir de baito, 0 poder de todos, a democracia participative, o Estado, barcase realizasio no limite do ideal rousseauista da liberdade como autonomia), € também aquele para o qual se otientam, com particular intensidade, as formas mais recentes ¢ mais insis- tentes de contestacio, Quando comparada a democracia de inspirago rousseauis- £2, com efeito, a participagzo popular nos Estados democriticos reais estd em crise por pelo menos trés razBes: a) a participacto culmina, na melhor das hipéteses, nia formacao da vontatie da maioria parlamentar; mas o parlamento, na sociedade industrial avancada, no é mais 0 centro do poder real, mas apenas, fre- giientemente, uma camara de ressonincia de decisties tomadae em outro lugar; b) mesmo que 0 parlamento ainda fosce o Srgio do poder real, a participacio popular limiea-se a legic), ‘mar, a intervalos mais ou menos longos, uma classe politica restrita que tende a propria aucoconservacio, e que é cada vez menos representativa; ¢) também no restrito fmbito de uma eleicio una tantum sem sesponsabilidades politicas diretes, 2 arcicipagio € distorcida, ou manipulada, pela propaganda des poderosas organizagbes religiosas, partidérias, sindicais, etc. A participasio democrética deveria ser eficiente, direta e livre: a Participagdo popular, mesmo nas democracias mais evoludas, Alo € nem eficiente, nem diceta, nem livre. Da soma desses trés déficits de parcicipagao popular nasce a razio mais grave de crise, ou seja,a apatia politica,o fendmeno,tantas veves obs servado e lamentado, da despolitizacio das massas nos Estados dominados pelos grandes apatelhos partidétios. A democracia rousseaufsta ou € participativa ou nao é nada. Nao € que faltem propostas de remédios para ceavivar a participaco ¢ torné-la mais eficiente, Sub a, a instivuigao 151 de Grgios de decisio popular fora dos institutos clfssicos do governo parlamentar (a chamada democracia dos conselhos); sub b, a democracia direta ou assemble(sta (um dos temas mais difundidos pela contestacdo); sb c, 0 controle popular dos meios de informacio e de propaganda, etc. Mas € nesse ponto que reemergem propostas mais radicais, que ultrapassam a linha da democracia representativa e repdem em circulagao os temas tradicionais do direito a resisténcia e revolugio. 5. Quando o tipo de Estado que se propés a absorver 0 direito a resisténcia mediante sua constitucionalizagao entra em crise, é natural que se recoloque 0 velho problema, bem como que voltem a ecoas, ainda que sob novas vestes, as velhas, solugdes, as quais, na época, iam desde a obediéncia passiva até 0 tiranicidio, enquanto agora vio da desobediéncia civil guertilha, retorno a velhos temas que pareciam esgotados nao é nem uma reexumacio, nem uma repetigio. Os problemas nas- cem quando certas condigdes hist6ricas os fazem nascer, ¢ as- sumem em cada oportunidade aspectos diversos, adaptados as circunstancias. Entre as velhas teorias sobre o direito de resis- téncia e as novas, hi diferengas que merecem ser destacadas, ainda que por enquanto apenas com algumas anotagdes, que deveriam ser aprofundadas: a) 0 problema da resisténcia & visto hoje (mas também. isso € conseqiiéncia da sociedade de massas) como fe- némeno coletivo ¢ no individual, em relagio tanto 40 sujeito ativo quanto ao sujeito passive do ato ou dos atos de resisténcia. Nao quero dizer, com isso, que no fosse prevista nos velhos escritores também a re- sisréncia coletiva (Grécio dedicaslhe um capimla, 0 quarto, do Livro I do seu célebre tratado); mas 0 caso extremo e mais problemético era sempre 0 assassinato do tirano, Agora, as coisas sio bem diferentes: por um lado, conservou-se como fenémeno tipico de resistencia individual 2 objecio de consciéncia, mas ela € mani- festamente um residuo de atitudes religiosas que re- 152 b) oO montam, em grande parte, as seitas no-conformistas. Por outro, nem mesmo os anarquistas promovem mais acentados contra os chefes de Estado: merece reflexio @ constatacio de que os atentados individuais sio hoje praticados geralmente por forgas reacionérias; se é verdade que as situagdes nas quais nasce © direito de resisténcia nao sfo diversas hoje das que eram ima- ginadas pelos velhos escritores dos séculos XVI e XVII — on ceja, conguists, minrpuapi, exeretcio ubusive do per (na resisténcia armada italiana de 1943 a 1945, ocor- reram todas trés, a primeira contra os alemies, a se- gunda e a terceira contra os facistas da Repiiblica de Sald), hé uma grande diferenca com relagio ao tipo de opressdo contra 0 qual se declara ser Iicito resist: religiosa, nos primeiros monarcémacos; politica, em Locke; nacional e de classe ou econdmica, nas lucas de libertagéo dos povos do Terceiro Mundo e nos varios movimentos revolucionérios de inspiragio comunista ou castrista, etc, O que hoje se tende a derrubar nao € uma determinada forma de Estado (as formas dege- neradas de Estado, segundo a tradicional classificagao aristorélica), mas uma determinada forma de socieda- de, da qual as instituigdes politicas sio apenas um aspecto. Ninguém pensa hoje que se possa renovat 0 mundo abatendo um tirano. Serfamos tentados a dizer que ocorreu uma inversio radical da f6rmula de Hob- bes: para Hobbes, todos os Estados so bons (o Estado € bom pelo simples fato de ser Estado), enquanto hoje todos os Estados siio maus (0 Estado é mau, essencial- mence, pelo simples fato de ser Estado); mas a maior diferenca reside, a meu ver, na motivagio € nas consequentes argumentagées (“derivagées") com as quais 0 problema é enfrentado, Enquanto as velhas teorias discutiam sobre o caréter licito ow ilfcito da resisténcia em suas varias formas, ou seja, colocavam © problema em termos juridicos, quem hoje discute sobre resisténcia ou revolugdo o faz em termos essen- cialmente politicos, ou seja, coloca 0 problema da sua 153 oportunidade ou da sua eficécia; nfo se pergunta se € justa (e, portanto, se constitui um direito), mas se é adequada & finalidade. Tendo predominado a con- cepgao positivista do direito, para a qual o direito se identifica com 0 conjunto de regras que tem sua sus- teatagio na forga monopolizada, 0 problema de um direito & resiscéncia (expressio na qual “direito” 56 pode ter o significado de “direito natural”) no tem mais nenhum sentido. Nio se trata de ter 0 direito de abacer 0 jugo colonial ou de classe; trata-se de cer 2 forga para fazé-lo. O discurso no versa tanto sobre direitos e deveres, mas sobre as ténicas mais adequadas a empregar naquela oportunidade concreta: cécnicas da guerrilha versus técnicas da nao-violéncia. Assim é que, ao lado da crise das velhas teorias da guerra justa, assistimos a crise das teorias (que eram ainda domi- nantes na época do Iluminismo) da revolugdo justa. 6. Quem quiser buscar uma comprovagio do que foi dito deveria fazer uma andlise — mais precisa do que aquela que pode ser feita nesta oportunidade — dos dois grandes movi- mentos de resisténcia que hoje dividem 0 mundo, o que se expressa nos partidos revoluciondtios (em suas diversas acep- {gBes) e 0 que se expressa nos movimentos de desobediéncia civil. Para simplificar, ¢ admitidas as articulagdes incernas: le- ninismo ¢ gandhismo. A discriminagdo entre um € outro é 0 uso da violéncia; e, portanto, do ponto de vista ideolégico, a justificagdo ou nio justificacao da violéncia. Sob esse aspecto, a fenomenologia dos movimentos contemporineos no difere da antiga: também nos velhos tratados sobre as vérias formas de resisténcia, a diferenca que dividia a resisténcia ativa da passiva cra 0 uso da violéncia, Hoje, a diferenga reside prin Cipalmente, como dissemos, a0 tipo de argumentaglo com 0 qual esse uso (ou esse néo-uso) & justificado: mais polftica, como dissemos, do que juridica (ou ética), ‘A coisa é bastante Obvia para o partido revolucionério, cuja teorizagio extrai sua mattiz de uma doutrina realista, no sentido maquiavélico da palavra, como € 0 caso da doucrina 154 -—me marxiana e, mais ainda, da leniniana (segundo a qual o fim justifica os meios). Uma outra diferenga entre a teoria da vio- léncia revoluciondria de hoje € a do passado (as teorias jusna- turalistas) ested no fato de que, para as tiltimas, a violéncia estatal era um caso limite, que devia ser determinada em cada ‘eportunidade concreta (como se dizia, conquista, usurpacdo, abuso do poder, etc.); para 2 primeira, ao contrario, o Estado enquanto tal (anarquismo), ou o Estado burgués enquanto tal, iow €, enquanto fundado na opressio de uma restrita classe de privilegiados sobre uma numerosa classe de explorados (co- munismo), € violento. O Estado € “violéncia concentrada ¢ organizada da sociedade", segundo a famosa frase de Marx, que € um dos temas condutores da teoria revolucionéria que Passa através de Lenin para chegat a Mao, & guerra popular, & guerrilha, ecc. (Nova, com relacéo a teoria tradicional, € a justificagao também daquele excesto de violéncia em que con- siste 0 terror, de Robespierre a Mao, Deste tiltimo, podemos repetir uma tese igualmente famosa: “(...) foi necessério criar um breve reinado do tertor em cada zona rural (..). Para reparar um delitn, € necessério superar of limites,”) Menos Sbvio, € portanto mais interessante, € 0 fato de que a prépria teoria da desobediéncia civil — desde a obe- digncia passiva de origem exclusivamente religiosa, passando por Thoreau, que continua a tepresentar wm caso individual (nfo pagar os impostos se estes servem pata 0 prosseguimento de uma guerra injusta), por Tolstoi, até 0 método satyagraha de Gandhi — percorre um longo caminho na estrada do realismo politico, ou seja, de sua justificegdo politica, Antes de mais nada, o fato de que se trate agora de comportamento coletivo ¢ nfo mais individual — ou seja, de um comporta- mento cuja violéncia € sempre mais ficil de justificar — im- plica uma tevisio do tradicional coneraste entre ética individual (na qual a violéncia é, na maioria dos casos, ilfcita) e ética de grupo (na qual a violéncia é considerada licita). Uma das ca- racteristicas da ética gandhiana é precisamente a de nao admitir nenhuma diferenga entre 0 que é licico a0 individuo e 0 que é licito a0 grupo organizado. Em segundo lugar, com a teoria € a praxis gandhianas, foi introduzida no ambito do que tra- 155 dicionalmente tem sido chamado de resisténcia passiva uma ulterior distingao, entre ndo-violéncia negativa e ndo-violéncia po- sitiva. Um dos preceitos fundamentais da pregacio gandhiana € 0 de que as campanhas ndo-violentas devem ser sempre acom- panhadas do chamado “trabalho consteutivo”, ou seja, de todo aquele conjunto de comportamentos que devem demonstrar ao adversério que nfo se tem a intengdo apenas de abaté-lo, mas também de consteuir um modo melhor de convivéncia com 0 qual o préprio adversério deverd se beneficiar). Final- mente, a justificagdo que hoje se tende a dar da nio-violéncia (nova encarnacéo das doutrinas tradicionais da resisténcia pas- siva) nao € mais religiosa ou ética, e sim politica. Pelo menos em duas diregdes: a) ao se comar consciéncia do fato de que © uso de certos meios prejudica a obtengo do fim, o emprego de meios nao violentos se torna politicamente mais produtivo, pelo fato de que somente uma sociedade que nasce da niio- violéncia sera por sua vez nfo violenta, enquanto uma sociedade que nasce da violéncia ndo poderd dispensar a violéncia se quer se conservar; © que, em outras palavras, significa que a nio- violéncia seeve melhor & obtengio do fim Gleimo (eo qual tende também 0 revolucionério que usa a violéncia), isto é, uma sociedade mais livre e mais justa, sem opressores ou oprimidos, do que a violéncia; b) diante das dimensGes cada vez mais gigantescas da violéncia institucionalizada e organizada, e da sua enorme capacidade destruidora, a prética da nfo-violéncia & talvez a Gnica forma de pressio que sirva para, em tltima inseincia, modificar as relagdes de poder. Em suma: a niio-vio- léncia como Gnica alcetnativa politica (observe-se bem: politica) a violéncia do sistema.‘ 7. Concluo com algumas observacdes (também essas ape- nas esbocadas) sobre 2 tipologia das varias formas que pode assumir a desobediéncia civil. E preciso, antes de mais nada, fazer uma distingZo entre a nio-observincia de uma lei proi- bitiva que consiste numa agdo positiva (como o sit-in dos negros nos restaurantes ou nos Ambitos que lhes sto proibidos, ou como a realizacdo de uma passeata quando esta € proibida e apesar da proibicio), por um lado, e, por outro, a nfo-execugio 156 de uma lei imperativa que consiste numa omissio ow numa abstengao (exemplos tipicos so 0 niio-pagamento dos impostos ou a nio-prestagio do servico milicaz). Ha, contudo, uma di- ferenga entre nio fazer 0 que € ordenado e fazer o contrétio do que € ordenado: diante da intimagao de esvaziar uma praga, por exemplo, sentar no chio. Pode-se fazer resistencia passiva Ao 86 deixando de fazer 0 que se deve, como também fazendo mais, fazendo em excesso (como € 0 caso do obstrucionismo parlamentar). ‘As vérias formas de obediéncia civil devem ainda ser di- ferenciadas das técnicas de pressio néo violenta que se voltam contra interesses econdmicos. Também essas, por seu turno, podem ser diferenciadas conforme consistem em abstengdes, como @ greve ou 0 boicote, ou em acdes, como a ocupacio de terras, de uma casa ou de uma fabrica, ou a greve 20 contritio, ‘Umas ¢ outtas, de resto, devem ser distinguidas das cha- madas agdes exemplares, como o jejum prolongado (a auto-imo- lagio € uma agio exemplar, mas néo faz parte das técnicas da no-violéncia, j4 que implica uma violéncia contra si mesmo). Mesmo em suas diferengas, essas véries técnicas tém em comum a sua finalidade principal, que € mais a de paralisar, neutralizar, por em dificuldade 0 adversétio do que esmagé-lo ou destruf-lo; que € mais a de tornar dificil ox mesmo im- possivel a obtencio da finalidade visada pelo outro do que buscar direcamente a finalidade de substitui-lo, Nao ofendé-lo, mas torné-lo inofensivo. Nao contrapor ao poder um outro poder, um contrapoder, mas eornar o poder impotence. Finalmente, pergunto-me se nfo seria oportuno distinguir entre as virias formas de resisténcia passiva (que, tepito, cor- respondem a resist@ncia no violenta) € 0 pader negation, se por poder negativo se entende 0 poder de vero. isto €, 0 poder — para dizé-lo com Rousseau — daquele érgao ou daquela pessoa que, “no podendo fazer nada, pode impedir tudo."*A discussao desse problema assume particular interesse neste simpésio, em fangio dos estudos — estimulantes pela novidade da colocacao — que lhe dedicou Pierangelo Catalano, que rende a incluir no poder negativo formas de resisténcia, como a greve, que, em minha opinigo, nfo podem ser reduzidas sic of simpliciter 157 a0 poder de veto.° Compreendo que uma certa confusio pode derivar do fato de que tanto a greve quanto o poder de veto visam A mesma finalidade, ou seja, a de paralisar 0 exercicio de um poder dominante. Mas, apesar disso, existem diferencas que merecem ser destacadas. Para comecas, se € verdade que tanto uma quanto as outras podem ser consideradas formas de exercicio de poder impedi- tivo, deve-se reconhecer que uma coisa é impedir que uma lei, uma ordem, um comando, ou, de qualquer modo, uma decisio seja implementada (poder de veto), ¢ outra € torné-la ineficaz, depois de jé ter sido implementada, através do seu ndo-cum- primento; além do mais, hé formas de resisténcia passiva, como a greve € 0 boicote, que nao consistem numa desobediéncia & lei. Por outro lado, 0 poder de veto manifesta-se geralmente numa declaragéo de vontade (numa proposi¢io “performativa”, como diria J.L. Austin), enquanto a tesisténcia passiva consiste ‘em comportamentos comissives ou omissivos. O poder de veto € geralmente institucionalizado, ou seja, depende de uma not- ma secundéria autorizativa (a nfo ser que suponhamos 0 caso extremo da invasio do parlamento pela massa, no momento em que aquele esti para aprovar uma lei: mas serd que nesse caso podemos dizer que a massa exerceu 0 poder de veto?); as vétias formas de resisténcia passiva, ao contrério, nascem fora do quadro das instituigées vigentes, embora algumas deias, num segundo momento, possam ser institucionalizadas. O po- der de veto € habitualmente exercido no vértice (como no caso em que o chefe de Estado veta uma lei aprovada pelo parla- mento, ou quando um dos membros do Conselho de Seguranca da ONU veta alguma decisio); a resisténcia passiva ¢ exercida nna base. O poder de veto é, com freqiiéncia, o resfduo de um poder que resiste & morte: a resistencia passiva pode ser o primeiro sinal de um poder novo. O poder de veto serve ha- bieualmente & conservacéo do status quo; a resisténcia passiva visa geralmente A mudanga. Em suma: parece-me que poder de vero ¢ resisténcia passiva so, tanto estrutural quanto fun- cionalmente, duas coisas diversas. Por isso, teria diividas sobre a oportunidade de forcar a incluso de ambas numa mesma cacegoria, sob a denominagio comum de “poderes negativos”. 158 s Notas 1. G, Lavau, “La contestazione politica’, in I! Mulino, XX, n° 214, margo-abtil de 1971, pp. 195-217. 2, Ibid, p. 202. 3. N. Bobbio, "Sul principio di legietimiea” (1964), in Studi per uma teoria generale del dirita, Tarien, Giappichelli, 1970, pp. 79-93. 4, Devo minha iniciagio a ética gandhiana da nfo-violéncia sobretudo. 4 Giuliano Pontara, 2 comecar pelo seu ensaio "Erica e conflitei di gruppo”. (in De bomine, 0 24-25, 1969, pp. 71-90) e vetminado 1g recente livro Antigone e Creonte, Etica e politice nell'ea atomica, Roma, Editori Riuniti, 1990. 5. Consrato socal, TV, 5. 6. Refico-me particularmente aos dois ensaios “Dirieti di liberti € potete negativo” (in Studi in memoria de Carlo Esposito, Padua, Ce- dam, 1969) ¢ Tribanato e resistenza, Tarim, Paravia, 1971 159 CONTRA A PENA DE MORTE 1. Se examinarmos 0 longo cusso da histéria humana, mais que milenar, teremos de reconhecer — quer isso nos agrade ou ndo — que o debate sobre a aboligao da pena de morte mal comegou. Durante séculos, 0 problema de se era ou nfo Iicito (ou justo) condenar um culpado & morte sequer foi colocado. Jamais se pds em diivida que, entre as penas a infligit a quem violou as leis da tribo, ou da cidade, ou do povo, ou do Estado, estivesse também a pena de morte, ou mesmo que a pena de morte fosse a rainha das penas, aquela que satisfaria ao mesmo tempo as necessidades de vinganca, de justiga e de seguranga do corpo coletivo diante de um dos seus membros que se havia corsompido, Pata comegar, tome- mos um livro cléssico, 0 primeiro grande liveo sobre as leis € sobre a justiga de nossa civilizagdo ocidental: as Leis, os Némoi, de Plato, No Livco IX, Plato dedica algumas paginas ao problema das leis penais. Reronhece que “a pena deve ter a finalidade de tornar mefhor”; mas aduz que, “se se demonstrar que o delingjiente é incurdvel, a morte seré para ele o menor dos males.”" Nao cabe aqui mencionar todas as vezes em que se fala nesse livro sobre a pena de morte em relagdo 2 uma série muito ampla de delitos, desde os delitos contra as divin- dades e os cultos, até aqueles contra os genitores, contra 0 pai € a mie, ou, em geral, contra os homicidios voluntétios. Pa- 161 lando precisamente de homicidas voluntérios, Platéo diz em certo momento que eles devem “necessariamente pagar a pena natural”, ou seja, a de “pedecer 0 que fizeram” (870 €).? Chamo ‘a atengio para o adjetivo “natural” e para o principio do “pa- decer” 0 que se fez. Esse principio, que nasce da doutrina da reciprocidade — que € dos pitagéricos (mais antiga ainda, portanto, que a de Platéo) e que ser formulada pelos juristas imedievais repetida durante séculos com a famosa expressio segundo a qual 0 malum passionis deve correspondet ao malum autionis — acravessa toda a histéria do direito penal chega até nés absolutamente inalterado, Como veremos mais adiante, € uma das justificagdes mais comuns para a pena de morte, Citei esse célebre texto da Antiguidade apenas para apre- sentar um testemunho — 0 mais aurorizado possivel — de como a pena de morte foi considerada nao s6 perfeitamente legitima, mas até mesmo “natural”, desde as origens de nossa ivilizagio, bem como do fato de que aceité-la como pena ja- mais constituin um problema. Poderia citar muitos outros tex- tos. A imposigéo da pena de morte constitui tio pouco um problema yue até mesmo uma ccligido da nfo violéncia, do ‘uli resistre malo, vsna religiio que, sobretudo nos primeicos séculos, levantava 0 problema da objecdo de consciéncia 20 servico militar e a obrigacto de portar armas, uma religitio que tem por inspirador divino um condenado & morte, jamais se opés substantivamente & prdtica da pena capital. 2. E preciso chegar ao Iluminismo, no coragiio do século XVIII, para encontrar pela primeira vez um sério ¢ amplo debate sobre a licitude ou oportunidade da pena capital, 0 que aio quer dizer que 0 problema nao tivesse jamais sido levantado antes A importincia histética — que nunca seré suficiente- mente sublimada — do famoso livro de Beccatia (1764) reside precisamence nisto: erata-se da primeira obra que enfrenta se~ riamente o problema e oferece alguns argumentos racionais para dar-he uma solugdo que contrasta com uma tradigao secular, B preciso dizer, desde jé, que 0 ponto de partida usado por Beccaria em sua argumentagio € a fungao exclusivamente intimidatéria da pena. “A finalidade [da pena] nfo é sendo 162 impedir 0 réu de causar novos danos aos seus concidadios € demover os demais de fazerem 0 mesmo.” Veremos em seguida a importéncia desse ponto de partida para o desenvolvimento do tema. Se esse é 0 ponto de partida, trata-se de saber qual 6a forga intimidatéria da pena de morte com relagio a outras penas. E esse é 0 tema que se poe ainda hoje e que foi varias ‘vezes posto pela prépria Amnesty International. A resposta de Beccaria detiva do principio introduzido no pardgrafo intitu- Jado “Dogura daz penas”. O principio € 0 seguinte: “Um dos maiores freios contra os delitos ndo € a crueldade das penas, mas a infalibilidade dessas, e, por conseguinte, a vigilincia dos magistrados, e a severidade de um juiz inexorfvel, a qual, para ser stil A virtude, deve ser acompanhada de uma legislacio doce.” Suavidade das penas. Nao € necessério que as penas sejam cruéis para serem dissuas6rias. Basta que sejam certas. © que constitui uma razio (alids, a raziio principal) para nao se cometer 0 delito no é tanto a severidade da pena quanto ‘a certeza de que se sera de algum modo punido. Subsidiaria- mente, Beccaria introduz também um segundo principio, além da certeza da pena: a intimidaco nasce nao da incensidade da pena, mas de sua extensio, como € 0 caso, por exemplo, da prisio perpétua. A pena de morte € muito intensa, a0 passo que a priszo perpétua € muito extensa. Portanto, a perda per- pétua total da propria liberdade tem mais forca intimidatoria do que a pena de morte. Ambos os argumentos de Beccaria so utilitaristas, no sentido de que contestam a utilidade da pena de morte (“nem til nem necesséria”, como se expressa Beccaria ao iniciar sua argumentacio).’ A esses argumentos, Beccaria aduz um outro, ‘que provocou a maior perplexidade (e que, de fato, foi hoje em grande parte abandonado). Trata-se do chamado argumento contratualisca, que deriva da teoria do contrato social ou da otigem convencional da sociedade politica. Esse argumento pode ser assim enunciado: se a sociedade politica deriva de um acordo dos individuos que renunciam a viver em estado de natuteza e criam leis para se proteger reciprocamente, & inconcebivel que esses individuos tenham posto a disposicao de seus semethantes também o direito a vida. 163 Sabe-se que o livro de Beccaria teve estrepitoso sucesso. Basta pensar na acolhida que Ihe dev Voltaire: grande parte da fama do livzo de Beccaria se deve sobretudo ao fato de que foi acolhido favoravelmente por Voltaire. Beccaria era um ilustre desconhecido, ao passo que na pétria das luzes, que era a Franca, Voltaire era Voltaire. Sabe-se também que, por influéncia do debate sobre a pena de morte que teve lugar naqueles anos, foi emanada a primeira lei penal que aboliu a pena de morte: a lei toscana de 1786, que no § 51, depois de uma série de consi- deracées (entre as quais emerge, mais uma vez, sobretudo a fangio intimidatéria da pena, mas sem negligenciar a sua fungio também corretora: “a correco do réu, cambém ele filho da sociedade e do Estado”), declara “abolir para sempre a pena de morte contra qualquer 6a, seja primério ou contumaz, e ainda que confesso e convicco de qualquer delico declarado capital pelas leis aré aqui promulgadas, todas as quais ficam revogadas ¢ abolidas no que a isso se refere.”* “Talvez ainda mais clamoroso tenha sido 0 eco que obteve na Riissia de Catarina II, em cuja célebre Instrupdo, proposta jé em 1765, ou seja, imediatamente ap6s a publicagio do livro de Beccatia, pode-se ler seguinte: “A experiéncia de todos 6 séculos prova que a pena de morte jamais tornou uma nagio melhor.” Segue-se uma frase que parece extraida do livo de Beccatia: “Portanto, se demonstro que, no estado ordindrio da sociedade, a morte de um cidadao nao € nem ticil nem neces- siria, terei feico vencer a causa da humanidade.”” 3. Contudo, deve-se acrescentar que, apesar do sucesso literdtio do livro junto a0 piblico culto, aio s6 a pena de morte no foi abolida nos pafses civilizados (ou que se consi- deravam civilizados com relagio 3 época € aos pafses conside- tados bérbaros, quando nao mesmo selvayeus), mas a Causa da aboligio campouco estava destinada a predominar na filosofia penal da época. Poderiamos fazer muitas citagdes. Escolho trés delas, entre os mais ilustres pensadores da época: Rousseau, no Contrato social (que saiu em 1762, dois anos antes do livro de Beccasia), o grande Kant € 0 ainda maior Hegel. No capitulo do Contrato social intitulado “Do direito de vida e de morte”, 164 Rousseau refutou antecipadamente 0 argumento contratualista, Nao € verdade, disse ele, que 0 individuo, ao se acordar com 0s outros para constituir o Estado, reserve-se um direito a vida em qualquer caso: “E para nfo ser vitima de um assassino que alguém consente em morrer caso venha a set assassino."* Por- tanto, a attibuigdo 20 Estado do direito a prépria vida serve nfo para destrui-la, mas para garanti-la contra o ataque dos oucros. Poucos anos depois da publicagdo de Dot delitas e das penas, lum outro ilustre escritor politico, Filangieri, em Scienza della legislazione (1783), a maior obra italiana de filosofia politica da segunda metade do século XVI, caracterizou como “so- fisma” 0 argumento coneratualista de Beccaria, afirmando que é verdade que, no estado de natureza, 0 homem tem direito 8 vida, sendo também verdade que nfo pode renunciar aquele direito, mas pode perdé-lo com seus delitos, Se pode perdé-lo no estado de natureza, no se vé por que no possa perdé-lo no estado civil, que é instituido precisamente com a finalidade io de criar um novo direito, mas de tornar seguro 0 exercfcio do antigo direito, 0 do ofendide de reagir com forca & forca, de rechagar com a ofensa 3 vida do outro a ofensa contra a pr6pria vida, Os dois maiores filésofos da época, Kant ¢ Hegel — um antes, outro depois da Revolugio Francesa —, defendem uma rigorosa teoria retributiva da pena e chegam a conclusio de que a pena de morce € até mesmo um dever, Kant — partindo da concepgio retributiva da pena, segundo a qual a fungio da pena nao € prevenir os delitos, mas simplesmente fazer justica, ou seja, fazer com que haja uma perfeita correspondéncia entre © crime e 0 castigo (trata-se da justica como igualdade, daquela espécie de igualdade que os antigos chamavam de “igualdade corretiva”) -— afirma que o dever da pena de motte cabe 20 Estado ¢ € um imperativo categérico, no um imperative hi- porético, fundado na relacio meio-fim. Cito diretamente 0 tex- to, selecionando a frase mais significativa: “Se ele matou, deve ‘marrer. Nio ha nenhum sucedineo, neahuma comutacdo de pena que possa satisfazer a justiga. No hé nenhuma comparacdo possivel entre uma vida, ainda que penosa, e a morte; e, por 165 conseguinte, nenhuma outra compensagio entre 0 delito e a punicéo, salvo a-morte juridicamente infligida a0 criminoso, mas despojada de toda maldade que poderia, na pessoa de quem a padece, revoltar a humanidade .” Hegel vai além. Depois de ter refutado 0 argumento con- tratualista de Beccaria, negando que o Estado possa nascer de um contrato, afirma que 0 delingtiente nao s6 deve ser punido com uma pena correspondente ao crime cometido, mas tem 0 dizeito de ser punide com a morte, jf que somente a punigto © resgata e € somente através dela que ele € reconhecido como ser racional (aliés, ele € “honrado”, diz Hegel). Num adendo, porém, ele tem a lealdade de reconhecer que a obra de Beccaria teve, pelo menos, o efeito de reduzir 0 mimero de condenages a morte.” 4, O infortiinio quis que, enquanto os maiores filésofos da época continuavam a defender a legitimidade da pena de morte, um dos maiores defensores de sua abolicdo tivesse sido, como se sabe, Robespiesre, num famoso discurso & Assembléia Constituinte de maio de 1791; ou seja, Robespierte,o mesmo que ixia passar 4 histéria, na época da Restauracio (a época em que Hegel escreveu sua obra), como 0 maior responsével pelo terror revolucionario, pelo assassinato indiscriminado (de que ele préprio foi vitima, quase que como para demonstrat a inexorabilidade da lei segundo a qual a revolugao devora os seus préprios filhos, a violéncia gera violéncia, etc.). Esse dis- curso de Robespierre deve ser recordado porque concém uma das condenagdes mais convincentes, do ponto de vista da ar- gumentagio, da pena de moste. Ele rofuta, em primeiro lugar, (© argumento da intimidacio, afirmando no ser verdade que a pena de morte seja mais intimidadora do que as demais pens; € aduzia u exemply quase situal, ji ucilizado por Mon- tesquieu, do Japio: na época, afirmava-se que, embora as penas aplicadas no Japio fossem atrozes, o Japao era um pais de ceiminosos. Depois, além desse argumento, refuta também aquele, fundado na justica. Finalmente, aduz o argumento — que Beccaria nao recordara — da irreversibilidade dos erros judiciézios, Todo 0 discurso se inspira no principio de que a 166 suavidade das penas (e aqui a derivagio de Beccaria é evidente) € prova de civilizagio, enquanto a crueldade delas caracteriza ‘0s povos barbaros (mais uma vez, 0 Japio). Nao nos afastaremos muito da verdade se dissermos que 0 mais célebre e inteligente continuador (quase repetidor) de Beccaria foi — desgracada- mente — Robespierre. 5. Apesar da persisténcia ¢ da predominancia das teorias antiabolicionistas, nao se pode dizer que o debate sobre a pena de morte, levantado por Beccaria, tenha deixado de produzir efeitos. A contraposigao entre abolicionistas e antiabolicionistas € demasiadamente simplista e no representa exatamente a realidade. O debate sobre a pena de morte nio visou somente a sua sboligdo: num primeiro momento, dirigiu-se para a li- mitagdo dessa pena a alguns crimes graves, especificamente determinados; depois, para a eliminagio dos suplicios (ou crueldades iniiteis) que, via de regra, a acompanhavam; e, num terceiro momento, para a supresstio de sua execucio pti blica. Quando se deplora que a pena de morte ainda exista na maioria dos Estados, esquece-se que 0 grande passo & frente realizado pelas legislagdes de quase todos os paises, nos dois ltimos séculos, consticui na diminuicdo dos crimes puniveis com a pena de morte. Na Inglaterra, no inicio do século XVII, ainda eram mais de duzentos os casos, entre os quais até mes- mo o de crimes hoje punidos com poucos anos de prisdo. Mesmo nos ordenamentos nos quais a pena de morte sobre- viveu (e ainda sobrevive), ela é aplicada, quase exclusivamente, no caso de homicidio premeditado. Ao lado da diminuigao dos delitos capitais, inclui-se entze as medidas atenuadoras, a supressio da obrigacio de aplicé-la nos casos previstos, que € substitufda pelo poder discricionério do juiz ou dos jurados de aplicé-la ou no. No que se refere & crueldade da execugio, hasra a leitura daquele fascinante livro de Foucault que é Vigiar ¢ punir,* onde se descrevem — no capftulo intitulado “A os- tentacio dos supl{cios” — alguns episédios aterradores de exe- cugGes capitais precedidas de longas e ferozes sevicias. Um ‘* Bd. brasileira: Vigiar ¢ punir, Petedpolis, Voues, 1987. (N. do T.) 167 autor inglés do século XVIII, citado por Foucault, escreve que a morte-suplicio é a atte de conservar a vida no sofrimento, subdividindo-a em mil mortes e obtendo-se — antes que cesse a existéncia — as mais refinadas agonias. O suplicio é, por assim dizer, a multiplicacto da pena de morte: como se a pena de morte nao bastasse, 0 suplicio mata uma pessoa virias vezes. O suplicio responde a duas exigéncias: deve ser infa- mante (seja pelas cicatrizes que deixa no corpo, seja pela res- sonfncia de que € acompanhada) e clamarnsn, on

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