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Imagine se encontrar, de uma hora para a outra, em um mundo totalmente desconhecido onde vocé nao conhece ninguém e ninguém: demonstra saber quem vocé é. £ 0 que acontece com uma menina nascida na Africa e levada para o Brasil para ser escrava, e que de repente acorda em um lugar estranho, habitado pelos deuses orixds e pelos espiritos que aguardam © momento de seu renascimento. Ela nao sabe mais 0 proprio nome nem lembra de sua familia — est sozinha e nao tem a quem pedir socorro. Por isso, aliés, ganha o nome Aimé, “a menina que ninguém sabe quem é”. Tudo o que ela quer é retornar ao seu mundo de origem, mas para tornar isso possivel, Aimé vai partir em uma longa jornada através dos tempos mitolégicos, guiada por Exu e Ifa, e vai acompanhar de perto muitas aventuras vividas pelos orixds. S6 assim poderé reunir 0 conhecimento necessério para fazer uma escolha que lhe permita, enfim, voltar para casa. mw valde prandi Sean i reginaldo prandi aimo uma viagem pelo mundo dos orixas Copyright do texto © 2017 by Re Copyright das iustagbes ©2017 by mon Guimares (seu Seqintepertence a Eitora Sohwarcz S.A Gra tuallzass squad o Acard Ortogrto da Lingua Pertupuese 1190, gue entrou em igor no ras en 2008, aul Loureiro endl Viana AieteSanza AérioFreria gc ig ate oP ee be vam Tees ats esta treet Aaa adea Puls, 72 0.32 (04532.002 — Sio Paulo —s» - leenen Twefoe 370.350 ease verano ce Y erste tutte gopsiccomae essen ‘SUMARIO 1. A MENINA ESQUECIDA 5. UMA LAVADEIRA ENGANAA MORTE 44 9. 0 QUE PODE FAZER UMA ESPOSA DESESPERADA 2 13. UMA FUGA PARA UM GRANDE RIO 145 Pee 2. NOTICIAS DEUMA _ NOVA NACAO 16 6. 0 SOPRO SE TRANSFORMA EM TEMPESTADE 55 10. 0 DOCE DISFARCE DA CONQUISTA AMOROSA 105 14. 0S DEUSES QUEREM E DANCAR 155 3. COM QUE, DEUSA VOCE QUER SE PARECER? ay 7. PODER _ E PERDICAO DE UM REI 66 11. 0 CORPO TEM QUE SER DEVOLVIDO AO CHAO n3 15. A DIFICIL ESCOLHA 162 NOTADOAUTOR 18; GLOSSARIO 184 4. UMA DANCA NA CONQUISTA DE UM HEROI n 8. CUIDADOS PARA UMA CABEGA RUIM 76 12. NINGUEM E IGUAL 0 TEMPO TODO 129 16. UMA VIDA NOVA 170 OSORIXAS 187 OORACULODEIFA 189 1. A MENINA ESQUECIDA Ninguém chamava por ela, ninguém se lembrava dela, nin- guém sequer sabia que um dia ela existira sobre a Terra. Foi assim que ela acabou esquecendo quem era, de onde viera, a ‘que familia pertencia. Esqueceu-se até do proprio nome. Quando a viu passar, um velho de aparéncia feliz perguntou uma mulher sorridente quem era aquela menina. — Aimé omobinrin —respondew a alegre senhora, palavras que, na lingua daquele povo, significavam uma menina esque- ida, que ninguém sabia quem era, uma desconhecida. ‘A menina ouviu o didlogo e imaginou que Aimé era seu nome, a menina Aim6, porque até mesmo da lingua falada em ‘casa quando vivia com sua familia ela pouco se lembrava. Ficou incrivelmente feliz: j4 sabia como se chamava. Agora, por todo lugar a que ia, ela gritava: — Orucé mi ni Aimé. Meu nome é Aimé. Ninguém parecia se importar. Ela continuava desconhecida, completamente esquecida por todos e por ela mesma. Entdo, a tristeza de Aimé voltou mais forte, mais dificil de suportar. Ain- da mais naqucle higar sem cores, sem luz, sem nenhum dos prazeres da vida na Terra. Quanta saudade do som dos tambores, das mulheres dan- «gando, tao bonitas, com seus trajes estampados, seus colares de contas. Tinha vivido tudo isso de verdade ou era sua imagina- «gio que inventava essas belezas s6 para atormenté-la? Pelo menos agora sabia seu nome, gracas ao homem e & mu- Iher que nao escondiam sua felicidade, talvez jé se preparando u para o retorno a vida, chamados de volta a Terra por suas saudo- sas familias que, com certeza, Ihes ofereciam presentes ¢ sau- dagdes e os mantinham vivos na meméria. E sua familia, onde estava? Por que nao se lembrava dela? — Orucé mi ni Aim6. Meu nome é Aimé — insistia a menina. ‘Ninguém a ouvia, era inatil. Nenhuma resposta a seus clamo- res, Nenhuma palavra vinda de sua casa alcancava seus ouvidos. Ela havia mesmo sido esquecida por todos. Nao tinha mais fa- milia, quem se importasse com ela. Estava perdida, nunca mais poderia voltar para casa. Aimé comecou a chorar e nao parou por ‘um longo tempo. ‘A menina estava no Orum, um mundo espiritual, a morada dos deuses e dos espiritos dos mortos, um lugar nada agradavel para quem jé experimentou tudo de bom que a Terra tem para oferecer. Diferente do Aié, como a Terra é chamada pelo povo de Aimé, o Orum é um mundo tio sem atrativos que os proprios deuses que o habitam, os chamados orixés, visitam com frequén- cia o Aié para comer, dancar e se divertir com os habitantes locais. (Os homens e as mulheres recebem os orixés no Aié com festa porque acreditam que descendem diretamente deles ao longo de incontaveis geragées. Os orixés chamam os humanos de meus fi- Ihos e estes chamam os orixas de meu pai e minha mae. Familias diferentes descendem de deuses diferentes. Cada ser humano tem um deus ou uma deusa em sua origem. £ 0 que ensina a tradicao africana dos povos iorubis, que também sto chamados de nagés. Os espiritos dos mortos, chamados de eguns, nao tém essa re- galia divina de transitar livremente entre o Orum eo Aié. Passam. para o Orum com a morte e s6 podem voltar ao Aié com o renas- cimento. Ou quando sao cultuados na Terra como antepassados ilustres, o que nao era, absolutamente, 0 caso de Aimé. ‘Aimé se lembrava, entre outras poucas recordagées, de ter ou vido sua avé falar muitas vezes da vida no Aié e no Orum. A av6 de Aimé Ihe dizia que elas viviam no Aié, mas tinham vindo do Orum e voltariam para lé, devendo retornar depois ao Aié. A mor- te era apenas uma passagem entre duas vidas. Segundo os ensinamentos da avé, o morto renascia na m ma familia, mas para renascer nao podia ser esquecido no Ai ‘A familia deveria tratar 0 morto como tratava os vivos, dando-lhe 2 ‘comida, bebida, vestimenta, diversio e tudo 0 mais. Os feitos notiveis do morto deveriam ser constantemente relembrados, seu nome invocado com orgulho, sua lembranca mantida viva. Até que, um dia, 0 espirito do morto deixava o céu dos orixas, 0 Orum, e voltava a0 mundo dos vivos reencarnado no corpo de uma crianga que nascia, comegando vida nova. ‘Ao crescer e se tornar adulto, o renascido deveria se fazer im- portante para sua familia, sua gente, ter muitos filhos, praticar agdes que ficariam gravadas na memiéria e nos mitos do povo. Assim, quando chegasse sua hora de morrer de novo, ele iria para o Orum com a certeza de que ficaria lé apenas por um pe- iodo curto, a espera do renascimento. Porque bom mesmo é viver na Terra, no Aié. Com a morte, 0 corpo era devorado pela terra e 0 espirito do falecido era levado ao Orum pela deusa Iansa. Nao ha prémio ou punicio no Orum, apenas espera. Os que no mereciam os favores de Iansa ou, por alguma razao, insistiam em permane- cerno Aié, em uma vida falsa, perambulavam perdidos por esse mundo, causando sofrimento a si e aos viventes. Naquele tempo e lugar, as familias eram bem grandes e os nascimentos frequentes, o que para o espirito do morto repre- sentava a oportunidade de voltar logo para casa. Uma barriga de mulher crescendo era uma porta se abrindo para o retorno. Entdo era $6 esperar 0 momento certo, a sta vez. Saber disso alimentava a aflicao da menina Aimé6, s6 fazia ccrescer seu desespero, e suas lagrimas brotavam como a agua de uma fonte. Chorou tanto que os passarinhos sedentos vie- ram beber em seus olhos para logo voar em debandada, desgos- tosos com o sabor salgado e quente de suas lagrimas. — Orucé mi ni Aimé — repetia ela baixinho, com um fiapo de esperanca que jé se esgotava. Chorou tanto que suas lagrimas se juntaram em um rio sem rumo, invadindo ruas, casas e até o palicio de Olorum, o deus primordial, pai dos deuses orixas. Fazia quatrocentos anos que Olorum dormia um sono despreocupado. E enquanto ele dor- ‘mia, os orixds, como sempre, governavam o mundo dos huma- nos. Ninguém se atrevia a acordé-lo. Quando as éguas cobriram o leito de Olorum, ele despertou a Contrariado, cuspinéo a agua salobra que engolira sem querer, ¢ foi logo reclamand>: = $6 pode ser vecé, lemanjé, que eu fiz com este gosto de sal — Olorum cuspis repetidas vezes e continuou a falar filha — £ com esse seu jeto destrambelhado de inundar tudo o que estiver a seu alcance,menina levadal os poucos, ele zbriu os olhos e se levantou sacudindo a tanica molhada. Olpu em torno e nao viu Temanja, mas sim uma menininha desionhecida, Aimé, que chorava torrencial- ‘mente. Reclamou: — Ah, entao foi 1océ que veio interromper meu cochilo, omobinrin mi, minh: menina, Mas quem é vocé, afinal? ‘Aimé parou de chirar, tremendo de medo de ser castigada. Tentou responder, mis sua lingua nao obedeceu e ela conti, nuou muda enquantoOlorum a fitava de cima a baixo, — Diga logo seu nme, omobinrin mi! Vamos, fale! Ela permanecia queta. — Eu ordeno: Oru, omobinrin! — Meu nome é Ain6 — disse ela, fixando o olhar no chao recomegando 0 chore — Pare de chorar. Cuet me molhar de novo, menina? Repita seu nome, eu nao entesdi. — Aimé, é Aimé. — Hum, isso nao énome de gente, nunca ouvi, e olha que cussei de tudo, tudo queexiste fui eu que ordenei aos orixas que fizessem. — Ouvi por aqui urs mais velhos me chamarem assim, — E sua familia? Osque ficaram no Aié? Acho que nao temo, esqueci. Ou melhor, fui esquecida. — Entendi. Aimé onobinrin, a menina que ninguém sabe quem é, Aim assentiu, aind:amedrontada. — E como vai fazer prra voltar para casa se a sua familia nao Selembra mais de vocé,minha menina? Vai ficar para sempre aqui no Orum, sempreameacando me afogar em seu rio de lagrimas? Pobre de min! E ao ver lagrimas bromndo novamente dos olhos da menina, Olorum gritou com ela: 14% — Pare! Chega de choro. Ela parou de chorar eele continuou: at — Vamos resolver iss» logo. Preciso defender meu direito a0 descanso eterno. Em seguida, Olorum parou um instante, como quem reflete sobre as proprias palavras, e disse: i" — Pessoalmente nao me meto nas coisas do Aié e no resto também no, Quem resolve tudo sio meus filhos, deuses que eu eriei, que os humanos chamam de orixas, a quem dei a mis- so de cuidar do mundo, Mas, como acabei envolvido nesta sua triste historia, vou ter que determinar que se ache uma soludo, omobinrin mi. Como é mesmo seu nome, ou aquilo que vocé pensa que é seu nome? : —Aimé— disse ela, jé sem muita certeza, — Aimé, ou seja lé quem vocé for, minha querida menina esquecida — continuou Olorum —, vou convocar imediata- meu sabe-tudo, e veremos por que voce foi parar na condigao de permanecer presa aqui para sempre. Vou ay também Exu, meu mensageiro e meu faz-tudo, porque sem el nada se pode fazer. it Olorum estalou os dedos chamando Ifa e Exu. Em seguida, niscou para a menina. 4 i eae primeira vez depois de sua morte, a menina sorriu. 2. NOTICIAS DEUMA | NOVA NACAO Aimé viu Exu e [fi chegarem a casa de Olorum e se prosterna- rem aos pés dele, depois saudé-lo com palmas ritmadas e, de joelhos e olhos baixos, beijar seus longos dedos magros. Ouviu depois 0 pai dizer aos filhos que queria saber por que aque- Ja menina estava no Orum e por que sua familia nao tomava as providencias necessérias para que ela pudesse renascer no mundo dos mortais, Exu, que nao parava quieto, zanzando pelos cantos do salio, chegou perto da menina e sussurrou em seu ouvido: — Meu pai sabe de tudo, mas faz que no sabe. Para nao magoar meu irmgo sabe-tudo, que é quem deve saber das coi- sas. Etiqueta, divisao de trabalho, cada um com sua missao. Ele distribuiu seus poderes entre nés, entende? A:menina nio entendeu, mas fez que sim, com medo de que Exu Ihe perguntasse alguma coisa de que ela talvez nao se lem- brasse. Também porque ela estava mais interessada no arranjo que Ifa preparava, Ifa espalhava pelo chao varios objetos. A menina logo os reconhecets como ingtrumentos que os adivinhos cm visita a sua aldeia usavam para responder a questdes levadas a eles pe- los mortais. Depois, sentado no chio, pediu licenca a Olorum, deu um obi, uma noz-de-cola, para Exu, que se pos a mascé-lo imediatamente, atirou um punhado de biizios no chio de terra ainda molhada ¢, calmamente, com ar solene, se pés a estudar ‘0 desenho que 0s biizios formaram. Com dois dedos ele dese- nhow um sinal em um tabuleiro. y Exu voltou a cochichar no ouvido da menina: — Tudo teatro. Ele esté cansado de saber o que vai dizer. Mas pelo menos vou ganhando meus obis. ‘A menina continuou muda. Nao ia se meter no que parecia uma velha disputa familiar. If atirou mais um obi a Exu, que o interceptou com a boca aberta, e comegou uma longa explicacio: — Omobinrin infelizmente nao tem uma familia no Aié: para honrar sua meméria. Por isso, jamais saberemos o verdadeiro nome dela, a menos que ela se lembre, ouviu, menina? E sem familia, nao tem renascimento. Ela fez que sim. A lingua que ela falava em casa jé voltava inteira a sua meméria, jé podia entender e falar quase tudo. Mas de que servia uma lingua sem uma historia? Aimé estava beira do choro, mas se conteve com medo de ser repreendida de novo por Olorum, que parecia distante, talvez preocupado com a revelacao do adivinho. If tossiu para chamar a atencio do pai e continuou: — Alguns membros da familia foram apanhados por cagado- res de escravos levados para longe, dispersos. Os que restaram foram dizimados numa guerra local. Esta nossa menina aqui ue, apropriadamente, agora se chama Aimé, a desconhecida, foi vendida a traficantes brancos em troca de dois fardos de tabaco e eu me sentir como um bebé que fez xixi na cama Depois voet me conta tudo sobre esse tal de Brasil — disse Olo- vivxu ngodeixou passar em branco a gafe do pai e comentou reservadanente com a menina: = Nao falei? Ele sabe de tudo, Até o nome daquilo que ele diz nao saber que existe. — prosiga, prossiga — ordenou Olorum a If, If retomou a historia depois de oferecer a Exu um naco de inhame cazido tegado com azeite de dendé: Hier re xing foi vendida para uma mulher branca proprietéria dle muitascasas de aluguel que desejava uma escrava menina para Ihe fazer cafuné e acompanh-la quando saia para aigrea, ou quando percorria a cidade para cobrar o aluguel de seus in- Gquilinos. A sinhazinha nao confiava em escravo adulto, muito menos se fosse homem. Era proprietaria de dois belos e fortes jovens negros recentemente importados, que mantinha presos vem casa, rancados a sete chaves. Bem, mas isso nio interessa.. — Claro que interessa — interrompeu Exu. — Agora que a ist6ria est ficando boa. itr ol repreendeu Olarum.— Contin, I — A historia acaba aqui, infelizmente. Aimé pegou tifo € rnedm artepio atingiu 0 corpo de Aimé como uma chibatada. ‘Do fundo de suas esquecidas lembrangas voltou-lhe ee o dia em que, deitada em uma esteira gasta sobre o chao de terra nua, em uma casa estranha, cercada de uma gente desco- nhecida, sentiu 0 ar deixar seus pulm@es pela itima vez e foi tomada por uma sensacdo de auséncia que parilisou o pouco sinal de vida que ainda The restava: 0 tremor provocado pela febre alta. Sentiu de novo a mesma vertigem quea atingira no a dauento de suprema angistia e solidto do diltimo suspiro, Guando a mais poderosa das ventanias a levou para longe do seu leito de morte. Para muito longe. sy no nossa irma lansd trouxe o espirito dela para o Orum — completou Ifi, — E aqui esta ela diante de nés — Uma histéria de vida bem mediocre — disse Exu a me- hina, — Mesmo que ainda tivesse uma familia na Terra, voce ueria estar em seu lugar. Quando eu for dancat em urna fests no Aié, na nossa velha terra ou na nova nagao de que falou Ifa, Voce nao vai estar Ié para me aplaudir. 3, ihe due desta vez tenho que dar razo a meu irmio cacula — concordou Ifa. A menina desatou a chorar. —_Denovo, nao! — gritou Olorum. — Meus filhos vao dar um jeito. 2 . COM QUE. DEUSA VOCE QUER SE PARECER? Ji-era tarde e 0s outros filhos de Olorum vieram ao palacio cum- primentar o pai. Foi servido um jantar com comidas e bebidas diversas que contemplavam o gosto de cada divindade presente. Felizmente, as oferendas feitas naquele dia pelos humanos vi- ventes, que Exu transportara do Aié para o Orum, haviam sido fartas e deliciosas. Exu comeu de tudo um pouco, sempre se antecipando aos demais. Comeu muito. A menina também provou um bocado de cada prato, acompanhando Exu. Terminado o repasto, Olorum deixou que If conduzisse a assembleia que se formou espontaneamente e se retirou para descansar. —Inmas e irmaos — disse If, — Esta menina, Aimé, a es- quecida, nao tem familia e, além disso, morreu tio cedo que nao merece ser lembrada por nenhum feito. Nao teve tempo para isso, coitadinha. Mesmo assim, devemos encontrar uma manei- ra de ela retornar ao Aié. — F contra a lei do renascimento — protestou Xango. — Sao ordens de nosso pai, meu irmao — afirmou Exu. — Voce sempre metido a juiz mandao! Vai encarar? Xang6 deu de ombros e se afastou para flertar com suas mulheres. — Tem mais — disse Ifa. — Ela pouco se lembra de sua tima vida na Terra, nao sabe o proprio nome nem o da familia ou em que povoado vivia. Enfim, ela nao sabe a qual de n6s sua familia pertence, no sabe qual é seu orixa. 25 ~ Entdo ela no sabe de qual de nés descende? Nao merece eencarnar — escandalizou-se Ogum, pronto para saca dae acabar com o problema, hoi —Calma ai, acho: que ela é minha d& i hac lescendente — interpés- Se Exu. — Nio viram ela comer comigo? Nao parecia ume Ie sitima filha de Exu? ee —A mim s6 pareceu uma menina gulosa \cada it e mal- oe disse Oxum. —Mas € bonita como eu, vai ter lindos ci bel: ancas, muito ouro para enfeitar os cabelos. 7 Tansa nao concordou: i — Nao va dizer que é sua filha, , Porque nada nela cor com seu temperamento, minha ‘irma. Basta ver a genes autoconfianca que o olhar da menina transmnite para reconhe cer uma filha de Iansa, Temanja contestou: maior de filiagao? Ela sentiu que eu sou a mie dela ie Ges nada, ela é minha! — gritou Eué. — Ninguém notou a natéria dela é um mistério completo que a faz se parecer eee. fal mae, tal filha —afirmou, exibindo sua cabacinha le see ue continha ninguém sabia o qué, ~ Ela € mais minha do que sua — contestou Obé. — Mi. thas filhas sdo excelentes damas de companhia, £0 ae ae fics Bee a escort veio bater direto na porta de *ca de uma solucao para sua triste situa : : i cho, s aa Eee Por ai, & porque é dona de grande saber e ee a embora nao paresa. A menina é minha filha. S6 pode. ue até entao parecia dormir no colo de leman; ixinho: = quero minha mae, eu quero minha maezinha. olhos en Otaram a atensao para ela, mas a menina fechou os 108 € Pareceu dormir de novo, Talvez estivesse sonhando, * orixés falavam ao mesmo tempo, ninguém ouvia nin. 2% | A confuustio estava criada, ¢ levou alguns minutos até que mi fonse restabelecida e Ifa retomasse o controle. fina disputa nao leva a nada. Se vocés me dio ag6, se vo- ‘ine dio licenga, vou consultar meus biizios para saber qual ‘Yontade de nosso pai Olorum. Sem teatro — gritou Exu. — Vé lé dentro e pergunte di- lamente a ele. = Mas ele esta dormindo — respondeu If File esta sempre acordado — insistiu Exu. Para niio levar a discussao adiante, Ifa se deu por vencido. Pedi a Oxala que o acompanhasse e os dois foram aos apo- sentos de Olorum. Depois de alguns minutos voltaram com a tesposta ntilo, Ifa disse: — Como todos sabem, ela precisa de um orixa como ances- tral, Precisa ter seu deus pessoal. Sem isso nao pode renascer. Cossi orixa cOssi araié, ¢ a lei: sem orixa nao existe ser humano. Mas para se ter um orixé é preciso ter uma familia, porque 0 orixd é heranga que passa de pai para filho. Geracdo ap6s ge- raglo, desde a primeira, em uma longa linhagem familiar que se inicia com o proprio orix4. Por séculos ¢ séculos tem sido assim, Nao é verdade? — Manda ela para o Brasil e pronto — interrompeu Exu. — Para o Brasil? — gritaram os demais. — Calma, eu chego li — retomou Ifa antes que uma nova confusto se formasse. — Muitos e muitos dos nossos tém sido levados de nosso antigo lugar para o outro lado do mar, para terras muito distantes, para novas nagdes onde quem manda so os brancos que escravizam nosso povo. A escravidao separa 08 nossos de suas familias para sempre, os faz esquecer suas origens e seus orixds, ¢ os obriga a louvar um outro deus. Nos sabemos que o deus deles é 0 nosso pai, Olorum, com outra cor € outro nome, mas eles nao sabem. — Vamos ao que interessa, j4 é tarde — pediu Nana, de- monstrando impaciéncia. — Os nossos que vivem do lado de la da grande égua ga- nham novos nomes, novas familias e, como disse, uma nova religido. Eles aceitam porque nao sio livres para escolher, sio a ~ Fe ° Brea arte — corrigiu Ossaim, Gene 80 admit 18 0 fatn € cue ae alae - admit lguém nao. conhece sua familia biol6gica, nao pode saber qual de nés é poe ga yun Problema aparentemente insolivel para noses Povo que vive na nova nagdo. Mas eles der ieit um tem seu orixé, sim, ead e — Ecomo funciona? — interessou-se Oxéssi. eins vez que desconhecem o orixé que deveriam cultuar Por heranga de familia, heranca de sangue cada un; tem um sring.Motado por indicacao dos sacerdotes. No final, todas os — Bisso ai — ‘confirmou Exu, engolind L, lo num 6 gole 0 con- teido de uma quartinha de aguardente d; de-ag aeabara de razerdel. ns *Camedeagcar que {fi retomou a palavra e coneluiu sua longa exposicao: Jo Desse modo, os nossos que foram levados pars lado de oo Gtniol — eauddoul Crabs ada ver eens cn orgul Ge mais os tiei; a humanidade é mesmo a maior obra FH iagao, ~ Conclusio: nosso mais que sébio pai acabou essa inovacao, essa ideia de orixd adotad Sua een ‘ue Aimé escolha que orixé deseja adotar como mie, do const? Pode set um pai? — reclamou Omulu, decepciona- ° coma discriminasao do género masculino, — Protea em home de meus irmaos Exu, Ogum, Oxéssi, Ossaim, Xang6, Iro- (0, Odudua, Oxaguia e Oxald. ~ Pode incluir meu nome e o de Logum Edé nessa lista, Omulu — resmungou Oxumaré. — Justo nés dois que poderia- mos ser pai e mie ficamos de fora. Injustica em dobro. — Mie e pai simultanea ou alternadamente, duas grandes ‘ops6es — brincou Ogum. ~~ Va se danar — responderam Logum Edé e Oxumaré juntos, — Bom, nés dois, que ainda somos criancas — disse um dos gémeos Ibejis —, nao temos nada a reclamar. If fez. gestos aflitos pedindo silencio e falou: — Nosso pai disse para eu fazer uma pergunta a Aimé. E vou fazé-la agora. A resposta a questo levantada por Omulu est na pergunta dele, que fala em mae e nao fala em pai. Também fui excluido, Interpretem como quiserem. Aimé foi acordada e posta de pé diante de Ifa, que disse a ela: — Por desejo de Olorum, vocé vai fazer uma escolha, minha menina. Vai escolher sua mae no Orum, a deusa que voce louva- 14 no Aié como sua origem ancestral. Vocé pode escolher entre lemanja, Nana, Oxum, Eua, Obé e Iansa, todas aqui presentes, De qual delas vocé quer ser filha? Lembre-se que as filhas cos. tumam se parecer com a mae, herdam dela muitos tracos, ent3o escolha bem. E Olorum quem pergunta: com que deusa vocé quer se parecer, menina? A prontidao com que Aimé respondeu gerou surpresa geral. — Nao sei qual escolher. Nao conheso bem nenhuma delas. Superado o momento de indignac2o das aiabas, que se senti- ram rejeitadas pela menina, [fi disse: — Essa resposta era mesmo esperada, omobinrin mi. O de- sejo de Olorum é que vocé renas¢a no Aié em terras brasileiras. Aqui no Orum vocé vai adotar seu orixa e, lé no Aié, no momen- to certo, seri adotada por uma das muitas novas familias que se formam para louvar os orixds. Mas antes de sua escolha, e para que seja uma escolha bem-feita, vocé vai acompanhar por um tempo o dia a dia de cada uma de suas possiveis maes. E depois de conhecé-las bem, vocé decidiré de qual delas seré filha quan- do renascer na nova nacao. — E uma boa ideia — aprovou Xangé. ‘Ifa continuou: — Em sua nova vida, uma sacerdotisa ou um sacerdote dos orixs saberd reconhecer sua escolha feita no Orum antes do novo nascimento. Depois, omé mi, minha crianca, trate de vi. la da melhor maneira para ser feliz. Se voce conseguir, terei uma nova histéria para contar a quem estiver na sua si. tuagao, a historia de Aimé em busca da vida. Aimé quase chorou de alegria, mas se controlou a tempo. Iff disse ainda: — Exu vai acompanhé-la em sua jornada e vai cuidar direi- tinho de vocé. — Sempre eu — reclamou Exu, — Fu também estarei presente —afirmou If — quando necessario. If comunicou que assim que Aimé tomasse uma decisdo, cles voltariam a se reunir no paldcio de Olorum para ouvir a pa. lavra final da menina esquecida. Em seguida, abriu seu sorriso de sabe-tudo e fez 0 convite irrecusvel: — Hoje falamos muito da nova nagdo que esté sendo cons- truida pelo nosso povo levado além do mar, para lé do omi nla, a Agua grande. Acho que é hora de fazermos mais uma visi. tinha a nossa nova terra, provar o que eles tém de bom para comer ¢ beber, ouvir nossos novos miisicos com seus atabaques, agogos e xequerés. Vamos lé comemorar. Vamos dangar no Bra. sil, minhas irmas e meus irmaos. 4. UMA DANCA NA CONQUISTA DE UM HEROI Os orixas foram quase todos festejar no Brasil. Oxum nao foi, alegando ter um compromisso inadifvel. Exu lamentou muito ilo poder ir: tinha de acompanhar Aimé, que a partir daquele momento se embrenharia por lugares e tempos mitologicos e enfrentaria situagdes e sentimentos perigosos antes de nascer de novo. E ia precisar de um guia esperto e poderoso que a de- fendesse do risco de se precipitar em sua escolha e enganar a si mesma. Exu resolveu nao perder tempo e tratou de seguir Oxum, le- vando Aimé pela mao. Antes de se separarem, contudo, If entregara a menina uma matalotagem abarrotada de comida oferecida pelos hu- manos. Despediu-se dizendo: — Exu vai acompanhé-la, mas ele nao faz nada sem receber pagamento. De vez em quando dé um agrado a ele. Exu adora comida e bebida. Mas seja dura; ele costuma trapacear e se di- verte criando confusio. Procure descobrir as verdadeiras inten- bes por tras de seu comportamento aparentemente desordeiro ¢ inadequado, e descobriré o quanto Exu é odara, absolutamen- te positivo, e como ele pode ajudar nas situagdes mais dificeis. Boa sorte. Partiram. Num piscar de olhos, a paisagem era outra, ¢ Aimé teve a sensagio de estar no mundo em que ela vivia antes. Teriam vol- tado ao Aié? Ser que isso era o renascimento, nunca mais as lagrimas do esquecimento? Ela estava sozinha, mais um indicio 3B de que deixara o mundo dos orixas. Porém, em menos de um se- undo, Exu estava de novo a seu lado, mastigando, como sempre. Aimé queria Ihe fazer mil perguntas, nem sabia por onde come. ‘sar. Ao sentir seu corac3o se aquecer com o calor da terra sob seus és descalcos, ela viu gente que caminhava ao encontro deles. Eram mulheres a caminho da roca, levando seus instrumen- tos de trabalho e arrastando atrds de si um bando de filhos de todas as idades, meninos ¢ meninas que se agitavam, brinca- Ihdes, barulhentos, repreendidos sem insisténcia pelas maes, ‘mais ocupadas em manter a animada conversa entre si. Aimé se alegrou, queria gritar, agarrar-se a saia de uma daquelas maes, recuperar sua familia. Mas as mulheres e as criancas passaram Por ela sem demonstrar nenhum sinal de que a tivessem visto, como se ela estivesse morta e fosse apenas um egum errante, um espirito invisivel. Exu a tirou do éxtase: — Fisso mesmo que vocé € aqui, omobinrin mi, um egum errante, — Yocé leu meu pensamento! — exclamou Aimé, surpresa. — S6 estou lhe lembrando quem vocé é. Espirito invisivel, ninguém vai lhe dizer bom-dia ou boa-tarde por aqui. Fique lon. ge dos viventes, ou nunca vai conseguir encontrar sta mae. — Tenho tanta saudade dos abracos da minha mae. Disso nunca me esqueci. — Ent’o tome cuidado. Se alguma feiticeira a vir zanzando or aqui, ela prende vocé numa cabaca e a transforma em um es. Pirito escravo, e vocé vai trabalhar para ela e nunca vai renascer, — Uma feiticeira poderia me ver? Mas eu nao sou um espiri- to invisivel? Voce disse que eu eral — Tem gente que vé tudo, menina, inclusive o que ninguém vé. Até 0 que nao existe! — Exu disse e caiu numa gargalhada, deixando a menina completamente desenxabida, Ele pegou a menina pela mio e apertou o passo, Aim6 seguia Exu por uma longa trilha na flotesta, que uma vez ‘ou outra desembocava em algum pequeno povoado. Aproveitavam Para beber gua, comer e descansar tum pouco. Depois seguiam em frente. Fazia muito calor, e Aimé perguntou a Exu se nao exis- tia um lugar onde ela pudesse renascer que nio fosse tao quente. 34 Tom lugar tao frio que a Agua vira pedra, quer ir para 1? — ‘le dinse, — Isto é, se é que um dia vocé vai poder renascer em yun lugar. Dificil acreditar, gua dura feito pedra. {istd me chamando de mentiroso, menina? Nao, meu pai, desculpe. : F no me chame de pai! Vocé ndo tem nem pai nem mae, ‘© ¢ por isso que sou obrigado a levé-la para li e para cé feito ‘enicomenda sem destinatario. Seguiram em siléncio e depois de algum tempo encontra- fam no caminho um grupo de mulheres que se dirigiam ao mercado da cidade mais préxima para vender os produtos da fuynilia, Carregavam na cabeca sacos de obis, tabuleiros de aca- Iajés e acacis, cestas de frutas e cabacas de azeite. Umas leva- vam atado as costas o filho mais novo e conduziam pela mio os {que jd podiam andar. Exu quis experimentar de tudo um pouco « adorou quando as mulheres disseram que nao precisava pa- jar nada, era presente. Elas reconheceram 0 mensageiro pelo chapéu de duas cores e pela impertinéncia com que tentava bolinar as mais bonitas. Aimé aceitou somente um acarajé e uum pouco de agua. Uma das vendedoras disse que na cidade de Iré 0 comércio andava muito fraco, pois parecia que o rei tinha abandonado o local, provocando 0 caos. Por isso elas estavam indo para outro povoado. Entdo despediram-se e retomaram seu caminho, cada grupo para um lado. Aimé tinha uma davida: — Exu, se eu sou invisivel aos que vivem, como as mulheres me viram e ainda me deram 0 que comer e beber? —Se viram a mim, porque nio veriam minha acompanhan- te? — explicou Exu, se gabando. — Comigo nao tem essa do que pode e do que nao pode. Nao bota fé nos meus poderes, ‘omobinrin? Nés dois saimos no lucro! ; Mais tarde, Exu e Aim6 chegaram a beira de um rio largo e agitado. y — Temos que atravessar — disse Exu. — Estas aguas po- dem ser traigoeiras. Vamos fazer uma oferenda. Abra 0 saco procure alguma coisa de que Oxum goste muito. — Por que Oxum? Nio aprendeu, nio? Isso aqui é um rio. — Virou as costas para Aimé e resmungou: — Menina ignorante! Aim abriu a matalotagem e foi tirando de dentro dela mui- tos presentes que poderiam ser oferecidos ao rio: cestos de obis € orobés, tigelas de feijio-fradinho, porgées de inhame assado embrulhadas em folha de bananeira, cabacas de vinho, potes de azeite e de mel, galinhas gordas e cacarejantes, cachos de banana madura, diizias de ovos frescos, outras de ovos cozidos, game- las de quiabos refogados, alguidares de feijgio-preto, pencas de pimenta-da-costa em fivas, tabuleiros de acarajé, acag4, ecuru © abard, tabuas de cocada. Exu fazia caretas indicativas de que o presente ideal nao era aquele. Até que uma cabra amarela, quase dourada, pulou de dentio do saco de ofertas e se pés a balir. — Pronto — disse Exu. — Veja como o rio se acalma. Depois de oferecerem a cabra de presente a Oxum, atraves- saram o rio a vau sem dificuldade e seguiram adiante. Aimé caminhava segurando a mao de Exu, mas sentia que de repente ele nao estava mais ali. Ela mal se dava conta de es- tar caminhando sozinba e de novo se sentia agarrada a ele. O ‘saco que ela carregava também ficava mais leve ou mais pesado em segundos, sem queela tocasse em nada. Depois de dias e dias de caminhada, ou talvez horas ou mi- nutos, ela nio sabia dizer ao certo, chegaram a um povoado e fo- ram diretamente ao mescado. Exu perguntou a uma vendedora de acacé se o adivinho andava por ali. A mulher apontou para 0 Jugar onde ele se instalira para praticar seu ordculo, atenden- do as pessoas que he traziam problemas e dividas para resol- ver. Viram que ele se despedia de uma mulher que acabara de consulté-lo e que certamente recebera bons pressigios, pois sor- ria muito quando estendeu a ele um punhado de biizios como pagamento pela consults. Aproximaram-se do puxadinho onde Ifi fazia seus jogos de adivinhagao, um telhade de palha sobre estacas, fixado em um dos lados a parede de uma casa simples de taipa. Assim que viu 0s dois viajantes, ele se levantou da esteira estendida no chao de terra batida e os recebeucom alegria. — Mojubé, meus cumprimentos, meu irmao Exu e nossa querida menina esquecila. Esto a minha procura? Nao, Ifi, eu trouxe a menina para conhecer Oxum de per- to, Vocé sabe muito bem disso, nao se faca de tolo. Mojubé mes- assim. — F voce jé contou a ela por que Oxum vai aparecer aqui hoje, nesta decadente e desesperancosa cidade? — perguntou If — Nao contei nada. Quem conta historias é vocé, nao eu — respondeu Exu. x — Ento vou contar como foi que tudo comecou. Sera melhor ‘a menina ver o final com os préprios olhos e ouvir com os pré- prios ouvidos, uma vez que Oxum estara presente. Quem sabe cla gosta do que vai ver e, depois, escolha Oxum para ser sua mie, nao é? H — Conte tudo para ela que eu volto logo — disse Exu, partin- do em disparada. Ife a menina caminharam uns poucos passos € se senta- ram a sombra de um baob4, onde Ifé esperava ndo ser importu- nado por nenhum cliente impaciente, e 0 adivinho contou como tudo havia comecado ali naquela cidade. ‘Aimé ficou sabendo que Ogum, o rei de Iré, a0 voltar vitorioso de uma de suas guerras, oi recebido sem festa alguma por seu povo. Tudo era siléncio. Até parecia que ninguém havia reconhe- ido o rei guerreiro, que esperava ser, como de outras vezes, con- templado com homenagens, honrarias e gratidao por seu triunfo. 0 trigico desdobramento desse caso foi pausadamente nar- rado por If’. Enfurecido com o descaso de seus stiditos, ¢ com suas armas ainda manchadas pelo sangue do inimigo, Ogum investiu contra seu proprio povo, cortando cabecas, matando sua propria gente. Quando o sangue ja cobria o chao de Iré, um velho conselheiro acusou Ogum de traigao, dizendo-lhe que 0 siléncio do povo & sua chegada era devido ao preceito da home- nagem aos ancestrais, ceriménia que naquele dia a cidade cele- brava, Somente entio Ogum se deu conta de seu terrivel engano. Preocupado unicamente com suas glérias, ele nao s6 quebrara © preceito do siléncio como matara muitos inocentes, gente sua, que o amava, que devia sempre viver sob sua protecio. Desespe- rado, atirou longe sua coroa de rei de Iré e sua espada, rasgou ‘suas roupas e se cobriu de folhas de palmeira, em luto, esperan- do pelo castigo merecido. — Pobre povo inocente. — condoeu-se Ai Uf fez um carinho timido nos cabelag ton imido nos cabel i als los da menina ® hice mais velho dos orixés, prefer livrar Ont ee ee Seen a trabalhar na forja para 2enas 0 ferreiro, como um di i 0 agri fe Sagrculore antes dso cada da florea, Farin op », Ogum se dedicou a de : a coe ocean arte do ferreiro, fabricando Pata a morte. D in i guecorta, tudo que capi equeara tudo que sere a es "Prega ¢ raspa. Até que um dia, farto de sua labuta, ase 7 Também fiquei com pena dele — disse a menina na del bs : A seguir Ifi contou que muitos emissérios foram env iados Padas e punhais, enxadas, inho: . » enxaddes, rastelos i eI oe € 0s martelos, tesouras ¢ ravalhas, Mas 0 cana ieee pica q 2 ueria ver ninguém, queria ficar no mato, sozinh selon 3s queixas de seu povo, no acetava presentes Rua © escorracava todos que pee ee| ° ° ae ‘ue 0 procuravam, sob ameacas e mal. — Mas nao houve quem REN nce quem fizesse Ogum mudar de ideia? — Po que estou com isso na cabs hu Ai O adivinho fez que sim. prey que coy do outro lado da agua grande, soca ian annem Speen git i rd : 38 4 0 que acontecerd com eles. Descobre qual historia esta se re- etindo, Porque tudo o que acontece jé aconteceu antes; na vida judo ¢ sempre igual, uma chatice. no acho a vida chata — interrompeu a menina. E por acaso vocé viveu o suficiente para saber? — disse — Tem lembranga do que era? — Chega de conversa — interrompeu Ifé. — Tem muita jyente por af precisando de meus servicos. Vamos acabar logo ‘com essa historia de Ogum. E preste mais atengo, omobinrin mi, porque € aqui que surge uma candidata a sua mae. ‘Aimé aplaudiu, entusiasmada, e ouviu de If’ as seguintes palavras: tir do momento em que Ogum abandonow ‘in cldade e sua forja para se refugiar na floresta, ‘p nwundo comegou a caminhar para tras. ‘Hern instrumentos para cultivar a terra, Javouras fracassavam e o povo ja passava fome. ‘Gein armas para se defender dos inimigos, ‘clade vivia aterrorizada diante da possibi Todos os embaixadores que levaram a Ogum ‘ clamores de seu povo para que ele valtasse haviam falhado completamente. Quando o povo se reuniu para pensar no que fazer, tumma bela e fragil jovem, vinda de outro lugar, se ofereceu para trazer Ogum de volta a cidade e& forja, Ela o convenceria com seus encantos. Chamava-se Oxum a bela e jovem voluntéria. Todos escarneceram dela, tao jover, tao bela, tao fraail. Ela seria escorracada por Ogum! Houve quem tomesse nor el: ‘gum era violento, poderia machuca-ta, possui-la a forga.e até mata-la. Mas Oxum insistiu, isse que tinha poderes de que os demais nem suspeitavam. Obatala, que a tudo escutava mudo, idade de uma invasao. Ievantou a mao e impés silencio. Oxum o convencera, ela podia ir a floresta e tent: Nesse momento, Ifé interrompeu a narrativa e chamova tengo de Aimé para uma bela mulher que passava por el, seguiida pelos gracejos e olhares desejosos dos homens git observavam seu caminhar em direcdo a floresta. Ele disse que era Oxum e falou para a menina a seguir, com os devidos cuit dos para ndo ser vista nem se meter na hist6ria que ia presencis-. Eassim fez Aimé, e 0 que esta contado a seguir foi o que ela vit \is mel, mais sedugao, ear contad etratagema da dancarina. sJe a seguia inebriado, louco de desejo. escondendo-se atrés Ja8 Nessa altura, Ain seguiao cass, escondendo-se ts Joitas que Tadeavam o caminho. Aim6 imitava Onum, a0e Nishurdo, muito dsajitadamente, seus passos de dang ae “uc, fazendo carase bocas, imaginando o me! By jé se sentindo a propria Oxi™ 3s, 0s pulsos envo¥= rodeado de joias J4 Hronte, panhando, estos de seducdo, jo da ponta de seus dedos js setin com 0 cabelo enfeitado por contas br slegante los por douradas, 0 pescoso el jpn ade ae filha de Oxum; teria encontrado Ge eee ba tov reaidade bere por pesos pert de Be te prestasse aters0 a historia que se desenzola que Caminhando com graga, Oxum entrou no mato e se aproximou do lugar ‘onde Ogum costumava acampar. Presos a cintura, ela usava cinco lengos transparentes e esvoagantes, e s6. Tinha o cabelo preso no alto da cabeca por fios de contas dé vidro, 2s nés descaleos, os bracos carregados de pulseiras de ourat de c Colares de negas mididas de ceramica, migangas de louga € seguis de cristal preenchiam 0 vo entre seus. ‘eempinados. Oxum dangava agora, ja néo caminhava mais, Oxum dangava como a brisa que ondula a superficie da lage®, purificando o ar com 0 perfume de seu corpo em movimento. Ogum sentiu-se imediatamente atraido, irremediavelmente conquist bela visdo estonteante, mas se manteve a distn Ficow & espreita atrés dos arbustos, atsorto, adimirando Oxum embevecido. Oxum via 0 guerreiro, mas fazia de conta que na A cada passo de sua danga, ela se aproximava dele, ‘mas fingia nao notar sua presenca, ‘Adanga eo vento faziam flutuar os cinco lengos da cintura, ‘mostrando de Oxum toda a nudez, Ela dangava, o enlouquecia. Oxum se aproximava e com dedos atrevidos lambuzava de mel os labios de Ogum. E ela o atrafa para sie avancava mata afora, sutilmente tomando a direcao da cidade, seus olhos. (arn Oxum e Ogum em sua danca, wand Qgumn percebeu, i ‘vs dois se encontravam na praca da cidade. lacom 0 povo Ds orixas todos estavam P ' ‘aclamavam o casal em se baad de amor. ‘Ogu estava na cidade, ome voltara! ‘Tumendo ser tomado como frac ‘enganado pela sedugao de uma mulher bonita, Ne ‘Our deu a entender que voltara por gosto e vont nunca mais abandonariaa cidade. nunca mais abandonariasoe fri danga de Oxum. Cyumvottow forae ox homens vataram a usar seus utensils ehouve novas plantagdes eboas colheitas ai ‘ea fartura baniu a fome eespantou a mort 0 povo se sentiu seguro e protegido eaclamou Ogum seu rei eterno. ‘Oxum e sua danga de amor, ‘que devolveram um rei guerreiro a seu novo, Seriam parasempre embradas. si Mas naquele momento, ali na praca, ‘era comemorar o feito. Oretorno merecia uma grande celebragao a cidade antes entristecida transformou-se em uma festa. 0s tocadores correram para buscar seus instrumentos musicais, quem sabia cozinhar acendeu o fogo e encheu as panelas, ‘quem nao sabia trouxe ingredientes, trouxeram bebidas, enfeitaram a praca, vestiram as melhores roupas, adornaram-se com as joias mais reluzentes. Ea festa avancou noite adentro, ‘no centro da celebracao, Ogum e Oxum, © rei com sua rainha. Aproveitando-se de um segundo de auséncia de Ext, Aimé se juntou A multidao festiva e caiu na danca, Pés-se bem proxima a (Oxum e a imitou em tudo. Ja nem se sentia mais uma menina, mas sim uma mulher, atraida pelo corpo musculoso de Ogum, Pela forga que dele emanava, admirando os passos desajeitados do guerreiro, sentindo seu cheiro suarento de homem que traba- tha na forja, na boca do fogo, modelando o ferro derretido. Aimé achava que ninguém a via, por isso podia dar vazio. aos seus sentimentos e desejos de viver. Mas eis que dois ho- mens a cercaram com atitudes inequivocas de que ela nao era bem-vinda. Eles empunhavam longas varas e com elas fizeram a menina se afastar da praca e correr de volta a floresta, Exu a esperava na entrada do matagal, sentado e se fartando com um verdadeiro banquete, Ele fez sinal a ela para que se sen- tasse a seu lado, apontou para a comida e esclareceu: — Presente da cidade, porque Ogum voltou. — Mas ele foi trazido por Oxum, voce nao fez nada, s6 ficou vendo. Por que ganhou presente? — Vocé tem muito a aprender, menina esquecida. — Exu disse e, mudando de assunto, perguntou: — Os ojés machuca. ram vocé? — Ojés? — 08 dois sacerdotes do culto aos mortos, aqueles com as varas, — Ah, nio, Estou bem. Achei minha mae, estou feliz, muito feliz, a ‘Achou, € — disse Exu, zombeteiro, de boca oo ert jue mastigava e encarou Aimé: — Pensa que pode ir arom Sin? ‘Vé uma mulher bonita ¢ diz que quer ser daquele j aa onto, Isso toda menina quer. Vocé tem uma longa cami! a irente, Tem que cumprir 0 preceito inteiro, omé mi. \caroua menina bem de fa colina am ys eI jovo na besteira fea oleae een Spar Tos Indeseados. Eles Bae eoeonaere Bsa suns de antep: , te sexpnsien por grande rosa via «qu pode ajudar os viventes porque esto hn dos orixas. nsdn ors de Aimé hs dens ee no chorou. Mesmo que nao pudesse escolher cna ie corasoextavacheo de esperanc Exu guardou as sores d2 refeigio nos bolsos de sua tinica vermelha e prea, dew a mao engordurada a menina e disse: ‘Erotomaram seu caminho a procura da identidade de Aim. 5. UMA LAVADEIRA ENGANAA MORTE Depois de um ou dois dias de caminhada, chegaram a uma cla- reira dominada por uma ruidosa cachoeira, que se precipitava ‘montanha abaixo para se transformar em um riacho cristalino ‘que corria calmamente serpenteando pelo vale. Ao pé da queda-d’dgua, Exu sugeriu: — Que tal um banho para refrescar? Aimé reagiu com surpresa: — Nao sabia que orixd tomava banho! — Como assim? Pensa que vivemos sujos, como gostam de viver muitos humanos, que eu sei? Que nojo! — Nao quis ofender. — Se voce nao fosse burra, esquecida e inexperiente, saberia ue uma coisa que os viventes nos dio como oferenda sio os ba- nhos. Banhos que eles, vocés, também tomam. Nao se recorda de ter ouvido falar dos banhos de abé, os banhos de folhas ma- ceradas em agua fresca, étimos para acalmar? E agitar, quan- do preciso. Gragas a Ossaim, que comanda 0 mundo vegetal ¢ sabe todos os encantamentos que fazem das folhas remédios Preciosos. ___ Sempre tem um orixé metido nas histérias — disse Aimé. — Mundo, natureza, gente, bicho, orixé sto coisas que nao Se separam, omobinrin mi. E ndo me pergunte mais nada ou vou acabar virando um olucé, um Professor. Coisa horrorosa! — Esta bem, esta bem, vamos ao banho. Enfiaram-se sob a cachoeira. A gua estava muito fria. Eles jritaram, riram, brincaram. Depois se estenderam na grama ara secar, Exu mastigava um talo Ge capim. Voltou-se para ‘Aim@ ¢ ordenou: Pegue um acagé no saco e pon.ha ali na margem. Paga- mento a Oxum. La vem orixd — resmungou a menina, procurando a ofe- Ja na bagunga da matalotagem. — Quer um também? — perguntou a Exu, sem se voltar para ele. Sempre. Exu come antes de qualquer orisd. Jé sei. Perguntei por perguntar. Se Ift estivesse aqui — disse Exu, comendo 0 acagé numa dentada s6 —, ele contaria que essa Cachoeira foi uma oferenda {que Oxum ganhou de um tei, quer dizer, ganhou e nao ganhou. ‘A voz de Ifa se fez ouvir. Estava sentado ao lado dos dois via- jantes, que nao estranharam o repentino surgimento do adivi- nnho. Naquele mundo maluco, era urn tal de ir € vir € estar a0 ‘mesmo tempo em lugares diferentes que Aimé nem queria pen- sar nisso. — Pegue um acagé para mim também, Ait a hist6ria de que Exu falou — disse o adivinho. Depois de comer 0 acacé devagar, como se estivesse reme- morando o que contaria a seguir, e lamber os dedos, ele contou: imo, ¢ eu Ihe conto ‘Muito antigamente, numa énoca de guerra, ‘ini, rei de OG, chegou com seu exército a beira de um rio. ‘Vinha que atravessé-to para adiante deter 0s inimigos que vinham de longe invadir suas terras. Olod sabia que a margem do rio nao era lugar prop{cio para uma batalha. babalaé, o adivinho que o aconselhara, havia dito que lutasse bem longe da agua. ‘Tinha que ultrapassar a corrente para vencer. Mas as aguas do rio eram profundase revoltosas. Dificilmente um exército poderia atravessar ali sem sofrer grandes perdas. correntes que muclavam de direcao a todo instante pareciam fazer do rio aliado do inimigo. a Olod fez um pacto com Oxum para que as aguas baizassem e se acalmassem, deixando-o passar com seu exército. Ele daria a ela uma bela prenda e para sempre seria agradeci Oxum aceitou a oferenda e atendeu ao pedido, As aguas de repente tornaram-se rasas e tranquilas Antes de seguir em retirada, © rei atirou nas Aguas da rio um grande presente: as comidas e bebidas preferidas de Oxum, tecidos multicoloridos, joias ofuscantes legitimas, berfumes trazidos de terras distantes. Porém, mal o rei viraraas costas, Oxum rejeitou o sacrificio: tudo foi devolvido as areias da margem. Mais adiante, muito longe do rio, © rei enfrentou o exército inimigo e venceu, De volta para casa, encontrou de novo o rio intransponivel. Consuttou o adivinho: ‘que oferenda devia ele fazer para atravessar? O rei tinha uma esposa chamada Bela Prencla, filha do rei de Tada, que estava gravida. E Oxum queria Bela Prenda, esposa, que Oloti prometera na ida e nao entregar (rei se espantou com as palavras do adivinho. Argumentou que Oxum se enganara com as palavras. Ele pagara a promessa de oferecer uma bela prenda, e claro que ele se referia a belos presentes, hhelas oferendas, belo sacrifi endo, evidentemente, a sua adorada e soberana esposs ‘Oxum ou simplesmente nao ouvira direito ou interpretara mal stias palavra: Isso s6 fez aumentar a ira do ‘As aguas cresceram em violencia, ele nao passaria. No final, nao houve negociagao, © orei, sem ter outra saida, atirou sua esposa ao rio. £0 rei passou com seushomens, seus cavalos, suas armas e sua fi ue 0 exéreito passou para a outro lado, yocdnvnaseida foi devolvida & margem do nda. queria Bela Pres ido, | consternado e consumit or a e mandou avisar o sogro do ocorrido. hada se sentiu trai @ reino de Od e puniu com a morte Wjprusdente que jogara com palavras, muito perigoso. Jina no & de quem nao entende o que € dito, We quem fala 0 que nao se pode entender”, vel de Ibada, justificando a punicao. is onto de Durante a narrativa, a aflicao de. Aimé ae na uae Ja nao poder mais permanecer calada. Interrompe ela Ser ibt ‘nao tinha nada a ver com a historia or ido e acabou sendo afogada. Nao sei mais se Oxum seria 4 ; : at Galeoee este o inal oriGbiaaian Ea ae ida em familia ¢ assim mesmo. 2 rer aid eaquecia por sua fannia? Nao teve, mas ext arcan le as consequéncias. se ing engl em soe esctou oil ‘em uma elegante e imponente cachoeira que se interpe em seus cursos, mostra a forga do ri edeixa o mundo dos viventes mais bonito. rei de Thada, por sta vez, oe Sua de criar a neta devolvida pelas aguas como uma ‘que mais tarde reinou em 04 em honra de Oxum. ‘Aim bateu palmas, alivada. Tudo terminara bem, a cachoei- ra bem ali sua frente era inda,e estava viva. Que mae marach Thosa Oxum poderia ser, Exu, que estivera auserie no final, mas que jé ouvira essa historia uma infinidade de vezes, voltou e fez um, pedido a If. -~ gurprendewse Aim6, cetamente Pol local. \mpressionada com a Papbreza do é Um ilé axé € um —jgcal onde 0s devotos deixam ee para oorixd e onde S80 txmnantids objeto simbdlicos que 0 16% sentam, Os humanos @ ogam de sitmbelos, nf vivem sem es — E com quem os heyy;manos aprenderam a gostar ae los? — comentou Exu, fazendo pouco-caso de Ifa € oa para 0 og6 que pendia @e seu cinto, seu bastio de ne Gis {que simbolizava o poder-y que ele detinha na fecundag a ‘Aimé fez que sim Com a cabeca € voltou ao assunt an a — Mas onde mora Nyjana? Pensei que ela fosse um rio, as outras aiabas. — Pense na gta See misturando com a terra, olhe em torno de nés. , : — Alama? — arris coy Aimé. —Sim, a lama, 0 bayrro, a argila. Que viram’ ia e a potes e alguidares, qua ytinhas € panelas, estatuin! 2 i ne — Fala logo o mais importante — disse Exu a Iff, impa te, alisando a barriga. i awa que Se tre, ysforma em osso € em carne, que se trans- forma no corpo do horyyem e da mulher. a — Vai me contar exysq historia? — pediui Aimé. — Depois. Agora Vamos comer. Exu foi o primeiro comer, depois Ifa depositou no ee a cabana oferendas pata Nand e outros deuses alt ae Em seguida, If comey,, ajm6 compartilhou os aliment cidos, comendo por tIsimo. iii imé i divinho: ‘Terminada a tefeigag, Aime interpetou o adivin — Vejo que 08 sinabolas de Nana nao sao 0s tinicos. Quem faz companhia a ela? — Seus parentes, que a acompanharam quando “ nee de outra nagio para @ nossa, Falavam outra lingua» a ing /Oty dos povos jejes, € N40 eram chamados de orixds, Tas CC 1 Ue Nossa nagao os recebey ¢ os adotou, ¢ desde entlo are) Ea iguais, Nand se junto g nés orixés com seus filhos Oxu Omulu, ¢ também com Eud. uw — Na nagio fon meu nome é Elegbara e 0 de Ifa ¢ Fa —dis- se Exu, — Os voduns nao sao filhos de Olorum? — perguntou a menina, — Claro que sao, mas eles o chamam de Avievodum — dis- se Exu, que substituiu Ifa nas explicagdes quando o adivinho se ausentou para atender a um chamado urgente. — Todos os deuses que cuidam do Aié sao filhos de Olorum, até aqueles de que nunca ouvimos falar e que trabalham em terras que nao sabemos existir. — Onde vivem esses? — No Orum, onde mais? 0 Orum se divide em nove espa- 0s. Vocé s6 conheceu o nosso. E nao adianta me perguntar dos outros porque s6 Iansa tem autoridade para circular pelos nove ‘céus. Ah, uma curiosidade: Iansd é a forma abreviada do verda- deiro nome dela, 14 Mess Orum, a mie dos nove céus. — Mas eles sao orixas ou sio voduns? — Em terra de orix, a familia de Nana vive com os orixas € sto todos orixas, iguais a nés. Na terra deles so voduns. Simples, nao € Depois tem os tais de inquices, os deuses das terras dos povos bantos, que também se juntaram aos orixés, mas isso € outra historia, uma complicagao ld da nacdo além-mar, no Brasil. — Nossa, estou me tornando uma sabia — disse a menina. — Vou voltar para 0 Aié sabendo coisas que muitos nao sabem. — De eito nenhum. Tudo que vocé esti vivendo e aprenden- do no Orum vai ser esquecido quando vocé nascer de novo, se nascer. Do mesmo jeito que tudo que é vivido no Aié em vidas passadas também € esquecido. Do contrario, a vida nova nao teria graca, nao seria uma vida nova, nao 6? — E —disse a menina, decepcionada. Sua animagio mur- chara. — Agora passo a palavra ao bambambi das historias, que jé ‘vem chegando ai com os pés embarreados — disse Exu. — Querida omobinrin mi, sente-se porque a histbria 6 com- rida — disse If6, depois de lavar os pés. ‘Tudo comegou com as dificuldades de Oxala nna criago do mundo. ne Obatala, Waquele tempo, era chamado Wo pano braneo, ‘ua tanica inconsitil era mantida Ja a Criagio era exclusiva dele, ee Olorum. ; ‘ws de qualquer agaoele deveria fazer oferendas a Exu, icipacdo de Exu nada acontece, ie ai sio competéncias exclusivas dele. - rdeu essa oportunidade. sempre alvissima. onto e rom, no seguiu o precelto e per i acabou criada porseu rma Odudua, ‘youbou o saco da Criagao dado por Olorum a Oxala, 4 Kxw as oferendas recomendadas € fie ‘omundo. jinho de palma, yavla se embriagado com vinho ‘ c ‘valu do dendezeiro ebebeu em grande quantidade aplacar a sede provocatia por Ext, ‘outras atribulagées, jque Exu se sentia indevidamente ni cai num sono profundo. oe ‘condi¢do, Oxalé foi passado para tras por Odudua. ‘Pox causa disso, Olorum determinou que Oxala nunca mais ‘oesse ou bebesse nada que fosse produto do dendezeira. ‘Twi que leva azeite de dendé ou vinho de palma thos. abu, cub, para Oxald e seus fi : es ‘Oxald era 0 predileto de Olorum e teve outra chance. ‘Qxald foi encarregado de criar o homem e a mulher, que ainda nao e jam no mundo feito por | Odudua. ‘Oxala, humanidade foi criada por' a :. a ajuda de Exu, agora’ devidamente propiciado. dle Nand. aqui entra a particinagso ; ; Na feitura do homem, Oxala tentou varios riarerione "20 homem de pedra, mas ficou pesado demais endo safa do lugar, néo se mexia. Fez 0 homem de madeira, Inassews ovimentosticaram desengongades. Fez o homem de agua, maseele escorria pelo vio dos dedos. Fez de ar, que éa matéria do proprio Oxala, mas 0 vento dispersava ohomem ao menor sopt jegligenciado. uy — Coitado do Oxalé — disse Exu, ressurgindo, — Essa tal de Criagao foi uma verdadeira dor de cabega para ele. Levou milénios e milénios para fazer do homem o que ele é. Demorou tanto que acabou velho e cansado, tendo que se apoiar em seu cajado até para dancar. — Vocé bem que atrapalhou um bocado — disse Ifa. — Culpa do velho, pretensioso demais — disse Exu. — Achava que podia tudo, porque depois seria venerado como 0 maioral por suas criaturas e me pds de lado, se danou. Nessa historia h4 uma guerra entre o orgulho e a humildade. Eu s6 apareco nas entrelinhas, mas fiz minha parte. E no final, in- justamente, Oxala saiu mais prestigiado do que eu. Vocé sabia, ‘omobinrin, que o nome Oxald vem de Orix4 Nl4, que quer dizer 6 grande orix4? E eu, 0 que sou? Pobre de mim. — Para mim vocé é o maior, Exu. — disse a menina para animé-lo. — Nao liga, nao. — Posso continuar? — queixou-se If, enciumado pelo elo- gio da menina ao mensageiro. Desanimadio, Oxald contou seus infortinios para Nana, ‘a mais velha dos orixas, de grande sabedoria, ‘que mora no fundo da lagoa, onde a mistura de terra e agua da forma a seu corpo. Nand se dispds a emprestar a matéria de seu proprio corpo para que Oxalé fizesse a criatura humana. Que Oxala fizesse os homens e as mulheres de lama. Bem amassada, em socada, da um barro de pri matéria-prima macia, consistente e facil de moldar. Depois era s6 tirar o corpo de dentro da agua, a terra transformada em carne no ventre da mie. E assim o homem foi criado com a ajuda de Nand, depois de muitas oferendas ao senhor do movimento. Infelizmente Oxalé se esqueceu de fazer uma cabega para o ser humano, onde ele pudesse tecer seus pensamentos, cultivar suas lembrancas e guardar as linhas de seu destino. 0 ser humano foi feito sem ori, sem cabeca. ‘Sem tudo aquilo que ele tem dentro da cabega, 120 jnelhor dizendo, o miolo. Ajald, outro irmao de Oxal4, veio em seu socorra sou a produzir boas cabegas de barro, ‘que ele cozinhava no forno de sua olaria. Entre todas as cabecas fabricadas por Ajala, ‘ao nascer 0 homem escolhe uma para si. Escolhe uma cabega nova ao naster, ‘um ori recém-fabricado, sem nenhuma lembranga, uma folha em branco para uma vida nova. 0 dinico problema é que Ajala gosta de beber. quando ele trabatha bébado, falgumas das cabecas nao saem bem cozidas. ‘Mas Iemanjé aprendeu um jeito de resolver esse problema ‘¢sabe como consertar cabecas com defeito. Nana emprestou a Oxala a matéria-prima para o homem, ‘mas advertiu que era um empréstimo, nao uma doagao. ‘Oxalé teria uma divida com ela, ‘que, imprudentemente, depois se esqueceu de pagar. ‘A humanidade se reproduziu, inventou os ofiei construiu aldeias e estradas, sediferenciou em povos € linguas, se propagou por varios pontos do Aig. 0s humanos se gabavam de saber tudo, ‘mas a morte era coisa que os homens e as mulheres daquele tempo ‘nao conheciam para si, porque foram feitos & imagem dos deuses, suas c6pias no Aié, e os deuses sao para sempre. Destle o comeco o homem sabia que existia um edeveres de um lado e de outro. 0s orixas ajudavam os homense as mulheres a enfrentar as dificuldades da existencia, ‘mas cabia aos humanos honrar e alimentar os orixas. Entao os homens fizeram suasciéncias, construiram suas riquezas, produziram suas artes e perdleram a humildade. Se achavam tao importantes quanto 0s orixas. Nao precisavam mais deles. Romperam o acordo de reciprocidade. aa A humanidade abandonou os deuses. E os deuses padeceram de fome e de esquecimento. — Isso ¢ ingratidao, no 6 — disse Aimé. — Vai ter troco, pode deixar — disse Exu. O que estaria errado com a criatura de Oxala? Oxald consultou o babalad para saber como agir. O babalad disse que a rebelido dos humanos tinha algo a ver com a matéria-prima de sua constituicao. Oxala lembrou-se da divida que tinha com Nana, foi a procura dela e ela the cobrou o cumy Ela emprestara, sim, a lama para feitura do homem, ‘mas era apenas um empréstimo. E o que era emprestado tinha que ser devolvido. Entao Oxala criow a morte e com esse ato resolveu dois problemas. ‘O homem perdeu a imortalidade ara que a carne de seu corpo fosse devolvida a Nana, retornando a terra de onde tinha saido, E tendo perdido a imortalidade, 0 homem perdeu a arrogancia, se descobriu inferior aos deuses imortais erestabeleceu 0 pacto de ajuda matua. ‘O homem continuou com seu espirito eterno, ‘mas de tempos em tempos ¢ obrigado a morrer edevolver, assim, seu corpo a terra, a lama, para depois nascer de novo e ocupar um outro corpo, ‘que cedo ou tarde seré de novo devalvido a Nana. — A menina perdeu a lingua? — falou Exu. — Voce é a primeira a dar palpite e est af muda feito uma boneca de pau. Nao deu um pio ao final da historia. — Tenho medo desse assunto — cla disse. — Muito medo de nao nascer de novo. — Entéo agrade Nana, puxe o saco dela — disse Exu. — Escolha-a para ser sua mae e com certeza, nem que for s6 por orgulho, ela vai dar um jeito de pér seus pezinhos de barro no Aié. — Ela seria uma mie formidével— disse a menina. — Nao ae iento do antigo pacto. precisa da bajulacao de ninguém, muito menos de mim, que adoraria ser sibia como ela. — Falsal — disse Exu. — Deixe omobinrin mi em paz — repreendeu Ifa. — Ha muita coisa odara sobre Nana que ainda quero contar a ela. — Pois conte enquanto entrego estas cartas — despediu-se Ex. — Exu no para, daqui a pouco esti de volta — disse Aimé. — ‘Ainda bem que ele tem pernas compridas. —Ele 6 0 movimento, omé mi. — E tem os pés bem ligeiros. — Isso ele tem mesmo. Pés apropriados para um leva e traz — riu Ifa. — Mas voltando a Nana, bab mi, conte um pouco sobre os filhos dela — pediu Aim. — Bem, Nani tinha dois filhos, os dois muito bonitos, prin- cipes da nagdo jeje. Quando chegaram na nossa naci0, Omulu estava com as bexigas da variola. Omulu acabou curado, mas seu corpo todo, inclusive o rosto, ficou muito marcado por ci- catrizes feias, parecendo um pequeno monstro. Ja Oxumaré, 0 outro filho, continuava bonito e, quando ia para a praca, usava uma roupa multicolorida, que seu pai lhe dera antes de deixa- rem seu velho pais. E todos paravam para apreciar sua beleza. fi, que se resfriara com a chuva, tossiu antes de prosseguir. —A beleza de Oxumaré era um problema para Oulu, por que realgava sua feiura, um contraste gritante. Por ter lidado com tantos remédios para sua doenca, tendo aprendido varias formu- las magicas com Ossaim, até hoje convidado para suas festas, ‘Omulu se estabeleceu como médico e se transformou em um famoso curador. Oxumaré, por sua vez, arranjou um emprego de aguadeiro, cabendo-the abrir e fechar as torneiras da chuva. f4 interrompeu a narrativa, pensativo. Aimé o chamon de volta: — Mas acho que a hist6ria nao acaba aqui. — E verdade. Apesar de médico concorrido, Obaluaé, ou Omulu, dé no mesmo, era injustamente ridicularizado por suia aparéncia. Por causa disso, Nana mandou fazer uma roupa de palha que cobria a cabeca e 0 corpo do filho, e nunca mais ele ww foi incomodado. H4 quem diga que Omulu foi dado em adogao a Iemanja porque Nana nao queria que seu filho fosse criado como um estrangeiro, Acho que jé Ihe contei essa hist6ria, om6 mi, ou pelo menos parte dela. — Mas no contou a histéria em que lansa soprou para lon- ge as palhas de Omulu durante uma festa, e suas cicatrizes se transformaram em pipocas que saltaram do corpo dele e forra- ram o chao do lugar, como um jardim de flores brancas, deixan- do um belo principe negro nu e envergonhado no meio de toda aquela brancura — disse Exu, achando graca. —E, mas essa vai ficar para uma outra vez — disse If. — E Oxumaré? — insistiu Aimé. — Juntava gente a porta da casa de Nana para apreciar a beleza do rapaz quando ele entrava e saia para trabalhar. Até brigavam na disputa por um bom lugar. Nana achou que todos tinham o direito de admirar a beleza de seu filho e colocou Oxumaré no firmamento, onde se pode vé-lo em dia de chuva com seu traje multicolorido, abrindo e fechando as torneiras. arco-iris, que é a traducao do nome dele no lugar onde vocé foi escrava, também pode ser visto aqui embaixo, nao tio bonito nem tao desejado quanto nos momentos em que é visto la no alto. Oxumaré também toma a forma de serpente! — Morro de medo de cobra — disse a menina, se arrepiando toda. — Mas como foi que ele se encantou em uma serpente? — Um dia, Xangé viu Oxumaré passar e ficou extasiado ‘com sua beleza, incapaz de distinguir se era homem ou mu- Iher, e mandou raptar 0 mogo. Ele foi levado ao palacio de Xan- g6 € preso em uma cela. Nana, sabendo do sequestro, correu a oficina de Ogum e Ihe pediu uma espada para libertar o filho. ‘Com medo de que as mulheres recuperassem o poder de man- dar na sociedade, poder que um dia ele havia surrupiado de Jansa, Ogu negou-se a entregarthe a arma e ainda a destra- tou. Nani nao desistiu, consultou 0 babala6, fez os sacrificios recomendados e chamou Exu. — Olha eu af de novo — disse o mensageiro, fazendo cara de importante. — Exu transportou Nana invisivel para a cela do filho e * quando Xangé quis se aproveitar do rapaz, ela transformou Oxumaré em uma cobra, uma criatura da terra, seu elemento, ‘Assustado, Xang6 abandonou seu intento e correu para fora, gritando ordens aos soldados para impedirem a fuga de Oxu- ‘maré. Mas Oxumaré rastejou por entre as pernas dos soldados apavorados de Xang6 e escapou da prisdo. Desde entao provoca alegria e medo. Quando est no firmamento como 0 arco-iris, ‘enche de prazer os olhos de quem o vé; quando est no chao, rastejando como as serpentes, amedronta até 0 mais corajoso dos mortais. , — A mie salvou os dois filhos, historia comovente — suspi- rou Aimé, com olhos molhados. Quem nao ia querer ter Nand como mae? — Mas o feinho bem que ela mandou para a casa de Ieman- ja —criticou Exu. — Mas foi para o bem dele — contestou Aimé, que se virou para Ifi e disse: — Vocé nao falou nada sobre Eud nem sobre os amores de Nana. ‘ — De Eua voce sabe o suficiente. Para sabermos mais, te- iamos que nos apropriar daquela sacolinha de segredos que cla carrega, 0 que até hoje ninguém conseguiu. Dos amores de Nana em seu pais de origem nada sabemos, nem mesmo quem foi o pai ou os pais de Omulu e Oxumaré. No entanto, sabemos que, jé vivendo entre nés, ela teve um filho com Oxaluf’, como chamado Oxalé ja velhinho, depois da Criacao. ‘Talvez por ela ser estrangeira, muitos sentiam medo de Nand e poucos confiavam nela. Para pagar a divida assumida com Nana, ‘Oxala teve que inventar a morte. £ quem inventa a morte inventa os mortos. E 0s mortos, as novas criaturas ‘que surgiram dos atos da criagao praticados por Oxald, ficaram devedores de Nana. Sem ela, eles nao existiriam. 0s mortos, ou melhor, seus espiritos, ‘que o povo teme sob a nome de eguns, tornaram-se amigos e protetores de Nand. 125 ‘Muitos deles perman 0 povo considerava isso um ultraje. Por medo, ignoran acusavam Nana de induzir os eguns praticar o mal ea assombrar os viventes. Ogumn foi mandado ao pantano para expulsar os eguns. Em represélia ao ferreiro e guerreiro Ogum, ‘que ela julgava um rapaz desrespeitoso, ‘Nand proibira o uso de armas de ferro em seu territ6rio, ‘tudo porque um dia Ogum chamara Nand de velha ignorante ese recusara ase inclinar perante ela, ‘que era sua mais-velha e tinha essa prerrogat Ifa foi interrompido por Exu, que tomou partido de Nana: — Um general do porte de Ogum deveria ser o primeiro a respeitar a hierarquia, mas nesse episédio agiu como um mo- leque, E quem no fim acabou se danando foi a criadagem de Nani, proibida de usar tudo o que é feito de ferro, porque Nana nao quer nada que venha de Ogum em sua casa. Até as facas uusadas para matar os bichos de comer e para cozinhar sao feitas de bambu no ilé de Nana. E se tem festa entao, omobinrin, nada de agogé, s6 mesmo atabaque e xequeré. Mas toca 0 barco, meu velho, que eu no quis interromper. 1f continuou: Ogumn teve que deixar suas armas fora do pantano sem elas ele nao pode fazer nada. Acahou rapidamente escorracado pelos eguns. 0 proximo a ser enviado foi Oxalufa, 0 velho Oxala, Ele concebera os eguns quando criara a morte, entao ele que se livrasse deles, Nand se encantou com a presenca do velho Criador, ‘seu conhecido de tempos mais heroicos, € fez de tudo para conquistar seu amor. Mas Oxalufa se mantinha arredio, Nada deveria distrai-lo e afasté-lo » dos objetivos que o trouxeram aquele charco, 126 im de guarda nos pantanos habitados por: ‘ou preconceito, o que da tudo no mesmo, 0 povo confiava em sua integridade @ ele nfo 0 decencionaria por nada. Para se aproximar dos eguns e ganhar a confianga deles, Oxalufa se apraveitou que Nana dormia e vestiu as roupas dela. Assim se apresentou diante des eguns, disfargado de Nana. ‘Mas os eguns nao se deixaram enganar Ihe deram de beber um prenarado, fingindo que agradavam Nand com um refresco. Oxalufa bebeu, caiu no sono e foi deixado nu, deitado no leito de Nan, que dormia sem saber de nada. Ao acordar, Nana fez amor com Oxalufa ‘quando, muito tempo depois, ele despertou, Nand the disse que esperava um filho dele. Oxalufa entendeu que caira numa armadilha prenarada pelos eguns para humilhé-Io. Mais uma vez 0 fizeram dormir na hora mai Oxalufa ficou muito contrariado, abandonou Nana e foi viver com Iemanja. Depois de um tempo, nada de mal tendo acontecido, Nana foi deixada em paz, recebendo as honras de um orixa nato, ‘€ 05 eguns seguiram seu caminho, levadlos ao Orum sob os cuidados de Tans. — Nana gosta dos eguns e se sente protegida por eles. Ea primeira vez que nao me senti mal quando surgiram eguns ‘como eu nessas historias. xu, que chegava puxando uma cabra branca presa a uma cordinha amarrada no pescogo, fez um carinho na menina e disse: ‘ — Se vocé nao puder renascer no Aié, jé sabe onde se en- costar. No pantano de Nana vocé vai poder, pelo menos, colher lindas flores e ramos perfumados. E — Nana, Omulu, Oxumaré, Eua — refletiu Aimé. — Sa- bedoria, satide, beleza e magia sao atributos dessa familia. Eu ficaria muito feliz de fazer parte dela. ar —Acredito — disse Exu. — Exu, com tudo 0 que vocé faz — perguntou Aimé, mus dando completamente de assunto —, como pode estar em todos 8 lugares a0 mesmo tempo? — Inclusive em todos os leitos, redes e esteiras onde um ca: Sl faz amor, e atras das moitas e das portas onde um garoti. ho aprende sozinho as delicias do sexo — acrescentou Ext com orgulho. — Quantos vocé 6, afinal? — Sou um e sou milhdes, todos iguais e todos diferentes, Sou como vocé quer que eu seja, € os outros também. Esta bom ara vocé assim, omé mi? — Gosto de vocé assim como é comigo, sempre o mesmo — disse Aimé, — Eu sou como sou, e pronto — riu Exu. — Vamos embora — disse If. — A chuva se foi ‘Ao caminhar para fora do ilé axé, Aim6 notou ao longe 0 colorido arco-ris se exibindo no céu azul. A lama que cercava o femplo secara, o chao agora era de terra dura. Nand também jd havia se retirado, 128 12. NINGUEM E IGUAL 0 TEMPO TODO Depois de deixar a regio pantanosa, partiram na direcao do Poente. Aimé queria rever e saudar 0 ocum, 0 mar. Quem sabe no encontraria lemanjé. Era grata pelo conserto de sua cabeca, que fez dela uma menina mais segura e corajosa. Sentia sauda. de daquela mae, Do alto de um promontério, Aimé ficou deslumbrada com a vista da grande agua, que se estendia até onde os dois azuis, odo mar ¢ do céu, se encontravam, parecendo que o mundo terminava ali, Desceram a praia e foram recebidos com desconfianga pe- los aldeses de uma vilazinha de pescadores. Ifi se apresentou como um adivinho que caminhava para o norte com seus dois amigos e mostrou a eles seu opelé, seus bitzios sagrados e seu tabuleiro de marcar os odus que saiam no jogo. Nao s6 foram saudados com efusdo como logo se formou uma fila de consu- lentes interessados na leitura de seu destino, que somente If podia Ihes proporcionar. Os moradores ofereceram comida e bebida aos viajantes € contaram que os habitantes daquela regiao estavam em perma nente vigilia, o que explicava a ma recepcdo a eles. O motivo nao odia ser pior: cacadores de gente andavam por perto, assalta- vam aldeias, se emboscavam nos caminhos, e muitos dali a ha- viam perdido parentes e amigos para os traficantes de escravos, Naquela noite, dormiram na aldeia porque nao era seguro caminhar na escuridio, Na verdade, s6 Aimé dormiu a noite ‘oda. Exu mal esquentou sua esteira, num tal de ire vir que s6 130 podia demonstrar que o mundo estava andando depressa, mui- tas mudancas em curso. Ifa passou quase toda a noite atenden- do consulentes, em sua maioria preocupados em ter noticias de entes queridos roubados pelo trafico de escravos. Ao final de cada jogo de adivinhacao, Exu aparecia para ajudar If’ nos ebds recomendados pelo oréculo, propiciando os orixés para que eles atenuassem o padecimento dos que foram raptados ¢ levados embora e a dor dos que ficaram chorando sua perda. Partiram de manha para o norte seguindo a costa e chega- ram a uma enseada estreita onde um navio ancorado ao largo da praia esperava sua carga, levada até ele em botes carregados de homens, mulheres e criancas acorrentados. Na praia, homens armados controlavam outros grupos de humanos capturados & espera do transporte. Do alto da colina em que se encontravam, a visdo do navio ra espléndida, bela e inocente. Quem olhasse de longe no po- dia imaginar o fedor pestilento de excrementos, suot e sangue escorrido dos grilhées, empestando o ar impregnado de dor, morte ¢ desespero, que corrompia os pordes imundos onde os escravos eram dispostos lado a lado, deitados nus no chao, acor- rentados uns aos outros, para a longa travessia de trinta, qua- renta dias, que nem todos conseguiriam completar. Aimé apontou para o navio de velas abertas e disse: — Parece um passaro multialado, pronto para voar. — £ um navio negreiro, como eles 0 chamam — disse Ifi. — Leva gente daqui para servir de escravo no outro lado do mar. Muitos dos parentes dos nossos novos amigos fazem parte des- sa carga desventurada, destinada ao trabalho nao recompensa- do em terra estranha e a uma vida no cativeiro marcada pela dor, magoa e saudade de casa. Entre os que nao completam a travessia, a maioria morre de banzo, a doenca da tristeza. 1f abracou a menina. — Vocé foi levada em um desses, omobinrin — disse ele. — Fique feliz por nao poder se lembrar. Mas vamos nos desviar da costa, ha muitos perigos por aqui. ‘Tomaram uma trilha dentro do mato e seguiram pot um tempo. ‘Nao demorou e ouviram gritos, choros, barulho de chicote e, as2 quando estavam mais perto, o tilintar de correntes. Sairam da trilha e se esconderam atras dos arbustos. ‘Um bando de cagadores de escravos passou por eles condu- zindo suas presas, provavelmente para o embarque na ensea- da, Os cacados, homens, mulheres e criangas, seguiam com 0 pescogo atado por corrente a um pau comprido que eles mes- ‘mos levavam nos ombros, enfileirados um atras do outro. To- dos tinham que andar no mesmo ritmo para nao atrapalhar 0 deslocamento do grupo, € os chicotes e gritos dos condutores mantinham ordenado o passo dos prisioneitos desse libambo. Quando o grupo passava por eles, uma joven mulher gravida caiu e nao péde se reerguer, mesmo sob a insisténcia do asoi te. O cadeado da corrente que a prendia ao libambo foi aberto, cla foi jogada a beira do caminho e varada muitas vezes pelas lancas dos cagadores até deixar de respirar. Com os homens la- mentando a perda de uma pega valiosa, ainda mais prenha, 0 cortejo desgracado prosseguiu e desapareceu na trilha adiante. ff e seus acompanhantes safram do esconderijo tomaram um caminho em sentido oposto. i — Nunca imaginei nada tio monstruoso — disse Aimé, chorando. — Vocé passou por isso — lamentou If’. — Nao consigo me lembrar. — Ainda bem; se lembrasse ndo ia querer voltar para este jundo — disse Exu, rv dor de Aimé g6 comegou a amainar quando ela se pds af lar falar falar, provando as palavras como um balsamo, ainda mai see eas me lembro de nada ruim que vvi nesta nasdo ou na outra que fica além do ocum. $6 me lembro, vagamente, das coisas boas: as festas bonitas e alegres na praca do mercado la na minha aldeia, as mulheres dangando com suas roupas ma- ravilhosas, os homens tocando seus tambores, 0s corpos per- feitos, suados, os risos brancos e escancarados, que eu pensava que durariam para sempre. Eu sentada no chao, pequenina, aplaudindo, desejando crescer depressa para dancar também. Lembro do colo de minha mie, que me fazia nao sentir medo de nada. Lembro-me também, as vezes no sonho, de historias 133 que minha av6 contava, talvez me preparando para o que estou experimentando agora. — Edo tempo que viveu do outro lado? — perguntou If. — Lembro de muito pouco, s6 lembrancas boas também. Nao me esqueco de como era bom raspar o fundo dos tachos, saborear a raspa bem devagar para durar mais, lamber na co. Iher de pau os restos dos doces que safam dos tachos fume- gantes: marmelada, doce de coco, pé de moleque com rapadura. Ainda sinto gosto dos roletes de cana-de-acticar que escondia ¢ levava & noite para minha esteira para adogar o sono. Sao des- sas coisas que minhas lembrancas da vida sio feitas, — Vocé foi escrava lé, na casa onde raspava os tachos de doce, ‘Antes foi amarrada no libambo e embarcada em um tumbeiro, esse navio que para o escravo é 0 mesmo que uma tumba, uma sepultura em vida. Foi vendida no mercado feito uma cabra, foi ‘marcada a ferro quente, trabalhou sob a chibata sem nenhum ganho, apanhou demais. Tiraram de vocé sua familia, sua re- ligido e até seu nome. Vocé sofreu muito, omobinrin mi, e era apenas uma menina — disse Ifa. — Na casa de Olorum vocé disse que eu era escrava, mas 0 que eu lembrava da escravidio? Nada, 6 aqui fui aprendendo, pouco a pouco. — Aimé abragou Ifi pela cintura e perguntou, en. tristecida: — Baba mi, por que s6 guardei as doces lembrangas? —No Orum os eguns s6 se lembram das coisas boas da vida que tiveram no Aié — disse Exu. — A vida é odara, eles pen- sam, vocés pensam. As coisas ruins sto apagadas, Existe melhor maneira de motivar um egum a desejar nascer de novo? Uma vida feita unicamente de felicidade? Quem desejaria nascer para ‘uma vida de sofrimento? — Vocé viu coisas ruins nessas nossas andangas, omé mi. Quer mudar de ideia, ficar para sempre no Orum? — pergun. tou Ifa. — Nao. Quero provar de novo as delicias de viver, quem nao quer? Mesmo que tenha que enfrentar 0 que é ruim. Tudo 0 que eu desejo é ter minha mae adotiva e nascer de novo. Quero nascer uma menina boa, s6 fazer o bem, amar e ser amada, — Isso nao existe, omobinrin! — falaram juntos Ifé e Exu, E foi If quem explicou: 34 — Voce quer renascer e ser boa, ser somente boa. Mas nins guém é inteiramente bom ou inteiramente mau. O bem eo mal andam juntos, um ajuda o outro a existir. A mesma pessoa agora é uma coisa e depois € outra. Quando nio é as duas coisas juntas, a tempo! pes pared tem dois lados, cada lado de uma cor — disse Exu. — Alguém me olha e jura que meu chapéu € preto, outro me vé do outro lado e jura que é vermelho. A cor depende de quem vé, do lado que vé. E basta eu me virar para tudo se con- fundir J houve dsputa sobre a corde meu chapéu que termina em morte. O meu chapéu é uma representaczo simples do 41 mano é; uma coisa e outra coisa. ( ae ‘ha quem seja inteiramente preto e quem seja bei i. ramente branco, e assim continuam sendo ee insistiu 6, que ja no raciocinava mais como uma crianga. ‘im Jas tno pura uso, menina —afirmou Ex, catego 4 ‘uma mediagao: eae possamos eee melhor © mundo baa atengdo em certas historias acontecidas mil vezes € mil vezes ata tem outra coisa que essa menina devia saber ¢ nao sabe — acrescentou Exu. — Se vocé nascer de novo, omé mi, nao pode escolher se vai nascer negra, branca, amarela, se vai nascer em uma cidade ou na outra Voce vai nascerno Brasil porque nosso pai quis que fosse assim, porque ele est entusiasma com essa nova nage, que ele fingenio saber que exist, Por um moment, Exu pensou que seria repreendido por If por dizer essa iiltima frase sobre o supasto fingimento de Olo- rum, mas, como If nao reagiu, ele retomou suas consideragbes. — Nao fosse nosso pai Olorum se intrometer, vocé nem nas- ceria, mas ele quer voce vivendo de novo no Aié. 14, a pias Tugar desse mundo novo, océ pode renascer rica ou pobre, fia ou bonita, inteligente ou burra. E agora vem a melhor parte: pode renascer nio como a omobinirin, a menina, que voce sem- pre diz que sera de novo no Aié. Vocé pode nascer um omocun- rin, um menino, pode nascer homem, com um pénis enorme, deste tamanho! — disse, indicando um tamanho com as maos € se contorcendo em gargalhadas. 135 — Renascer no corpo de um menino? Vocé sé pode estar brincando — disse Aimé, totalmente incrédula. — E o que é a vida senao uma brincadeira? — completou Exu. — Quem garante que em vidas passadas vocé ja nao foi um belo rapaz, hein, um omocunrin odara? Aimé nao disse mais nada, se trancou em si, Pensativa, as vezes olhando de soslaio para Exu, sentindo que da vida, real- mente, ela nao sabia coisa alguma. If notou o desapontamento da menina e tentou animé-a. — Vocé j sabe que em uma nova vida nao vai se lembrar de nada que aconteceu antes do novo nascimento, omé mi. Vai nnascer com uma nova cabeca, com um ori novinho em folha. Para vocé tudo sera novo. Uma vida nova para ser vivida é um tesouro, um novo desafio, Ela sorriu para ele, ensimesmada. Depois de uma boa caminhada, chegaram a uma clareira onde resolveram acampar. O saco de oferendas estava bem pro- vido, eles limparam o chao para estender suas esteiras e fizeram uma fogueira para espantar os mosquitos e as feras e se aquece- rem do ar frio que a aproximagao da noite vinha trazendo. Mais tarde, depois do descanso e da comida, Ifa contou his- torias antigas — Duas histérias diferentes, vividas em tempos diferentes, por duas mulheres diferentes, que talvez sejam uma e tinica mulher, a mesma Oxum com quem cruzamos muitas vezes neste caminho em busca de uma vida para a menina que diz se chamar Aimé — anunciou Ifa. Havia uma moca que gostava de se gabar dle ser humilde e modesta, ‘mas que de tudo era capaz para subir na vida. sucesso estava em seus sonhos, ‘em seu horizonte e na mira de suas agoes. O que essa moca chamada Oxum mais queria era ficar rica e poderosa, ou pelo menos rica, aso 0 poder nunca batesse a sua porta. Ela sempre consultava um adivinho, ‘mas seus sonhos eram de tal amplitude 4» fe ela nunca dispunha de recursos suficientes 136 para fazer os caros ehés pro} assim aleangar seus objetivos. Elase ofereceu a Exu para ajuclé-lo nas entregas, pois assim, quem sahe, poderia aprender com ele ‘algo dos mecanismos da oferencda, das artes dle agradar outrem, conseguir enfim realizar seus sonhos. Foi encarregada de levar um ebé a casa de Oxala, ‘que significava que poderia se encontrar pessoalmente com 0 Grande Orixa, 1 mais venerado dos deuses, que vivia recluso e afastado depois da Criagao. Na casa dele, poderia pedir-Ihe o que quisesse ele certamente nada negaria a uma moga hu ‘que s6 queria desfrutar um pouquinho de uma vida melhor. ‘Quem nao podia alimentar essa ilusdo? Oxala vivia recothido, no recebia visitas, no saia a rua, nao gostava de se mostrar. Oxum entregou a oferenda destinada a Oxala, ‘mas, por mais que ela insistisse rogasse, nao Ihe foi permitido falar com ele ‘e muito menos entrar em sua casa. ‘Adecepcao de Oxum somente nao foi maior que sua incontida indignacao. Em ver de valtar para casa e se conformar, cela se pés no portao da casa de Oxalé e, em altos brados, ‘comecou a falar mal do orixa. ‘Que Oxalé era um velho arrogante e pretensioso que nao ajudava ninguém. ‘Que era s6 ouvir o que o povo dizia a boca pequena para saber que ele era vaidoso e mesquinho, insensivel, egoista e egocéntrico, ‘e que achava que a dnica coisa que cada um devia fazer era prosternar-se a seus pés e beijar suas maos. E para ter o que em troca? Béncao, afeicao, carinho? Nada! Ninguém recebia nada de Oxalé. Alguém ali na rua tinha prova contraria? a 138 Ela, sim, podia provar tudo que dizia. Foi Id levar uma encomenda para Oxala endo tivera um mojub, uma saudagao. Nao recebera o minimo oud, um dinheirinho, nem uma palavra de agradecimento, um modupué, um obrigado, Nata dennada. A cidade inteira ouviu falar do que acontecia ea cidade inteira foi para a frente da casa de Oxala 6 para ouvir o que dizia a moca destemperada. As palavras de Oxum abalaram a cidade. ‘Ninguém escondia uma sabita desconfianca de Oxala eum definitivo desprezo por Oxum, Por sua vez, Oxala estava pasmo, imobilizado, sem saber sequer o que pensar acerca de si mesmi Era a maior vergonha por que passava em sua vida. ‘Nem os castigos e tabus que o pai Ihe impusera ‘quando ele cometeu erros na Cria¢o do mundo ‘odeixaram to mal, com a autoestima aniquilada. Nem fugir podia, com Oxum ali plantada no portao a dizer impropérios. Seu irmao babalaé veio em seu socorro e aconselhou Oxala a dar a Oxum tudo o que ela quisesse e mais ainda, antes que ela o desmoralizasse por completo. Oxald abriu as portas da casa para Oxum e the concedeu a riqueza que ela reivindicava. Oxala acumutava tesouros recebidos em oferenda desde os tempos da Criaga Dizendo que nao gostava de metais coloridos, Oxalé guardou para st as pecas de prati estanho e chumbo, e deu para Oxum tudo que era de ouro, uma fortuna incalculdvel em barras, moedas, joias e coroas. Muito ouro emuitas pedras preciosas que se engastavam nas pecas douradas. ‘Oxum mandou que viessem os carregadores para levar tudo para sua casa no rio. Salud rua dizendo que viera ajudar Oxala se livrar dos metais de que ele nao gostava ’ ¢ que nao tinha onde guardar e esconder de suaprépri Como era do conhecimento de todos, ‘le sé se comprazia, por modéstia, com as oferendas sem sabor, maroma e sem cor. 0 que também se aplicava aos metais. ‘Alguém ja viu Oxala caminhar apoiado em wm opaxoré de ouro, num cajado dourado? Nunca. vista. ‘Aim6, Exu e If conseguiram Chegarao local onde a historia acontecia a tempo de assistir a seu desfecho, misturando-se a0 povo que lotava a rua. Aim6 quis ver bem de perto ¢ arrastou 0s dois até conseguirem um lugar préximo do portao, de onde viram Oxalé sair de casa. Oxald foi até o porto, apoiado em seu opaxord de prata, para despedir-se da moca que o livrava daquela tralha toda. Decerto fora aconselhiado pelo babalad ase mostrar A multido quese juntava narua, ‘acenando com béncos e votos de axé. ‘Oxum nao perdeu a oportunidade de se deitar aos és do velho pedir sua béngao com humildade. ““Nojuba, habxd mi’, ela disse. ‘“Ecabé, om6 mi odara”, respondeu Oxala, “em-vinda, minha boa fi Emocionada com a rara presenga de Oxald, ‘a multidao que se juntara na rua gritava: “Epa Baha! Epa, epa! Viva Oxala! Viva, viv Oxalé retribuia com gestos de axe. Depois que Oxala se recolheu sob aplausos, (Oxum gastou horas para abencoar a todos os presentes que no portao de Oxald se deitavam a seus pés para beijar suas mos e pedir a béngao a mae do ouro, iqueza, a Aimé entrou na fila dos cumprimentos, de onde foi arrastada Por Exu, — S6 vou saudar minha mae! — ela insistiu, tentando se des- vencilhar. — Que mie que nada! Vocé ainda nao tem mae, que saco! — disse Exu, bravo, Foi mantida longe, apenas observando em siléncio, até a mul- tidao se dispersar e Oxum partir, seguida por seus carregadores, curvados sob 0 peso dos tesouros conquistados, Aimé, que recu- erara a calma, perguntow a Iff: — Foi uma reviravolta incidental ou tudo nao passou de um. plano de Oxum para ficar rica e 20 mesmo tempo prestigiada u, ainda, um plano de Oxalé para reacender a devogao do povo? — La vem ela com suas questdes irrespondiveis — disse Exu, guardando no bolso uma grossa pulseira de ouro com o formato de um camaleio com olhos de rubi, que os carregadores de Oxum haviam deixado cair sem se dar conta. — Aquela menininha ino- ccente que saiu conosco da casa de Olorum esté muito cheia das ideias para o meu gosto. O que a convenceu mais, 0 comego ou 0 fim da historia? Aimé deu de ombros e guardou no saco de oferendas um anel de prata enfeitado com um caracol também de prata, que ela viu cair de um dedo de Oxalé quando ele se retirava. Seu primeiro im- ulso foi pegar o anel e o devolver ao Grande Orix4, que nao perce- beu a perda, mas como vivia sendo alertada para nao se meter nas historias, recolheu a joia do chao e a guardou no saco de oferen- das. Depois Exu daria um jeito, imaginou. Ao mexer na matalota- gem, tirou um acaga para cada um de seus dois acompanhantes, — Modupué, omé mi — Exu agradeceu e disse: — Ponha dois obis no porto, um para Oxalé e um para Oxum. Pagamento Por nos deixarem ouvir e ver sua histéria. If disse & menina: — Impressdes que se tém sobre um comportamento podem mudar de um momento para o outro, dependendo do que acon- tece pelo meio. Vamos esperar Exu debaixo daquele iroco. En- comendei a ele outra historia que quero Ihe contar. Acho que a esqueci em algum jogo que andei fazendo, ou guardei no odu wetrado, mas Exu vai encontré-la. 140 Sob a drvore, If pediu & menina que ffizesse um bom des- pacho, uma boa oferenda para Iroco, 0 or~ixa da drvore, ¢ ela a depositou entre as grandes raizes aéreas Gla planta. — Enquanto Exu nio chega... — If commegoua eae : — Jé cheguei, chefia. Pode contar suay hist6ria. E cadé mi- nha parte da comida de Iroco? — foi per-guntando & menina, que Ihe estendeu acarajés, ecurus e aguar~dente. ; Pediram ag6 a Iroco e se sentaram em : suas raizes para mais uma historia. Nos primetras tempos da existéncia, ‘0s orixas se rebelaram contra Olorum. Olorum vivia distante de tudo, praticamente inalcamcavel, surdo aos clamores dos filhos, ‘que tinham de solucionar problemas da natureza ‘¢ dos humanos e precisavam de orientagao e axé do wrai. ‘Nem Exu conseguia obter respostas de Olorum, ‘que sempre mandava dizer que estava dormindo ‘endo queria ser perturbado. 0s orixas decidiram nao obedecer mais ao p usar todos os poderes dele ce dividir entre si todo 0 axé que movia o mundo. ‘Quando a noticia da rebeliao chegou aos ouvidos de Olorurm, ‘sua reagdo foi imediata e simples: retirow a chuva da Terra ea prendeu no Orum. ‘Aseca nao tardou, os rios evaporaram, ‘avegetagao raleou e os animais comegaram amor er, Veio a sede e, em sua companhia, a fome. ‘tras da fome chegouw a morte. ‘Sem Agua, o mundo definhava, a humanidade ja nem enterrava seus mortos, sem forgas sequer para cavar suas covas. As preces dirigidas aos orixas ficaram presas nas gargantas ressequidas eos altares foram abandonados por absoluta falta do que oferecer a ‘Sem Agua, sem folhas, sem sacrificios, o padecimento da humanidade se transformou em padecimento dos deuses Ossaim gritava em desespes: “Cossi eué cOssi orixa”, “Sem folhas, sem orixas”, ‘mas suas palavras foram sinciadas or falta de forca para prowncis-tas. — Até me deu sede — disse Ain’. — Em mim deu sede e fome —iisse Exu. irvam-se e se calem, por fawi— repreendeu If Os orixas se arrependeram, etrataram de pedirdesculps a Qlorum ara que tudo voltasse ao qe era antes. ‘Mas como mantdar sua mengerm de rendi¢g&o? Olorum estava muito longe #les, impossivel chegar Ia. Tentaram, mesmo assim. As raras aves que sobreviviant foram uma a uma enviadasicasa de Olorum. Cada uma voou até o total egotamento sem nunca ter chegado sequs perto do de: As iltimas esperancas merrim agora, ‘0 fim do mundo era inevitawl. Era hora de morrer, hora de encontrar um modoionraso de morrer. Entdo Oxum se ofereceu parsit falar com o pai. E ao dizer isso transformou- em um pavao, a mais bela mulher no corpoda mais bela ave. Fazia sentido, uma bela transformagao. Mas nao era hora de se compazer com a beleza. Uma gargalhada de desespe chacoalhou o mundo. Como aquela fragil criaturase dispunha ‘@.uma missdo impossivel de levar a termo? Era essa a maneira honrosa de morrer pretendida por Oxum? Oxum nao se intimidou e ganiou os céus. Voou cada vez mais alto, mais alto, até seus irmaos a perderem de vista ¢ voltarem a planejar a morte honrosa. yanto mais voava, mais fraco se sentia 0 pavao, mas em nenhum momento desistiu. ‘No vo, suas penas coloridas enegreceram pelo contato com a luz intensa, 0 bico foi entortado pela fric¢ao com o ar, ‘a cabeca perdeu as penugens, o corpo foi deformado. E Oxum continuava a voar, a voar, as juntas entrevadas, 0s movimentos fraquejando. Havia ultrapassado o frio da Lua, que endurecera suas asas, eultrapassado o calor do Sol, que queimara sua plumagem, ¢ foi morrer nas maos de Olorum, ‘que a recotheu na queda de seu voo interrompido. Olorum teve pena do passaro arruinado ¢ soprou vida naquele corpo inerte. ‘Oxum estava viva, o pavdo vencera a morte, o que restara dele. — Pare de chorar, omobinrin, se nao Olorum no vai querer continuar na histéria — gozou Exu, — Ags, Exu, mojuba — se desculpou Aimé. Olorum nao podia imaginar que aquela ave feia, careca, de penas queimadas e bico deformado, fosse 0 pavao que a mensagem de Exu havia anunciado. ‘Mas tratou dela com carinho, deu-Ihe agua e comida. Olorum quis saber a razao daquela jornada sui Oxum entao contou ao pai o que aconteciano Aié. Por que ela, sua filha mais bonita, tao fragil, tao sensivel, se arriscara em tao perigosa empreitada? ‘Oxum respondeu que o fizera pelos orixas, seus Irmaos, e pelos filhos humanos de todas os orixas, ‘que eram todos eles, orixas e humanos, filhos de Olorum. Ela vinha buscar para todos 0 perdao do pai. Olorum, comovido, entregou a chuva a Oxum para que ela a devolvesse a Terra. Na longa jornada de volta, ave teve que se alimentar de carnes mortas ‘que encontrava largadas no trajeto. Quando chegou, ninguém soube dizer 0 que era aqui era outro passaro, até entao desconhecido, e nao o pavao que pal sua diltima esperanca, Quando o novo e feio passaro, ‘que 0 povo quase morto chamou de urubu, devolveu a chuva a Terra, tots entenderam que a feia ave era Oxum, O passaro que se alimenta da morte trouxe de volta ao Aié a Agua, a comida e a vontade de viver, rou a humanidade de morrer, Promoveu a reconciliagao do pai com seus filhos rebeldes. 0s orixas e seus filhos humanos, desde ento, sabem que Oxum sempre bela, indenendentemente do que os olhos possam ver. — Vamos fazer uma homenagem a minha mae Oxum? — sugeriu a menina. — Vamos deixar essa hist6ria sem comenté- rios e apenas nos alegrar com ela. Exu apontou para um urubu que voava ao largo, abriu a ma- talotagem, tirou uma cabaca de mel e ofereceu seu contetido ao passaro. Nao reservou para si nem um pingo do doce alimento. — Para a ave, nossa irmazinha — ele disse. — Mojuba, baba mi — disse Aimé a Exu, beijando sua mao. asa 13. UMA FUGA PARA UM GRANDE RIO Estavam em Abeocuté, cidade de Iemanja, onde Ifa tinha resolver por meio do craculo alguns problemas de suces,tap na chefia do templo local. Aimé 0 acompanhara alegre op Conhecer a cidade de lemanj, que a tinha curado de um nye sonho. Em sua casa, lemanjé contou que andara com maus P o5 sentimentos, consultara o babalaé e esse dissera que seu fy Oxéssi, que um dia teria de partir para assumiy 0 trono de, Gj, dade de Queto, corria o risco de ser sequestrado. Ele deve in permanecer em casa até que a ameaca desaparecesse de = E Pid, dissera o adivinho, Mas Oxéssi saiu para cacar assim nye. ‘mo e foi aprisionado por Ossaim, incomodado com o fato de, je feiteradamente invadir seus territorios sem Ihe pedir licen, « ¢ sem fazer as oferendas de praxe. ‘Aproveitando a estada de Ifa na cidade, lemanjé the Pygia que fizesse o jogo para saber se Oxéssi jé podia voltar para S Ele jogou e pronunciou a palavra Alafid, indicando que o re, tado era favoravel, bons pressigios. Ogum, irmao mais velh ge Oxdssi, armou-se e foi para a floresta, que ele conhecia m9 bem, Antes de ser ferreiro, fora agricultor e, antes, cagadon ‘Oxéssi foi libertado por Ogum, mas Iemanjé nao peryggu a desobediéncia do filho cacador e nao quis recebé-lo em 1,3 casa. Ox6ssi, que preferia viver no mato, voltou a morar coin ‘Ossaim. Ogum brigou com a mae por ela no ter recebigy, o irmao dele e foi morar na estrada. Temanja consultou de novo Ifi ¢ ele Ihe disse que 0 fi, ge wr toda mae é este mesmo: ser abandonada pelos filhos. Nenhum eb6 traria seus dois filhos de volta. Partiram, deixando lemanjé chorando. — Aqui perto h4 um pequeno rio que desemboca no grande rio Ogum, cujo nome nao deve ser confundido com o nome do ferreiro — disse If a Aimé. — O rio menor, que se chama Temanjé, esta sendo formado neste momento, com as lagrimas derramadas por ela pelo abandono de Oxéssi e Ogum. — Pensei que ela fosse do mar ou de um rio muito grande, e nao de um rio pequenininho — disse a menina, decepcionada. —E & 0 rio lemanja forma o rio Ogum, que forma o mar. Todos sdo de lemanjé, sdo seu corpo no Aié, mas essa é uma outra hist6ria, que ainda est4 para acontecer, nao sei quando. Quer ouvir? — Quero ouvir tudo que fale de minha mie, de ia mi odara, que também é a mae dos peixes, nao ¢ isso que diz o nome de- la? Mae dos filhos peixes? If assentiu, sentou-se com a menina a beira do rio, os pés dos dois chapinhando a gua refrescante, ¢ falou da origem do rio Ogum e de como Iemanjé ganhou o mar. Temanja ja era mae de dezfilhos ‘quando se muddou de Ile-Ifé para Abeocut. Em Abeocuta conheceu Oqueré, rei de Xassi, chamado de Oqué pelos mais intimos. O rei se encantou com Temanjé e a quis para esposa. Ela tivera dezfilhos aos quais amamentara e muitos outros adotivos, ‘que também alimentara com seu leite. Por isso tinha selos demasiacamente volumosos. Ela casaria com Oqué com uma condi jamais ele poderia fazer qualquer referéncia aos seus seios enormes, nem por brincadeira, Ele concordou, desde que ela nao falasse dos testiculos de tamanho exagerado te ele escondia sob os panos de sua roupa. 4 Concordaram com a casamento sob essas condigbes. ‘Além disso, dormiriam em quartos separados, ¢ Iemanja nunca entraria nos aposentos dele, mantidos sempre fechados e inacessiveis. Jemanja nao podia entrar 1a nem para Antes do casamento, Temanja foi ao mar, ‘que era a casa de sua mae Olocum, Foi a casa de Olocum e pediu sua béncao. Asenhora do ocum, 0 oceano, a abengoou the deu de presente uma cabaca que continha um preparado magico. ‘Se o casamento desandasse, que ela usasse ‘ conteddo da cabaca e tudo terminaria bem. Enfim, casaram-se Oqué e Iemanj foram viver no reino dele. Foram felizes por certo tempo, 0s tabus devidamente respeitados. ‘Um dia, Oqué vottou para casa bébado, vomitou no chao, gritou com Temanja ‘e chutou os gatos e cachorros que ela amava. Iemanja nao gostou nada eo repreendeu. Ele disse que era o rel e que o rei faziao que queria. Temanja o chamou de rei bébado, ‘um rei que se embriagava, era isso que ele era. Oqué se enfureceu e bateu nela. Iemanja foi tomada de revolta, jamais um homem se atrevera a tanto. Correu ao quarto de Oqué, abriu a port: ‘escancarou a janela e revirou todas as tralhas ‘que encontrou nos aposentos do marida. Furioso, Oqué xingou a esposa de todos os nomes, gritou que ela nao era responsavel, nao tinha compostura para ser rainha e que quando safa a rua todos riam dos seus seios de tamanho degradante. “Meus seios s4o minha honra e minha alegria, fontes de vid rnutridores de meus filhos”, ela disse. Ele deu risada: “Mas sao iniensos, sao horriveis”. “Horriveis, meu caro esposo", ela retrucou, “sao as partesque vocé carrega entre as pernas. ‘Tao descomumais que paraasesconder nem banho de tio nu com os companheiros ‘meu rei tem Coragem de tomar.” Pronto, todos ¢s euds estavam quebrados, nao havia reconciliagao possivel. — Sempre tem tabus nessas historias — comentou Aimé, — Que server para ser desrespeitados e mudar o rumo das coisas — completot Exu, mordendo um naco de rapadura. Ifa fez que nao owiu. Temanja arrvmou sua trouxa, amarrou na cintura a cabaca que a mae Ihe dera e saiu de casa, torrendo, alucinada, para nunca mais voltar. Fugia para atasa de sua mie, Oqué ainda st sentia muito ofendido e queria castigar a mulher como achavs due ela merecia. Pegou seu chicete e saiu em sua perseguicao. Na fuga, Ieanja tropecou e caiu, ena queda a cabaca se partis Da cabaca q/ebrada saiu um fio de agua que se avolumou até virar um grande rio, que foi levando Iemanja na dire¢ao do mar, para 0 ocum, Para a sua mae, para Olocum. Naquele temo a Terra era plana 0 rio corrialivremente pelos campos. Mas, no dese de impedir a fuga de lemanjé, Oqué transfemou-se em uma montanha, eamontanhi intercentou o rio, impedindo-odechegar até o mar. Temanja teve5ua passagem obstruida. ‘Sem se entresar, gritou nor seu filho Xango, Xangé acuéll mae com raios e trovées. Pelos raios, amontanha Foi partids aom Oqué, o monte, foi cortaclo em dois, abrindo-se entre as metaties um desiladeiro pelo qual passou Iemanj& numa correnteza. Logo adiante rio se acalmou, alcancou o mar ese entregou aos cuidados de Olocum. Xango, depois de ter salvado sua mie, ainda castigou a montanha muitas vezes, fazendo dela muitos petacos que se espatharam portodla a Terra, formando as serras, as cadeias e asCordilheiras. ‘Oqué perdeu a esposa, ‘mas ganhou o poder sobre todas aslevagdes da Terra, colinas, morros, serras, montes e montanhas. Nos desfiladeiros rochosos cortados pelos rios ainda 6 possivel enxergar, de Oqué, 0 rel, seus genitais, redondos e enormes. 0 casamento desfeito de Temanja e Oqué musou completamente a superficie do Aié. 0 rio desde entio corre para o mar, ‘tao caudaloso como os seins de Iemanja, que com 0 proprio mar se confundin, Olocum recebeu Iemanja com muita gosto e depois se refugiou nas profundezas do oceano, deixando por conta de Iemanja ‘cuidar dos mares que banham as tetras, onde os homens pescam, onde os rios se escondem. —Agora entendo melhor a relagao entre o rio 0 mar, a 4gua a mae, e sei que minha vida um dia pode, quem sabe, no meu renascer, correr entre as Montanhas — Aimé disse e em segui- da acrescentou: — Vocé falou muitas vezes sobre os filhos de Jemani, mas nunca contou nada sobre como eles nasceram. — Ha muitas historias — disse Ifa. — Conte a do incesto — sugeriu Exu, mastigando tranqui- lamente pimentas ardidas que o faziam derramar lagrimas de puro prazer. a5 — Incesto, o que seria? — perguntou a menina, curiosa, — Eo maior tabu da humanidade, vocé ja vai entender. — Ele também foi quebrado? — quis saber Aimé. — Ouga a histéria, Temanja vivia em uma pequena familia, 0s orixas ainda eram em nimero reduzido. Ela casou-se com Aganju, senhor dos vulebes, edeles nasceu Orunga, de quem pouco se fala, ‘a ponto de haver quem diga que nunca existiu e que esta historia ndo passa de invencao. Bem, um dia Aganju estava longe de casa, © que nao raro acontecia. E enquanto algum vulcdo vomitava fogo ‘na hoca da montanha, Orunga raptou e violou Iemanja, sua mae, em um ato de amor monstruoso e proibi Aconteceu o infame incesto esse acontecimento mudou o mundo, Exu deu as caras, piscou para a menina e lhe disse: —Entendeu? ‘Com medo de sofrer abuso novamente, Temanja partiu correndo em desespero.. Orunga, por amar a mae e nao querer perdeé-la, foi atras. Quando estava a ponto de aleang4-1a, Temanja caiu desfalecida. Seu corpo entao tomou outra forma, e cada parte dela deu origem a montes, montanhas, valese lagoas. 5 seios cresceram e deles brotaram dois rios, que adiante se encontraram e formaram 0 mar. A barriga de Iemanja se avolumou dia ap6s dia e em nove meses se rompeu. Da barriga de Temanjé nasceram os orixas, ‘que sao muitos, + dos quais falam as histérias que os ad hist6rias que se renetem a cada ‘na vida dos mortais que habitam o Aig. Historias que falam de Oxéssi e Ogum, de Tansa, Oba e Oxum, de Xango, O¢6, Oqué, Ossaim ede tantos outros orixas nascidos do ventre violado de Iemanja. Historias que falam do menino Exu, © filho que Temanja pariu por diltimo, e que por isso nasceu com 0 direito de ser sempre o primeiro a comer. — Eu como primeiro que os outros para ter forgas para fazer meu trabalho — contestou Exu. — Porque sem meu trabalho ninguém come, e nada vai para a frente. Nem para trds. O resto € conversa fiada. Ifa apenas riu, Ele to somente contava as historias que 0 proprio Exu era encarregado de colher em suas andancas pelo mundo dos homens, pelo mundo dos deuses ¢ entre um mundo € outro. Um contador de historias era s6 0 que ele era. —Nio existe mie mais mie que lemanj — constatou a me- nina —, qualquer que seja a historia que se conte ou aconteca. — Sobre isso nao posso dizer nada. O que nos interessa — disse Iff a Aimé —, é que vocé tem de escolher tuma s6 mae para vocé, aquela de quem mais gostou, com quem. vai se pare- ‘cer quando nascer de novo. A quem vai cultuar no Aié. — Posso perguntar uma coisa, babé mi? — disse Aimé, — ‘Sempre quero perguntar isso, mas tenho vergonha. Acho que € uma coisa que eu deveria saber e nao sei. — Isso 6 0 que mais tem no mundo, omobinrin — se meteu Exu. —O que se devia saber e nao se sabe. Chama-se ignorincial — Deixe a menina falar, Exu—irritou-se If. — Fale, om6 mi. ‘A menina perguntou: — Por que para nascer todo mundo precisa ter tum orixa? — Para ter com quem se parecer, omé mi. Se nao se parecer com um orixé, vai se parecer com 0 qué? Com um bicho? — ex- plicou If sem revelar inteiramente a verdade. Exu piscou para Ifi e perguntou para Aim6: — Que bicho vocé queria ser? Ia ficar bem bonitinha pulan- do no Aié feito uma pererecal Aimé ignorou a brincadeira e continuou a conversa sobre suas diividas. Disse a If: — Ainda nao entendo onde acontece o que vemos e onde aconteceut 0 que vocé conta para a gente. Seri no Aié, seré no Orum? Para dizer a verdade, nunca sei onde estou, nem onde estdo os orixas que vivern as historias que vocé conta. Jé cheguei 4 pensar que 0 Aié e 0 Orum nao passam da mesma coisa. — Era tudo junto mesmo, mas um dia Oxalé pediu para separar 0 Orum do Aié — contou Exu. — Mas eu nao tive nada a ver com isso, nao foi culpa minha. 14. OS DEUSES QUEREM E DANCAR Os trés estavam na cidade de Mé-If6, que os iorubés conside- ram 0 umbigo do mundo, a mais sagrada cidade desses povos, também chamados nagés e lucumis. Cidade considerada santa também pelos humanos que se consideram descendentes dos antigos iorubis, consanguineos ou por livre escolha, espalhados pelos quatro cantos do Aié. Independentemente de origem, raca, etnia, cor ou 0 que mais se usar na tentativa de classificar os homens e as mulheres em busca de semelhangas e diferengas. fa conduziu Aimé pelas ruas da cidade, mostrando lugares onde velhas histérias haviam acontecido. Estavam se preparan- do para a iltima viagem juntos. Ifi tomou a palavra — Esta chegando a hora de tomar sua decistio, omé mi. Vo- é jf sabe tudo o que precisava saber sobre as aiabés: Oxum, Nana, Eud, Iansa, Ob4 e lemanja. Vai escolher uma para ser sua mae no Orum e ter o direito concedido por Olorum de renascer no Aié. A missio atribuida a Exu e a mim chegou ao fim, agora com vocé. O mundo estava acinzentado, silencioso opaco. E Aimé percebeu que estavam no Orum, sentados & porta do palacio de Olorum. — Enquanto os demais orix4s nao chegam para ouvir sua decisa0, omobinrin mi — disse If —, vou contar 0 que acon teceu quando 0 Aié e o Orum foram separados um do outro. Talvez ajude vocé a se decidir definitivamente sobre 0 melhor lugar para se viver. 156 150 No comego, o Orum e o Aié ficavam juntos. ‘No Orum moravam os orixas, ‘no Aié, os humanos viventes. Homens e orixas estavam sempre em contato, compartithando vidas e aventuras. Nao havia uma fronteira entre os dois mundos. Os orixas ajuclavam seus filhos humanos a resolverem dificuldades © 0s humanos alimentavam e divertiam seus pais e mées orixas. Mas os seres humanos nao souberam preservar ‘© mundo comum, sem fronteiras. Por onde passavam deixavam lixe acumulado, borravam as paredes dos ilés, sujavam tudo. Contaminavam as aguas com venenos e esgotavam 0 solo por cobiga e ignorancia. Arrasavam as florestas e deixavam desertos em seu lugar. ‘Nem o ar que respiravam escapou da corrupgao e da suj Enfim, ambos os mundos se transformaram em uma imensa imundicie, um verdadeira lixao. Oxald, 0 orixa do pano branco, or isso também chamado Obatala, ‘que somente suporta viver em meio imaculado, nao tinha mais onde morar fe queixar a Olorum, Olorum entendeu as reclamacbes de Oxala e separou para sempre o Orum do Aié, Separou para sempre o Céu da Terra. Nenhum humano poderia mais frequentar 0 Orum, ano ser quando morresse, e por pouco tempo. E 0s orixas nao podiam vir a Terra € voltar como e quando quisessem. ‘Humanos e orixas viviam agora em mundos apartados. Porém, separados dos humanos e do Aié, 0s deuses perderam a alegria, ficaram macambizios, tristes, com saudades. Porque somente os humanos sat fazer miisica, fazer festas. E 0s orixas estavam privados disso tudo. Foram queixar-se a Olorum, queriam o Aié de volta. Olorum disse que o que estava feito estava feito. ‘Agora o Aié era um mundo material 0 Orum, um mundo espiritual. Dois munddos diferentes e separados. ’ ‘Mas, para atenuar a falta que os orixas sentiam do Aié, Olorum concordou que os orixds poderiam voltar a Terra de vez em quando, mas usando 0 corpo dos humanos. 0s orixés precisariam de um corpo material para comer, Essa era anova lei. ‘Oxum, que antes vinha a Terra brincar com as mulheres, dividindo com elas sua formosura e vaidade, ensinando-Ihes feitigos de seducao e conquista, foi encarregada por Olorum de preparar os mortais para que os orixas jpuclessem se manifestar em seus cornos nos dias em que o Orum vinha em visita ao Aié. Denois de fazer oferendas a Exu para que sua missao tivesse sucess ‘Oxum veio ao Aié e juntou as mulheres a sua volta. Banhou-as com ervas preciosas, ; rraspou suas cabecas, que enfeitou com pintinhas braneas, como as penas da galinha-d’angola, para que todos se lembrassem do branco de Oxala. Vestiu-as com belissimos ax6s e fartos lagos, enfeitou-as com joias e coroas. m Na testa delas, Oxum amarrou uma pena ecodide, pena rara e misteriosa do papagaio-da-costa, nico vermetho tolerado por Obatala. Nas maos as fez levar abehés, idas, cetros e ofas, enos pulsos, diizias de metalicos indés. ‘Oxum cobriu o colo das mulheres com muit de contas coloridas e fieiras de bai ‘com pecas de ceramica e coral ss voltas 159 ‘Sabendo a que orixé pertence cada ser humano, ‘Oxum pés no alto da cabeca das sacerdotisas um simbolo de sua pertene: ‘um pequeno cone feito de obi mascado, com ervas sagradas, manteiga vegetal 0s condimentos que sao do gosto de cada orixa. Cada orixa tinha agora sua matéria no Aié, um corpo limpo e bem tratado para se manifestar, uma cabega temperada em que se revelar, uma sacerdotisa para se deleitar na danca. Finalmente as mulheres estavam prontas, estavam feitas e estavam odaras. Foram chamadas de iads, ‘como igualmente sdo chamadas as esposas jovens. Eram as esposas mais bonitas que a vaidade de Oxum conseguia imaginar. Estavam prontas para os deuses. Desde entao, em dia de festa, ‘0s humanos fazem oferendas aos orixas, convidando-os 4 Terra, nos corpos das iaés. Entao, 0s homens tocam os atabaques, vibram os batas, agogds e xequeres, ‘As equedes soam os adjas, chamando os: Enquanto os humanos cantam e dao vivas, 0s orixas se apresentam no corpo das iads. ‘As equedes 0s vestem com seus axés, 0s adornam com suas coroas e insignias, e eles dangam e dancam e dancam. Os orixas podem de novo conviver com os mortais.. Os orixas e os humanos se congratulam felizes. Nesses momentos de alegria e veneracao, homens e mulheres e seus pais e maes orixas ‘comemoram a reuniao do Orum com o Aig. Enquanto dura o toque dos tambores, ‘© mundo dos orixas eo mundo dos humanos, oCéuea Terra, tornam-se de novo um mundo s6. ‘Ao final, nenhuma palavra foi dita, nenhuma reagio exte- rizada. - re O orixas estavam chegando para a ceriménia da escolha. Exu ¢ If conduziram Aime para dentro da casa de Olorum. A me nina devia ser preparada, banhada, vestida e adornada para 0 momento da revelacao. 1 15. A DIFICIL ESCOLHA A festa na casa de Olorum estava animada, com boa comida e boa misica trazidas do Brasil por Exu. Olorum preferira guardar seu gin ma votos de sucesso. Os orixds vestiam seus me- yres ax6s. Porque a festa era praticamente del: jabas na podiam estar mais odaras. qe Lidentro, Aimé fora . preparada para ser apresentada em gran- de ats: Neat cata ayaa vcd qua nese ea cabelo, ¢ estava enfeitada com pintas brancas. Usava aderecos fei- tos de biizios e metais preciosos costurados com palha da costa, presentes enviados pela abs, todas candidatas 20 posto de mie dele Ela tinhao corpo envato em um alissimo a, amarrado absito da cintura, com os pequenosseiosdespontando cobertos aie ge factiges de luge pas de cerkmica coal 01 no salo sob um pilio levado por Oxéssi, Ogum, Xango e Omulu, enquanto os atabaques tocavam e os demais ca ta. ‘yam uma cantiga que anunciava a que se destinava aquela reuni Ag6, agi Yond Omobinrin iogbé mi ibi Ag6, agi ond Soré awon orucé orizcd. Com licenca, deem passagem Eis que a menina vai chegar Com: licenca, abram caminho O nome do orixa ela vai revelar. No meio do salao, 0 palio foi recolhido, a menina foi manti- da de pé e todos os orixas se aproximaram em um circulo em torno dela. fa avangou alguns passos para se por bem junto de Aimé, dew a mao para a menina beijar e disse: — Vocé agora conhece bem nossas irmas aiabés. Vocé conhe- ce muito bem lemanjé, Ob4, Iansa, Oxum, Nand ¢ Eud. Voce “deve escolher uma delas para ser sua mae no Orum, e s6 assim poder’ ter uma nova vida no Aie, como é seu desejo ¢ como quer nosso pai Olorum. If girou para olhar de frente cada um de seus irmos, yoltou-se de novo para Aimé e perguntou: — Qual delas voces escolhe para ser suia mae? Diga nome de seu orix, orucé orixd ‘A menina continuava muda. fi ordenou outra vez que ela desse o nome do or —Orueé orixa! Depois de um breve momento de expectativa, as palavras de ‘Aimé sairam timidas de sua garganta: — Nao consigo, ndo consigo escolher somente uma entre elas. — Como nao? A escolha foi a razao de nossa longa viagemn! — repreendewa If. "— Sei disso, meu pai, mas eu no posso, simplesmente nao posso — ela insistiu, 0 rosto molhado de lagrimas. — Eu peso ago, me perdoem, mas eu nao consigo. 'Comé mi esta dizendo que Ifa e eu falhamos em nossa missdio? — questionou Exu sem esconder uma mistura de de- cepgio e raiva, ww Nao, nunca — disse Aim6. — Nossa viagem foi perfeita, mas aqui bem no fundo do meu peito sei que eu ndo sou nin- guém, e que nao tenho esse direito que voces tio carinhosa- mente me atribuiram, o de escolher a minha prépria mie —_ f uma justificativa razoavel para uma cabecinha oca— ponderou Xango. — Nao posso escolher somente uma para ser minha mie porque gostei de todas — disse Aim6. — ‘Cada uma tem algo {que eu queria ter. Gostei da coragem de Iansa, da sedugao amo- rosa de Oxum, do desprendimento de Obi, da sabedoria de 165 Nana, da discricao misteriosa de Bud, da dedicagao aconchegan- tede lemanja. Elas tém muito mais que isso, mas pelo menos € isso o que eu queria ter de cada uma. — Vocé esta descrevendo a mulher perfeita, omobinrin mi— disse Oxumaré. — Mas isso no Aié é coisa que no existe. — Vocé precisa fazer sua escolha, omé mi — insistiu If. — Me parece tio simples. Ou talvez vocé prefira ser escolhida? Mas nés jd tentamos isso 14 no comeco, ¢ nao deu certo. ‘A menina comegou a solucar, e houve quem temesse uma nova inundacdo no Orum. Um burburinho tomou conta do lugar. If conseguiu impor silencio e dis — Estamos diante de um impasse. Teremos que acordar Olorum para resolver a questio, — Deixe nosso pai dormir — disse Xang6 — e entreguemos © problema a Oxalé. Afinal, foi ele quem criou a humanidade, le que encontre uma saida. — Esté bem — disse Oxala, inteiramente de acordo com a proposta de Xangé. — Podem deixar que eu tenho a solugao. A partir de agora, esta menina é minha filha. Um rufdo de espanto generalizado soou no ambiente. Oxali continuou: — Ela deveria ser adotada por uma aiaba, mas nao conse- guiu fazer sua escolha. Como tenho minha porcao mulher, Porque eu ja existia antes de qualquer diferenga, posso perfeita- ‘mente dar conta do encargo. Oxalé percebeu um certo mal-estar na sala e o olhar de es- cénio trocado entre Logum Edé e Oxumaré, e tentou outros argumentos: — Bem, além do fato de o homem e a mulher serem cria- s6es minhas, eu sou oar, ¢ 0 ar pode preencher qualquer lacu- na. E tem mais: quando se trata dos humanos, o que € torto, 0 ‘que niio tem jeito e 0 que nao tem conserto sempre vem parar nas minhas mos. — Mas a cabeca dela eu consertei — disse lemanj — Sim, mas ela continuou sem familia e sem orixa —argu- mentou Oxala. — E verdade —foi o veredito de Xang6. — Oxalé esta certo. 166 — Coitadinha — lamentou Exu —, na condigio de filha de Oxalé, nao vai poder comer nada feito com azeite de dende: acarajé, vatapé, caruru, moqueca de peixe, bobé de camario. Hum, s6 de falar me deu fore. Oxali contrapés: — Tera esses tabus, sim, e muitos outros. Todos tém seus eués, suas interdigées. Mas em compensagao seré uma pessoa brilhante, criativa, engenhosa, idealista, imaginativa, respeitada... —...lenta, teimosa, enjoada, convencida que s6 — foi adi- cionando Exu a lista de caracteristicas dos filhos de Oxal. — Sem falar que um filho de Oxald nunca est contente. Se faz ca- Jor, reclama que esti calor; se faz frio, reclama que esté frio! ‘Oxéssi deu seu parecer: — F melhor mesmo que fique com voc’, Oxala, que € 0 res- ponsivel pela criacdo desses humanos complicados. Mas uma coisa ainda me intriga: por que nosso pai mandou a menina escolher uma mie, e no um pai? — Nosso pai coisa nenhuma, foi conluio de. Ifa. com Oxala — denunciou Exu, mastigando um punhado de pimenta deixado em oferenda junto & porta do salao. — Todo mundo aqui viu qual foi o resultado. — Cale-se, nao confunda as coisas — ordenou Oxal a Exu ¢ prosseguiu: — A resposta é simples. Olorum assim ordenou porque somente as aiabis disputaram a adogao da menina aqui nesta mesma sala onde esta historia comecou, nio foi? — Fu me apresentei como pai — discordou Exu. — E nao tem ninguém aqui mais macho do que eu. — Sua misao era outra — justificou Ifa. — Sempre acham um jeito de me excluir — choramingou Exu, — Mas quem faz tudo sou eu, sempre eu. ‘As aiabas, insatisfeitas com a solugao dada por Oxala, amea- aram deixar o recinto, mas foram demovidas por Ifé, que as Iembrou que aquela sesso 6 se realizava por vontade de Olo- rum. Se abandonassem a miso antes de ela ser completada, ele teria que acordar o pai e nao se responsabilizaria pelo que pudesse acontecer. Ifa se aproximou da menina e the falou bem alto, para que todos ouvissem: aor — Agora que vocé tem um orixé, poder renascer. Nao pode escolher, mas foi escolhida; no fim das contas, dé no mesmo. Vocé concorda, omobinrin mi? Ela fez que sim, emocionada. Parou de chorar, aceitava a decisio, Apés curto momento de hesitacio, os orixas aplaudiram e gri- taram vivas. As aiabis, conformadas com o desfecho, abracaram a menina, desejando-lhe uma boa vida no Aié e garantindo-lhe que iam se encontrar Ia muitas vezes. — Espero que vocé nas¢a menina, para que eu Ihe ensine como conquistar os homens — disse Oxum. — E se nascer menino, pode deixar que eu ensinarei vocé a do- minar as mulheres — disse Ogum, que se aproximara de Oxum_ para provocar citimes em Xango. — E mesmo, Ogum? — disse Exu. — A menina viu vocé sair babando atrés de Oxum quando vocé abandonou a forja. Bela ideia do que seria dominar uma mulher! — Ah, vocés s6 esto querendo confundir minha cabega — disse Aimé, dando de ombros. — F foi ter com Oxal4, que The fazia um sinal para que se aproximasse. Oxalé pediu a Ogum que pegasse seu obé mais afiado e disse: — Muitas de nossas antigas cidades e aldeias mandam tatuar sua marca no corpo de seus filhos. Fazem isso na esperanca de ‘que aqueles que forem levados pelos cacadores de escravos e que um dia consigam voltar do outro lado do ocum sejam identifi- cados pelos que ficaram, por meio da marca que carregam. As ‘marcas dizem quem eles so, a que lugar e familia pertencem, ‘mesmo se tiverem seus nomes roubados, suas identidades apa- gadas. Assim, os retornados nao correm o risco de nunca mais ‘saber sua origem, como aconteceu com esta menina. (Ogum voltou trazendo um obé fari, uma navalha, e Oxalé com- pletou seu propés — Pensando nisso, agora que sou o pai da menina no Orum, peco para Ogum escarificar minha marca em seu corpo. Se hou- ver alguma davida sobre a origem dela, alguém no Aié um dia poder reconhecer a marca da minha paternidade, desenhada no corpo que ela vai ganhar no novo nascimento. E dirigindo-se a menina: 168 — Nao vai doer nada, omé mi. b — Nio tenho medo, meu pai. $6 estou triste porque sei que para nascer de novo vou esquecer tudo que vi ¢ aprendi aqui, nem de vocés eu vou me lembrar. — Sim, minha menina, vocé esquecera tudo pelo que pas- sou aqui no Orum e lé no Ai, $6 entdo sua morte se completa- 4. Para que vocé possa ter uma nova vida, renascer, pata expe- rimentar de novo a grande aventura de viver. ‘Aimé assentiu e Oxalé completou sua explicacdo: — Viver, omé mi, é refazer sempre a busca permanente de rnés mesmos, é decifrar de novo todos os segredos, redescobrir ‘quem somos, é reinventar o mundo. E para isso, omé mi, que a vida serve: para viver. —E para alimentar e divertir os orixis — disse Exu, procu- rando disfargar a emogao com um sorriso forcado e tomando para si o saco de oferendas de que Aimé nao mais precisaria. ‘A busca, enfim, terminara. Naquele clima de despedida, Ogum se aproximou abraca- do a lemanjé. Trazia uma ternura no olhar que desmentia sua fama de rude e irascivel e disse para Aimé: — Onde quer que vocé nasca, nJo importa o tempo em que isso acontecer e quaisquer que sejam a aparéncia e o papel que ‘vocé vai ter no Aié em sua nova vida, estarei sempre la, omé mi, para abrir seus caminhos. — Axé, baba mi Ogum, modupué, obrigada — disse ela, se inclinando. Os alabés ja haviam se retirado com seus instrumentos. Os orixis haviam partido para cuidar de seus deveres. No meio da sala restaram a menina ¢ 0 adivinho. Ifa beijou Aimé e se despediu: — Boa viagem, omé mi odara. 16. UMA VIDA NOVA mercado central, no coracio da cidade de S20 Paulo, estava abar- rotado de fregueses e especialmente de turistas em excursio de fim de serriana, que vinham de todo lugar para comprar na rua 25 de Marco, conhecer o Mercado, onde esperavam comer 0 melhor sanduiche de mortadela do mundol, visitar lugares e monumen- tos famosos, assistir a um musical estilo Broadway em um dos teatros da cidade e terminar o passeio em uma cantina do Bixiga. Quase no se podia andar 1 dentro, era muita gente, mas ‘mesmo assim valia a pena. O mercado era um dos locais mais interessantes da cidade e, apesar de caro, oferecia produtos de qualidade inigualivel, entre frutas, verduras e legumes, quei- jos, frios, carnes e peixes, doces, condimentos, vinhos e muito mais, além de uma diizia de restaurantes de comida simples e gostosa. Sem falar nos belos vitrais, que por si s6 ja justificavam uma visita. Luisa era freguesa antiga, mas gostava de, a cada semana, com- prar em bancas diferentes, o que equivalia a explorar, descontado ‘© exagero, pequenos mundos novos. Numa banca de frutas foi atendida por um jovem que sepa- rava sem pressa 0 que ela ia apontando, ensinava os nomes das frutas que ela nao conhecia, uma vez que muitas eram novidades importadas, e nao deixava de sorrir. Estava quente la dentro e ele de vez em quando arregacava as mangas curtas do blustio do uniforme até a altura dos ombros, repetindo o movimento assim que elas, depois de alguns minutos, se desenrolavam por si s6. O Yendedor exibia no pescoco um fio de contas de cor azul-escuro, an Puxando conversa, e para ni ficar s6 falando de fruta, do movimento, do calor, Lufsa apontou para o fio de contas e per- guntou ao rapaz: —£ do candomble> — Eu? Nao sou, nio, senhora, Mas o colar é. Ganhei de um amigo — ele disse. — £ um fio de Ogum, o orixa dos caminhos abertos. —Caminhos abertos... bem que eu precisava. — Desculpe perguntar uma coisa pessoal — ela disse. — Ogum é seu orixa? "— Isso eu nio sei. A mie de ganto desse amigo que me deu 0 colar jé jogou biizios para mim, mas ela ndo conseguiu dizer qual era meu orixé. — Mesmo? Por que nao? — Bla falou que minha cabeca estava uma confusdo, com muitos orixés brigando. — As vezes acontece — disse Luisa, escolhendo mais algu- ‘mas frutas. — Mas vocé frequenta esse terreiro? — Mais ou menos, nao comg filho de santo. Sou da escola de samba Vai-Vai, e esse meu amigo também é. Ble toca na ba teria e também toca nesse terrejro de candombl, é alabé, og’ que toca atabaque. As vezes vou com ele e fico ali s6 apreciando. Fu adoro os orixas, posso ficar a noite inteira vendo eles danca- rem. E a comida no final é muity oa — completou, rindo. — Vocé disse que precisava abrir seus caminhos... — Modo de dizer. Olhe — disse ele, apontando para o ho- ‘mem do caixa —, este meu patego ai atazana minha vida, diz ‘que sou lerdo e que vai me despedir, que eu penso demais e tra- balho de menos. Mas eu gosto de trabalhar aqui, e aqui também tem muita gente que gosta de mim. Especialmente a freguesia —acrescentou, rindo. — E alguna coisa dentro de mim me diz ‘que a minha vida vai mudar. Que meus caminhos vao se abrir. Talvez um emprego melhor? —Tomara — desejou Luisa, — Mas voltando ao assunto, vocé niio ficou curioso em saber qual é seu orixa, no final das contas? — Sim, cu preciso saber. Mas para ser sincero, ainda nao tive tempo, ou coragem, sei l4, de levar isso adiante. A mae de ws santo disse que tinha uma guerra de orixés na minha cabeca, era tanto santo que minha cabesa parecia um oratorio. Sabe, eu trabalho feito um escravo e vivo sempre sem dinheiro, nem a faculdade terminei ainda e tenho que estudar 4 noite, mas, com tanto orixa me disputando, fiquei até orgulhoso. Nao posso me ueixar, mas no final acabei sendo um filho de ninguém. Vai ver que eu nao tenho orixé. Luisa balangou a cabesa, discordando. Enquanto falava, ele enrolava as mangas para cima e ia em- bruthando as frutas e ajeitando-as em uma caixa, com muito cuidado para no amassar. Vagarosamente. Do outro lado da banca de frutas, o homem a frente do caixa ue 0 vendedor apontara como seu patrao, chamou a atengZo do rapaz — Renato, olha essa conversa ai. Vamos trabalhar, vamos trabalhar. — Seu nome é Renato, entio — disse Lufsa ao vendedor. — E voc® continua indo a0 candomble? — S6 de vez em quando. Vou porque gosto, acho odara. Di- zem que a gente vai pela dor ou por amor, nao 6 Eu vou por amor. Mas ni faco parte, s6 assisto, nem orixd eu tenho. Vai ver que é porque eu sou branco. 3 — Todo mundo tem seu orixa —o repreendeu Luisa. — S6 6 preciso descobrir de qual deles a gente éfilho. — A mie de santo me mandou voltar 14 outro dia e fazer uma oferenda para ver se a disputa dos orixés pela minha cabe- a acaba e minha situagdo se resolve. Quem sabe? Mais uma ver ele enrolou as mangas do blusdo até a altu- ra dos ombros. Luisa percebeu que no alto do braco direito do vendedor havia um desenho formado por seis tragos verticais assim dispostos: I VI i | wm — Besta tatuagem aqui no seu brago —apontou Luisa. —O queé — f marca de nascenga, nasci com ela, nao é tatuagem. — Vocé sabe o que isso significa, esta sua marca de nascenga? — s6 uma marca, um defeito na pele, eu acho. —Vocé nunca a mostrou para a mie de santo, ela nunca viu? _— Nao mostrei, por que iria mostrar? Ver, acho que ela tam- }bém nao viu. Fui la jogar biizios em julho, fazia frio, lembro bem. daquele dia, eu estava com camiseta, camisa, moletom e casaco de couro, Sou friorento — disse, rindo. — Ela ia ver de que jeito? — Friorento? Aqui vocé est me parecendo calorento. —Também sou — ele disse e riu de novo. _— Mas voltando a questao da marca em seu brago, esse sinal que vocé carrega, meu amigo, € uma marca de orixd. (0 vendedor fez cara de ditvida. — Renato, olha a freguesia esperando! — gritou o patrio, ‘balangando a cabega em desaprovacio. — JA vou, jA vou — respondeu ele, completamente envolvido nna conversa. — Vou tentar explicar uma coisa bem rapido, para nao atra- palhar seu servigo — disse Luisa, enquanto escolhia outras fru- tas, — Os antigos africanos iorubas acreditavam que os mitos dos orixas se repetem na vida dos humanos. O babala6, um sa- cerdote que sabia os mitos de cor, tratava de descobrir qual his- ‘t6ria antiga a pessoa que o consultava estava vivendo de novo, assim ele podia orienté-la. —Certo. — Os mitos eram organizados em capitulos, chamados de odus, tudo aprendido de cor pelo babala6. Cada odu tratava de ‘um assunto e tinha seus orixas principais. Para saber que his- toria estava acontecendo de novo, o babalaé se valia de dezesseis Diizios, ou de outro instrumento. Fle jogava as brizios e conta va quantos caiam com o lado aberto para cima. Cada némero correspondia a um odu diferente, como os nimeros de um ca- pitulo de livro. Em um tabuleiro ele desenhava os sinais que re- presentavam os odus que saiam. Depois, seguindo a marcagao no tabuleiro, ele interpretava as hist6rias indicadas pelo jogo € desvendava 0 que estava acontecendo com seu consulente. us © dono da banca, que de longe fazia cara de desgosto com a duracZo da conversa da cliente com o empregado, deu-se por satisfeito ao notar que o volume das compras da mulher conti- nuava a crescer e os deixou em paz. Luisa completou a explica- ‘go ao jovem atento: — Essa tradicio, simplificada, com adaptaées, foi mantida no Brasil pelo candomblé. E agora, Renato, vem o mais impor- tante: também é 0 odu que revela qual é 0 orixd da pessoa. De qual orixa a pessoa é descendente, ou filho, digamos. — Besta marca aqui que eu carrego desde que nasci... — Essa marca representa 0 odu Ofuum, o odu de Oxalé, que etine os principais mitos que falam de Oxala. Se eu estiver certa, voce é filho de Oxald. Renato estava de boca aberta. — Nossa! Eu adoro Oxalé, fico emocionado quando ele se ‘manifesta no terreiro, jé senti até tontura. Fico arrepiado s6 de pensar — disse, mostrando o braco. —Vocé trabalha amanba, domingo? — Luisa perguntou. —Nio. O mercado abre, mas vou folgar amanha. — Ento vou levar vocé ao terreiro que eu frequento, e va- ‘mos resolver essa diivida com mae Aninha, que é a minha mae de santo. Ver o que dizem os biizios. O que vocé acha, Renato? —Combinado. Os meses se passaram. Renato habituou-se a ir ao terreiro de mae Aninha sempre que o horirio de trabalho eo de estudo permitiam. Tendo se submetido aos rituais preparat6rios con- duzidos por Luisa, esperava pacientemente o dia de ser iniciado para seu orixé, que, depois do jogo de bitzios feito por mae Ani- nha, finalmente sabia qual era. Chegaria 0 momento em que o orixa de Renato se manifes- taria no corpo do rapaz para dancar diante da comunidade do terreiro. Para ele era tudo novidade, muito trabalho e muito a aprender, mas 0 terreiro significava, igualmente, novos amigos ¢ irmaos, um lugar para se divertir também, e até namorar. No terreiro cada um podia ser o que era, sem ter que se esconder ve se envergonhar de suas origens, condigoes de vida, meio de 1% sobrevivencia e, acima de tudo, inclinagGes e preferéncias. Nada de disfarces, cada um devia se comportar em harmonia com {que herdava de seu orixé, 0 que inclufa virtudes e defeitos. Um lugar quase fora do mundo. Talvez fora do mundo. Renato nao tinha condigdo de pagar os custos de uma inicia- fo no candomblé, mas era um rapaz bem relacionado. Amigos do Mercadao fizeram listas de contribuigdes venderam rifas. (© pessoal da escola de samba nao fez por menos. Muitos eram iniciados e o ajudaram a angariar recursos entre simpatizantes dos orixis e do samba. Comerciantes do Mercadio ofereceram seus produtos, ¢ uns negociantes da rua Santa Rosa, vizinha a0 Mercadio, doaram animais de quatro pés, aves e até uma dezena de caracbis que faziam parte da longa lista de oferendas. Renato ‘também fez suas economias, empenhado em sua iniciacao. ‘Nos meses de convivéncia no terreiro, ainda como um abia, aquele que vai nascer, um novico, Renato revelou-se um rapaz que sabia 0 que queria, caprichoso ¢ detalhista, 0 que as vezes o fazia demorar mais do que o esperado no cumprimento de suas tarefas. Ha muito o que fazer em um terreiro de candomblé, o que cenvolve o preparo das comidas oferecidas aos orixis, com 0 abate de animais segundo preceitos de pureza ritual para uso das car nes nas oferendas € na alimentacao dos membros do terreiro; cuiidado das roupas e dos adornos litangicos; a limpeza das depen- déncias e sua decoracio nas festas; 0 cultivo das ervas ee a manutengio dos quarts de santo que guardam as representa- «Bes materiais dos orixés; 0 zelo dos que se encontram recolhidos ‘cumprindo obrigasdes inicaticas; a recepgio dos clientes que va0 a0 terreiro para jogar biizios e fazer suas oferendas, seus eb6s; a “organizagio das festas; o levantamento dos recursos financeiros cesta administragio para manter tudo isso; enfim, uma enormi- dade de tarefas que 0 seguidor de qualquer outra religiao, ou de nenhuma, ndo pode sequer imaginar. No candomblé, se diz, ha ‘muito chao para varrer e muita gente para alimentar. No desempenho dessas atividades € que os recém-chegados sto avaliados pelos membros dos terreiros. Renato logo foi que ido e aceito por todos, que, no entanto, apontavam que sua ma- nia de limpeza combinava pouco com certa desordem com que ‘mantinha suas coisas. Mostrava-se respeitoso com seus superiores, embora as ve- zes descuidado no cumprimento do protocolo, criativo e persis- tente nas atividades que exigiam certa iniciativa, mas um pouco displicente na observacio de certos tabus, que em um terteiro Sto muitos. Muitas vezes foi chamado & atencao por exibir certa prepoténcia. Mas a falta de pressa talvez fosse seu maior defeito, alemda teimosia, Chegada a hora, Renato tirou um més de férias e ficou trés semattas recluso no terreiro. Durante esse periodo, passou por diversos rituais da iniciagao, que culminaria, naquele dia, coma cchamada festa do nome. Pela primeira vez seu orixé seria apre- sentalo aos seguidores dos orixas, o povo de santo. Oterreiro estava repleto de filhos, convidados e curiosos. No quar em que estava recolhido, Renato estava nervoso, mas Lu‘- sae a equedes, as mulheres encarregadas de cuidar dos orixis ‘maniléstados no transe, o preparavam com cuidado e carinho. Hi: tinha a cabesa raspada e enfeitada com pintinhas bran- cas, $2U corpo estava envolto em panos brancos sobre a calca largade algodao, e pesados colares de contas pendiam de seu pesccs0. Na testa fora amarrada com um fio de palha da costa a pena ermelha do papagaio-da-costa, Tinha trancas dessa palha envolendo os bracos, e guizos amarrados nos tornozelos. Durante certo tempo, chegavam até ele os sons que vinham do batacdo, o salao de dancas. Sentado numa esteira, ouvia com PreociPacao crescente o toque dos atabaques e as vozes que ‘cantaam saudando cada um dos orixds. © coracéo batia mais rapide logo chegaria sua vez. Quindo se fez siléncio lé fora, ele bebeu agua com infusdo de follas sagradas numa caneca de agate das mios de Luisa e, ajuda® por ela, se pés de pé. Sentia os pés descalgos pregados no ch. como se eles temessem leviclo por um caminho errado. Nese momento mae Aninha abriu a porta, entrou e 0 levou para fira do quarto, onde quatro de seus irmaos de santo segu- Tavamis hastes que sustentavam o pilio branco, sob 0 qual ele fi corluzido pela mae de santo ao salio de dangas. A plateia © receeu de pé, e os irmaos 0 esperavam sentados no chao, formaclo um grande circulo. Os atabaques soavam um ritmo Tento « comunidade cantava: a) Ago, ag6 Von Omocunrin ioghé mi ibi Ag®, ag6 Vond Soré awon orucé orixé. Com licenca, deem passagem Eis que 0 menino vai chegar Com licenga, abram caminho O nome do orixd ele vai revelar. Mesmo de olhos baixos, com o tronco inclinado, sentindo que a consciéncia Ihe escapava, Renato percebeu que um joven ne- gro, de pernas compridas e pés descalgos, entrava pela porta da rua e atravessava 0 salio até o ponto onde ele era conduzido sob ‘ald. Usava um chapéu vermelho de um lado e preto do outro, levava amarrado na cintura um bastio de formato falico e tinha no pulso esquerdo uma rica pulseira de ouro em forma de cama- edo com olhos de rubi, Ninguém tentou barrar seus movimentos nem aparentemente notou sua presenca, como se sua existéncia nao passasse de um sonho que feria tio somente os sentidos amortecidos do omocunrin. Abrindo um largo e zombeteiro sor- rriso, o recém-chegado se aproximou do joven iniciado ¢ pos em seu dedo um anel de prata encimado por um pequeno caracol. esse exato momento Renato sentiu tudo escurecer ¢ 0 chao se abrir sob seus pés, Pensou que fosse um desmaio, ou talvez a morte. Nao se sentia mais dono de seu corpo. Ao longe, muito Tonge, ele ouvia, misturados aos repiques dos atabaques, sons de aplausos e vozes que gritavam e repetiam: — Epa Babi! Epa, epa! Viva OxalAl Viva, vival ar) NOTA DO AUTOR Tradisao invensao foram as fonts usakas neste liv. Os mitos dos ori Xs aqui recontados fazem parte do pari ménio cultural afro-braileir, ‘enquanto a personagem Aimé € apenas uma fabulagdo minha, assim Como sua telagZo com 0s orixds Exue If, seus companheiros de jornada. ‘A visto de mundo ¢ a8 concepsbes cle vida, morte e renascimento resentes na historia ficcional de Aim’ aacompanham de perto as tradi- Ses afticanas dos iorubés preservadas rio Brasil pelas comunidades de andomblé. Também os rtos descritos se baseiam naqueles praticados Pelos grupos religiosos, com as devidas simplificagBes © adaptagdes ne- ‘essarias a uma obra que Parte da tradiglto para inventar uma aventura. Em relacio is narrativas sobre Exu, [Fé e os outros orixas que cruzam ® caminho de Aimé em sta busca de urna nova vida, procurei me valet ‘de mitos e caracteristicas desses deuses aceitos e ensinados no cotidiano tos terreiros, Na narratvs ficcional, entretanto, foi preciso juntarele- ‘uentos € personagens mitolégicos que podem nao aparecer juntos ou to mesmo tempo € mesmo lugar nas narrativas tradicionais cultivadas Jelos sacerdates e devotos dos ors, ‘Convém enfatizar que este nfo ¢ urea livro religioso. A inteng80 aqui ‘i trazer ao leitor elementos culturais da mitologia afro-brasileira, patri- ménio que o Brasil herdou da Africae que ajudou a preservat ¢ enrique- tex, tSnaformando-o en Gaia ReaD Catal artiaticn ‘filoa6fica de carter setiar, iat sean preocupagoes ou propositos metafisicos ou religiosos. Ree Muito j foi escrito sobre a tradgao dos orixis, mas talvez valha 2 pena uma breve explicaco aos litres nijo familiarizados. Os orixis S20 deuses de origem iorubé cultuados em diversas religides de origem afri- cana no Brasil em outtts paises da América. Também estdo presentes em diferentes dimensbe: profanas, isto é, nao religiosas, da nossa cul tura, por exemplo, na mésica, na leratura, na dramaturgia, nas artes plasticas e nos entedos dis escolas de Samba. Seus mitos, que compoem 4 maior mitologia viva é& mundo, fizem parte do legado cultural que ‘negros africanos deizaram 20 pals que os excravizot Em pouco mais de tits séculos de tréfico, cerca de 5 milhoes de afti- ‘canos foram trazidos 20 Brasil como escravos. Originsrios de diferentes partes da Africa negra representaram uma multiplicidade de grupos étnicos. Hoje, metade & populacio brasileira é constituida de descen- denies de afticanos,¢ eementos de suas culturas, como linguas, artes, caliniria, eigides, mits e valores seciais, marcam indelével ¢ defini tivamente a cultura braileira. £0 caso do samba, o maior emblema da heranga negra, que nasceu nos quintais dos terres de candomblé ¢ teve «1 maioria de seus criadores ligada a grupos de culto aos orixas, © candomblé, que se formou no Brasil no inicio do século xtx, era religito de negros. Jé a umbanda, surgida um século mais tarde do en- contro do candomblé com o espirtismo de origem francesa, se destinava ‘todos indistintamente ese espalhava por todo o pais. A partir da década de 1960, contudo, o candomblé também passou a se alastrar e a atrair devotos sem limitagdes de etnia, cor, geografia ou classe social. Atingi, «dessa forma, todo o pas, justamente na década em que a tendéncia mun dial de valorizar as raizesculturaise sair em busca delas chegava também 40 Brasil Nesses anos de notivelefervescéncia cultural, ocandomblé foi desco- berto por artistas ¢ produtores culturais como uma nova e auténtica fonte de inspiragdo. Mitologia, misica, danga, estética, concepg6es de mundo ¢, especialmente, um jeito nem cristdo nem europeu de encarar e sabo- rear a vida sairam dos limites dos terreiros para se tornar ingredientes bisicos no novo receituério cultural brasileiro, Nessa descoberta, parte do repertério oral dos terreios foi sendo escrita por cientistas sociais, artistas e demais interessados, embora a oralidade seja ainda praticada nessa religito como jinico meio legitimo de transmissao da tradigao. Da preocupacdo em registrar por escrito elementos da cultura oral afro-brasileira, surgi meu livro Mitologia dos orixds, editado pela Com- Panhia das Letras em 2001, que traz ts centenas de mitos dos orixas. £ esses mitos, até hoje contados e recontados nos dois lados do Atlantico, ue as aventuras que povoam estas pginas, nos passos da menina Aimé, foram concebidas, Anda que 05 mitos contidos no presente livro tenham sido livremen- te recontados a partir das versdes apresentadas em Mitologia dos orixds, procurei preservar a integridade dos personagens, dos orixas, das aven. turas vividas por eles ¢ do sentido que cada mito pode esconder e reve- lar, Espero nao ter traido esse propésito. Espero também nao ter sido 2 REGINALDO PRANDI, paulista de Potirendabs. é professor de sociologia da Universidade de Sao Paulo e autor de mais de trinta livros de sociologia, mitologia, literatura infantil e juve nile ficco policial, varios deles langados tar bém no exterior. Dele, a Companhia das Le tras publicou Mitologia dos orixds (2000), If 0 Adivinho (2002), Minha querida assombracav (2003), Segredos guardados (2005), Morte nos biizios (2006), Contos ¢ lendas afro-brasileiros (2007), Jogo de escolhas (2009) € Contos ¢ len das da Amazénia (aon), entre outros. Recebet da SBPC, do MinC e do CNPQ 0 prémio Erico Vannucci Mendes por sua atividade na prc servacao da meméria cultural brasileira, ¢ ds FNLIJ 0 prémio de melhor livro de reconto por If, 0 Adivinho. Reginaldo Prandi vive em Siv» Paulo desde os dezenove anos.

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