You are on page 1of 152
Fabio Alves Célia Magalhdes Adriana Pagano Traduzir com autonomia ESTRATEGIAS PARA © TRADUTOR EM FORMACAO Sumario Apresentagio «5 ie 7 1. Creneas sobre a tradugao e o tradutor: revisio e perspectivas para novos planos de ago Adriana PAgAR0 occa a) 2, Unidades de tradugdo: 0 que sto ¢ como operd-las PbO ALVES acc cssectsestettensce vee 29 3. Estratégias de busca de subsidios externos: fontes textuais e recursos computacionais Adriana Pagano ..... isin vam: BB 4, Bstratégias de busca de substdios internos: memriae mecanismos inferenciais Fdbig Abies coco scsensecee - 37 5, Estratégias de anilise macrotextual: género, texto ¢ contexto Celli Magalle tes cr sesereeessnie i. ee 6, Estratégias de andlise mictotextual: 08 nfvcis lexical ¢ gramatical Célia Magadhes cs . z 2 87 7. Um modelo didatico do processe tradutério: aintegragio de estratégias de traducao Fabio AbvES sso 0s 113 Bibliografia.....-6 . 129 Respostas dos exercicios Apresentacao A proposta deste livro esti condensada em seu titulo — Traduzir com auto- nomia — estratégias para o tradutor em formacio — que define nasso face de atengio e odirecionamento que tencionamos dar a ele. Propomos aqui uma abordagem da tradugdo centrada em esteatégias ou agdes que conduzem 3 resolu- cio, de forma eficaz e adequada, de problemas tradutérios. ‘Tomamos emprestado das teorias de aprendizagem 0 coneeito de estratégia que utilizamos neste livro. Enfocamos, sobrecudo, a forma como as estratégias so usa- das pela lingiifstica aplicada ao ensino de linguas estrangeiras uma vez que os estu- dos da traducio cncontram-se diretamente relacionados a ela, mesmo que seja ape- nas devide ao fato que ambos lidam com o uso efetivo de linguas estrangeiras em. situagdes dinamicas de traca comunicativa ‘Aidgia de levar o tradutor cm formagao a descnvolver estratégias de tradugao est{ imbuida do espirito de conscientiz4-lo da complexidade do proceso tradut6rio. eda necessidade de monitorar suas ages ¢ examinar com cuidado as decisdes: tomadas a0 longo do processo tradutério. A conscientizagao desse tradutor envol- ve um redimensionamente do conceito de aprender, o qual passaa demandar que o aprendiz se torne diretamente responsivel pelo seu préprio processo de apren- dizagem. Em outras palavras, espera-se que o aprendiz se torne auténomo para escolher o caminho mais adequado, para selecionar e gerenciar as agSes que me- thor respondam a seus interesses e necessidades e para buscar formas de apreen- $40 ¢ utilizagio de conheeimentos que sejam mais apropriadas ao sew estilo indivi- dual deaprendizagem. O proceso de conseientizagio sobre a natureza da wadugio que aqui propomos aplica-se tanto ao reconhecimento da complexa rede de inter-relacdes subjacentes ao ato de traduzir, como também A prdpria concepgao da tarefa tradutéria. E por isso. que comegamos este livre abordande algumas das crengas mais comuns em relagio & traducio cao tradutore discutimes sua real validade ou pertinéncia. Pas- samos, a seguir, pela segmentagao de texto em unidades de traducio e pelas possi- bilidades de processé-las por meio de mecanismos de apaio externa ¢ interno. Nosso abjetiva subseqtiente foi implementar 0 processo tradutério por meio de a 2 Traduzic com oulonomio— estratégies pare o Iraduter em formogéa estratégias macro ¢ microtextuais para, finalmente, coneluir nossa proposta com a apresentagao de um modelo didatico do processo tradut6rio que busca integrar as diversas cstratégias de tradugdo ora apresentadas. Constata-se, assim, a relevincia de se enfocar, além de com traduzir, o que é traduzir. ‘Além da lingiifstica aplicada, nossa abordagem apdia-se em subsidios oriundos de outras éreas correlatas, tais comoa psicolingiifstiea, aandlise do discurso, a psi- cologia cognitiva ea informética. Em matéria de traducio, qualquer abordagem, que nio contemple a interdisciplinaridade inerente ao seu estudo nao faz nada além de reduzir essa tarefa a um conjunte de aspects isolados ¢ pouco produti- vos. Por intermédio das atividades propostas neste livro queremos implementar nossa compreensio da traducao como uma rede complexa de fatores multiples ¢ possibilitar efctivamente que tradutores em formagio possam se beneficiar dela Crencas sobre a traducdo e o tradutor reviscio e perspectivas para novos planos de acao Adriana Pagano Objetivos Neste capitulo, vamos abordar os seguintes aspectos: * As crencas mais comuns em relacio 4 tradugéo ¢ a0 tradutor ¢ sua aplicabilidade ou validade a luz das novas teorias dos estudos da traducio: * Anogio de estratigias de traducdo © sua relevancia na abordagem do proces- so tradutério ¢ do wadutor; * Os principais elementos envolvidos no proceso tradutério ¢ seu papel na criagdo de condicées que propiciem um trabalho bemsucedido. Consideracdes tedricas Um dos assuntos que vém sendo muito pesquisados atualmente nas areas de educagao e cogni¢io sao os fatores que influenciam o processo de aprendizagem ¢ aquisigao de conhecimentos. Dentre esses fatores, ganha destaque o papel das cren- casno processo de aprendizagem. Por crengas, entende-se todo pressuposto a par tir do qual.o aprendiz constrsi uma visio do que seja aprender e adquirir conheci- mento, Segundo pesquisadores, todo aprendiz possui uma série de crengas a res- peito do que ¢ aprender: como se aprende, qual o esforgo a ser despendido nessa tarefa c com que velocidade sao assimilados os conhecimentos (Butler & Winne, 1995). Esscs pressupostos determinam os recursos ¢ a forma que aprendiz. utili- zari para resolver todo problema que surgit'ao longo de seu aprendizado (Jacobson etal, 1996}. Orientado pelas suas crengas, oaprendiz decide o que aprender, como, quando e em quanto tempo. Crengas que refletem adequadamente 0 processo de ensinofaprendizagem geralmente conduzem 0 aprendiz & escolha de recursos ¢ formas apropriadas que, por sua vez, garantem o sucesso ¢ continuo exercicio de procedimentos acertados. Por outro lado, crengas errdneas ou pouco fundamen- tadas levam o aprendiz a optar por recursos e formas nao apropriadas ¢ culminam, geralmente, no insucesso ¢ na insatisfacio. Pesquisadores comprovaram como ni U BR R 10. Traduzir com cutcnomia ~ estratégias para 0 tradutor em formagao determinadas crencas— tais comoa de que a aprendizagem deva ser um proceso répidosem demanda de maior esforgo — levain o aprendiz a escolher formas mui- to suiperficiais de contato com o novo conhecimento, produzindo-se una interacio pouco significativa cujo resultado é a ndo apreensao de conhecimente. ‘A frea de ensino/aprendizagem de linguas ¢strangeiras também ¢ thustrativa esse respeito, Pressupostos em relagio ao método de aprendizagem de wma Iingua, © papel do professor em sala de aula, a relevaneia da gramatica no prow cesso deaquisicie da lingua, ow © roteiroa scr seguido para aprender o idioma sao excmplos de crengas que altinos possuiem & respeito da aprendizagem de Ifnguas estrangeiras. Essas orengas, as pesquisas mostram, influenciam direta- mente o comportamento do aprendiz ¢ 0 grau de sucesso dele na tarefa que persegne (vide MeDonough, 1995), Muitosalunos de linguas estrangeiras acte- ilitam, por exemplo, que aprender um idioma é aprender rapidamente ¢ de uma ver s6 uma série de regras gramaticais ¢ vocabulério que serio guardados na meméria como conhecimento j4 adquirido sobre essa lingua. Apés consegiti- rem um certificado de conclusio de um determinado nivel, esses aprendizes interrompem seus estudos da lingua, acreditando que 0 conhecimento j4 fo! adquirido e que mio mais precisa ser posto em pritica ou expandide, Apos um certo periode de tempo, vao se queixar do esquecimento de tudo que fot apren- dido, devendo novamente freqiientar uin curso daquela lingua estadada, Como essa crenga é nmuito arraigada, vemos aprendizes que transitam por diversos cur- soe, métodos ¢ professores, sempre repetindo 6 mesmo processo de estudo ¢ conseqiiente abandono. Felizmente, alguns alunos (cada vez mais) possucn outra percepeio do que seja aprender uina lingua e percorrem esse processo de pré- tica cauimento do conhecimento continuos que garante um sucesso maior. Muitos aprendizes de linguas estrangeiras acreditam também que osuces- so no desempenho do idioma esti relacionado com o fato de a pessoa ter moray dono exterior, num pats onde se fala a lingua estrangeira, o que constitu! uma crenga errénea, jd que numerosos falantes proficientes em linguas estrangeiras nunca tiveram a oportunidade de viajar para o exterior. Tendo em vista o miime- rode materiais de apoio (fitas cassete, fitas de video, revistas, livros etc.) € os recurs sos computacionais atualmente dispontveis (cp-roM, softwares de auto-aprendi- zagem, 1 Internet, a televise acabo), 0 aluno que faz uso aclequado deles utiliza estratégias aproprindas de aprendizagem pode adquirir um nivel de profieiéncia comparivel, sendo superior, ao do aprenidiz que reside um tempon exterior. Como essa erenga é muito difundida ¢ pouco problematizada, sie muitos aqueles que atribuem seu insucesso na aprendizagem de uma Iingua cstrangcira ao fato de nao terem morado num pais estrangeiro ¢ nao tentam explorar caminhos alternativos para cesenvolver sua competéncia comunicativa na lingua. Temos, assim, um cit Gulo-vicioso, no qual acrengaaparentemente explica o insucesso, ao mesmo tempo que o reforca ¢ impede solugbes para o problema vivenciado pelo aprenciz [As crencas variam de pessoa a pessoa ¢ esta0 relacionadas as experiéncias de cada individuo ¢ 20 contexto sociocultural com o qual interage. Por se tratar de Crengas sobre a taduciios o traduier 11 idéias ¢ pressupostos que o aprendiz formula a partir de sta experiencia, as eren— cas so passiveis de mudanga, seja pelo proprio actimulo de vivéncias do aprendiz, seja pela intervencaodeliberada por parte dealgum agente (professor, empregador, colega, amigo, membre da familia etc.) no seu processo de aprendizagem, Como essas reflexdes sobre crengas referemese a processos de aprendiza~ gem em geral, elas também se aplicar ao assunto espeeifico que iremos tata, isto é,Rtraducio ¢ ao tradutor. Crengas sobre a tradugao ¢ o tradutor sio, assim, todas aquelas percepeSes que se tem sobre o que seja traduzix, oque é uma bea traducio, 0 papel do tradlutor etc. No caso do aprendiz de traducio, essas percepcoes filtram as formas de pensar ¢ abordar a traduagio ¢ tem um efeito consideravel no de- sempenho do tradutor-aprendiz ¢ no trabalho a ser desenvolvido. Por se tratar de concepedes sabre o processo tradutério que podem nao se corroborar come ade- quadas ou positivas, as crcngas podem conduzir a uma tradugio ndoadequada ou insuficiente, Como esses pressupostas sio parte de um conhecimento prévio, ad- quitido pelo aprendiz e armazenado como nogées de referéncia, pouco revisadas ‘ou questionadas, as creneas dao lugar a expectativas que, quando nao plenamente satisfeitas, produzem ansiedade e sentimento de insucesso ¢ frustragio. No caso radugio, as crengas comprovadamente desempenham um papel so- cial mais amplo e, portanto, mais eritico, uma vez que além de imfluenciar a performance do tadutor, elas também determinam a forma como a sociedade em. geral tende a avaliar a traducio como profissie ¢ 0 tradutor como agente dessa atividade, com base nessas percepedes mais divulgadas. Para compreender a relagio entre crengas ¢ performance e crengas ¢ julga~ mento da traducio, vamos fazer primeiro uma atividade sobre esse assunto Atividade 1 CRENGAS GOBRE A TRADUGAG E 0 TRADUTOR Leia cada uma das afiemagdes contidas na tabeta com ela, (b) discorda dela ou (e) se vood ndo tem opt decida se voe® (a) concorda rid formada a reapeito. Tabela 1.1 renga [le [es 1, Atradueao 6 uma arte reservada a uns poucos que podem exercé-la gracas a um dom especial 2. A tradugao é uma atividade prética que requer apenas um conhecimento da lingua e um bom dicianério, 12 Traduzir com auionomia ~ eslealégias pare o tradutor em formagie ‘Cronea e D 8. Otradutor deve sor falante bilingUe ou ter morade num pais onde so fala a lingua estrangeira com a quat tra. balha. materna, una vez qué sé dominamos esta Ul 5. O tradutar é um traiciar e toda tradugao envolve certo grau de trai¢ao. | C:coneordo, D: discards, NS:ndo sai, Compare agora suas respostas com as apreciagdes que se seguem, 1. A dradugdo é urna arte reservada a uns poucos que podem exercé-la gracas a ui oan especial. Esta crenga aparece freqitentemente quando se avalia uma traduggo que de alguma maneira se destaca pela sua qualidade ou quando se quer condenar uma tradugao mal-sucedida. Esta implicita aqui a idéia de que se masce twadu- tor on que s6 se pode chegar a sé-lo quando se possui este dom. Longe de cor roborar essas afirmagées, as pesquisas mostram que tradutores competentes ¢ reconhecidos possuem uma carreira que envolve cxperiéncia ¢ qualificagio Uma quota de sensibilidade artistica certamente contribui para.a beleza de de- terminados textos, especialmente, os literdrios. Coneudo, renomados poetas e tradutores téin reconhecido em diversas oportunidades a necessidade de se ter uma vivéncia ¢ um grande conhecimento cultural ¢ lingitistico para levar a cabo uma tradugao. 2.A tradugao ¢ wina atividade prdtica que requer apenas um conhecimenta da linguae tuna bom diciondrio, Esta afirmagio, uma das mais divulgadas sobre a tradugio, tem contribut- do para o cstatuto da traducio comp atividade menor, pouco reconhecida pelo mercado de trabalho ¢ pelas diversas instituigdes que requerem servigos de traducio, tais como universidades, agéncias governamentais ¢ embaixadas. As Pesquisas confirmam o que uma longa histéria de casos ¢ fatos narram sobre insucessos envolvendo a traducio: a pratica da tradugio requer estratéaias de diversas naturezas, algumas das quais podem ser adquiridas por meio da expe- riéneia, sendo que outras padem ser desenvalvidas ou aperfeigoadas pela for- magio profissional. Tedricos e pesquisadores referem-se ao que se chama de Crengas sobre a tadugdo eo rodutor 13 ‘competéncia tradutéria”, que pode ser definida como todos aqueles conheci- mentos, habilidades e estratégias que o tradutor bem-sucedido possui ¢ que conduzem a um exercicio adequado da tarefa tradutéria. O pesquisador Stuart Campbell (1998), por exemplo, aponta que a competéncia tradutéria envolve habilidades chamadas “inferiores”, como conhecimento do léxico, da morfelogia e da sintaxe das lingnas envolvidas, bem como o dominio de habi. lidades “superiores” que dizem respeito a niveis maiores de complexidade, como conhecimento de aspectos textuais, de coesio e coeréncia, reconheci- mento de macro-estruturas textuais e coligagdes lexicais e, evidentemente, dominio de registros ¢ géneros discursivos ¢ sua insergao no contexto no qual © texto traduzide ser incorporado. A formacie requer o desenvolvimento de habilidades que transcendem o conhecimento meramente lingiiistica. Ainda, como veremos no capitulo 3, dentre essas habilidades ressaltam-se a busca de subsidios externos, isto &, de informacdes ¢ conhecimentos necessarios 4 re criagao do texto, ca utilizagao de recursos tecnolégicos que comprovadamente aprimeram a traducio. Temos, também, como veremos no capitulo 4, a capaci- dade de dedugao, indugio e assimilagao de conhecimentos de dificil acesso, o papel das mecanismos inferenciais, ¢ a capacidade de continua atualizagio de seus conhecimentos gerais ¢ espeefficos como subsidios internos fundamen- tais a exercicio da traducio. 3. O trachutor deve ser falante bilingtie ov ter morado mu pats onde se fala lengua estrangeira do par lingtifstico com gue trabalha ‘As pesquisas sem divida corroboran: esta afirmagio, embora no em caréter de exclusividade. Alguns falantes bilmgties exercem a tradugio.com sucesso, bem. como alguns tradutores que possuem vivéncia de alguma das culturas em que se fala. lingua estrangeira. No entanto, os estudos também mostram que, nesses ca sos, o bilingttismo oua vivencia do tradutor estio acompanhades de uma formagio que he permite o bom desempenho como tradutor. Nao devemes esquecer que 0 falante bilingtc pode ter um dominio limitado das lingnas que fala ou pode nao contar com alguns des outtos aspectos que fazem parte da chamada “competéncia tradut6ria”, mencionados no ponto anterior. 4, Sé se pode traduzir da lingua estrangeira para a lingia materna, tna vex que s6 dominamos esta tiltima. Esta pereepeio, também bastante difundida entre os profissionais e aprendi- zesde traducio, merece uma andlise por partes, Em primeiro lugar, temos de lem- brar que o fato de sermos falantes nativos de uma lingua no nos habilita automati camente a traduzir para essa lingua. Reiterando conceitos anteriores, nio basta 20, exercicio da tradugéo o conhecimento lingtiistico. Além disso, ¢ prudente lembrar 14 Traduzir com autonomia = estratégins para o tradulor em formacde que falantes nativos possuem diversos graus de conhecimento c proficiéncia de sua lingua materna, muitas vezes relacionados com sua formagio escolar ¢ sta ex- perigneia de vida. De maior relevincia, ainda, & preciso relembrar que a tradugio requer uma formacioe uma qualificacio que fornecem ao tradutor as habilidades ¢conhecimentos suficientes para uma boa performance. Nesse sentido, 0 domi- nio de urna lingua estrangeira, juntamente com um conhecimento cultural ¢ téc- nico, €as habilidades apropriadas para 0 exerefcio da recriagio de um texto, poss bilitarn a traduco para a lingua estrangeira sem maiores problemas. Questdes mais complexas, como a das coligacées textuais €as tipicidades do falante nativo, estio hoje muito prdximas de serem resolvidas gragas a0 desenvolvimento de bancos de dadlos de coligagdes e combinacées mais freqiientes numa lingua e numa cultura. F interessante abservar, ainda, o que pederiamos chamar de aspectos psicoldgicos da atividade tradutsria, pouco explorados ainda, mas cada vex mais presentes cm depoimentos de tradutores. Trata-se da questo da empatia com uma determinada lingua on cultura e das preferéncias buseadas em aspectos biogrétices ou sociols= gices da vida do tradutor. Dentre os indmeros depoimentos, podemos mencionar odatradutota canadense Suzanne de Lotbiniére-Harwood (1991), que foi alfabe- tizada em francés ¢ que tem afirmado s6 poder taduzir para o inglés, sua segunda Tingua, uma vez que o francés representa para ela a lingua da socializacioe portanto las imposicdes socials ¢ sexuais de sua infincia e juvenmude 5, Tadustori, wadieori Antiga c famosa, legitimada por todas as épocas ¢ culeuras, esta afirmagio ain- da domina as conversas e comenttirios sobre a traducio. Ela é responsdvel pelo descrédito que a profissio recebe em alguns circulos ¢, infelizmente, continua sendo confirmada por exemplos de trabalhos improvisados ou realizados por pes- soas nio qualificadas. Felizmente, no entanto, a énfase que a tradugao vem reee- endo nas universidades ¢ centros de estudos que desenvolvem pesquisas na Area e ointeresse que a formagio ¢ qualificagio dos farturos tradutores vém despertan= doem centros de ensino tém em muito contribuido para a contestagao desse fa moso adégio. Contudo, a problematizacio dessa crenga tem recebiclo suporte maior a partir das teorias quae sedefinem a naturcza eo objetivo da traducio desenvolvi- das, sobretudo, coma consolidagio da disciplina Estudos da Tradugdo a partir dos anos 80. A idéia de “traicio” pressupunha, dentre otras coisas, uma outra crenga também ainda bastante disseminada, de que se tracuz num vacuo temporal ¢ cul- tural, no qual uma idéia formulada numa lingua pode ser automaticamente trans posta para outra lingua como se se tratasse de una operagio matemiitica de equiva- lancias entre palavras mediada por urn diciondrio, Esse pressuposto levava a acre- ditar que haveria uma transposigio ideal e tinica que seria, entio, a traducio perfei- ta, Como as avaliagdies das traducGes freqiientemente diferiam ou no preenchiam Crengas sobre a tradugdo ee trodvtor 15 os requisitos especificos de um avaliador, o resultado era rotulade de traigio, in perfeicio, inexatidio, Teorias desenvolvidas jéa partir dos anos 50 € novas teorias fundamentadas em pesquisas académicas recentes mostram a complexidade do processo tradutério, que envelve aspectos da produgio e recepgio de teatos. AS~ sim, por exerplo, podem ser realizadas diferentes tradugoes de urn mesma origi- nal de acordo com os objetivas pretendidos, © priblico-alvo, a fungae que se busca atribuirao texto traduzide ¢ outros fatores mercadolégicos ou nao que participam: das decisGes.ascrem tomadas na recriacio de um texto numa nova lingua ceultura: Neste livro queremos desmitificar todas essas crengas citadas e demonstrar que é possivel se traduzir, adequada e apropriadamente, de e para uma lingua es~ trangeira, a partir de uma formacio especializada do tradutor, de seu exercicio consciente da profissio e de sua continua qualifieacio. Para termas uma apreciagio mais aprofandada de alguns dos princfpios te ricos sobre traducio que foram pontuados nos comentarios sobre cada crenga, va mos analisar alguns exemplos¢e tradugio, Atividade 2 Um cliente solicita que voce traduza ¢ texto a seguir para inelui-lo num volume de exemplos de tradug6es do inglés para o portugués. Leia o texto cantido na figura 1 traduza. Crengas sobre o raducdo eo tradutor 17 certidao de casamento nos remete deimediato'a um formato, uma fingio especifi- ca, uma linguagem também especifica, que caractcrizam este exemplar de discur- sojuridico, A identificacio do tipo textual € importante para sclecionar e formato, aestrutura. o Iéxico do nosso texto traduzido para o portugués Aadequacio do texto na lingua portuguesa e na cultura brasileira requer que se trabalhe de acordo com as caracteristicas desse género textual, certidae de ca- samento, no Brasil. Vocé conhece alguma certidao de casamento brasileira? Jé leu comatengio esse tipo de texto? Vocé se lembra do formato ¢ da linguagem utiliza- dos em portugués? O dicionério é certamente uma ferramenta valiosa para a transposicio deste texto, Mas sera que resolve todos os problemas? Wejamos uma possivel tradugio apenas como auxilio do dicionatio. Examine um trecho do original em inglés: igura 1.2 = Covtfcate Sf Maceite eC Bhs ts tn Certify, ar _OMENS A vaTTONL Maeda assaf Hirde of __ 31 AvRLIMA Maas a nal Hale of. mneve by me watlet in The aly Estate of Matrimony Primeira tentativa de traduicdo para o portugués: Isto € para cectificar que Carlos A. Vittori de Madri c estado da Espanha ¢ Avelina Hernindez de Madri ¢ estado da Espanha foram unidos pat mim em sagrada matsiménio em Miami, Dade Couney, no dia 30 de janeiro de 1980. O texto apresenta algo de estranho, A literalidade, ou traducdo palavra por palavra, procedimento que algumas pessoas associam coma tarefa tradutéria, nao nos auxilia aqui a criar um texto aceitavel. As dificuldades transcendem uma abor- dagem meramente lexical. Sera que devemos manter uma formulagio tal como “Carlos A. Wittori de Madri e estado da Espanha e Avelina Hernindez de Madri¢ estado da Espanha”? Analisemos um pouco mais 0 contexto de produgio do texto original Crengas sobre a traduedioe otradvior 17 certidio de casamento nos remete de imediato a um formato, uma fungio especifi- ca, uma linguagem também especifica, que caracterizam este exemplar do discur sojuridico. A identificacdo do tipo textual ¢ importante para selecionar o formato, aestrututa ¢ 0 léxico do nosso texto traduzido para o portugues. Aadequacio do texto na lingua portuguesa e na cultura brasileira requer que se trabulhe de acordo com as caracteristicas desse género textual, a certidio de ca samento, no Brasil, Vocé conhece alguma certidio de casamento brasileira? Jé leu com atengio esse tipo de texto? Voce sc lembra do formato eda linguagem utiliza dosem portugues? Odicionério texto. Mas sera que resolve todas os problemas? Wejamos uma possivel tradugio apenas com o auxflio do dicionatio Examine um trecho do original em inglés: ertamente uma ferramenta valiosa para. transposi¢ao deste ‘igura 1.2 aRLaS A, VIET This is to Certify, dae of 0 al inte of Sean fondo. tin uesusupe = Madyid __ anal Hilede of” Spain cooree day wie cette in Che Goly Estate of Matrimony Primeira tentativa de tradugdo para 6 portugués: Isto € para certificar que Carlos A. Vietori de Madi e estado da Espana ¢ Avelina Hernindez de Madri ¢ estado da Espanha foram unidos por mim em sagrado matrimOnio em Miami, Dade County, no dia 30 de jancito de 1980. O texto apresenta algo de estranho. A literalidade, ou tradugdo palavra por palavra, procedimento que algumaas pessoas associam coma tarefa tradutéria, néo nosausilia aquia criar um texto aceitivel. As dificuldades transeenderm uma abor- dagem meramente lexical. Ser4 que devemos manter uma formulagao tal como “Carlos A. Vittori de Madri c estado da Espanha ¢ Avelina Hernindez de Madri ¢ estado da Espanha”? Analisemos um pouco mais 0 contexto de produgio do texto original. 18 Traduzir com autonamis ~ estratégios pare o trodlor em formosa “Trata-se, como jé dissemos, de uma certidao de casamento, O texto revela que o casamento teve lugar em Miami, canseqiientemente, nos Estados Unidos. Ota, parece que temos um formulério proprio que o funciondrio de turno preen- cheu com os dados dos noivos, Pensado para os casamentos entre naturais dos Estados Unidos, o formulirio requer informagées sobre a cidade ¢ 0 estado de origern dos noivos. Como no texto em questio os noivos no sie americanos, mas ¢strangeiros, fez-se uma adapracio do formulério colocou-se cm ugar do estado, o pats de origem. Tendo em vista que taduzir “estado da Espana” nao configura uma formmulagio apropriada em portugués, podemos eliminar um dado nao rele- vante na certidio ¢ colocar “de Madri, Espanha”. Passernos agora para a frase inicial da certidao ¢ © pardgrafo final. Nova- mente, pelas caracteristicas do texto, as frases “This is to certify" ¢ “In witness whereof” parecem ser parte do formuttio, frases padrao que se aplicam a todos 0s casamentos. Neste ponto, surge uma pergunta, E os nosses formulrios de certidao de casamento, tém frases padrio ou formulagdes proprias para o doct= mento? Aqui, 0 diciondrio ou o mero conhecimente da lingua nao sae suficien- tes, Seo adutor nio possuiir um comhecimento sobre este tipo textual no Brasil, o que se deve fazer? Como jé apontamos na discussio das crengas mais comuns a respeito da tra~ ducio, ¢ conhecimento da lingua e @ uso de um dicionirio nao sio requisitos émi- cos da tarefado tradutor, Este deve contar com outro tipo de habilidades tais como saber buscar informagic em outras fontes além do dicionario, Neste caso, 0 pro- blema pode ser resolvido por meio do que chamamos de consulta a textes parale- os, isto é,a consultaa textos do mesmo tipo textual na Kingua¢ cultura receptoras da tradugio, Numa certidao de casamento modelo no Brasil, encontramos as se- guintes frases de abertura e fechamento do texto: Cortifico que... © referido € verdade © dow f& Amibas parecem ser adequadas para tradugdo do texto cm questao. Nossa versio inicial do texto poderia ser reescrita assim: Gertifico que Carlos A. Viteari, de Madsi, Espanha ¢ Avelina Hernandez, de Madri, Espanta foram unidos por mim em matriménia em Miami, Dade County, no dia 30 de janeiro de 1980, O refesido é verdade e dow té O que fazemos agora com esta forrmulagao a seguir? Trav hereunto set wry hand aa seal at M Hlonida, she day and yer above written i, Dade Count Crengas sobre a tradugaoe 0 tradutor 19 Embora impressa com caracteres de fonte diferente daquela do restante do texto, fiz parte do formuldrio ¢ assemelha-se a uma frase feita, que guarda um certo tom arcaico, caracteristico da linguagem juridica, Uma observacio de mode- lo de certidio brasileira re : de tomar uma decisio sobre como traduzi-la. Quais os dados relevantes nela? Sem dawvida,o fato de que a certidao foi assinada em Miami no dia e ano jé menciona- dos. Para adaprar esses dados aa modelo brasileiro, temos de explicitar, apéso “dou fé",0 local, a data eaassinatura do escrivao. Ja quie esta nao passui tal frase, razio pela qual tomos O referido ¢ verdade © dou £6. Mia de 1980, |. Dade County, Flétida, 30 de janeiro Este primeiro exemplo de tradugio constitui, na realidade, umn tipo de texto que geralmente demanda o que chamamos de traducio jiranentada, isto é, da tra~ ducio feita por um tradutor especialmente investido desse cargo, escolhide em concurso ptiblico ¢ regendo-se por regilamentagao propria ¢ tabelas de pregos elaboradas pela junta comercial de cada estado. As tradugdes juramentadas sio sob f€ ptiblica e por isso s6 podem ser realizadas pelos trad utores designados para essa fungio, No entanto, quando nao se requer que a traducao seja juramentada, qual- quer tradutor pode receber a solicitagio de traducia de certidées, histéricos esco- lares, diplomas, dentre outros. Estratégias de traducao ‘Como vimos na traducio da certido de casamento, diversas conhecimen- tose habilidades participa do proceso tradutsrio, que envolve leitura, reflexdo, pesquisa, ainda, redacao, uma habilidade essencial para uma boa performance como tradutor, Também vimos que, a0 longo do pracesso de leitura, interpretacio e recriagio do texto, surgem dtividas e perguntas que devemos ir respondendo, baseados-em nosso conhecimento prévio, lingiiistico ¢ cultural, ¢ em informagées gue devemos buscar fora do texto, através de pesquisas em textos paralelos ¢ outros. Todas essas aces que realizamos, muitas delas de forma automitica, semicons= ciente, enquanto que otras a partir de decisées conscientes ¢ cuidadosamente tomadas, constituem formas de resolucio de problemas que chamamos estratégias. Segundo o pesquisador Andrew Chesterman (1998), as estratépias representa formas eficientes, apropriadas ¢ econdmicas de resolver um problema. Estabelecendo uma analogia com outras rcas da lingtifstica aplicada, como 0 ensinofaprendizagem de Iinguas estrangeiras, podemos dizer que, assim.comw exis- temestratégias de aprendizagem que o aprendiz bemsucedido de linguas estrangei= 20 Traduzir com autonomia— estratégias pare 0 tradutor em formag&o ras utiliza, também existem estratégias de tradugao que o tradutor experiente uti za paraatingit suas metas ¢ produazir um texto taduzido bem-sucedide. Retornan- do, também, 0 conccito de crenga trabalhado no inicio deste capitulo, podemos dizer que ha uma relagao estreita entre as crengas do aprendiz, as estratégias que cle escolhe c utiliza o maior ou menor sucesso de seu desempenho. Por e: plo, a crenca de que traduzir seja simplesmente transpor o significado de palavras com aajuda de um diciomério pode levar o tradutor a ttilizar estratégias supertici- ais de como lidar com @ texto ¢, conseqiientemente, a uma tradugio totalmente inadequada. Retomandoo exemplo da certidio de casamento, vemos como asim= ples busca de palavras no diciondrio ¢ uma estratégia muito precétia ¢ insuficiente para recriar 0 texto em portuguts, Sao necessdrias outras estratégias, tais comoa uutiizada por nés nesse caso, isto é,a consulta a textos paralelos em Ifngua porte guesa no Brasil. As pesquisas apontam que no caso das estratégias, ha trés tipos de conheci- mento envolvidos que podem ser formulados por meio de és pereuntas em- * O que é ura estratégi * Como fazer uso de uma estratégia? * Quando ¢ onde utilizar uma estratégia para alcancar um objetivo especifi- co, despendendo-se um grata de esforco adequade a meta que se busca atingir? Bsses conhecimentos, as pesquisas confirmam, podem ser desenvolvidos com a instrugio explicita sobre 0 gue sao cstratégias, como, quando c onde utilizi-las de forma adequada e eeonémica pata os fins perseguides. Geralmente, faz-se uma observacio daquelas estratégias utilizadas pelos ust experientes, procedendo-se ao registro dclas, para assim poder instruir os apren- dizes menos experientes. No caso da tradugio, podemos observar as estratégias uutilizadas pelos tradutores experientesa fim de mostrar aos tradutores novatos ou pouco experientes formas de resolugio de problemas adequadas’s diversas situa bes passiveis de serem encontradas no processo de tradugio. hustifica-se, assim, anecessidade de se formar e qualificar tradutores que fundamentem seu exercicio da profissio em crengas adequadas e utilizem cstratégias de resolugio de proble- mas eficicntes ¢ com garantia de sucesso do numerosase variadas as estratégias queo tradutor experiente utiliza, Elas dizem respeito tanto.a consideragées do contexto daatividade tradut6riacomo i and- lise do texto.em seus aspectos macro e microlingitistices ¢& busca de solugdes para produgiode um texto que veiculea informagio do texto original de maneira adequa- da, conflavel e satisfatéria para os potenciais leitores do texto traduzido. Para um maior entendimento desses aspectos, vejamos um exemplo de texto.a ser traduvido ¢ algumas das estratégias passiveis de serern utilizadas. s mais bem-sucedidos ¢ Crongas sobre a traducdo eo tradtor 21 Atividade 3 Leia 0 texto ll e responda as perguntas formuladas. Texto 1, PRESCRIPTION FOR PROFIT PlanetAx gears up to take the $150 bilion U.S. market for health products nine. “You may have thaught of the idea yourself. Take the prascription-drug market, an $85 billion industry in the United States; acid vitamins, aver-the-counter medicines, and some beauty supplies; throw tall tagether online to create the largest pharmacy inthe worid, And maybe just maybe ~ you'IIhave the ingredients for an explosive e commerce recipe that will tun you into the next Amazon.com. But you'd better read the waming label before you cook up this pot of gold, advises Stephanie Schear, 81, one of the five founders of Sout San Francisco, | Calif.-based PlanetRx, an online pharmagy that was launched in January. Such a venture has a few side effects, not the least of hich are administrative and financial headaches, “I'm sure tons of people have thought of this concept,” Schear says. "Butit's very difficult to execute in this space. It's not ike selling books. There’s a confluence: of things you need to get right: everything tram product distribution to the technology to manage all the regulatory issues to inventory-managemant systems to customer service, Then you need to get the brand right and the consumer experience right. It's Immense.” But it can be done A year and half ago, Schear hooked up with Michael Bruner, @ physician in training who wanted to use the Internet te improve communication between patients | and health-care providers. When Bruner, 30, was in medical school, he discovered that patients were constantly confused by what their dactors- the attending physicians and residents — were telling them. In fact, sometimes the doctors’ comments conflicted. Determined to develop an online pharmacy witha heart and soul (he’san idealist, really, Schear says}, Bruner partnered with two friends - Randal Wong and Stephen Su-to start the pillbox rolling. Around the same time, Stephanie Schear and her pal Dr, Shawn Becker were kicking around a similar concept, So, rather than battle it out, they joined forces. Success, March 1999:24 1, Qual é0 tépico geral do texto? 2. Ha alguma narrativa serido cortada no texto? Qual é.a sequéncia de fatos? 3. Observe estilo da texto no primeira paragrato. Voce pe i entre o topico do texto e o estilo d 4. Preate atengdo agora as palavras utilizadas ao longo do texte, Vood percebe al- gurmae delas sendo utilizacas de forma metaférica? bealguma semelhanga sce primeiro pardgrafo? Dentre as estratégias utilizadas pelo tradutor experiente, encontramos aand- lise dos elementos contextuais, macro e microlingiiisticos do texto, que desenvol- 22 Traduzir com aulonomia— ast ‘gies para o iradutor em formacéo veremos com mais profundidade nos capitulos 5 e 6. Por elementos macro- Tingiifsticos, entendemas os aspectos que revelam 0 fancionamento do texto camo um todo, ou seja, 0 tipo de texto, a fungao que esse texto geralmente tem, a audién- cia para a qual esta dirigido. Os elementos microlingiiisticos sio os componcntes de cada uma das sentengas do texto, que se articulam para se inter-relacionar entre si ¢dartessitura a um texto. As perguntas acima relativas ao texto “Prescription for profit” tém por objetivo levar voce a refletir sobre essa inter-relagdo entre clemen- tos, nesse caso entre 0 tpico de texto, o modo come esti redigido ¢ o seu léxico. Pelo titulo, vemos que se trata de tm artigo relacionado coma venda de medics mentos online, ou seja, por intermédio da Internet. O primeiro pardgrafo apre- senta a noticia através da estrutura de instrucées como aquelas tipicas da bula de medicamentos. Temos, além disso, unsa rede lexical muito interessante, uma vez que os termas préprios da érea farmacéutica so utilizados de forma metaférica araexplicar as decorréncias do “produto” apresentado no primeiro parigrafo: 0 selo de adverténcia (“warning label”) alerta sobre os possiveis efeitos colatcrais (‘side effects”). Juntamente com esse entrelagamento Itidico entre léxico e t6pico, temos Uma narrativa que conta os fatos que levaram a criacio do empreendimento sendo noticiado. Todos os elementos so parte da tessitura do texto e sua recriago em outa lingua, para ser bem-sucedida, requer a sensibilidade e percepgio do tradutor, que deve detectar esses aspectos estilisticos que fazem do texto original um texto inte- ressante ¢ gostoso de se ler. Sugerimos, assim, coma complementacio, a tradugio clo texto “Prescription for profit”, atendendo is abservagies feitas nessa andlise do- texto. Ascnsibilidade para com aspectos macro '¢ microlingtifsticos de um texto € uma caracterfstica do-tradutor experiente que, podemos afirmar, ¢ antes de mais nada um leitor proficiente e analista de textos. Relacionadas corn essa habilidade, encontran-se estratégias diversas de anilise do léxico, da suposta intengio do au- tor do texto, do efeito das escolhas lexicais no Ieitor do texto original, todas orien- tadas para a produgdo de um texto waduzido adequadoe que possa atrair a atengio. do leitor na nova cultura na qual o texto esti sendo inserido por meio da traducio. Nesse sentido, um dos tipos de textos que mais solicitam esse tipo de habilidade por parte do tradutor &, quig4,o texto publicitirio. Como tados sabemos, o texto: publicitério possui uma funcio muita clara definidae seu efeito como texto que busca suscitar uma ago ou comportamento por parte do leitor depende em grande parte daarticulacdo de conceitos c imagens que apontam para o prodiuto ou servico sendo anunciado, Vejames um exemple aseguir. Atividade 4 ia 9 aniincio contido na figura 13 ¢ defina qual a fungao do mesmo, o anunciante a servigo anunciado @ a forma pela qual esse service é apresentiado ao leitor. Figura 1.3 Pree es Une USL ace aaa = and mind. That's why more and more people are devoting that time to biking, Pere ene ie Unt eter eC a ad Bee eR ae ieee US neo Peet ne nae nee PRUE CeT a American Heart Associati eres eid 24 Traduzir com autonomia — estratégias para 0 tradutor em formagéio Vejamos, agora, alguns elementos que chamam aatengio no texto publicitario apresentado. Q tituloe as imagens referem-se a um contexto que, por stia vez, traz ecos de um contexte diferente. Trata-se evidentemente de um conjunto de pala- vras que podem ser interpretadas de forma diferente conforme o contexto no qual se pensa, Poderfamos dizer que temos tm jogo de palavras e uma dupla referéncia a0 longo do texto: os bares como lugar de recreagioe o guidom, a barra (“bar”) de metal que comanda a diregio da bicicleta, outra forma de lazer mencionada do texto, Obviamente, nfo temos em portugues uma expressio que permita fazer alu- oa essas duas formas de lazer que esto sendo contrastadas no texto. Todavia, lembrando que a tradugio nao a mera passage de palavras de uma lingua para outra, crenga que jé questionamos neste capitulo, podemos tentar recriar 0 texto ¢ achar alguma forma de brincar com esses significades diferentes que confluem em “hit the bars after work”, Vejamos algumas opces a seguir. Uma estratégia do trad utor experiente 6 explorar sinénimos, palavras relacio- nadas ou de conotagses andlagas. Temos assim a conceito de “happy hour", muito comum no Brasil, ou a expressio “fim de tarde”, ambas relacionadas com um tipo de lazer ap6s o trabalho cotidiano, que envolve beber alguns drinques com cole do servigo. Podemos tentar um contraste de tipo “As “Fim de tarde — Pé na estrada” “Fim de tarde no bar?— E melhor segurar a barra” Pense -vocé também em solugdes desse tipo ¢ traduza o restante desse artigo. Atividade 5 néla adguirida nas atividades 3 ¢ 4, tente traduzir o texto public fi \4-6 15, Lembre-se de que sua tradugao deverd ser uma recriagao do texto na lingua portuguesa endo uma mera transposieao de palavras de uma lingua para a outra Figure 1.4 28 Traduzir com autonomia — estratégias para o tradutor em formagao. discursivo de um texto e os padrées retéricos dominantes nele (capitulo 5); a ana- lise dos componentes microtextuais e sua adequada compreensio (capitulo 6) Por tiltimo, no capitulo 7 oferecemos um modelo de estruturacio das etapas do processo tradutério, que acreditamos contribuiré para voce visualizar ¢ com- preender melhor os pasos e tipos de decisées que vocé segue ao longo de seu percurse tradutério, Leituras complementares Caso voct queira se aprofiandar mais nas questdes teéricas relativas as CREN- GAS SOBRE A TRADUGAO £ © TRADUTOR, incluindo-se 0 conceito de tadugao e a imagem do tradutor ao longo das diferentes épocas histéricas, ¢ As ESTRATEGIAS DE ‘abUGAO ¢ de aprendizagem, sobretudo em relacéo a linguas estrangeiras, reco- mendamos uma leitura cuidadosa dos livros ¢ artigos BASSNETT, S. Translation Studies. London & New York: Routledge, 1991. LerEveRE, A. Translation and its genealogy in the west, In: BASSETT, S.; LEPEVERE, A. (Ed). Fanstation, historyand culture, London & New York: Pinter, p, 14-28, 1990. MAGALHAES, C, O tradutor segundo o tradutor brasileiro. In: VIL e IX Semanas de Estudos Germénicos do Departamento de Letras Germinicas da uemc.Anais. Belo Horizonte: FALE/UPMG, p.136-143, 1991/1992. ONOUGH, S, Strategy and skill in learning a foreign language, London: Edward Arnold, 1995. o*Manny, Muy citamor, A. Learning strategies in second language acquisition. Cambridge: Cambridge University Press, 1990. vem, A. Episiemefogical problems it iransfatéon and its teaching. Calaccit: Caminade, 1993. Mc 2 Unidades de traducdo © que sGo e como operd-las Fabio Alves Objetivos Neste capitulo vamos abordar os seguintes aspectos: * Osdiferentes conceitos de Unidade de Tradugao (UT); * As possibilidades de segmentaro texto, ou suas partes, cm UTPs; + Uma nova proposta de definieao de UT. Consideragdes teéricas Todos nds sabemos intuitivamente que a tradugio de um texto se faz por partes. Em princfpio, parece-nos natural que essas partes scjam construidas seqiiencialmente io texto de chegada, tomando-se por base a estrutura do texto de partida. Em situagGes praticas, porém, nem sempre uma tradugio transcorre tao naturalmente assim. Muitas vezes nos deparamos com itens lexicais desco- nhecidos, estruturas sintiticas incompreensiveis, ambigiiidades semanticas de dificil solugdo. Esses acontecimentos modificam o ritmo seqiiencial do nosso trabalho come tradutores ¢ nos levam a retrocedcr com o intuito de buscar e> plicag6es por meio de passagens jé traduzidas e/ow a avancar no texto, deixando temporariamente de lado os problemas nav solucionados. Contudo, continua- mos a trabalhar por partes ¢ etapas, mesmo que essas nao sejam seqtienciais € previamente estabelecielas, [sto nos leva A constatagio, ainda que intuitiva, de que trabalhamos tanto o texto de partida quanto o texto de chegada por partes. Os Estudos da Tradugio dio a essas partes o nome de UNIDADES DE TRADUGAO (UTS). Todavia, a delimitagio do tamanho edo escopo de uma UT tem se reve- lado problemadtica. Sera quea UT ideal € encontrada no nivel lexical ou sera que ela se apresenta melhor no nivel da sentenca? Seté que as UTs dependem da coeréncia textual e, portanto, devem ser delimitadas no ambito do texto? Ou serd, ainda, que a UT, em altima instancia, deixa-se delimitar no nivel do morfema? As perguntas sao muitas ¢ nao parece existir consenso entre os tedricos da tradu- cio sobre posstveis respostas a clas, No decorrer deste capitulo vamos examinar 30 Traduzir com aulonomia = estraiégias para o tradutor em formogao aS UNIDADES DE TRADUCA em stias especificidades tedricas e préticas e procu- rar esclarecer um pouco mais sobre como podemos operdelas no decorrer do processo tradutorio, Alguns estudiosos comentam, com bastante razio, que uma questio funda- mental para a traducio permanece imutével ha mais de dois mil anos, Todas as discussOes te6ricas parecem girar em torno da dicotomia fidelidade versus iberda- de. Cicero, um dos primeiros teéricos da taducio, proferiu no século La.C. im dito classico que nos acompanha desde entao: Not ut interpres sed ut orator, Poderfamos traduzi-lo aproximadamente do latim para o portugues como: Nio como 0 que interpreta, tas como o gue fa Ou, entao, interpreti-lo, de forma mais livre, e waduzi-lo como significando Tio fiel quanto posstvel, 140 livre quanto necessétio. E interessante observar que, acompanhando essas discussdes milenares, a delimitagio de uma UT depende fundamentalmente de como 0 tadutor se posiciona em relagio 4 dicotomia fidelidade versus liberdade. Em tempos mais recentes, Vinay & Darbelnet (1957) detiniram a UT como menor segmento de um enunciado cuja coestio de sinais seja tal que esses no possam ser traduzides separadamente”, ou seja, a UT deve ser a menor possivel para que o texto mantenha sua “fidelidade” ao original. Haas (1968), baseando-se provavelmente em Cicero, procurou restringira UT, delimitando-ano espago entre “tio pequena quanto possivel ¢ tie longa quan tonecessiria”. Por outro lado, com oadvento da Anélise do Discurso ea emergéncia de uma linha de pesquisa nos Estudes da Traducio voltada para a funcionalidade — (cf (Skopostheorie) RciB & Vermeer (1984) -,o texto, como um todo, passa a ser visto por alguns estuciosos como sendo a tinica UT possivel. A Andlise do Discurso desenvolve, a partir dos conceitos de coesio-e cocréncia, uma possibilidade de se abordar o texto com uma intrincada rede de relagGes interdependentes. Por seu lado, a Teoria da Funcionalidade vé a fmgao de uma tradugio como senda seu objetivo primordial e, com isso, defende que 6 tradutor abandone a literalidade lexical e sintética em prol de uma contextualizaga idequada da traducio na lingua ¢ cultura de chegada, io mai Unidades de waducéo 31 Newmark (1988) observa apropriadamente que nenhuma dessas posioes, bastante radicais, consegue atender plenamente ao tradutor. Ele argumenta que a posigio de Haas prende-se i dicotomia milenar fiel versus livre ¢ advoga que quanto mais livre a traducio maior sera a UT e que quanto mais fiel a tradugio menor serdia UT. Poderfamos dizer que a traducio livre favorece a oracio en- quanto que a tradugio literal defende a hegemonia da palavra, Remetendo a discussio a temas mais atuais, Newmark acrescenta ainda que desde 0 surgimento da Anilise do Discurso ¢ da Teoria da Funcionalidade, a tradugio livre deslocou-se do nivel da oragao para o nivel do texto como um todo. Volta mos, assim, aos mesmos problemas enumerados acima, ou scja, ficamos pre- 5084 dicotomia fiel versus livre, Tentando delimitar melhor o tamanho de uma U'T, Newmark sugere que nto decorrer de uma tradugio a maioria das UTs restringem-se ao nfvel da pa- lavra. Seguem-se a elas as expressées idiomaticas, as frases, as oragées ¢ os pe riodos. A freqiiéncia das ocorréncias, em termos de UTS, parece acontecer nessa ordem, A cla acrescenta-se, segundo Newmark, raramente o nivel do parégra- fo ¢ jamais 0 nivel do texto, Por outro lado, contrapondo-se ao trabalho de Newmark, temos as pesquisas empiricas de Gerloff (1987) como intuito de delimitar a unidade de andlise de uma tradugao. Assitn como em Newmark, os dados empiricos obtidos pela autora indicam aexisténcia de UTS no nivel do morfema, da silaba, da palavra, da frase, da oragdo, do periode e, até mesmo, no nivel do diseurso. Contudo, diferente de Newmark, que acredita que a maior acorréncia de U'Ts resida no nivel da palavra, Gerloff conclui que as unidades de compreensio ¢ produgao em uma tradugao sao muito semelhantes iquelas identificadas no discurso falado ¢ escrito. Segundo ela, dados empiticos com- provam uma maior preferéncia dos tradutores por situar a UT nos niveis da frase eda oragio Podemos perceber que os aspectos tedricos mencionados acima nioescla recem satisfatoriamente o que sio UE e, muito menos, como devemos proce der com relagao a elas no decorrer de uma tradugio. Nao pretendemos nesse livro fornecer uma definigao cxata de UT mas dotar 0 leitor de ferramentas de trabalho que auxiliem a traduzir. Portanto, vamos tentar, agora, compreender um pouco mais esses aspectos tedricas ilustrando-os com alguns exercfcios pri- ticos de traducao. Atividade 1 reste bastante ater 2.1 em lingua ing! 32. Traduzircom autonomia = estratégias pare a traduter em Formacéo Texto 2.1 TRAVELERS ADVISORY Compited by Jetfeiy ©. Rubin SOUTH AMERICA RIO DE JANEIRO Visitors vino want to see how many of Brazi’s citizens live can now add the Morro da Providéncia favela to their tourism itinerary. The oldest and most colorful at the slums that rise above the Cidade Meravilhosa, Providencia is being featured ina new four-hour city tour offered by BTR Turismo, Six local teenagers will act as guides, showing off such sights as the Nossa Senhora da Pena Chapel, which dates from the tum of the century, as well as the stunning view of Pio from the hilllop. Police patrols ensure visitor's safety. Cost: $22, Time, March 2, 1992 Uma das caracteristicas mais mareantes desse texto ¢ 0 uso de expressGes em portugués para indicar nomes de lugares. Para nds, falantes nativos do portugues, isso facilita muito o trabalho de tradugdo, Observe que esas palavras em portu- gués, ao se destacarem do texto em inglés, pasar a constituir UTS isoladas, facil- mente identificiveis, Ea partir delas que 6 texto em inglés comega a ser compreen- dido. Note também que, apesar de aparecerem em lingua portuguesa, isso, por si, nfo nos ofercce a garantia de que esses itens lexicais estejam corretos. Se vocé ler 0 texto novamente com mais atengao € se ainda nao houver reparado, percebera que t a palavra Penha est grafada de forma incorreta. No texto em inglés, lé-se Pena. E claro que a capela em questi nio se chama Nossa Senhora da Pena mas sim Nossa Senhora da Penha. Ao traduzir, temos de nos manter atentos a esses pequenos detalhes, corrigi-los, se possivel, ou, entio, em alguns casos torni-los mais claros no texto de chegada por meio de notas de pé de pagina. Voltemos novamente ao texto Na primeira linha lé-se: of Brazit’s citizens lee can now add she ra. to see dow mar Morro da Providéncia favela so their 1 vars ia ntido, como na sentenga “How many Brazilian citizens live in slums?”; ou sera que “how anany” deve ser compreendido de forma diferente? Sc voeé percebeu imediata- mente a diferenca, parabéns! Na sentenga acima, “how many”, geralmente um item lexical composto fun . Meméria de longo prazo Como vimos anteriormente, a meméria de longo prazo é aquela que permi- te a0 individuo estabelecer uma forma estével de codifieagdo de informacacs que possibilita sua reeuperagdo consciente por m tipo de apoio interno que € precioso para o wadutor advém exatamente da me- mria de longo prazo. cio das redes associativas. O Neste livro, a meméria é vista como o resultado de uma cadeia de interac6es; a elaborago de mapas conceituais mentais pode aumentar nossa dade de retengio e recuperacio de meméria, Se operamos com mapas sos aim determinado componente de nossa memoria capa conceituais, nossos ac pode ser estabelecide de forma miltipla, ou seja, temas varias possibilidades de acessoa esta rede de inter-relagdes a fim de recuperarmos uma informago previamente armazenada mo cccrrCC w®w.L.LCLCUDS

You might also like