You are on page 1of 10
CAPITULO 2 SOCIEDADE E TUTELA JURIDICA 3. sociedade ¢ direito No atual estégio dos conhecimentos ciemtificos sobre o direito é* predominante 0 entendimento de que nao ha sociedade sem direito: ubi societas ibi jus. Mesmo os autores que sustentam ter 0 homem vivido uma fase evolutiva pré-juridica formam ao lado dos demais para, sem divergéncia, reconhecerem que ubi jus ibi socieias. $6 nao haveria lugar para o direito na imagindria hipdtese de um ermitéo vivendo em local deserto, sem convivio com ninguém e sem a subordinagio a um Estado soberano, como no caso do legendario Robinson Crusoé, antes da che- ada do indio Sexta-Feira a sua ilha isolada do mundo. Indaga-se desde logo, portanto, qual a causa dessa correlagio entre sociedade e dircito. E a resposta esta na fungc que o direito exerce na sociedade: a funcao ordenadora, isto é, de cocrdenago dos interesses que se manifestam na vida social, de modo a organizar a cooperagio entre pessoas e compor os conflitos que se verificarem entre seus mem- bros. A tarefa da ordem juridica consiste exatamente em harmonizar as relagdes sociais intersubjetivas, a fim de ensejar a maxima realizagio dos valores humanos com o minimo de sacrificio e desgaste. O crit que deve orientar essa coordenagao ou harmonizagao € 0 critério do justo © do equitativo, de acordo com os valores prevalentes em determinado momento € lugar. Por isso, pelo aspecto sociologico o direito ¢ geralmente apresemta- do como um dos instrumentos ~ sem davida 0 mais importante e eficaz entre 0s povos civilizados — do chamado controle social, entendido como 0 conjunto de instrumentos de que a sociedade dispde em sua tendéncia & imposigdo dos modelos culturais, dos ideais coletivos e dos SOCIEDADE E TUTELAJURIDICA, a valores que cultiva, para a superago das antinomias, das tensdes © dos conflitos que Ihe so préprios. 4. conflitos e insatisfacdes A existéncia do direito regulador da cooperagao entre pessoas ¢ apto & atribuigdo de bens a elas no é, porém, suficiente para evitar ou eliminar 0s conflitos que entre elas podem surgir. Esses conflitos caracterizam-se por situagdes em que uma pessoa, pretendendo para si determinado bem, no pode obté-lo — seja porque (a) aquele que poderia satisfazer sua pretensdo ndo a satisfaz, seja porque (b) 0 proprio direito proibe a satisfagdo voluntéria da pretensao (p. ex., um casamento nao pode ser anulado por simples ato consensual das partes, sendo necesséria ‘uma sentenga que o anule). Também a pretensao punitiva do Estado nio pode ser satisfeita mediante um ato de submisstio do indigitado crimino- so (nulla peena sine judicio). Nessas duas situagdes caracteriza-se a insatisfacdo de uma pessoa, a experiéneia de milénios mostra que a insatisfagdio é sempre um fa- tor antissocial, independentemente de a pessoa ter ou nio ter direito a0 bem pretendido. A indefinigao das situagdes das pessoas perante outras, jos e perante o proprio direito é sempre motivo de angistia ¢ tensio individual e social, Inclusive quando se trata de indefinigao quanto ao proprio jus punitionis do Estado em determinada situago coneretamente considerada: sendo o valor liberdade uma ine- réncia da prépria pessoa humana, a que todos almejam e que no pode ser objeto de disposigao da parte de quem quer que seja, a pendéncia de situagdes assim ¢ inegavel fator de softimento e infelicidade, que precisa ser debelado. A climinagao dos conflitos ocorrentes na vida em sociedade pode se verificar por obra de um ou de ambos os sujeitos dos interesses con- flitantes, ou por ato de terceiro. Na primeira hipétese, um dos sujeitos (ou cada um deles) consente no sacrificio total ou parcial do proprio interesse (soluga0 consensual, ou autocomposieo) ou impose o sactificio do interesse alheio (autodefesa ou autotutela). Na segunda enquadram- -se a defesa de terceiro, a conciliagdo, a mediagao e 0 processo (estatal ou arbitral). 5. da autotutela & jurisdicao Hoje, se entre duas pessoas ou grupos de pessoas hé um conflito, caracterizado por uma das causas de insatisfacao descritas acima (resis- 2 ‘TEORIA GERAL DO PROCESSO téncia de outrem ou veto juridico & satisfagao voluntaria), em principio © direito impée que, se quiser por fim a essa situagao, 0 sujeito trate de chamar o Estado-juiz, o qual diré afinal qual a vontade do ordenamento Juridico para 0 caso concreto (declaragao) e, se for 0 caso, fazer com que as coisas se disponham, na realidade pratica, conforme essa vontade (execugdo). Nem sempre foi assim, contudo. Nas fases primitivas da civilizagtio dos povos inexistia um Estado suficientemente forte para superar 0s impetos individualistas dos ho- ‘mens e impor o direito acima da vontade dos particulares; por isso, no 6 inexistia um 6rgHo estatal que, com soberania e autoridade, garantisse ‘© cumprimento do direito, como ainda nao havia sequer as leis (normas gerais e abstratas impostas pelo Estado aos particulares). Quem preten- desse alguma coisa que outrem o impedisse de obter haveria de, com sua prépria forga ¢ na medida dela, tratar de conseguir por si mesmo a satisfaga0 dessa pretensdo. A propria repressio aos atos criminosos se fazia em regime de vinganca privada, e quando o Estado chamou a si o jus punitionis cle 0 exerceu inicialmente mediante seus préprios critérios ¢ decisdes, sem a interposigao de érgos ou pessoas imparciais independentes e desinteressados. A esse regime chama-se aufotutela (ou autodefesa), ¢ hoje, encarando-a do ponto de vista da cultura da presente fase da civilizago dos povos, € facil ver como era precéria e aleatéria, pois no garantia a justi¢a, mas a vit6ria do mais forte, mais astuto ou mais ousado sobre o mais fraco ou mais timido. ‘So fundamentalmente dois os tragos caracteristicos da autotutl ‘) auséncia de juiz distinto das partes; b) imposigo da decisio por uma das partes & outra. Além da autotutela, outra solugao possivel seria, nos sistemas primitivos, a au/ocompusi¢do (4 qual, de resto, perdura no direito mo- demo); uma das partes em conflito ou ambas abrem mio do interesse ou de parte dele. Sao trés as formas de autocomposi¢ao, as quais.sobrevi- vem até hoje com referencia aos interesses disponiveis: a) desisténcia (reniincia a pretenso); b) submissdo (reniincia & resisténcia oferecida & pretenstio); ©) transacao (concessdes reciprocas). Todas essas solugdes tém em comum a circunstancia de serem parciais ~ no sentido de que dependem da vontade e da atividade de uma on de ambas as partes en- volvidas (nesse caso, solugio consensual de conffitos) Quando, pouco 2 pouco, os individuos foram se apercebendo dos males desse sistema, eles comecaram a preferir, ao invés da soluggo arcial dos seus conflitos (parcial = por ato das proprias partes), uma s0- SOCIEDADE E TUTELA JURIDICA 8 lugao amigavel ¢ imparcial através de drbitros, pessoas de sua confianga ‘mititua em quem as partes se louvam para que resolvam os conflitos: Essa interferéncia, em geral, era confiada aos sacerdotes, cujas ligagdes com as divindades garantiriam solugdes acertadas, de acordo com a vontade dos deuses; ou aos ancidos, que, mais do que os outros, presumivelmen- te conheciam os costumes do grupo social integrado pelos interessados. Ea decisdo do arbitro pauta-se pelos padres acolhidos pela convicgao coletiva, inclusive pelos costumes. Historicamente, pois, surge 0 juiz antes do legislador. Na aurotutela, aquele que impbe a0 adversério uma solugdo nfo co- gita de apresentar ou pedir a declaragao de existéncia ou inexisténcia do direito; stisfaz-se simplesmente pela forga (ou seja,impe sua propria pretensio). A autacomposicdo € a arbitragem, ao contrério, limitam-se a fixar a existéncia ou inexisténcia do direito; 0 eumprimento da decisto, naqueles tempos iniciais, continuava dependendo da imposigo de sotu- {$0 violenta e parcial autotutela) Mais tarde, © & medida que o Estado foi se afirmando e conseguiu impor-se aos particulares mediante a invasdo de sua antes indiscrimina- da esfera de liberdade, nasceu, também gradativamente, sua tendéncia a absorver o poder de ditar as solugdes para 0s conflitos. A histéria ‘mostra que no direito romano arcaico (das origens do direito romano até ao século II aC, sendo dessa época a Lei das XII Tébuas) ja 0 Es- tado participava, na medida da autoridade entio conseguida perante 98 individuos, dessas atividades destinadas a indicar qual o preceito a -preponderar no caso concreto de um conflito de interesses. Os cidadaos em conflito compareciam perante 0 pretor, comprometendo-se a aceitar ‘© que viesse a ser decidido; e esse compromisso, necessério porque & ‘mentalidade da época repudiava ainda qualquer ingerencia do Estadu (ou de quem quer que fosse) nos negécios de alguém contra a vontade do interessado, recebia 0 nome litiscontestatio. Em seguida escolhiam um arbitro de sua confianca, o qual recebia do pretor o encargo de decidir a causa. O processo civil romano desenvolvia-se, assim, em dois estagios: perante 0 magistrado, ou praetor (in jure), e perante 0 érbitro, ou judex (apud judicem), Como se vé, j4 nesse periodo stado tinha alguma participacao, pequena embora, na solugo dos litigios. Tal sistema perdurou ainda durante todo 0 periodo classico do direito romano (periodo formular, século II aC a século II dC), sendo que, correspondentemente ao forta- lecimento do Estado, aumentou a participagao deste no processo através 44% TEORIAGERAL DO PROCESO 4 conquista do poder de nomearo érbitro (0 qual era de inicio nomeado, pelas partes € apenas investido pelo magistrado). Vedada que era a auto! {utela, o sistema entéo implantado consistia numa arbirragem obrigaté- ria, que veio a substituir a anterior arbitragem facultativa Além disso, para facilitar a sujeiga0 das artes as decisdes de ter- cciro, a autoridade piblica comega a preestabelecer, em forma abstrata, regras destinadas a servir de critério objetivo e vinculativo para tais deci. $0es, afastando assim os temores de julgamentcs arbitririos e subjetivos. Surge, entio, o legislador. A Lei das XII Tébuas, do ano 450 aC, é um’ marco histérico fundamental dessa época, Depois do periodo arcaico e do classico (que, reunidos, formam a fase conhecida por ordo judiciorum privatorum) veio outro, que se caracterizou pela invasio de area antes no pertencente ao pretor: con. tariando a ordem estabelecida, passou este a conhecer ele proprio do mérito dos litigios entre os particulares, inclusive proferindo sentenca, em vez de nomear ou accitar a nomeago de um drbitro que 0 fizesse, Essa nova fase, iniciada no século III dC, é, por isso mesmo, conhecida Por periodo da cognitio extra ordinem. Com ela completou-se o ciclo histérico da evolugdo da chamada justica privada para a justia piiblica, © Estado, jd suficientemente fortaiecido, imp3e-se sobre os particulares & prescindindo da voluntiria submissio destes, impde-lhes imperativa: mente sua solucdo para os conflitos de interesses. A atividade mediante 4& qual os juizes estatais examinam as pretensdes e resolvem os conflitos dé-se 0 nome de jurisdigao. Pela jurisdi¢o, como se vé, os juizes agem em substituigao as Partes, que no podem fazer justica com as proprias maos (vedada a. autodefesa ~ CP, art. 345); @ elas, que niio mais podem agir, resta a pos- sibilidade de fazer agir, provocando o exercicio da fungao jurisdicional E como a jurisdieto se exerce através do processo, pode-se provisoria:” mente conceituar este como instrumento por meio do qual os drgdos Jurisdicionais atuam para pacificar as pessoas conflicantes, eliminendo 08 conflitos ¢ fazendo cumprir o preceito juridice pertinente a cada caso que Ihes é apresentado em busca de solugao. As considerages acima mostram que, antes de 0 Estado conquistar para si o poder de declarar qual o direito no caso conereto e promover a Sua realizagio pritica (jurisdigdo), houve trés fases distintas: a) autotu {cla; b) arbitragem facultativa;c) arbitragem obrigatoria. A autocompo. sigdo, forma de solugio consensual dos conflitos,€ to antiga quanto a ‘utotutela. O processo surgiu com a arbitragem otrigatoria. A jurisdigie SOCIEDADE E TUTELA JURIDICA 4s estatal, com a capacidade de impor a solugo dos conflitos, s6 depois (no sentido em que a entendemos hoje) E claro que essa evolugdo no se deu assim linearmente, de maneira limpida e nitida; a histéria das instituigdes faz-se através de marchas € contramarchas, entrecortada frequentemente de retrocessos e estag- nagdes; de modo que a descri¢do acima constitui apenas uma anilise macroscépica da tendéncia no sentido de chegar ao Estado o poder de dirimir conflitos e pacificar pessoas. Para se ter uma ideia de como essas coisas se passam confusamen- te, observe-se o fendmeno anilogo que ocorre com referéneia aos con- ‘itosinternacionais.& eutotuela no plano internacional é representada pela agressio bélica, pelas ocupagées, invasdes, intervengdes (inclusive econémicas) ou ainda pelos julgamentos de inimigos por tribunais de adversérios; mas coexiste com a autotutela a aulocomposigdo (através de tratados internacionais), sendo de certa frequéncia a arbitragem fa-

You might also like